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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
EVALTO PEREIRA DO NASCIMENTO
O AMOR EM SANTO AGOSTINHO: VONTADE QUE MOVE A BUSCA
NATAL-RN 2009
Evalto Pereira do Nascimento
O amor em Santo Agostinho: vontade que move a busca
Monografia apresentada ao Curso de Filosofia da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como pré-requisito à obtenção do título de Bacharel
em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. José Ramos Coelho
Natal-RN 2009
Catalogação da Publicação / Bibliotecário Raimundo Muniz de Oliveira CRB15 – 429
Nascimento, Evalto Pereira do. O amor em Santo Agostinho: vontade que move a busca / Evalto Pereira do Nascimento. – 2009.
45 f. : il. Monografia (Graduação) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Curso de Filosofia. Natal, RN, 2009. Orientador: Prof. Dr. José Ramos Coelho. 1. Santo Agostinho – Monografia. 2. Amor - Monografia. 3. Felicidade - Monografia. I. Coelho, José Ramos. II. Título.
RN - UFRN CDU 1”04/14”
À minha esposa, Izabel, por ter
me incentivado a cursar uma
faculdade, mesmo sabendo das
minhas limitações de trabalho e
idade.
RESUMO
A presente monografia surgiu a partir de uma tentativa de amenizar o problema
existencial da infelicidade. Como o amor pode tornar as pessoas mais felizes?
Optou-se em examinar a solução apresentada por Santo Agostinho sobre o
problema, enfocando a exposição minuciosa realizada por Étienne Gilson, o seu
grande comentador. Das análises preliminares acerca do tema, resultou que o amor
é a vontade que move a busca da felicidade. Daí surgiram três questionamentos: O
que é o amor? Qual a sua fonte verdadeira? Será que amamos o que deve ser
amado? Do resultado da pesquisa, conclui-se que o homem deve esforçar-se no
sentido de subsidiar a alma a tomar a decisão correta, para poder encontrar o seu
lugar na natureza, acima do que deve dominar e abaixo do que deve submeter-se, e
assim encontrar a felicidade.
Palavras-chave: Santo Agostinho. Amor. Felicidade.
ABSTRACT
This monograph arose from an attempt to alleviate the problem of existential unhappiness.
How love can make people happier? We chose to examine the solution presented by St.
Augustine on the problem, focusing on the full details held by Etienne Gilson, its great
commentator. The preliminary analysis on the subject, it appeared that love is the desire that
drives the pursuit of happiness. This has led to three questions: What is love? What is your
real source? Do we love to be loved? The search result, it follows that man should strive to
support the soul to make the right decision in order to find its place in nature, most of which
should dominate and below should submit, and thus find happiness.
Keywords: St. Augustine. Love. Happiness.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................... 08
2 CORPO E ALMA; DUAS REALIDADES............................................................ 11
2.1 Afelicidade..........................................................................................................11
2.2 A alma tende para Deus.................................................................................... 16
3 AMOR, VONTADE QUE MOVE A BUSCA.........................................................23
3.1 O que a filosofia ensina...... ............................................................................ 23
3.2 A moral é ato de amor....................................................................................... 28
3.3 Regras e Leis - das virtudes e da ordem......................................................... 28
3.4 Amor, movimento de busca..............................................................................32
3.5 Caridade: o amor perfeito..................................................................................37
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 43
REFERÊNCIAS................................................................................................... 45
APÊNDICE - SANTO AGOSTINHO - VIDA E OBRAS..................................... .47
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1 INTRODUÇÃO
O amor sempre foi contado e cantado em prosa e verso, em todas as
gerações que se cederam na história, embora os primeiros registros só tenham
aparecido referentes ao período mitológico, mas é verdade que ele está presente
em todas as épocas e lugares. Porém, para efeito de uma melhor compreensão,
será feito uma breve avaliação do que é o amor na visão de alguns filósofos
renomados.
A idéia de monografar sobre o amor surgiu da tentativa de amenizar o
problema existencial da infelicidade. Pois, no contato diário com as pessoas, na
convivência social, e em diversas leituras, constata-se o quanto as pessoas são
pouco felizes, e com que intensidade gostariam que a vida fosse diferente.
Percorrendo sumariamente as contribuições dos filósofos ao longo dos
tempos sobre o amor, vejamos algumas concepções apresentadas nos períodos
clássico, patrístico e moderno.
Na primeira fase, mas ainda no período naturalista, Hesíodo e Parmênides
entenderam que o amor é a força que move as coisas e as mantem juntas. Para
Platão (1979) o amor pode se apresentar de várias maneiras, mantendo as
características do amor sexual. Platão, em “O banquete” (1979, p. 31-42),
dimensionou o amor numa escala crescente de quatro níveis. Em primeiro lugar
coloca o amor mantendo características do amor sexual, que se apresenta como
necessidade de conquistar aquilo que ainda não tem, é desejo, carência e
necessidade. Em segundo lugar amor é a estima do bem, ou desejo do bem. Em
terceiro lugar, é o desejo de manutenção da vida; e, em quarto lugar, há o amor
mais nobre que é o amor pela sabedoria. O amor nessa escala crescente se
desenrola do sensível ao metafísico, Aristóteles (2002) fala do amor como algo
meramente humano, “e a cada pessoa o que é bom e agradável é o que assim se
afigura para ele” (ARISTÓTELES, 2002, p.179). Pra ele o amor é um sentimento e a
amizade uma disposição de caráter; com efeito, pode-se sentir amor até pelas
coisas inanimadas, mas o amor envolve escolha e as escolhas originam-se de uma
disposição de caráter. Ademais os homens desejam bem a quem ama por eles
mesmos e não em razão de um sentimento, mas de uma disposição de caráter.
(ARISTÓTELES, 2002). Sendo reconhecidamente humano, não tem referências
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metafísicas nem teológicas, mas é bom lembrar que a tese do primeiro motor que
move o mundo, e, portanto tudo que está dependente dele, coloca Aristóteles na
condição daqueles que creem que o amor é a força que move o mundo, como
objeto de amor, e como termo do desejo as coisas tem de alcançar a perfeição de
Deus (Met, X1I7, 1072 b apud ABBAGNANO, 2000, p. 40).
A segunda fase, a patrística, onde predomina o pensamento cristão, será
comentada depois. Na terceira fase, que para efeito deste estudo, começa com o
Romantismo, há uma mudança mais radical do pensamento filosófico e se estende
até os dias de hoje. Pode-se dizer que a marca do início dessa fase é o pensamento
de Espinosa com o panteísmo, que é um movimento divulgador da idéia de que
Deus é a natureza. A partir daí, muitos filósofos se referiram ao tema do amor, com
variadas idéias. Aqui citaremos alguns deles, apenas de relance e espaçadamente.
O panteísmo, por exemplo, cujo maior expoente é Espinosa desenvolve a
doutrina de que Deus é a natureza do mundo. A causalidade divina é identificada
com a causalidade natural. Em Feuerbach existe uma teologia sem Deus, e o
movimento positivista moderno tende a identificar Deus com a humanidade se Deus
é a humanidade, não há quem ele ame, ele só pode amar a si mesmo. E o amor só
se realiza se houver quem ame e quem seja amado (ABBAGNANO, 2000, p. 42).
Valvernargues diz que o amor é objeto dos sentidos e Kant compactua com esta
idéia quando diz que o amor a Deus como inclinação é impossível, pois Deus não é
objeto dos sentidos. Num outro momento, Espinosa, numa de suas
conceitualizações, diz que o amor como qualquer outra emoção (affectus), consiste
numa alegria acompanhada de uma causa externa, em outras palavras, ele quer
dizer que Deus não ama ninguém, porque não está sujeito a causas externas.
(ABBAGNANO, 2000, p. 43).
Há muitas opiniões a respeito do amor, no campo filosófico. O amor como
força unificadora - Hesíodo e Parmênides; o amor como necessidade, carência,
desejo e filosofia - Platão; o amor como disposição de caráter - Aristóteles; Deus
como natureza - Espinosa; Deus como humanidade - Feuerbach e o movimento
positivista de Augusto Comte e seus seguidores. Por último, que compactuam com
a mesma idéia de que a relação de amor entre Deus e os homens é impossível
porque Deus não é objeto dos sentidos.
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Sintetizando, chega-se à conclusão de que a filosofia clássica grega
acreditava no amor como sendo uma relação do homem com ele mesmo e com as
coisas, tendendo para alcançar o bem maior; já a filosofia moderna, apresenta o
amor com uma relação que não pode existir entre o sensível e o não sensível.
Agora, voltando para avaliar a segunda fase da história da filosofia, marcada
pelo cristianismo, que teve como maior expoente o filosófico Santo Agostinho, se
percebe que ele foi o único a defender o amor como uma relação do homem com
ele mesmo na pessoa do seu próximo e com a divindade, ou seja, com o bem
maior.
Trazer de volta ao campo de análise a perspectiva agostiniana sobre o amor
é importante para a filosofia e para a humanidade, porque nela a alma reencontra a
possibilidade do seu desejo de felicidade ser realizado. O anseio da humanidade
pelo divino começa a se perder com as novas teorias surgidas a partir do panteísmo
e que evolui com o aparecimento do positivismo e das várias formas de
materialismos modernos.
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2 O CORPO E A ALMA: DUAS REALIDADES
2.1 A Felicidade
Tudo que será visto pode ser muito interessante para o crente, mas para o
cético não teria nenhum valor filosófico, se não houvesse a dialética agostiniana,
conferindo valores de verdade a seus argumentos. Portanto, faz-se necessário em
alguns pontos, seguir passo a passo a argumentação das provas auferidas às suas
verdades, a começar pelo tratamento dado à beatitude, que é o caminho para se
atingir o amor.
“É próprio de todos os homens quererem ser felizes” (AGOSTINHO, 1995 a,
p. 433). Mas como é aguçado esse desejo? A busca da felicidade pelas almas é
despertada por lembranças de uma “doce pátria” (GILSON, 2007, 18) onde um dia
haverão de aportar, mas um obstáculo lhes ameaça na entrada desse porto: “o
orgulho e a paixão da vangloria” (GILSON, 2007, p.18). Mas se alguma coisa pode
ser chamada de presente de Deus podemos dizer que é uma vida de felicidade.
Lutar para vencer a ameaça do porto, é pedir para receber a felicidade, aceitá-la do
modo de Deus. É a única via de tê-la.
Santo Agostinho entende que há muita especulação acerca de como
encontrar a felicidade, mas é uma busca inglória por que sempre termina no
homem. O conhecimento da verdade é condição necessária para alcançar a
beatitude. Pode-se dizer que Agostinho se utiliza do preceito socrático (“Conhece- te
a ti mesmo”) apenas para que a alma saiba o que ela é, e possa “viver de acordo
com sua natureza, ou seja, para que se deixe governar por aquele a quem deve
estar sujeita e acima das coisas às quais dominar”. (AGOSTINHO, 1995 a, p. 319-
320).
A transformação sofrida após o conhecimento de si mesmo, conduz a alma
ao conhecimento da verdade, aliás, talvez aqui, a alma descubra que nada sabe.
Mas, enfim, em que consiste a felicidade? “Aqueles que não tem o que o
desejam não são felizes, mas não se podem dizer felizes todos àqueles que têm o
que desejam”. (GILSON, 2007, p.18). Agostinho amarra esse pensamento numa
frase da obra Hortensius de Cícero, “A malícia da vontade causa-nos mais mal do
que a fortuna não nos faz bem” (apud GILSON, 2007, p.19). Ora, a fortuna pode
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trazer males, mas a malícia da vontade muito mais, por que é pela vontade que o
homem arquiteta o mal. Portanto “ninguém é feliz se não tem o que quer, mas não
basta ter o que quer para ser feliz” (GILSON, 2007, p.19). Quem “não é feliz é
miserável, e por consequência àquele que não tem o que quer é miserável”
(GILSON, 2007, p.19). Logo, não basta ter o que quer, é necessário querer o que se
deve querer para ser feliz. Mas como se pode conquistá-lo?
É verdade que o bem que se procura é para o homem, mas o homem é
formado por duas realidades, corpo e alma, corpo mortal e alma imortal. E
aprendeu-se, depois de conhecer a si mesmo, que o lugar da alma é acima do
corpo e abaixo de Deus, portanto, o bem que se procura não é para o corpo e sim
para a alma. Logo, sendo para a alma e como é todo o homem que quer ser feliz,
esse bem deve ser “independente do acaso e da fortuna. Nada de caduco pode ser
possuído por nós quando queremos o tanto quanto o queremos. Por outro lado
amar o que se pode perder é viver no temor perpétuo incompatível com a
verdadeira felicidade” (GILSON, 2007, p.19). E o que é permanente e independente
do acaso e da fortuna? Somente Deus. Então ele é o único caminho que conduz a
beatitude. Em quais condições podemos deseja-lo?
Alguns como “o cético ou o acadêmico” (GILSON, 2007, p.19), não creem
encontrar a verdade, não obstante a procuram, se procuram é por que querem, mas
já se sabe que aquele que não tem o que quer é infeliz, portanto não tem Deus nem
a beatitude. Mas ainda, “se a sabedoria implica a beatitude, e se a beatitude implica
Deus, o cético não poderia possuir nem Deus, nem a beatitude, nem a sabedoria”
(GILSON, 2007, p. 20). Para Santo Agostinho a verdade é condição indispensável
na busca da beatitude.
Entre os que creem que a descoberta da verdade não é impossível, nem
todos concordam que a posse da sabedoria de Deus implica a verdade. Em
“Soliloquios e a Vida Feliz” (AGOSTINHO, 1998) numa discussão entre Licênio,
Trigésio e Adeodato, surgem três opiniões “- Possui a Deus quem vive bem - Possui
a Deus quem faz o que Deus quer que se faça. (...) - Possui a Deus quem não tem
em si o espírito imundo” (AGOSTINHO, 1998, p. 131). É notável que as três
opiniões formem uma só: por que quem faz o que Deus quer vive bem, quem vive
bem faz o que Deus quer, e não pode ser dito que naquele em que não habita o
espírito impuro possa viver mal, por que quem vive na castidade da alma, que é a
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ausência de luxuria e mais ainda de todo pecado, não pode viver mal (GILSON,
2007). Se Deus está presente nas três formas e as três são a mesma coisa que
viver bem, precisamos então saber o que é viver bem.
Deus sempre quis que o homem o procurasse. Se procurando a Deus se faz
o que ele quer, não se pode dizer que aquele que procura Deus vive mal visto que
faz a sua vontade; por outro lado quem procura Deus é por que não o tem, em
outras palavras que quem não tem Deus é miserável. Mas como é miserável aquele
que faz a vontade de Deus? Ver-se-á como Agostinho resolve essa dificuldade.
Já foi dito anteriormente que a felicidade é um bem do espírito. Isto posto, a
perda dos bens materiais não pode comprometer em nada a beatitude, por isso,
quem é sábio deseja apenas o que é possível para jamais ter seus desejos
frustrados, pois limita-se a desejar apenas o que é possível. Mas a felicidade não
pode ser senão for plena, a plenitude é componente indispensável à felicidade. A
falta de plenitude é carência e miséria. Uma plenitude justa nem falta nem excede a
medida. Se a beatitude só pode ser plena, logo sem a plenitude não há sabedoria.
Então qual a relação da sabedoria com a plenitude?
A plenitude, sabe-se, comporta uma medida, onde não há falta nem excesso,
por ela o espírito se liberta dos excessos como: o orgulho, a ambição, a luxuria,
vícios pelos quais os espíritos desordenados acreditam encontrar a felicidade.
Também pela plenitude rejeitam-se defeitos como: a baixeza da alma, a crueldade,
a tristeza, a cupidez e outros correlatos que possam diminuir o homem e causar a
sua infelicidade. Quem uma vez descobriu a sabedoria e a guardou, nunca
ultrapassa a medida, ou seja, nunca precisa de nada. Dessa forma é a mesma coisa
possuir a medida ou a sabedoria e ser feliz.
Que sabedoria é essa? Para a filosofia pode parecer estranho querer explicar
algo como a sabedoria a partir de uma citação bíblica, como a que escreveu o
apóstolo Paulo (I Cor. 1,24), “é a sabedoria de Deus”, ou seja, o filho de Deus é a
sabedoria de Deus. Mas se a sabedoria é Deus e chega-se a conclusão de que,
quem possui Deus possui a beatitude e implicitamente a sabedoria, então não é
preciso nenhuma estranheza. E se Ele também disse, “eu sou a verdade” (em Jó.
4,6) e como já foi dito, que a verdade é condição necessária para a beatitude, e se a
verdade só existe em função da medida suprema então a felicidade é um bem
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daquele que chegou pela verdade à medida suprema. Desta forma, estar de posse
da sabedoria é gozar da posse de Deus pelo pensamento.
Já percorremos um caminho à procura de uma resposta para a pergunta; o
que é viver bem? Já descobrimos que quem não tem a posse de Deus vive na
miséria e que “viver bem é precisamente esforçar-se para possuí-lo” (GILSON,
2007, p. 23). Pode-se dizer que da fonte da verdade, que é a sabedoria, brota na
alma outras verdades que não se pode abrir mão delas como: a necessidade de
conhecer a si mesmo; o que se deve desejar para ser feliz; e a medida suprema.
Todas essas coisas rememoram a lembrança de Deus. Mas quem pode dizer ter a
posse total desses bens? Conclui-se daí que o homem não tem nem a sabedoria,
nem a beatitude (GILSON, 2007). Não temos ainda uma vida feliz a não ser no
conhecimento do Espírito Santo (GILSON, 2007). Podemos dizer que a nossa
felicidade está em ter o Espírito Santo que nos liga à verdade e à medida suprema.
“Espírito, verdade e medida, que são apenas uma única substância, um só Deus”.
(GILSON, 2007, p. 23).
Foi falado bastante no bem que deve ser possuído para ter a felicidade. Mas
onde entra o “conhecer” nessa historia? A sabedoria que beatífica não é um bem
que se deve apenas conhecer: “se é verdadeiro dizer que conhecer algo pelo
pensamento já é possuí-lo, não se pode dizer que conhecê-lo seja possuí-lo
perfeitamente” (GILSON, 2007, p. 25). É o pensamento suficiente para ver, porém
não é para amar, pois o amor é um desejo sensível, como tal deve voltar-se ao bem
soberano, submetendo-o a ordem da razão; é isto que permite uma melhor
contemplação. A alma amando inteíramente aquilo que só o pensamento
contemplou pode atingir a sua meta. Ela não precisa só conhecer o amor, como por
exemplo, por experiência de outro, ela precisa amar para de certo modo tornar- se
amor.
É, com efeito, próprio do amor que o objeto amado reaja, na alma,
de alguma maneira sobre isso que ela ama para transformá-lo em
sua imagem e assimilá-lo. Amar o material e o perecível é
materializar-se e condenar-se a perecer; amar o eterno é ao
contrário, eternizar-se; amar Deus é torna-se ele. (GILSON, 2007, p.
26).
Cada vez mais nota-se que a beatitude está entranhada com a verdade. Ela é
um bem mais possuído do que visto (GILSON, 2007). “Conhecer o ouro e o querer
sem o ter, é algo possível; e o mesmo ocorre com todos os outros bens materiais;
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mas conhecer a verdade, se de antemão a amamos, é por definição tê-la de alguma
maneira”. (GILSON, 2007, p.27).
Por essa doutrina agostiniana, só há vida feliz se houver verdade nela, não
há espaço para o ceticismo nem para o relativismo. Já que o destino do homem é a
felicidade ele quer ter já nesta vida uma certeza incondicional. É necessário que a
alma tenha, já nesta vida, uma prova real da verdade, o que lhe dará uma certeza
incondicional da beatitude eterna, haja vista que a verdade nunca se extingue.
Se a beatitude que é totalmente ligada à verdade é um bem a ser mais
possuído do que conhecido, em hipótese alguma se deve abrir mão do
conhecimento, porque o próprio Cristo, autor da beatitude diz: “ora, a vida eterna é
esta: que eles te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro e aquele que enviaste,
Jesus Cristo” (Jo. 17,3). Para que a beatitude atinja seu fim só conhece-la não é
suficiente; é necessário de algum modo sê-la, e para completar essa primeira
máxima Jesus diz: “amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a
tua alma e de todo o espírito”. (Mt. 22,37). Desse modo a sabedoria conduz para um
fim onde Deus flui naturalmente, a sabedoria se consome nesta alegria sem se
consumir.
A doutrina formulada por Santo Agostinho pode ser chamada de trans-
filosófica: pois a filosofia definida e aceita por todos como amiga da sabedoria e que
traz a felicidade para o homem, fica aquém da doutrina agostiniana que conduz a
Deus como uma vida eterna. “Pois seguimos Deus aqui embaixo quando vivemos
como sábios, mas seguir a Deus é apenas viver bem, ao passo que, para ser feliz é
necessário possuí-lo”. (GILSON, 2007, p.28-29). Encontram-se aqui duas
consequências; uma é a especulação racional e que tem um papel necessário, mas
que é somente uma preparação para Deus, e uma especulação racional não
comporta com um simples esboço, uma contemplação mística que leva à posse de
Deus, perfeita beatitude eterna.
A segunda consequência é que classificada como trans-filosófica, que remete
a Deus, esse objeto da sabedoria se encontra em numa região que só poderá ser
atingida plenamente na outra vida. De agora em diante será visto como o homem se
move na direção de Deus, como o bem supremo. Primeiro pelo conhecimento que
apresenta Deus como um termo e depois pela caridade como amor perfeito por
onde é possível possuir Deus, o amor.
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2.2 A alma tende para Deus
No capítulo anterior foi abordado que a beatitude (vida feliz), só pode ser
alcançada em Deus. Ele é o Bem Supremo que deve ser buscado. Mas, se Deus
não existir, será prudente continuar com esta pesquisa?
Neste momento o mais prudente é seguir os passos de Santo Agostinho para
saber aonde ele vai chegar. É fato que para ele “a idéia de Deus é um
conhecimento universal e naturalmente inseparável do espírito humano” (GILSON,
2007, p. 31). Quando o homem percebe essa existência e o procura conhecer, ele
dá-se a conhecer, mas somente o tanto de provocar mais e mais o desejo de
conhecê-lo. De modo que na finitude humana não se pode enxergar Deus infinito,
mas nem por isso pode-se negar sua existência. (GILSON, 2007).
Não é que não exista nenhum homem que ignore a existência de Deus,
existe sim, mas é por deficiência deles, pois Deus sempre se fez presente, mas
espera ser reconhecido por eles.
É verdade que Agostinho teve experiência pessoal de Deus, o que lhe dá
uma garantia de sua existência, mas é por que a própria escritura enfatiza no SI.
14(13), 1 “Diz o insensato em seu coração “Deus não existe!”...”. Que Agostinho
coloca esse problema, pois o homem pode chegar a esse grau de endurecimento do
coração, mas não que Deus não exista. Mas, quando se busca a razão pela qual
tais homens negam a Deus, se percebe que os corações que negam a Deus foram
corrompidos por vícios e abominações, e uma vez corrompidos, perderam a noção
da verdade. Mas o conhecimento de Deus nunca se afastou do coração dos
homens, no entanto apenas a sua cegueira não lhes permitem enxergar a Deus.
Pois todo ser racional ao olhar para o mundo, pode perceber que Deus o criou
(GILSON, 2007). Por conseguinte, só para um pequeno número de pessoas é
necessário provar essa existência de Deus, no entanto é um grupo de difícil
compreensão, como não crêem por si mesmos, logo, não querem descobri-lo. Mas
a existência de tais homens é real. Entretanto, devem ser abandonados em sua
cegueira ou seria mais conveniente fazer um esforço para tirá-los daí? Agostinho
prefere a segunda opção, mas é surpreendente ao iniciar tal tarefa, a da prova
racional para o insensato.
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Para aquele que não crê no que está sendo professado aqui, mas busca
saber se isso é verdade, Agostinho sendo incumbido de provar-lhe isto, nunca
começaria pela prova racional, mas sim, tentando lhes fazer conhecer “a verdade
das Escrituras que ensinam à existência de Deus” (GILSON, 2007, p.34) e, apenas
depois de ter conseguido este ato de fé, que é condição necessária para
compreensão do seu método, é que esboçaria a prova racional.
Daí pode-se concluir que o método de Agostinho, da prova da existência de
Deus, através da razão, só se dá pelo auxilio da fé, e não alcançaria todas as
pessoas, ficando de fora “aqueles que fazem profissão de não poder encontrar a
verdade, como o cético ou o Acadêmico” (GILSON, 2007, p.19), não podendo ter
Deus nem a beatitude. Assim, ele fundamenta sua demonstração na fé, pois a razão
sozinha jamais poderia conhecer a prova desta existência. Isto poderia ser uma
conclusão precipitada por que “com certeza absoluta, a razão é capaz de provar
para si a existência de Deus, dado que esta verdade é conhecida pelos filósofos
pagãos, fora de toda revelação e de toda fé” (GILSON, 2007, p.34). O problema é
que a situação do homem se complica depois do pecado e a fé tornou- se o melhor
caminho a ser seguido pela razão. O homem deve o menos possível hesitar de
passar por este caminho, que lhe leva à beatitude, no entanto, isto não tira o direito
de se justificar a fé através da razão, alias “(...) longe de perder-se ao seguir a fé ao
contrário, a razão se encontra” (GILSON, 2007, p.35).
Em nada Agostinho diminui o valor da razão, ele deixa entender que aquele
que tem fé crê que Deus existe, mas também quer saber. Partindo para sua
demonstração racional, trata de derrubar a maior rival da sua tese, aquela adotada
pelos céticos, a da incerteza, e antes de chegar à conclusão de que Deus existe
Agostinho estabelece a possibilidade da certeza em geral (GILSON, 2007), “(...) o
homem já sabe que ele mesmo existe, este conhecimento é de todos o mais
manifesto, pois, para que fosse falso seria necessário que quem o possui se engane
e, para se enganar, é preciso ser.” (GILSON, 2007, p.36-37). Essa evidencia é forte,
porque à medida que nega está aprovando pelo ato de negar. “Eu sou e sei que
sou” (GILSON, 2007, p.36). Como posso me enganar com isto já que “se me
engano, eu sou!” (GILSON, 2007, p.36). Essa primeira certeza cria a possibilidade
da existência de Deus.
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Quando se busca provar a existência de Deus, o homem descobre a si
mesmo existindo, assim ele sabe que vive, e para saber que existe e que vive é
necessário conhecer. Desta busca apreendem-se três termos: o ser, o viver e o
conhecer. Dos três é necessário saber qual o mais importante. Para isso será
aplicado o seguinte método: “Dadas duas coisas quaisquer, pode-se considerar
superior àquela que basta ser colocada para que a outra seja posta, e inferior
àquela que não basta ser colocada para que a outra necessariamente o seja”
(GILSON, 2007, p. 36) Apliquemos o método aos três termos encontrados: o ser, a
vida e o conhecimento. A pedra existe, não vive nem conhece; a planta vive, existe,
mas não conhece; o homem conhece, vive e existe. Segue-se daí que o
conhecimento é o mais elevado. (AGOSTINHO, 1995 b).
Agora se sabe que o conhecimento é o mais elevado dos três termos, mas
isto ainda não é um cume permanente; pois ainda não se sabe o que é o
conhecimento. O primeiro conhecimento que se nos apresenta, vem dos sentidos,
que podem ser divididos em duas partes: os sensíveis próprios e os sensíveis
comuns. Os sensíveis próprios são aqueles que são percebidos por apenas um
sentido como: a cor pela visão; o odor pelo olfato; o duro, o mole, o liso, o rugoso
pelo tato etc, “as qualidades como a grandeza e a pequenez, o ser redondo e outros
do mesmo gênero podem ser percebidos tanto pela visão quanto pelo tato, por isso
eles não são os sensíveis próprios, mas os sensíveis comuns” (GILSON, 2007, p.
37). Mas não é pelos sentidos próprios, que se discerne ou toma-se conhecimento
do que os sensíveis têm de comum ou não, mas, de antemão, sabemos que não é a
razão, pois os animais são capazes de ter sentimentos de repúdio em relação a
alguns objetos.
Então, deve haver nos animais e nos homens um sentido interior
superior aos sentidos externos, ainda que inferior à razão, ao qual
todas as sensações exteriores são reportadas, é ele que, no homem,
discerne os sensíveis comuns e que, nos animais, percebe o que os
objetos tem de útil ou de nutritivo; mas este sentido interno por sua
vez, deve ser ultrapassado. (GILSON, 2007, p.37).
Há, no entanto, conhecimentos que não são percebidos nem pelos sentidos
exteriores nem interiores. Pois nem o sentido interior pode discernir que os sons e
as cores não são percebidos pela visão e audição respectivamente, essa diferença
só pode ser distinguida pela razão. Assim o conhecimento que a princípio se
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estabelecia no cume bem alto, agora está decomposto em três termos de forma
crescente: sentido exterior, sentido interior e razão.
Tem-se então uma nova forma de hierarquização. A matéria que somente é,
é o objeto do sentido exterior. O sentido exterior que a percebe é superior a seu
objeto por que tem vida que basta ser colocada para que o objeto apareça, ou seja,
o ser. Agora resta saber se o sentido interior é superior ao exterior. Está claro que “o
sentido interior implica os sentidos exteriores na ordem do ser[...]” (GILSON, 2007,
p.38); pode-se até dizer que o sentido interior conhece o sentido exterior sem ser
por este notado; “mas não se pode colocar como princípio que o sujeito
cognoscente é superior ao objeto conhecido, pois o homem conhece a sabedoria e,
no entanto, ela é superior a ele”. (GILSON, 2007, p.38). Pode-se ter como certo que
o sentido interior dirige e julga o sentido exterior, porque é ele quem adverte a visão
para ver, comanda a audição, e realiza os julgamentos. Se o que julga é superior ao
que é julgado, então está claro, o sentido interior é superior ao exterior.
Este mesmo princípio sendo aplicado à razão em relação ao sentido interior,
e este sentido interior não podendo discernir entre si mesmo e o sentido externo, e
não podendo definir, classificar e hierarquizar, sobra então esta responsabilidade
para a razão que julga o sentido interno. Daí conclui-se que a razão é superior aos
sentidos, mas será que existe alguma coisa superior à razão?
O comentador Etienne Gilson, diz que Santo Agostinho percebe com notável
profundidade metafísica que descobrir uma realidade superior ao homem não é
necessariamente encontrar Deus, mas não é uma realidade qualquer que se está
procurando, é um ser que seja
necessário, imutável, eterno, tal que não exista nada de maior e
que por consequência seja Deus. Então não é suficiente
ultrapassar o homem para alcançar tal ser, mas deve-se
ultrapassar no homem algo tal que o que se encontre além dele só
possa ser Deus. (GILSON, 2007, p.39).
Seguindo paulatinamente os passos de Agostinho, primeiro apreende-se o
ser, depois o conhecimento e a razão; só falta agora discutir sobre a verdade, se
ultrapassando a esta, se Deus não for encontrado, então toda a busca terá sido em
vão. Todavia, sempre é possível localizar em cada termo encontrado um ponto de
apoio para o passo seguinte. E o da razão qual será? “Dentre os conhecimentos
racionais, alguns apresentam a característica notável de serem verdades”.
20
(GILSON, 2007, p.40). Por exemplo, da soma de dois números não se diz que
deveria ser “X” mas sim que é “X”. Por que é dito assim com tanta convicção? Por
que essa proposição é uma necessidade, imutável e eterna. Essas características
tanto pertencem às verdades morais quanto às especulativas.“Por exemplo: se digo
que a sabedoria é uma verdade tal que quem a conhece possui, por isso, ‘o Bem
Soberano’, afirmo uma proposição tão necessária quanto uma verdade matemática”.
(GILSON, 2007, p.40). São muitos os que não concordam quanto a natureza do
conhecimento beatificador ser a sabedoria, mas todos acreditam que a sabedoria
traz a beatitude. “Assim, quer se trate da ordem teórica ou da ordem prática, do
número ou da sabedoria, as verdades são conhecimentos necessários, imutáveis e
comuns a todos os espíritos que as contemplam simultaneamente” (GILSON, 2007,
p.40). Essas características de onde vêm?
Alguém pode dizer que a verdade está nos objetos, e os sentidos a descobre.
Sabe-se que a matéria é mutável, e, portanto não pode fornecer substância para a
ciência que é imutável. Ainda pode-se dizer que foi tirada a idéia de números dos
objetos, mas como tirar deles as leis de composição dos números? Um número é
uma quantidade qualquer de unidades. Referente à unidade, como poderia tirar
essa idéia dos objetos se eles não as têm? Todo corpo, pode ser dividido em
inúmeras partes, e isto o torna múltiplo, mas antes de percebê-lo a idéia de unidade
já era conhecida. (...) “não são nem os corpos, portanto, nem os sentidos que pode
me dar tal idéia”. (GILSON, 2007, p. 41). As origens das verdades que a razão
apreende, não podem ser buscadas abaixo da razão.
Como foi visto, a verdade não vem dos corpos, nem pode vir de uma
realidade inferior ao pensamento, mas será que pode vir dele como o efeito vem da
causa? Como a verdade é comum a todas as razões ela não pode ser efeito de uma
razão individual.
Ela pode ser considerada como um tipo de luz, que não é nossa
nem vossa, nem de algum homem em particular, mas ao mesmo
tempo secreta e pública, possuída por qual quer um, portanto, a
mesma em todos os que percebem, no mesmo momento as
mesmas verdades imutáveis. (GILSON, 2007, p. 42)
A verdade não pode ser inferior à razão em geral, nem individual, por que não
se julga a verdade, antes, julga-se através dela. O pensamento faz julgamentos das
21
coisas sensíveis dizendo: “isto não é tão perfeito quanto aquilo” ou “este azul não é
tão azul quanto deveria ser.” No entanto não se diz que “7 e 3 deveriam ser 10” ou
ainda “o eterno deveria ser superior ao temporal”. Não se pode julgar a verdade,
contudo é por ela que julgamos todo o resto. Fica cada vez mais claro que a
verdade não é inferior à razão, tentar-se-á verificar se é superior a ela (GILSON,
2007)
Quando alguém julga os corpos, coloca-se superior a eles, agindo como juiz
quanto à verdade. Quando diz que “ela é”, e não que “deveria ser”, há uma
submissão a ela, como quem se submete a uma ordem, há uma obrigação em
concordar com ela. Pode-se dizer que o mesmo comportamento que o homem,
portador da razão, tem em relação aos corpos e as coisas sensíveis têm em relação
a si mesmo e a outros espíritos, por que ele diz: “este homem é menos dócil, ou,
mais inflamado do que aquele”. Mas quando o homem se refere às regras de
julgamento ele não as julga, mas se regula por elas e a elas se submete. “Ele não
se coloca como um crítico que corrige, mas como um inventor que se alegra com
uma descoberta”. (GILSON, 2007, p.43). Ele se sente pequeno diante de sua
descoberta porque a verdade descoberta não depende dele,
[...] pois o que é verdadeiro é eternamente verdadeiro e subsiste
numa imutabilidade perpétua, enquanto o pensamento que apreende
a verdade, apodera-se dela apenas por um tempo e de maneira
provisória Logo, a verdade é independente e transcendente em
relação ao espírito que ela regula. Mas, no mesmo ato, ao descobrir
a transcendência da verdade, o pensamento descobre a existência
de Deus, posto que o que ele percebe acima do homem é o eterno,
o imutável e o necessário, ou seja, uma realidade que possui todos
os atributos de Deus. (GILSON, 2007, p.43)
Porém é importante observar que ao ver a verdade no próprio pensamento o
homem não vê de fato a existência de Deus. “Ela ainda não alcança o termo cuja
posse lhe confere ria a beatitude, mas ele pelo menos ver qual o termo resta a ser
alcançado para gozar a beatitude e nela repousar”. (GILSON, 2007, p. 43-44).
Agostinho não provoca o impacto esperado ao concluir a prova da existência de
Deus, talvez pelo fato desta descoberta ter sido distribuída em pequenas partes
desde o inicio, quando descobre-se a primeira certeza (o cogito), demonstrando
que, quem tem dúvida tem certeza que duvida, portanto ele simplesmente diz que,
quando se vê a verdade, o pensamento enxerga uma lei que lhe é superior, e uma
natureza imutável que é Deus. “Vida primeira, essência primeira, sabedoria
22
primeira”. (GILSON, 2007, p.44). Necessário se faz agora, para ser justo com
espírito da prova é diferenciar a verdade das verdades. Alcançando a verdade,
alcançamos de fato é
um conteúdo da nossa razão que não pode ser explicado do ponto
de vista dela e que nos obriga, por consequência, a transcendê-la
para afirmar a existência da luz que a esclarece: a Verdade
substancial, eterna e imutável que é Deus. Tudo que pode nosso
pensamento faz é elevar-se de objeto a objeto até atingir a verdade
como termo, a qual é muito diferente daquela Verdade mesma, que
não se busca por que o pensamento humano que raciocina busca o
que ele é. (GILSON, 2007, p.44).
23
3 AMOR, VONTADE QUE MOVE A BUSCA
3.1 O que a filosofia ensina
Para chegar-se a essência mesma do amor, que é a caridade em Santo
Agostinho, precisa-se percorrer um longo caminho, que às vezes se torna
“enfadonho”, mas isto parece ser próprio da filosofia, e a palavra certa não seria
“enfadonho”. No entanto, dever-se-ia considerar “apetitoso” degustar passo a passo
através da dialética as descobertas que se apresentam, e ao mesmo tempo vencer
as dificuldades encontradas no caminho. Já se falou da beatitude, que é vida feliz,
do caminho que a alma percorre para alcançar Deus através da verdade, e já foi
visto que “ela ainda não alcança o termo cuja posse lhe conferiria a beatitude, mas
ela pelo menos vê qual termo resta ser alcançado, para gozar a beatitude e nela
repousar”. (GILSON, 2007, p. 43-44). Cuja essência se irá apreciar, para melhor
compreender a meta que se deseja alcançar. Se a sabedoria é o termo que concede
a beatitude, deve-se então conhecer as regras dessa ação, como e por que.
A principal motivação que se tem para conhecer é a felicidade, motivação que
deve ser saciada como um apetite, para que a beatitude se estabeleça. O saber
pelo saber nunca chega ao seu fim, mas o saber para ser feliz coloca limites,
estabelece regras e uma meta a ser alcançada por caminhos determinados.
Quando se busca o saber pelo saber, para satisfazer ao desejo de felicidade,
esta conferindo-se um sentimento real à palavra “filosofia”. Marcos Varrão, num
tratado de filosofia hoje perdido (apud AGOSTINHO, 2001), faz um levantamento
das seitas que admitem o Soberano Bem só no corpo, só na alma e na alma e no
corpo. Com mais algumas diferenças entre eles, chega-se a uma contagem de 288
opiniões diferentes, porém todas com o mesmo objetivo, alcançar a felicidade.
Embora tenham os filósofos caído em muitos erros, a luz natural não permitiu que
perdessem de vista a meta a ser alcançada. Daí conclui-se que mesmo com a
diversidade de idéias, o que a filosofia pretende é tornar os homens felizes, obtendo
o Bem e se desviando do mal. (AGOSTINHO, 2001).
Agora que já se sabe que o que a filosofia ensina é o que pode tornar os
homens felizes; note-se então, por definição, e aceito por todos, filosofia é “o amor
pela sabedoria”. “Se, por um lado, o conhecimento humano, enquanto se ordena em
24
direção à felicidade, é à filosofia, e se, por outro lado, a filosofia é o amor da
sabedoria, então se entende que a sabedoria é o conhecimento beatificador que a
filosofia busca”. (GILSON, 2007, p.224-225). O que é então a sabedoria?
É concordável que a sabedoria é uma espécie de ciência, mas ciência é um
gênero, logo sabedoria só pode ser uma espécie. Porém, sendo a ciência um
conhecimento certo e indubitável e a sabedoria uma espécie de ciência, ela também
é de conhecimento certo e indubitável. Será uma igual à outra, ou será uma maior
que a outra? São Paulo quando dizia em 1Cor 12,8 que a uns é dado a sabedoria a
outros a ciência, ele estava dizendo que uma é diferente da outra. Qual será essa
diferença? Pela definição de gênero e espécie, um debate desta ordem seria
destruidor para a sabedoria. Mas, ao que parece, aquele que defende a sabedoria
tem um trunfo na manga, pois a sabedoria conduz à beatitude que é a felicidade, e
qual ciência levaria o homem a um fim tão nobre? Para responder a essa questão é
necessário descobrir quais os fins mais nobres a que o pensamento pode conduzir o
homem.
Levando em consideração que há no ser humano dois homens, o exterior,
que nos deixa comum com os animais, por causa do corpo material, vida vegetativa,
conhecimentos sensíveis, imagens e lembrança das sensações, e também o
homem interior, que nos diferencia dos animais, quando “julgamos as nossas
sensações, comparamo-las entre si, medimos os corpos e as figuras submetendo-
os às proporções e aos números”. (GILSON, 2007, p.226). Em cada uma dessas
operações, como foi visto, intervêm as razões eternas e divinas, que são
perceptíveis apenas ao pensamento propriamente dito: mens. “O homem é,
portanto, essencialmente seu pensamento, ou seja, em outros termos, a mens é o
homem interior”. (GILSON, 2007, p. 226).
Para Santo Agostinho, a mens, ou pensamento, é uma essência espiritual,
portanto indivisível. Deixada a si própria ocupar-se-ia apenas com as coisas
inteligíveis ou ligadas à contemplação. Mas como regente de um corpo, é obrigada
a usar seu pensamento para garantir a vida desse corpo; volta então seu
pensamento para as coisas que não são os fins mais altos. (GILSON, 2007, p. 266).
Com isso, não deixa de ser ele mesmo, apenas é como se ele exercesse
duas funções. Parece existir aí um problema, mas para resolvê-lo Agostinho faz
uma analogia com o Gênesis. Quando Deus viu que não era bom que o homem
25
ficasse só, tirou do homem mesmo uma companheira; logo a mulher não é outro, é
ele mesmo com a função de se ajudar. Eles são o único casal na natureza que pode
ser chamado de dois em um, pois, são uma só carne. (AGOSTINHO, 1995a).
Analogamente, o que aconteceu com a carne aconteceu com o espírito, que
consagrado à contemplação, tem necessidade de um apoio que o ajude nas
necessidades temporais, enquanto este cuida das coisas próprias do espírito, a
contemplação. Mas essa ajuda não poderia vir de outro lugar, se não dele próprio,
que apenas exerce duas funções diferentes, que são identificadas por Agostinho por
dois nomes diferentes: “razão superior” e “razão inferior”, respectivamente, sem ser
esquecido o fato essencial de sua unidade, as duas razões são somente dois ofícios
de única e mesma razão”. (32GILSON, 2007, p.227). Em qual dessas razões está a
sabedoria?
O último fim é a beatitude. Como foi dito anteriormente, a sabedoria é o que
torna os homens felizes, ou seja, a sabedoria implica a posse da beatitude; fica
claro então que ela não pode ser uma atividade meio, e sim, atividade fim. Logo
existe outra que é a atividade meio. Desse modo, se envolve com a ação, porque é
a ação que vai dar suporte á contemplação. (GILSON, 2007, p. 227-228). Essa
dupla função da mente acaba por definir a distinção entre dois tipos de vida, a ativa
e a contemplativa, que na tradição judiaco-cristã é bem simbolizada pela antítese
entre Raquel e Lia ou Marta e Maria. A vida ativa, que é luta, trabalho e esforço, é
uma espécie de exercício para gozar uma recompensa que só pode ser alcançada
no outro mundo. A vida contemplativa aqui na terra é uma espécie de experiência
real daquilo que será na outra vida; “ela é, portanto, o repouso obtido no fim, a visão
parcial aqui embaixo da verdade beatificadora, a esperar sua posse total no além”.
(GILSON, 2007, p.228). É como se existisse uma subordinação da ação à
contemplação, ou seja, é necessário passar por toda uma atividade moral,
adquirindo virtudes e realizando boas obras, para alcançar a contemplação mística
de Deus. Agostinho, sendo bastante racionalista, coloca a vida prática da cidade,
com suas exigências, como um exercício livre da contemplação. Pode-se discernir
que não há distinção entre a vida da ação e a vida contemplativa, o que existe é
uma trajetória, que se divide em duas partes apenas para efeito de cognição.
Como existem duas funções no pensamento, há uma possibilidade de
escolha que será decidida pelo coração de cada um. Quando o pensamento faz
26
opção pela contemplação, através da razão superior, está se voltando para a fonte
do saber, que são as idéias divinas, que permite julgar tudo por elas e a elas se
submete para julgar todo o resto. A isto se chama de sabedoria. Pela contemplação
o homem se submete àquela fonte da verdade que acalma todos os pensamentos.
Uma vez que opte pela (razão inferior), está abrindo mão das idéias imutáveis,
ficando com aquilo que é provisório, ou seja, o mundo sensível, pelo qual ele vai se
apoderar para explorar em proveito próprio. A isto vai chamar de ciência. “Em
poucas palavras, ao nos voltarmos para as Ideias, a sabedoria nos orienta para o
divino e o universal; ao nos voltarmos para as coisas, a ciência nos submete ao
criado e nos confina aos limites do individual”. (GILSON, 2007, p.229).
A esse movimento da alma que se recusa a possuir em comum e se apropria
das coisas para a satisfação pessoal, a Escritura chama de “avareza” em I Tm. 6,10,
“na origem dessa avareza encontra-se o orgulho, que é segundo outras palavras da
Escritura, initium peccatr”. (GILSON, 2007, p.230). O homem sabe que é apenas
parte do universo que é regido por Deus e que é convocado a tomar seu lugar na
ordem universal, reportando qualquer coisa ao fim comum. Mas ele pode negar-se a
aceitar tal ordem e preferir a parte ao todo, e esta parte escolhida é ele mesmo. É
uma opção insana, mas explicável do ponto de vista da negação de Deus; ele
prefere a si próprio, isto por causa do orgulho que logo se transforma em avareza. O
avarento jamais satisfaz seu desejo de querer amontoar coisas sensíveis para si.
Como abriu mão do inteligível e universal, seu corpo é o instrumento que encontra
para deter aquilo que quer; naturalmente só possui aquilo que o corpo pode
apoderar-se. “Segue-se que a alma se engaja num tipo de fornicação espiritual, de
que sua imaginação é simultaneamente instrumento e sede” (GILSON, 2007,
p.231), seu interior torna-se um perigoso campo.
Não se pode dizer que, em si, a ciência é idêntica a essa defasagem do
pensamento, mas, se dela for feito mau uso chegará o homem a esse patamar de
negligência toda vez que abrir mão do todo e preferir a parte, pois aquele que quer a
ciência pela ciência está sempre sujeito à matéria e longe do campo das idéias, que
é o universal. Mas o que diria Agostinho da sabedoria?
A opção sendo feita por algo que liberta da servidão do corpo, está a alma
caminhando para as razões eternas, ou seja, “idéias imutáveis e necessárias de
Deus” (GILSON, 2007, p.231), e isto não é pensamento avarento, “visto que as
27
idéias divinas são universais e comuns a todos os espíritos”. (GILSON, 2007,
p.231). Submeter-se àquilo que é de uso comum é sinal de humildade. Fazer
julgamento a partir das idéias universais é ter alcançado Deus, e assim que Ele seja
alcançado, tudo vai em direção a Ele. Isto, pois, é sabedoria: “a oposição entre
ciência pura e sabedoria pura é, portanto, completa, as características desses dois
modos de conhecimento se contradizem ponto a ponto”. (GILSON, 2007, p.232).
Embora a dialética agostiniana tenha nos conduzido a este ponto, ele não se
dar por satisfeito, pois, quem estabelece a ciência e o tem como fim, é impossível
alcançar a sabedoria, nisto a contradição é correta. Contudo, quem escolhe a
sabedoria não pode sacrificar a ciência.
Ninguém pode alcançar a sabedoria sem usar a ciência como trampolim.
Embora a sabedoria possa reger aquilo que é temporal, mas para fazer é preciso
conhecê-lo. “As virtudes, por exemplo, que são boas maneiras de agir, supõe que
se saiba como lidar com o temporal para agir”. (GILSON, 2007, p.232). Portanto,
mesmo estando subordinada à sabedoria, a ciência tem o seu papel distinto, mas
agora, boa, legítima e necessária. A ciência tanto serve para adquirir a sabedoria
como para mantê-la.
Alcança-se a sabedoria quando se tem as idéias eternas, é por elas que se
alcança a Deus. Porém, esse alcançar ainda não é possuir plenamente, porque a
clareza das idéias assusta a alma e esta se precipita ao passado. Quando a alma
cai, é na ciência que encontra apoio. A ciência recebe as nossas experiências
passadas, que são confiadas à memória, onde são meditadas pelo espírito,
permitindo reencontrar os caminhos percorridos pelo pensamento para encontrar o
inteligível. Tem-se como exemplo disso “quando ouvimos uma melodia bela e
sabida: ela se desenrola no tempo, e, contudo, é no silêncio imóvel da alma que
percebemos seu número”. (GILSON, 2007, p.233). E mesmo quando ela deixa de
ser, é neste silencio da alma que podemos reencontrá-la; “do mesmo modo, a
ciência recolhe as experiências da sabedoria e impede que, perdendo totalmente
sua lembrança, depois de qualquer uma delas, tenhamos que recomeçar sua
conquista tudo de novo”. (GILSON, 2007, p. 233).
É visto que há uma oposição entre a ciência e a sabedoria, ao mesmo tempo
em que há dependência entre elas, principalmente da sabedoria em relação à
ciência. Por isso é importante não sacrificar nem uma nem outra, como diz São
28
Paulo, “não é sempre para os mesmos que é dado serem sabedores e serem
sábios” (apud GILSON, 2007, p. 234), contudo ambas veem do mesmo espírito.
Sacrificar a sabedoria é abrir mão do que há de mais elevado no homem, sua
dignidade; sacrificar a ciência é mutilar a sabedoria. E como não convém
desperdiçar o conhecimento divino, convém nos esforçarmos para ultrapassar a
diferença entre elas, ordenando-as harmoniosamente numa mesma unidade, de
modo que seja colocado no lugar mais nobre aquilo que há de mais elevado, “a
sabedoria”.
3.2 A moral é ato de amor
Estabelecendo a sabedoria como fim, o pensamento se submete a ela e,
dessa forma, desenvolve o seu caráter de moralidade. Uma vez ordenado no lugar
adequado, o pensamento dispõe cada coisa no seu lugar e sabe como se comportar
em relação a elas.
“O primeiro efeito desse desenvolvimento inicial é que, a partir de então,
submetido à ação reguladora das idéias, o pensamento julga tudo do ponto de vista
de Deus” (GILSON, 2007, p.233).
3.3 Regras e leis: das virtudes e da ordem
Já se sabe que a sabedoria é o que a filosofia ensina, que ela se desenvolve
na razão superior, e que a sabedoria propriamente dita se encontra com a alma
quando esta se volta para a fonte de todo o saber, as idéia divinas, segundo as
quais ela julga tudo e às quais ela se submete para julgar por elas todo o resto. Será
tratado agora o para que a alma deva submeter-se à sabedoria.
Desde o principio dessa busca percebe-se que Agostinho vem se ocupando
em demonstrar a existência de uma ordem no universo, onde cada coisa tem o seu
lugar, e que o da alma é acima do corpo e abaixo de Deus. Dois elementos aí se
destacam como verdades: o da ordenação e o da submissão. Essas verdades
ficaram mais evidentes depois da prova da existência do ser: “Se duvido, sou”.
(GILSON, 2007, p.45). Tem-se ainda as verdades matemáticas, que são eternas.
Mas as verdades não existem só pelo conhecimento, elas existem também pela
29
ação, apresentando as mesmas características para ambas e tendo também a
mesma origem, já que são igualmente verdades.
Assim como as verdades matemáticas são para a ciência verdades certas e
indubitáveis, há também na ordem da ação verdades certas e indubitáveis como as
ditas pelo pregador: “E eu achei uma coisa mais amarga do que a morte, a mulher
cujo coração são redes e laços, e cujas mãos são ataduras; quem for bom diante de
Deus escapará dela, mas o pecador virá a ser preso por ela”. (Ecl. 7,26). Para quem
pode deduzir as consequências de um fato tão importante percebe a sabedoria
colocada no mesmo plano que o número.
É inegável que é pela sabedoria que vemos o soberano bem e o possuímos.
“Pode haver desacordos quanto às vias a serem seguidas para chegar a ela, mas
não quanto à meta a ser alcançada.” (GILSON, 2007, p.244). O homem sempre quis
ser sábio e feliz e tem noção do que é isso; esse desejo é tão claro quanto as
verdades matemáticas, e é nessa noção de sabedoria e felicidade que reside o
princípio de toda moral.
A idéia de felicidade esta enraizada na memória da alma. Ela não pode
procurar alguma coisa que não tenha dela nenhuma lembrança.
Onde e quando experimentei a vida feliz, para poder recordar,
amar e desejar? Não sou eu o único, nem são poucos os que a
desejam. Todos, absolutamente todos querem ser felizes. Se não
conhecêssemos a vida feliz por uma noção certa, não a
desejaríamos com tão firme vontade. Que significa isto?
(AGOSTINHO, 1999, p. 28).
É evidente para todos que há regras seguidas pela lei da natureza que
tornam as verdades da matemática imutáveis, isto na ordem do conhecimento, mas
na ordem da sabedoria elas também existem, pois é de consenso que é necessário
respeitar a justiça; subordinar o inferior ao superior; manter a igualdade entre as
coisas iguais; dar a cada um o que lhe pertence; que o incorruptível é superior ao
corruptível, o eterno ao temporal, o inviolável ao que se pode infligir etc. Todas
essas posições são percebidas no pensamento, mas elas não pertencem a nenhum
pensamento, pois são comuns a todos os homens e a origem desses
conhecimentos “são as regras, ou luzes, ensinadas ao nosso pensamento pelo
mestre interior, ou desvelados aos olhos da alma pela luz que clareia todo homem
vindo a este mundo”. (GILSON, 2007, p.245). São as regras imutáveis da sabedoria.
30
Demonstrou-se aí duas ordens de leis: as do número e as da sabedoria.
Precisa-se agora saber se elas são da mesma natureza ou se são irredutíveis uma
a outra. Seria inconveniente dizer que a sabedoria vem do número, como ficou
parecido. Muitas pessoas sabem contar, mas sábios existem poucos, ou melhor,
ainda é necessário encontrá-los. No entanto, a sabedoria tanto é mais rara que a
ciência do número, como também é vista como superior a este. Mas quando se
avalia a verdade imutável dos números percebe-se que ela é equivalente a da
sabedoria; para notá-la é preciso adentrar num tipo de recuo interior e, ao voltar,
utilizar de objetos sensíveis para poder expressar-se. Como se pode dizer que são
diferentes se residem ambos na mesma região? Quando se lê nas escrituras que a
sabedoria “estende com vigor de um extremo ao outro do mundo e governa o
universo com bondade” (Sb 8,1), o que é estendido, com certeza, é o número e o
que governa é a sabedoria propriamente dita, que coloca não apenas o número,
mas também a ordem. Realizando ambos, evidentemente, é porque vem da mesma
sabedoria.
Estão aparecendo sinais de que, não pelo menos, a sabedoria não vem do
número, e passamos a constatar agora uma diferença evidente entre a sabedoria e
o número e que não está na ordem da origem, mas em relação à natureza, aos
objetos aos quais se aplicam. “Com efeito, Deus conferiu o número a todas as
coisas, mesmo àquelas que são as mais ínfimas e se encontram no grau mais baixo
das criaturas; não obstante, os corpos, que são os últimos seres, têm seus
números” (GILSON, 2007, p.246). No entanto, Deus não conferiu a sabedoria a
nenhum corpo, sequer eles são capazes de reconhecê-los, nem a todos as almas,
“mas somente as almas racionais em que ela reside”. (GILSON, 2007, p.246). A
julgar por essas regras, percebe-se que os objetos estão abaixo de homens e são
julgados pelos números, aos quais os homens dão pouco valor. E mais ainda, como
é difícil encontrar um espírito sábio, e fácil encontrar os que sabem contar, os
homens têm admiração pela sabedoria e menosprezam os números. Todavia, ao
elevar o pensamento e perscrutar as leis do número e da sabedoria, percebe-se que
eles transcendem o pensamento, ambos estão subsistentes na verdade, e provem
da mesma unidade da natureza. Mas como se dá esse processo, se nos permitimos
compreender que os corpos são julgados pelos números e as almas racionais pela
sabedoria? Diz o comentador Étienne Gilson: “nenhuma diferença separa os
31
números que a sabedoria dá e a sabedoria que os dá” (2007, p.247). Os números
estão entranhados da sabedoria; em outras palavras, eles participam da sabedoria
até no ponto em que é possível os corpos receberem a sabedoria.
Tal como uma única fogueira aquece os corpos vizinhos e ilumina
aqueles cujo distanciamento o impede de lhe aquecer; a mesma
fonte aquece os espíritos com o calor da sabedoria e difunde a luz
dos números sobre os corpos, cuja materialidade os distancia dela.
(GILSON, 2007, p.247).
Portanto, é uma única lei da natureza que submete à sabedoria, tanto ao
mundo dos corpos como dos espíritos.
A grande pergunta dessa parte foi: para que a alma deve submeter-se à
sabedoria? Para colocar-se no seu lugar dentro da ordem do universo, acima do
corpo e abaixo de Deus.
Já foi tratado anteriormente que a alma, deixada a si mesma, cuidaria apenas
da vida contemplativa, mas tendo um corpo a reger, ela se voltaria para as coisas
temporais a fim de dar vida ao corpo. Ora, antes de ser sábio ou feliz já se tem uma
noção do que seja isso, ou seja, sabe-se que para ser feliz precisa-se ser sábio.
Para reger o corpo a alma descobre a ciência dos números; para reger-se a si
próprio descobre a sabedoria, ambas são verdades imutáveis e, portanto, tem a
mesma origem, a sabedoria. Fica claro agora que a alma se submete à sabedoria
para iluminar as suas ações na regência do corpo e aquece-se em relação a
beatitude. A alma, uma vez aquecida, esta pronta para fundir-se ao objeto de seu
desejo, que é a sabedoria. Para que isto aconteça, basta cumprir as exigências
impostas pela lei eterna de que tudo seja perfeitamente ordenado. A paz do corpo é
a ordenada complexão de suas partes; a paz da alma racional é a ordenada
harmonia entre o conhecimento e a ação. Ou seja, que o inferior esteja subordinado
ao superior (AGOSTINHO, 2001). No entanto, essa submissão não é imposta de
qualquer maneira; o homem recebe da própria sabedoria que ele busca o auxílio
das virtudes cardinais como: prudência, força, temperança e justiça. A temperança
refreia os desejos carnais, impedindo que esses dominem o pensamento; desse
modo, prepara as vias para a recepção da sabedoria. A prudência faz discernir o
bem do mal, “é ela que nos ensina que é mal consentir ao pecado, e bom não ceder
ao arrebatamento do desejo” (GILSON, 2007, p.250). A justiça atribui a cada o que
lhe é devido, por exemplo, submetendo o corpo à alma e a alma a Deus. Mas isto se
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torna capaz em virtude da força, “pois o homem crendo que é capaz de alcançar a
felicidade já nesta vida, mesmo que cheio de males, a força lhes torna capas de
suportar estas misérias, esperando a beatitude verdadeira, que unicamente nos
libertará” (GILSON, 2007, p.251). É bom lembrar que na doutrina agostiniana estas
virtudes não estão na alma, mas, “é precisamente ao conferir as virtudes à alma que
Deus lhe confere a vida” (GILSON, 2007, p.251). Não significa dizer que sem as
virtudes ela seja menos alma, mas que é uma alma morta como um lago sem vida.
Ao conceder-lhe as virtudes, Deus anima a alma assim como a alma anima o corpo.
Isto é nada mais e nada menos do que conceder-lhe a ordem da lei universal. Isso
responde a pergunta inicial: para que a alma deve submeter-se a sabedoria? Para
colocar-se na ordem da lei universal. Sob tais condições, portanto, o homem estaria
perfeitamente ordenado? (GILSON, 2007)
3.4 Amor, movimento de busca
Submeter-se a sabedoria para colocar-se em seu lugar de ordem imposta
pela lei universal, é dever do homem que, sendo parte integrante dessa natureza,
lhe compete submeter-se a ordem como todas as outras essências temporais e
eternas, dentro de uma hierarquia de realidades superiores e inferiores. No entanto,
aparece uma diferença quando se trata das ações que dependem da vontade
humana: “no lugar de serem necessariamente regidas pela ordem divina, essas
ações têm como objeto realizá-la.” (GILSON, 2007, p.252). O homem não é
obrigado a participar da ordem divina, mas ele deve, para seu bem, querê-la e
colaborar com o seu cumprimento. No entanto, conhecendo a regra, tem a liberdade
de escolha; é ele quem vai decidir se segue a regra que ver imposta à natureza, ou
se cria a sua própria regra. Dessa decisão é que depende a sua beatitude.
A liberdade é própria da vontade, não da razão, no sentido em que
entendiam os gregos. E assim se resolve o antigo paradoxo
socrático de que é impossível conhecer o bem e fazer o mal. A razão
pode conhecer o bem e a vontade rejeitá-lo, porque, embora
pertencendo ao espírito humano, a vontade é uma faculdade
diferente da razão, tendo uma autonomia própria em relação a
razão, embora seja a ela ligada. A razão conhece e a vontade
escolhe, podendo escolher inclusive o irracional, ou seja, aquilo que
não está em conformidade com a reta razão. (REALE, ANTISERI,
1990, p.457)
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A força que está à disposição da alma, para lhe ajudar nessa tomada de
decisão, é a sua vontade. A vontade é primordial para a alma, tanto nas decisões de
ordem prática, como nas decisões de ordem cognitiva e teórica. É verdadeiro dizer:
assim como é à vontade tal é o homem. Agostinho dizia que com atos da sua
vontade chegava onde não queria (AGOSTINHO, 1999). Essa dominação da
vontade sobre o homem, marca a psicologia agostiniana e nesta demonstração será
estudada primeiro na ordem dos sentimentos, depois na do conhecimento.
Existem quatro paixões fundamentais, das quais dependem todos os
movimentos sensíveis da alma. São elas: o desejo, a alegria, o medo e a tristeza.
Desejar é o mesmo que permitir por um movimento livre da vontade na direção de
um objeto; alegrar-se é comprazer-se na posse desse objeto; ter medo é permitir à
vontade recuar diante de um objeto, desviando-se dele; e entristecer-se é não
consentir a um mal efetivamente sofrido. Desse modo, todos os movimentos do
homem estão relacionados com um bem a ser adquirido ou conservado, ou com um
mal do qual ele quer se livrar ou descartar. “O movimento livre da alma para adquirir
ou para evitar algo é a vontade” (GILSON, 2007, p.253). Assim todos os
movimentos estão atrelados à vontade.
Na parte do conhecimento, as operações cognitivas da alma também estão
ligadas à vontade. Sabe-se que na sensação, que é uma das operações mais
simples, a vontade tem que ter a sua parte, intervindo, para que um órgão sensorial
seja fixado a um objeto. Para cada tipo de sensação a vontade, através de um
órgão correlato, tem papel de uma força, sem a qual a sensação não aconteceria.
Pois mesmo que o órgão sensorial permaneça tocando em um corpo, e este
continue a lhe informar da sua imagem, mas se a vontade de receber aquela
informação não estiver acionada, é como se aquele órgão não estivesse ali. “Ao
contrário, se a vontade de sentir cresce em intensidade, não será mais somente
uma sensação que se produzira, mas um amor, um desejo e uma paixão verdadeira
de sentir, pela qual o corpo todo perderá ser ofertado” (GILSON, 2007, p.254).
Mas quando se trata de uma impressão sensível não percebida, o caso é
mais difícil. Se a vontade faz tocar um dos órgãos sensoriais em um objeto
qualquer, essa mesma vontade segue em duas direções: uma é para manter o
órgão fixado ao objeto, e outra para guardar a sensação na memória, para quando o
órgão sensorial deixar de tocar o objeto, a imagem da sensação continuar: Desse
34
modo fica claro que não só a sensação está submetida ao controle da vontade, mas
também à memória. Se uma informação é verdadeira para a memória, é também
para os sentidos internos e para a imaginação.
Como ela retém as sensações e fixa as lembranças, a vontade
compõe ou separa as imagens, assim recebidas e conservadas, de
maneira a fazê-las reentrar, ao seu agrado, mas combinações mais
diversas. Logo, ela combina como quiser os elementos tomados do
mundo sensível para criar um mundo imaginário segundo os
movimentos livres dela. (GILSON, 2007, p.255).
Dessa forma, a vontade nos induz a admitir uma grande quantidade de erros
através dessa vontade conjuctricem ac separatricem, quando traz informações
imaginarias e passa como verdadeiras.
Há, no entanto, uma possibilidade de ultrapassar essas informações
enganosas e chegar a um entendimento puro, e essa possibilidade também
depende da vontade, pois também é ela que constrói o conhecimento racional. Já
vimos, quando estudada a atividade intelectual do homem, como a verdade chega
ao intelecto humano, mas para que tudo se faça, é necessário que se deseje; como
é a vontade que engendra o conhecimento sensível, também é ela que constrói o
conhecimento puro. Quando essa vontade de conhecer se torna grande, intensa,
poderá ser chamada de estudo; é quando se empenha para conhecer o que é
ciência em profundidade (AGOSTINHO, 1995a). Mas não é só para o conhecimento
sensível ou para a ciência que a vontade se aplica, é para qualquer tipo de
conhecimento. Desse modo, qualquer busca que se apreende, é efeito da vontade
sobre os movimentos voluntários; então se pode dizer que a vontade é o homem.
Precisa-se agora saber, qual é o princípio da vontade.
É possível verificar nos anais da física grega, principalmente com Aristóteles,
que “todo elemento move-se para sua esfera se não for impedido” (apud
ABBAGNANO, 2000, 462). Essa esfera é um lugar natural ao qual pertence cada
corpo, e se os quatro elementos naturais que compõem a natureza, terra, água, ar e
fogo, forem misturados numa espécie de caos, cada um tenderá a voltar ao seu
lugar natural, e uma vez tendo alcançado seu lugar, lá pararão: “O fogo no alto, o ar
abaixo do fogo, a terra embaixo e a água abaixo da terra” (GILSON, 2007, p.256).
Essa tendência natural dos elementos é o que faz a pedra deixada a si mesma cair.
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Se tirar pelo pensamento essa força que faz o movimento dos corpos, o universo se
tornaria completamente sem vida, inerte. Para Santo Agostinho o peso que faz com
que o homem se mova e procure seu lugar, é a sua vontade, ou seja, o seu amor.
Há em cada alma, assim como há em cada corpo, um peso que puxa a alma para
seu lugar natural de repouso. “Meu peso”, diz Agostinho, “é meu amor. Pondus
meum amormeus; eo feror quocumque ferof' (apud GILSON, 2007, p.257). Desse
fato decorrem sérias consequências para a atividade voluntária da alma.
Já foi visto que a vontade caracteriza o homem, e o amor é uma espécie de
motor que dá início a essa caracterização; logo o homem em sua totalidade é gerido
por amor. Não existe outra coisa, nem mesmo acidental, que o mova, mas somente
uma força que está dentro de sua essência, como a que leva a pedra a cair. Desse
modo, já que o amor, por definição, é uma tendência para certo bem, enquanto não
obtiver o seu fim ele se agitará para conseguir. Percebe-se daí que a vontade é
movimento, que o amor é movimento, então o amor jamais repousa enquanto não
encontra seu lugar natural. A alma, movida por esse amor,
o que produz pode ser bom ou mal, mas sempre produz algo.
Crimes, adultérios, homicídios, luxurias, é o amor que causa tudo
isso, bem como os atos de caridade pura ou de heroísmo. Tanto no
bem como no mal, sua fecundidade é infatigável, e é para o
homem que ele conduz uma fonte inesgotável de movimento.
(GILSON, 2007, p.258).
Ora, se é o amor que faz o homem produzir todo tipo de maldade que há no
mundo, por que não separar o homem do seu amor? Se isto acontecer,
necessariamente se terá apenas um corpo que cederá ao seu peso como outro
objeto qualquer. Mas não é disso que Santo Agostinho quer tratar, pois está claro
que o amor é por assim dizer, o que dá vida ao homem. Consequentemente,
apenas é necessário saber o que se deve amar. “O que se diz a vós? Para nada
amar? Nunca! Imóveis, mortos, abomináveis, miseráveis eis o que vós sereis se não
amasseis nada. Amais, mas prestai atenção ao que deve ser amado” (GILSON,
2007, p.258). Virtuoso, portanto, não é aquele que ama o que quer, mas aquele que
ama o que dever ser amado.
“A primeira consequência desse papel central ao amor é que tal o valor do
amor, tal o valor da vontade e, enfim, tal o valor do ato que desencadeia” (GILSON,
2007, p.258). Já compreende-se que todas as atitudes do homem dependem das
suas paixões que são: o desejo, a alegria, o medo e a tristeza e, por sua vez, elas
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são consequências do seu amor. Quando o amor é bom também serão boas suas
paixões e sua vontade, e ao contrário, se o amor for mal. Não há paixões boas ou
más em si mesmas; elas dependem da vontade ou do amor que lhes dá animação.
Neste sentido se diz: “há, portanto, cóleras justas e compaixões legítimas, medo
salutares e desejos santos; depende do amor que os inspira” (GILSON, 2007,
p.259). Não há, no universo, corpos ou objetos que possam ser bons ou maus em si
mesmos, se alguns deles vêm a participar de atos louváveis ou lamentáveis, é por
vontades boas ou más.
Assim, a avareza não é o vício do ouro, mas do que ama desordenadamente
o ouro, por ele abandonando a justiça, que deve ser infinitamente preferida a esse
metal (AGOSTINHO, 2001). O mesmo se pode dizer também da luxúria; o erro não
esta na beleza dos corpos, mas é a alma que despreparada e sem temperança
prefere as coisas perecíveis às coisas espirituais, que tanto são mais puras como
duráveis. O poder não traz o orgulho, mas é o amor por um elogio recebido em
função de um poder que se levanta acima de um poder maior, que é censurável. A
prática do mal não está em usufruir o que o objeto tem de bom, mas em uma
hierarquia de valores; colocar o objeto em primeiro lugar, quando existe um bem
maior a ser conquistado, pois não se deve violar a ordem preferindo um bem de
menor valia. Se a primeira consequência da atribuição que se faz do amor à
vontade é descobrir o resultado negativo das paixões; a segunda consequência é
que as virtudes, que também são frutos desse amor, corrigem as paixões, se, é
claro, a vontade se submeter a elas. Elas então dirigirão a vontade para um fim
legítimo. Por isso, as virtudes estão tão juntinhas das paixões, até mesmo “com uma
dependência recíproca e uma inseparabilidade” (GILSON, 2007, p.260). Mesmo que
as paixões sejam frutos do amor, assim como as virtudes, mas todos concordam
que esta última é o único caminho para a felicidade. Portanto, se a vontade é o
amor, a virtude suprema é também o Amor Supremo
No entanto, se as virtudes se subordinarem às paixões, facilmente se
tornaram iguais a elas:
a temperança é o amor que se dá total e inteiramente a aquilo que
ama; a força é o amor que suporta tudo facilmente em prol daquilo
que ama; a justiça é o amor que serve apenas ao objeto amado e,
por consequência domina todo o resto; a prudência é o amor em
seu discernimento sagaz entre aquilo que favorece e aquilo que
dificulta. Se dissermos que dois homens são iguais em força, mas
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que um deles a emprega com prudência à força do outro faltará
prudência e, por isso mesmo, a ele faltara força (GILSON, 2007,
p.260, grifo do autor).
Essa discórdia não acontecerá se o fim das virtudes for o amor supremo ou o
amor perfeito.
A temperança é o amor que se reserva inteiramente para Deus; a
força suporta tudo com facilidade por amor a Deus; a justiça serve
apenas a Deus e domina a partir disso, com retidão, tudo que está
submetido ao homem; a prudência é um amor que sabe discernir o
que liga a Deus e o que separa dele (GILSON, 2007, p.261, grifo do
autor).
Parecia que ao chegar ao amor teria chegado ao final da busca, mas
encontra-se o amor como um objeto dependendo do bom ou do mau uso das
virtudes. Um amor com essas características de imperfeição não conduz a alma à
felicidade, ou seja, ao bem supremo. “A idéia central da moral a qual somos
conduzidos é o amor pelo bem supremo, ou seja, a caridade” (GILSON, 2007,
p.261,). Então, veja-se a seguir o que Agostinho diz a respeito da caridade como
amor perfeito.
3.5 Caridade: O amor perfeito
Embora até aqui, ainda não se tenha tratado claramente do amor Eros e do
amor Ágape, se faz necessário buscar algumas referências dessas concepções de
amor, para entender melhor o salto de qualidade que se vai dar do amor promovido
pela vontade, para o que Agostinho chama de amor perfeito ou caridade, conhecido
também pelas escrituras de amor ágape.
O Sumo Pontífice Bento XVI, em carta encíclica de 2008, sobre “o amor
cristão”, recorda vários tipos de amor vividos pelo homem: amor à pátria, a
profissão, aos amigos, aos pais, aos filhos, etc., chama atenção em especial ao
amor entre o homem e a mulher que se sobressai como arquétipo de amor por
excelência, com uma promessa de felicidade que parece irresistível e que diante
deste amor todos os outros se ofuscam. Relata ainda, que este amor entre homem
e mulher não nasce da inteligência e da vontade, mas de certa forma impõe-se ao
ser humano, ao qual os gregos antigos deram o nome de Eros.
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Agostinho por sua vez, diferentemente dos gregos antigos, discorre sobre o
amor promovido pela vontade e que por ele chega onde não queria (AGOSTINHO,
1999, p.209), entretanto em “Confissões” - no Livro XIII, capitulo 7 - apresenta a
caridade como sendo aquele amor derramado nos corações pelo Espírito Santo que
nos foi dado (Rom. 5,5). Dessa mesma caridade o Dicionário de Teologia de
Heinrich Fries (1970) traz um conceito Beneditino definindo caridade como vitória
sobre todo capricho e toda busca egoísta, fazendo renunciar o eu para perder-se no
amado, modelo bem representado entre os homens por Francisco de Assis.
Desse pequeno histórico, pode-se concluir que existem aparentemente três
tipos de amor do ponto de vista da aquisição: o amor entre homem e mulher, que
não é da inteligência nem da vontade, ele é de certo modo imposto ao homem; o
amor proveniente da vontade, de certo modo imperfeito porque depende do bom ou
do mau uso das virtudes, podendo levar a alma onde ela quer e onde não quer; e o
amor perfeito chamado de caridade, que é derramado no homem pelo Espírito
Santo de Deus, para que a alma consiga o que ela quer, e se torne una com o bem
amado.
Agora, já sabendo o que a caridade é, numa visão mais teológica, veja-se
como ela se desenrola no conceito propriamente filosófico agostiniano.
“A caridade é o amor pelo qual se ama o que se deve amar” (GILSON, 2007,
p.262). Ela é semelhante a um dos pesos que trazem a vontade na direção de um
corpo qualquer, por que ela é o amor. Sabe-se, é certo, é o amor de Deus que
movimenta tanto os corpos físicos como a vontade humana. Mas a uma diferença
quando se fala dos movimentos naturais e dos movimentos livres e voluntários. A
alma tende para Deus, o corpo tende para seu lugar natural: a pedra para o centro
da terra e o fogo tende a subir, pois são coisas. Mas não se ama as coisas como se
ama as pessoas. “Ora, não amamos uma pessoa como amamos uma coisa, pois
amamos as coisas para nós, ao passo que amamos as pessoas por si mesmas”
(GILSON, 2007, p.262). Quando se diz que um corpo ama seu lugar de ordem, se é
que se pode dizer que um corpo ama, é por que ele ama seu próprio bem, mas se
ama a Deus só pode querer o bem de Deus.
Agora se chega a uma ambiguidade que parece ser um problema, por que
coloca o amor que é à vontade, em duas direções diferentes: se a vontade vai à
direção da coisa em que ela se deleita, ela está buscando seu próprio bem, e se ela
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ama Deus só pode querer o bem de Deus, por que o amor por alguém tende ao
bem deste, então a alma através da vontade busca seu próprio bem e o bem do seu
bem! Mas, isto é, mas isto é necessário a fim de que o amor se estabeleça.
Esta é a solução encontrada por Santo Agostinho: Se um homem ama outro
homem, isto pode ser chamado de caridade com o próximo. Mas quando alguém
ama outro da mesma espécie ele ama como a si mesmo. “Aquele que eu amo é
igual a mim; eu sou igual àquele que amo, e por isso, eu o amo como a mim
mesmo, tal como Deus o prescreveu” (GILSON, 2007, p.263).
Na caridade para com os pobres pode se ver essa igualdade de tratamento.
Na escritura está dito que sempre haverá pobres, mas não está escrito que é
necessário que haja pobres para se exercer obras de caridade. Atender as
necessidades dos pobres, isto é necessário, mas se não houver necessitados a
caridade cessará? Nunca! Quando se ama um homem feliz que não se pode dar
nada a ele, amor por ele é livre e sem nenhum pensamento dissimulado, quando
doa-se a um pobre pode ser por desejo se sujeita-lo, ou de ostentar a nossa
riqueza. “O que é, portanto, necessário querer àquele que é amado, é que ele seja
nosso igual, opta aequalem, e que nós sejamos submissos, ele e nós, Àquele a
quem nada se poderia dar” (GILSON, 2007, p.264).
Pois bem, com a demonstração acima, se viu à caridade querendo o bem do
outro, mas, será visto agora, que este amor destinado ao outro quer também o seu
próprio bem. Pela definição de amor, se tem por implicação o desejo de um bem
que se quer possuir. Não se pode possuir nada, sacrificando-se em função do
objeto do amor. Todo o amor tende a reciprocidade e, isto é o que é constatado por
todos. Quanto mais se percebe o amor recíproco daquele é amado mais se acende
o amor no coração do que ama. Desse modo posto, este sentimento tende a
extinção se não for de algum modo recompensado.
O amor não quer só ser recompensado. Quando se trata de reciprocidade há
uma unificação nos corações das duas pessoas, isto faz com que, pelo menos
numa certa medida deixe de ser duas e passem a ser uma. Cada uma quer para o
outro aquilo que quer para si mesmo. As vidas dos que se amam tendem a unir-se
numa só pessoa. Por isso, quando se pensava que a vontade tendendo para o seu
bem e o bem do próximo, seria um problema! se viu agora que era uma ilusão, pois
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quando se ama o próximo como a si mesmo, está se amando na unidade “e
nenhuma oposição é possível no interior do que é um” (GILSON, 2007, p.265).
Mas em relação a Deus, será que este amor é aplicável? Amar ao próximo
como a se mesmo é agir como se ele fosse outro, e o outro fosse ele. Desse modo,
seriam iguais ele e o outro. Ele é um bem particular e o outro é um bem particular.
Mas em se tratando de Deus que é “o Bem” como se deve amá-lo? É claro que não
se pode amá-lo em pé de igualdade, é necessário amá-lo absolutamente, a maior,
sem nenhuma igualdade. Se for pela justiça que se ama igualmente a outro homem,
essa mesma justiça cobra de se um amor maior por aquele que é maior do que ele.
Não há medida para este amor “ipse ibi modus est modo amare” (GILSON, 2007,
p.265). No entanto, amando deste modo esta a alma se colocando numa condição
de aniquilamento, subordinação e diminuição, com isso, será que esta sendo
compatível com a definição de amor, ou até mesmo, será que poderá dá a isso o
nome de amor?
Quando se ama um outro com a finalidade de alcançar a própria felicidade,
certamente que é absurdo se aniquilar em favor do outro. Não há espaço na razão
que faça entender tal absurdo, mas quando se trata do bem absoluto, a melhor
maneira de realizar a vontade, é renunciando a si mesmo. Neste caso e somente
neste caso perder a alma é salvá-la. Enquanto não se tem o bem absoluto há
espaço na alma para acumular muitos amores, mas amar o outro como a si mesmo
é uma espécie de exercício para se alcançar o bem maior, depois dele não há mais
o que desejar. Inclusive, para quem possuir o bem maior e quiser possuir outro bem
é necessário desfazer-se do bem absoluto, por que ele ocupa todo o espaço
desejado pela vontade, desejar ter outro bem, é, no entanto, impedir a adesão ao
bem maior. “Assim, existe um caso, e único, em que a felicidade da alma exige que
ela se esqueça inteiramente de si mesma e se renuncie: o amor de Deus, único,
esse amor deve ser plenamente gratuito para ser plenamente recompensado”
(GILSON, 2007, p.266). É entregando-se totalmente que se assegura a posse do
bem que chama-se de caridade.
A doutrina da caridade para Santo Agostinho é o bem mais precioso que a
alma pode alcançar, ela é o amor pelo qual se ama o que se deve amar. Para se
conquistar outros bens pode-se utilizar a prata e o ouro, mas para conquistar a
caridade é necessário dar-se a si mesmo como paga desse bem maior. “Escutai,
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portanto o que diz a caridade pela boca da sabedoria: ‘Meu filho, dê-me teu
coração1 (Pr. 23,26)” (GILSON, 2007, p.267). É tudo que o homem tem que a
caridade pede. Pode-se observar de outro modo: se um homem amar ao Senhor
Deus de todo coração e com toda alma e com todo pensamento, o que restará dele
para amar a si mesmo?
Se a caridade faz tal exigência do homem, ela não tem um lugar, nem
especial nem particular junto ao homem, ela é a vida moral do homem. “Um amor
para com Deus que começa, é, para a alma, o começo da sua justificação, se seu
mor progride, justiça cresce proporcionalmente; se o amor torna-se perfeito, a
justiça da alma é perfeita” (GILSON, 2007, p. 267). Pela vida moral o que se busca
é a felicidade, se pela perfeição do amor e da justiça alcançamos a caridade não há
lugar para a imperfeição da alma; “tudo que ela faria, portanto, faria por pura
caridade; cada um de seus atos, qualquer que fosse partiria de um amor absoluto
por Deus, de modo que tudo que ela fizesse seria bom, de uma bondade infalível.
Dilige, et quoal vis fac. Ainda nos diz Santo Agostinho: amai, e fazei em seguida o
que quiserdes” (apud GILSON, 2007, p. 268).
Toda esta tese do amor acima desenvolvida, que se encontra espalhada nos
escritos agostinianos, e é de certa forma rearranjada por Étienne Gilson, e que
cumina com a frase de Agostinho: amai e fazei em seguida o que quiserdes, é de
fato, uma verdade absoluta. Mas não se pode ser ingênuos ou sentimental a ponto
de admiti-la em qualquer situação. Ela é válida no seu cume, apenas para uma
caridade perfeita. Quem na terra pode dizer que ama Deus com o amor tão perfeito
a ponto de a nossa vontade confundir-se com a vontade Dele? Apenas alguns
escolhidos como São Paulo que diz “Fui crucificado junto com Cristo. Já não sou eu
que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, vivo-a pela
fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gal. 2, 19b-
20). Pois é a este ponto que chegará aqueles que negarem-se a si mesmo em favor
da caridade. Porém esta tese só será verdadeira a medida que a caridade vai
acontecendo, só alcançando 100% na outra vida.. A inacessibilidade agostiniana
não deve desencorajar as almas, no seu ideal de pureza, pois:
Ela significa o dever que nos incumbe de fazer com que nossas
almas sejam cada vez mais impregnadas com a caridade que, na
medida mesmo em que esta sobrepuja a cupidez em nós, permite
que nos abandonemos aos movimentos de uma vontade
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santificada em sua raiz e que, a partir de então, só poderia trazer
bons frutos” (idem, p.268).
Um segundo fato que nos chama atenção é que a caridade aparece no
princípio da vida moral, e pode-se pensar que ela substitui os elementos do ato
moral ou até mesmo as virtudes. Mas não, a caridade não consome as virtudes,
mas diga-se que ela as consuma nas virtudes. Quem tem a caridade com certeza é
por que usa as virtudes de modo correto. E ainda, nesta mesma linha de raciocínio
Étienne Gilson diz que: “nos enganaríamos se buscássemos no agostianismo
qualquer tipo de quietismo, pois ele é a exata condenação disso” (2007, p.267). E
disso não se pode ter dúvida, estudou-se desde o princípio que o amor é princípio
de movimento. É uma pura verdade que a vontade que move a busca, é o amor, e
como a caridade é o amor, por consequência a caridade é movimento da vontade.
Basta a caridade ser colocada para aparecer inúmeras obras caritativas. Se
percebendo daí, um entrelaçamento entre o que existe de mais abstrato na vida
moral, que é o amor puro, e o que há de mais concreto no dia a dia. Quando uma
obra caritativa aparece é o amor por Deus revelado concretamente através de uma
atitude moral.
Pode-se agora dizer que, “encontramos a fonte de onde jorra a vida moral em
sua indivisível unidade” (GILSON, 2007, p.269). O Deus que é o bem absoluto,
Deus que é amor Deus que é caridade. “Deus claritos est” (GILSON, 2007, p.269).
Esta é a definição dada nas Escrituras. Mas que pelo estudo que foi feito uma nova
conseqüência aparece: “Deus é caridade a vida moral é caridade” (GILSON, 2007,
p.270).
43
4 CONSIDERALÇÕES FINAIS
Após as análises, leituras e reflexões sobre o amor em Santo Agostinho e em
outros filósofos, foram obtidas informações que permitem tirar conclusões a respeito
dos questionamentos surgidos na tentativa de minimizar os problemas da
infelicidade. Porém, o mais impressionante foi descobrir um leque de outros valores
que só puderam ser percebidos no decorrer da tabulação dos dados encontrados.
Valores estes, que podem tornar o corpo do trabalho frio, diante do ardor que se
estabelece no peito do pesquisador, e que com certeza não pode ser todo
transmitido ao leitor. Mas enfim, o que é o amor? Qual a sua fonte verdadeira? Será
que se ama o que deve ser amado?
O amor foi reconhecido neste trabalho não só como um sentimento que arde
no peito do amante, mas como uma vontade que move a busca, qualquer busca,
seja ela boa ou má. Todo movimento feito com a intenção de adquirir, conservar ou
descartar qualquer coisa - seja ela de ordem material, cognitiva ou espiritual. É o
movimento feito na direção da intervenção desejada que caracteriza o amor. Quer
seja uma pesquisa feita com a intenção de enfrentar a cura do câncer ou da AIDS,
ou com a intenção de matar toda a vida do planeta, ambas poderão ser arrastadas
com a mesma intensidade de forças, ambas são amor com a mesma intensidade,
só que uma pesquisa apresenta amor pelo bem e outra pelo mal.
A alguém que seja requerido falar do amor e do livre arbítrio, é necessário
falar apenas do amor como vontade e as duas respostas estão sendo dadas, pois
não há nada mais livre do que a vontade. Através da vontade o homem é livre para
amar o que quiser, o bem ou o mal.
A respeito do segundo questionamento, a própria questão já permite
raciocinar, para espanto do leitor, que o amor não é nato, já que existe uma fonte, e
esta fonte não pode estar no homem enquanto objeto sensível, perecível e
transitório. Se o amor estivesse no homem ele não seria verdadeiro, visto que o que
é verdadeiro não muda, ou se muda é porque não é verdadeiro. O amor é dado por
um lado e adquirido por outro, e é isto que dignifica o valor da liberdade, a alma é
livre para adquirir o que quiser, o bem ou o mal, tudo depende da sua vontade. É aí
que entra o papel dos pais, da família, da sociedade e do estado, pois a vontade
também não é inata, ela é construída de certa forma pelo que envolve a pessoa.
44
Para não delongar, e não entrar numa tese psicanalítica, basta observar o que a
propaganda é capaz de produzir no homem, desorganiza uma vontade ao mesmo
tempo em que constrói outra.
Para que uma vontade boa seja desenvolvida na alma, é necessário que os
que estão em torno do novo catecúmeno lhe apresentem a sabedoria e assim a
alma vai saber através de uma vontade boa o que deve desejar para sua felicidade.
Certamente a vontade desejada a partir da sabedoria é a verdade, e isto é a fonte
do amor caridade.
Referente ao terceiro questionamento, se amamos o que deve ser amado, a
pesquisa feita não encontrou nenhum referencial seguro para esta resposta. No
entanto, acredita-se que cada alma deve analisar se os efeitos produzidos pelos
atos de sua vontade são compatíveis com a caridade. Se sim, certamente a alma
estará amando o que deve ser amado, se não deve procurar a verdade, pois ela é
condição necessária para a felicidade.
Quanto àqueles outros valores percebidos no contexto da pesquisa e nas
entrelinhas, ressalte-se apenas um. É o amor que regula a vida moral de qualquer
nação, povo, família, ou indivíduo. Quer se acredite ou não que o amor vem de uma
fonte única, quer se acredite que o amor é dado ou adquirido. É a vontade que rege
qualquer movimento humano e ninguém está isento desse desejo.
Pode surgir, no entanto, aquela velha indagação: Se o amor é dado, e se sua
fonte é a verdade, por conseqüência é Deus. Como pode de Deus vir uma vontade
má? Não foi visto desde o começo que todo homem quer ser feliz? A felicidade não
pode ser má. O desejo que Deus dá ao homem é o de querer a felicidade e ele a
procura por ter dela lembrança. Não se pode procurar aquilo que não se conhece ou
não tem lembrança. Todavia, a vontade que precisa fazer bom uso das virtudes,
pode ser desvirtuada, como que por uma propaganda enganosa, e torna-se uma
vontade má.
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REFERÊNCIAS
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Martins Fontes, 2000, p 38-50. 462. AGOSTINHO, Santo. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995. (Patrística; 7). Disponível em: <http://www.4shared.com/account/file/104550671/93375460/AGOSTINHO_Santo_A_trindade.html>. Acesso em: 17 nov. 2009. _______. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores). _______. Cidade de Deus (Contra os pagãos), parte 2. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, São Paulo: federação Agostiniana Brasileira, 2001. (Coleção Pensamento Humano) _______. O Livre-arbítrio. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1995. (Patrística; 6). Disponível em: <http://www.4shared.eom/file/89107812/b80a36da/Santo_Agostinho_-_O_LivreArbi.html?err=no-sess>. Acesso em: 03 out. 2009. _______. Solilóquios; A vida Feliz. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1998. (Patrística; 11)
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2002. (Coleção a
obra-prima de cada autor; 53). BENTO XIV, Papa. Deus Caritas Est- Carta Encíclica sobre o amor cristão. 9. ed. São Paulo: Paulinas, 2008. (A voz do Papa; 189). BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Gorgulho, G.S. Coord. et al. São Paulo:
Paulus, 2002. Eclesiastes. Português. In: A Bíblia Sagrada. Trad. de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Impressa Bíblica Brasileira, 1977. p.638-646. A.T. FRIES, H. Dicionário de teologia; conceitos fundamentais da teologia atual. São
Paulo; Loyola, 1970, vol. 1, p. 66-91. GILSON, E. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. São Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2007. PLATÃO. In: O banquete. Diálogos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os
Pensadores) REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 199-, v.1, Antiguidade e Idade Média, p.428-459.
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WIKIPÉDIA, A enciclopédia livre. In: Anexo:Lista de Doutores da Igreja. Disponível em: <http://pt.wikipedia.0rg/wiki/Anex0:Lista_de_D0ut0res_da_lgreja>. Acessado em: 17 nov. 2009.
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APÊNDICE
SANTO AGOSTINHO VIDA E OBRAS
Aurélio Agostinho, filho do Sr. Patrício e Dona Mônica, nasceu no dia 13 de
Novembro de 354 na pequena cidade de Tagasta na Numídia, África. Seu pai ligado
ao paganismo (vindo a converter-se ao cristianismo somente no fim de sua vida)
Sua mãe era fervorosa cristã. Cresceu Agostinho no meio deste conflito religioso,
razão pela qual foi impulsionado sempre em busca de uma resposta definitiva.
Freqüentou a escola em Tagosta e Madaura onde fez os primeiros estudos. Graças
ao sacrifício paterno e ajuda financeira de um amigo de seu pai foi para Cartago,
onde completa os estudos superiores em retórica. Por detestar o grego, sua
formação se fez inteiramente na língua latina.
Ao conhecer a obra “Hortensus” de Cícero que era um elogio a filosofia, abre-
se para ele as portas do saber e por longo tempo teve o escritor como modelo e
ponto de referência. Mas antes de interessar-se pelas questões intelectuais, sua
atenção estava voltada para as coisas mundanas. Apaixonou-se por uma mulher
com a qual teve um filho Adeodato que faleceu ainda na adolescência. Este amor
não correspondia aos padrões da época, sendo então impedido de casar-se.
Com o falecimento de seu pai Agostinho voltou para sua cidade natal onde
abriu uma escola. Depois transferindo-se para Cartago, exercendo o cargo de
professor de retórica. Desiludido pelo descompromisso de seus alunos mudou-se
para Roma. Através de amigos maniqueístas foi apresentado ao prefeito da cidade
o qual o favoreceu dando-lhe o cargo de professor de retórica imperial para o
tribunal provincial em Milão.
Ainda em Milão começou a abandonar o maniqueísmo, e abraçou o
movimento cético da Academia Neoplatônica. Sua mãe insistia para que ele se
tornasse cristão e utilizava da fé e da oração visando a conversão do filho. Mas
encontrou respaldo com a oratória do bispo de Milão, Ambrósio, que influenciou
sobre sua conversão.
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No ano 386 decidiu se converter ao catolicismo e abandonou a retórica,
renunciando ao cargo de professor em Milão e desistindo da idéia de casamento,
dedicando-se a servir a Deus.
A chave de sua transformação foi a voz de uma criança invisível, que
sussurrava como se fosse um refrão “toma e lê, toma e lê”... Viu um livro que estava
sobre a mesa, abriu e leu: “Como de dia andemos decentemente; não em orgias e
bebedeiras, nem em devassidão e libertinagem, nem em rixas e ciúmes. Mas veste-
vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis satisfazer os desejos da carne” (Ro. 13,
13-14).
Se converteu em uma fundação monástica em 391, sendo ordenado
sacerdote em 395, e consagrado bispo efetivo, com a morte de Valério em 396, seu
pensamento e suas obras, determinou uma reviravolta na historia da Igreja e do
pensamento do ocidente.
Eis o juízo feito por B. Altenear um dos maiores estudiosos da patrística a
respeito de Agostinho: “O grande bispo unia em si a energia criadora de Tertuliano e
a amplitude de espírito de Origens com o sentido eclesiástico de Cipriano, a
agudeza dialética de Aristóteles com o idealismo elevado e a especulação de
Platão, o sentido pratico dos latinos com a flexibilidade espiritual dos gregos. Ele foi
o maior filosofo da época patrística e, sem duvida o mais importante e influente
teólogo da Igreja em geral” (apud REALE, ANTISERI, 1990, p. 434).
Agostinho foi também um escritor fecundo em muitos gêneros: tratados
filosóficos, teológicos, comentários de escritos da Bíblia, entre sermões e cartas.
Entre as principais obras situam-se: Contra os Acadêmicos (386), Solilóquios (387),
Do Livre-arbítrio (388-395), De Magistro (389), Confissões (397-398) relada desde
sua concepção ate à sua então relação com Deus e encerando com um discurso
sobre o livro do Gênesis; A Trindade (399-419); Cidade de Deus (413-4260) síntese
de seu pensamento filosófico, teológico e político; Retratações (426-427) revisa
seus trabalhos anteriores, que não lhe pareciam adequadas com a fé cristã .
Morreu em 28 de agosto de 430, quando os vândalos sitiavam a cidade de
Hipona.
Foi proclamado como o terceiro doutor da Igreja Católica, pelo Papa
Bonifácio VIII em 1298.