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Universidade Federal do Rio Grande do Sul Faculdade de Educação Programa de Pós-graduação em Educação Mauren Lúcia Tezzari Educação Especial e Ação Docente: da medicina à educação Porto Alegre 2009

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  • Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    Faculdade de Educao

    Programa de Ps-graduao em Educao

    Mauren Lcia Tezzari

    Educao Especial e Ao Docente: da medicina educao

    Porto Alegre

    2009

  • 2

    Mauren Lcia Tezzari

    Educao Especial e Ao Docente: da medicina educao

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Educao da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutora em Educao. Orientador:Prof. Dr. Claudio Roberto Baptista.

    Porto Alegre

    2009

    Mauren Lcia Tezzari

  • 3

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Ficha Catalogrfica elaborada por Nvea Bezerra Vasconcelos e Silva CRB 10/1255

    T356e Tezzari, Mauren Lcia Educao especial e ao docente : da medicina

    educao / Mauren Lcia Tezzari. - Porto Alegre, 2009. 235 f. il. Tese (Doutorado em Educao) - Faculdade de Educao, UFRGS, 2009.

    Orientador: Prof. Dr. Claudio Roberto Baptista.

    1. Educao Especial - Histria. 2. Educao Especial -

    Medicina. 3. Ao Docente. 4. Interveno Pedaggica - Crianas. 5. Itard, Jean - Crtica e Interpretao. 6. Sguin, Edouard - Crtica e Interpretao. 7. Montessori, Maria - Crtica e Interpretao. 8. Korczak, Janusz - Crtica e Interpretao. I. Baptista, Claudio Roberto. II. Ttulo.

    CDD 370.71

  • 4

    Mauren Lcia Tezzari

    EDUCAO ESPECIAL e AO DOCENTE: da medicina educao

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutora em Educao Orientador: Prof Dr. Claudio Roberto Baptista

    Aprovada em 29 de abril de 2009.

    Prof Dr. Claudio Roberto Baptista - Orientador

    Prof Dr Denise Meyrelles de Jesus - UFES

    Prof Dr. Jorge Alberto Rosa Ribeiro - UFRGS

    Prof Dr Maria Ins Naujorks UFSM

    Prof Dr Maria Sylvia Carneiro - UFSC

  • 5

    Dedico esta tese minha me,

    uma mulher de fibra que, com seu

    exemplo, despertou em mim o desejo

    de ser professora. Esta escolha tem me

    levado por caminhos repletos de

    desafios, descobertas, de muitas

    perguntas e algumas respostas.

  • 6

    Eu fico com a pureza da resposta das crianas a vida, bonita e bonita.

    Viver e no ter a vergonha de ser feliz Cantar (E cantar e cantar...) a beleza de ser um eterno aprendiz.

    Ah meu Deus! Eu sei... (Eu sei...) que a vida devia ser bem melhor e ser

    Mas isso no impede que eu repita bonita, bonita e bonita.

    (O que , o que , Gonzaguinha)

  • 7

    Agradecimentos

    Esta uma ocasio muito especial. Finalizar o curso de doutorado um

    desejo ardente, um momento muito esperado, digno de festa! Mas, ao

    mesmo tempo, envolve uma despedida, um pequeno luto. So alguns anos

    convivendo com diferentes pessoas: orientador, colegas, professores e

    funcionrios. Alguns vm e vo numa passagem rpida, mas que sempre deixa

    suas marcas. Outros tm um lugar especial nessa trajetria, acompanham mais

    de perto, partilham muitos momentos, ouvem as ideias e os lamentos, do

    opinies, oferecem ajuda.

    Imagino que a famlia, por sua vez, fique aliviada, pois acompanha tudo

    de perto e compartilha todas as emoes. So muitas e nem sempre

    agradveis, especialmente no final.

    Posso dizer que tudo valeu a pena. Ao finaliz-lo no sou mais a mesma

    pessoa que o iniciou. A essncia continua a mesma, mas muitas

    transformaes ocorreram. Os horizontes ampliaram-se, o conhecimento

    aumentou um pouco, algumas perguntas foram respondidas (ao menos por

    algum tempo) e muitas outras surgiram. A inquietude permanece e esse

    movimento no tem fim: perguntas, algumas respostas que geram novas

    perguntas... Mas essa etapa se conclui, e assim deve ser, para que outras

    possam vir.

    Assim, desejo registrar aqui alguns singelos agradecimentos, no

    somente por ser uma tradio, mas por serem realmente merecidos:

    - ao meu orientador, Prof Dr. Claudio Roberto Baptista, que me

    acompanha h alguns anos nessa caminhada de formao e que, para mim,

    ser sempre o meu mestre: Obrigada;

    - aos professores do Programa de Ps-graduao, pelo instigante

    desafio de trilhar novos caminhos, pela desacomodao: Obrigada;

  • 8

    - aos funcionrios do Programa de Ps-graduao, que sempre me

    atenderam com gentileza e competncia: Obrigada;

    - aos antigos e aos atuais colegas do NEPIE, um grupo que sempre me

    empolga, me d novas ideias, me estimula: Obrigada;

    - s queridas parceiras da Comisso de Extenso, Andra, Claudia, Dani

    e Gabriela, cuja convivncia tem sido para mim uma oportunidade de

    crescimento, de relao saudvel com as diferenas, de partilha de alegrias e

    de tristezas, enfim, de amizade e companheirismo: Obrigada;

    - Andra e Dani, pela valiosa ajuda no momento certo: Muito

    obrigada;

    - querida Carol, parceira de disciplinas, conversas, viagens a

    seminrios, de quartos, com quem aprendi muito e sempre dei boas risadas:

    Obrigada;

    - Amarilis, minha parceira na SIR, que tambm durante o doutorado,

    teve muita pacincia comigo e sempre me encorajou: Obrigada;

    - aos meus alunos e s minhas alunas, que me colocam desafios, me

    ensinam, me gratificam, cotidianamente: Obrigada;

    - s amigas e aos amigos, que compreendem os momentos de

    afastamento e sempre me recebem de volta com os braos abertos: Obrigada;

    - minha querida famlia, que torceu em todos os momentos, que

    compreendeu as ausncias e os silncios, que vibra e se orgulha a cada

    conquista: Obrigada;

    - e, em especial, ao meu querido marido, Carlos, meu parceiro em todas

    as horas, nas boas e nas difceis, que sempre tentou me ajudar, mesmo que

    fosse me fazendo rir quando eu tinha vontade de chorar. Seu apoio, amor e

    pacincia ajudaram muito na concretizao deste momento: Muito, muito

    obrigada!

  • 9

    RESUMO

    A presente tese tem como objetivo a apresentao, anlise e reflexo acerca das trajetrias de vida e das proposies de trabalho de quatro estudiosos pioneiros, Jean Itard, Edouard Sguin, Maria Montessori e Janusz Korczak, que transitaram da medicina para a educao, ocupando-se de pessoas com deficincia e em situao de risco. Este estudo apresenta uma retomada da constituio da educao especial, sendo que, na histria dos referidos personagens, o foco situa-se no deslocamento da medicina em direo pedagogia, buscando, dessa forma, possibilitar a compreenso das recentes alteraes que envolvem a docncia do professor especializado em educao especial, assim como daquele do ensino comum. Voltar o olhar para esse passado, no to distante, mas cujos efeitos so ainda sentidos, auxilia no processo de compreenso da construo da educao especial e permite o estabelecimento de pontos de conexo com um conjunto caracterizador da docncia junto a pessoas com deficincia que, paulatinamente, afasta-se do modelo de interveno clnica, e prioriza a abordagem pedaggica. Trata-se de um estudo de carter terico, cujas fontes constituram-se de materiais que abordam as temticas mencionadas, assim como das obras escritas pelos prprios mdicos-educadores. A pesquisa foi orientada por questes como: Por que a educao especial teve seu incio associado ao campo da medicina, atravs de experincias inovadoras de jovens mdicos-educadores? Por que esses pioneiros da educao especial vo, paulatinamente, afastando-se da medicina e direcionando suas prticas para o campo da educao? Como se delinearam as caractersticas da ao profissional do professor de educao especial a partir do sculo XIX? De que maneira as obras desses quatro personagens podem contribuir com a educao especial, tendo em vista os novos contextos e as novas demandas que se impem a partir da incluso escolar? Que pontos de ruptura e de continuidade podem ser identificados nas propostas construdas pelos quatro personagens apresentados na tese e suas possveis contribuies para a atuao do professor de educao especial? Ao final, realizada uma anlise que busca evidenciar pontos de sintonia entre as obras, bem como singularidades da trajetria de cada personagem. Alm disso, so identificados e analisados aspectos pedaggicos inovadores e atuais de suas obras, a respeito da ao dos educadores junto a pessoas com deficincia e em situao de risco.

    Palavras-chave: Educao. Educao especial. Medicina. Histria. Jean Itard. Edouard Sguin. Maria Montessori. Janusz Korczak. Alunos com deficincia. Docncia. Interveno pedaggica. Crianas em situao de risco. _______________________________________________________________ TEZZARI,Mauren Lcia. Educao Especial e Ao Docente: da medicina educao- Porto Alegre, 2009, 243 f. Tese (Doutorado em Educao) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educao. Programa de Ps-Graduao em Educao. Porto Alegre, 2009

  • 10

    RESUM

    Cette thse prsente, analyse et examine les trajectoires de vie et propositions de travail de quatre spcialistes pionniers : Jean Itard, douard Sguin, Maria Montessori et Janusz Korczak, qui sont passs de la mdicine lducation et se sont occups de personnes dficientes et en situation de risque. Elle rvise la constitution de lducation spciale en mettant laccent, dans lhistoire des personnages dj cits, sur le glissement de la mdicine la pdagogie pour ainsi permettre de mieux comprendre les rcentes modifications mettant en jeu lenseignement des professeurs spcialiss en ducation spciale et de ceux de lenseignement commun. Diriger notre regard sur ce pass, pas si lointain et dont les effets se font encore sentir, aide comprendre la construction de lducation spciale et permet dtablir des points de connexion avec un ensemble qui caractrise lenseignement auprs de personnes dficientes, lequel, petit petit, sloigne du modle dintervention clinique et donne la priorit lapproche pdagogique. Il sagit dune tude caractre thorique dont les sources proviennent de matriels abordant les thmatiques mentionnes, ainsi que douvrages crits par ces mdecins-ducateurs eux-mmes. Elle est oriente par des questions comme : pourquoi les dbuts de lducation spciale ont-ils t associs au champ de la mdicine au travers dexpriences novatrices de jeunes mdecins-ducateurs ? Pourquoi ces pionniers de lducation spciale vont-ils sloigner graduellement de la mdicine et diriger leurs pratiques vers le champ de lducation ? Comment les caractristiques de laction professionnelle du professeur dducation spciale se sont-elles dessines partir du XIXe sicle ? Comment les ouvrages de ces quatre personnages peuvent-ils contribuer lducation spciale, si lon considre les nouveaux contextes et les nouvelles demandes qui simposent partir de linclusion scolaire ? Quels points de rupture et de continuit peuvent tre identifis dans les propositions construites par les quatre personnages prsents dans cette thse et leurs possibles contributions pour laction du professeur dducation spciale ? Pour conclure, une analyse cherche rehausser certains points convergents entre ces ouvrages et les singularits de la trajectoire de chaque personnage. En outre, des aspects pdagogiques innovateurs et actuels concernant laction des ducateurs auprs de personnes dficientes sont identifis et analyss dans leurs crits.

    Mots-clefs : ducation. ducation spciale. Mdicine. Histoire. Jean Itard. douard Sguin. Maria Montessori. Janusz Korczak. lves dficients. Enseignement. Intervention pdagogique. Enfants en situation de risque. _______________________________________________________________ TEZZARI, Mauren Lcia. Educao Especial e Ao Docente: da medicina educao (ducation spciale et action denseignement : de la mdicine lducation) - Porto Alegre, 2009, 243 f. Tese (Doutorado em Educao) (Thse de doctorat en ducation) Universit Fdrale de ltat du Rio Grande do Sul. Facult dducation. Programme de troisime cycle universitaire en ducation. Porto Alegre, 2009.

  • 11

    RIASSUNTO

    La presente tesi ha come obiettivo la presentazione, lanalisi e la riflessione sulle traiettorie di vita e delle enunciazioni del lavoro di quattro studiosi davanguardia, Jean Itard, Edouard Sguin, Maria Montessori e Janusz Korczak, che sono passati dalla medicina alleducazione, occupandosi di persone disabili e in situazione di rischio. Questo studio presenta una ripresa della costituzione delleducazione speciale, dove nella storia dei personaggi gi citati, il fulcro situato nello spostamento dalla medicina verso la pedagogia, cercando in questo modo di permettere la comprensione dei recenti cambiamenti che interessano la docenza del professore specializzato nelleducazione speciale, ma anche di quello dellistruzione comune. Dirigere lo sguardo verso il passato, non tanto distante, ma i cui effetti sono ancora presenti, aiuta nel processo di comprensione della costruzione delleducazione speciale e permette di stabilire dei punti di connessione con un insieme di caratteristiche della docenza presso le persone disabili che, poco a poco, si allontana dal modello di intervento clinico e d la priorit allapproccio pedagogico. Si tratta di uno studio di carattere teorico, le cui fonti sono composte da materiali di approccio delle tematiche citate, ma anche delle opere scritte dagli medici educatori stessi. La ricerca stata orientata verso argomenti come: perch leducazione speciale ha avuto il suo inizio associato al campo della medicina, attraverso le esperienze innovative di giovani medici educatori? Perch questi precursori delleducazione speciale si stanno, pian piano, allontanando dalla medicina e dirigono le loro pratiche verso il campo delleducazione? Come si sono delineate le caratteristiche dellazione professionale del professore delleducazione speciale dal XIX secolo? In che modo le opere di questi quattro personaggi possono contribuire con leducazione speciale, considerando le nuove situazioni e le nuove necessit che si impongono partendo dall'inclusione scolastica? Quali punti di rottura e di continuit si possono identificare nelle proposte costruite dai quattro personaggi, presentate nella tesi e i loro possibili contributi per lattuazione del professore di educazione speciale? Alla fine viene realizzata unanalisi che cerca di mettere in evidenza i punti di sintonia tra le opere e la singolarit della traiettoria di ogni personaggio. Oltre a ci, vengono identificati e analizzati aspetti pedagogici innovativi e attuali delle loro opere, per quanto riguarda lazione degli educatori sulle persone disabili.

    Parole chiave: Educao. Educazione speciale. Medicina. Storia. Jean Itard. Edouard Sguin. Maria Montessori. Janusz Korczak. Alunni diversamente abili. Docenza. Intervento pedagogico. Bambini a rischio. _______________________________________________________________ TEZZARI,Mauren Lcia. Educao Especial e Ao Docente: da medicina educao- Porto Alegre, 2009, 243 f. Tesi (Dottorato in Educazione) Universit Federale del Rio Grande do Sul. Facolt allIstruzione. Programma di Post Laurea in Educazione. Porto Alegre, 2009.

  • 12

    SUMRIO

    1 APRESENTAO.......................................................................................13

    2 SITUANDO A PESQUISA ...........................................................................18

    2.1 Questes que orientaram a pesquisa ........................................................21

    2.2 Objeto de estudo .......................................................................................22

    2.3 Tese ...........................................................................................................23

    2.4 Caminhos metodolgicos ..........................................................................23

    3 EDUCAAO ESPECIAL: aspectos histricos .............................................26

    4 JEAN ITARD: o homem e a considerao de si............................................44

    5 EDOUARD SGUIN: todas as pessoas podem aprender.............................86

    6 MARIA MONTESSORI: a criana trabalha para produzir o homem ...........112

    7 JANUSZ KORCZAK: a tica e o respeito incondicionais criana............158

    8 CONSIDERAR: da medicina educao ....................................................196

    REFERNCIAS ..............................................................................................231

  • 13

    1 Apresentao

    A minha aproximao com a educao especial iniciou h bastante

    tempo, ainda na infncia. Ao cursar as sries iniciais (1 4) em uma escola

    estadual de Porto Alegre, tive meus primeiro contatos com os sujeitos da

    educao especial, uma vez que l funcionava uma classe especial para

    alunos com deficincia auditiva e outra para aqueles com deficincia mental

    leve (isso s soube mais tarde). Lembro-me dos recreios em horrios

    separados, dos comentrios, muitas vezes pejorativos, de professores e

    colegas, principalmente em relao classe especial para os excepcionais

    (termo muito usado na dcada de 70): quem incomodar ou receber notas

    muito baixas, poder ser transferido para l, ou aproximar-se deles

    perigoso, porque so agressivos. Tambm ouvamos consideraes de pesar

    em relao s professoras daquelas turmas: coitada da fulana, no sei como

    ela aguenta aqueles alunos. As duas turmas funcionavam em uma casa,

    dentro do terreno da escola, mas afastada dos demais prdios e no havia

    qualquer momento de integrao entre todos os alunos. Entretanto, eu vivia

    uma situao interessante: o irmo de uma de minhas colegas de aula

    estudava na classe especial e, quando eu ia casa dela, todos brincvamos

    juntos, sem qualquer problema. Isso me deixava intrigada...

    Na graduao, cursei a faculdade de pedagogia, com habilitao em

    educao especial para deficientes mentais, sendo que fiz essa opo quando

    ainda frequentava o 2 grau1, com habilitao para o magistrio de 1 4

    sries. No perodo da faculdade (1986-1990), as discusses, as pesquisas e a

    produo terica existentes a respeito da incluso escolar no estiveram

    presentes no curso.

    Iniciei minhas atividades docentes ao ingressar, por meio de concurso

    pblico, na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, no antigo Currculo por

    Atividades. Desde 1989, trabalho com alunos da periferia da capital, e uma

    parte dessas crianas e adolescentes no corresponde ao tradicional perfil de

    1 Na dcada de 80 essa era a denominao para o atual ensino mdio.

  • 14

    aluno ideal, ou, ainda, daquele estudante considerado normal. Nas turmas

    do ensino comum em que fui professora, frequentemente me deparei com

    alunos que, considerando-se a perspectiva de uma escola homogeneizadora e

    excludente, poderiam estar frequentando uma classe ou, at uma escola

    especial, pois evidenciavam necessidades educativas especiais.

    Penso que sala de aula constitui-se em um pequeno coletivo, no qual as

    relaes vo sendo construdas, permeadas por muitos fatores, entre eles a

    histria de cada um que ali est, os seus desejos, as suas resistncias, as

    exigncias legais que se refletem no trabalho, etc. Nessa trama complexa,

    vinham tona muitas indagaes: Como atender, em uma sala de aula to

    heterognea, as necessidades de cada aluno, considerando as suas

    peculiaridades e, ao mesmo tempo, garantir o avano do grupo como um todo?

    Como conciliar diferentes ritmos e estilos de aprender para que, ao final de um

    ano letivo, todos pudessem aprender, avanar e permanecer na escola? Como

    incluir toda essa diversidade em um ano escolar e, ao mesmo tempo, romper

    com uma prtica pedaggica em que todos aprendem as mesmas coisas, no

    mesmo ritmo, no mesmo tempo e espao? Fui percebendo que as minhas

    perguntas eram as mesmas de muitas outras professoras, e que no havia

    respostas rpidas ou fceis para essas questes, embora eu continue

    considerando-as fundamentais para uma escola que deve buscar garantir a

    aprendizagem de todos os seus alunos.

    Em 1995, passei a trabalhar na SIR (Sala de Integrao e Recursos),

    que era um projeto-piloto, da Secretaria Municipal de Educao de Porto

    Alegre. Esse projeto constitua-se da implantao de um servio de

    atendimento educacional especializado, a ser feito por professores de

    educao especial e a ser oferecido aos alunos com necessidades educativas

    especiais desta Rede, assim como aos professores desses estudantes, nas

    escolas de ensino comum.

    A partir de 1997, o referido projeto foi transformado em um servio

    oferecido pela Rede Municipal de Educao e houve, no decorrer desses doze

    anos, uma significativa ampliao no nmero de salas.

    A Sala de Integrao e Recursos presta atendimento educacional

    especializado (AEE) aos alunos com necessidades educativas especiais que

  • 15

    frequentam o ensino fundamental das escolas de ensino comum, procura

    estabelecer interlocuo com os professores desses alunos na reflexo a

    respeito do trabalho desenvolvido em sala de aula, acompanha o trabalho dos

    estagirios de incluso (projeto da SMED POA) e, tambm, mantm estreita

    ligao com as famlias dos alunos ao longo do tempo de trabalho.

    Como professora de educao especial, continuo me deparando com

    aquelas questes iniciais e muitas outras, agora em um universo mais amplo,

    no qual se desenrolam mltiplas relaes entre os sujeitos que ali so

    atendidos, seus professores, as suas turmas, as escolas, os estagirios (que

    acompanham os alunos em sala de aula), os educadores especiais que ali

    atuam, bem como as famlias dessas crianas e adolescentes. A incluso e a

    busca por garantir a aprendizagem das pessoas com necessidades educativas

    especiais no ensino comum geram desafios dirios, para os quais ainda no

    dispomos de solues, e a forma de atuao com esses alunos, muitas vezes,

    vai sendo construda cotidianamente.

    Assim, as inquietaes geradas pelo trabalho e a busca por possveis

    respostas (mesmo que provisrias) levaram-me ao curso de Mestrado, no

    Programa de Ps-graduao em Educao, da Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul, em 2000. Ao realizar a investigao que embasou a elaborao

    de minha dissertao de Mestrado2, busquei aprofundar e discutir o

    entendimento a respeito da dinmica desse servio da educao especial

    oferecido pela Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, os efeitos quanto

    sustentao da permanncia e aprendizagem de alunos com necessidades

    educativas especiais no ensino comum, bem como os efeitos recprocos desse

    trabalho no fazer pedaggico do professor de sala de aula e na interveno dos

    profissionais da SIR.

    Algumas perguntas foram respondidas; como era de se esperar, muitas

    outras vieram tona. Dentre elas, destacou-se para mim o interesse em voltar

    meu olhar para o professor de educao especial e a questo da docncia,

    quando pensamos no ensino aos alunos com necessidades educativas

    especiais, assim como aos demais. Ao realizar a pesquisa de Mestrado,

    busquei a interlocuo com todos os colegas das Salas de Integrao e

    2 A SIR chegou... Sala de Integrao e Recursos e a incluso na Rede Municipal de Ensino

    de Porto Alegre. Dissertao defendida em setembro de 2002, na UFRGS, Porto Alegre.

  • 16

    Recursos (29 professores de educao especial) e, j na anlise dessas

    entrevistas, foram configurando-se muitas indagaes a respeito desse

    profissional da educao. Quando esse personagem surge no cenrio

    educacional? Por que foi necessrio o aparecimento de um professor com

    formao especfica para trabalhar com alunos que se distanciam dos padres

    de normalidade? Como se delineiam os contornos de um conjunto de aes

    que podem ser consideradas como caracterizadoras da atuao desse

    personagem da educao?

    Essas questes (entre outras tantas possveis) instigaram-me a buscar

    novamente o caminho da pesquisa e trouxeram-me ao curso de Doutorado.

    Ao longo da elaborao deste trabalho, no qual me propus a fazer um

    mergulho na histria da educao especial, particularmente, nas trajetrias de

    alguns de seus personagens de destaque, aconteceram importantes

    movimentos nas rotas da pesquisa, e estas me levaram a um direcionamento

    da reflexo para a ao docente dos professores de educao especial, desde

    os seus primrdios, com o trabalho pioneiro de Jean Itard. Assim, novas

    perguntas emergem: Qual o papel de um educador especial em uma escola de

    ensino comum? Qual hoje o foco das suas aes? As discusses, reflexes,

    e, s vezes, at enfrentamentos, concentram-se em quais aspectos?

    Vou percebendo que o foco principal da pesquisa, nesse momento,

    dirige-se ao docente que acontece no cotidiano das escolas. ela que

    possibilita ou no, a aprendizagem e permanncia dos alunos com

    necessidades educativas especiais. Reiteradas vezes, os professores do

    ensino comum trazem questes como: De que maneira se ensina um aluno

    com deficincia mental, por exemplo? Ele aprende? Qual o diagnstico?

    Esse aluno precisa de ateno individual? Como posso dar a ateno da

    qual ele precisa, com mais trinta para atender?

    Tudo isso me leva a pensar no papel do educador especial nesse

    contexto, em que muitas crenas relativas s pessoas com deficincia

    precisam ser desmistificadas para possibilitar o investimento do professor na

    aprendizagem dos seus alunos.

    Nesse sentido, conhecer e refletir a respeito das obras dos quatro

    personagens pode contribuir para a reflexo a respeito do deslocamento que a

  • 17

    educao especial vem fazendo, afastando-se do paradigma mdico e

    voltando-se para aquele educacional e procurando direcionar sua produo

    terica, bem como sua ao, de forma a favorecer a aprendizagem dos alunos

    com necessidades educativas especiais.

    Esse processo dinmico de reflexo, pesquisa, definio de rumos,

    novas reflexes e novas pesquisas deram origem presente tese.

  • 18

    2 SITUANDO A PESQUISA

    Ser que podemos tolerar, e mesmo experimentar, o sentimento de orfandade que advm da perda de certezas, da vertigem produzida pelas rupturas nos modelos pr-estabelecidos, do embate com a realidade que turbulncia, perturbao, desordem, convvio com a diferena, num equilbrio sempre provisrio, mvel, multifacetado, complexo? (Eizirik, 2008, p. 22).

    O movimento pela educao inclusiva vem provocando, no mundo e no

    Brasil, um importante debate, no apenas no ensino comum, mas, tambm, na

    prpria educao especial, uma vez que coloca em discusso as concepes a

    respeito do tipo de atendimento a ser oferecido aos alunos com necessidades

    educativas especiais, a capacidade de aprendizagem destes sujeitos, o

    atendimento com enfoque preponderantemente clnico centrado nas faltas, nos

    limites, entre outros aspectos. Alm do questionamento a crenas e a prticas,

    essa perspectiva prev a criao de uma rede de apoios que d suporte ao

    pedaggica na escola e, tambm, a formao dos docentes orientada para a

    incluso escolar.

    Nessa perspectiva, o foco se desloca das deficincias ou limitaes que

    o sujeito pode apresentar, para as respostas que a escola vai desenvolver no

    sentido de atender s necessidades do mesmo. Dessa forma, toda a escola

    passa a estar implicada nesse processo, no ficando mais restrito educao

    especial, que se constituiu historicamente como um ramo da educao.

    Percebo, no cotidiano do meu trabalho e em espaos como cursos e

    seminrios relativos a esta rea, que muitos educadores especiais sentem hoje

    uma espcie de esvaziamento de suas possibilidades de atuao, como se, a

    partir da incluso escolar, a educao especial, entendida como modalidade de

    ensino, no mais seria necessria e, dessa forma, deixaria de existir. Isso gera

    uma srie de efeitos, entre eles, movimentos de resistncia incluso escolar

    dentro da prpria educao especial ou a diminuio progressiva da procura

  • 19

    pelos cursos de formao nessa rea e, consequentemente, a extino dos

    mesmos.

    Paradoxalmente, nos trabalhos publicados a respeito da temtica da

    educao inclusiva, fica clara a valorizao da educao especial na rede de

    apoio que deve ser constituda para viabilizar, no apenas o ingresso dos

    alunos com necessidades educativas especiais no ensino regular, mas,

    igualmente, para garantir sua efetiva aprendizagem e permanncia na escola.

    Em documentos como a Declarao de Salamanca (1994), a Lei de

    Diretrizes e Bases n 9394, de 1996, a Resoluo do Conselho Nacional de

    Educao/Cmara de Ensino Bsico, n 02/2001, a Poltica Nacional de

    Educao Especial na Perspectiva da Educao Inclusiva de 2008, tambm

    destacam a importncia do trabalho a ser realizado pelo professor de educao

    especial dentro da escola de ensino comum. A educao especial passa a

    estar presente, de maneira transversal, em todas as modalidades e nveis de

    ensino, e a necessidade do apoio do professor especializado em educao

    especial frequentemente reiterada em publicaes da rea. Sua ao,

    entretanto, tem sido redimensionada, tomando um espao de atuao mais

    ampliado, no ficando restrito ao trabalho junto ao aluno, mas sim, envolvendo

    a colaborao com os educadores do ensino comum, assim como com as

    famlias dos alunos.

    Entre os autores que tm valorizado essa temtica, destaco neste

    momento, alguns que explicitam a tendncia de valorizao do apoio do

    educador especial junto ao aluno, bem como ao trabalho dos professores do

    ensino comum.

    Boneti (1996) discute a dificuldade existente em relao incluso de

    crianas com deficincia intelectual3, especialmente daquelas com deficincia

    severa. Ressalta que a integrao escolar pressupe a existncia de servios

    educacionais especiais destinados a contribuir para o melhor desempenho

    escolar das crianas e defende que os servios e os profissionais

    especializados devem estar dentro da escola, implicados com esta como um

    todo.

    3Expresso empregada pela autora no referido texto.

  • 20

    No livro Linsegnante di sostegno4, Piazza (1999) apresenta e analisa

    detalhadamente o importante papel do professor especializado em educao

    especial nos processos inclusivos. Tomando como referncia o contexto

    italiano, no qual as polticas de incluso so uma realidade desde a dcada de

    70, o autor refere-se ao suporte ao aluno com necessidades educativas

    especiais em sala de aula e ao papel do professor de educao especial como

    um mediador didtico junto aos demais professores, sendo que ele est

    alocado na escola de ensino comum e faz parte do coletivo de professores

    envolvidos com os alunos. Piazza (1999) d significativo destaque

    importncia do trabalho em rede e ao considervel papel do professor

    especializado no fomento da ligao entre escola e comunidade. Para o autor:

    O futuro da profisso do professor especializado coloca-se de um modo diverso e novo. Dever estar em condies de ligar a instituio escola com a comunidade de modo a ativar entre estes elementos a sustentao de uma relao contnua e significativa. Trata-se de abrir um papel a um trabalho mais amplo no interior da escola e fora da escola, no territrio. (p.75. Minha traduo)

    Esta mentalidade de rede vai levar o professor de apoio5 a pensar nos

    problemas associados a usurios em situao de desvantagem no mais como

    disfunes da natureza ou da essncia constitutiva de uma pessoa, mas em

    termos relacionais, como insuficincia da rede de relaes dentro da qual se

    movem todas as pessoas envolvidas.

    Tambm Sanches (1996), ao analisar a evoluo da educao

    especial no contexto de Portugal, destaca a necessidade de apoios e

    complementos educativos no cotidiano do professor para atender as

    necessidades educativas dos alunos, dando nfase ao seu papel

    essencialmente pedaggico e alertando para que o mesmo no sirva de

    substituto do psiclogo ou do assistente social. A autora tambm se refere a

    esse profissional como professor de apoio.

    Considerando as perspectivas anunciadas pelos contextos italiano e

    portugus a respeito da idia de necessidade do apoio especializado por parte

    do professor de educao especial nos processos inclusivos, uma decorrncia

    4 O professor de apoio

    5 No referido livro, Piazza apresenta detalhadamente o trabalho do educador especial como

    professor de apoio.

  • 21

    possvel se pensar, do ponto de vista disciplinar, em formas de atuao

    menos circunscritas a um mbito especfico, mas sim, envolvendo uma

    abordagem voltada para a interdisciplinaridade.

    A esse respeito, Thomas Skrtic (1996), no texto La crisis en el

    conocimiento de la ducacion especial: una perspectiva sobre la perspectiva,

    aborda a questo da complexidade dos problemas que a educao especial

    enfrenta hoje, considerando indispensvel a colaborao interdisciplinar entre

    os professores do ensino comum e aqueles da educao especial, entre os

    profissionais da educao, bem como dos outros servios relacionados.

    Carvalho (2000) vai tambm fazer referncia necessidade da criao

    de servios de apoio especializado, bem como previso dos mesmos na LDB

    9394/96. Ao abordar a temtica das barreiras existentes na escola, tanto fsicas

    quanto atitudinais, a autora considera indispensvel a colaborao entre ensino

    comum e especial e, ao falar sobre a presena da educao especial na ltima

    LDB, destaca a indispensabilidade da interlocuo entre todos os professores

    envolvidos com o aluno.

    Assim, possvel perceber, como foi apontado anteriormente, a

    valorizao do papel da educao especial no processo de construo de uma

    escola que promova o crescimento e a aprendizagem de todos os seus alunos.

    Voltar o olhar para a atuao desse profissional da educao especial,

    cuja formao e atuao tm sido marcadas por movimentos contraditrios de

    manuteno do enfoque nas deficincias ou de ruptura com prticas centradas

    nas mesmas, fez emergir questes que me guiaram na pesquisa e na

    construo deste trabalho.

    2.1 QUESTES QUE ORIENTARAM A PESQUISA

    Por que a educao especial, entendida como modalidade de

    atendimento educacional s pessoas com deficincias, vai iniciar na

    medicina, por meio de experincias inovadoras de jovens mdicos-

    educadores?

  • 22

    Apesar de a educao especial iniciar associada medicina, por que

    seus pioneiros paulatinamente vo se afastando dos pressupostos

    clnicos e passam a direcionar suas prticas para a educao, para

    os aspectos pedaggicos?

    Como foram sendo delineadas as caractersticas da atuao

    profissional do professor especializado, dos primrdios do sculo XIX

    at nossos dias?

    De que forma as obras de Jean Itard, Edouard Sguin, Maria

    Montessori e Janusz Korczak, que so apresentadas na presente

    tese, podem contribuir para o campo da educao especial,

    considerando-se os novos contextos e as novas demandas que se

    impem diante da perspectiva da incluso escolar?

    Que pontos de ruptura e de continuidade podem ser identificados nas

    propostas pedaggicas construdas pelos quatro personagens

    apresentados na tese e suas possveis contribuies para a atuao

    do professor de educao especial?

    2.2 OBJETO DE ESTUDO

    A presente tese tem como objeto de estudo a ao docente na rea da

    educao especial e a constituio histrica de um conjunto de saberes e

    prticas que caracterizaram, e que ainda caracterizam, a atuao profissional

    dos professores que atuam junto a pessoas com deficincia. Com base nos

    elementos caracterizadores dessa ao e nas relaes que a associam s

    proposies de estudiosos pioneiros, que transitaram da medicina para a

    educao, a tese busca a compreenso relativa s aes no mbito da

    docncia, com base nos efeitos dessa transio, suas manifestaes no atual

    momento histrico e eventuais sinalizaes para um futuro da ao docente

    ligada rea da educao especial, considerando-se as transformaes que

  • 23

    vm ocorrendo na educao de maneira geral, assim como na educao

    especial.

    2.3 TESE

    A perspectiva educacional inclusiva demanda transformaes na ao

    docente do professor de educao especial, com uma atuao voltada para a

    ao prioritariamente pedaggica e centrada nas aprendizagens dos alunos. O

    resgate da histria da educao especial, assim como de personagens

    histricos que fizeram, na sua trajetria de vida, o deslocamento da medicina

    para a pedagogia, pode possibilitar a compreenso das recentes alteraes

    que envolvem o professor especializado em educao especial, minimizando

    os aspectos clnicos de sua atuao e priorizando aqueles pedaggicos.

    As trajetrias de alguns mdicos que voltaram seus estudos e

    trabalho(s) para as pessoas com deficincias marcaram profundamente o incio

    da educao especial. A anlise e a reflexo a respeito das trajetrias de

    mdicos-pedagogos como Jean Itard, Edouard Sguin, Maria Montessori e

    Janusz Korczak podem auxiliar na compreenso do processo de constituio

    da prpria educao especial a partir do sculo XIX, assim como na anlise de

    perspectivas de interveno e de caractersticas de um tipo de ao

    profissional.

    2.4 CAMINHOS METODOLGICOS

    A presente pesquisa caracteriza-se como um trabalho de carter terico,

    cuja proposta examinar atentamente a histria da educao especial,

    enfocando especialmente a ao do professor especializado nessa rea,

    analisando e refletindo sobre seu papel na educao das pessoas com

    necessidades educativas especiais desde seu surgimento at o momento atual,

    frente perspectiva da incluso educacional.

  • 24

    A reviso bibliogrfica considerou a produo terica na rea da

    educao e, particularmente da educao especial, buscando contemplar a

    leitura e a anlise de materiais (livros, artigos, teses e dissertaes) que

    abordam a identificao dos alunos com rendimento considerado abaixo de um

    desempenho mdio, tendo em vista a ampliao da escolarizao, o

    atendimento educacional dirigido s pessoas com deficincia (particularmente

    a deficincia mental) ao longo da histria e a constituio de um conhecimento

    pedaggico relativo interveno junto a tais pessoas.

    A busca de materiais procurou rastrear a produo acadmica em torno

    da temtica relativa ao professor especializado em educao especial,

    referente ao seu surgimento (a partir do sculo XIX), constituio da

    necessidade da existncia de um professor detentor de um saber especfico

    para ensinar alunos considerados deficientes, s mudanas em sua atuao

    at o momento atual.

    A forma escolhida para apresentar e analisar a constituio da educao

    especial e sua evoluo foi a apresentao da trajetria profissional de jovens

    mdicos que se tornaram educadores, cujos trabalhos inovadores voltaram-se

    ao atendimento daquelas pessoas consideradas desviantes, ineducveis, fora

    dos padres e, portanto, excludas de espaos e servios existentes nas

    sociedades. As trajetrias profissionais de cada um deles podem ilustrar o

    movimento que a educao especial vem fazendo, afastando-se de

    pressupostos mdico e aproximando-se da ao docente voltada para o

    desenvolvimento e a aprendizagem dos sujeitos com necessidades educativas

    especiais. Assim, so apresentadas as obras de quatro personagens de

    destaque na educao, observando uma seqncia cronolgica: Jean Itard,

    Edouard Sguin, Maria Montessori e Janusz Korczak.

    A partir do delineamento dessa forma de abordar a temtica, foi iniciado

    novo rastreamento das obras escritas por esses educadores, bem como de

    produes que abordassem suas vidas, os estudos e as experincias por eles

    desenvolvidos, dando preferncia aos textos de suas prprias autorias.

    A tese estrutura-se em oito captulos. O primeiro uma breve

    apresentao do meu percurso como professora e pesquisadora, e o segundo,

    trata dos aspectos metodolgicos que nortearam a construo deste trabalho.

  • 25

    No terceiro captulo so apresentados aspectos histricos relativos rea da

    educao especial e ao professor que tem se ocupado do ensino das pessoas

    com deficincias.

    Os captulos quatro, cinco, seis e sete, apresentam a vida, a obra, bem

    como as produes de Jean Itard, Edouard Sguin, Maria Montessori e Janusz

    Korczak, respectivamente.

    Finalmente, no captulo oito, feita a anlise de aspectos comuns entre

    as suas obras nesse deslocamento da medicina em direo educao e de

    pontos de sintonia relativos a uma ao docente que prioriza uma abordagem

    pedaggica em detrimento daquela clnica, que caracterizou a educao

    especial por muito tempo.

  • 26

    3. EDUCAO ESPECIAL: ASPECTOS HISTRICOS

    Mas a est o desafio. Educar para a tolerncia adultos que atiram uns nos outros por motivos tnicos e religiosos tempo perdido. Tarde demais. A intolerncia selvagem deve ser, portanto, combatida em suas razes, atravs de uma educao constante que tenha incio na mais tenra infncia, antes que possa ser escrita em um livro, e antes que se torne uma casca comportamental espessa e dura demais. (Umberto Eco, 2002, p.117).

    A constituio de uma rea do conhecimento uma construo

    histrica, permeada por fatores sociais, polticos e econmicos, que acontece

    em um contexto histrico e que sofre a influncia de todos os aspectos ali

    presentes.

    Considero que voltar o olhar para a histria da educao especial se faz

    necessrio para possibilitar a compreenso dessa rea, dos seus aspectos

    caracterizadores, dos seus conhecimentos e das suas prticas, viabilizando o

    emergir de aspectos atuais e permitindo o estabelecimento de pontos de

    conexo com um conjunto de aes, caracterizador da docncia junto a

    pessoas com deficincias, em uma abordagem pedaggica.

    Inicio a apresentao e a anlise dessa trajetria histrica da educao

    especial a partir do sculo XIX, por entender que se trata do perodo histrico

    mais significativo para desenvolver a temtica em pauta, uma vez que foi a

    partir desse sculo que comearam a surgir obras mais expressivas, com

    registros estruturados, a respeito de estudos, experincias e propostas mais

    sistematizadas de trabalho envolvendo a educao de pessoas com deficincia

    e em situao de risco.

    Autores como Pessotti (1984), Bueno (1993) e Mazzotta (1999), entre

    outros, indicam o final do sculo XVIII, como o incio do atendimento

    educacional para pessoas deficientes, com o surgimento de instituies

    especializadas para surdos e cegos. Essas instituies ofereciam

  • 27

    escolarizao queles cujas deficincias os impediam de usufruir de processos

    regulares de ensino, mesmo sendo estes ainda muito restritos. As deficincias

    sensoriais foram as primeiras a receber intervenes educacionais especficas,

    visando, principalmente, a garantir a comunicao dessas pessoas. Tratavam-

    se de iniciativas isoladas, sem uma proposta pedaggica estruturada.

    Ruchat (2003) afirma que a histria da educao especial plural,

    transdisciplinar, interdisciplinar, no podendo, por isso, estar inscrita em uma

    lgica disciplinar, tanto no sentido de disciplina acadmica, quanto de ordem. A

    autora considera que a histria dessa rea existe de fato, com os seus

    pesquisadores, suas problemticas, suas associaes especficas e suas

    publicaes, e que se constituiu a partir de questionamentos, constantemente

    atravessada por paradoxos, tais como: ajudar e obrigar, educar e punir,

    proteger e disciplinar, controlar e conhecer, integrar socialmente e excluir

    individualmente, especificar e generalizar (Traduo nossa, 2003, p. 156).

    Afirma, ainda, que as obras dos seus pioneiros alimentam, por meio de suas

    aes e de seus discursos, a constituio desse enredo.

    Ainda referindo-se histria da educao especial, Ruchat (op.cit.)

    avalia que a mesma pertence a uma realidade construda, relativa, arbitrria e

    simblica, que revela a histria das classificaes, das noes e dos conceitos

    relacionados infncia-problema e destaca:

    A histria da educao especial interroga, mais que toda outra histria, a relao entre centro e margens, entre normas e desvios, onde as distncias variam de acordo com os perodos e as condies econmicas, polticas e sociais. (Traduo nossa, Ruchat, 2003, p.161).

    Pessotti (1984) afirma que, no incio do sculo XX, com a ampliao dos

    processos de escolarizao, era possvel observar um aumento no interesse

    pelas limitaes associadas s deficincias, particularmente deficincia

    mental, concebida, a partir de ento, como uma condio que impe restries

    escolarizao, sendo que o conhecimento difundido nesse momento histrico

    era dirigido a prescrever tratamentos, j denominados de educao especial. O

    referido autor destaca a palavra especial, considerando, de maneira crtica, que

  • 28

    era realmente especial para proteger a sociedade e reduzir os custos da

    manuteno pblica ou familiar do deficiente mental. (p.172).

    Chauvire e Plaisence (2003) afirmam que entre os estudiosos que se

    ocuparam da infncia anormal, Binet e Simon deram uma nova forma

    questo da educao especial na primeira dcada do sculo XX. Para os

    referidos autores, preciso destacar uma distino que se sobressaiu a partir

    desse perodo, que foi entre os atrasados, que iriam para os asilos e aqueles

    que frequentariam a escola. A ateno voltou-se somente para os sujeitos que

    teriam possibilidade de ingressar na escola, pois os dois estudiosos no

    consideravam necessrio investir no trabalho com aqueles que eram vistos

    como ineducveis, ficando ento a cargo dos mdicos. Com o emprego da

    escala mtrica dos estados inferiores de inteligncia (como foi denominada),

    aconteceu um recrutamento sistemtico6, no interior das escolas primrias,

    daqueles alunos considerados como passveis de progressos, para serem

    includos em classes denominadas de aperfeioamento. Dessa forma, as

    classes e as escolas especiais tornaram-se as instituies intermedirias entre

    o hospital e as classes comuns. O trabalho nessas instituies era orientado

    para os trabalhos manuais e os exerccios repetitivos, prticas muito comuns

    ainda hoje em escolas especiais.

    preciso considerar que, efetivamente, Alfred Binet, no incio do sculo

    XX, contribuiu no campo da psicologia com a psicometria, fazendo com que a

    deficincia mental deixasse de ser alvo especfico da medicina e se tornasse,

    tambm, atribuio da psicologia como questo terica (Pessotti, 1984). Mais

    tarde, porm, as escalas mtricas de inteligncia passaram a ser utilizadas

    para classificar (com o consequente efeito estigmatizador) aquelas crianas

    cujas capacidades intelectuais eram consideradas abaixo da mdia e, por isso,

    precisavam de uma educao diferenciada. A abordagem psicomtrica tornou-

    se referncia no diagnstico da deficincia mental e, ainda hoje, tanto em

    escolas especiais quanto naquelas de ensino comum, possvel verificar

    6 A esse respeito encontra-se uma anlise pormenorizada em STEPHANOU, Maria. Tratar e educar: discursos mdicos nas primeiras dcadas do sculo XX. 2 vol. Porto Alegre, 1999. Tese de doutorado (Doutorado em educao) UFRGS, Porto Alegre, 1999.

  • 29

    movimentos dessas instituies para agrupar os alunos conforme os resultados

    de avaliaes psicodiagnsticas ou critrios como idade mental.

    Esse movimento de identificao e classificao das crianas com

    rendimento aqum daquele considerado o ideal acontece, no por acaso,

    simultaneamente ao processo de democratizao do acesso escolarizao. A

    educao escolar, que antes era privilgio de pequena parcela da populao,

    na maioria dos pases, comea a ser ampliada de maneira expressiva nos

    sculos XVIII e XIX, na Europa, e, no Brasil, isso aconteceu em meados do

    sculo XX. O direito escolarizao era uma das exigncias relativas ao fim

    dos privilgios da nobreza, em meio a um conjunto de reivindicaes que foi

    desencadeado pela burguesia nas sociedades industriais do sculo XVIII,

    sendo que o modelo mais emblemtico foi aquele implantado a partir da

    Revoluo Francesa, em 1789. (Bueno, 1993). Com um nmero

    significativamente maior de alunos de todas as parcelas da populao logo

    comearam a receber destaque aqueles que no se enquadravam no padro

    de normalidade estabelecido para um aluno.

    Em relao identificao desses alunos, Muel (1981) reitera ainda que,

    enquanto a instruo escolar era restrita a uma pequena parcela da populao,

    os mesmos passavam despercebidos. Os indisciplinados eram expulsos e os

    atrasados eram ignorados. Na medida em que os pases ampliaram a

    escolarizao para toda a populao, esse tipo de aluno passou a frequentar

    a escola e a inquietar professores e administradores escolares, tornando-se um

    problema para o qual era preciso encontrar uma soluo.

    Ribeiro (2006) afirma que o fenmeno social da escolarizao na

    sociedade contempornea tomou a forma de um projeto poltico que objetivava

    a sua universalizao. Esta, porm, no aconteceu at o sculo XIX, uma vez

    que era condenada pelos setores mais conservadores da sociedade e,

    tambm, por representar uma ameaa em termos de transformao social.

    somente no sculo XX que so implementadas polticas com vistas

    universalizao e como efeito de alguns fatores como:

    (...) da ao de foras e agentes sociais novos, como as classes sociais em luta, os Estados Nacionais e seus interesses em promover a escolarizao, a acelerao das mudanas produtivas, a importncia do conhecimento cientfico, a valorizao da escola como promotora da educao de trabalhadores, a luta emancipatria da mulher, a

  • 30

    descoberta da criana e da pesquisa psicolgica. Nem por isso, a escola e a escolarizao tm significado uma experincia exitosa e isenta de crise. (2006, p.54).

    A soluo encontrada para atender esses alunos e, principalmente, para

    que sua presena nas salas de aula no prejudicasse a aprendizagem dos

    demais foi a criao de espaos separados como as classes especiais. Assim,

    houve uma significativa expanso da educao especial, na medida em que

    esta passou a se ocupar tambm de crianas com problemas antes no

    identificados, como aquelas com deficincia mental considerada leve e com

    deficincias fsicas, as portadoras de distrbios de personalidade, de

    aprendizagem, de linguagem, aquelas consideradas desajustadas sociais e,

    por fim, as superdotadas. (Bueno, 1993).

    No Brasil, a educao especial teve pouqussima expresso at a

    metade do sculo XX. Porm esse descaso com a educao das pessoas

    identificadas como deficientes reflete o processo que aconteceu tambm com a

    educao da maioria da populao. Como j foi afirmado anteriormente,

    durante muito tempo o acesso educao foi muito restrito. Na medida em que

    o Brasil foi um pas essencialmente agrrio at o princpio do sculo XX, com

    cultivo ainda feito base de instrumentos rudimentares, no era preciso que a

    populao fosse alfabetizada. Convm acrescentar que nesse meio rural, no

    alfabetizado, onde vivia a maior parte da populao do pas at a primeira

    metade do sculo XX, muitas pessoas com deficincia ou passavam

    despercebidas ou podiam desempenhar muitas das atividades daquele meio.

    Talvez isso possa explicar, em parte, porque as primeiras instituies

    especializadas destinaram-se a cegos e surdos, uma vez que essas

    deficincias poderiam ter efeitos mais significativos na vida produtiva e de

    relaes dos sujeitos naquele perodo.

    Sobre a educao especial no Brasil, Jannuzzi (2004) relata que esta

    acompanhou o pequeno desenvolvimento da educao da populao em geral

    e a mesma quase no se manifestou no pas, a no ser por iniciativas isoladas,

    espalhadas pelo territrio nacional. Surgiram poucas instituies educacionais

    e a autora afirma que no encontrou escritos sobre a educao dos deficientes,

    referente ao perodo que vai do Brasil imperial ao comeo do republicano.

  • 31

    Embora pouco expressiva e segregadora, Jannuzzi (op.cit.) analisa que

    a educao especial propiciou uma ateno mais adequada ao aluno com

    prejuzos mais significativos. Nesse processo, ela identifica dois movimentos

    opostos:

    De um lado a continuao da separao e, mais do que isso, a patenteao pungente da diferena. De outro lado, essa prpria escola especial tornou-se uma alternativa que, de alguma maneira, viabilizou, na poca, uma participao mais efetiva dos deficientes na vida cotidiana, j que dispensava um ensino mais particularizado e uma ateno mais constante sobre o desenvolvimento dessas crianas. (p.66).

    Certamente possvel pensar nesse efeito. Todavia, a estigmatizao

    decorrente em relao aos alunos da educao especial foi e ainda muito

    significativa. Tambm em termos quantitativos, as escolas e classes especiais

    criadas no Brasil atenderam apenas uma pequena parcela da populao

    identificada para essa modalidade de ensino.

    Focalizando tambm o aspecto acima, Bueno (1993) analisa que ao

    mesmo tempo em que democratizou o acesso das crianas com deficincia

    escola,

    ... o percurso histrico da educao especial respondeu a uma srie de interesses que podem ser assim sintetizados: crescente privatizao, quer seja do ponto de vista do nmero de atendimentos oferecidos, quer pela influncia que essas instituies tm exercido; legitimao da escola regular no que tange a imputao do fracasso escolar s caractersticas pessoais da criana ou ao seu meio prximo, contribuindo para a manuteno de poltica educacional que dificulta o acesso ao conhecimento pelos membros das classes subalternas; incorporao de concepes sobre o conhecimento cientfico que se pretendem universais e transcendentes prpria construo scio-histrica e que trazem, no mbito da educao especial, conseqncias nefastas, na medida em que analisam as possibilidades dos deficientes ou excepcionais somente pela via de suas dificuldades especficas; por fim, a educao especial que nasce sob a bandeira da ampliao de oportunidades educacionais aos que fogem da normalidade, na medida em que no desvela os determinantes scio-econmico-culturais que subjazem s dificuldades de integrao do aluno diferente, na escola e na sociedade, serve de instrumento para a legitimao de sua segregao. (p. 98-99, grifo do autor).

    A partir da segunda metade do sculo XX, ocorreu no Brasil uma

    proliferao de entidades privadas e de carter filantrpico na educao

    especial. Ao lado dessas instituies, surgiram tambm centros de reabilitao

  • 32

    e clnicas privadas com bom nvel tcnico, dedicadas ao atendimento de

    crianas com deficincia de camadas privilegiadas economicamente. Esse

    processo foi mais intenso nas dcadas de 60 e 70, e essas entidades foram

    assumindo importncia cada vez maior na educao especial. medida que

    tais entidades foram organizando-se em federaes nacionais, passaram a ter

    influncia nas polticas pblicas de educao especial, na qualificao tcnica

    das equipes de algumas entidades assistenciais mais destacadas e tambm a

    estabelecer o padro de qualidade quanto educao das pessoas com

    deficincia. (Bueno, 1993).

    O fenmeno acima referido acabou por se constituir em uma estratgia

    poltica do governo para transferir a responsabilidade pelo ensino s pessoas

    com deficincia, com significativo repasse de verbas pblicas para essas

    instituies. Outro aspecto a ser destacado que a filantropia, em um pas

    com profundas desigualdades sociais como o Brasil, assume um papel na

    prestao de servios especializados.

    Na dcada de 70, essa modalidade de ensino ter um rgo especfico

    para regulamentar sua poltica educacional. Sobre esse perodo, autores como

    Ferreira (1998), Kassar (1998; 1999), Carvalho (2000) tambm apresentam

    anlise detalhada a respeito da legislao referente educao especial e das

    oscilaes que ocorreram nos rgos governamentais responsveis pelas

    polticas pblicas relativas rea e sua implementao, sobre as campanhas

    nacionais de educao de deficientes que aconteceram na referida dcada e,

    tambm, acerca do expressivo aumento das classes especiais.

    As referidas classes passaram a constituir-se como espao de

    atendimento aos alunos com dificuldades de aprendizagem, bem como com

    problemas de comportamento que ingressavam no ensino comum, em turmas

    regulares, sendo depois encaminhados para esses espaos. Entretanto, seu

    objetivo inicial era atender alunos com "deficincia mental leve7 e, assim como

    as escolas especiais, tornaram-se espaos de segregao devido

    precariedade nos critrios de identificao dos alunos para l encaminhados e

    ao tempo de permanncia dos mesmos.

    7 Classificao utilizada no referido perodo.

  • 33

    A partir do final da dcada de 80 e na dcada de 90, a influncia do

    movimento de integrao/incluso8 iniciado na Europa nos anos 60 comea a

    ganhar fora em diferentes pases, inclusive no Brasil. A discusso a respeito

    da educao inclusiva9 intensificou-se, e aconteceram eventos importantes nos

    quais participaram representantes governamentais, agncias internacionais,

    assim como organismos ligados a essa temtica, cujas deliberaes refletiram-

    se no campo educacional de todos os pases10 comprometidos em garantir uma

    escola para todos.

    Mrech (1997) destaca que, em 1988, atravs do UNICEF, foi instituda,

    em nvel mundial, a Conveno sobre os direitos da Criana, com o objetivo de

    atender as necessidades de todas as crianas. A partir dessa conveno a

    educao torna-se meta prioritria internacional. um marco na defesa dos

    direitos da criana no mundo, tendo servido de referncia para a elaborao do

    Estatuto da Criana e do Adolescente.

    Em 1990, ocorreu em Joimtien, na Tailndia, a Conferncia de

    Educao para Todos. Nesse evento, participaram governos de mais de 155

    pases, agncias internacionais, organizaes no-governamentais,

    associaes profissionais e personalidades da educao mundial. Todos os

    governos presentes assinaram uma Declarao Mundial de Educao para

    Todos e um Marco de Ao, pelo quais se comprometeram a garantir uma

    educao bsica de qualidade para crianas, jovens e adultos11. Quatro

    agncias internacionais patrocinaram essa conferncia: a UNESCO (

    Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura), o Unicef

    (Fundo das Naes Unidas para a Infncia), o PNUD (Programa das Naes

    Unidas para o Desenvolvimento) e o Banco Mundial.

    8 Sobre os diferentes usos dos termos integrao e incluso, possvel ver em Maselli e Di

    Pasquale (1997), Mantoan (1998;2004), Bueno (1999), Mrech (1998), Baptista (2003). 9 Sobre o histrico e fundamentos da perspectiva educacional inclusiva Bautista Jimnez

    (1997), Correia (1999), Stainback & Stainback (1999),Carvalho (2004) fazem apresentaes a anlises detalhadas e interessantes. 10 A respeito de processos de incluso em outros pases, ver Lintgration dans lducation prescolaire et lenseignement primaire: tudes de cas. UNESCO: Paris, 1999,

    11 Rosa Maria Torres, no livro Educao para Todos, faz uma interessante anlise a respeito

    das mudanas na educao bsica nos dez anos da Declarao Mundial de Educao para Todos.

  • 34

    Em 1994, a Declarao de Salamanca, que trata sobre Princpios,

    Polticas e Prticas na rea das Necessidades Educativas Especiais, buscou

    consolidar a orientao da Declarao Mundial de Educao para Todos,

    atravs da incluso tambm de minorias discriminadas, como as mulheres, as

    crianas de pases do Terceiro Mundo, os ciganos, os ndios entre outros. A

    proposta bsica dessa declarao a incluso de todas as crianas no ensino

    comum, independente de suas condies fsicas, sociais ou culturais. A

    presena desses alunos impe desafios importantes escola regular para

    promover no somente a integrao social dos alunos considerados com

    necessidades educativas especiais, mas a aprendizagem efetiva de todos.

    Maselli e Di Pasquale (1997) consideram que uma escola integradora

    deve estar em condies de atender as desvantagens e as dificuldades que

    podem ser evitadas, em relao a todos os alunos e no apenas queles

    identificados como portadores de deficincia. As referidas autoras destacam

    que, alm da presena da deficincia, so muitas as situaes que demandam

    ateno especial como: distrbios de aprendizagem, desvantagens scio-

    culturais, diferenas lingsticas e tnicas, dificuldades acidentais.

    Essa perspectiva inclusiva vai de encontro ao modelo de escola

    homogeneizadora que conhecemos, uma vez que para poder trabalhar com

    essa diversidade em sala de aula, preciso considerar diferentes ritmos,

    formas e modalidades de aprendizagem, sem perder de vista o coletivo. No

    trabalho cotidiano, temos visto que esse processo complexo e envolve

    mudana de muitos aspectos, como aqueles referentes s condies fsicas

    dos espaos escolares, flexibilizao do currculo, apoios aos professores,

    inovao pedaggica, assim como a formao inicial e continuada dos

    mesmos.

    Porm os desafios no esto colocados apenas para o ensino comum. A

    educao especial tambm se v diante de dilemas e desafios que emergem

    em funo da incluso escolar, com novas demandas, tanto em termos do

    conhecimento quanto de ao, novos contextos para a atuao dos

    educadores e novas perspectivas na educao.

    Considerando a atual legislao educacional brasileira (Lei de Diretrizes

    e Bases n 9394 de 1996; Resoluo do Conselho Nacional de

  • 35

    Educao/Cmara de Educao Bsica N 2, de 11 de setembro de 2001),

    entende-se que a educao especial um modalidade escolar que perpassa

    todos os nveis de ensino, como a educao infantil, ensino fundamental e

    mdio. Destaca-se no referido documento, o papel do professor especializado

    em educao especial, que aparece, de maneira expressiva, no apoio no s

    ao aluno, mas tambm aos seus professores do ensino comum.

    Mais recentemente (em janeiro de 2008), foi elaborada a Poltica

    Nacional de Educao Especial na Perspectiva da Educao Inclusiva, tendo

    como objetivo de

    (...) assegurar a incluso escolar de alunos com deficincia, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotao, orientando os sistemas de ensino para garantir: acesso ao ensino regular, com participao, aprendizagem e continuidade nos nveis mais elevados; transversalidade da modalidade de educao especial desde a educao infantil at a educao superior; oferta do atendimento educacional especializado; formao de professores para o atendimento educacional especializado e demais profissionais da educao para a incluso; participao da famlia e da comunidade; acessibilidade arquitetnica, nos transportes, nos mobilirios, nas comunicaes e informao; e articulao intersetorial na implementao das polticas pblicas. (Brasil, 2008. p.14).

    Essa Poltica destaca o atendimento educacional especializado

    compreendido em um sentido abrangente que identifica, elabora e organiza

    recursos pedaggicos e de acessibilidade, priorizando a plena participao dos

    alunos respeitando suas especificidades. (Brasil, 2008).

    Esse atendimento deve estar associado com a proposta pedaggica da

    escola regular, visando a apoiar o desenvolvimento dos alunos. A oferta desse

    servio obrigatria, devendo o aluno realiz-lo no contraturno da classe

    comum, nas dependncias da prpria escola ou em centros especializados.

    Com relao idia de no necessidade da educao especial, Boneti

    (1996) afirma que a incluso no elimina os servios educacionais especiais.

    Ao contrrio, a idia garantir a sua existncia no interior da escola, mas com

    outro carter. Dessa forma, na medida em que a criana com necessidades

    educativas especiais faz parte da escola como um todo, o educador especial

    deve ampliar suas aes a todas as esferas da escola, no restringindo sua

    ao classe especial ou aos alunos do ensino especial. preciso que esse

    profissional esteja comprometido com a escola regular e seus desafios,

  • 36

    trabalhando junto com o professor que ali atua, na busca da promoo de um

    ensino que atenda no somente s necessidades especficas do aluno com

    deficincia, mas que envolva os interesses e peculiaridades de todo o grupo.

    possvel perceber que, desde o incio de sua constituio enquanto

    rea do conhecimento possuidora de saberes e prticas especficos, a

    educao especial vem passando por diversas transformaes, sendo que,

    nas ltimas dcadas do sculo XX, aconteceram mudanas bastante

    significativas. A procura por novas nomenclaturas, menos estigmatizantes, para

    fazer referncia aos sujeitos dos quais essa rea se ocupa, os avanos

    cientficos que possibilitaram novos entendimentos a respeito das deficincias,

    das sndromes e de seus efeitos, as mudanas nos critrios de identificao

    dessas pessoas, a paulatina diminuio da influncia do modelo mdico e, por

    outro lado, a ampliao da valorizao das intervenes educativas que

    considerem a pessoa em sua totalidade e que tenham um olhar mais voltado

    para suas possibilidades, suas potencialidades, assim como a crescente

    indicao de espaos educacionais integrados para a escolarizao das

    pessoas com deficincia, em detrimento dos espaos segregados. So

    mudanas que provocaram efeitos relativos ao campo terico e prtica da

    educao especial, envolvendo diretamente a atuao do professor dessa

    rea.

    3.1 ASPECTOS HISTRICOS A RESPEITO DO PROFESSOR DE

    EDUCAO ESPECIAL NO BRASIL

    Esse personagem vai surgindo aos poucos no campo da educao das

    pessoas com deficincia e, no mbito do presente estudo, o foco acentua-se

    naquelas com deficincia mental. Comea sua atuao subordinado

    autoridade do mdico, que era o profissional responsvel pelo diagnstico e

    pela indicao do tratamento adequado.

    A respeito da escolarizao do deficiente no Brasil, Jannuzzi (2004)

    relata que, aps a proclamao da Repblica, com a adoo do federalismo na

    Constituio de 1891, cada Estado poderia estruturar sua organizao escolar.

    Desta forma, alguns Estados, como So Paulo, Rio Grande do Sul e Rio de

  • 37

    Janeiro, deram impulso organizao escolar primria, aumentando para isso

    as suas verbas destinadas educao. Dessa forma, a organizao de escolas

    para deficientes tambm vai se desenvolver nesses Estados, mesmo que em

    nmero reduzido e aparece o discurso sobre o deficiente e sua escolarizao.

    Sobre seu atendimento, a autora afirma que:

    Profissionais diversos, como mdicos, psiclogos, professores, vo atuando na rea, estruturando no fim dos anos de 1920 a base de associaes profissionais que, de maneira ambgua e imprecisa, foram criando um campo de reflexo procura de um espao efetivo para a concretizao de sua ao pedaggica. (p. 24).

    Um dado bastante interessante trazido por Jannuzzi (2004) que existia,

    desde o Imprio, um servio ligado ao campo mdico e que, em alguns

    Estados, teve efeitos na educao do deficiente mental: o Servio de Higiene e

    Sade Pblica. Em So Paulo, esse setor originou a inspeo mdico-escolar

    que, em 1911, foi a responsvel pela criao de classes especiais e formao

    de pessoal para trabalhar com esses alunos.

    A anlise de literatura especializada indica que o diagnstico dos alunos

    considerados anormais era da responsabilidade do mdico, sendo que ele

    poderia ser auxiliado pelo pedagogo. Cabia ao mdico a orientao principal na

    educao dessas crianas. O pedagogo deveria ser formado em escola

    superior, por mestres vindos da Europa e Estados Unidos. Em alguns Estados

    como So Paulo, os mdicos foram os encarregados da organizao de

    classes para dbeis mentais, por meio do Servio de Higiene Escolar e

    Educao Sanitria, da seleo dessas crianas nas escolas e da soluo de

    todas as questes relativas anormalidade.

    Tambm possvel pensar que, por bastante tempo, no houve uma

    exigncia legal quanto formao do professor de alunos com algum tipo de

    deficincia. As pessoas interessadas na problemtica passaram a organizar-se

    em grupos que se valiam dos recursos existentes na poca, como a literatura

    vinda de outros pases (especialmente da Europa) onde essa modalidade de

    atendimento educacional j existia e possua maior produo terica.

    Jannuzzi (2004) faz referncia s escolas de aperfeioamento previstas

    pela Reforma do Ensino Primrio, de 15 de outubro de 1927 e criadas em So

    Paulo e em Minas Gerais. As escolas deste ltimo exerceram influncia na

  • 38

    educao do deficiente mental, uma vez que suas alunas prestaram

    assistncia tcnica s classes de retardados e organizaram a primeira

    associao para cuidar dessa educao, a Sociedade Pestalozzi.

    A partir da dcada de 1930, em Minas Gerais, destacou-se o trabalho de

    Helena Antipoff12, ligado Secretaria de Educao de Minas Gerais. Em 1931,

    Antipoff elaborou e implantou o sistema de classes homogneas no primeiro

    ano primrio. Havia as classes A, B, C, D e E, nas quais os alunos eram

    agrupados conforme seu QI13 (classes A, B E C). Nas classes especiais (D e E)

    os alunos eram divididos em retardados (mentais) e anormais (com anomalias

    de carter). Antipoff defendia um nmero reduzido de alunos por turma, assim

    como a adoo de tempos diferenciados nas diversas atividades

    desenvolvidas, priorizando as manuais e as sensoriais, empregando um

    percentual de tempo menor em propostas de leitura, escrita e clculos. Essas

    atividades eram denominadas pela autora como ortopedia mental.

    No h esclarecimentos quanto formao dos professores que

    atendiam essas classes especiais, mas, a partir da leitura dos registros

    resgatados por Jannuzzi (2004), pode-se inferir que os referidos alunos eram

    atendidos nessas classes (D e E), nas escolas regulares, por professores com

    a mesma formao que aqueles encarregados das outras turmas (A, B e C).

    Consta que foram utilizadas, como estratgias de formao, reunies

    frequentes na Escola de Aperfeioamento com as professoras das classes, a

    divulgao de mtodos para o trabalho com essas crianas por meio da

    Revista do Ensino14 e o estudo de fragmentos traduzidos do livro de Alice

    Descoeudres, A Educao da Criana Retardada.

    Mazzotta (1993) apresenta a reconstruo da trajetria da formao de

    professores de alunos com deficincia no Estado de So Paulo, no perodo de

    1955 a 1989, dividindo-o em duas etapas: de 1955 a 1972 e de 1972 a 1989.

    Conforme o autor, o primeiro perodo caracteriza-se pela estruturao de

    cursos regulares de especializao ps-normal, ou seja, cursos de nvel mdio.

    12

    Psicloga russa veio para o Brasil em agosto de 1929 para fazer parte de um grupo de psiclogos-professores trazidos da Europa por Francisco Campos (Minas Gerais) e que orientariam o trabalho realizado nas escolas deste Estado. Era colaboradora de Claparde, do Instituto Jean-Jacques Rousseau. 13

    Quociente Intelectual. 14

    Segundo consta em Jannuzzi (2004) esta publicao representava o rgo oficial da Secretaria de Educao de Minas Gerais e foi referncia por um importante perodo.

  • 39

    Era uma especializao do professor primrio ou normalista. A clientela bsica

    desses cursos era formada por professores normalistas, com ou sem

    experincia prvia no magistrio comum, candidatos com ou sem vnculo com

    a rede de ensino primrio estadual. No caso daqueles que tinham esse vnculo,

    ofereciam-se bolsas de estudos e/ou afastamento remunerado para

    especializarem-se no ensino de excepcionais. O segundo perodo enfocado

    por Mazzotta (1993) refere-se aos cursos de nvel superior para a formao do

    professor para o ensino de alunos com deficincia. O autor refere que, em

    1972, foi instalado no Estado de So Paulo o primeiro curso de formao de

    professores de excepcionais (rea de ensino de deficientes mentais) do pas,

    em nvel superior, como habilitao especfica do Curso de Pedagogia e isso

    deveu-se iniciativa da Faculdade Pestalozzi de Cincias, Educao e

    Tecnologia, da cidade de Franca (SP). Em relao clientela dos cursos

    superiores, compunha-se de candidatos que tivessem concludo o segundo

    grau15, em qualquer curso, regular ou supletivo.

    No Rio Grande do Sul, a Universidade Federal de Santa Maria tinha, j

    na sua fundao, h mais de quarenta anos, o objetivo de formar professores

    para atuar na rea da educao especial. (Naujorks, 2007). Inicialmente, essa

    formao se dava por meio de atividades de extenso, em coerncia com o

    processo de acelerao do desenvolvimento em marcha, com o Presidente

    Juscelino Kubistchek (cinquenta anos em cinco). Em maro de 1962,

    iniciavam as atividades da primeira turma do Curso de Extenso Universitria,

    para a formao de professores de deficientes auditivos, sendo que, em 1964,

    assumiu o carter de Estudos Adicionais, em parceria com a Secretaria de

    Educao e Cultura, do Estado do Rio Grande do Sul. A partir de 1972, o curso

    transformou-se em Habilitao do Curso de Pedagogia, do ento Centro de

    Cincias Pedaggicas, denominando-se Formao de Professores para

    Deficientes da udiocomunicao. Em 1976, foi criado o Curso de Educao

    Especial, na modalidade de licenciatura curta, para a formao de professores

    para deficientes mentais, sendo que mais tarde foi ampliado para licenciatura

    plena. Em 1982, a Universidade Federal de Santa Maria passou a contar com o

    15

    Denominao utilizada at a LDB de 1996 para o atual ensino mdio.

  • 40

    curso de Graduao em Educao Especial, com a oferta de duas habilitaes:

    deficincia mental e deficincias da audiocomunicao.

    Em relao formao na rea da educao especial em nvel superior,

    Bueno (1999) analisa que, por ter sido a mesma includa como habilitao de

    um curso que, em geral, tratou a formao docente como subproduto da

    formao do especialista, formava-se um docente especializado, mas com

    pouca formao como professor. Foram includas poucas disciplinas relativas

    s primeiras sries do ensino fundamental, permitindo, assim, que os

    professores do ensino especial se formassem sem nenhuma ou pouca

    experincia terico-prtica relativa docncia nesse nvel de ensino. Alm

    disso, essas habilitaes focalizaram as dificuldades especficas de

    determinada deficincia. Com isso, reforaram uma especificidade docente ao

    no considerar as relaes entre fracasso escolar e processos pedaggicos.

    Em relao ao nvel de formao, Bueno (1999) destaca que muitos

    aspectos da formao do professor especializado em educao especial16

    precisam ser repensados para efetivamente favorecer a incluso, pois sua

    competncia foi construda com base nas dificuldades dos alunos atendidos

    por esse profissional, havendo uma centralizao das atividades na

    minimizao dos efeitos especficos das diversas deficincias. O autor

    considera que a formao profissional dos professores especializados nas

    diferentes necessidades educativas especiais deve ter como meta o

    atendimento direto aos alunos com tais caractersticas, bem como o apoio ao

    trabalho desenvolvido pelos professores do ensino regular em suas salas de

    aula com essas crianas e adolescentes. Bueno observa que ainda por muito

    tempo ser necessrio o trabalho conjunto com os professores especializados

    e, mesmo que os sistemas de ensino atinjam elevado nvel de qualidade e

    preparao dos professores do ensino comum, sempre haver necessidade de

    educadores especiais, uma vez que estes devero responsabilizar-se pela

    formao daqueles e, tambm, porque sempre ser preciso levar em conta

    determinadas especificidades no que se refere aos alunos com necessidades

    educativas especiais. Acrescenta que no h justificativa para o fim da

    16

    Sobre a formao de professores em educao especial, ver tambm Mazzotta (1996), Denari (1996 e 2001) Oliveira (2004), Freitas (2001 e 2004), Ferreira (2004), Sobrinho & Reis (2004).

  • 41

    educao especial a partir da incluso, mas que este momento oferece a

    possibilidade para uma reviso crtica e radical de seus princpios,

    fundamentos e prticas.

    O incio da educao especial foi marcado por algumas rupturas que

    podem ser consideradas como inaugurais quanto compreenso dos quadros

    de deficincia e proposio de atendimento educacional s pessoas

    consideradas fora do padro de normalidade.

    A esse respeito, Gardou e Develay (2005), ao destacarem a importncia

    de alguns mdicos-educadores pioneiros como Jean Itard, Edouard Sguin,

    Maria Montessori e Janusz Korczak, afirmam que suas aes tiveram o papel

    de questionar o sentido das aprendizagens, a relao com o saber e com a lei:

    ...de atualizar a criatividade e o pioneirismo social de alguns educadores radicais que, ao longo da histria, estabeleceram a pedra angular da democratizao do saber e, atravs dela, do reconhecimento da humanidade e da cidadania para todos. Demonstraram, por actos, que a educao uma arma mais poderosa contra o desprezo e a segregao. (p. 31,32).

    Esses quatro personagens no acreditavam em constataes rgidas e

    apostavam nas possibilidades de evoluo de toda criana, repudiando

    propostas educativas que no desafiassem os sujeitos. Relativizaram as

    noes de insucesso ou de norma e os efeitos paralisantes dos pontos de vista

    quantitativos, alm de denunciarem as prticas de discriminao e de excluso

    que negam a cidadania aos mais vulnerveis. Consideravam que o acesso ao

    saber e a entrada na cultura universal so determinantes para a igualdade de

    oportunidades e a criao do vnculo social.

    A partir do captulo seguinte, abordarei a vida e a obras dos referidos

    autores, considerando seu importante papel na educao de pessoas com

    necessidades educativas especiais.

  • 42

    Lanado neste globo sem foras fsicas e sem

    ideias inatas, sem condies de obedecer por si

    s s leis constitucionais de sua organizao, que

    o chamam primeira posio do sistema dos

    seres, o homem s no seio da sociedade pode

    encontrar o lugar eminente que lhe foi assinalado

    na natureza, e seria, sem a civilizao, um dos

    mais fracos e menos inteligentes dos animais.

    (Itard, 2000, p.125).

  • 43

    4 JEAN-MARC GASPARD ITARD e a considerao de si

    Reconhecido mdico francs, este personagem merece destaque na

    histria da educao especial por ter sido o seu pioneiro. Ao desafiar a viso

    esttica e irreversvel existente na poca a respeito da idiotia17, por meio de

    sua experincia educativa com Victor, o selvagem de Aveyron, ao defender a

    tese de que o menino no era acometido por idiotia orgnica, mas que suas

    dificuldades e defasagens eram consequncia do isolamento em que vivera,

    Jean Itard d incio aos estudos a respeito das possibilidades de educabilidade

    das pessoas consideradas como idiotas.

    Itard nasceu em 24 de abril de 1774, em Oraison, no Vale de Durance,

    em uma famlia burguesa18, e foi educado em diversos colgios religiosos. Em

    1782 foi entregue aos cuidados de um tio, que era cnego na catedral da

    cidade de Riez, onde iniciou seus estudos. Deu continuidade aos mesmos em

    Marselha, com os padres do Oratrio (Malson, 1988). Inicialmente completa os

    estudos na rea financeira, pois seu pai pretendia que ele fosse bancrio.

    Malson (op.cit.) relata que Itard chegou a iniciar a atividade profissional nessa

    rea, mas que foi uma tentativa frustrada. Voltou ento para Riez, onde

    permaneceu por mais dois anos. Durante o perodo revolucionrio19, foi

    designado para trabalhar no hospital militar de Soliers e, apesar de no saber

    nada sobre medicina, apaixonou-se por esse trabalho. De acordo com a

    estrutura militar do perodo napolenico, estudou para prestar o concurso para

    cirurgio no Hospital Militar de Val-de-Grce e acabou por revelar-se um

    excelente profissional nessa rea.

    17

    No sculo XIX, o termo idiotia est presente na linguagem mdica e tambm na fala corrente e definia, de maneira geral, as pessoas que hoje so identificadas com deficincia mental. Era considerado um quadro orgnico, incurvel e sem possibilidades de educabilidade. As pessoas que recebiam esse diagnstico eram encaminhadas a asilos, onde permaneciam depositadas o resto de suas vidas. Assim, ser mantido o emprego deste termo como foi utilizado no perodo abordado no texto. 18

    Classe social que surge na Europa em fins da Idade Mdia, com o desenvolvimento econmico e o aparecimento das cidades, e que vai, gradativamente, infiltrando-se na aristocracia, e passa a dominar a vida poltica, social e econmica a partir da Revoluo Francesa, firmando-se no correr do sculo XIX. 19

    Referente ao perodo da Revoluo Francesa.

  • 44

    No que se refere a sua vida privada, quase no h informaes a

    respeito. Sabe-se que ele permaneceu solteiro e dedicou praticamente toda a

    sua vida ao trabalho no Instituto Nacional dos Surdos-Mudos20. Faleceu em

    1838, em Beau-Sjour, prximo a Paris. Em seu testamento, destinou uma

    parte significativa dos seus bens ao Instituto Nacional de Surdos-Mudos.

    (Canevaro e Gaudreau, 1989).

    Conforme afirmam Banks-Leite e Galvo (2000), em dezembro de 1800,

    Itard, que at ali atuara como mdico no Hospital Militar de Val-de-Grce (onde

    obteve bastante xito), foi convidado para trabalhar como mdico-chefe no

    Instituto Nacional de Surdos-Mudos. Essa mudana ocorreu depois que Itard

    prestou socorro, a pedido do Abade Sicard21, a um aluno dessa instituio que

    havia se acidentado. Corroborando essas informaes, Pessotti (1984) afirma

    que, aps brilhantes estudos, Itard assume o cargo de mdico-chefe do

    Instituto Nacional dos surdos-mudos22 aos 25 anos e logo se destaca tambm

    nessa rea. Champagny23, ministro do interior e protetor das cincias, ao tomar

    conhecimento do caso do menino selvagem, ordena que o mesmo seja levado

    a Paris, uma vez que reconhecia a importncia histrica e cientfica que

    poderia vir a ter o estudo a respeito do menino selvagem capturado na floresta

    de Aveyron. Alm disso, o ministro era conhecedor do prestgio profissional de

    Itard, bem como de sua habilidade como reeducador dos surdos-mudos.

    Assim, confia-lhe a tarefa de educar o menino, depois de o jovem mdico ter

    desafiado o diagnstico de Pinel, reconhecido mdico psiquiatra (alienista) da

    poca que, aps examinar o menino selvagem diagnosticou-o como idiota.

    20

    Tratava-se de uma escola especial que, a partir da Revoluo Francesa, passou a ser denominada Instituto Nacional. Havia tambm um Instituto Nacional para cegos. Antes da Revoluo eram denominados Institutos Imperiais. 21

    Abade Roch Ambroise Luccuron Sicard, nasceu em 1742 e morreu em 1822. Foi o sucessor do Abade LEpe (aps sua morte) na direo do Instituto Nacional dos Surdos-Mudos, em Paris, atuando de 1800 a 1820. Reformulou diversos aspectos do ensino e valorizou mais a participao dos surdos na constituio da lngua de sinais. Foi o primeiro a considerar que o papel de sintetizar os gestos manuais deveria caber aos usurios surdos como os primeiros interessados. (Reily &Reily, 2003) Autor de vrias obras sobre a educao dos surdos. 22

    Surdo-mudo era o termo utilizado para fazer referncia s pessoas com deficincia auditiva. Assim, ser mantido o termo enquanto estiver em consonncia com o contexto e o perodo histrico abordado no texto. No referido perodo, ainda era comum pessoas com essa deficincia serem consideradas tambm deficientes mentais. 23

    Nas consultas realizadas a respeito de Champagny, foram encontradas informaes de que ele ocupava o cargo de Ministro das relaes exteriores da Frana no perodo napolenico ou, mais comumente, como Ministro do Interior. Consta tambm que era admirador das cincias e mantinha-se informado a respeito.

  • 45

    possvel afirmar que a vida profissional de Jean Itard foi coroada de

    sucesso. Ainda jovem, alcanou reconhecimento e respeito da comunidade

    mdico-cientfica. Malson (op.cit.), ao abordar o cotidiano de Itard, relata que

    ele morava no centro de Paris. Pela manh, atendia a clientela particular e,

    tarde, trabalhava no Instituto Nacional dos Surdos-Mudos. Ao longo de sua

    carreira, abordou os mais variados problemas, como: hidropisia24, higiene,

    febres intermitentes e, principalmente, a educao oral. Em 1821, foi eleito

    membro da Academia de Medicina e publicou seu famoso Tratado das

    Doenas dos Ouvidos e da Audio, que obteve sucesso imediato. Malson

    (op.cit) afirma que Itard sentia-se bastante incomodado com o que ele

    classificava de pouco caso da cincia da poca para tudo o que se referia ao

    ouvido, pois mnimos tinham sido os avanos nos estudos sobre esse rgo.

    Um trabalho importante, escrito anteriormente ao seu Tratado, por um

    professor de anatomia de Bossuet, Dr. Duverney, datava ainda de 1683

    (Malson, op.cit.). Assim, ele resumiu antigos trabalhos descritivos, props

    classificaes, sugeriu numerosas tcnicas teraputicas novas, entre elas o

    cateterismo da Trompa de Eustquio. Indo contra a opinio do seu tempo (mais

    uma vez), defendia a ideia de que a surdez no tinha como causa nica a

    paralisia do nervo auditivo e, que, em muitos casos, a surdez no era total. Ele

    pde chegar a essa concluso a partir de exames sistemticos realizados com

    a utilizao do Acmero (instrumento por ele inventado). Dessa forma, no

    causa surpresa Itard ser considerado o