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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ANDREW YAN SOLANO MARINHO DO CIENTISTA AO ATIVISTA: OS PROBLEMAS DA CIÊNCIA DO TEXTO E UMA SOLUÇÃO REVOLUCIONÁRIA NA OBRA DE TERRY EAGLETON Natal, RN 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO

NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA

LINGUAGEM

ANDREW YAN SOLANO MARINHO

DO CIENTISTA AO ATIVISTA:

OS PROBLEMAS DA CIÊNCIA DO TEXTO E UMA SOLUÇÃO

REVOLUCIONÁRIA NA OBRA DE TERRY EAGLETON

Natal, RN

2014

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ANDREW YAN SOLANO MARINHO

DO CIENTISTA AO ATIVISTA:

OS PROBLEMAS DA CIÊNCIA DO TEXTO E UMA SOLUÇÃO

REVOLUCIONÁRIA NA OBRA DE TERRY EAGLETON

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, como requisito para a obtenção do título de

Mestre em estudos da linguagem, área de concentração:

Literatura Comparada.

Eixo temático: Literatura e memória cultural

Orientador: Prof. Dr. Gerardo Andrés Godoy Fajardo

Natal, RN

2014

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ANDREW YAN SOLANO MARINHO

DO CIENTISTA AO ATIVISTA:

OS PROBLEMAS DA CIÊNCIA DO TEXTO E UMA SOLUÇÃO

REVOLUCIONÁRIA NA OBRA DE TERRY EAGLETON

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a conclusão do

curso de Mestrado em Literatura Comparada.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________

Gerardo Andrés Godoy Fajardo

Orientador – UFRN

_________________________________________________________

Andrey Pereira de Oliveira

Examinador interno – UFRN

_________________________________________________________

Elri Bandeira de Souza

Examinador externo – UFCG

Natal, RN

2014

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A Jesus, por ter dado a outra face, por ter

vivenciado em meio aos ladrões, às

messalinas e aos leprosos e por ter sido

judiado pelos que libertou; as minhas

avós Marias e ao meu avô Vicente ( tutti

in memorian) e ao meu avô Expedito,

por terem concebido minha raison

d'être, meus pais; aos meus irmãos

Johnny e Louisianne; à toda família

Solano Marinho e CIA.; Ao Rhenoda e

Candel e Agregados; à todos amigos de

letras em Absoluto; à Lisane, meu

pathos.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Gerardo Andrés Godoy Fajardo, pelos ensinamentos e por

ter sido um entusiasta do meu trabalho.

Ao CNPq, pelo auxílio financeiro para a pesquisa e realização deste trabalho.

À Prof. Dra. Ana Canan, por iniciar-me na pesquisa acadêmica.

À Prof. Dra. Rosanne Araújo, por ter co-escrito o projeto deste trabalho.

Ao Prof. Dr. Andrey Oliveira, por ter feito-me ouvir falar em teoria da literatura.

A Joaquim Adelino, pela releitura vernácula.

À Prof. Sandra Erickson, por ter me ensinado poesia e um pouco mais.

Ao Prof. Bruce Stewart, pelo companheirismo em ilhas esmeraldinas e pelo intermédio

ao meu objeto de estudo.

À professora Dra. Janaína Weissheimer, em nome de todos servidores e funcionários da

UFRN e das letras; à minha parceira Rejane Medeiros, em nome de todos os colegas de

curso, que passaram por mim e contribuíram para que eu fizesse o mestrado antes do

tempo.

Ao próprio Terry Francis Eagleton, pela sua humildade e humor para com minha

pessoa.

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Totality is affirmed in the very movement

whereby it is denied, and represented in the

same language that denies it all possible

representation.

Fredric Jameson

As ideias não sagram, elas não sentem dor,

elas não amam.

V de Vingança

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RESUMO

O crítico literário Terry Eagleton obteve notoriedade no meio acadêmico ao ser

reconhecido intelectualmente com seu livro best-seller Teoria da Literatura: uma

introdução. Nesse livro, o autor inglês propõe, ousadamente, o fim da literatura e da

crítica literária. Contudo, anos antes, Eagleton propôs, no livro Criticism and Ideology

(1976), um sistema científico de análise do texto literário aparentemente menos radical,

tanto em teoria quanto no método, que sua proposta teórica posterior. Com base nisso, o

objetivo dessa dissertação é apresentar o método inicial do crítico literário inglês,

explicitar os motivos que o levaram a abandonar seu projeto inicial – de elaborar um

método de análise do texto literário sobre uma ótica científica marxista – e a propor, nos

anos seguintes, em seu livro mais famoso e em outros, uma visão revolucionária, que

iria muito além de análises textuais e faria os textos literários terem uma intervenção

prática na sociedade. Por fim, explicitaremos qual seria sua ideia de crítica

revolucionária.

Palavras-chave: Terry Eagleton; Crítica; Teoria da literatura; Ciência literária;

Ativismo.

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ABSTRACT

The literary critic Terry Eagleton obtained notoriety in academic circles when he was

recognized intellectually for his bestselling book Literary Theory: An Introduction. In

this book, the English author boldly proposes the end of literature and literary criticism.

However, Eagleton proposed years before, in his book Criticism and Ideology (1976), a

scientific system of analysis of literary texts, which seemed less radical, both in theory

and in method, than in his later theoretical proposal. Based on this, the objective of this

dissertation is to present the English literary critic´s initial method, explaining the

reasons that led him to abandon his initial project - of develop a method of analysis of

the literary text on a Marxist scientific perspective - and to propose, in the following

years, in his most famous book and others, a revolutionary vision that would go beyond

textual analysis and make literary texts have a practical intervention in society. Finally,

we explain what would be his idea of revolutionary criticism.

Keywords: Terry Eagleton; Criticism; Theory of literature; Literary science; Activism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 10

1. CRÍTICA CIENTÍFICA ....................................................................................... 15

1.1 MARXISMO E LITERATURA ........................................................................ 15

1.2 OS FUNDAMENTOS CONCEITUAIS DA CIÊNCIA DA LITERATURA ...... 17

1.3 MÉTODO MATERIALISTA ............................................................................ 23

1.4 HISTÓRIA E LITERATURA ............................................................................ 26

1.5 APLICAÇÃO DO MÉTODO ............................................................................ 29

1.6 AS CATEGORIAS DE PRODUÇÃO EM SENHORA ....................................... 30

1.6.1 Modo de produção geral (MPG) ............................................................... 31

1.6.2 Modo de produção literário (MPL) .......................................................... 32

1.6.3 Ideologia geral (IG) ................................................................................... 34

1.6.4 Ideologia Autoral (Iau).............................................................................. 35

1.6.5 Ideologia estética (IE) ................................................................................ 36

1.6.6 Texto .......................................................................................................... 37

1.7 FORMA IDEOLÓGICA DE SENHORA............................................................ 37

2. PROBLEMAS DA CIÊNCIA DO TEXTO .......................................................... 48

2.1 FATORES HISTÓRICOS ................................................................................. 48

2.2 FATORES TEÓRICOS ..................................................................................... 53

2.2.1 Cientificismo .............................................................................................. 53

2.2.2 Ideologia .................................................................................................... 64

2.2.3 Produção .................................................................................................... 81

2.2.4 Literatura .................................................................................................. 89

2.3 FATORES ESTILÍSTICOS ............................................................................... 97

2.3.1 O estilo de Criticism and Ideology ............................................................. 99

2.3.1.1 Hipérbole ............................................................................................... 100

2.3.1.2 Antítese .................................................................................................. 103

2.3.1.3 Sinédoque .............................................................................................. 105

2.3.2 O estilo revolucionário ........................................................................... 108

2.3.2.1 Humor .................................................................................................... 109

2.3.2.2 Popular ................................................................................................... 114

2.3.3 O eagletonismo ........................................................................................ 117

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3. PARA UMA CRÍTICA REVOLUCIONÁRIA .................................................. 122

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 139

REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 151

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa analisará a obra do pensador britânico Terry Eagleton (1943-), um

dos mais influentes críticos culturais e literários da contemporaneidade, que, em quase

meio século de produção, com mais de 40 livros escritos, vem conseguindo atrair

atenção de muitos, desde os mais conservadores acadêmicos de Oxford até os curiosos

das mais diversas áreas do conhecimento – por exemplo, os advogados, como Eagleton

faz questão de frisar no prefácio da segunda edição inglesa do seu mais famoso livro

acadêmico: Teoria da literatura: uma introdução (1983). Esse livro lhe deu notoriedade

na academia, e, ao mesmo tempo, virou um Best-seller, tendo vendido ao longo dos

anos algo em torno de um milhão de cópias, e tendo sido traduzido nos mais diversos

idiomas, como o malaio, o árabe e o sânscrito1. Sobre isso, o próprio autor comenta, na

edição de aniversário dos 25 anos desse livro:

I do not know whether to be delighted or outraged by the fact that

Literary Theory: An Introduction was the subject of a study by a well-known U.S business school, which was intrigued to discover how an

academic text could become a Best-seller23

(EAGLETON, 2008,

Prefácio).

Um Best-seller: algo totalmente incomum para um livro acadêmico, ainda mais

um livro que tratava sobre as teorias das ciências humanas do século XX, dadas como

abstratas e especializadas, como a fenomenologia e a psicanálise.

Nesse sentido, vê-se que esse livro possui uma tese polêmica, ao proclamar o

fim do objeto e do método literário, propondo um rompimento com a visão de crítica

literária existente até então, não só em termos teóricos, mas também em relação a

própria função social e institucional da crítica literária contemporânea. Assim, Eagleton

defende, nesse livro, o fim do conceito de literatura, e da organização institucional

universitária em departamentos de literatura, para propor um estudo sem método

específico e que tivesse como objetivo os usos políticos e discursivos de qualquer

produção cultural, e não mais apenas da literatura.

1 As fontes são dos sites do conselho britânico e do site do suplemento acadêmico Times Higher Education. 2 Todas as traduções de seus textos e de outros autores, doravante, serão de nossa autoria. 3 Eu não sei se fico lisonjeado ou ultrajado pelo fato de que Teoria da Literatura: Uma Introdução ter sido assunto de um estudo por uma reconhecida escola de negócios americana, que estava intrigada para descobrir como um texto

acadêmico poderia se tornar um Best-seller.

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Essa ideia central, entretanto, não se restringe somente ao seu Best-seller, mas, a

nosso ver, faz parte de todo um pensamento revolucionário sobre a função da crítica

literária, que se inicia em 1981, no livro Walter benjamim: or towards a revolutionary

criticism, é trabalhado também na conclusão de Teoria da Literatura: uma introdução e

finalizado em A função da crítica, em 1984. Nesse sentido, essa visão “revolucionária”

da crítica, termo utilizado por Eagleton no livro sobre Benjamin, significa não apenas

entender de forma subversiva os textos literários, mas também questionar a dissociação

entre a teoria e a prática crítica. Desse modo, protesta-se contra o tipo de crítica

acadêmica que produz conhecimento dissociado dos usos e efeitos sociais de suas

ideias, bem como distanciado de um diálogo com a sociedade. Portanto, defendemos

que os insights presentes em seu Best-seller estão articulados a um projeto maior,

levado a cabo por Eagleton nos anos 80.

Contudo, apesar desse radicalismo, presente nessa tríade de livros dos anos 80,

mostra-se intrigante o fato de poucos anos antes, em 1976, Eagleton ter proposto uma

ideia de crítica literária aparentemente oposta ao seu radicalismo posterior. Nesta

primeira obra, Criticism and Ideology: a Study of Marxist Literary Theory, além de

defender uma ideia de objeto textual como literatura, o crítico inglês propõe uma

solução científica para a função de análise textual na crítica literária, através de um

método estrutural de análise das categorias de produção do texto literário, e se mostra

indiferente ao debate público de suas ideias e o status teoricista dessa sua crítica. Assim

sendo, buscaremos observar aqui quais seriam as razões, as causas e os objetivos que

levaram o autor a mudar drasticamente, não só sua visão teórica, mas a própria noção de

teoria, da qual ele próprio fizera parte.

Com base nisto, os objetivos dessa dissertação são: apresentar o projeto inicial

eagletiano – que visava elaborar um método de análise do texto literário sob uma ótica

científica marxista; explicitar os motivos que levaram o crítico literário inglês a

abandonar esse projeto, para, nos anos seguintes, propor uma visão revolucionária, que

iria muito além de análises textuais e faria os textos literários terem uma intervenção

prática na sociedade; e, por fim, explicitar qual seria a ideia eagletiana de crítica

revolucionária.

Assim sendo, vemos que poucos estudos foram realizados a respeito da

produção teórica de Eagleton. Dentro desses poucos, selecionamos dois estudos,

desenvolvidos sobre a obra do escritor britânico, que consideramos relevantes. Esses

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estudos apontam, em concordância com o que propomos aqui, para uma ruptura entre os

escritos dos anos 70 e 80, como podemos ver em Terry Eagleton (2004), de David

Anderson – em que Anderson discute a necessidade de Eagleton de adaptar seu

marxismo dos anos 70 aos desafios do pós-modernismo dos anos 80 – , e em Terry

Eagleton: Critical introduction (2008), de James Smith – em que o autor descreve a

longa trajetória crítica de Eagleton, e, quando versa sobre o foco de nosso trabalho,

entende que Eagleton muda seu posicionamento dos anos 70 pra os 80, de uma crítica

científica para uma preocupação com a política cultural. Contudo, ambos os trabalhos

voltam-se para uma visão ampla, que abrange os trabalhos de Eagleton do início de sua

carreira até as obras mais recentes, bem como não focam exclusivamente em seus

posicionamentos sobre literatura. Nosso trabalho, assim, diferencia-se justamente por

levar essa discussão à literatura, em especial à questão da crítica literária, e ao se focar

em um período específico da obra de Eagleton, que se daria entre os anos de 1976 e o

final da década de 80.

Para isso, propomos a seguinte organização do nosso trabalho: inicialmente,

faremos uma apresentação da teoria e do método científico proposto por Eagleton,

assim como faremos uma aplicação do método em um romance; em seguida,

levantaremos quatro temas teóricos que consideramos problemáticos em sua visão

científica da literatura (cientificidade, ideologia, produção e literatura), além de

observarmos os fatores históricos e estilísticos que contribuíram para que Eagleton não

continuasse com seu projeto inicial; por fim, tentaremos sistematizar a “solução”

revolucionária que Eagleton defende, nos anos seguintes, em sua tríade de livros –

anteriormente citada – que questiona o conceito de crítica literária que o próprio autor

defendera anos antes.

Diante do exposto, entendemos que esse trabalho se justifica devido ao fato de

propor-se a investigar e evidenciar os pressupostos teóricos de um crítico que vem

exercendo uma enorme influência nos estudos de literatura e que não possui uma

discussão crítica intensa a cerca da sua obra como um todo. Contribui-se, assim, tanto

para uma difusão mais profunda de suas ideias, quanto para a defesa de uma visão mais

íntegra de sua obra. Nesse sentido, trazendo a discussão para o contexto brasileiro,

Eagleton se insere numa linha de pensamento de crítica materialista da cultura, que é

também desenvolvida por nomes como Antonio Candido e Roberto Schwarz – dois dos

maiores expoentes da crítica literária nacional. Portanto, entendemos que as percepções

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teóricas dos trabalhos de Eagleton podem dialogar e contribuir para as discussões sobre

a crítica literária e cultural produzida no Brasil. Desse modo, ao longo do trabalho

faremos algumas breves conexões entre a crítica no contexto inglês e no brasileiro.

Nossa metodologia, por sua vez, pautar-se-á na forma de uma pesquisa

exploratória, descritiva e explicativa da obra de Terry Eagleton, valer-nos-emos de uma

análise bibliográfica e da comparação com outros autores que convergem e divergem de

seu posicionamento; soergueremos, também, categorias conceituais a partir de uma

percepção indutiva dos dados em sua obra, como as que suscitamos no tópico fatores

estilísticos – por exemplo, o “eagletonismo”. Desse modo, para tal finalidade, propomos

uma divisão, da pesquisa, em três capítulos.

O primeiro capítulo será dedicado a uma breve exposição da construção do

pensamento de Eagleton em sua fase científica. Tentaremos, assim, inicialmente,

mostrar como o crítico inglês se insere na corrente teórica do marxismo estruturalista,

desenvolvida pelos filósofos franceses Louis Althusser e Pierre Macherey; e,

conseguintemente, apresentar a concepção dele sobre ciência do texto literário, fazendo

uma aplicação desse método no texto Senhora de José de Alencar.

O segundo capítulo buscará problematizar os conceitos de Criticism and

Ideology, e apresentar as mudanças que levaram Eagleton a passar de crítico científico a

crítico revolucionário. Para isso, selecionamos três fatores para análise: o histórico, o

teórico e o estilístico.

Do ponto de vista histórico, buscamos argumentar baseados nos trabalhos de

Perry Anderson (1976), Paul Resch (1992) e nos escritos do próprio Eagleton – em que

ele analisa, retrospectivamente, sua carreira em relação ao período histórico. Intentamos

demonstrar que o projeto do crítico britânico, situado entre um período histórico de

revoluções sociais, nos anos 60, e um período desiludido e pragmático, nos anos 80, fez

com que os fundamentos presentes no marxismo e no estruturalismo – ambos

fundamentos téoricos de seu método – ficassem distanciados de uma nova organização

social e histórica.

O fator teórico, por sua vez, possui uma forte relação com os fatores históricos.

Desse modo, tentaremos ver como as teorias pós-estruturalistas e desconstrutivistas

tomaram a doxa dos discursos acadêmicos ao problematizar vários aspectos da teoria

materialista histórica, em especial, o marxismo estruturalista de que Eagleton fazia

parte. Nesse sentido, selecionamos, para problematizar, quatro aspectos que

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consideramos mais recorrentes na fase inicial de Eagleton: a ênfase no cientificismo

pelo marxismo estruturalista – que discutiremos por meio de Lyotard (1988) e de Man

(1971, 1979, 2002), entre outros; bem como os conceitos de produção e ideologia –

discutidos a luz do debate entre as ideias marxistas que Eagleton adota e a ideias pós-

ideológicas como as de Foucault (1975) e Deleuze e Guattari (1980); a recepção

literária em oposição a produção literária – em debate com as ideias de Jauss (1994); e

por fim, a ideia de literatura – apreendida através do contraste entre Criticism and

ideology e Teoria da Literatura: Uma Introdução.

Por último, sobre a questão do estilo, levantaremos a ideia de que Eagleton

possui, inicialmente, um estilo austero, acadêmico e pretensioso, e organizaremos esses

aspectos em três categorias: a hipérbole, a antítese e a sinédoque. Defenderemos, assim,

que, nos anos 80, ele reformula essas concepções, por meio de características como o

humor e a consciência da artificialidade dos discursos. Por fim, categorizaremos de

“eagletonismo” o estilo composto por quatro características recorrentes no discurso de

Eagleton: a polêmica, a transdisciplinariedade, o humor e a clareza.

No terceiro capítulo, analisaremos a visão “revolucionária” da crítica literária,

ou seja, apresentaremos a proposta alternativa do autor ao método científico de análise

literária: por um lado, defendendo uma proposta subversiva no âmbito da teoria, que

não pode conviver isolada de sua prática; por outro, buscando acabar com o modelo de

crítica academicista que não dialoga com sociedade nem busca mudar, efetivamente, as

instituições culturais. Tentaremos explicitar como Eagleton identifica que, ao longo do

século XX, a crítica literária se manteve distante da prática social e do diálogo com a

sociedade, e como essa mesma crítica, inclusive a marxista, absorveu essas

características, segundo Eagleton, elitistas, em seus escritos. Tentaremos mostrar o

paralelo que existe entre as ideias, acerca dos intelectuais, de Eagleton e de Gramsci

(1982), e como o autor inglês propõe o conceito de contra-esfera pública como sendo o

objetivo dessa “revolução” na crítica literária, ou seja, uma proposta que pretende não

só alterar os objetos literários, mas a própria função da crítica literária e, por fim,

proporcionar uma crítica menos acadêmica e mais prática. Desse modo, mostraremos o

processo de transformação de Eagleton, de um crítico cientista em um crítico ativista.

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1. CRÍTICA CIENTÍFICA

No ano de 1976, o crítico literário Terry Eagleton lança dois livros: Marxismo e

Crítica literária4 e Criticism and Ideology: a Study in Marxist Literary Theory. Ambos

os livros propõem a defesa do marxismo como a ciência que, na visão do autor, seria

mais capaz de entender, de forma mais profunda e com clareza, a arte da literatura.

Trata-se de um exercício de cunho científico, que busca compreender a concepção de

real histórico (referente de significados) e a sua relação com um de seus produtos

particulares, que seria a estética. Em termos mais defasados, Eagleton propõe uma

mediação entre forma e conteúdo. Começaremos com a obra Marxismo e Crítica

literária, buscando observar como Eagleton entende as relações entre a ciência marxista

e a crítica literária e, em seguida, focaremos no livro Criticism and Ideology, que

apresenta o seu método científico marxista de análise do texto literário.

1.1 MARXISMO E LITERATURA

A relação entre marxismo e literatura pode ser compreendida à luz da ideia

clássica de Karl Marx da relação entre infraestrutura e superestrutura. Essa noção

basilar do marxismo dizia que os objetos da superestrutura, como as ideias, as leis e as

ideologias, seriam produtos de um modo de produção, ou seja, que a organização social

e econômica estruturam os objetos culturais. Essa ideia pode ser verificada no livro

Contribuição à Crítica da Economia Política, escrito por Marx em 1859, no qual o

filósofo alemão conclui que:

[...] na produção social da própria existência, os homens entram em

relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade;

essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade

dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da

sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura

jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o

processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos

homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência (MARX, 2008, p.47).

4 A presença de textos de Eagleton referenciados em português se deve ao fato de ter sido impossível, para nós, obter

os títulos originais. Reiteramos que todas as traduções de seus textos e de outros autores, doravante, serão de nossa autoria.

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Como nos dá a entender Marx, o pensamento histórico deve partir dos homens

de carne e osso e de suas práticas sociais para poder compreender suas ideias e as

representações que eles constroem de si mesmos. Nesse sentido, a literatura, que é

composta por ideias, só poderia ser compreendida se estudada dentro do contexto das

relações sociais decorrentes dos modos de produção social. Assim, influenciado pelas

ideias marxistas sobre a interpretação da cultura e suas manifestações artísticas, Terry

Eagleton define qual seria a relação entre a literatura e o marxismo:

A crítica marxista faz parte de um conjunto mais amplo de análise

teórica que tem por objetivo entender as ideologias – as ideias, valores e sentimentos através dos quais os homens vivem e concebem a

sociedade em diversas épocas. E algumas dessas ideias, valores e

sentimentos só se tornam disponíveis a nós na literatura. (EAGLETON, 2011, p.10).

Dentro desse pensamento, observamos que uma das funções para a crítica

literária marxista é procurar por um tipo de conhecimento presente no texto literário,

que é a ideologia. Essa, por sua vez, não seria compreendida a não ser que fosse

estudada em sua origem, ou seja, dentro dos seus modos de produção. Logo, a crítica

literária marxista deveria ser um estudo de todas as forças que interferem na estrutura

social, pois são elas que, de uma ou de outra forma, constituem a produção literária. No

entanto, Eagleton é enfático ao afirmar que seria um erro do crítico insinuar que o texto

move-se entre ideologia, relações sociais e modos de produção de uma forma mecânica

ou direta, como fazem certas críticas sociológicas, ás quais ele chama de “marxismo

vulgar”5. Essa seria uma perspectiva intransigente, que acabaria por entender os

conceitos literários de forma mecânica ou puramente em relação ao contexto histórico

do qual teriam emergido. Para Eagleton, ao contrário dessas críticas, seria nas diversas

relações entre meios de produção, ideologia e literatura que a crítica marxista centraria

sua prática, ou seja, entender os fatores propriamente literários, mas sem descartar os

fatores que originaram sua singularidade. O autor, então, explica que entender o texto

literário significa:

5 Eagleton considera exemplos de marxismo vulgar tanto as críticas “idealistas” do inglês Christopher Caudwell em

Illussion and Reality (1937) – segundo ele, a arte seria encarnação de o mundo de valores ideais – , quanto as proposições elaboradas como as de Lucien Goldmann em Le Dieu Caché (1964) que afirmava que a visão de mundo

de um escritor seria transposta à estrutura de um texto.

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(...) compreender as relações complexas e indiretas entre essas obras e os mundos ideológicos que elas habitam – relações que surgem não

apenas em “temas” e “questões”, mas no estilo, ritmo, na imagem,

qualidade e [...] forma. Mas também não entenderemos a ideologia a

não ser que compreendamos o papel que ela desempenha na sociedade como um todo – como ela consiste em uma estrutura de percepção

definida e historicamente relativa que sustenta o poder de uma classe

especifica. (EAGLETON, 2011, p.20)

Nessa perspectiva, entendemos que apesar do texto literário possuir uma

organização interna com temas, ritmo e imagens, ele também tem sua constituição para

além do próprio texto. Essa ideia faz com que a crítica não se restrinja a assuntos

estritamente literários, mas que se expanda em outras disciplinas, como a política e a

economia. Essa percepção pode parecer descabida para um estudante acostumado a

discutir enredo, verso e caracterização de obras, mas para Eagleton essa crítica marxista

é: “essencial ao esclarecimento integral da obra.” (EAGLETON, 2011, p.21). De fato,

para o crítico inglês, o enredo e os aspectos formais do texto são resultado, mesmo que

em última instância, de toda uma complexidade histórica constituída por divisões de

classes e por interesses que geram diferentes visões de mundo e consequentemente

várias formas de significa-las por meio da arte literária. É a partir desse entendimento

que se poderia compreender o texto de forma mais integra. Assim, esses aspectos, que

Eagleton defendeu em Marxismo e Crítica Literária, foram sistematizados no método

de crítica literária proposto em Criticism and Ideology.

Nas seguintes linhas, veremos como se deu o processo de construção desse livro.

1.2 OS FUNDAMENTOS CONCEITUAIS DA CIÊNCIA DA LITERATURA

Para propor um método marxista de estudo literário, Eagleton traz no seu

pensamento diversas leituras que abrangem tanto os primeiros pensadores do marxismo

como os que levantaram novas teorias e práticas a partir desses primeiros. Entre os

segundos, destacamos o aproveitamento que Eagleton faz da releitura dos escritos de

Karl Marx feita pelo filósofo francês Louis Althusser. Os trabalhos desse pensador

francês exerceram ampla influência nos meios acadêmicos por oferecer uma proposta

“científica” ao marxismo. Por meio de uma releitura da obra de Marx, Althusser propôs

uma ruptura entre os escritos de Marx anterior ao livro Ideologia Alemã (1846) e seus

trabalhos posteriores a esse livro, que ele definiu como científica. Althusser identificou

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nessa releitura o status do marxismo, ou materialismo histórico, como sendo uma

ciência que, segundo ele, poderia produzir um conhecimento objetivo da sociedade por

meio do estudo das estruturas determinadas pelo modo de produção social.

Nesse âmbito, ao enfatizar a determinação social pelas estruturas, Althusser

rompe com a ideia hegeliana que, segundo ele, ainda era presente nos primeiros escritos

de Marx, de que a totalidade social seria um reflexo ou expressão de uma “essência” na

qual todos os elementos sociais estariam ligados. Em termos grosseiros, isso quer dizer

que para Hegel todos os produtos sociais são determinados, por exemplo, por uma ideia

de estado ou por uma ideia de base econômica. Para Althusser, entretanto, a totalidade,

ou a história, seria uma causa ausente em uma formação social. Em outras palavras, essa

totalidade só insurgiria a partir da relação entre os vários níveis que compõem uma

estrutura, que não seriam apenas um componente, como o nível econômico, mas

também os níveis políticos, ideológicos, jurídicos e artísticos. Cada um desses níveis ou

instâncias, por sua vez, possuiria uma relativa autonomia, em que cada um deles

determinaria suas próprias leis internas, mas mantendo uma relação geral com os outros

níveis sociais, podendo ainda um dos níveis exercer dominância em relações aos outros.

A especificidade de um elemento histórico de uma estrutura social, segundo Althusser,

seria:

(…) therefore differential, since it is based on the differential relations

between the different levels within the whole: the mode and degree of

independence of each time and history is therefore necessarily determined by the mode and degree of dependence of each level

within the set of articulations of the whole.6 (ALTHUSSER,

BALIBAR, 1970, p.100).

Divergindo, assim, de Hegel e dos escritos “hegelianos” de Marx, que

defendiam a ideia historicista de um tempo homogêneo e continuo, Althusser propõe a

percepção anti-historicista, ou seja, da diferença entre cada tempo e história das várias

instâncias da formação social que, apesar de possuírem certa semi-autonomia, estariam

articulando o sistema como um todo. Assim, segundo Althusser, enquanto para Hegel

uma essência do todo social seria refletido nas partes, para o filosofo francês o todo

seria um reflexo da articulação complexa de vários níveis diversos. Nesse sentido,

6 Portanto differential, visto que é baseado em uma relação diferencial entre diferentes níveis no interior do todo: o

modo e o nível de independência de cada tempo e história é, portanto, necessariamente determinado pelo modo e

nível de dependência de cada nível no interior do grupo de articulações do todo.

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transpondo para nosso caso, o texto literário poderia ser entendido como uma estrutura,

mas não necessariamente uma estrutura formada por elementos em relação simétrica, e

sim por uma relação de ruptura e descentramento entre cada elemento de um texto: na

sua linguagem, nos seus gêneros e nas suas imagens. Em outras palavras, não poderiam

corresponder a um contexto histórico especifico, mas seriam capazes de apresentar

resultados de diferentes períodos históricos, sem deixar, contudo, de estar centrados

num período particular.

Os conceitos de estrutura e de relativa autonomia serviram de base para tentar

resolver a questão da peculiaridade do estético e para problematizar os modelos

vulgares de literatura e história. Tais concepções são também a base que norteia

Eagleton para formular o funcionamento das categorias de produção literária, baseando-

se no conceito de uma estrutura composta por várias instâncias que se diferenciam e se

determinam entre si. Podemos ver um exemplo disso no seguinte trecho, em que ele fala

sobre a ideologia estética, que seria uma das categorias de produção literária que

envolve diversos subsetores: “This literary sub-sector is itself internally complex,

constituted by a number of ‘levels’: theories of literature, critical practices, literary

traditions, genres, conventions, devices and discourses”7 ( EAGLETON, 2006, p. 60).

Aqui Eagleton toma as concepções althusserianas de estrutura e de relativa autonomia

para formular seu método de análise das categorias de produção literária, método esse

que observaremos mais a frente. Dessa forma, Eagleton tentou demonstrar como o texto

literário é produzido ou “determinado” por uma relação de estruturas. Porém, para

entender como essas estruturas históricas funcionam e se organizam no texto literário,

temos que analisar a instância da estrutura social em que ela trabalha, que seriam, por

sua vez, as formas de significação da história ou as instâncias ideológicas. Assim, a

literatura, por tratar de ideias e representações da sociedade, lidaria com a história por

meio da ideologia.

Vemos que Eagleton se utiliza também do conceito de ideologia proposto por

Althusser, pois esse filósofo desenvolve uma noção do mesmo conceito mais sofisticada

do que a proposta por Marx em Ideologia Alemã – a saber, ideologia vista como falsa

consciência. Para Althusser, a ideologia não seria apenas uma questão de ideias, mas

sim de ideias orientadas em uma prática. Althusser parece menos preocupado com a

7 Esse subsetor literário é ele mesmo internamente complexo, constituído por um número de ‘níveis’: teorias de literatura, práticas críticas, tradições literárias, gêneros, convenções, dispositivos e discursos.

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questão das distorções e mistificações da ideologia, presente em algumas formulações

de Marx, e mais preocupado em qual a função dessas ideias na vida real. No ensaio

escrito em 1969, Os Aparelhos Ideológicos do Estado, Althusser defende o conceito de

ideologia como crucial para o conhecimento histórico, pois esse ofereceria uma visão do

“vivido”, ou seja, as relações imaginárias das pessoas com suas experiências reais.

Essas relações são imaginárias devido a organização do real social se constituir de

acordo com interesse de uma classe social, nesse sentido, como diria o pensador

francês: “Então, é representado na ideologia não o sistema das relações reais que

governam a existência dos homens, mas a relação imaginária desses indivíduos com as

relações reais sob as quais eles vivem.” (ALTHUSSER, 1980, p.88). Essas relações

imaginárias ou ideológicas têm, assim, a função de constituir ou interpelar os

indivíduos, ou seja, inserir indivíduos de múltiplas maneiras e níveis no acesso à

história, formando e equipando simbolicamente uma sociedade para responder a suas

condições de existência. Esse processo de socialização requer um sistema de ideias,

crenças e valores pelos quais homens e mulheres vivem a experiência do seu mundo

como um todo coerente. A ideologia não seria para Althusser apenas um amontoado de

imagens e ideias em que as pessoas aderem, mas uma representação imaginária coerente

das relações dos homens com suas práticas materiais, que se constituiria por meio das

instituições sociais ou aparatos estatais e pelos “mitos” e “rituais” de determinadas

crenças dos indivíduos. Assim, independente das representações dos indivíduos serem

falsas ou não, elas produzem práticas que são reais. A literatura, nesse sentido, é

constituída pela ideologia, e passa a ser, de uma ou de outra forma, a própria ideologia,

pois apresenta uma experiência das relações vividas pelas pessoas por meio das

representações imaginárias e das relações da sociedade materializada em uma coerência

relativa, utilizando, para isso, por exemplo, personagens, figuras e símbolos literários. É

em função dessa coerência da ideologia que Eagleton afirma:

Como ela possui essa coerência relativa, a ideologia também pode ser

objeto de análise científica; e já que os textos literários “pertencem” à

ideologia, eles também podem ser objetos dessa análise científica. A crítica científica buscaria explicar a obra literária em termos da

estrutura ideológica da qual faz parte e que ela, não obstante,

transforma em sua arte: [...] (EAGLETON, 2011, p.40-41).

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Vemos que Eagleton toma o conceito de ideologia para explicar o

funcionamento do texto literário. Além disso, ele afirma que podemos fazer uma análise

científica que se basearia na percepção de como a ideologia estrutura o texto litérario.

Há, nesse sentido, uma dupla relação “mimética” do texto literário, pois ele constrói um

discurso por meio de uma construção discursiva da sociedade, que seria a ideologia,

questão que, como veremos posteriormente, servirá de base para Eagleton propor uma

ideia da literatura como uma dupla produção de representações ou significações da

história.

Podemos distinguir nas conclusões sobre os conceitos althusserianos8,

trabalhadas por Eagleton em Criticism and Ideology, que na crítica literária de cunho

marxista, o texto possui uma relação semelhante a da ideologia, no sentido de ser uma

produção de significados de uma realidade social. Nessa perspectiva, o entendimento

dessa arte e sua discussão crítica deve produzir um conhecimento sobre a história.

De forma paralela, antes de esmiuçar como Eagleton sistematiza seu método,

mostra-se necessário destacar as ideias de Pierre Macherey, filósofo francês, discípulo

de Althusser e que fora um dos primeiros a transpor as ideias desse para a literatura. Foi

por meio de Macherey que se pôde compreender, inicialmente, como se da à relação

entre ideologia e literatura, haja vista que Althusser não escrevera nada consistente

sobre literatura a não ser alguns poucos escritos esparsos.

Macherey, em seu trabalho seminal Para uma Teoria da Produção Literária,

escrito em 1966, entende, baseado nas proposições de Althusser, que a ideologia seria

uma produção imaginária da história com intuito de eliminar as contradições sociais,

diferenças de classe e certos discursos que representam uma realidade diferente daquela

dos discursos hegemônicos da história, ou seja, a ideologia para Macherey seria uma

ausência ou silêncio do real histórico. Nesse sentido, o texto literário – que ele chama de

ficção – por dar uma forma a uma ideologia, nomeada por ele de ilusão, acabaria por

revelar os limites dessa ideologia ou suas contradições. Em outras palavras, se o texto

revela as disjuntivas da ideologia, que poderiam ser como um apagamento ou

“silenciamento” das contradições históricas, ele falaria, assim, sobre os silêncios que a

ideologia buscava calar. Segundo Macherey: “A ficção, na medida em que é simulada,

engana-nos: mas este engano não é inicial, visto que se aplica a uma simulação mais

8 Para uma compressão profunda das ideias de Louis Althusser, sobre o marxismo cientifico ver os livros pour Marx

(1962) e Reading Capital (1965). Sobre o conceito de ideologia ver o ensaio Ideologia e os Aparatos ideológicos do

Estado, no livro Lênin e filosofia (1969).

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radical, que nos mostra e a quem trai, contribuindo assim para que dela nos libertemos.”

(MACHEREY, 1971, p.66). Nessa perspectiva, a ficção ou literatura, por falsear a

ilusão ou ideologia, poderia nos oferecer um conhecimento histórico omitido pela

própria história.

Podemos ver que, em Criticism and ideology, Eagleton critica o fato de a

ideologia, para o filósofo francês, ser uma “ilusão”, pois para ele isso nos forçaria a ver

a forma literária, ou, nos termos de Macherey, “ficção”, como o elucidador de

contradições dessa ilusão. Para Eagleton, entretanto, nem sempre a ideologia se trata de

uma ilusão, e assim a ficção literária pode forçar tanto silêncios como elucidações da

ideologia. Nesse sentido, para o crítico britânico, ao Macherey conceder uma qualidade

diferenciada a forma literária, acaba por colocar o texto literário em uma posição

especial à ideologia. Dessa forma, o autor francês possuiria uma visão dualista de

ideologia no texto literário, ou seja, a ideologia seria a “ilusão” da história e o texto seu

“conhecimento”. Por outro lado, Eagleton defende que não há nenhuma característica

especial que conceda à forma do texto ser “subversiva”. A forma, para Eagleton, não

seria a determinante do conteúdo, como defenderiam certos formalistas russos que

acreditavam que a trama seria apenas uma ferramenta da fábula. Para Eagleton: “the text

establishes a relationship with ideology by means of its forms, but does so on the basis

of the character of the ideology it works” 9.( EAGLETON, 2006, p.84) Ele entende,

assim, que a forma literária seria determinada, em última instância, pelo seu conteúdo

ideológico, pois a própria forma já seria ideológica em sua constituição. Desse modo, o

texto literário não apenas produziria “ilusões” como também produziria

“conhecimento”, pois ele nem meramente reflete nem distancia a ideologia, mas sim

produz outra ideologia, ou outra significação ideológica e estética, que se articula com a

primeira, de diferentes formas. Contudo, apesar desse conceito de ideologia de

Macherey ser problemático, fato que detalharemos posteriormente, a proposição de

Macherey sobre o silêncio e a ausência do real histórico que a ideologia produz no texto

literário é uma técnica da qual Eagleton se apropria em suas análises,quando observar

que há certas estruturas no texto que só podem ser entendidas se feita sua relação com a

história que, implicitamente, constitui-a.

9 O texto estabelece uma relação com a ideologia por meio de suas formas, mas o faz na base do caráter da ideologia

trabalhada.

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Macherey, no entanto, não formalizou um método de como poderíamos fazer as

relações entre ideologia e uma ciência histórica do texto. Assim, segundo Claude

Bouché, no texto Materialist Theory in France (1981), uma das lacunas deixadas por

Macherey seria que ele teria enunciado essa determinação ideológica do texto, mas não

teria proposto como essa se daria em relação ao funcionamento geral do contexto de

produção social – e é justamente essa lacuna que Eagleton quer preencher em seu

método.

1.3 MÉTODO MATERIALISTA

Para tentar mapear a constituição do texto literário, Eagleton desenvolve em seu

livro Criticism and Ideology: A Study in Marxist Literary Theory, escrito em 1976, um

sistema das leis de produção do texto literário. Para tal intento, como vimos

anteriormente, o autor britânico fundamentou-se na ideia de base e superestrutura do

marxismo reorganizada pela ideia de semi-autonomia do filosofo francês Althusser.

Esse afirmou haver uma relativa autonomia dos elementos de uma formação social e a

partir dessas ideias mostrou-se possível explicar como o texto literário é um produto não

apenas de um modo de produção social, mas de várias conjunturas sociais. Nesse

sentido, tentando ampliar e aplicar essas ideias no campo literário, o crítico inglês

propõe uma sistematização composta por seis categorias que, segundo ele, mapearia a

constituição do texto literário:

(i) Modo de produção geral (MPG)

(ii) Modo de produção literário (MPL)

(iii) Ideologia geral (IG)

(iv) Ideologia autoral (Iau)

(v) Ideologia estética (IE)

(vi) Texto

Uma das tarefas da crítica seria, assim, analisar a complexa relação histórica

dessas estruturas que produzem o texto. Para um melhor entendimento dessas

categorias, explicaremos como Eagleton conceitua cada uma delas.

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O MPG representaria uma unidade de certas forças e relações sociais de

produção material. Refere-se tanto aos sistemas econômicos vigentes (feudalismo,

capitalismo) quanto as suas relações de classes resultantes (competição, hierarquia).

Designa-se “geral” para se diferenciar do MPL, que é uma unidade de forças e relações

sociais de produção literária em uma formação social particular e funciona no interior

de um MPG.

O MPL caracteriza-se pelas relações de produção, distribuição e consumação

literária. Por exemplo, se é uma relação de produção industrial ou artesanal, se é

financiado pelo patrão ou subsidiada por um mecenas, se são distribuídas as obras por

escribas-copistas ou editoriais, se são consumidas por um público pagante ou se é

compartilhado entre as próprias comunidades de leitores. Dentro desses vários modos

de produção literária pode haver um que se torne dominante, forçando, assim, os outros

para posições de subordinação. Segundo o autor, todavia, esses modos são

estruturalmente conflitantes, mas podem coexistir numa mesma formação social, por

exemplo, uma produção para o mercado capitalista, pode circular paralelamente a uma

distribuição de poesias manuscritas nas ruas. Esses modos também não precisam ser

necessariamente sincrônicos, podendo ser constituídos por elementos e estruturas do

passado, e são capazes de pressagiar modos vindouros. A complexidade de um MPL se

ergue justamente por suas relações com os múltiplos MPLs. Contudo, o autor lembra

que a crítica não está interessada nos aspectos sociológicos dos modos de produção

literário, mas sim em como esses fatores se incorporam à própria escrita estética, pois:

“the literary text bears the impress of its historical mode of production as surely as any

product secretes in its form and materials the fashion of its making.”10

(EAGLETON,

2006, p.48) Um exemplo disso seria um texto oriundo de um MPL de linguagem oral,

que apresentar-se-ia com um estilo mais coletivo, “anônimo” e despojado de

idiossincrasias introspectivas do que um produto de um MPL de uma linguagem escrita

e oriunda de uma editora privada, que tenderia a ser mais idiossincrático em seu estilo e

com uma organização textual mais singular. Não obstante, o autor inglês lembra sempre

que a relação desses dois modos de produção oral e privado é dialética, podendo um se

inscrever no outro, não havendo uma característica num MPL oral que não possa ser

compartilhado por um MPL de editora.

10 O texto literário gera a impressão de seu modo de produção histórico claramente, como qualquer produto

segregado em seus materiais e formas à moda de sua fabricação.

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Os modos de produção irão também configurar uma formação ideológica

dominante, que consiste em um coerente grupo de “discursos” de valores,

representações e crenças determinadas pelo MPG, que refletem as relações

experienciais de sujeitos individuais com suas condições sociais que garantem àquelas

parciais percepções do “real”, contribuindo, com isso, para a reprodução das relações

sociais dominantes. O autor divide essas formações ideológicas ou ideologias em três:

geral, estética e autoral. A Ideologia Geral (ou IG) possui os traços abrangentes das

formações ideológicas em que as ideologias estéticas(IE) e autorais (Iau) se inserem. A

ideologia estética, por sua vez, representa uma região particular da IG, sendo aquela

dividida em subsetores, dos quais o literário é um – esse é ainda constituído por vários

níveis, como a teoria da literatura, a prática crítica, as tradições literárias entre outros. A

Ideologia Autoral (Iau), que não deve ser tratada de forma isolada da IG, representa a

inserção biográfica na IG, pois se trata de um modo de inserção superdeterminado por

uma série de fatores distintos, tais como a classe social, o sexo, a nacionalidade, a

religião, a região geográfica etc.

Por fim, o texto literário é produto de uma conjuntura específica determinada por

esses elementos. Não é, entretanto, um produto meramente passivo. O texto é tão

constituído por essa conjuntura como ativamente determina seus próprios

determinantes. A produção literária é fruto de certas “estruturas” em articulação, que

quando bem estudadas – suas contradições, homologias e conflitos – podem gerar um

conhecimento científico sobre o texto. No entanto, é preciso notar que apesar de

Eagleton ressaltar o caráter dialético das estruturas e da flexibilidade temporal que elas

possam possuir, ele ainda defende certa hierarquia, certa soberania de cima para baixo

entre as categorias do texto, tendo em vista que defende o argumento tradicional

marxista da determinação do econômico e das forças de produção, como podemos

comprovar com a leitura do seguinte enxerto:

Each of these ideologies will be determined by a specific conjuncture of LMP/GI/AI, on the basis of the final determination of the GMP.

There is, however, no question of a necessarily symmetrical relation

here between the various formations involved. Each of these formations is internally complex, and a series of internally and

mutually conflictual relations may hold between them.11

(EAGLETON, 2006, p.61, grifo nosso).

11 Cada uma dessas ideologias será determinada por uma conjuntura especifica do MPL/IG/IE, na base da

determinação final do MPG. Não há, entretanto, questionamento aqui de uma relação necessariamente simétrica

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Com esse posicionamento, vemos que o crítico britânico tenta solucionar o

problema do marxismo vulgar relativo à ideia de mecanicismo entre contexto e texto,

propondo assim uma relação estrutural da produção do texto. Apesar de evitar uma

relação direta que não enxergaria a multiplicidade da constituição do texto literário, o

autor mantém a ideia da hierarquia entre modos, pois afirmar que não reconhecer a

determinação material é cair no idealismo de que o texto não é constituído pelos

materiais ideológicos e linguísticos em circulação na sociedade. É necessário frisar que,

apesar dessa teoria demonstrar essa constituição social do texto, é sempre preciso

entender, ao contrário das visões sociológicas simples, como estes fatores que

determinam o texto se internalizam esteticamente na obra literária.

Vimos assim, que Eagleton defende, a partir dessa relação de estruturas, que os

fatores extrínsecos ao texto se internalizam nele. Agora tentaremos mostrar como,

inversamente, o autor formula um argumento sobre os modos do texto apontar para sua

exterioridade. Isso tentaria responder à questão da especificidade do literário, ou seja, o

porquê da diferença entre textos que pertencem ao mesmo modo de produção literária,

mas que possuem características ideológicas diversas. Nessa perspectiva, Eagleton

tentou mostrar que, mesmo em contextos semelhantes, não se garante que os roteiros

sejam iguais. Isso se daria, segundo o autor, justamente por os textos produzirem suas

próprias ideologias e não serem um mero reflexo dessas. Buscaremos agora esmiuçar

como se desenvolve esse processo.

1.4 HISTÓRIA E LITERATURA

Para se entender como analisar o texto em seu caráter social, mas sem

desconsiderar sua constituição estética, é preciso entender uma questão central de como

o texto se relaciona com a história. Propondo uma alternativa à vulgar de alguns

segmentos marxistas que afirmam ser a literatura um mero espelho da história, e

sugerindo uma relação mais sofisticada, o pensador britânico afirma:

entre as várias formações envolvidas. Cada uma dessas formações é internamente complexa, e uma série de relações internamente e mutuamente conflitais podem estabelecer-se entre elas.

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The text is a tissue of meanings, perceptions and responses which inhere in the first place in the imaginary transposition of the real

which is ideology. The “textual real” is related to the historical real,

not as an imaginary transposition of it, but as the product of certain

signifying practices whose source and referent is, in the last instance, history itself

12 (EAGLETON, 2006, p.75).

Levando em consideração essa citação, podemos ver que, para o autor, a história

não entraria no texto diretamente, mas por meio de certas práticas significantes, ou seja,

a ideologia. Como vimos, para Eagleton, a história não seria algo homogêneo e linear,

mas uma estruturação de vários elementos que possuem relativa autonomia. Dentro

dessa percepção, seria a ideologia que daria certa coerência a esses elementos e, com

isso, atribuir-lhes-ia uma significância. Por sua vez, um texto literário não lidaria com a

história diretamente, já que essa, segundo Eagleton, não seria acessível sem uma

coerência, ou seja, por meio da ideologia. Então, como a ideologia não seria um reflexo

da história, mas uma produção ou uma ficcionalização dessa, o texto literário não seria

um reflexo da ideologia, mas sim uma produção dessa. O termo “produção” ou

“ficcionalização”, assim, é usado pelo autor inglês para demonstrar que a ideologia e o

texto não são apenas reflexos mecânicos e nem construções independentes da história,

mas o ato de selecionar e utilizar certas significações históricas para produzir ou atingir

certos objetos e objetivos específicos. Portanto, é com essa ideia de produção sob

produção, ou seja, história/ideologia/texto literário, que Eagleton pretende resolver o

mecanicismo da reflexão texto e história.

Diante dessas concepções, podemos resumir essa relação da seguinte forma: os

meios de produção social dariam os materiais para que uma sociedade criasse suas

significações, que seria a ideologia; e a ideologia forneceria os materiais para que os

indivíduos construíssem objetos artísticos. O texto literário, por exemplo, teria seus

meios de produção e suas categorias estéticas – tais como gêneros, estilos e convenções

– , e ele mesmo tomaria esses elementos, que são oriundos da ideologia, transformando-

os em seus produtos – os temas, os roteiros, as personagens, as situações narrativas,

assim como em outros componentes que caracterizam o texto literário. Essas relações,

todavia, funcionariam como uma produção sob a produção, ocorrendo com certo grau

12 O texto é um tecido de significados, percepções e repostas que herdam, em primeiro lugar, aquela produção imaginária do real que é ideologia. O “real textual” é relacionado ao real histórico, não como uma transposição

imaginária dele, mas como o produto de certas práticas significantes cuja fonte e referente é, em última instância, a história ela mesma.

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de autonomia em que as relações entre história/ideologia/texto são sempre mediadas por

relações conflitantes ou homologas. Assim, nem sempre o texto precisa confirmar ou

negar uma ideologia. A cada nova produção o texto pode deslocar e reagrupar os

materiais com que trabalha – os gêneros, personagens, cronologia e outros elementos do

literário são trabalhados em uma nova perspectiva –, que se pautam em suas leis

relativamente autônomas, mas são inscritos nas formações ideológicas que determinam

sua produção, constituindo assim uma série de relações complexas entre texto e

ideologia.

A função da análise textual literária seria, então, para Eagleton, perceber essas

diversas relações entre texto/ideologia/história. Para isso, ele propõe ver o texto como

um problema que busca uma solução. O autor entende que todo texto nasce de uma

problemática, ideológica e estética, e a tenta resolver com os materiais sociais de uma

conjuntura histórica particular (ideologias e convenções estéticas), mas a partir de sua

própria lógica. Assim sendo, o autor tentar explicitar o que ele quer dizer com “solução

de problemas”:

I do not mean by “solution” simply the determinate answer to an

articulate question, which is palpably not the case with much modernist and post-modernist literature. In a less literal sense of the

terms, every text can be seen as a “problem” to which a “solution” is

to be found.13

(EAGLETON, 2006, p.87).

Todo texto teria um “problema” que buscaria resolver de forma ideológica e

estética. Assim, a ideia de um tema “problema-solução” seria a ferramenta conceitual

que o crítico iria utilizar para pode perceber como o texto é inscrito em uma ideologia e

em uma história. Deve-se entender essa ideologia na própria composição do texto, na

própria letra do texto, em cada um dos seus elementos textuais, seus temas, seus

roteiros, seus personagens, sua organização temporal; saber como em um determinado

momento histórico tentou-se “solucionar” um problema por meio de um texto literário.

Assim, faz-se necessário compreender que não haveria nessa proposição um segredo

único que estaria escondido atrás do texto. O que existiria seriam várias relações entre

as implícitas estruturações ideológicas dos textos, sendo elas propriamente simbólicas

ou estéticas. Por exemplo, poderíamos dizer que os poemas indianistas de Gonçalves

13 Eu não intento dizer por “solução” simplesmente uma determinada resposta para uma questão articulada, que não é palpavelmente o caso de muito da literatura modernista e pós-modernista. Em um sentido menos literal dos termos,

cada texto pode ser visto como um “problema” para o qual uma “solução” deve ser encontrada.

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Dias podem ser lidos como uma tentativa de solucionar a origem da história nacional,

usando uma estética romântica e épica de tendência estrangeira; ou que o romance

Macunaíma (1928), de Mario de Andrade, tenta resolver um problema ideológico

semelhante ao da poesia indianista, mas por meio de uma complexa relação entre as

ideologias do século XIX e uma estética modernista e localista do século XX.

Nesse sentido, podem haver várias relações entre estética e ideologia – ou

“temas problemáticos” – e a crítica teria a função de perceber com que elementos da

história o escritor tentou resolver uma questão que entendia como problemática. Não

havendo apenas um segredo ou um significado único, senão as várias relações entre os

elementos estéticos do texto, caberia ao crítico distinguir como eles se relacionam com

as ideologias e seus modos de produção. Sendo assim, para o crítico é necessário um

profundo estudo das origens do texto, pois cabe a ele saber diferenciar os componentes

que não são aparentes no texto – ou, como diria Macherey, que estão ausentes ou não-

ditos – , mas que são necessários para a estruturação ideológica do texto.

A relação entre texto literário e história seria, assim, uma relação não

autoevidente. O texto possui um acesso bem particular à história, já que ele é uma dupla

produção da história, ou seja, produção de uma ideologia que é uma produção da

história. A relação do texto com a história, assim, pode ser determinada por meio de um

estudo das relações de homologia e descentramento entre a organização própria do texto

(enredo, personagens, cronologia etc.) e suas ideologias estéticas e gerais, e essas, por

sua vez, com seus modos de produção literária e com seu modo de produção geral.

Assim, fazendo o caminho inverso das categorias de produção literária que Eagleton

propôs, ou seja, partindo do texto para história é que poderíamos demonstrar como a

lógica interna do texto é fissurada o tempo todo por seus fatores históricos.

1.5 APLICAÇÃO DO MÉTODO

Para uma melhor compressão de como funcionaria esse método científico de

análise literária proposta por Eagleton, faremos agora uma breve análise de um texto

literário, exemplificando o modo de construção dessa crítica. Para isso, utilizaremos

uma obra brasileira a fim de perceber a dinâmica desse método aplicado em outros

contextos ideológicos e culturais, já que ele só fora utilizado pelo autor em textos

ingleses do século XIX e XX.

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O crítico inglês entende que os textos por ele analisados como (as obras de Jane

Austen, George Eliot, Charles Dickens, entre outros escritores) pertencem a um setor

particular da história da literatura inglesa, chamado de “Cultura e Sociedade”, que seria

fundamentado por uma complexa conjuntura ideológica de classes burguesas e

aristocráticas formadora de um bloco ideologicamente dominante. Esse grupo,

distinguido por Eagleton, buscou em seus textos literários formular uma critica das

relações burguesas. Todavia, por buscarem na tradição humanista romântica subsídios

para seus julgamentos, segundo o crítico marxista, eles produziram ideias idealistas que,

ao invés de condenar a organização social burguesa, acabavam por consagrar os

preceitos do capitalismo nascente, que era o próprio fomentador dessas relações

burguesas.

Embora distante na geografia, selecionamos, para ilustrar e trazer para nosso

âmbito as teorias que Eagleton desenvolve acerca da literatura inglesa, o romance

Senhora (1875) do escritor José de Alencar. Escolhemos essa obra pois ela reverbera, ao

seu modo, os dilemas ideológicos de uma mesma contemporaneidade, mas em

contextos bem diferenciados, como são a sociedade inglesa, por um lado, e a sociedade

brasileira, por outro. Por exemplo, o dilema ideológico no romance descrito em um

ambiente burguês e aristocrático que possui como conflito a influência do capital nas

relações dos indivíduos.

Nesse âmbito, tentaremos ver se o método de análises dos conflitos ideológicos,

feito originalmente em textos ingleses, pode servir de referência para a configuração

ideológica brasileira, estruturada no romance Senhora. Faremos, assim, uma breve

exposição de como se daria a aplicação do método de Eagleton. No capítulo seguinte

isso servirá de base para problematizarmos esse próprio método.

1.6 AS CATEGORIAS DE PRODUÇÃO EM SENHORA

Iremos utilizar nessa parte as seis categorias propostas por Eagleton, aplicando-

as ao romance Senhora, tentando fazer assim uma breve exposição de como se daria seu

método de análise numa obra brasileira do século XIX.

O romance que iremos trabalhar fora escrito pelo autor José de Alencar. Sua

trama se baseia na relação da jovem Aurélia Camargo e do jovem Fernando Seixas. Eles

possuem temperamentos diferentes, sendo ela uma moça responsável e devotada aos

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seus princípios, enquanto ele adota uma vida hedonista e possui um caráter duvidoso.

Eles namoram por um curto período, até que Seixas rompe o namoro com Aurélia para

se casar, por dinheiro, com outra moça abastada. A trama se torna mais complexa

quando Aurélia recebe uma herança repentina e decide “comprar” Seixas como seu

esposo. A partir desse momento o temperamento inicial dos personagens é posto à

prova, o que faz desencadear uma série de relações estéticas e ideológicas configuradas

por essa nova relação entre os personagens, não mais assegurada pelo sentimento, mas

pelo dinheiro.

Assim, tendo essas ideias em mente, observaremos como o romance Senhora

pode ser mapeado histórico e socialmente pelas categorias de produção desenvolvidas

por Eagleton.

1.6.1 Modo de produção geral (MPG)

O modo de produção brasileiro do século XIX pode ser considerado como um

período de transição entre uma forma de produção escravista colonial e o início de uma

produção agroexportadora de escala industrial. Nessa perspectiva, Celso Furtado, em

Formação Econômica do Brasil (1989), define o século XIX como uma economia de

transição para o trabalho assalariado, e, em outro trabalho, mas ratificando a ideia de

transição, Caio Prado Junior afirma:

A segunda metade do séc. XIX assinala o momento de maior transformação econômica do Brasil. [...] Mas a primeira metade do

século é de transição, fase de ajustamento à nova situação criada pela

independência e autonomia nacional (PRADO JUNIOR, 1983, p.192).

Essa transição foi impulsionada pela chegada da família real portuguesa ao

Brasil e subsequente independência do país, o que ocasionou uma série de medidas de

libertação econômica, como a abertura dos portos. Essa abertura esteve reprimida pelo

pacto colonial, que, uma vez modificado, desencadeou um pequeno florescimento da

economia interna do Brasil.

Havia uma classe aristocrática, concentrada na capital fluminense, formada

essencialmente por membros da corte portuguesa e por grandes latifundiários, a despeito

de uma grande população escrava ou mestiça que vivia em dependência econômica e

cultural daqueles. A produção, antes concentrada na região norte, na agricultura de

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algodão e cana-de-açúcar, volta-se para a região sul e passa a se basear na economia

agrária de exportação de produtos primários, em especial o café, e a se utilizar do

sistema escravista como mão-de-obra. Com o crescimento interno nacional e o processo

de libertação dos escravos possibilitou-se, ao longo do século, o início da mão-de-obra

assalariada, da construção de um comércio interno e de uma pequena industrialização.

Podemos dizer então, de acordo com o que foi exposto, que o texto de Senhora

internaliza, de uma forma estética, o tema ideológico das relações de tráfico humano

refletido nos ambientes burgueses; relação essa que seria comum numa sociedade com

uma força de produção escravocrata, acostumada a avaliar até os indivíduos através de

um preço. Essa relação comercial, do modo de produção geral, acaba por estruturar o

romance. O MPG acaba virando leitmotiv para o trabalho estético e ideológico do texto

de Alencar.

1.6.2 Modo de produção literário (MPL)

O século XIX ficou marcado pelo surgimento de um MPL no Brasil, pois antes a

produção, a circulação e a distribuição de livros eram escassas e onerosas. Com o

surgimento dos jornais brasileiros, a exemplo do Jornal do Commercio (1827) e do

Diário do Rio de Janeiro (1821) repaginado em 1856 pelo escritor José de Alencar,

houve um novo desenvolvimento editorial. Cabe destacar que a literatura, nessa época

no Brasil, era divulgada nos próprios jornais, na forma de folhetins, estabelecendo, com

isso, as relações sociais de consumo e de produção literária. De fato, esse tipo de escrita

e de divulgação literária fez sucesso com os leitores abastados, reforçando uma

mudança que proporcionou o surgimento de um sistema literário nacional14

, em que os

autores podiam ser remunerados pelos seus trabalhos, bem como os editores dos jornais,

por meio do consumo dos leitores. Essa criação de um sistema literário nacional só foi

possível, como vimos anteriormente, devido a uma nova organização socioeconômica

ocasionada pela chegada da corte portuguesa no país – ou, nos termos propostos por

Eagleton, com o crescimento do MPG, que possibilitou, por sua vez, o crescimento de

um MPL. Eagleton explica-nos como se dá a consolidação MPL, utilizando como

exemplo as condições de produção literária na Inglaterra da era vitoriana:

14 Trabalhos como Iniciação à Literatura Brasileira (1999), de Antonio Candido, e O lugar do Folhetim Traduzido no Sistema Literário Brasileiro (2006), da professora Maria Cristina Batalha, defendem e descrevem esse surgimento

de um sistema literário nacional.

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The capitalist mode of production develops its dominant LMP by

increasing the population, concentring it in urban centres where it is within reach of the mechanisms of literary distribution, and permitting

it limited degrees of literacy, affluence, leisure, shelter and privacy. At

the same time is increasingly specializes and extends its modes of literary production and distribution to sell literary commodities on this

market, and produces the material and cultural conditions essential for

professional literary production within it.15

(EAGLETON, 2006, p.49-

50).

De forma similar no Brasil, a criação de um ambiente cultural e simbólico,

ocasionado pelo desenvolvimento do MPG, propiciou o surgimento da imprensa como

forma de veicular informação, gerando, assim, uma mercadoria cultural que poderia ser

vendida no ambiente recém estabelecido. Isso significa que a MPL desse período acaba

por expandir o próprio MPG, pois fomentou um comércio interno que não era tão

desenvolvido nessa sociedade agroexportadora.

Outro fator que constituía o MPL era o fato de o número de

consumidores/leitores ser uma minoria, posto que a maioria da população brasileira na

época era de escravos, que estava à margem das instituições educacionais, assim como

de assalariados iletrados. Dessa forma, o brasileiro comum não possuía acesso a esse

intercâmbio simbólico. Sobre isso, Eagleton reconhece que a dimensão social de

letramento é, em última instância, determinada pelo MPG, mas o letramento: “is clearly

in turn a significant determinant of the LMP, affecting the size and social composition

not only of readers but of producers”16

(EAGLETON, 2006, p.58). Nesse sentido, no

Brasil de Alencar, tanto os escritores como os consumidores faziam parte de uma

minoria formada por aristocratas, e de alguns profissionais liberais. Segundo Alfredo

Bosi17

, esses eram leitores em busca de entretenimento, que normalmente não buscavam

requintes literários em suas leituras. Isso refletia em tramas repetitivas, sem

profundidade e cheias de peripécias que na maioria das vezes, só serviam para manter a

tensão até a sua resolução no final do texto. Os leitores exigiam temas aos quais

pudessem relacionar suas realidades, mas de forma idealizada, para suprir a morosidade

15 O modo de produção capitalista desenvolve seu MPL dominante pelo aumento da população, concentrando-a em centros urbanos, onde ela está ao alcance dos mecanismos de distribuição literária e que permite graus limitados de letramento, afluência, prazer, abrigo e intimidade. Ao mesmo tempo, é cada vez mais especializada, e expande seus modos de produção e distribuição literária para vender commodities literárias nesse mercado e produzir as condições materiais e culturais essenciais para uma produção literária profissional no interior dele. 16 É, claramente, por sua vez, um determinante significante do MPL, afetando o tamanho e a composição social não apenas dos leitores, mas dos produtores. 17 Especificamente no livro História Concisa da Literatura Brasileira (2012).

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de suas vidas estáveis. Apesar do público leitor e dos escritores serem uma minoria

nacional, eles eram ideologicamente hegemônicos, e, por isso, intercambiavam um

produto literário que muitas vezes coadunava em suas ideologias formas de reproduzir e

expandir a IG. O romance Senhora se mostra, assim, um exemplo desse processo.

Através de suas formas ideológicas, que também são estéticas, aparenta ser, em parte,

um exemplo dessas características de gosto mediano, quando se utiliza usando, por

exemplo, de capítulos curtos e personagens maniqueístas. Podemos ver nesse modelo

romanesco uma assimilação das relações estéticas às relações mercadológicas. como

exemplo dessa assimilação, podemos citar o fato de que os capítulos sempre acabam

com uma tensão no final, causado por essa luta do bem e do mal, ou, no caso de

Senhora, do amor versus o dinheiro, o que acaba gerando expectativa no leitor e sua

possível adesão à leitura e à compra do folhetim. Há uma confluência, nesse sentido,

entre IE e MPL, pois a estética do folhetim-romance possui uma relação estilística e

mercadológica que contribui para o desenvolvimento e manutenção do MPL vigente e,

em última instância, do MPG como um todo.

1.6.3 Ideologia geral (IG)

Como vimos, o MPG do Brasil no século XIX era resultado de uma nova

configuração com a vinda da corte portuguesa e a independência nacional. Nesse

sentido, suas IGs baseavam-se em um conflito entre a reverberação das ideologias das

metrópoles europeias e a busca por uma identidade nacional, que se constituiria em

novas ideologias para a nova nação.

A aristocracia era tomada pela moda, pelos costumes e pela erudição do velho

mundo, bem como era influenciada pelos ideais do Iluminismo e da declaração dos

direitos humanos. Esses últimos influenciaram principalmente as revoltas separatistas

por um Brasil independente, criando ideias nacionalistas, libertárias e, eventualmente,

republicanas e abolicionistas, aliadas a um projeto unificante e coerente que procurava

criar um senso nacional. Alfredo Bosi, esquematizando esse conflito ideológico, afirma

que no Brasil:

As antinomias que marcaram o século XIX foram várias:

corte/província; poder central/poder local; campo/cidade; senhor

rural/classe média urbana; trabalho escravo/trabalho livre. A “conciliação ideológica” fez-se através da primeira geração romântica,

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bafejada, como se sabe por dom Pedro II. Já as formas de conflito configuravam-se em primeiro lugar no Nordeste, onde precocemente

surgem correntes abolicionistas e republicanas. (BOSI, 2012, p.164).

Esses conflitos internos eram apenas parte da complexidade ideológica nacional,

pois ainda havia um conflito de ideologias entre o país recém-independente e sua antiga

metrópole. Para se diferenciar ideologicamente das metrópoles europeias, buscou-se

construir uma tradição brasileira através da figura do índio e do regional.

Outro fator ideológico constituinte da IG era a defesa de uma língua portuguesa

“brasileira”, como um mecanismo crucial através do qual a linguagem serviu para

legitimar esse projeto ideológico nacionalista. Os próprios escritores, como Gonçalves

Magalhães e José de Alencar, são exemplos dessa política linguística, utilizando em

seus textos palavras da língua tupi e expressões regionais. Na trama de Senhora é

possível ver um exemplo claro dessa ideologia na língua:

Essa é, creio eu, a verdadeira pronúncia da palavra; mas nós, os brasileiros, para distinguir da fórmula cortês, a relação de império e

domínio, usamos da variante que soa mais forte, e com certa vibração

metálica. O súdito diz à soberana, como o servo à sua dona senhóra.

Eu talvez não reflita e confunda. (ALENCAR, 2009, p.194 Sic)

Nesse exemplo, a protagonista Aurélia pergunta a Seixas, seu cônjuge e “servo”,

por que ele usa uma pronúncia diferente da palavra “senhora” quando se refere a ela.

Seixas então explica que seu uso é proposital e sinaliza uma relação entre língua e

poder. Vemos, nesse sentido, como a ideologia geral é internalizada no próprio texto

literário. Na organização do gênero, na linguagem, no léxico ou mesmo nas imagens há

um reflexo dessa luta política travada pela ideologia hegemônica.

1.6.4 Ideologia Autoral (Iau)

Para Eagleton, a Iau está sempre inscrita na IG. Assim, todas as configurações

acima discutidas constituem a base da ideologia do autor, mesmo esse tendo a liberdade

de entrar em conflito ou em homologia com as ideologias de seu tempo nos seus textos.

Em nosso caso, trata-se do escritor produtor José de Alencar, que nasceu no Ceará, mas

teve vivências tanto no sudeste, onde obteve seus estudos em direito, como na Europa.

Isso configurou nele uma vivência diversificada da composição do mundo, e teve uma

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presença viva em seus escritos, na construção das imagens nacionais ou na consciência

cosmopolita dos romances europeus que lera e que alicerçaram a forma de seus escritos.

De família abastada, filho de um seminarista e senador, adotaria a religião do pai

e sua vocação política. A política e a literatura andavam sempre juntas para Alencar,

chegando ao ponto de seus escritos serem entendidos como um projeto político, através

da estética, em favor de uma modernização da nação recém-constituída. Ele também

teve opiniões controversas a respeito da escravidão, do império, do voto direto e da

emancipação das mulheres. Essas várias questões são elaboradas em seus tantos textos

literários.18

1.6.5 Ideologia estética (IE)

A ideologia estética do século XIX estava em forte conjunção com a sua IG

contemporânea. Nesse contexto, pela necessidade de fomentar uma cultura nacional no

espírito dos indivíduos, a literatura se destacou entre os outros setores da estética. Isso

se deu em parte devido ao texto literário ter sido um veículo de informações que possuía

os meios de produção organizados, devido ao surgimento da imprensa no Brasil, como

distinguimos acima.

As ideias românticas e nacionalistas que constituíam a IG forneceram os

substratos ideológicos ao movimento estético romântico brasileiro. As práticas críticas e

teóricas da época19

também colaboraram para enaltecer os textos que se coadunavam

com a IG. Como exemplo temos a Niterói, revista formada por um grupo de jovens

intelectuais do qual Gonçalves de Magalhães era parte. Nessa perspectiva, a questão do

que era nacional estava tão em voga no âmbito literário que José de Alencar, ao saber

que o Imperador Pedro II iria financiar a publicação da obra A Confederação dos

Tamoios, de Gonçalves de Magalhães, criticou a ação, por considerar essa obra

descaracterizada dos verdadeiros traços nacionais20

. Vê-se com isso que, por um lado, o

próprio estado custeava certas obras, influenciando dessa forma o caráter da estética

18 Sobre a relação entre política, estética e as demais posições ideológicas controversas de José de Alencar, ver o trabalho de Ricardo Martins Rizzo (2007) Entre deliberação e hierarquia: uma leitura da teoria política de José de Alencar (1829-1877). 19 Como demonstrado por Cláudio José de Almeida Filho, no seu trabalho O papel da Crítica na Formação da Estética Literária Brasileira do Século XIX (1999). 20 Segundo Carlos Faraco, no texto Vida e Obra de José de Alencar, contido na 35ª edição de Senhora, publicado no

ano de 2009 (p.244).

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literária; e por outro, nota-se como o tema do nacional é de relevância pra os intelectuais

da área, que acabavam também por legitimar e reproduzir certas ideologias estéticas.

Sobre os temas estéticos, assim como na IG nacionalista, ver-se também a

presença de temas como o indianismo e o regionalismo com características heroicas. As

imagens que simbolizavam as belezas naturais, e as próprias línguas indígenas, surgiram

como um elemento ideológico que constituía toda uma estética nacional, como forma do

que poderia requerer uma identidade nacional oprimida pela língua dos portugueses.

Assim, esses temas, carregados de grande expressão singular e emocional, constituíam o

grande componente dos poemas e romances escritos naquele período. Por fim, os

autores românticos enalteciam a natureza, como fazia a tradição literária dos árcades,

entretanto, houve uma ruptura com as formas estilísticas mais rígidas do classicismo, e

as características europeias cosmopolizantes deram espaço aos traços locais e

particulares, fazendo coro à IG de caráter liberal individualizante.

1.6.6 Texto

Terry Eagleton defende que o texto literário seria um produto específico

determinado pelas categorias que discutimos acima. Nesse sentido, o romance Senhora

não seria apenas um produto meramente passivo, no qual poderíamos fazer relações

diretas entre as categorias acima listadas e o seu conteúdo ideológico, como faria uma

crítica marxista vulgar. O que foi visto até agora constituiria a pré-história do texto,

pois, seguindo os preceitos de Eagleton, o texto de Senhora seria constituído por essas

categorias, mas produziria, em cima dessas, uma nova perspectiva estética, e para

entender essa perspectiva deveríamos investigar as suas relações ideológicas, buscando

assim apreender o seu produto textual. Isso significa que não buscaríamos tão somente

quais ideologias atuam no romance, mas como essas ideologias operam no texto,

estruturando ideologicamente a estética de Senhora. Faremos uma breve aplicação desse

método eagletiano no romance, demonstrando como as ideologias estruturam a sua

forma.

1.7 FORMA IDEOLÓGICA DE SENHORA

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O romance Senhora, de José de Alencar, é marcado por uma diversidade de

modos ficcionais. Nele podemos ver jogos de cena dramáticos – como nas discussões

no quarto de Aurélia e Seixas – um forte simbolismo nas imagens da beleza de Aurélia,

e nas descrições carregadas de sentimento e moralismo a respeito do amor etc. Vemos

também, a crônica cotidiana, típica dos jornais, na representação das futilidades da

capital fluminense. Há ainda o realismo, presente na ironia dos enunciados a respeito do

casamento, e o rigor descritivo, vide o naturalismo, e nas descrições exageradas dos

ambientes da casa de Aurélia. Toda essa multiplicidade de gêneros e formas narrativas é

constituída por um conflito ideológico que dá unidade ao texto, em que as questões do

amor e do dinheiro são representadas na virtude de Aurélia e na fraqueza de Seixas,

respectivamente. Esses personagens centrais figuram um conflito entre ideologias

textuais, que seriam correlatas à ideologia geral “romântica” e à ideologia geral “liberal-

burguesa”, e que, dessa forma, seriam produzidas em uma determinada formação social

do século XIX no Brasil. Torna-se necessário perceber, todavia, como o texto trabalha

com essas duas ideologias, visto que, como preconiza Eagleton, o texto não é uma mera

reprodução da ideologia – do “real” histórico – , mas uma produção dessa ideologia.

Para isso, deveríamos refletir sobre como o texto problematiza-se com a ideologia.

Poderíamos dizer que o texto não é apenas uma solução a uma contradição ideológica,

mas é uma solução ao próprio tema-problema que cria. Logo, é importante ver como

essas IGs são trabalhadas na Ideologia textual.

Como vimos anteriormente, a trama do romance baseia-se na união de Aurélia e

Seixas. Desse modo, temos, de um lado, uma personagem que é vista, por meio da

leitura da ideologia da narrativa, como uma moça linda que possui uma grande devoção

à virtude e, principalmente, ao amor. Podemos dizer que sua maior riqueza, visto que

financeiramente fosse pobre, era seu idealismo: “Aurélia amava mais seu amor do que

seu amante, era mais poeta do que mulher, preferia o ideal ao homem.” (ALENCAR,

2009, p.107). Por outro lado, temos a personagem de Fernando, o bom vivant, o jovem

que frequenta os bailes da corte e recita poemas de Byron, frequentemente se utilizando

do dinheiro das mulheres abastadas de sua família para patrocinar suas algazarras. Ele

não tem muito dinheiro, devido a que seu pai, agora falecido, ficou parcialmente falido

ainda em vida. Assim, ao invés de compensar sua mãe e irmã financeiramente, é ainda

mimado por elas, para aproveitar sua vida. Nesse contexto, para ele o casamento poderia

ser uma oportunidade de sustentar essa sua vida hedonista e pseudoaristocrática: “o

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casamento desde que não trouxesse posição brilhante e riqueza era para ele nada menos

que um desastre” (ALENCAR, 2009, p.110). Enquanto para Aurélia o valor da vida

estaria no “céu”, no amor e na virtude, para Fernando o valor estaria nos prazeres

mundanos e na materialidade do dinheiro. Assim temos duas figuras maniqueístas, com

tipificações ideológicas bem definidas.

Dentro desse quadro narrativo, o que acaba gerando toda a tensão e conflito na

trama é o fato deles se apaixonarem. A ficção alencariana em si, nesse sentido, é repleta

desse maniqueísmo heroico, em que o protagonista é superior ao seu algoz devido a

suas virtudes metafísicas. A personagem Aurélia, a heroína urbana do amor e contra o

dinheiro, assemelha-se bastante a Lucíola, protagonista do romance homônimo de 1862.

É possível perceber então que há, constantemente, nos textos do autor, essa verve

ideológica que mostra o conflito entre os valores românticos desenvolvidos no Brasil e

sua suposta degradação pelos valores burgueses aristocráticos.

Esse modo de enredo baseado em maniqueísmo caricato, típico dos folhetins da

época, possuiria em Senhora uma profundidade ideológica anêmica, se não fosse o fato

de, subitamente, após a transação de casamento que ocorre entre os dois protagonistas,

uma relação de interesses financeiros que coloca em cheque as próprias posições sociais

e ideológicas dos protagonistas. Isso tanto torna complexo o enredo, quanto nos mostra,

em um sentido mais amplo, um vislumbre de uma estruturação literária de uma

sociedade com resquícios ideológicos escravocratas e aristocráticos, ou seja, um grupo

social acostumado, em suas vivências, com a reificação humana. Nesse contexto, o

dinheiro, ou a sociedade que se baseia nele, acaba por estruturar o próprio romance,

como defende, por exemplo, Antonio Candido, afirmando que se:

[...] atentarmos para a composição de Senhora, veremos que repousa numa espécie de longa e complicada transação, — com cenas de

avanço e recuo, diálogos construídos como pressões e concessões, um

enredo latente de manobras secretas, — no correr da qual a posição dos cônjuges se vai alterando. (CANDIDO, 2006, p.16).

Os próprios protagonistas, como afirma o crítico brasileiro, também têm suas

características alteradas pela lógica da transação. De fato, Aurélia, antes uma jovem

idealista que, de forma inocente se apaixonara por Seixas, quando o mesmo também não

tinha condições de proporcionar um futuro seguro aos dois, acabou não se casando com

o bom vivant, salvando-se de um casamento por conveniência e não por amor. Todavia,

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ao saber que o mancebo a deixou não pela falta de sentimento, mas pelo dote de outra,

ela tem seu ideal de homem corrompido e isso, para ela que possui uma riqueza no

“céu” ou nas ideias, é imperdoável. Ela resolve, então, casar para torna-se independente

de homens interesseiros, a exemplo do seu tio e tutor Lemos, e une a isso uma vingança

a Fernando Seixas, fazendo-o casar pelo dote. Aurélia, ao tornar Seixas o seu esposo e

mercadoria, faz com que ambos passem a ter comportamentos bastante distintos aos que

os constituíam ideologicamente no início da narrativa. A moça, antes pura e idealista

passa a agir de forma mundana, ao avaliar o preço dos seus pretendentes, e às vezes até

com certo “fulgor satânico”, quando se vinga de Seixas. E Seixas, de oportunista e

moralmente duvidoso, passa a ter responsabilidade e a honrar seus compromissos.

A mudança no casal se deve ao efeito da coerção social. Essa ditaria as “boas”

maneiras, ou os mitos e ritos ideológicos, que um casal burguês deveria seguir e se

adequar. O desejo de ambos, de manter a “farsa” de um casamento burguês feliz, faz

com que os dois finjam atitudes e usem uma linguagem irônica todo o tempo. Aurélia,

por exemplo, mostra-se estranha às senhoras da corte, pois, ao invés de se portar com

submissão ao marido, aparenta ser muito ativa e independente. Para aquelas senhoras da

corte isso se justificaria devido à moça ser uma mulher avançada para o seu tempo,

talvez influenciada pela “mulher europeia emancipada”21

. Seixas mostra-se em

responsável e até mesmo avarento, torna-se estranho para os amigos que achavam que

ele iria ser ainda mais indisciplinado com dote recebido. Ele, todavia, passa a ter como

álibi para seu bom comportamento perante a sociedade a responsabilidade do casamento

e de seu dinheiro adquirido. Seixas silencia, assim, o fato de que queria, por meio do

trabalho, pagar sua dívida com Aurélia.

Alencar busca, nesse sentido, sempre jogar com esses elementos do social e do

individual, mostrando como a ideologia hegemônica, imposta pela aristocracia

burguesa, possui muitas vezes uma lógica perversa. Seixas, por exemplo, se mostra

como um produto de seu meio: “A sociedade da qual me eduquei, fez de mim um

homem a sua feição” (ALENCAR, 2009, p.229). Aurélia, todavia, por ter vivido de

forma diferente na sociedade, parece possuir certa grandeza, como no seguinte exemplo,

em que ela se considera mais velha que seu tio, por causa de sua vivência:

21 Figurando até uma ideologia progressista para época, que seria um proto-feminismo que vinha da Europa.

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Esquece que desses dezenove anos, dezoito os vivi na extrema pobreza e um no seio da riqueza para onde fui transportada de repente.

[...] Por conseguinte devo ser mais velha do que o senhor que nunca

foi nem tão pobre, como eu fui, nem tão rico, como eu sou

(ALENCAR, 2009, p.33).

Essa ideia, presente na ficção alencariana, de que quem passou pela pobreza

sabe o preço da virtude, parece querer redimir o personagem de seus vícios mundanos

por meio dos valores ideológicos românticos e, de certa forma, até de uma visão

classista. O indivíduo possuiria, assim, certas virtudes transcendentes à qualquer lógica

social? ou seria o lugar social onde se encontra que determinaria suas virtudes ou

vícios? Trata-se de um conflito que permeia a obra. Assim, há nessa lógica sempre uma

desordem entre o que os personagens apresentam para a sociedade e o que eles

realmente sentem. Esse conflito gera toda a ironia e a ambiguidade de uma linguagem

censurada pela ideologia hegemônica dominante, que, simultaneamente, revela sua

verdade, se for posta sob a perspectiva privada do casal protagonista. As conversas entre

os dois no jardim de casa são exemplos profundos dessa linguagem irônica:

- Dê-me o braço, que ali vem D. Firmina.

Aurélia passou a mão pelo braço de Seixas. Passeando ao longo de uns painéis de fúcsias de várias espécies e admirando as flores,

tiveram eles esta conferência, que de certo nunca houve entre marido e

mulher. - A senhora comprou um marido; tem pois o direito de exigir dele o

respeito, a fidelidade, a convivência, todas as atenções e homenagens,

que um homem deve à sua esposa. Até hoje... - Faltou-lhe mencionar uma, talvez por insignificante, o amor, atalhou

Aurélia brincando com um cacho de fúcsias. (ALENCAR, 2009,

p.161-162)

Toda essa conversa, aparentemente trivial, é estruturada por um conflito

ideológico que organiza a linguagem do texto. No primeiro enunciado temos a presença

de D. Firmina. Ela figura a ideologia da sociedade fluminense, que censura o

comportamento dos outros personagens e os interpelam a adotar os papéis sociais da

ideologia hegemônica burguesa. No momento em que a personagem surge, Aurélia dá

uma ordem ao seu esposo/mercadoria para que ele pegue seu braço e assuma seu papel

de marido. O narrador faz a descrição do ambiente exótico pelo qual passeiam e das

amenidades que ambos trocam, demonstrando a relativa tranquilidade do ambiente

social, passividade essa que contrasta com a tensão entre os dois. Após esse passeio, o

casal conversa sobre o tema central do romance, ou seja, Fernando assegura os direitos

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de sua “senhora”. Nesse enunciado, percebe-se a formalidade dos termos que ele usa,

indicando certo respeito ou servilismo, enquanto ela retruca cobrando os deveres do

marido – dentre eles, o amor. Esse mesmo amor que, enfaticamente, ela trata por

“insignificante”. Assim, o narrador frisa que, simultaneamente ao enunciar tal frase,

Aurélia brinca com um cacho de fúcsias, novamente contrastando a tranquilidade e o

desinteresse do ambiente social ao clima de tensão entre os dois.

Embora em boa parte do enredo seja apresentado um conflito da psique de

ambas as personagens, ou seja, a desilusão amorosa entre os dois, é, em última

instância, a dívida material entre eles que provoca o real conflito. De fato, é por meio do

trabalho de Seixas que acontece a libertação, no “espírito” ou na consciência deles. É

justamente pelo fato do conflito se concentra na consciência dos indivíduos que na

maior parte do enredo os conflitos são simbólicos e se concentram nas ironias e em

vários diálogos ambíguos. Vemos algumas exceções, a exemplo do fato de Aurélia fazer

com que Seixas vá aos eventos e visitas sociais, exercendo materialmente o conflito

ideológico da sua dominação sobre seu marido. Outro bom exemplo se encontra no final

do terceiro capítulo quando a protagonista resolve “aproveitar a vida”, mas isso ainda

se torna uma compensação material ou física a um conflito psicológico ou ideológico,

uma tentativa de superar ou esquecer os problemas, como se observa na voz da própria

Aurélia: “Que não dera apagar essas crenças, ou antes, estas incômodas ilusões da

infância, com que educou-se minha alma e conformar-me a realidade da vida. Oh se eu

conseguisse!...”( ALENCAR,2009 P.179). Nesse trecho, vemos como Aurélia em suas

lamúrias se vê num impasse, pois ela tenta acreditar que a realidade da vida não seria

um ideal de honra e justiça, mas sim um fingimento em que a inocência da infância não

é mais possível – ou em termos teóricos, como se a Ideologia em que ela acreditava

preenchê-la inteiramente – e não correspondesse à realidade material a qual ela vive.

Outro conflito no romance alencariano seria o silêncio expressivo de uma

representação antagônica à riqueza. Há no romance a presença constante da corte e seu

requinte, percebida sempre em contrapartida à ausência latente de, por exemplo, um

cortiço ou uma senzala e suas mazelas. É continuamente a corte e os ambientes

aristocráticos que permeiam o romance. Não parece ser apresentada nenhuma proposta

alternativa a esse ambiente. Ou seja, o autor se concentra na organização social e

ideológica dos ambientes aristocratas. Apenas um pano de fundo da corte fluminense é

levemente mencionado nos recuos temporais e narrativos sobre o passado de

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dificuldades financeiras de Aurélia, mas esse tem como função não uma crítica direta à

organização social que marginaliza grande parte dos indivíduos a miséria, mas sim o

efeito de mostrar os motivos para a ojeriza de Aurélia ao dinheiro – a exemplo da perda

de Aurélia de seus amores, pai, irmão e a necessidade de casar por conveniência como

fonte de sobrevivência, o que fez surgir nela o valor do amor como algo superior ao

dinheiro.

É por meio de Aurélia que se faz a crítica aos valores burgueses, mas ela não o

faz através de uma crítica materialista, mas sim de uma crítica idealista. Nesse sentido,

o próprio narrador admite a abstenção de uma crítica mais racional, em favor de uma

explicação mais sentimental, como podemos ver no trecho em que ele explana a

passividade de Aurélia em relação à ausência de atenção de Seixas para com ela: “esse

fenômeno devia ter uma razão psicológica, de cuja investigação nos abstemos; porque o

coração, ainda mais de uma mulher que é toda ela, representa o caos do mundo moral.”

(ALENCAR, 2009, p.107). Essa abstenção do narrador reforça o silêncio para com a

racionalização dos valores românticos que circunscreve a ideologia do romance,

principalmente na consciência da protagonista. Essa atitude dela apresenta-se como uma

posição em que não há dicotomia, mas sim um antagonismo transcendente, no qual o

amor seria sempre superior, não importando qual seja problema. O inimigo do dinheiro,

nesse sentido, não seria a pobreza, mas o amor; o problema do casamento por dinheiro

não seria a falta de dinheiro de alguns, mas a falta de amor. Não haveria, nesse sentido,

uma ideologia antagônica de classes, mas uma ideologia supraclassista que tentaria

purificar e unificar todos os conflitos entre essas classes. Uma ideologia perfeita em seu

ideal, pois resolveria todos os problemas que em uma sociedade escravista, patriarcal,

aristocrata e com a maior parte da população iletrada, não poderia resolver

materialmente. Isso demonstra a deficiência da ideologia romântica, assumida por

Aurélia, que critica a reificação humana e degradação dos valores sociais pelos

interesses burgueses, mas não mostrando uma solução material para o conflito.

Poderíamos dizer, seguindo o pensamento de Roberto Schwartz, que, em Senhora, a

prosa: “não é conformista, pois não justifica, nem é propriamente crítica, pois não quer

transformar” (SCHWARZ, 2000, p.42-43). Essa suposta dualidade se dá pelas lacunas

que a ideologia romântica apresentada no Brasil não consegue preencher no contexto

em que se desenvolve.

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Apesar de todas as “negociações” e trocas de papéis sociais e ideológicos, vemos

que a solução que Alencar dá a seu tema-problema é uma conciliação entre a ideologia

romântica e a ideologia liberal burguesa. No romance, é possível perceber que a

reconciliação final entre Aurélia e Fernando se desenvolve a partir da quitação do

“dote”, ou seja, é apenas a partir da liberdade material ou monetária que pode o

sentimento passional se libertar na trama. Nessa perspectiva, se no início temos dois

personagens de virtudes distintas, mas que se amam, e que por meio do dinheiro têm seu

comportamento mudado, ao longo do enredo vemos que é por meio desse contrato

monetário que eles vão construindo um relacionamento de maneira irônica. Essa

ambiguidade da trama é gerada porque o empecilho que separa os dois é o dinheiro e

sua consequente desvirtuação.

Como podemos ver nesses exemplos, em que apesar de não se declararem um

para o outro, os dois reconhecem para si seus sentimentos para com o outro, Aurélia diz:

“– Tu me amas!... exclamou cheia de júbilo. Negues embora, eu o conheço; eu o vejo

em ti, e sinto-o em mim!” (ALENCAR, 2009, p.211). E Seixas, explicado pelo

narrador: “Fernando, esmagado pelo sarcasmo, contra o qual não podia reagir, teve

ímpetos de confessar a essa mulher toda a insânia do amor que sentia” (ALENCAR,

2009, p. 220). Dessa forma, a ironia acaba tornando-se hábito e então realidade, ou seja,

eles fingem para a sociedade que se amam, fingem para ambos que não se amam, mas

sabem que se amam internamente, entretanto, o dinheiro obstrui os sentimentos do casal

protagonista.

A libertação vem por meio do trabalho de Seixas. Ou seja, espraiando essa

reflexão em termos mais gerais, seria por meio do esforço e volição individual que

poderíamos superar as dificuldades sociais, sem precisar “se vender” em um casamento

por conveniência. Ao quitar sua dívida, Seixas se liberta materialmente, por meio do

trabalho; exercendo os preceitos do liberalismo econômico, pode então gozar de seus

desejos sentimentais, que representam os princípios da ideologia romântica. Da mesma

forma, Aurélia, ao ter sua dívida paga, percebe que Seixas não seria um homem

desvirtuado e, ao mostrar seu testamento, também prova que o dinheiro não é superior

ao sentimento dela. Desse modo, apesar dos seus comportamentos abusivos sobre

Seixas, ela parece não ter se deixado levar pelo poder do dinheiro. Essas atitudes fazem

com que o caminho para a reconciliação seja possível, e quando isso acontece eles

percebem que todo esse casamento fora um fingimento: “Somos dois estranhos. Não é

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verdade? Seixas confirmou com a cabeça” (ALENCAR, 2009, p. 230- 231). Esse

estranhamento aponta para a percepção de que a relação de ambos era movida pelo

contrato econômico, e o que fizeram até então era justificado por esse mesmo contrato.

Há uma relação dialética entre a libertação material e a espiritual dos indivíduos.

Ao quitar sua dívida Seixas não está só liquidando seus débitos econômicos com

Aurélia, mas sua dívida moral, que para ela, que pensa ser uma virtuosa, era o

fundamento de sua vida. Seixas admite que se tivesse consciência talvez não tivesse

perdido sua dignidade, e então reconhece: “Mas a senhora regenerou-me e o

instrumento foi esse dinheiro” (ALENCAR, 2009, p.229). Seguindo esse raciocínio,

podemos afirmar que o dinheiro obtido de forma justa e o amor se unem como uma

conciliação perfeita para o indivíduo, elo conveniente a ideologia liberal econômica.

Nesse sentido, podemos arguir que o texto se estrutura na junção da ideologia liberal

burguesa com a ideologia romântica – quando o dinheiro é obtido por meio da

corrupção moral do indivíduo ele é visto como um mal, mas, se é obtido pelo esforço

justo, é visto como um bem propiciador da elevação dos sentimentos humanos. Nessa

perspectiva, entendemos que o romance de Alencar fora, em sua estruturação,

embevecido por uma tradição simbólica que tentava resolver, com princípios

metafísicos e modelos ideológicos semifeudais, os problemas da sociedade burguesa.

Por não ter outra referência ideológica – como, por exemplo, uma tradição racionalista

ou empirista, que colocasse à prova as bases da ideologia romântica – ou até devido a

isso, por ter de importar formas ideológicas europeias, buscou-se referência nos

modelos idealistas europeus, e no âmbito da estética buscou-se referência nos folhetins

franceses. Esses modelos ideológicos ofereceram, assim, uma crítica das relações

sociais burguesas; uma crítica, todavia idealista, à cultura de reificação humana, não

demonstrando as determinações sociais para esse problema e pondo o liberalismo

econômico como chave para a libertação do indivíduo.

Essa complexidade ratifica a própria ideologia autoral alencariana, que buscava

conciliar seu conservadorismo com a modernidade. Como demonstra Ricardo Rizzo

(2007), Alencar bebia das ideias progressistas do Romantismo, seguindo a máxima do

romancista Vitor Hugo de que essa escola era o liberalismo na literatura, mas, ao

mesmo tempo, o autor cearense também era embevecido por ideias neoclássicas e

católicas, sendo necessário ver que o projeto estético de Alencar é um processo peculiar

em que ele: “singulariza a sua elaboração própria da tradição romântica, e evidencia as

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etapas de preparação de escrita romanesca” (RIZZO, 2007, p.209). Apesar dessa

variedade ideológica no pensamento alencariano, muitas de suas ideias estão em

conflito entre si. Isso aponta para um problema comum na produção ideológica da

época, que tentava resolver os problemas materiais com uma visão idealista. Essa visão

é defendida, por exemplo, por Roberto Schwarz, que percebe uma ligação forte entre os

discursos literários e os discursos da sociedade em geral – em termos eagletianos, a IG

em reverberação com a IE. Para Schwarz: “os problemas de Alencar eram, com pouca

transposição, os produtos de seu tempo, continuidade fácil de documentar com

discursos e matérias de imprensa, que sofria das mesmas contradições e desproporções”

(SCHWARZ, 2000, p.73).

Poderíamos, por fim, entender a transação de um casamento como o tema

ideológico e estruturante do texto através de uma perspectiva mais ampla, na qual o

texto não é somente a superação do amor perante o econômico, ou entre a ideologia

romântica versus a ideologia liberal burguesa, como uma crítica vulgar poderia afirmar,

mas uma junção idealista entre duas ideologias aparentemente antagônicas.

Assim sendo, poderíamos entender o romance da seguinte forma, é a partir da

libertação econômica da dívida, por meio do trabalho individual de Seixas, que o amor

pode se estabelecer. Apesar de o amor estar presente em toda a narrativa, no desejo

interior dos protagonistas, ele é silenciado para dar vez às relações comerciais que

tornam complexo o enredo, fazendo os recuos e concessões na narrativa, bem como as

manobras secretas da linguagem. Quando a dívida material – e, por consequência, a

espiritual e moral – é quitada, o amor pode falar ou fazer presença no romance,

deixando em silêncio, quase que completamente, o “mal” dinheiro, que é aquele obtido

por meio de tráfico de influências, diferente do “bom” dinheiro, que serve para ajudar o

amor. Assim, o tema da corrupção do indivíduo pelo dinheiro é solucionado não por

uma visão dualista sinalizada no adágio “o amor é maior que o dinheiro”, mas por uma

visão mais complexa, mas não menos idealista, de que o dinheiro “justo”, para aqueles

que podem ter um trabalho, pode ajudar ao amor.

Uma análise científica do texto de Senhora precisa buscar os princípios

ideológicos que estruturam o texto. Isso significa observar as relações diferenciais dos

múltiplos aspectos que constituem o texto, sejam eles estéticos ou sociais; e foi isso que

almejamos em nossa análise. Sendo assim, pudemos observar que um elemento estético

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– o romance folhetim – produz um aspecto ideológico – o heroísmo romântico – , que é

posto em contradição quando se apresentam elementos de outra ideologia, como é o

caso do liberalismo econômico. Esse procedimento conflituoso acaba causando a ironia

que permeia toda a estrutura do romance, e que configura o processo no qual os

elementos estéticos são deslocados e recolocados pelos elementos ideológicos e vice-

versa. Esse é o procedimento de autodeterminação do texto, em que cada um de seus

temas-problema é provisoriamente resolvido no texto de Senhora. Foi essa

autodeterminação, ou produção de uma solução a uma problemática histórica/

estética/ideológica, que buscamos evidenciar no texto.

Em nossa análise do texto de Senhora, buscamos não somente reproduzir as

ideias de Eagleton, mas, usando seus próprios princípios críticos, produzir outro texto

que não é somente dele nem nosso, mas sim uma terceira possibilidade crítica. Essas

contradições e homologias entre nosso texto e a proposta eagletiana, todavia, foram

construídas deliberadamente para entendermos o projeto do crítico inglês de reavaliação

desse tipo de crítica científica. Assim, fizemos essa análise buscando melhor

compreender as visões posteriores do autor – entendendo que o pensamento descrito

em Criticism and Ideology precisou se adaptar às novas urgências e desafios teóricos

que surgiram pouco tempo depois de seu lançamento – e propondo não outro método,

mas uma alternativa a própria noção de crítica literária.

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2. PROBLEMAS DA CIÊNCIA DO TEXTO

Como vimos no capítulo anterior, Terry Eagleton produziu um método de análise

para construir uma crítica literária marxista. Esse projeto, todavia, como observa James

Smith (2008), não logrou uma penetração notória nos meios acadêmicos, não

influenciando nenhum trabalho expoente, sendo depois abandonado em parte pelo

próprio Eagleton. Os motivos para esse inexpressivo impacto no âmbito acadêmico

foram alguns problemas na própria composição teórica, bem como fatores históricos

que tornaram as discussões contidas no livro obsoletas. Tentaremos, então, neste

capítulo, demonstrar o porquê desse projeto não ter se estabelecido largamente na

prática crítica de Eagleton, e então entender como ele negocia suas proposições de

teoria literária com os novos desafios, propostos pelas correntes pós-estruturalista e

desconstrutivista, que acabaram por colocar em “xeque” alguns conceitos marxistas da

época.

Nesse sentido, afirmaremos que, diante desses novos desafios que surgiram

depois da publicação de Criticism and Ideology, o crítico britânico tentou resgatar a

crítica literária de seus procedimentos institucionalizados e tecnocráticos, que, segundo

ele, esvaziariam o sentido político do entendimento estético. Para isso, o autor propôs

uma solução “revolucionária” que buscaria entender o literário não apenas como um

objeto artístico para fruição individual, mas como algo de um funcionamento vital para

a construção e manutenção da sociedade.

Para procedermos nossa investigação, observaremos os aspectos históricos,

teóricos e estilísticos que fizeram o autor abandonar parcialmente suas proposições

anteriores e sua tentativa de forjar novas concepções diante dos desafios críticos

contemporâneos. Vale ressaltar que essa divisão é apenas analítica, visto que ambos os

fatores estão imbricados entre si.

2.1 FATORES HISTÓRICOS

Nos trabalhos subsequentes a Criticism and Ideology, como por exemplo nos

prefácios de Walter Benjamin (1981) e de Against the Grain (1986), Eagleton sempre

nos lembra de que quando esse seu livro de teoria marxista fora escrito, em meados da

década de 1970, as políticas radicais de esquerda estavam em alta e em crescente

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produção, fruto dos eventos sociais como o maio de 68, os movimentos feministas e

anti-guerras e o surgimento do eurocomunismo. Isso, por consequência, criou um

ambiente propício para o desenvolvimento de uma política de esquerda muito confiante

em seus projetos enxergando esses como sendo mais esclarecedores que os outros

projetos teóricos.

Um dos mais notórios trabalhos marxistas na época foi o de Louis Althusser, que

propunha solucionar os problemas da crítica cultural de esquerda através de uma crítica

marxista “científica”. Segundo Eagleton: “the benefit of Althusser`s major theoretical

concepts was that it sought to correct what could often be convincingly exposed as

flawed or false conceptions in other traditions of Marxist thought”22

(EAGLETON,

1988, p.2-3). Percebemos então que trabalhos de Althusser ofereciam, assim, um

refinamento teórico às concepções mecanicistas da produção social conhecidas como

marxismo vulgar, e, além disso, criticavam a tradição idealista marxista inspirada nos

conceitos hegelianos, por exemplo, segundo ele, alguns trabalhos de Georg Lukács e

Lucien Goldmann. Por conseguinte, Althusser, com sua visão anti-humanista e anti-

historicista, prenunciou muitas das discussões que se tornariam chaves para o

surgimento das correntes pós-estruturalistas. Porém, suas ênfases no aspecto estrutural

da organização social, na produção como determinante do ser social e sua concepção de

ideologia acabaram por ser suplantadas pelas ideias desconstrucionistas e pós-

estruturalistas, pois essas enfatizavam não a estrutura, mas o descentramento, a

fragmentação social e as margens do discurso; não priorizavam a produção, mas a

recepção ou a interpretação ativa dos consumidores ou leitores, e defendiam a ideia de

que o conceito de ideologia subjugava os outros discursos como uma falsa

representação, mas não a si mesmo.

O trabalho de Eagleton, assim, tornou-se inovador, por conseguir levar essas

discussões althusserianas e as de Pierre Macherey para o ambiente britânico, e por

defender uma visão marxista não hegeliana, incomum nos trabalhos sobre os romances

na época.23

No entanto, quando seu livro foi lançado em 1976, os trabalhos dos

pensadores pós-estruturalistas, como Michel Foucault, Jacques Derrida e Jacques Lacan,

22 O beneficio dos maiores conceitos teóricos de Althusser foi que eles procuraram corrigir o que poderia frequentemente ser convictamente exposto como concepções fracas ou falsas em outras tradições do pensamento marxista. 23 Se levarmos em conta que os trabalhos marxistas sobre literatura, como os da escola de Frankfurt, os de Lukács e Goldmann, eram de base marxista hegeliana. E, no contexto inglês, os trabalhos se baseavam nas teorias de F.R.

Leavis e Raymond Williams, que não eram marxistas.

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começaram a ser traduzidos para a língua inglesa, e acabaram por se tornar

hegemônicos, tanto nas faculdades britânicas quanto nas americanas, onde o

desconstrucionismo se transformou em um discurso dominante, tornando-se referência

no desenvolvimento das ideias pós-estruturalistas – como exemplo notório temos a

Universidade de Yale. Explicitando essa ideia, Smith afirma:

Criticism and Ideology, situated as it was on the cusp of the shift in

the Anglo-American academy from structuralism to post structuralism,

with its high-structuralist formulations, was thus easily theoretically sidelined from the debates that were about to engulf the literary

academy24

(SMITH, 2008, p.57).

Nessa perspectiva, os trabalhos de cunho althusseriano, como os de Macherey e

Eagleton, não conseguiram obter o mesmo impacto que os trabalhos dos pensadores

pós-estruturalistas, fazendo com que muitas ideias propostas por aqueles fossem tidas

como superadas. Essa questão, no entanto, não se deu por méritos conceituais do pós-

estruturalismo, mas sim por razões políticas que atendiam a uma nova demanda de

pesquisadores e alunos, como observamos neste comentário de Paul Resch:

The discourse that Macherey sets out to deconstruct was labeled "ideological" rather than ‘logocentric’, a materialist emphasis

considerably less acceptable in Anglo-American critical circles than

was the postmodern iconoclasm of Derrida 25

(RESCH, 1992, p.261).

Como consequência disso, ao fim da década de 70, seguindo o raciocínio de

Resch, o aparato conceitual da esquerda marxista havia sido substituído por conceitos

desconstrucionistas e pós-marxistas. Logo, segundo Resch, não mais se usava,

costumeiramente, nas análises, termo como “ideologia”, mas sim “discurso”; não se

enfatizava a produção, mas a recepção; não se estudava mais a história, mas a

textualidade; não se lutava mais na política de classe, mas nas micro-políticas.

Nesse sentido, o grande argumento de Eagleton para responder o porquê dos

projetos marxistas – dos quais o seu próprio Criticism and Ideology fazia parte – não

terem perdurado nos anos oitenta, foi o fato da existência das subsequentes derrotas na

24 Criticism and ideology, situado como estava na cúspide da mudança na academia anglo-americana do estruturalismo para o pós-estruturalismo, com suas grandes formulações estruturalistas, foi assim facilmente e teoricamente posta de lado dos debates que foram engolfados na academia literária. 25 O discurso que Macherey pôs para desconstruir foi rotulado de “ideológico” ao invés de “logocêntrico”, uma ênfase materialista consideravelmente menos aceitável nos círculos críticos anglo-americanos do que foi a

iconoclastia pós-moderna de Derrida.

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prática social e política de esquerda. Ou seja, toda agitação social, desde o maio de

1968, começou a ser contida pelos poderes conservadores, que acabaram levando o

pensamento teórico que era confiante de si e “científico” para uma política

desacreditada e “textual”, em que qualquer forma de conhecimento era uma questão não

de ciência, mas de perspectiva política na linguagem. Essa derrota se deu, em parte,

porque a teoria marxista andava dissociada da prática de libertação social e longe dos

anseios cotidianos das “massas”, enquanto as teorias desconstrutivistas se aproximavam

do estilo de vida do capitalismo globalizado, ficando assim bem mais sintonizadas com

os interesses de uma sociedade pós-maio de 68, desiludida e cética.

Portanto, a tradição do marxismo ocidental, a exemplo de Louis Althusser ou

dos teóricos da escola de Frankfurt, constantemente construiu suas teorias dissociadas

das lutas de classes, como defende Perry Anderson:

Adorno haveria mesmo de retomar exactamente os preceitos de

Althusser, segundo os quais a teoria é um tipo específico de prática («prática teórica»), e a noção de prática tem ela própria que ser

definida pela teoria. «A teoria é uma forma de prática», escreveu

Adorno, e «a própria prática é um conceito eminentemente teórico». O teoricismo provocador destas teses, que suprimem todo o problema

material da unidade entre a teoria e a prática como relação dinâmica

entre o marxismo e a luta revolucionária de massas, proclamando a

sua identidade lexical à partida, pode ser considerado como um leitmotiv do marxismo ocidental da época que se seguiu à Segunda

Guerra Mundial (ANDERSON, 1976, p.95-96 sic).

Como podemos ver nessa citação, Anderson considera que, desde a segunda

guerra, as correntes marxistas vêm se tornando descrentes com relação a uma teoria

formada a partir da prática e se distanciando das massas; e isso, ao invés de energizar as

lutas e a percepção radical na teoria, acaba por fortalecer os elementos mais

conservadores, como o elitismo de achar que a teoria sozinha pode resolver os

problemas conceituais e práticos. Nesse sentido, no caso do marxismo estruturalista,

podemos ver que suas ideais estavam mais preocupadas em determinar processos

objetivos da história do que em contribuir com a luta de classes ou intervir nas lutas

contra as hegemonias simbólicas. Dessa forma, visto que muitos desses críticos se

restringiam à vida acadêmica, essa atitude era teoricista e academicista, pois

impossibilitaria a potencialidade da mudança social e inviabilizaria as grandes ações

coletivas de mudança social.

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Na prática social dos anos 70, ao contrário do que preconizam essas teorias,

todavia, Anderson e Eagleton defendem que a esquerda era bastante otimista e estava

em constante luta contra os valores vigentes. No entanto, a teoria estava em

descompasso com o que os indivíduos sentiam e desejavam, pois esses achavam que

apenas os cientistas poderiam resolver o problema da sociedade, fazendo com que suas

ideias se tornassem obscuras e impraticáveis. Contudo, com a crise do petróleo em 1973

e a hegemonia no plano político e cultural da direita, inspirado pelos modelos

anglófonos do tacherismo e do reganismo, a esquerda passou por um período de

desilusão nas práticas subsequentes às conquistas esquerdistas pós-maio de 68, que

foram dominadas pelo capitalismo conservador enaltecido no começo dos anos 80. Isso

ia ao encontro do pessimismo e do ceticismo das teorias pós-marxistas e pós-

estruturalistas, habilitando essas a tomar a doxa dos discursos na crítica cultural. Sobre

essa ideia, Eagleton comenta:

As the 1970s ran their course, and global crisis of capitalism generated

shift in political power in Britain and elsewhere to the far right, the

intellectual climate on the left within which these questions had been debated was markedly transformed. Two diversal political directions

appeared to be indicated by the deadlocks beyond which althusserian

marxism was unable to move. On the one hand, in more pragmatic, politically dispirited milieu, it was possible to distil from that body of

theory its more “rightist” elements, and press these through to a point

which led beyond marxist altogether, into the burgeoning sub-cultures of post-marxist and post-structuralist thought (…)

26 (Eagleton, 1988,

p.4).

O que Eagleton está mostrando é que, apesar de Althusser querer defender o

marxismo de certos humanismos e interpretações reformistas, tornou-se preciso também

defender o marxismo contra alguns aspectos do althusserianismo e das ideias pós-

marxistas geradas a partir desse. Isso não significa, todavia, retornar ao marxismo

clássico, mas sim renová-lo a partir dos discursos não marxistas que estão em voga na

contemporaneidade. Assim, esse diálogo com as outras hermenêuticas, aliado a uma

crítica menos “teoricista” e mais atenta à organização prática social e cultural, é o que

26 À medida que a década de 1970 seguiu o seu curso, e a crise global do capitalismo gerou uma mudança no poder político na Grã-Bretanha e em outros lugares para a extrema direita, o clima intelectual na esquerda, dentro do qual essas questões foram debatidas, foi marcadamente transformado. Duas direções políticas diversas pareciam ser indicadas pelos impasses para além do qual o marxismo althusseriano era incapaz de se mover. Em uma direção, um ambiente mais pragmático e politicamente desanimado, foi possível destilar desse corpo de teoria seus elementos mais "direitistas" e pressionar esses até um ponto que os levassem por completo para além do marxismo, para o

interior das crescentes subculturas do pensamento pós-marxista e pós-estruturalista.

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Eagleton tentará desenvolver na sua visão revolucionária dos anos seguintes. Portanto,

para o pensador britânico, a questão não era que os insights marxistas promovidos dos

anos 60 até os anos 80 não deveriam ser resgatados, mas sim que eles precisam ser

constantemente repensados. Se nessa época a crítica literária marxista estava em

ascensão e bastante confiante de suas premissas, a partir dos anos 80 os processos de

interpretação literária dessa tradição precisaram ficar na defensiva e se adaptar aos

novos desafios de sua teoria. Iremos, agora, observar alguns pontos teóricos que

pareciam problemáticos no projeto de Eagleton nos anos 70 e que foram questionados

nos anos vindouros.

2.2 FATORES TEÓRICOS

O projeto de uma ciência do texto proposto por Eagleton não obteve tanta

repercussão devido a vários fatores históricos e políticos, como vimos anteriormente.

Contudo, em nossa perspectiva, essa sua crítica materialista possuía contradições

referentes às próprias organizações conceituais que constituíam seu método. Esses

problemas, de certa forma relacionados com as contradições históricas, propiciaram o

perecimento de seus conceitos, com a passagem de uma década para outra. Nesse

sentido, questões principais na teoria de Eagleton, como cientificismo, ideologia,

produção e literatura precisavam ser rearticuladas aos novos desafios da própria teoria

literária, que então absorvera conceitos das mais diversas áreas da humanidade, como a

psicanálise, a filosofia, a antropologia, o feminismo e os estudos culturais.

Assim sendo, discutiremos esses quatro pontos – cientificismo, ideologia,

produção e literatura – explicitando o porquê de serem problemáticos.

2.2.1 Cientificismo

Como vimos no primeiro capítulo, Althusser e seu parceiro Etienne Balibar

fizeram uma releitura de Marx e afirmaram, em Reading Capital (1968), que há uma

diferença entre o conhecimento científico e as ideologias. Para eles, Marx fundou uma

ciência, assim como a matemática e a física, nomeada de ciência da história ou das

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ideologias, que ficou conhecida como materialismo histórico. Assim, influenciado por

essas ideias, Eagleton iria construir uma ciência do texto literário.

Para um leitor de crítica literária acostumado a ver o termo “ciência do texto”

como algo derivado do projeto formalista e estruturalista linguístico, seria estranho ver

uma apropriação desse termo por uma crítica que se dedicaria a ver a história e as

ideologias, visto que essa crítica usualmente lidaria com elementos mais políticos, e

assim mais suscetíveis a uma flexibilidade conceitual do que estritamente mensuráveis

num sentido formal. No entanto, o projeto de Althusser, que Macherey e Eagleton foram

os primeiros a formalizar na literatura, desejava racionalizar e objetivar não a forma

linguística do texto isolada, mas entender a estrutura textual como uma composição da

história.

O projeto da ciência do texto do marxismo estruturalista buscou verificar que a

estrutura do texto literário é ela mesma uma produção da história, por meio da união de

duas metodologias: por um lado, o rigor formal de analisar os objetos literários como

uma organização constituída graças a sua relação diferencial com os elementos que

constituem um sistema; e, por outro, a percepção marxista de que todos os elementos

sociais são uma produção e frutos de uma história marcada por lutas de interesse.

Assim, diferentemente do estruturalismo linguístico – a exemplo da Escola de Praga – o

marxismo estruturalista não entendia o texto literário como uma relação diferencial

interior da linguagem, mas entendia que o texto não possuía nem um interior formal,

nem uma história exterior, mas sim uma presença da história na própria organização da

linguagem.

Segundo a perspectiva do projeto marxista estruturalista, Karl Marx foi um

proto-estruturalista ao perceber a materialidade e a determinação do ser social. Assim,

indo de encontro aos projetos não científicos, metafísicos, humanísticos ou

psicologistas, o texto literário seria um produto da determinação social, mas, ao

contrário dos modelos mecanicistas, para Althusser, os elementos do texto possuiriam

uma relativa autonomia dentro do sistema social. É necessário perceber, dessa forma,

que a própria produção da estética é estruturada por uma linguagem relativamente

autônoma – por outro lado, mesmo a linguagem deve ser vista como um produto de uma

ideologia e, por consequência, como um produto dos modos de produção social.

Nesse sentido, seguindo algumas ideias dos filósofos Gaston Bacherlad e August

Comte, Althusser e Macherey entendem que o conhecimento científico da literatura não

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deve buscar o objeto literário em si, mas “a discursividade característica do verdadeiro

conhecimento” (MACHEREY, 1971, p.12), ou, em outros temos, as estruturas sociais

que o constitui. Assim sendo, o crítico deve buscar entender as leis de produção de seu

objeto, mudando a percepção empírica e superficial do texto literário e o desmenbrando

em conceitos. Nessa perspectiva, para Macherey o conhecimento científico funcionaria

da seguinte forma:

A ciência não nos dá uma interpretação, sentido estrito do termo, dos

seus objectos: transforma-os, atribuindo-lhes uma significação que a

princípio não tinham. Não existe no movimento dos corpos que caem

nenhuma vocação que fundamente a lei dessa queda e ainda menos que lhe obedeça (já que a natureza não é um reino com um rei que

submeta às suas leis); durante muito tempo os corpos caíram e

continuam a cair sem enunciar a lei. Mas era vocação do saber produzir essa lei: quer isto dizer que a lei não está nos corpos que

caem, mas fora deles, a seu lado, aparecendo num terreno totalmente

diferente, o do saber cientifico (MACHEREY, 1971, p.144. sic).

Vemos então Macherey, a partir da analogia da tese de Newton, defender que a

crítica deva ser uma produção de conhecimento sobre o objeto, algo que não é dado pelo

objeto, que só é perceptível a partir de nossa interpretação e criação de conceitos sobre

ele, ou seja, que se proponha fazer o texto literário mostrar suas leis de produção, como

ele se transforma no que é. Desse modo, se o texto literário é um produto social, ele

trabalha com materiais produzidos por essa sociedade; logo, o estudo racional sobre

essa produção social evidenciaria a constituição do texto.

Seguindo esse raciocínio, como vimos no capítulo anterior, Eagleton tentou

construir um modelo sofisticado para determinar esse produto literário, criando vários

conceitos, como, por exemplo, os de Modo de Produção Literário (MPL) ou Ideologia

Estética (IE). Ele tentou, dessa forma, construir o conhecimento de como o texto

literário foi produzido por meio de suas relações diferenciais no sistema de produção

social da ideologia e da estética, acreditando que, ao fazer isso, poder-se-ia chegar a um

conhecimento sobre o texto.

Seguindo esse modelo proposto por Eagleton, em nossa análise do romance

Senhora pudemos perceber os traços dessa tentativa de aplicar uma ciência do texto. O

primeiro fator dessa aplicação foi a percepção de que o romance seria estruturado por

uma confluência de vários elementos ideológicos e de organização produtiva do século

XIX. Assim, por meio de uma percepção dessa determinação social e estética, tentamos

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construir um conhecimento científico sobre o texto de Senhora, elucidando suas leis de

produção. Vimos também que, apesar da multiplicidade de gêneros, símbolos e

figurações que existem no texto alencariano, esses se relacionam entre si, estruturados

por um conflito ideológico cujo tema hegemônico seria o tráfico das relações humanas.

Portanto, nosso exemplo de análise científica do texto de Senhora tentou demonstrar

como Eagleton apostava numa visão de crítica literária que poderia ser criteriosa,

determinística e racional dos textos literários, a partir de um entendimento de que,

apesar de o texto possuir uma estrutura formal, essa forma é ela mesma ideológica e

aponta para as relações sociais e históricas. Em suma, essas percepções chegaram ao

extremo de Eagleton afirmar que apenas o marxismo poderia entender o texto literário:

The guarantor of a scientific criticism is the science of ideological

formations. It is only the basis of such a science that such a criticism

could possibly be established – only by the assurance of knowledge of

ideology that we claim a Knowledge of literary text27

(EAGLETON, 2006, p.97).

Contudo, na passagem dos anos 70, quando houve o auge do estruturalismo, para

os anos 80, e a ascensão do pós-estruturalismo, questões como cientificidade,

racionalidade, objetividade, verdade e real foram postas em cheque por grande parte dos

pesquisadores nas ciências humanas. Nesse sentido, se o estruturalismo acreditava que

colocando o foco na determinação sistêmica dos elementos poderíamos produzir um

conhecimento objetivo, o pós-estruturalismo acusava-o de cometer o mesmo erro de

seus antecessores metafísicos e pseudocientíficos, e, ao invés de buscar determinar, para

os sucessores do estruturalismo deveríamos relativizar.

Dentro dessa linha, Jacques Derrida fora um dos pioneiros e mais aclamado dos

críticos a questionar os conceitos de estrutura, verdade e racionalidade. Derrida, em

1966, numa conferência intitulada A Estrutura, o Signo e o Jogo no Discurso das

Ciências Humanas, já afirmava que o conceito de estrutura seria uma sucessão de

centros que não possibilitaria o “jogo” dos signos e interpretações sem centro, origem

ou fundamentos. De forma semelhante, Michel Foucault, que fora aluno de Louis

Althusser, criou o conceito de êpistemê, por meio do qual afirmava que não era possível

observar os discursos científicos separados dos outros discursos considerados não

27 O fiador de uma crítica científica é a ciência das formações ideológicas. É apenas nas bases de tal ciência que tal crítica poderia possivelmente ser estabelecida – apenas pela garantia de um conhecimento da ideologia é que

podemos clamar um conhecimento dos textos literários.

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científicos. Ele defendia que: “The episteme is the 'apparatus' which makes possible the

separation, not of the true from the false, but of what may from what may not be

characterized as scientific”28

(FOUCAULT, 1980, p.197). Por sua vez, seguindo a

mesma linha de pensamento dos outros filósofos franceses pós-estruturalistas, o filósofo

Jean François Lyotard definiu como “moderna” qualquer ciência que se legitima por

referência a grandes discursos, tais como o de verdade universal ou emancipação das

sociedades. Para ele, uma ciência pós-moderna rejeitaria qualquer pretensão

legitimadora baseada em grandes narrativas:

(...) a ciência pós-moderna torna a teoria de sua própria evolução

descontínua, catastrófica, não retificável, paradoxal. Muda o sentido da palavra saber e diz como esta mudança pode se fazer. Produz, não

o conhecido, mas o desconhecido. E sugere um modelo· de

legitimação que não é de modo algum o da melhor performance, mas o da diferença compreendida como paralogia (LYOTARD, 1988,

p.108).

Esse termo “paralogia” seria, para Lyotard, uma percepção de que os sistemas

são abertos, localistas e antimetódicos, o que vai de encontro às pretensões

determinísticas, seja dos estruturalismos ou marxismos, que buscam observar certas

formações sistêmicas e objetivas na sociedade. Nessa perspectiva, os discursos que se

almejassem científicos estariam reduzindo e regulando, por meio de certos “consensos”

fixos, a heterogeneidade dos emaranhados de enunciados circulantes na sociedade,

fossem eles denotativos, prescritivos, performativos, técnicos, avaliativos etc. Para

Lyotard, portanto, não se possuiriam evidências para determinar uma metaprescrição

comum a todos os jogos de linguagem da coletividade, como defendiam algumas

comunidades “científicas”.

Seguindo essa ideia, Mohamed Ezoura (1990) defende uma confluência de

argumentos nos trabalhos de grandes filósofos do conhecimento, como Thomas Khun,

Stephen Toulmin e do próprio Lyotard, sobre a questão da cientificidade na moderna

ciência. Para eles, de acordo com Ezoura, as ciências humanas e as naturais não se

diferem por questões de subjetividade ou objetividade na análise dos fatos; ambas as

ciências passam por um processo de interpretação e hermenêutica, e elegem seus

paradigmas sobre o que pode ser considerado científico. Dessa forma, para Ezoura,

28 A episteme é o ‘aparatos’ que faz possível a separação, não do verdadeiro para o falso, mas do que pode para o que

não pode ser caracterizado como científico.

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esses trabalhos quebram a distinção de que existiria de um lado uma cientificidade e do

outro uma ideologia. Ainda segundo esse pensador:

(…) the concept of scientificity has moved into the terrain of ideology.

A discourse that is marked “scientific” can no longer pass through the

gates of interpretation unchecked. After being perceived as the

negation of ideology, scientificity now seems to have collided with it. Both concepts and their ramifications must now inhabit human

discourse, be it “scientific” or “non-scientific29

(EZROURA, 1990,

p.32).

Vemos que Ezoura chega à conclusão de que o científico e o não científico

possuem uma relação muito próxima, o que opõem certas pretensões privilegiadas da

obra althusseriana dos anos 70. Essa obra, por sua vez, que influencia Eagleton com,

por exemplo, sua distinção entre ideologias e ciências, de certa forma ainda pairava pela

prática crítica das ciências humanas naquele período, contudo foi questionada

severamente nos anos 80 por algumas correntes antirracionalizantes, principalmente no

campo literário.

Essas discussões a cerca da ideia de ciência foram trazidas para o âmbito

literário com bastante força, pois, para muitos, a verdade ou ciência não estaria mais

fora da linguagem, mas apenas sobre a linguagem, que seria o material constituinte da

literatura. A linguagem literária seria, nesse sentido, a representante ideal de toda

linguagem, pois não apontaria para nenhum objeto factual, mas apenas para uma outra

linguagem e assim sucessivamente, ad infinitum. Não haveria, nessa perspectiva, mais

diferença entre os discursos teóricos e os literários; a própria filosofia, por exemplo, era

estetizada, preocupada mais em como dizer do que com o que propriamente se estava

dizendo. Assim, para alguns críticos não só o objeto literário, mas também a sua

percepção crítica seria apenas um jogo de linguagem, uma “escritura”, em que não se

poderia determinar, objetivar, racionalizar nada além da sua própria falta de

determinação, sua imprecisão e sua visão sempre parcial, local, contextual e sensível.

Dois exemplos dessa não diferenciação entre ciência ou teoria e literatura pode ser vista

em alguns trabalhos do crítico francês Roland Barthes e do crítico belgo-americano Paul

de Man. 29 O conceito de cientificidade tem se movido para dentro do terreno da ideologia. Um discurso que é marcado “científico” não pode mais passar pelos portões da interpretação sem ser verificado. Depois de ser percebido como a negação da ideologia, cientificidade agora parece ter colidido com essa. Ambos os conceitos e suas ramificações

devem agora habitar o discurso humano, seja ele “científico” ou “não científico”.

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Barthes, quando iniciou seus trabalhos, foi considerado como um crítico

estruturalista que acreditava numa ciência dos signos, como, por exemplo, em seu

trabalho de 1956, Mitologias, no qual ele afirmava que: “A semiologia é uma ciência

das formas, visto que estuda as significações independentes do seu conteúdo”

(BARTHES, 2001, p.133). Em sua fase tardia, todavia, ele defendia um projeto mais

sensível do que racionalizante, pois ele, em 1973, afirmava na sua obra O prazer do

texto, que a ciência do texto seria uma escritura, uma ciência das fruições da linguagem,

em que só haveria um tratado, que seria, por sua vez, a própria escritura. Nesse sentido,

Barthes queria reformular suas antigas pretensões cientificistas e pôr um novo foco na

ciência linguística, como podemos observar no seguinte recorte do citado livro:

Seria bom imaginar uma nova ciência lingüística; ela estudaria não

mais a origem das palavras, ou etimologia, nem sequer sua difusão, ou

lexicologia, mas os progressos de sua solidificação, seu espessamento

ao longo do discurso histórico; esta ciência seria sem dúvida subversiva, manifestando muito mais que a origem histórica da

verdade: sua natureza retórica, linguareira (BARTHES, 1987, p.57).

Para o crítico francês, a verdade seria uma condição histórica, e sua natureza

seria sempre retórica e linguareira, e não estática e representacional. A literatura, para

Barthes, seria o local onde o signo apresentaria sua natureza de ser, ou seja, arbitrário e

artificial, e, seguindo essa ideia, a ciência devia deixar seus antigos preceitos de origem

ou funcionamento do léxico, como é característico do marxismo estruturalista, e buscar

as diversas transitividades dos signos.

Em uma perspectiva teórica similar, Paul de Man considera que o literário não é

característico de romances e poemas, mas de qualquer texto que seja ele filosófico,

histórico, jurídico ou médico. Para de Man: “The criterion of literary specificity does

not depend on the greater or lesser discursiveness of the mode but on the degree of

consistent ‘rhetoricity’ of the language”30

(DE MAN, 1971, p.137). A literatura,

todavia, possuiria a característica de reconhecer sua própria ficcionalidade e

arbitrariedade: “it is the only form of language free from the fallacy of unmediated

expression”31

(DE MAN, 1971 p.17). Portanto, para de Man, toda linguagem

funcionaria por meio de retórica, visto que ela é essencialmente metafórica, metonímica

30 O critério de especificidade literária não depende da maior ou menor discursividade do modo, mas do grau de “retoricidade” consistente da linguagem. 31 É a única forma de linguagem livre da falácia da expressão imediata.

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e alegórica, contudo, apresentar-se-ia como “natural” ao seu objeto significado, como se

manifestasse um objeto real e não um efeito discursivo.

Nesse âmbito, no livro Allegories of reading (1979), o crítico belgo-americano

demonstra, a partir de uma análise do poema de “Yeats”, que a linguagem funcionaria

através de uma ambiguidade entre seu sentido literal ou gramatical e seu sentido

figurativo ou retórico, e que o primeiro poderia ser sempre subjugado e/ou

desconstruído nos termos do segundo, deixando o significado sempre suspenso. Assim,

para o autor: “Rhetoric radically suspends logic and opens up vertiginous possibilities

of referential aberration”32

(DE MAN, 1979, p.10). O próprio ato crítico seria, nesse

sentido, apenas uma questão de leitura, que o próprio texto oferece em várias

perspectivas. Não haveria uma posição crítica, que determinasse um significado ou

origem no texto, que não fosse atingida por essa suspensão de sentido. De Man, assim,

amplia essa ideia de leitura retórica para o próprio status de teoria ou ciência em The

resistance of theory (1986). Nessa obra ele procurou provar que a teoria seria

justamente uma subversão de uma epistemologia; ela buscaria demonstrar a

impossibilidade da linguagem ser um modelo da linguagem, ou seja: se a linguagem é

constituída por uma tensão entre o sentido literal e o figurativo, ela deve resistir aos

projetos teóricos ou científicos que buscam subjugar o literal ao figurativo ou

“gramatizar” a retórica. Desse modo, para de Man:

The resistance to theory is a resistance to the rhetorical or tropological dimension of language, a dimension which is perhaps more explicitly

in the foreground in literature (broadly conceived) than in other verbal

manifestations or — to be somewhat less vague — which can be revealed in any verbal event when it is read textually

33 (DE MAN,

2002, p.17).

O sentido de teoria para de Man – que pode ser estendido para o de ciência – se

constitui da ideia de que essa tem uma consciência de sua dimensão tropológica e não

factual. Desse modo, o professor de Yale pensa a literatura como sendo um dos mais

emblemáticos exemplos de teoria e ciência, já que ela não buscaria provar a realidade

dos objetos, mas sua própria arbitrariedade e construção como um efeito da linguagem.

32 Retórica radicalmente suspende a lógica e abre possibilidades vertiginosas da aberração referencial. 33 A resistência à teoria é uma resistência para a dimensão retórica e topológica da linguagem, uma dimensão que é talvez mais explicitamente no campo da literatura (concebida de forma ampla) do que em outras manifestações

verbais ou – para ser algo menos vago – que pode ser revelada em qualquer evento verbal quando é lida textualmente.

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É importante frisar, entretanto, que muito das ideias de Barthes e de Paul de

Man, e de alguns pós-estruturalistas que compartilham dessas ideias, vão ao encontro

das formulações do marxismo estruturalista. Apesar da corrente de análise literária

materialista primar por uma ciência do conhecimento objetivo do texto, ela defende a

multiplicidade desse texto, a característica artificial de produção e suas contradições e

ausências como fator constitutivo de si – algo semelhante à noção de escritura de

Barthes e de retórica de de Man.

No entanto, apesar dessa aparente confluência, o projeto de ciência do texto

literário, baseado em Althusser e desenvolvido por Macherey e Eagleton, carrega

algumas divergências teóricas com os projetos pós-estruturalistas, como a ideia de que a

pluralidade de sentidos e de independência do texto, por exemplo, é apenas aparente e

superficial no próprio texto. Assim, se tomarmos como base os conceitos de semi-

autonomia dos três autores supracitados, veremos que eles sempre defendem uma visão

moderada da autonomia do texto e também – como diria Althusser – , em “última

instância”, a determinação do texto pelo modo de produção social. Nesse sentido, eles

não são tão radicais ao afirmar que não há uma origem ou centro de conhecimento, ou

que esses sejam apenas a própria linguagem. Em suas análises dos textos literários,

como, por exemplo, as de Macherey na obra de Julio Verne e as de Eagleton na obra de

George Eliot, é possível ver uma certa referência às ideologias e modos de produção

social. Assim sendo, diferentemente de Barthes e de Man, os críticos marxistas não

queriam deixar o texto apenas em seu silêncio ou na sua abertura de sentidos infinita, ou

demonstrar somente seu próprio vazio de sentidos. Contra esses extremismos, Macherey

e Eagleton almejavam fazer falar sobre o “silêncio” do texto; preencher ou construir um

conhecimento sobre o texto que ele próprio não sabia que era ou que falava sobre. Em

outras palavras, os autores marxistas querem mostrar que esse silêncio de frases, de

sentidos e de ideologias pode distinguir ou circunscrever o que constitui o próprio texto,

demostrando, assim, como ele é.

Nessa perspectiva, podemos ver um exemplo dessas ideias em nossa análise do

texto de Senhora. Apesar de demonstrarmos a multiplicidade de estilos e sentidos

possíveis no próprio texto, também atentamos para o silêncio sobre a historicidade de

sua construção textual e ideológica, e, para isso, tomamos como referência o conceito de

ideologia e modo de produção das formações sociais do século XIX. Embora tenhamos

evitado os reducionismos históricos, assim como nas análises feitas por Eagleton em

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Criticism and Ideology, há sempre uma configuração da história como significado final

do texto. O que deixa evidente que o fator material, apesar de ser uma construção social,

possui efeitos reais, apesar de algumas proposições pós-estruturalista parecem

negligenciar.

Outro argumento levantado contra a ideia de conhecimento científico do

marxismo estruturalista é proposto por Howard Felperin (1985). Esse teórico critica o

fato de o conceito de ciência da produção literária ser considerado análogo aos das

ciências naturais – questão que vimos exemplificada na comparação de Macherey entre

a lei da gravidade e as leis de produção do texto. Segundo o raciocínio de Macherey: “a

linguagem da ciência e da teoria é uma linguagem fixada – o que não significa que seja

imutável ou acabada” (MACHEREY, 1971, p.58). Para Felperin, no entanto, não seria

possível construir um conhecimento sobre o objeto literário, ou mesmo sobre a história,

similar ao que se desenvolve acerca dos objetos das ciências naturais, visto que o texto

literário lida com a linguagem, que não seria um produto estável como os objetos das

ciências naturais. Entretanto, vê-se que a ciência do texto acredita que a linguagem pode

ser menos ilusória e mais fixa do que se pensa, como se pode perceber na seguinte

afirmação de Eagleton:

Language, among other things denotes objects; but it does not do so in

some simple relationship, as though word and object stood adjacent, as two poles awaiting the electric current of interconnection. A text,

naturally, may speak of real history, of Napoleon or Chartism, but

even if it maintains empirical history accuracy this is always a fictive

treatment – an operation of historical data according to the laws of textual production

34 (Eagleton, 2006, p.70).

Eagleton entende, assim, que, por um lado, a linguagem não é um espelho da

realidade, visto que sempre passa por uma mediação ou tratamento fictício entre o seu

objeto e nossa percepção histórica particular; e, por outro lado, a linguagem, justamente

por ser regida por certas leis históricas, possibilita uma forma ou estrutura consensual

de significações, podendo ser instrumento de percepção histórica, justificando assim os

objetos sociais como sendo objetos de estudo. Isso também se opõe à ideia de Paul de

34 Linguagem, entre outras coisas, certamente denota objetos. Mas ela não faz então em algumas simples relações, como se palavra e objeto estivessem adjacentes, como dois polos esperando a interconexão elétrica corrente. Um texto, naturalmente, pode falar de historia real, de Napoleão ou do Cartismo, mas mesmo se ele mantiver precisão histórica empírica, essa é sempre um tratamento fictício – uma operação de dados históricos em concordância com as

leis da produção textual.

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Man de que a retórica seria a própria essência da literatura, bem como a característica da

teoria ou ciência do texto literário. Seguindo as ideias do marxismo estruturalista, em

detrimento do pensamento de de Man, a linguagem da ciência pode até ser retórica, mas

constrói um conhecimento a partir de certas noções históricas e sociais que

fundamentam sua lógica – e tenta, a partir dessas, resolver as ambiguidades e

imprecisões que a constituem.

Diante do exposto, vemos que apesar das investidas do marxismo estruturalista

de Althusser, Balibar, Macherey e Eagleton contra certos tipos de idealismos,

empirismos, formalismos e resquícios metafísicos da crítica literária, típicos das

correntes críticas anteriores a feita por esses – como, por exemplo, a estética clássica,

formalismo russo, estilística, estruturalismo e marxismo vulgar – esses esforços não

foram suficientes para sustentar-se teoricamente diante de correntes pós-racionalizantes

e relativistas culturais. O pós-estruturalismo, desconstrução, estudos culturais e teoria da

recepção, são exemplos dessas correntes, que pareceram provocar bastantes percalços as

pretensões de conhecimento cientifico que almejara essa teoria que Eagleton aderiu nos

anos 70.

Assim, a partir dos anos 80, Eagleton começa a reconstruir suas ideias a respeito

dos conceitos de ciência, racionalidade e ficcionalidade, e admite que, de certo modo,

esses conceitos mais o de cientificidade, afirma o autor posteriormente: “foram aceitos

com muita facilidade” (EAGLETON, 2010, p.165). Na introdução para a segunda

edição de Criticism and ideology, Eagleton analisa essas ideias em retrospectiva:

One way in which this comes through, i suppose, is in certain excessive

intellectual assurance, one which uses words like “scientific” as though their meaning was quite unproblematic. Science is not in my view an

empty term when it comes to historical investigation, and the “culturalist”

caricature of it as some purely objectivist form of inquiry says more

about post-modern ignorance then scientific knowledge. Yet the book fails to see that all structural analysis is dependent on a prior moment of

interpretation, one which is rooted in the life-world, which can never

itself be fully formalized, and which is always open to contestation35

(EAGLETON, 2006, Prefácio).

35 Uma maneira em que isso vem à tona, eu suponho, é em certa segurança intelectual excessiva, uma que usa palavras como “científico” como se seus significados não fossem problemáticos. Ciência não é, em minha visão, um termo vazio: quando se trata da investigação histórica, e a caricatura “culturalista” disso, como alguma forma de inquirir puramente objetivista, diz mais sobre a ignorância pós-moderna do que do conhecimento científico. Porém, o livro falha em ver que toda análise estrutural é dependente de um momento de interpretação a priori, um momento que é enraizado no mundo vivido, que nunca pode ele próprio ser inteiramente formalizado, e que é sempre aberto

para contestação.

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Essa percepção de que era preciso ir além dos polos de objetividade e

relativismo, e a consciência de que todo processo de formalização é sustentado por uma

interpretação, fez com que Eagleton abandonasse parcialmente seu projeto de ciência do

texto para buscar novas formas de renovar o marxismo e a crítica cultural e literária. O

crítico britânico, posteriormente, reconhece que falar em termos de ciência como algo

definitivo e universal é problemático. Por outro lado, ele acredita que há significações

que uma comunidade de falantes, em um determinado tempo e espaço, incorpora –

modos compartilhados de agir, sentir e perceber que podem determinar o que pode ser,

circunstancialmente, considerado verdadeiro e científico. Um dos fatores que precisaria

ser renovado era o conceito de ideologia, que seria uma forma de perceber que essas

significações são coletivas e compartilhadas.

2.2.2 Ideologia

Como é evidente no próprio título do livro Criticism and Ideology, o conceito de

ideologia é central para o projeto eagletiano, e para o marxismo como um todo, a ponto

do próprio Eagleton dedicar alguns livros a respeito do tema, vide Ideologia da estética

(1990) e Ideologia: uma introdução (1991). Poderíamos, assim, defender que o tema

ideologia é um dos mais estudados pelo autor britânico. Esse conceito é de vital

importância para Eagleton, porque se propõe a entender as ideias, símbolos e

representações da sociedade, temas que são basicamente os elementos com que a

literatura trabalha. Nesse tópico, portanto, buscaremos entender como ele negocia suas

proposições a respeito do tema nas décadas seguintes a Criticism and Ideology, período

denominado por alguns como “pós-ideológico” 36

, e assim perceber a sua serventia para

constituição de uma visão revolucionária.

Em sua fase inicial, como vimos, Eagleton assume a proposta de ideologia de

Althusser, de que a ideologia seria mais que uma forma de epistemologia, como

propunha o marxismo anterior, cujo nome mais notável seria Lukács37

. Assim, para

Althusser, não poderíamos tratar da ideologia em termos de falsidade ou de verdade,

pois para ele a ideologia não representaria algo de forma direta, homóloga, assim como

36 Slavoj Zizek, em O Deserto do Real (2012), afirma que o momento “pós-ideológico” seria o fim da era dos grandes projetos ideológicos, cuja realização termina em catástrofes totalitárias. Entramos em uma nova era da política racional, pragmática etc. Alguns teóricos, adeptos dessa ideia de fim ou pós-ideologia, são comentados por Eagleton no livro Ideologia: uma introdução de 1991. 37 Em específico, seu conceito de ideologia na obra História e Consciência de Classe (1923).

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para Lukács o realismo representa a realidade total histórica, mas sim o modo como

“experienciamos” esse real histórico. Essa “experiência” das relações reais de existência

deslocaria a visão de ideologia como meramente uma questão de consciência, crenças e

ideias, para também uma questão de atos, práticas e rituais. Poderíamos dizer que as

relações que governam os atos dos indivíduos podem ser imaginárias, mas suas práticas

são materiais e reais.

Para Althusser, a justificativa para essa ilusão ou distorção das percepções se

daria por motivos políticos, que Marx identificou como a necessidade de reproduzir as

relações de produção, que são, por sua vez, orientadas por um grupo dominante. Nesse

sentido, o real histórico, para Althusser, não nos seria acessível de uma forma direta ou

de um ponto de vista privilegiado, como seria a consciência do proletariado para

Lukács, mas seria mediado pela ideologia, dando-os um acesso em perspectiva e não em

totalidade, como defendia o marxista húngaro. Portanto, mais do que uma questão de

percepção da realidade, a ideologia nos constituiria como seres ou sujeitos sociais e

organiza nossa vida social. Como afirma Althusser:

[...] porém o reconhecimento de que somos sujeitos, que funcionamos nos rituais práticos da vida cotidiana mais elementar (um aperto de

mão, o fato de sermos chamados por nosso nome, o fato de saber que

você “tem” um nome próprio, mesmo que eu ignore, que faz com que você seja reconhecido como sujeito único etc.). (ALTHUSSER, 1980,

p.96).

Vemos nessa citação que a ideologia é mais do que um simples amontoado de

ideias falsas ou verdadeiras, ela é uma forma sistemática de assumir uma posição social

dentro dos valores simbólicos correntes na sociedade. Desse modo, mostra-se como

uma percepção de mundo determinada, constituinte de nossa própria identidade como

indivíduos sociais, e organizando nosso modo de pensar e agir. Assim, essa percepção

da ideologia como algo que sistematiza nossas percepções de mundo foi relacionada

com a própria função da literatura, pois ambas literatura e ideologia, para Althusser,

Macherey e Eagleton, possui, ao seu modo, a mesma função e, dessa forma, seus modos

de análises seriam convergentes.

No capítulo anterior, demonstramos, como se dava a relação entre ideologia e

literatura no trabalho de Eagleton, suas tentativas de diferenciar as especificidades de

cada conceito e evitar certas relações vulgares entre ideologia, literatura e história.

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Vimos como o conceito de ideologia é fundamental para entender o método de análise

de produção literária e como ele fora fundamental para as nossas investigações acerca

do texto de Senhora. Desse modo, nossa leitura elegeu como um dos temas perceber as

relações entre os protagonistas, Aurélia e Fernando, como correspondentes ideológicos

entre as ideologias romântica e liberal burguesa, sendo o conceito de ideologia bastante

útil para perceber as relações entre estética do século XIX e suas reverberações

simbólicas sociais.

Contudo, com os processos históricos que ocorreram na crítica literária e cultural

depois de Criticism and Ideology, muitas objeções foram feitas à noção de ideologia,por

outro lado, a própria concepção de ideologia no marxismo estruturalista era

diversificada, e para melhor compreendermos essa especificidade vamos explicar,

primeiramente, no que se diferencia o conceito de Eagleton.

Segundo Robert Resch (1992), o conceito de Macherey de ideologia é

monolítico e unificado, pois o crítico francês insiste que a ideologia existe precisamente

para solver todos os traços de contradição histórica. Essa visão, todavia, exclui a

possibilidade da contradição da ideologia, a diferenciação entre as ideologias

dominantes e ideologias rivais, bem como falharia em reconhecer que as ideologias não

só apenas reproduzem relações de produção existentes como também relações de

transformações dessas relações. Essa percepção afetaria a literatura, pois, ainda de

acordo com Resch:

From such a monolithic view of ideology, and the corresponding

notion that only a second-level discourse such as literature may be said to be contradictory, it is a relatively short step to reducing

ordinary ideology to a “false” discourse and raising literary discourse

to a negative analogue of “truth”38

(RESCH, 1992, p.284).

Seguindo esse raciocínio, Macherey colocaria a literatura como um discurso

subversivo, visto que, por seu distanciamento e seu “mise-en-scene” com a ideologia, o

texto apresentaria as contradições que essa ideologia tenta apagar. Desse modo, a

literatura poderia funcionar como um reflexo negativo, ou seja, o que ela falseia na

ideologia é verdadeiro na história. Para Resch, essa ideia é equivocada, pois:

38 Tal visão monolítica da ideologia, e a noção correspondente que apenas um discurso de segundo nível, tal como literatura, pode ser dito contraditório, é um passo relativamente curto para reduzir a ideologia ordinária para um

discurso “falso” e erguer o discurso literário para uma negativa análoga da “verdade”.

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Ideology may agree or disagree with what science says about a certain fact or event, but as we have shown, this is not its point, nor is it the

point of literary discourse. Just as surely as it can subvert an existing

ideology, a text can underwrite it, reproduce it, impoverish it, or

revitalize it, yet these capacities find no place in Macherey's framework

39 (RESCH, 1992, p.284).

Seguindo esse raciocínio, observamos que o texto não necessariamente apresenta

elementos só “verdadeiros” ou só “falsos”, e é justamente essa percepção mais ampla da

ideologia que Resch verifica na obra de Eagleton, como vimos no primeiro capítulo,a

ideia de que as ideologias e os textos literários podem ser algumas vezes a favor e

algumas vezes contra a representação da ideologia e da história. Portanto, vemos que

Eagleton defende o caráter contraditório não apenas da ideologia, mas também do

próprio texto literário, e esse entendimento amplo da ideologia é o que o diferencia de

Macherey, bem como o que causa muitas vezes confusão na percepção do seu trabalho.

Um exemplo dessa confusão está presente em Re-pensando a Teoria, livro de 1992 de

Richard Freadman e Seumas Miller. Apesar de esse livro possuir uma das mais

minuciosas e profundas críticas a Criticism and ideology, defendemos que ele comete

algumas leituras superficiais do projeto de Eagleton e, em especial, da questão da

ideologia.

Para esses autores, a definição de Eagleton de ideologia como sendo, de maneira

ambivalente, “sistema de crenças” e “conjunto de práticas no mundo”, e como “falsa” e

“potencialmente verdadeira”, é inconsistente. Assim, ambos os autores defendem que se

trata de uma “conhecida confusão” (FREADMAN; MILLER, 1994, p.118) e definem –

a nosso ver, apressadamente – toda a formulação desse conceito de Eagleton como

“deficiências típicas da Teoria da produção do texto” (FREADMAN; MILLER, 1994,

p.119). É importante frisar, nesse sentido, que esse caráter aparentemente inconsistente,

que vê o conceito de ideologia funcionando em duas perspectivas opostas, não deve ser

visto de forma direta, mas sim dialética. Portanto, a ênfase de Eagleton é justamente

perceber a multiplicidade do conceito de ideologia e liberá-lo de certas visões

monolíticas – como, por exemplo, a de Macherey que, como vimos, a considerava uma

“ilusão”. Nesse sentido, sobre visão de que a ideologia poderia ser, algumas vezes, tanto

39 A ideologia pode concordar ou não com o que a ciência diz sobre certos fatos e eventos, mas como nós temos visto, isso não é sua função, nem é a função do discurso literário. Tão certo como ele pode subverter um ideologia existente, um texto pode subscrevê-la, reproduzi-la, empobrecê-la, ou revitaliza-la, porém essas capacidades não encontram

lugar na obra de Macherey.

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um sistema de crenças e em outras um conjunto de práticas do mundo, podemos

observar que o próprio Althusser já diagnostica esse caráter dual:

(...) para abordar a tese central sobre a estrutura e o funcionamento da

ideologia, apresentarei inicialmente duas teses, sendo uma negativa e

outra positiva. A primeira trata do objeto que é “representado” sob a

forma imaginária da ideologia, a segunda trata da materialidade da ideologia (ALTHUSSER, 1980, p.85).

Vemos então que o próprio Althusser já percebia que a ideologia é um sistema

de crenças e uma prática material, ambas se influenciando e não havendo nessa visão

uma hierarquia, mas uma interação entre ambas as noções que estabelecem a ideologia.

Assim sendo, como afirma Althusser: “as ideias de um sujeito humano existem em seus

atos, ou devem existir em seus atos” (ALTHUSSER, 1980, p.91). Nesse sentido, não

parece haver nenhuma confusão nesse caráter dual da ideologia, apenas um tornar-se

mais complexo.

Em outras partes da crítica de Freadman e Miller, eles organizam seu argumento

colocando a visão de Eagleton sobre ideologia apenas em sua concepção do ideológico

no sentido de discurso falsificador, ilusório ou ocultador, e sem diferenciá-lo, por

exemplo, da visão de Macherey. Vejamos o raciocínio deles:

(...) dada a natureza tripartite de Eagleton entre realidade, ideologia e

o texto, na qual o texto é considerado como duplamente afastado da

realidade, como é possível para o texto revelar qualquer coisa sobre a realidade (em oposição a revelar alguma coisa sobre a ideologia, que

aqui é interpretada como uma falsificação da realidade)?

(FREADMAN; MILLER, 1994, p.129 grifo nosso).

Como podemos ver na citação, e em várias partes do texto, os autores claramente

tomam a visão de ideologia de Eagleton apenas pelo seu sentido de falsificação da

realidade, uma concepção a qual Eagleton sempre questionou nos marxistas – desde os

hegelianos, como no caso da ideia epistemológica de ideologia como falsa consciência

em Lukács, até os althusserianos, com a visão de Macherey de ideologia como

apagamento das contradições. Segundo Eagleton, essa visão:

As such, it is a simplistic notion: it fails to grasp ideology as an

inherently complex formation which, by inserting individuals into history in a variety of ways, allows of multiple kinds and degrees of

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access to that history. It fails, in fact, to grasp the truth that some ideologies, and levels of ideology, are more false than others.

Ideology is not just the bad dream of the infrastructure in

deformatively ‘producing’ the real, it nevertheless carries elements of

reality within itself.40

(EAGLETON, 2006, p.69)

Para o pensador britânico, assim, a ideologia carregaria tanto ilusões como

verdades, assim, o texto literário, como vimos no primeiro capítulo, é um novo objeto,

uma nova produção que se constrói acerca da ideologia.

Outro forte argumento contra a proposta de Eagleton é a visão dos autores de

que a ideologia para o pensador inglês é apenas ideologia política: “Eagleton também

fracassa ao distinguir entre ideologia no sentido de ideologia política e ideologia

concebida em termos mais gerais. Para ele todo o pensamento e toda a expressão fazem

parte da ideologia, e toda ideologia é ideologia política” (FREADMAN; MILLER,

1994, p.118). De fato, Eagleton entende que o pensamento e a expressão se relacionam

com as ideologias, mas essas, por sua vez, não são apenas políticas. Devemos então

problematizar o que os autores entendem por política e por ideologia política.

Assim, a partir das análises que desenvolvemos acerca dos livros de Fredman e

Miller, vimos que para eles as ideologias políticas seriam aquelas típicas da política

clássica, como a ideologia do apartheid ou racista, sexista e comunista. Eagleton,

entretanto, em Criticism and Ideology, não nos dá nem uma definição específica de

política ou de ideologia política. Assim sendo, podemos perceber que, para ele, política

tende a ter, mesmo que em última instância, uma noção marxista de luta de classes,

conflitos de interesse entre opressor e oprimido; ele não generaliza, pelo contrário,

defende veementemente a mudança das ideologias:

It’s to claim that those relations are historically mutable – as mutable

as ‘general’ and ‘aesthetic’ ideologies themselves – and therefore

demand specific historical definition. Indeed such variability can be traced in the carrier of a single author: I have in mind Thomas hardy.

Under the Greenwood Tree produces a ‘pastoral’ ideology and in

doing so displays its limits, […]41

(EAGLETON, 2006 p.94).

40 Como tal, é uma noção simplista: ela falha em amarrar a ideologia com uma formação complexa inerentemente que, por inserir indivíduos na história em diversas formas, permite de múltiplas maneiras e níveis de acesso a essa história. Ela falha, de fato, em amarrar a verdade que algumas ideologias, em níveis de ideologia, são mais falsas que outras. Ideologia não é apenas um sonho ruim da superestrutura produzindo deformativamente o real, ela não obstante carrega elementos de realidade dentro dela própria. 41 É clamar que aquelas relações são historicamente mutáveis – tão mutáveis como ideologias “gerais” e “estéticas” elas mesmas – e, portanto, demandam definição histórica específica. De fato, tal variabilidade pode ser traçada na carreira de um único autor. Eu tenho em mente Thomas Hardy. Under the Greenwood Tree produz uma ideologia

“pastoral” e, ao fazê-lo, apresenta seus limites [...].

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Podemos ver, assim, que Eagleton utiliza o exemplo do texto de Thomas Hardy

como uma configuração de ideologia pastoral. Nesse sentido, o que uma ideologia

pastoral teria a ver com uma ideologia política? A ideologia pastoral não se configuraria

como uma série de características simbólicas das sociedades pastorais pré-capitalistas,

sistematizada tanto nas suas visões de mundo organicistas como em seu modo de

organização e de produção mais tribal do que industrial? Sendo assim, o que isso teria a

ver, direta ou explicitamente, com ideologia política comunista ou sexista? Todavia,

Miller e Freadman preferem creditar a Eagleton essa percepção típica do marxismo

vulgar ou de uma visão “panfletária” e redutora – visão essa que, afirmamos, ele não

demonstra nesse livro.

Percebemos, dessa forma, que Eagleton sempre busca observar nos textos as

várias formas de ideologia, “políticas” e “não políticas”, como, por exemplo, em suas

investigações sobre como as ideologias positivistas e religiosas afetam o romance de

George Eliot, ou como as ideologias românticas e humanistas construíram os textos de

T.S Eliot. Assim, para Eagleton, as ideologias não são necessariamente falsas ou

verdadeiras, e nem sempre servem pra legitimar um poder dominante, como afirmaria

Althusser. Deste modo, as ideologias políticas, ou as implicações da política na

ideologia, podem constantemente ter um papel agregador nas análises do crítico

britânico, mas não a ponto de ele tornar ontológica toda ideologia como política, no

sentido que Freadman e Miller empregam. Contudo, apesar de Eagleton ver a ideologia

de forma ampla e variada, isso não quer dizer que ele acredite num pluralismo excessivo

do conceito: “Yet there is nothing to be gained in the end by arguing that there are as

many ideologies as there are texts”42

(EAGLETON, 2006, p.99). Para o autor, o

conceito de ideologia requer uma noção mais ou menos sistemática e compartilhada

coletivamente. Apesar de possuirem uma semi-autonomia, as ideologias precisam ser

um agrupamento de elementos simbólicos e práticos compartilhados por um ou vários

grupos determinados.

É justamente essa ideia de ideologia como um elemento simbólico

compartilhado e sistematizado que é criticada por algumas correntes teóricas na década

de 80. Nesse sentido, podemos ver que Eagleton, nos anos 90, demonstrava interesse em

entender por que em um mundo ideológico: “a própria noção de ideologia evaporou-se,

42 Porém, nada há para ser obtido no final por argumentar que há tantas ideologias quanto há textos.

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sem deixar vestígios, dos escritos pós-modernistas e pós-estruturalistas?”

(EAGLETON, 1997, p.11). Para o autor, em Ideologia: uma introdução, escrito de

1991, isso se deveria há pelo menos três fatores: a rejeição da noção de representação, o

ceticismo para com a epistemologia e a noção de racionalidade não mais cognitiva, mas

ligada ao poder.

Para entendermos a contestação do conceito de ideologia nos anos 80,

tomaremos como referência alguns trabalhos de Michel Foucault e Gilles Deleuze,

juntamente com os de Félix Guattari. Esses autores recusaram o conceito de ideologia

por acha-lo bastante redutor, arbitrário e homogeneizador das diversas formas de

dominação social. Foucault opunha à ideia de ideologia a “perspectiva discursiva” –

perspectiva e não conceito, porque ele se recusa a fixar entendimentos sobre certos

“conhecimentos” – de discurso e de poder-saber, e Deleuze e Guattari defendem a

noção de “rizoma” e “agenciamento” contra o conceito de ideologia.

Buscando compreender a crítica de Deleuze e Guattari à ideologia, faremos uma

breve exposição do seu livro Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (1980). Nesse livro

propõe-se a noção de “rizoma” como uma metáfora de entendimento para o

pensamento. Com esse termo, de origem botânica, os autores propõem uma analogia

entre a diferença de um conhecimento “raiz” que teria uma origem única e o

conhecimento rizomático que teria uma procedência múltipla. A partir desse ideia,

compreende-se que o rizoma por ter uma origem fasciculada simbolizaria uma

perspectiva de pensamento que é plural, não genealógico, sem origem, sem fim, multi-

conectado, que não possui centro característico e que não funcionaria por dispositivos

polares, mas por interconexão de pontos diversos em diferentes traços. Assim, para os

autores:

Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete necessariamente a um traço lingüístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí

conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas,

políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes

de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.14).

Nesse âmbito, essa ideia de rizoma coloca em questionamento os conceitos de

representação, epistemologia e racionalidade – que, como vimos, Eagleton defendeu

como cruciais para o entendimento do conceito de ideologia – , pois, para os autores

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franceses, o conceito de representação reduziria um pensamento a uma forma única, a

um centro gerador: “O mimetismo é um conceito muito ruim, dependente de uma lógica

binária, para fenômenos de natureza inteiramente diferente” (DELEUZE; GUATTARI,

2000, p.19). A representação seria, nessa perspectiva, apenas uma analogia arbitrária de

dois pontos distintos. Os conceitos de epistemologia e racionalidade, por sua vez,

estariam ligados a uma percepção de que haveria um conhecimento superior a respeito

de algo, e isso iria de encontro à noção de rizoma, visto que a ciência seria apenas parte

de um conjunto e não um centro hierárquico. A perspectiva rizomática deveria repudiar

esses projetos científicos:

Contra os sistemas centrados (e mesmo policentrados) de

comunicação hierárquica e ligações preestabelecidas, o rizoma é um

sistema a-centrado não hierárquico e não significante, sem General, sem memória organizadora ou autômato central, unicamente definido

por uma circulação de estados (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.32).

Discordando dessa ideia, o conceito de ideologia, na visão marxista, pressupõem

alguns aspectos: (1) uma origem: o modo de produção; (2) uma função: reproduzir essas

relações de produção simbólicas sociais; (3) uma estruturação dessas relações dentro de

um centro: os aparatos ideológicos de estado. Assim, todos esses elementos são

questionados pela visão rizomática: “um rizoma não pode ser justificado por nenhum

modelo estrutural ou gerativo” (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.20). Todavia, há

outro víeis da ideologia que se aproxima muito das concepções de Deleuze e Guattari: a

ideia da ideologia como subjetivadora dos indivíduos, o meio pelo qual os indivíduos

vivenciam suas relações imaginárias e constituem sua identidade. O conceito de

“agenciamento”, proposto por Deleuze, tem características similares à ideia de ideologia

althusseriana, como podemos ver nessa passagem:

O que existe são os agenciamentos maquínicos de desejo assim como

os agenciamentos coletivos de enunciação. Sem significância e sem subjetivação: escrever a n (toda enunciação individuada permanece

prisioneira das significações dominantes, todo desejo significante

remete a sujeitos dominados). Um agenciamento em sua multiplicidade trabalha forçosamente, ao mesmo tempo, sobre fluxos

semióticos, fluxos materiais e fluxos sociais (DELEUZE;

GUATTARI, 2000, p.33).

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O agenciamento, para Deleuze, poderia ser definido como uma conexão ou

combinação de ideias diferentes, que são subjugadas por forças dominantes. Assim

sendo, tal qual o conceito de ideologia, o agenciamento seria algo coletivo, múltiplo em

um conjunto de relações semióticas, materiais e sociais. Desse modo, é possível ver nos

dois conceitos tanto os atos, práticas cotidianas, como as crenças, os processos

simbólicos como partes de uma articulação quase inconsciente que os indivíduos

vivenciam em suas relações sociais. Ambos os conceitos (de ideologia e agenciamento)

negam o sujeito centralizador, defendendo que o indivíduo só se constitui na

“sujeitação” à ideologia – como o interpreta Althusser – ou em agenciamentos na

coletividade de enunciados – para Deleuze e Guattari. Contudo, Althusser propõe certa

coesão de elementos, que seria próprio da ideologia, e um sistema articulador, que

seriam os meios de produção, enquanto Deleuze e Guattari negam essa coesão entre os

discursos e qualquer entidade social preconcebida. Para os autores do rizoma, mesmo os

indivíduos sendo atravessados por agenciamentos múltiplos e coletivos de enunciação, a

sua relação com esses agenciamentos sempre passará por uma visão subjetiva ou

“molecular”, que, por suas limitações singulares e locais, acabará por romper ou

desregular sua relação com os agenciamentos coletivos estratificados, produzindo,

assim, sempre uma fuga dos “territórios” que, para os filósofos franceses, são códigos

permanentes e apropriadores de sentido. Em resumo, não haveria estabilidade no

compartilhamento e na sistematização simbólica social.

O marxismo, porém, identifica, com certo pessimismo, o fato dos indivíduos

tornarem-se sujeitos por relações materiais, semióticas e libidinais, pois acredita que há

um soerguimento de um discurso dominante nas relações dos indivíduos. Nessa

perspectiva, o marxismo estruturalista assim como Deleuze e Guattari negam a ideia de

um sujeito humanista, fruto de uma história linear ou de relações homogêneas e

homólogas nas experiências sociais, mas Althusser, em sua crítica marxista, acredita

que, por meio de uma crítica científica, é possível identificar, na diversidade de relações

sociais e históricas, certas distorções ideológicas presentes na vivência dos indivíduos.

Deleuze e Guattari, no sentido inverso, negam tanto a distorção ideológica, como a

clarividência científica: “não reconhecemos nem cientificidade nem ideologia, somente

agenciamentos” (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.33). Desse modo, os autores

franceses questionam a possibilidade de haver uma certa racionalidade que não seja

fruto de um desejo, de uma subjetividade que pudesse ver os objetos de forma clara,

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distanciada e neutra de seus valores pulsionais e corporais. Como consequência, eles

desferem uma incisiva crítica ao conceito de ideologia:

[...] as organizações de poder ou os agenciamentos nada têm a ver

com a ideologia como suposta expressão de um conteúdo (a ideologia

é o conceito mais execrável que esconde todas as máquinas sociais

efetivas), quer a natureza das organizações de poder, que não se localizam absolutamente num aparelho de Estado, mas operam em

todo e qualquer lugar as formalizações de conteúdo e expressão cujos

segmentos entrecruzam, quer a natureza do conteúdo, que não é absolutamente econômico “em última instância”, pois há tantos signos

ou expressões diretamente econômicas quanto conteúdos não-

economistas (DELEUZE; GUATTARI,2000, p.84).

Eles então desconsideram veementemente os conceitos que fundamentam a

crítica marxista à ideologia, a exemplo dos aparelhos de estado como centros que

emanam a ideologia dominante, desconsideram também a origem econômica da

distorção ideológica, mesmo em última instância – conceito de Althusser e que Eagleton

também adotou largamente – , e não só isso, mas também pensam negativamente que o

próprio conceito de ideologia seria ideológico, pois ocultaria o caráter plural e

multifacetado das organizações de poder.

Nessa perspectiva, podemos ver uma estreita relação entre o agenciamento e a

questão da literatura. Para Deleuze e Guattari: “A literatura é um agenciamento, ela

nada tem a ver com ideologia, e, de resto, não existe nem nunca existiu ideologia”

(DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.11). A literatura, para os autores, seria um traço

característico desse entendimento rizomático do pensamento. Os autores de Mil Platôs

descrevem, nessa perspectiva, as palavras de James Joyce e os aforismos de Nietzsche

como exemplos desse pensar que rompe com a unidade, seja da língua, da palavra ou da

frase, e estabelece uma circularidade, uma ideia cíclica da frase e do pensamento. Há,

nessa visão, uma similaridade com o conceito de literatura que vimos em Paul de Man.

Para os críticos franceses e o belgo-americano, esse conceito seria algo que não proporia

distinção característica entre romances e poemas – vide esses autores considerarem

como literatura os textos filosóficos de Nietzsche – , e nem algo que fosse característico

dos textos que pudesse ser representar a vida social. Portanto, a partir de uma

perspectiva rizomática, um crítico da ideologia encontraria problemas ao investigar o

texto literário, visto que ao tentar descrever certas formas de sujeição, certas práticas

simbólicas e materiais, e associá-las a uma estrutura determinada de dominação,

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opressão e distorção, estar-se-ia cometendo equívocos similares ao que pretendia

solucionar, subjugando certos níveis de conflito e unificando, arbitrariamente, certos

elementos distanciados, para justificar sua crítica.

Nessa linha de raciocínio, tomemos como exemplo a nossa análise de Senhora.

Tentaremos, então, ver até que ponto nossa aplicação da análise da ideologia proposta

por Eagleton poderia cometer certos equívocos.

Uma das premissas iniciais de Eagleton é que o texto literário é determinado por

uma variação de elementos sociais e que a tarefa da crítica seria investigar as diversas

relações dessas estruturas. Logo, no caso de nossa análise de Senhora, observamos

como esses vários elementos se internalizam no texto, desde o modo de produção

colonial escravista do século XIX até as ideologias estéticas que permeavam a escrita

literária da época.

No entanto, se mudássemos a perspectiva para uma visão rizomática,

poderíamos ver que esse modelo constituiria uma série de elisões. Primeiramente, se

não poderia haver um centro nem uma estrutura, como poderíamos dizer que o texto de

Senhora é fruto de uma interação de elementos que corresponde a certo modo de

produção ou a uma ideologia? Segundamente, quem definiria o que seria uma ideologia

X no texto, ou em que e por quais razões essa se diferenciaria de ideologias Y, Z etc.?

Assim, apesar da noção de Eagleton ser, como vimos, bem vasta e multifacetada, e

diferenciada das visões monolíticas de Macherey, em muitas vezes ela acaba reunindo

vários elementos sobre uma mesma formação ideológica. Não há, assim, em sua obra,

muito critério para definir as ideologias. Pelo contrário, apresenta-se apenas uma ideia

de que essas devem ser sempre múltiplas e historicamente transitivas. Nesse sentido, em

nossas análises de Senhora, utilizamos como referência algumas ideologias usadas por

Eagleton para descrever os textos ingleses do século XIX. Identificamos, assim, como

tema ideológico do romance, uma contradição entre as ideologias liberal-burguesa e

romântica. Mas até que ponto essa tentativa de dar coesão simbólica socialmente

instituída à narrativa pode ocluir certas diferenças que estão no próprio texto? Ou em

relação ao texto e sua (re)produção ideológica e, em última instância, histórica?

Um dos argumentos que poderia ser levantado sobre essa perspectiva de

enquadramento ideológico arbitrário da crítica marxista é a ideia de Roberto Schwarz a

respeito de que, no romance brasileiro, as ideias ou ideologias estariam “fora do lugar”.

Schwarz defende, assim, que as ideologias das metrópoles eram sistematicamente

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adaptadas à lógica estrutural das recentes nações que constituíam a periferia do

capitalismo. As ideologias liberais-burguesas, por exemplo, deveriam ser deslocadas

devido a lógica escravocrata ainda presente da organização brasileira. Nesse sentido, o

que surge dessa desproporção entre ideias e conjunturas locais, geográficas e singulares

da sociedade brasileira é a lógica do favor. O autor afirma: “O escravismo desmente as

idéias liberais; mais insidiosamente o favor, tão incompatível com elas quanto o

primeiro, as absorve e desloca, originando um padrão, particular” (SCHWARZ, 2000,

p.16). Poderíamos nos questionar se essa lógica, tão subjetiva ao projeto brasileiro de

sociedade, acabaria por romper com a noção de ideologia que buscamos passar em

nossa aplicação do método de Eagleton em Senhora?

Como vimos, defendeu-se em nossa análise que é a partir do trabalho material de

Seixas que ele obtém sua liberdade do casamento alienado com Aurélia. Se assim o

fosse, nossas proposições sobre o personagem se enquadrariam no ideário liberal

burguês de liberdade mediante a volição individual a despeito das conjunturas sociais.

Todavia, se entendermos essa libertação por meio do favor, estaremos deslocando a

noção de ideologia que propusemos, e estaríamos apagando assim esse elemento

diverso que também constitui a composição do romance. No romance vemos que, de

fato, a lógica do favor é presente: “Cedeu pois à instância dos amigos de seu pai que

obtiveram encartá-lo em uma secretaria como praticante”(ALENCAR, 2009, p. 44).

Esse é também um dos argumentos que Daniela Spinelli (2008) ratifica ao identificar

que há uma contradição entre a lógica do favor e a ideologia liberal-burguesa, típica dos

romances europeus: “Portanto, o ideário liberal não estaria subordinado às

conveniências da nossa elite? Em outras palavras, a força de vontade de Fernando

somente se faz possível porque Aurélia permite a sua realização” (SPINELLI, 2008,

p.45). Nesse sentido, o que rege a libertação de Seixas não é apenas seu desejo, como

preconizava a ideologia liberal-burguesa, mas uma conveniência de seus próprios

superiores, sendo isso típico da lógica do favor – ou de uma “ideologia do favor”, se

pudéssemos colocá-la nos termos que Eagleton usa para se referir a essas representações

das relações que os indivíduos experienciam.

Seguindo esse raciocínio, poderíamos entender que o modelo proposto por

Eagleton acaba por subjugar uma característica peculiar da cultura brasileira que não

pode ser apreendido integralmente pelo seu modelo de ideologia. Como afirma

Schwarz, há uma lógica singular, interna, local e subjetiva que acaba por não reconhecer

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essa “coesão” das ideologias pré-determinadas. Em termos mais gerais, poderíamos

dizer que nossa análise de Senhora, de um ponto de vista rizomático, não conseguiu

perceber essa diversidade do romance e acabou por unificar todas essas diferenças

típicas das relações culturais da literatura brasileira sobre um centro articulador, que

seria a representação, na narrativa de Senhora, da ideologia liberal-burguesa do século

XIX da sociedade carioca brasileira. Poderíamos concluir, a partir dessa ideia, que o

método de Eagleton é estático e sua concepção de ideologia é redutora e não rizomática.

Contudo, defenderemos uma noção dinâmica do conceito de ideologia de Eagleton, e

isso se dá por meio de um embate com os pós-estruturalistas que, ao desconsiderarem

esse conceito, podem acabar numa ideia relativista e obscura a respeito da constituição

do texto literário.

Como vimos anteriormente, alguns dos críticos da noção de ideologia foram

Deleuze e Guattari. Contudo, os trabalhos de Eagleton dos anos 80, curiosamente, não

tecem comentários sobre os autores de Mil Platôs. Em contrapartida, é por meio de

Foucault que Eagleton questiona a desqualificação da noção de ideologia. Por outro

lado, o conceito de agenciamento de Deleuze e Guattari possui profundas similaridades

com a ideia do discurso-poder em Foucault, pois, como ratifica-nos François

Zourabichvili: “Enfim, é em torno do conceito de agenciamento que se pode avaliar a

relação de Deleuze com Foucault, os empréstimos desviados que lhe fez, o jogo de

proximidade e de distância que liga os dois pensadores” (ZOURABICHVILI, 2004, p.

11). Assim sendo, tomaremos a crítica de Eagleton a Foucault como referência para

problematizar as objeções feitas pelas correntes pós-estruturalistas ao conceito de

ideologia.

O que está em ambos os conceitos, o de agenciamento em Deleuze e Guattari e o

de discurso-poder em Foucault, é a ideia de uma concepção do poder não ideológico ou

repressivo, mas algo que constitui os múltiplos segmentos da organização social, algo

não hierárquico, mas relacional. É preciso ver, assim, as ações e práticas não apenas

como formas de repressão, mas como formas de normatização e constituição da

sociedade. Assim, Foucault, assemelhando-se a Deleuze e Guattari, pensa o poder43

não

como um centro ou estrutura, nem como algo derivado de uma distorção ideológica de

um estado repressor ou de uma classe econômica. Por isso Foucault pensa o poder de

forma multifacetada, como uma técnica e um saber que é segmentado e assimilado nos

43 Principalmente no livro Vigiar e Punir (1975).

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amplos elementos da sociedade. Nesse sentido, é esse caráter amplo e relativo do poder

que Eagleton acaba por criticar em Foucault e nos pós-estruturalistas:

Segundo Michel Foucault e seus acólitos, o poder não é algo

confinado aos exércitos e parlamentos: é, na verdade, uma rede de

força penetrante e intangível que se tece em nossos menores gestos e

declarações mais íntimas. Segundo essa teoria, limitar a ideia de poder a suas manifestações políticas mais óbvias seria em si mesmo um

procedimento ideológico, ocultando o caráter difuso e complexo de

suas operações (EAGLETON, 1997, p.20).

Eagleton entende, assim, que por trás desse conceito de poder há benefícios,

como estender o conceito de luta às diversas formas de resistência, como o feminismo,

os grupos étnicos etc., todavia, essa ideia pode estender o conceito a ponto de deixa-lo

politicamente ineficiente. Assim, se não existem valores e crenças que sejam inscritas

no poder, se não é possível delimitar, em determinadas circunstâncias e de forma

transitória, o que seria o “outro” do poder, esse se torna megalomaníaco e perde seu

valor de resistência às opressões. O crítico inglês então assevera:

Fiéis a essa lógica, Foucault e seus seguidores abandonaram por completo o conceito de ideologia, substituindo-o por um “discurso”

mais capaz. Mas isso talvez seja desistir muito rápido de uma

distinção útil. A força do termo ideologia reside em sua capacidade de distinguir entre as lutas de poder que são até certo ponto centrais a

toda uma forma de vida social e aquelas que não o são (EAGLETON,

1997. p.21).

É acerca dessa relatividade e obscuridade nos trabalhos pós-estruturalistas, que

muitas vezes se distanciam das lutas reais, que Eagleton constrói sua crítica aos

trabalhos de Foucault: “É certo que Foucault fala de resistências ao poder, mas o que

exatamente está opondo resistência é um enigma que seu trabalho não consegue

dissipar” (EAGLETON, 1997, p.53). Nessa perspectiva, opondo-se a essa ideia

foucaultiana de o poder não lidar de forma macro e central, Paul Resch afirma que essa

ideia de “micro-política” tem implicações políticas profundamente pessimistas.

Segundo Resch, ao contrário do que Foucault acredita, o poder não pode ser

efetivamente resistido se ele não puder ser identificado em relação a uma totalidade

estrutural e a uma hierarquia de relações de dominância e subordinação, pois se o poder

for sempre disperso e volátil ele não pode ser identificado e combatido. O autor, então,

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afirma: “When resistance is localized, it will be either co-opted or repressed”44

(RESCH, 1992, p.260). Nesse sentido, tanto Resch quanto Eagleton defendem que o

conceito de ideologia é essencial para uma crítica, seja ela não apenas parte de um

conhecimento, mas também uma forma de política.

Por fim, podemos verificar que em Criticism and ideology, apesar dos esforços

de se evitar uma noção de ideologia monolítica, como no caso dos marxismos

hegelianos ou das versões de Macherey, o conceito proposto por Eagleton acaba se

tornando muito amplo, pois, ao defender a ideologia como algo que possui uma

complexa relação de homologia, contradição e conflito, acaba-se deixando a ideia de

ideologia aberta, assemelhando-se assim às proposições liberais e “apolíticas”. O

próprio Eagleton admite: “fui muito acrítico em relação à definição expansionista da

ideologia em Althusser” (BEUAMONT; EAGLETON, 2010, p.169). Portanto, vemos

que Eagleton tentou, nos anos 70, reter o dogmatismo na ideologia, que poderia levar a

uma visão social autoritária, vide o marxismo stalinista, mas, com a passagem da

década, o pós-estruturalismo levou essa noção ao seu extremo oposto, ou seja, substituiu

o dogmatismo pelo relativismo. Nesse sentido, se por um lado o conceito de Eagleton

de ideologia é expansivo, por outro ele é sistemático, pois em uma perspectiva vê a

ideologia como algo amplo coextensivo à dinâmica simbólica social, e, em outra, ele

sempre liga essa dinâmica a uma estruturação social. Uma ideologia autoral, por

exemplo, estaria circunscrita em uma ideologia estética, e essa, por sua vez, numa

ideologia geral, que remeteria, em última instância, ao modo de produção geral.

Podemos responder, assim, que, apesar de termos sugerido que nossa análise de

Senhora, de um ponto de vista rizomático, poderia ter um conceito de ideologia

arbitrário e totalizador, que excluísse certa peculiaridade do contexto brasileiro,

poderíamos, pela visão materialista, ainda manter a análise, se considerarmos que a

“lógica do favor” poderia ser incorporada às categorias proposta por Eagleton – ou seja,

uma ideologia do favor poderia ser parte da IG ou até parte do MPG, como uma relação

de troca simbólica, materializada não pela relação capital/mercadoria, mas pela relação

paternalismo e favor entre indivíduos. Desse modo, diferentemente de algumas

correntes pós-estruturalista, não é porque não poderíamos mapear todas as ocorrências

simbólicas da sociedade que isso significa que não existam relações sociais e simbólicas

que são, de certas formas, convencionadas e estruturadas, e que o crítico não possa, a

44 Quando a resistência é localizada, ela será também cooptada ou reprimida.

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partir dessas, identificar quais ideologias configuram a obra. Devemos, todavia,

questionar em Eagleton se as ideologias são tão evidentes e se essas não devem ser

flexíveis a questões culturais.

Contudo, mais do que propor um ponto de vista político de luta de classes ou de

interesses em textos literários, Eagleton estava focado em ver como se estruturavam as

formações simbólicas na sociedade, procedimento que utiliza o conceito de ideologia

como uma representação simbólica da realidade, definição próxima a dos conceitos

“neutros” de modos de vida ou cultura. Dessa forma, ao tentar, por meio de uma ciência

do texto, observar mais como o texto é determinado do que perceber quais as

implicações dessa determinação para os efeitos políticos, o trabalho de Eagleton se

tornou, ele próprio, um exemplo daquilo que posteriormente iria criticar, ou seja, um

trabalho mais acadêmico e menos político.

O conceito político de ideologia, portanto, é importante para uma crítica literária

sobre um víeis revolucionário, porque resiste à ideia de que, como não há verdade

absoluta, não há nada que possa ser considerado errado, ilusório ou deformado, e resiste

também à ideia de que qualquer sistematicidade é uma questão de arbitrariedade

imposta a vários elementos díspares. Assim, a partir dessa visão de ideologia é preciso

entender que os significados têm um valor em relação a suas condições de produção, e

que suas implicações e seus efeitos são reais em determinados contextos sociais e

históricos. Portanto, isso não é válido só para a crítica cultural, mas também tem valor

no âmbito da teoria literária, pois se percebe que os textos literários são mais que um

jogo de linguagem “neutro”, sempre verdadeiro em sua “falsidade”; propõe-se que os

textos podem ser colocados em perspectiva contextual, reintroduzidos nos diversos

contextos da história e resignificados de acordo com certos interesses sociais (e, no caso

de Eagleton, no interesse da maioria dos indivíduos oprimidos). Além disso, o conceito

de ideologia permite ao crítico uma identificação, no texto literário, de certos pontos de

vista narrativos que representariam uma deformação social causada pelas ideologias.

Nessa perspectiva, abre-se o leque para uma investigação política nos textos literários,

tornando-se possível, assim, ver nesses textos não um funcionamento de certos “modos

de vida”, mas entender esses modos de vida, no texto, como um campo de luta de

interesses.

Por fim, apesar do projeto de crítica de Criticism and Ideology ter sido

abandonado em parte, a noção de ideologia ainda resiste, nos trabalhos subsequentes de

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Eagleton, de forma politizada, e será necessária para o projeto seguinte de uma visão

revolucionária.

2.2.3 Produção

Todo o projeto científico de Eagleton é baseado numa concepção da produção

literária, mas o que teria essa crítica a falar da recepção literária? Em que circunstâncias

as ideias de Eagleton podem versar sobre a interpretação ou fruição dos textos pelos

leitores? E seria essa análise científica da produção algo que impossibilitaria a dinâmica

das várias (re)leituras do texto literário? São essas questões sobre a recepção do texto

literário que surgiram, na crítica literária e cultural, nos anos seguintes a Criticism and

Ideology; e são essas mesmas questões que nós consideramos como um dos principais

fatores de problematização da constituição do método científico do autor inglês.

O marxismo estruturalista, inicialmente, mostra-se avesso a qualquer

pensamento que queira desconsiderar a diferença entre a atividade crítica e a atividade

de leitura comum. Assim, diferentemente da leitura simples, ingênua ou despretensiosa,

que apenas receberia o texto como dado, bem como reproduziria, explicaria e

descreveria, de uma forma palatável, seu funcionamento, a atividade crítica científica

seria uma prática ativa, que construiria uma nova interpretação sobre o texto, mostrando

como, apesar da aparente multiplicidade de significados, o objeto literário é

determinado por condições ideológicas. Nesse sentido, para alguns, como Macherey, à

crítica não competiria o estudo da recepção dos textos literários, devendo essa se

submeter ao conhecimento científico, que seria uma questão de analisar as categorias

sociais objetivas que constituíram o texto. Explicitando essa ideia, Resch afirma:

In A Theory of Literary Production, Macherey largely ignores the concrete historical existence of literature, in the sense of literature as a

practice that “lives” only by a process of interaction with particular

readers. This tactic was necessary, of course, if Macherey was to demonstrate effectively the fact that the relationship between the text

and reality has nothing to do with what contemporary readers felt

about the text45

(RESCH, 1992, p.290).

45 Em Para uma Teoria da Produção Literária, Macherey largamente ignora a existência histórica concreta da literatura, no sentido da literatura como uma prática que “vive” apenas por um processo de interação com leitores particulares. Essa tática foi necessária, é claro, se Macherey queria demonstrar efetivamente o fato de que a relação

entre texto e realidade nada tem a ver com o que os leitores contemporâneos sentem sobre o texto.

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Segundo essa perspectiva, não é que Macherey ignore o caráter relativo das

leituras que possam ser feitas do texto, todavia, essas várias possibilidades assumidas

pelos leitores não se relacionariam, para ele, com a complexidade real, necessariamente

finita, que seria a estrutura do livro. Nesse sentido, essa estrutura do livro seria também

o sistema de interação entre leitor, autor e texto, pois, para Macherey, que segue a ideia

de Marx em Introdução à Contribuição para a Crítica da Economia Política (1859),

não é apenas o objeto de consumo, mas o próprio modo de consumo que é produzido

pela produção. Desse modo, existiria uma relação mútua entre produção e recepção,

mas com uma relativa coordenação do primeiro sobre o segundo, ou seja: “Não é o livro

que, por qualquer poder misterioso, produziria os seus leitores; mas as condições que

determinam a produção do livro determinam também as formas da sua comunicação:

estas duas modificações operam-se simultaneamente e são solidárias” (MACHEREY,

1971, p.99).

Assim, baseado nessa ideia de Macherey sobre a concepção da recepção

sistematizada por uma estrutura social, Eagleton, em Criticism and Ideology, defende

que as ideologias gerais e estéticas determinariam não só o processo de produção, mas

também o processo de recepção. Desse modo, o texto literário, para Eagleton, assim

como a mercadoria, para Marx, só se constitui no processo final de consumação, pois,

para o pensador inglês: “reading is an ideological decipherment of an ideological

product” 46

(EAGLETON, 2006, p.62). Nesse sentido, as relações entre produção e

recepção seriam complexas, podendo haver homologias, conflitos ou contradições entre

elas. Logo, seria a partir dessas conjunturas que o texto seria consumido, dentro de

complexas relações entre as ideologias gerais e estéticas. Nessa perspectiva, o próprio

leitor se utilizaria dessas percepções sociais e ideológicas para fazer seus juízos de

significados. A consumação literária de um indivíduo estaria, assim, inscrita em uma

ideologia de consumação geral, que, ao mesmo tempo em que circunscreveria os

contextos possíveis para o seu juízo de significações, proporcionaria a esse leitor uma

semi-autonomia para organizar os elementos de significação de um texto. Nas palavras

Eagleton:

Any particular act of reading is conducted within a general set of

assumptions as to the ideological signification of reading itself within

46 Ler é uma decifração ideológica de um produto ideológico.

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a social formation – assumptions which, as part of IA, belong also to the general “ideology of culture” of IG

47 (EAGLETON, 2006, p.62).

Vemos, então, que Eagleton percebe que os significados do texto literário seriam

múltiplos, mas não seriam independentes das ideologias. Eles seriam semiautônomos

em relação à ideologia, sendo a própria leitura uma relação de consumo das conjunturas

sociais, mas isso não significaria dizer que os significados já estariam dados de

antemão; eles iriam ser trabalhados, organizados e selecionados de acordo com as

necessidades ideológicas e estéticas do leitor. Assim, esse argumento de Eagleton

avança em relação a algumas pretensões científicas de Macherey, pois buscou colocar a

questão da recepção como parte fundamental do entendimento do texto literário. Apesar

de Macherey reconhecer essa necessidade da recepção literária, que não seria nem pré-

concebida e nem infinita, ele muitas vezes deixa de analisar os processos de

consumação nas práticas sociais que constituem o texto, como observa Eagleton:

Macherey´s early work, committed as it is to an “intrinsicist” literary

science which treats the text solely in terms of its production rather

than also in terms of its consumption, completely suppresses the reality of the literary text as an historically mutable practice which

“lives” only in the process of its transaction with particular readers. It

thus damagingly reproduces the “scientism” of althusser´s work,

presupposing some quite unproblematized, transcendental reader/critic

48 (EAGLETON, 1988, p.18).

Essa ideia, de um leitor/crítico transcendental, bem típica dos estruturalistas

literários,49

subjuga as várias interpretações como não científicas e reduz o leitor a um

mero receptor passivo do texto, como nesse exemplo de Macherey: “em vez de nos

colocarmos na posição simplista do leitor que se situou no percurso aparente da obra e

dai não quer sair: é não nos deixarmos arrastar nem enganar pela obra e participar na

47 Qualquer ato particular de leitura é conduzido dentro de um grupo de suposições gerais de acordo com significação de leitura ideológica ela própria dentro de uma formação social – suposições que, como parte da IE, pertencem também a “ideologia da cultura” geral da IG. 48 O trabalho inicial de Macherey, comprometido com uma ciência literária “intrínseca” que trata o texto somente em termos de sua produção ao invés de também tratá-lo em termos de sua consumação, suprime completamente a

realidade do texto literário como uma prática historicamente mutável que “vive” apenas no processo de sua transação com leitores particulares. Isso assim reproduz danosamente o “cientificismo” da obra de Althusser, pressupondo algum leitor/crítico transcendental bastante não problematizado. 49 Um exemplo disso é o trabalho de Tzvetan Todorov As categorias da narrativa literária, em que ele separa a “interpretação” da obra, que seria resultado da personalidade do crítico, de suas posições ideológicas e de sua época, do “sentido” da obra, que seria o ato de perceber o sistema estrutural do texto. Além disso, Todorov, quando versa sobre o leitor, defende certo elitismo de certos estruturalismos ao afirmar que: “É perigoso identificar a obra com sua percepção em um indivíduo; a boa leitura não é a do ‘leitor médio’, mas a melhor leitura possível” (TODOROV,

1971, p.225).

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construção sistemática da sua ficção” (MACHEREY, 1971, p.25). Apesar de Eagleton

criticar os trabalhos de seus antecessores franceses, vemos que ele próprio muitas vezes

não consegue sair desse modelo da recepção como uma (re)produção e da leitura como

produto de uma matriz ideológica:

Reading is the process whereby a particular historical ideology so puts

to work the materials of the text as to fashion it into a readable product, an ideological object, a text-for-ideology. And as the text is

itself a production of ideology, working now athwart, now in

complicity with it, so reading, as an ideological production of the production of ideology, works now “with”, now “athwart” the lines of

the text, in a double-movement determined by its relation to the

textual production of ideology (“textual ideology”) and to the extra-

textual ideology thus produced50

(EAGLETON, 2006, p.167).

Para Eagleton, a leitura é uma produção ideológica de um produto ideológico.

Essa ideia da leitura como um elemento textual, mas também relacionado ao contexto

ideológico de leitura, consegue ser mais aberta, mas não se liberta da herança marxista51

de trabalhos que davam atenção mais a produção do que a recepção dos textos. Desde o

realismo socialista da Prolekult russa52

até as tentativas de realismo crítico de inspiração

lukacsiana, a crítica textual radical esteve muito preocupada com a questão do

partidarismo do autor, do engajamento do leitor pela obra, isso significava enfatizar o

que o texto poderia significar para a sociedade e não o que a sociedade poderia fazer o

texto significar. Nesse sentido, Criticism and Ideology acaba por revelar, em sua

composição, um teoricismo parcial típico do marxismo ocidental53

, que está mais

preocupado em determinar a composição dos produtos sociais em sua organização na

estrutura da sociedade do que propriamente em intervir politicamente nessa organização

social, até por certo receio de ser “não científico” ou “autoritário”. Assim, esse

teoricismo marxista preferira ver que a produção de um texto literário seria uma

estruturação de um contexto histórico, e as suas leituras também seriam resultantes de

contextos históricos e, dessa forma, não se pautariam nos efeitos desses conceitos para

50 A leitura é o processo pelo qual uma ideologia histórica particular coloca para trabalhar os materiais do texto para

formá-lo em um produto legível, um objeto ideológico, um texto-para-ideologia. E como o texto é em si mesmo uma produção de ideologia, trabalhando agora em oposição, agora em cumplicidade com ele, então a leitura, como uma produção ideológica da produção de ideologia, funciona agora “com”, agora “contra” as linhas do texto, em um duplo movimento determinado por sua relação com a produção textual da ideologia ("ideologia textual”) e a ideologia extratextual assim produzida. 51 Sobre isso, ver o terceiro capítulo “Escritor e o engajamento” do livro de Eagleton Marxismo e crítica literária (1976). 52 Uma instituição soviética que defendia uma “cultura proletária”. 53 Como vimos, tese de Perry Anderson em Considerações sobre o Marxismo Ocidental (1976).

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uma perspectiva política social. Como consequência, Eagleton negligencia, em grande

parte, exemplos de recepção literária em Criticism and Ideology. O que está por trás

disso é uma concepção ainda estática da interpretação, que ele reconhece anos depois:

“Esse foi um projeto que nunca levei a cabo: o desenvolvimento de uma teoria da

recepção materialista” (BEAUMONT; EAGLETON, 2010, p.168). Como

consequência, em suas obras subsequentes ele ainda defende o caráter social e inscrito

nas práticas sociais das leituras textuais, todavia enxerga as implicações políticas reais e

históricas disso e não apenas a sua constituição ou determinação ideológica, inclusive

observando como as interpretações sociais passadas e contemporâneas podem ser

movidas para fins políticos.

Nos anos que se seguiram a década de 70, deu-se cada vez mais atenção, nos

estudos de literatura, a temas como a leitura, o leitor, a interpretação, o horizonte de

percepções, do que a questões de produção textual ou de suas relações com a realidade

extratextual. Isso pode ser visto nos trabalhos da escola de Constância de Iser e Jauss;

em Roland Barthes, em O prazer do texto (1973); na Obra aberta (1962) ou na Leitura

do texto literário (1979) de Umberto Eco; em Stanley Fish, com Is there a text in this

class? (1980) - textos que ganharam força no âmbito acadêmico. Assim, é justamente

sobre essa nova percepção acadêmica que Eagleton constrói um texto, em 1982,

intitulado The revolt of reader, em que observa que o leitor fora esquecido largamente

pela crítica literária anterior: “The growth of the Readers Liberation Movement (RLM)

over the past few decades has struck a decisive blow for oppressed readers everywhere,

brutally proletarianized as they have been by the authorial class”54

(EAGLETON, 1988,

p. 181). Em um tom irônico, o autor afirma que os leitores há muito tempo não tinham

espaço na literatura, assim como os proletários não tinham espaço nos meios de

produção, e que, nas últimas décadas, eles questionaram essa “hegemonia” autoral (e

textual), embora ele próprio não reconheça que foi um exemplo disso.

Para contrastar com essa noção do marxismo como uma crítica que não prioriza

a recepção literária, podemos tomar como exemplo uma das mais conhecidas críticas da

estética da recepção, que é a crítica de Hans Jauss, a dois pressupostos basilares do

marxismo estruturalista: a ideia da representação e a do processo de criação:

54 O crescimento do movimento de libertação dos leitores (RLM) ao longo das últimas décadas tem dado um golpe

decisivo para os leitores oprimidos em toda parte, brutalmente proletarizados como foram pela classe autoral.

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A escola marxista não trata o leitor – quando dele se ocupa – diferentemente do modo com que ela trata o autor: busca-lhe a posição

social ou procura reconhecê-lo na estratificação de uma dada

sociedade. A escola formalista precisa dele apenas como o sujeito da

percepção, como alguém que, seguindo as indicações do texto, tem a seu cargo distinguir a forma ou desvendar o procedimento (JAUSS,

1994, p.22).

Essa crítica de Jauss ataca os dois pressupostos que norteiam esse método

científico marxista na literatura, no qual Eagleton se inclui. Desse modo, o teórico da

recepção afirma que há uma grande evasão do leitor nos trabalhos marxistas e

estruturalistas, bem como também há uma dotação especial ao crítico como um leitor

que supera a leitura ordinária ou “empirista”. Contudo, vemos que a proposta de

Eagleton possui avanços em relação a algumas visões às quais Jauss se opõe – a ideia

reflexionista procedente do marxismo hegeliano, e a noção dos meios de produção

literários vistos como isolados das relações históricas, ideia oriunda do formalismo

russo e do estruturalismo linguístico etc. Contrária às críticas de Jauss, todavia, a crítica

marxista científica propunha o anti-historicismo de cunho althusseriano contra os

modelos reflexionistas, que, como vimos no primeiro capítulo, recusava a visão

coerente e linear da história, propondo uma visão histórica constituída por vários

elementos de um sistema que possuiriam relações diferenciais e que se constituíram de

forma semi-autônoma. Sendo assim, o texto literário não é algo homologo à história,

mas algo que possuiria seu próprio espaço e tempo dentro de uma determinada

formação histórica, e o estudo de sua constituição deveria ser feito levando em conta

essa variável de histórias dos vários elementos históricos e estéticos que os constituem.

Essa noção deveria, assim, ser redirecionado para questão da recepção literária, que não

seria apenas uma causa de uma ideologia e de um tempo, mas sim um resultado ou uma

“produção” das várias histórias dos elementos que a determinam – o que causaria o

rompimento com a objeção proposta por Jauss. Contudo, há uma considerável evasão

ou desinteresse, nos trabalhos althusserianos, nessa perspectiva anti-historicista na

recepção dos textos literários, o que gera, portanto, um avanço do ponto de vista teórico,

mas não em exemplos de prática analítica.

Outra alternativa, proposta pela crítica científica literária, à ênfase formalista na

estética da produção seria a concepção da “ausência” do texto literário. Inspirado na

técnica althusseriana da leitura sintomática, propõe-se ir além da crítica formalista que

apenas repete imita o texto em uma nova terminologia. A técnica althusseriana deseja,

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assim, negar o texto pelo que ele aparenta ser e mostrar as determinações que ele oculta,

silencia ou omite. Pretende-se, assim, construir uma interpretação sobre esses silêncios.

Segundo Macherey:

Aquilo que um livro diz parte dum certo silêncio: a sua aparição implica a presença dum não-dito, matéria à qual dá forma, ou fundo

sobre o qual desenha seu perfil. Assim o livro não se basta si próprio:

acompanha-o necessariamente uma certa ausência sem a qual não

existiria. Conhecer o livro implica ter em conta essa ausência (MACHEREY, 1971, p.82).

Portanto, nessa leitura sintomática, não se busca interpretar um texto literário em

si, mas a própria representação do literário que o texto faz de si mesmo, pois o texto não

seria inocente em sua composição, ele seria sempre uma escolha subjetiva, uma

perspectiva ideológica, e assim deveria ser sua leitura, também interessada nos fatores

ideológicos que o construíram, mas que estão aparentemente implícitos. Isso, por

conseguinte, foi o que tentamos mostrar, por exemplo, em nossa análise de Senhora.

Vimos como o romance é marcado por uma ocultação do fato do casamento ter sido

comprado por parte dos protagonistas e como esse comportamento “oculto” constitui

suas ações. Além disso, mostramos como há uma evasão na composição de Senhora de

imagens, figuras, símbolos de pobreza, percebendo que há sempre a presença da

ostentação e da riqueza em primeiro plano, o que acaba por marginalizar a pobreza ou a

falta de dinheiro, que seria o elemento desencadeador do romance. Essa fuga, ausência

ou ocultação do dinheiro é, portanto, o que desencadeia as “peripécias” na narrativa.

Tentamos mostrar, assim, como ambas as ideologias, romântica e liberal-burguesa,

apesar de serem contraditórias entre si, tentam apagar a presença de elementos realistas

ou materialistas em suas composições.

Contudo, nos usos do marxismo estruturalista, essa ideia de uma leitura

sintomática revelou um certo teoricismo de acreditar que uma interpretação seria mais

válida que outras, pois se pautaria em uma realidade material objetiva da sociedade.

Essa própria realidade material, todavia, passaria por um processo de interpretação que

está relacionado com as conjunturas sociais, políticas e culturais de onde ela emerge.

Nesse sentido, ao entender, por exemplo, o romance Senhora como uma contradição

entre o que as ideologias da sociedade carioca apresentam e o que elas silenciam, o

crítico não está apenas aplicando estruturas objetivas da sociedade, mas está

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selecionando, agrupando e enfatizando o que ele entende por silêncios, e o porquê disso

ser significativo para entendermos o significado de Senhora. Isso indica, portanto, que,

por mais que os críticos marxistas estruturalistas estejam lidando com fatos públicos, os

valores e as escolhas que fazem deles são contingentes e gratuitos, passando assim por

uma subjetividade, o que revela um certo cientificismo, da teoria a que Eagleton adere,

de acreditar que estão formalizando categorias objetivas na literatura.

Com base no que foi dito, defendemos que o anti-historicismo de Althusser e a

ideia da ausência em Macherey e Eagleton avançam em relação ao significado fixo do

texto, pois essa hermenêutica da suspeita já é uma forma de subverter a leitura do texto,

mantendo a noção de ideologia como produtora dos significados. Assim, essa ideia do

silêncio mostra-se diferente de algumas proposições radicais de Barthes, em o Prazer do

Texto, e de de Man, em Allegories of Reading, que acreditam numa leitura do texto

largamente dissociada das suas conjunturas sociais e apelam apenas para a fruição

estética egotista das malhas textuais. Nesse sentido, essa ideia de uma hermenêutica da

suspeita55

, praticada por Macherey e Eagleton, rejeitaria uma leitura simples, baseada

apenas nos códigos vigentes, para defender uma visão que proporia uma interpretação

não natural, não óbvia ou inconsciente do texto, para estruturá-lo, em seguida, pelo que

ele não diz ou não pode dizer por motivos ideológicos. Seria assim, a nosso ver, uma

proposta crítica de grande valor político. Contudo, a ênfase no cientificismo e a falta de

ousadia para buscar os efeitos dessas ideologias acabam por prejudicar seu ímpeto

revolucionário.

Eagleton, nos anos seguintes, vai defender uma posição política em relação à

interpretação de textos e a sua recepção múltipla, mas fará isso a partir de certas

convenções ideológicas e linguísticas estabelecidas na sociedade, pois, para ele, nunca

somos apenas nós mesmos na interpretação do texto, mas uma conjuntura ideológica:

“[...] we are always much more than readers”56

(EAGLETON, 2008, p.171). Assim,

mais do que querer “ler” como a obra foi produzida, buscar-se-ia, numa proposta

revolucionária, liberar a obra de suas várias interpretações canônicas, fazer essas

leituras dos diversos contextos ideológicos e não apenas o da qual o livro fora escrito,

forçando assim os limites da recepção ao longo do tempo e das ideologias. Um exemplo

55 Termo remete às ideias de Paul Ricoeur em Freud and Philosophy: an essay on interpretation (1965), em que defende que Freud, Nietzsche e Marx questionavam nossa consciência, entendimento e experiência. Esses afirmavam, assim, que o significado das coisas descansa por trás ou entre o discurso. Algo que está velado na superfície, mas que estrutura todo o significado. 56 [...] somos sempre muito mais do que leitores.

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disso seria se, ao invés de buscarmos ver Aurélia como sendo o resultado de ideologias,

tentássemos ler Senhora à luz da mulher moderna, fazendo dialogar as ideologias do

patriarcado do século XIX com a da mulher emancipada na modernidade. Seguindo

Walter Benjamim, Eagleton afirma que a tarefa da crítica não seria transmitir

informação cultural sobre um fenômeno literário, mas estimular os leitores a refletirem

sobre suas próprias situações políticas. Assim, uma visão revolucionária buscaria

perceber como os textos podem servir como uma utopia para sociedade e também como

um ensinamento do prazer mais do que uma questão de técnicas discursivas. Fomentar-

se-ia, também, a criação de uma tradição de novos leitores, contribuindo materialmente

para a criação de bibliotecas para o letramento e difusão da leitura, e possibilitando o

diálogo dos significados textuais entre os diversos setores sociais – os escritores, os

críticos literários e os leitores das diversas classes na sociedade civil.

2.2.4 Literatura

Como falamos na introdução, um dos principais fatores para o reconhecimento

de Eagleton se deu graças a publicação do livro Teoria da literatura: uma introdução,

publicado originalmente em1983. Nele, existem várias proposições que rompem com

seu pensamento anterior e, dentre elas, está a que diz, categoricamente, que a literatura

não existe, pelo menos não como um objeto estável, possuidor de uma unidade

compartilhada por todos os seus fenômenos. Em sua fase científica precedente, todavia,

Eagleton parece ainda estar defendendo alguma ideia de literatura, ou ao menos de

literariedade intrínseca, ou seja, que mais do que uma questão de construção de valores

externos, a literatura possui, pela sua própria construção, uma característica diferenciada

dos outros discursos.

Questões como ficcionalidade, texto não pragmático, linguagem especial, acesso

ao vivido e literatura como um discurso valorativo, são defendidas por Eagleton, em sua

obra inicial, como características da literatura. Tentaremos, assim, contrastar essas

peculiaridades de entendimento em ambas as fases do autor.

Como afirmamos no primeiro capítulo, Eagleton se apropria das ideias

althusserianas de semi-autonomia e as aplica a ideia de literatura, afirmando que essa se

diferenciaria dos outros textos, como o historiográfico, por exemplo, por não possuir um

referente histórico particular. A literatura, para o autor britânico, em Criticism and

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ideology, não seria independente da história, mas diferentemente dos outros discursos,

ela buscaria ocultar seus próprios fatores históricos de produção e aparentaria ser

autoprodutora, ou, em outros termos, autotélica. O texto literário trabalharia, nesse

sentido, com as ideologias, ou seja, com representações imaginárias da realidade, e

possuiria a capacidade de universalizar ou abstrair sua representação de qualquer real

particular. Todavia, como, para o autor britânico, a ideologia é típica de uma história em

particular, em última instância, o texto também o seria. Um exemplo disso, descrito pelo

próprio Eagleton, seria a Londres narrada pelo escritor Charles Dickens: “The

imaginary London of Bleak House exists as the product of a representational process

which signifies, not ‘Victorian England’ as such, but certain Victorian England´s ways

of signifying itself”57

(EAGLETON, 2006, p.77). Nesse sentido, a literatura sempre

produziria uma nova percepção sobre um objeto real particular, ou seja, não é que ela

sempre falsifique a história ou lide com objetos inverídicos empiricamente, mas é que o

modo distanciado com que ela trabalha esses objetos faz com que se atente para sua

estrutura de representação e, assim, acabe-se por provocar uma atenção excedente mais

ao significante do que ao significado do texto. Sobre isso, Eagleton conclui: “The

literary text´s lack of a real direct referent constitutes the most salient fact about it: its

fictiveness58

” (EAGLETON, 2006, p.78).

Nesse sentido, o que está por trás dessa conclusão é a suposição da literatura

como possuidora de uma linguagem especial, que provocaria um apagamento de seu

referente histórico particular, levando-a a ser não uma ficção, mas uma ficcionalidade.

Há, assim, uma confluência do argumento de Eagleton com os formalistas russos em

sua propensão a defender uma “poética” característica dos textos literários, pois, para os

formalistas russos, assim como para Eagleton, a poética seria uma perturbação nas

relações normativas, entre significante e significado, a fim de produzir uma

“desfamiliarização” da experiência. Eagleton, entretanto, ressalva que no romance isso é

mais evidente do que na poesia, devido ao fato de que o romance – ao menos os

realistas ou naturalistas – pretende enfatizar um real particular, mas, de um jeito ou de

outro, ambos – tanto o romance quanto a poesia – acabam por enfatizar essa ausência

de real particular, essa ficcionalidade, que seria uma sobreposição do significante sobre

o significado. Essa percepção da ficcionalidade leva Eagleton a fazer afirmações, que

57 A Londres imaginária de Bleak House existe como o produto de um processo representacional que não significa a “Inglaterra Vitoriana” como tal, mas certos modos da Inglaterra Vitoriana de significar a ela mesma. 58 A carência do texto literário de um referente real direto constitui o mais saliente fato sobre ele: sua ficcionalidade.

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nos anos seguintes é retificada em seus trabalhos posteriores. Vejamos um exemplo

disso:

I mean simply that a statement such as “thou still unravished Bride of

quietness” self evidently belongs to literary discourse, whereas a

statement such as “After a while i went out and left the hospital and

walked back to the hotel in the rain” may or may not do so, depending on its context. Both statements in fact belong to literary discourses

which lack a real particular referent; it is simply that in the first case

this absence inscribes itself in the very letter of the text, which proclaims its lack of a real object in its very internal

disproportionment of elements, flaunts its relative autonomy of the

real in the formal structures of its proposition59

(EAGLETON, 2006, p.78-79).

Ao afirmar que certa frase conteria uma organização estrutural diferenciada, ou

que certa característica seria interna ou referente à própria letra do texto, Eagleton

retém, em algum sentido, uma visão objetiva de uma estruturação diferenciada que seria

típica do discurso literário. Todavia, essa posição, defendida em seus trabalhos dos anos

80, parece insustentável, porque a ficcionalidade carrega uma visão limitada da

linguagem social, visto que, para Eagleton, uma linguagem literária que se propusesse a

ser estranha – desviada de uma linguagem prosaica ou “comum” – pressuporia uma

linguagem estável compartilhada por certa comunidade. Dessa forma, o que seria um

discurso literário em um determinado espaço-tempo poderia não ser em outro. Mas

disso, tanto Eagleton quanto os formalistas, tinham ciência; e a própria ideia anti-

historicista que norteia o trabalho inicial de Eagleton já carrega esse víeis não

homogêneo dos fenômenos sociais, como foi anteriormente comentado. Contudo, o que

se sustenta não é uma ideia do literário, mas da literariedade, para os formalistas, e, para

Eagleton em sua fase científica, da ficcionalidade. Isso significa que eles admitem a

mudança histórica do significado literário, mas não descartam a possibilidade de um

corte sincrônico que possibilitaria encontrar certos “desvios literários” em um sistema

particular. Eagleton posteriormente rompe com seu argumento, afirmando que:

“Anyone who believes that ‘literature’ can be defined by such specials uses of language

59 Eu intento simplesmente que uma afirmação tal como “thou still unravished Bride of quietness”(tu ainda inviolada noiva da tranquilidade) auto-evidentemente pertence ao discurso literário, enquanto que uma afirmação tal qual “Depois de algum tempo eu sai e deixei o hospital e voltei para o hotel na chuva” pode ou não pode pertencer, dependendo no seu contexto. Ambas as afirmações de fato pertencem aos discursos literários que carecem de um referente real particular; é simplesmente que, no primeiro caso, sua ausência se inscreve ela mesma na própria letra do texto, que proclama sua carência do objeto real em seu mesmo desproporcionamento interno de elementos, ostenta

sua autonomia relativa do real nas estruturas formais de suas proposições.

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has to face the fact that there is no ‘literary’ device – metonymy, synecdoche, litotes,

chiasmus and so on – which is not quite intensively used in daily discourse”60

(Eagleton, 2008, p.5). Eagleton rejeita, assim, sua visão anterior, por considerar que a

linguagem é muito mais contraditória e imprevisível do que pensavam os marxismos

estruturalistas, e também por entender a observação apenas do que funcionaria como

literário, sem considera-lo numa interação entre o que é dito e o que é lido, como sendo

uma visão redutora. Nesse sentido, é sintomático o fato de o teórico inglês usar até a

mesma frase que usara anos anteriores, vide a penúltima citação, para rechaçar seu

argumento de outrora: “If everyone used phrases like ‘unravished Bride of quitness’

in ordinary pub conversation, this kind of language might cease to be poetic”61

(EAGLETON, 2008, p.5, grifo nosso). Dessa forma, vemos que o Eagleton dos anos 80

não entende que a linguagem literária seja uma linguagem diferenciada ou que chame

atenção para si. Nesse sentido, ler algo como literário ou literatura é menos uma

característica intrínseca do que valorativa, em que determinados tipos de discursos, que

são inscritos em instituições sociais, o legitimam como literário. Vemos então que

Eagleton, em Criticism and Ideology, era ciente disso, apesar de não ter levado o

argumento a consequências maiores:

What is finally at stake is not literary texts but Literature – the

ideological significance of that process whereby certain historical text are severed from their social formations, defined as “literary”, bound

and ranked together to constitute a series of “literary traditions” and

interrogated to yield a set of ideologically presupposed responses62

(EAGLETON, 2006, p.57).

Como pode se confirmar pelo enxerto acima, Eagleton já era ciente que a

literatura é um campo de luta discursiva, em que certos textos são elevados à categoria

de literatura, legitimados por certas instituições sociais como, por exemplo, as editoras,

livrarias, academias, e instituições ideológicas, tais como a teoria e a crítica literária e a

mídia especializada. Entretanto, ele apenas estava preocupado em entender como os

60 Quem acredita que a “literatura” possa ser definida por esses usos especiais da linguagem tem de enfrentar o fato

de que há mais metáforas na linguagem usada habitualmente em Manchester do que na poesia de Marvell. Não há nenhum artifício “literário” – metonímia, sinédoque, lítote, quiasmo etc. – que não seja usado intensivamente no discurso diário. 61 Se todos usassem frases como “noiva imaculada da quietude” numa conversação corriqueira de bar, esse tipo de linguagem poderia deixar de ser poética. 62 O que está finalmente em jogo não são os textos literários, mas literatura – a significância ideológica do processo pelo que certos textos históricos são cortados de suas formações sociais, definidas como “literária”, ligadas e classificadas juntas para constituir uma série de “tradições literárias”, e interrogadas para produzir um grupo de

respostas ideologicamente pressupostas.

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textos se inscrevem e não como eles são inscritos em uma instituição literária. Sendo

assim, recai-se, novamente, no problema da produção, sem considerar que são os

leitores que inscrevem o texto e que legitimam sua significação.

Em Teoria da Literatura: uma introdução, o teórico inglês defendeu que,

mesmo o texto sendo produzido como um tratado filosófico, ele pode ser lido ou

legitimado como ficção, assim como um romance policial pode ser usado como

exemplo para resolver situações práticas da investigação social, saindo assim do status

de ficção para o de manual de instruções. É sobre essas premissas que Eagleton leva às

últimas consequências o argumento valorativo como característica da literatura – a

ponto de recusar qualquer valor objetivo, inerente da literatura, e invocar um relativismo

atroz ao conceito: “Anything can be literature, and anything which is regarded as

unalterably and unquestionably literature – Shakespeare, for example – can cease to be

literature”63

(EAGLETON, 2008, p.9). Nesse sentido, não importa se um texto tem ou

não referente real particular isso não o caracterizará como literário ou literatura, apenas

se caracterizará se determinados valores, em contextos específicos, o elegerem como tal.

Eagleton, recusa, assim qualquer fator interno que poderia conceder uma característica

diferenciada da literatura em relação aos outros discursos.

Um último argumento sobre a literatura, que Eagleton defendia em sua fase

científica, era o de que a literatura podia revelar algum acesso especial à ideologia ou à

história real. Vejamos sua descrição:

Literature one might argue, is the most revealing mode of experiential

Access to ideology that we possess. It is literature, above all, that we observe in a peculiarly complex, coherent, intensive and immediate

fashion the workings of ideology in the textures of lived experience of

class-societies64

(EAGLETON, 2006, p.99).

Para Eagleton, a literatura estaria, assim, em uma posição intermediária, entre a

ciência e a experiência real: funcionaria de forma similar à ideologia, mostrando a

experiência real, e similar à ciência, por tomar seu objeto de forma coerente – a partir de

categorias e protocolos como, por exemplo, suas figurações e convenções simbólicas.

Desse modo, ela mostraria como a ideologia é construída no texto, podendo iluminar a

63 Qualquer coisa pode ser literatura, e qualquer coisa que é considerada literatura, inalterável e inquestionavelmente – Shakespeare, por exemplo –, pode deixar de sê-lo. 64 Literatura, alguém poderia arguir, é o mais revelador modo de acesso experiencial à ideologia que possuímos. É na literatura, acima de tudo, que observamos, em uma complexa peculiaridade, coerente, intensiva e imediata tendência,

os trabalhos da ideologia nas texturas da experiência vivida das sociedades de classes.

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relação dessa ideologia com a história. Há, todavia, dois argumentos, presentes nessa

visão de literatura como reveladora da experiência da ideologia, que parecem difíceis de

serem sustentados pelo autor nos anos seguintes. Primeiro, o de que a literatura poderia

permitir um acesso especial a ideologia, e no caso da visão marxista estruturalista

apenas o crítico teria acesso a essa experiência – “[...]but the work simultaneously

reveals (to criticism, if not to the casually inspecting glance) how that naturalness is the

effect of a particular production”65

(EAGLETON, 2006, p.85). Nesse sentido, esses

críticos queriam afirmar que os leitores comuns aceitariam a naturalidade do texto e não

possuiriam acesso a essa experiência da ideologia. Perguntamo-nos então: esse leitor

comum, ao invés de ter um acesso especial, teria uma leitura ideológica e não uma

leitura sobre a ideologia? Essa é uma resposta que Eagleton não parece negociar com

precisão, resultando, assim, numa condição especial, ou elitista, da função do crítico.

O outro fator – ou argumento – seria, novamente, o fato de o autor elevar a

literatura a uma posição privilegiada, de um texto que poderia nos fornecer um acesso

especial à experiência da ideologia. Desse modo, Poderíamos questionar o motivo para

esse elemento não poder ser estendido aos outros tipos de discursos? Se levarmos em

conta que os fatores que vimos – como a ficcionalidade, a linguagem “estranhada” ou o

fato do texto não possuir uma referência real particular – são subordinados aos valores

sociais e não às características estruturais organizacionais de um fenômeno literário,

poderíamos afirmar, nessa perspectiva, que não há motivo objetivo para assegurar à

literatura um acesso especial à experiência da ideologia. Poderíamos lembrar, a título de

argumento, que o próprio Marx, em Teoria da Mais Valia (1863), investiga as obras de

Adam Smith e, a partir dessas, percebe ou tem acesso a várias nuances da ideologia

burguesa que originaram seus textos. O texto de Smith, a pesar de nos revelar a

ideologia, não fora, pois, genericamente chamado de literatura, mas de texto filosófico

ou econômico. Logo, o que se pode inferir a partir desse exemplo é que se torna

problemático falar em texto como “literário” a partir do argumento, proposto por

Eagleton, da literatura como o texto mais revelador da ideologia; dever-se-ia, assim,

pensar em leituras literárias, no sentido de que seriam as leituras e as valorações e

tipificações, que fazemos de determinado texto, que o constituem. Nesse sentido, o que

impediria um texto dito filosófico, jurídico, econômico ou de teoria etnológica de nos

65 [...] mas a obra simultaneamente revela (para crítica, se não para a observação casualmente inspetora) como essa

naturalidade é o efeito particular.

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fornecer um acesso especial à experiência ideológica? Eagleton parece estar bastante

confiante que isso é consumado na literatura em detrimento dos outros discursos – mas

essa ideia ele irá abandonar, veemente, em seus trabalhos dos anos 80.

Esse argumento, defendido em Criticism and Ideology, acarreta em outro

problema: a utilização, por Eagleton, apenas de textos canônicos – ao invés de tentar

expandir suas análises às literaturas marginalizadas ou outras semioses literárias, como

o cinema ou a canção popular. Sobre isso, Smith comenta: “Eagleton is evasive when it

comes to distinguishing between ‘Literature’ (in the canonical sense) and literature (in

the sense of all imaginative writing), a fact that presents a serious problem in his

formulations”66

(SMITH, 2008, p.55). Desse modo, será que as narrativas policiais,

vendidas em bancas de jornal ou folhetins contemporâneos, levar-nos-iam a ter o

mesmo acesso à experiência da ideologia que outros tipos de textos não literários? Ou

seriam esses textos “menores” igualmente reveladores, tais quais os de Dante,

Shakespeare ou Joyce, por exemplo, e, dessa forma, mais reveladores do que os outros

textos não literários?

Poderíamos dizer que a utilização que Eagleton faz do cânone inglês em suas

análises tem a função de fazer uma leitura desconstrutiva dos textos canônicos, e, por

isso, estaria justificada a sua utilização. Todavia, como vemos no capítulo final do livro

Criticism and Ideology, propõe-se uma valorização dos textos canônicos, não por serem

apenas fruto de uma imposição discursiva das classes hegemônicas, ou por elementos

estéticos por si só, mas sim por possuírem elementos singulares entre sua composição e

o seu modo de produção. Como afirma o autor:

Literary works “transcend” their contemporary history, not by rising

to the “universal”, but by virtue of the character of their concrete

relations to it – relations themselves determined by nature of the historical conditions into which the work is inserted

67 (EAGLETON,

2006, p.178).

Ou seja, ao determinar a valorização de uma literatura a partir das suas relações

com o seu modo de produção, Eagleton acaba novamente não explicando por que outros

textos criativos, em mesmas conjunturas históricas e ideológicas, não foram elevados à

66 Eagleton é evasivo quando se trata de distinguir entre “Literatura” (no sentido canônico) e literatura (no sentido de toda a escrita criativa), o que representa um problema sério em suas formulações. 67 Obras literárias “transcendem” a sua história contemporânea, e não pelo erguimento ao “universal”, mas em virtude do caráter de suas relações concretas com isso – relações elas mesmas determinadas pela natureza das condições

históricas em que a obra está inserida.

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categoria de literatura, nem o porquê de uma obra poder ser valorizada de diversas

formas ao longo do tempo.

Com esse argumento, Eagleton segue a ideia de Marx, em Grundrisse (1857-

1861), sobre a arte grega. Para Marx, a arte grega, como a de Homero, por exemplo,

possuiria um “charme eterno”, justamente pelas limitações estruturais de sua sociedade.

Eagleton toma esse argumento e afirma que: “the ideologies proper to certain restricted

stages of material development are capable of producing aesthetic significations whose

power thrives precisely on such limits”68

(EAGLETON, 2006, p.181). Nesse sentido,

ele defende uma espécie de valor literário relacionada com sua produção social. Assim

sendo, essas relações conflituosas que podem existir entre a obra e seu meio de

produção poderiam justificar o fato da arte grega, apesar de seu modo de produção

arcaico e escravista, produzir elementos artísticos de grande valor estético, ou, por

exemplo, o fato das obras de Jane Austen serem valorizadas justamente por terem sido

escritas em um meio ideológico carregado pela dominação e opressão patriarcal e ética.

Esse argumento é bastante sugestivo, mas foi prontamente problematizado, nos anos

seguintes, pelo próprio, que passou a defender a noção da leitura ou releitura dos textos

como fator constituinte dos textos:

Is it possible that if we discovered a little more of what ancient greek

tragedy was “really” about we would stop liking it? Marx asks himself in the introduction of Grundrisse why is that such ancient art

continues to exercise an “eternal charm”; but how do we know that it

will? In what sense was it “art” for the ancient Greeks in the first

place?69

(EAGLETON, 1981, p.124).

Vemos, então, que Eagleton questiona o próprio argumento que defendera em

sua fase científica, pontuando justamente o fato de a arte grega ter sido valorizada como

arte, mas se ela futuramente ainda será. Isso significa que, para Eagleton, a questão do

valor literário é uma característica que não pode ser fixada apenas nos moldes da

produção, como ele mesmo fizera anteriormente, mas serão as várias leituras que

faremos que constituirão tal obra como literária. Nesse sentido, mesmo um Homero ou

um Shakespeare, poderiam ser lidos de uma forma, pelos seus contemporâneos e de

68 As ideologias próprias para certos estágios restritos de desenvolvimento material são capazes de produzir significações estéticas cujo poder floresce justamente em tais limites. 69 É possível que, se descobríssemos um pouco mais sobre o que a tragédia antiga grega “realmente” era, iríamos parar de gostar dela? Marx se pergunta na introdução de Grundrisse por que é que tal arte antiga continua a exercer um “encanto eterno”, mas como sabemos que ela exercerá? Em que sentido isso era “arte” para os antigos gregos, em

primeiro lugar?

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tantas outras por seus futuros leitores. É justamente por avaliarmos os textos de acordo

com nossos julgamentos, afirma Eagleton em Teoria da Literatura, que podemos

valorizar o que quisermos nele. Desse modo, um drama como Hamlet, por exemplo,

poderia ter sido valorizada há anos atrás por suas descrições sobre o sofrimento

humano, mas pode ser valorizado em outras épocas por sua capacidade de exemplificar

alguns conflitos psicanalíticos.

Essa posição radical de Eagleton, nos anos 80, de apostar na relatividade do

conceito de literatura, é tentativa do autor para atentar para os usos revolucionários e

políticos que poderiam ser feitos com os textos literários. Ao quebrar qualquer modelo

ou valor literário intrínseco, Eagleton parece acreditar abrir o caminho para utilizar e re-

inscrever os textos de diversas formas e para fins progressivos. Esse radicalismo se

torna importante em uma visão revolucionária, porque resiste à ideia da literatura como

um objeto autônomo, isolado das práticas sociais, e denuncia essa categoria como uma

construção recente na história – quando, a partir do século XIX, influenciados por

ideologias individualistas do romantismo, aliados a especializações típicas do

capitalismo liberal econômico, certos discursos foram transformados em “literários”.

Além disso, ao negar essa particularização de certos discursos como literários, liberam-

se esses objetos para dialogar com todo um leque de produções discursivas e sociais que

compartilham com eles elementos de sua constituição. Contribui-se, assim, para evitar a

hegemonia de práticas críticas literárias institucionalizadas como um campo do saber

fechado em seu próprio discurso, o que gera ideias e pensamentos dissociados dos usos

sociais e coletivos dos objetos culturais segmentados como “literários”. Assim, para o

Eagleton dos anos 80, negar a literatura é abrir o caminho para uma crítica cultural das

diversas produções culturais, a partir da qual certos objetos convencionados como

“literários” possam ser estudados de maneira mais ampla.

2.3 FATORES ESTILÍSTICOS

Nesse tópico buscaremos analisar o estilo da crítica de Eagleton, em sua fase

científica, e sua visão do que seria um estilo revolucionário. Observaremos também, ao

final do tópico, os motivos que fizeram seus livros posteriores obterem mais

notoriedade, no meio acadêmico e editorial, em oposição as suas primeiras investidas na

teoria literária. Contudo, não queremos demonstrar que o estilo foi o único fator para o

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reconhecimento de Eagleton; nossa intenção é apenas evidenciar a mudança estilística

ocorrida, que, aliada aos fatores históricos e teóricos, pode ter contribuído com esse

sucesso.

Mais do que uma questão de insights teóricos, vemos que há, nos trabalhos pós

Criticism and Ideology, uma forma de expressão utilizada por Eagleton que acaba por

popularizar ideias que, até então, eram tidas como altamente técnicas e para iniciados.

Ou seja, percebe-se aí uma tentativa de construção de um projeto popularizante e

democrático que Eagleton propôs usar como diferencial em relação a alguns críticos

literários beletristas – como ele próprio evidencia, rememorando os anos 80, no prefácio

da segunda edição de Teoria da literatura: uma introdução (1997): “Algumas teorias

literárias têm-se mostrado, de fato, excessivamente herméticas e obscurantista, e o

presente livro constitui uma tentativa de consertar esse estrago, tornando-os mais

amplamente acessíveis” (Eagleton, 1997, Prefácio). Todavia, muitos o criticam, dizendo

que, ao invés de popularizar, ele estaria vulgarizando ideias, transformando toda uma

discussão estética em uma discussão política e fora do âmbito do estritamente literário.

Também discutiremos essa questão na nossa análise.

Defenderemos também que, a partir dos anos 80, o pensador britânico acaba por

recusar a escrita acadêmica ou, em outros termos, o modo de analisar o objeto literário

sedimentado por um estilo de crítica elitista e conservador, para apostar numa forma de

crítica que rompesse com esse engessamento e pudesse, ao mesmo tempo, não só

criticar, mas criar discursos em cima do objeto. Esse novo estilo de crítica se afastaria

de uma crítica de tom acadêmico, sério, semi-positivista e que buscaria ver as categorias

objetivas do texto literário, para ter uma visão que percebesse que há certas

singularidades no discurso que não podem ser formalizadas sem uma negociação

política, e que toda forma de discurso é um artífice construindo, sendo, muitas vezes, o

reflexo de desejos inconscientes de seus interlocutores. Eagleton, nesse sentido, muda

seu modo de escrever, entre 1976 e 1981, porque vê que aquele tipo de escrita, sobre

influência teórica althusseriana, não era efetivamente política, e que, ao contrário dessa,

o estilo de escrita ao modo brechtiano, que ele adota posteriormente, faz parte de uma

lógica política radical e engajada. Não tentaremos defender, todavia, que Eagleton

mudou acintosamente sua forma de criticar. Defenderemos que ele mantém muito de

seus recursos linguísticos, porém, acrescenta alguns elementos inspirados tanto nos

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radicais de influência marxistas – como Walter Benjamin, Bertold Brecht e Mikhail

Bakhtin – e da rebeldia e pastiche desconstrucionista em voga dos anos 80.

Dessa forma, faremos uma análise de algumas características que julgamos

recorrentes nos escritos de Eagleton e que acabam por constituir uma marca peculiar de

sua escrita. Para isso, analisaremos alguns elementos presentes em Criticism and

Ideology, observando depois como elas se adéquam às mudanças e adaptações da sua

nova escritura dos anos 80.

2.3.1 O estilo de Criticism and Ideology

A obra inaugural de teoria literária de Eagleton está carregada de um estilo típico

das monografias do marxismo ocidental que discutimos no capítulo anterior, ou seja,

com um tom sério e academicista. Isso pode ser justificado pela tentativa do autor de

perceber os fenômenos literários como um resultado objetivo de um estudo das

estruturas de produção social. Por consequência, o estilo seco, direto e arrogante de sua

escrita é resultante do aspecto “científico” que suas análises buscavam. Nessa estilística

convicta de sua objetividade, entretanto, não havia espaço para uma escritura que

pudesse questionar sua própria relatividade semântica, sua construção linguageira ou

mesmo a identidade entre objeto factual e linguagem utilizada para significá-lo.

O autor inglês, ao aproximar sua linguagem a um esquema lógico-matemático,

tentou criar um sistema de estruturas em uma múltipla relação, em que todos os

elementos determinassem e fossem determinados entre eles; consequentemente, isso

transformou a escrita num emaranhado de siglas. Vejamos um exemplo disso: “a

Double articulation GMP/ GI-Gi/ AI/ LMP is , for example, possible whereby a GI

category, when transformed by AI into a Ideological component of na LMP, may then

enter into conflict with the GMP social relations it exist to reproduce”70

( EAGLETON,

2006, p.61). Nesse fragmento poderíamos, a primeira vista, questionar se ele realmente

trata sobre literatura ou sobre uma proposição matemática, pois, apesar de a linguagem

ser clara e a sintaxe ser disposta naturalmente, há uma excesso de códigos e jargões que

deixa o discurso claro em sua exposição, mas complexo pela sua especificidade

conceitual. Nesse sentido, vemos que a sua escrita é acessível e objetiva, mas não deixa

70 Uma dupla-articulação MPG/IG-IG/IE/MPL é, por exemplo, possível, como uma categoria de IG, quando transformada pela IE em uma componente ideológica de um MPL, pode então entrar em conflito com as relações

sócias do MPG que existe para reproduzir-se.

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espaço para as características que Eagleton proclamaria, anos depois, como

revolucionárias, a exemplo do humor e da ironia.

A ausência desses fatores é o que Eagleton questiona, anos depois, não apenas

em si, mas em outros marxistas, como, por exemplo, Fredric Jameson. Assim, para o

pensador inglês, Jameson teria uma escrita tranquila e conciliadora, e, nesse sentido,

Eagleton afirma: “(The fact that he is in no sense a polemical and satirical writer –

essential modes, to my mind, for a political revolutionary – may be taken to confirm this

impression.)”71

(EAGLETON, 1988, p.71). Desse modo, apesar de Eagleton não possuir

um estilo revolucionário ou uma escrita com a violência relativista linguística, típica dos

desconstrutivistas, a escrita inicial do pensador britânico mostra-se combativa e

politizada.

O estilo austero e convicto de suas verdades fez com que a crítica científica

desse pensador inglês criasse estratégias linguísticas oposicionistas ao discurso que

queria desmascarar, e isso permaneceu como uma de suas características também nos

anos seguintes. Assim, vamos comentar aqui algumas dessas características estilísticas,

que julgamos recorrentes na crítica inicial de Eagleton, e que se tornarão também

presentes em toda sua obra. Para isso, propomos três categorias, como uma espécie de

analogia entre as figuras de linguagem e o funcionamento da análise de Eagleton: a

hipérbole, a antítese e a sinédoque.

2.3.1.1 Hipérbole

Por possuir certa confiança elevada em seus pressupostos teóricos, ou seja, por

acreditar que o marxismo ou a ciência do materialismo histórico seria a teoria capaz de

entender completamente a realidade social e literária, o estilo de Eagleton deixa

transparecer, em alguns momentos, certo exagero retórico, buscando, assim, suplantar

as teorias concorrentes. Assim, essa característica é um dos motivos, por exemplo, que

levaram Willy Maley (1991) a definir o estilo de Eagleton, ou o que ele chama de

“eagletonismo”, como um modo de crítica que desmerece, de forma bruta e ríspida, o

que considera ser oriundo da alta cultura: “An Eagletonism is a flexible polemical

device which takes the form of a rhetorical flourish designed to debunk an image of

71 O fato de que ele em nenhum sentido é polêmico ou satírico – modos essenciais, a meu ver, para uma política

revolucionária – pode ser tomado para confirmar essa impressão.

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high culture, through a gesture in the direction of some banal, bizarre, or brute

‘reality’”72

(MALEY, 1991 apud SMITH, 2003, p. 74). Desse modo, esses exageros se

dão precisamente porque muitas vezes Eagleton busca explicitar o que é mais

flagrantemente elitista em seus adversários. Vejamos um exemplo explanatório dessa

austeridade crítica de Eagleton:

[…] the english gentleman who occupied the early professorships at

the “ancient” Universities no more needed a course of specialized

training in how to read their own literature than they needed a course of training in how to give orders to their domestic servants

73

(EAGLETON, 2006, p.12).

Como podemos ver nesse enxerto, retirado de Criticism and Ideology, Eagleton,

ao comparar o comportamento dos acadêmicos com suas supostas condutas de

dominação de classe, denuncia e transforma todo o glamour dos supostos docentes de

literatura em uma imagem bruta de dominação e opressão. Nesse sentido, esse exemplo

descreve bem o que Maley sugeriu ser o “eagletonismo”, em que Eagleton denuncia os

valores elitistas e os coloca sobre uma perspectiva banal e bruta. Podemos observar,

assim, que esse estilo de crítica de Eagleton, segundo James Smith (2008), seria

tributário ao estilo de Hebert McCabe74

, que também era austero em suas palavras e

buscava expor a realidade inferior da sociedade. Assim, questões “exageradas” ou

“extremas”, como genocídio, pedofilia, estupro, sodomia e inanição, eram temas que

McCabe utilizava, e que, posteriormente, Eagleton usou como argumento para combater

qualquer proposição relativista que queira desconsiderar a materialidade e o valor

desses fatos sociais.

Nesse âmbito, poder-se-ia pensar que, ao desmerecer certos tipos de visões

culturais, Eagleton acabaria por demonstrar uma visão superficial e parcial do problema.

Um exemplo dessa visão crítica sobre Eagleton seria a ideia de Júlio Pereira, em sua

tese de doutorado sobre teoria da literatura, que afirma que o estilo de Eagleton, do

ponto de vista de sua retórica, é muito habilidoso, mas, quando se trata do seu estilo de

crítica, ele: “condiciona os temas à sua perspectiva particular, e invalida – quando não

72 Um eagletonismo é um artifício polêmico flexível, que toma a forma de um floreio retórico desenvolvido para desmerecer uma imagem da alta cultura, através de um gesto em direção de uma ‘”realidade” bruta, bizarra ou banal. 73 O cavalheiro inglês que ocupou as primeiras cátedras nas “antigas” universidades não mais precisava de um curso de formação especializada em como ler suas próprias literaturas do que eles precisavam de um curso de treinamento em como dar ordens aos seus empregados domésticos. 74 Filósofo britânico e padre da ordem dominicana, fez parte do Slant, um jornal inglês do qual Eagleton participou

nos anos 60.

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ridiculariza – os modos de pensar que lhe são adversos” (PEREIRA, 2006, p.114).

Todavia, se levarmos em consideração que Eagleton achava que sua teoria cientifica dos

anos 70 era a única defensora dos oprimidos, o que tornava seu discurso o único válido,

a utilização do extremo ou do exagero teria a função de quebrar o discurso arbitrário e

hegemônico da burguesia, bem como atacar a voga relativista pós-moderna, que ele

considerava homogeneizante e paradoxalmente pluralista. Por conseguinte, o autor

britânico acreditava que a materialidade da desigualdade econômica e cultural na

sociedade não permitia tal celebração do relativismo e do comedimento. Contra isso,

portanto, Eagleton entende que deveríamos expor as contradições e os extremos que a

sociedade do capital tende a ocluir, e que muitas vezes estão velados nos discursos e

teorias literárias.

Podemos ver um exemplo desse exagero contra o relativismo em um comentário

que Eagleton faz sobre os críticos literários que acreditam que tudo no texto é uma

questão de linguagem:

[…] for to say that everything that happens in the text happens in

terms of language is equivalent to saying that everything happens in

the world because of god. Such a statement is so pervasively applicable as to cancel itself out leave everything exactly as it was

75

(EAGLETON, 2006, p.82).

Nesse exemplo, vemos que Eagleton tenta quebrar o relativismo com um

exemplo extremo, que desmereceria a lógica contida na afirmação de que se algo é tudo,

logo algo também é nada, visto que não teríamos como definir algo se não podemos

delimitar o que é seu oposto. Nessa perspectiva, podemos ampliar essa posição

mediadora de Eagleton para as várias ideias que ele trabalha. Por exemplo, para ele o

texto não seria nem só forma, nem só conteúdo; não seria apenas representação, mas

também ficção; não seria apenas produção, mas produto. Nesse sentido, o autor usa o

exagero hiperbólico para manter sua postura dialética, ou seja, a ideia de que entre uma

tese e uma antítese existiria uma síntese, mas essa seria sempre histórica e sujeita a

contradição. Isso implica que, toda vez que o pensador britânico descreve algo

exageradamente, isso tem a função de reduzir o extremo de uma teoria para enquadrá-la

75 [...] pois dizer que tudo que acontece no texto acontece nos termos da linguagem é equivalente a dizer que tudo

acontece no mundo por causa de Deus. Tal afirmação é tão perversamente aplicável como para cancelar a si próprio e deixar tudo exatamente como estava.

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no meio dos dois extremos – entre uma ideia e seu oposto antagônico. Desse modo, para

o pensador britânico, afirmar categoricamente sobre o que é algo, ou negar totalmente

algo, não seria possível sem que se fosse remetido a uma história particular. É por isso

que, para quebrar o relativismo, que para ele seria um extremismo, Eagleton usa de

exemplos extremos, buscando abrandar o efeito desse relativismo e jogá-lo de volta ao

centro de polos de extremos.

Assim, principalmente em Criticism and Ideology, a argumentação com base em

um sistema de conceitos materialista parece inóspita para um olhar pós-estruturalista,

pois, para esse, o conceito acaba por se esvaziar no imenso jogo de sentidos, sendo

assim, abstrato e impreciso. Para Eagleton, todavia, podemos sim conceituar certas

ideias de acordo com suas práticas e necessidades históricas e sociais, ou seja, para os

materialistas históricos, como Eagleton, a fixação do discurso por meio de conceituação

é essencial para o discernimento da crítica, e deixar-se perder no relativismo do livre

jogo linguístico, como fazem os pós-estruturalistas, é que seria um exemplo de

imprecisão e obscuridade.

2.3.1.2 Antítese

Pela necessidade de uma renovação política na linguagem legitimada por um

determinado grupo hegemônico, o marxismo acaba muitas vezes criando outra

linguagem, que nomeia o seu oposto político como seu oposto antagônico. Assim, essa

corrente forja toda uma “língua” para identificar o discurso opositor. Vejamos um

exemplo desses termos: “A petty-bourgeois liberal humanism, academically

dispossessed and subordinated yet in intellectual terms increasingly hegemonic,

occupied the bastions of reactionary criticism from within as a dissentient bloc”76

(EAGLETON, 2006, p.13, grifo nosso). Os termos grifados são alguns exemplos dessa

terminologia, que hoje já possui uma longa tradição de uso e pelejas conceituais dentro

do campo da crítica marxista. Assim, mais do que uma referência conceitual, esses

termos atuam como um dispositivo de identidade, que serve para demarcar os limites de

alteridade entre o que se defende e o que se opõem nas outras teorias e objetos

criticados, configurando assim uma característica política refletida no estilo. Nesse

76 Um humanismo liberal pequeno-burguês, academicamente despossuído e subordinado, porém, em termos intelectuais, cada vez mais hegemônico, ocuparam os bastiões da crítica reacionária em seu interior como um bloco

dissidente.

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sentido, os jargões e os estereótipos são uma elemento marcante em boa parte da

tradição marxista, que, para formar um contra-discurso, busca sempre uma renovação da

linguagem vigente, marcando ou fixando conceitos que possuam valor para eles ou que

não sejam do interesse de grupos “dominantes” nomeá-los como tal.

Uma das críticas a esse “ataque” político-estilístico praticado pelos marxistas é

feita por Julio Pereira. Pereira condena o fato de Eagleton criticar o movimento

americano New Criticism em função de esse apresentar um irracionalismo marcante,

que reflete o fato dos seus componentes serem religiosos dogmáticos, direit istas e

latifundiários. Ainda segundo Pereira: “É notável como, em algumas de suas críticas,

Eagleton se amesquinha a ponto de exercer um patrulhamento das opções políticas e até

mesmo religiosas de seus adversários” (PEREIRA, 2006, p.125). Entretanto,o

pesquisador brasileiro não observa que, quando Eagleton faz essa crítica a esses

aspectos políticos e religiosos dos autores, ele não propõe misturar dados pessoais – que

para Pereira não teriam relevância para a análise literária – com as obras deles. O autor

britânico estaria, assim, justamente querendo observar que esses não são apenas traços

pessoais e íntimos desses autores, mas que essas características refletem uma

estruturação simbólica conhecida como ideologia. Assim sendo, Eagleton quer mostrar

que o New Criticism, por estar imerso no estereótipo direitista americano – “Deus,

família e propriedade” – refletiria esses fatores na teoria. Ou seja, Eagleton está

simplesmente tentando demonstrar quais os valores políticos que subjazem o tecnicismo

dessa corrente crítica, e o faz por meio do estudo da estruturação social que seus críticos

possuem.

A escola marxista, assim, deixou uma grande gramática a ser usada pelos seus

adeptos, sendo os estereótipos peças fundamentais dessa gramática, na opinião do

crítico inglês. Para ele, esses estereótipos, sejam positivos ou negativos, são elementos

basilares para a compreensão do jogo de legitimação do poder hegemônico cultural de

uma sociedade. Desse modo, vê-se que eles possuem uma forte ligação com a ideologia

de certos grupos culturais. Assim sendo, tentaremos uma breve explanação dessa

ligação entre estereótipos e ideologias, trazendo um exemplo sobre o colonialismo.

Para se combater o colonialismo é preciso estar ciente das estratégias linguísticas

e ideológicas que os colonizadores irão usar para defender seus interesses. Logo,

seguindo o raciocínio de Eagleton, poderíamos, por exemplo, dizer que, se um inglês

considerar o irlandês como indolente, seria um erro não achar que essa afirmação

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corresponde à realidade de todo o povo irlandês, além de que isso pode ter uma

conotação ofensiva. Entretanto, ao mesmo tempo em que poderia ser ofensivo, poderia

servir como uma espécie de motivo ideológico, que estruturaria uma visão de mundo,

compartilhada na sociedade irlandesa, tornando-a, assim, propensa a não se conformar

com a supremacia inglesa. Há, nesse sentido, uma forte ligação entre os estereótipos e

jargões e a ideia de ideologia que tratamos anteriormente, pois as ideologias são

representações imaginárias da sociedade, mas que, de certa forma, estruturam e

sedimentam sua organização social e cultural – por isso Eagleton não deseja descartar

previamente esses dispositivos retóricos, pois considera-os como uma ferramenta

legítima para análise textual e cultural.

2.3.1.3 Sinédoque

Como não poderia ser diferente, Eagleton, como bom materialista histórico que

era, percebe a visão de um fenômeno literário como resultante de algo mais

fundamental. Desse modo, apesar de combater a doxa marxista hegeliana da totalidade,

que, na teoria literária, tem Lukács como seu precursor, Eagleton tentou demonstrar que

há uma relação semi-organizada que estrutura os fenômenos sociais.

Nesse sentido, a literatura em geral é tratada pelos marxistas como uma parte ou

peça do todo. Isso se daria porque, politicamente, ela não teria uma participação ativa

nas concepções do materialismo histórico, como Eagleton sugere: “na verdade, faz parte

do materialismo cultural a afirmação de que a cultura não é, afinal de contas, aquilo em

que homens e mulheres baseiam suas vidas” (EAGLETON, 2011, p.6). Poderíamos

dizer, assim, que, apesar de Eagleton defender uma semi-autonomia do objeto literário,

ele não deixa de tratá-lo como em uma relação de sinédoque. Ou seja, para Eagleton a

literatura seria parte da ideologia artística, que seria parte das ideologias gerais

hegemônicas, que, por sua vez, seriam parte da superestrutura, sendo essa ainda,

finalmente, resultado de uma base econômica.

Apesar de o crítico britânico ter feito ressalvas quanto a essa ideia de hierarquia,

como expomos anteriormente, em muitos de seus escritos dos anos 70 Eagleton analisa

seus objetos sob uma lógica matemática da teoria dos conjuntos numéricos, utilizada

mais comumente nas ciências exatas. Assim, teríamos, por exemplo, que certo elemento

literário faz parte de certa estruturação ideológica A que está contida em certa

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estruturação B, e assim por diante. Nessa perspectiva, esse aspecto de sinédoque é

evidente; é ele que serve de base, por exemplo, para a crítica de Howard Felperin

(1986), que critica o estilo de Criticism and Ideology por esse adotar uma terminologia

pseudo-matemática e elaborar um grupo de leis que governariam a produção literária.

James Smith, todavia, indo à defesa de Eagleton, afirma que tratar todo o esforço de

Eagleton como um “Stylistic trick77

” é negar toda a tarefa de propor um sistema que

pudesse lidar com características abstratas e complexas da natureza da produção

literária. É por isso que, para Smith, deveríamos valorizar a crítica eagletiana. Vejamos

um exemplo desse uso abstrato na análise de James Joyce:

Nor is the “aesthetic ideology” to which Joyce´s works relates a

simple “reflection” of the ideological formation as a whole. Joyce

was born into an ideological sub-ensemble of petty-bourgeois catholic nationalism – a sub-ensemble which formed a contradictory

unity with the dominant ideology78

(EAGLETON, 2006, p.155 grifo

nosso).

Como podemos ver nesse fragmento, Eagleton realmente se utiliza dessas

categorias, e, muitas vezes, temos que observar com destreza para perceber como se dão

as múltiplas e mutuas relações entre essas – no exemplo do enxerto: como, na obra de

Joyce, uma ideologia estética estaria contida numa formação ideológica que, por sua

vez, faria parte de uma ideologia geral, e assim sucessivamente.

Outro fator que também é recorrente na crítica de Eagleton é o fato de ele não

querer tratar de autores ou textos individuais. Sua crítica procura situar um romance de

um escritor em relação a sua obra como um todo, ou um conceito de um filósofo em

relação a suas teorias. Esse fator parte da ideia de que verificar os fenômenos isolados

seria reificá-los como detentores de algo tão singular que não precisaria ser reescrito nos

discursos que o produziram79

. Todavia, Eagleton não desconsidera a crítica sobre

autores individuais – temos dele, por exemplo, os estudos sobre o romance Clarissa de

Samuel Richardson, além de seu livro sobre as ideias de Walter Benjamim, ou até

mesmo sua peça de teatro que toma Bertolt Brecht como tema. No entanto, ele quer

resistir ao estilo de crítica que busca dissecar o texto como um organismo interno,

77 Expressão irônica querendo qualificar as categorias de produção literária de Eagleton como um “truque estilístico”. 78 Nem é a “ideologia estética” para qual a obra de Joyce relaciona uma simples “reflexão” da formação ideológica como um todo. Joyce nasceu em um subgrupo ideológico do nacionalismo católico pequeno burguês – um subgrupo que formou uma unidade contraditória com a ideologia dominante. 79 Em nossa análise de Senhora focamos apenas nesse romance, mas indicamos que muitos de seus conflitos

ideológicos são compartilhados com outras obras alencarianas, como Lucíola e Iracema.

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fechado para os fatores históricos que o constituem e o atravessam. Podemos ver assim,

que, em Criticism and Ideology, o estilo da crítica eagletiana se baseia não apenas num

romance, mas em enxergar a própria estrutura que está por trás dos autores por ele

analisados. Vejamos um desses exemplos em sua análise em sinédoque de Charles

Dickens:

The spontaneous, empiricist character of dickens´s Romantic

humanism, evident in the “Christmas spirit” and the vulgar vitalism of

Hard times, emerges as a significant aesthetic and ideological weakness. Yet the mature work that very weakness productively

deprives him of a ready-fashioned organicist ideology, à la Daniel

Deronda, by which to mediate and resolve conflict questions. In a transitional work like Dombey and Son, the absence of such an

ideology results in a text twisted and self-divided by the very

contradictions it venerably reproduces80

(EAGLETON, 2006, p.127).

Nesse sentido, ao observar não apenas um romance da fase inicial de Dickens,

mas a estrutura por trás de seus romances – nesse caso, o conflito, no século XIX, entre

as ideologias românticas humanistas e as ideologias típicas daquele século, como o

organicismo pastoral, que, por sua vez, também está presente no romance Daniel

Deronda de George Eliot – , Eagleton consegue perceber como os elementos ficcionais

dos textos iniciais de Dickens constroem uma nova percepção nos seus romances da

maturidade. E isso não ocorre somente em análises literárias. Podemos ver, por

exemplo, a crítica à visão cultural de Raymond Williams, desde Cultura e Sociedade

(1958) até Campo e a cidade (1973), como uma forma de elucidar não só o conceito,

mas a própria obra do autor. Desse modo, essa técnica, de explicar uma ideia pelo seu

contexto geral, serve também como um fator didático, visto que, ao exemplificar de uma

forma “geral”, Eagleton acaba por querer organizar os pontos teóricos que parecem

dispersos dentro da obra do autor, fazendo assim com que o leitor possa associar, mais

facilmente, ideias de um autor que precisaria de um estudo mais demorado e

aprofundado.

Outro fator que pode ser considerado como sinédoque e didático é o fato de

Eagleton fazer sua análise para além do campo literário, ou seja, atravessada por

80 O espontâneo caráter empirista do humanismo romântico de Dickens, evidente no “espírito natalino” e o vitalismo vulgar de Hard Times, emerge como uma estética significante e uma fraqueza ideológica. Porém, na obra madura essa grande fraqueza priva-o produtivamente de uma ideologia organicista pré-fabricada, à la Daniel Deronda, pelo qual mediaria e resolveria questões conflituosas. Em uma obra transicional como Dombey and Son, a ausência de tal

ideologia resulta em um texto distorcido e autodividido pelas próprias contradições que veneravelmente reproduz.

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diversas teorias de campos diferentes. Como exemplo, podemos ver que, ao tratar de um

texto literário, Eagleton não o considera apenas como sendo um elemento do campo da

língua ou da linguística, mas sim: por ser uma configuração social, ele pertence também

ao campo da sociologia; como uma representação de poder, ele é relacionado à

psicanálise; ao tratar da leitura, esse lidaria com a teoria da comunicação, com a

hermenêutica e com a teoria da recepção; e assim por diante. Por entender um texto não

como um elemento isolado, mas como parte de vários discursos, Eagleton acaba

transitando entre diversas disciplinas, o que faz com que vários leitores das mais

diversas áreas atentem para seus escritos.

Por fim, vemos que, para alguns, as categorias de produção literária, por

trabalharem sobre a forma de sinédoque, são muito abstratas ao ponto de não pode ser

inteligível, para outros elas podem ser úteis como um parâmetro para entender a

particularização de certos discursos ideológicos literários. O fato é que, após os anos 70,

Eagleton se afasta cada vez mais desses métodos abstratos. Todavia, não abandona o

estilo de sempre apontar para os meios de produção dos fenômenos literários, o que

requer, muitas vezes, um análise que parte do singular para se alçar ao coletivo. Como

marxista, portanto, Eagleton entende que qualquer singularização em excesso faz parte

do projeto de reificação capitalista, que quer apresentar seus fenômenos ou mercadorias

como algo natural e não como algo construído por meio de vários fatores estruturais que

são silenciados.

2.3.2 O estilo revolucionário

Depois de 1976, Eagleton passa cinco anos sem lançar nenhum livro de teoria.

Nesse meio tempo, ele escreve uma peça de teatro sobre Bertold Brecht, e isso faz com

que ele mude suas concepções sobre o estilo de escritura. Segundo o pensador britânico,

esse trabalho o fez perceber que há uma profunda ligação entre escrita criativa e escrita

crítica. Além disso, a imersão na vida e obra de Brecht fez com que Eagleton se

aproximasse do estilo desse, que, ao mesmo tempo em que era revolucionário

teoricamente, era também engajado nas lutas sociais e nas vanguardas da república de

Weimar, adicionando a tudo isso o humor, o que era bastante estranho ao marxismo

ocidental europeu. Assim, nesse tópico analisaremos duas características que se

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tornaram essenciais para o estilo revolucionário de Eagleton: o humor e a popularização

de ideias.

2.3.2.1 Humor

Ao comentar o estilo de alguns críticos literários marxistas do século XX,

Eagleton chega a seguinte constatação:

Of Bloch, Lukács, Brecht, Benjamin and Adorno, only Brecht is comic. I do not mean simply that he is humorous, although that is

important enough: I mean also that Brecht stands ideologically apart

from that “western Marxist” melancholy which in its various ways broods over the four, and infiltrates the very sinew of their prose

styles81

(EAGLETON, 1981, p.159).

Vemos nessa citação que a melancolia e a austeridade faziam parte do estilo

marxista, justamente pelo fato de os próprios marxistas acharem que a sociedade não

teria tempo para esses prazeres “supérfluos”, proporcionados pelo riso e pelo otimismo

em meio a tanta miséria e necessidades. Entretanto, Brecht, e podemos incluir aí

também Bakhtin, são os que, indo na contra mão, tanto dos conservadores quanto dos

radicais “sérios”, creditavam ao humor e ao cômico características libertadoras e

revolucionárias. Desse modo, para Eagleton, a relação do marxismo com o humor pode

ser resumida da seguinte forma:

For Marxism, history moves under the very sign of irony: there is

something darkly comic about the fact that the bourgeoisie are their

own grave-diggers, just as there is an incongruous humor about the fact that the wretched of the earth should come to power

82

(EAGLETON, 1981, p.161).

Nesse sentido, o fato de uma minoria viver um prazer proporcionado por uma

maioria, que vive em necessidade, tal qual um gigante elefante é dominado e

amedrontado por uma minúscula formiga, é, para Eagleton, algo trágico e ao mesmo

81 De Bloch, Lukács, Brecht, Benjamin e Adorno, apenas Brecht é cômico. Eu não digo simplesmente que ele é humorado, embora isso seja bastante importante: quero dizer também que Brecht está ideologicamente apartado dessa melancolia “marxista ocidental” que em suas várias maneiras paira sobre os quatro, e infiltra o próprio tendão de seus estilos de prosa. 82 Para o marxismo, a história se move sob o próprio sinal de ironia: há algo obscuramente cômico sobre o fato de que a burguesia são seus próprios coveiros, assim como há um humor incongruente sobre o fato de que os miseráveis da

terra podem chegar ao poder.

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tempo cômico. Seguindo esse raciocínio, portanto, os marxistas deveriam possuir um

senso da comicidade de que o mundo é, ao mesmo tempo, sublime e grotesco. Desse

modo, Eagleton consegue absorver o humor, não como algo que produz um efeito de

prazer individual egotista a despeito de qualquer coisa, mas como uma forma de não

perder o outro lado da natureza humana. Ou seja, apesar da narrativa do marxismo ser a

história da luta da classe oprimida contra uma minoria opressora, ela é, ao mesmo

tempo, a utopia de que um dia a vida de excessos, de prazer e poesia pode ser parte da

vida não só de um ditador, mas também de um coveiro; que todos tenham acesso a essa

vida. Por conseguinte, resgatar esse senso de utopia – a poesia do futuro, que Marx

falava, ou a imagem da redenção, que Benjamin, timidamente, professava – é o que

Eagleton quer resgatar da tradição da esquerda, que, segundo ele, devido aos fracassos

na prática de emancipação social, transportou um pessimismo e uma melancolia para

sua escrita.

Eagleton afirma que a diferença entre Brecht e Benjamin, e, de forma mais

ampla, entre as duas visões, humorística e melancólica, dentro da crítica radical, se daria

da seguinte maneira: “what for benjamin is potentially tragic – the unexpected rebuff,

the fragility of existence, the agony of conflict – is for Brecht the very stuff of

comedy”83

(EAGLETON, 1981, p160). Assim, esse entendimento da comédia percebe a

mutabilidade do conceito de tragédia, pois o que pode ser trágico hoje pode ser uma

piada amanhã. Assim sendo, o comunismo russo, por exemplo, poderia ter sido, em sua

implantação, uma comédia, no sentido de ser uma libertação do riso proletário contido

pelos Czares, mas pode ser considerado, anos depois, como uma tragédia para toda

história comunista. Isso não quer dizer, todavia, que, para Eagleton, no humor tudo

possa ser mutável e relativo historicamente:

Yet it is not of course true that all tragic contents are changeable, just as carnival is wrong to believe that anything can be converted into

humor. There is nothing comic about gang rape, or Auschwitz84

(EAGLETON, 1988, p.161).

Vemos nesse trecho, novamente, o uso do exemplo hiperbólico para quebrar a

doxa pós-moderna que acredita que tudo pode ser mutável. Ou seja, como vimos no

83 O que para Benjamin é potencialmente trágico – a rejeição inesperada, a fragilidade da existência, a agonia de conflito – é para Brecht a essência da comédia. 84 Mas não é bem verdade que todos os conteúdos trágicos são mutáveis, assim como o carnaval está errado em

acreditar que tudo pode ser convertido em humor. Não há nada de cômico sobre estupro coletivo, ou Auschwitz.

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tópico hipérbole, apesar de Eagleton apreender a relatividade histórica em suas ideias,

ele retém os imperativos revolucionários que defendem que sempre há uma excedente

que não está sujeita à mudança, seja na comédia ou na tragédia. Nesse sentido, é nesse

ponto que Eagleton discorda de alguns teóricos que aderem à ideia do carnaval

acriticamente, como podemos ver nessa frase em que ele questiona os efeitos do

carnaval: “Can their intoxicating liberation be politically directed?”85

(EAGLETON,

1981, p.148). Desse modo, Eagleton está questionando: como podemos conciliar o riso

liberatório do carnaval, de um lado, e, do outro, as regras programáticas que devemos

defender para poder evitar os dogmatismos que impedem o carnaval? Para Eagleton, de

certa forma, temos que lidar com a contradição de que é preciso ser totalitário para

deixar de sê-lo, ou seja, os pressupostos de que o carnaval só será efetivamente possível

por meio de um dogmatismo contra uma minoria dominante. Assim, só com a tragédia

de alguns opressores é que as pessoas das diversas classes poderiam ser liberadas de seu

sofrimento e da sua tragédia cotidiana, podendo assim finalmente rir. Sem ter essa ideia

em mente, o carnaval seria para o autor apenas uma falsa utopia de liberdade.

Para chegar à “utopia” proposta pelo carnaval, portanto, Eagleton propõe

observar outra função do humor, que seria seu uso na luta contra os inviabilizadores

dessa utopia. Para Eagleton, a alegria exagerada do carnaval possuiria uma relação com

a sátira política, pois o carnaval geraria, mesmo que momentaneamente, a desconstrução

dos discursos dominantes ou liberais burgueses que querem se manter intactos; logo,

Eagleton gostaria de perenizar essa suposta subversão momentânea do carnaval para

fins políticos. Nesse sentido, James Smith (2003), ao analisar o humor de Eagleton,

descreve duas formas do seu uso com função subversiva: o humor hiperbólico, que,

como explicamos, tem sua raiz ainda em Criticism and Ideology, e o tipo de sátira

paródica com efeito reverso, em que Eagleton parece estar concordando com seu

oponente em suas proposições, mas acaba por ironizar ou satirizá-lo em sua conclusão.

Vejamos um exemplo dessas técnicas:

Não é verdade, na visão de Nietzsche, que há um caminhão correndo para cima de mim a sessenta milhas por hora. Em primeiro lugar,

objetos distintos como caminhões são apenas ficções convenientes,

subprodutos efêmeros da onipresente vontade de poder de que todas as substâncias aparentemente sólidas e distintas são secretamente

compostas.

85 Pode sua liberação intoxicante ser politicamente orientada?

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Em segundo lugar, as palavras “eu” ou “me”, “mim”, são igualmente espúrias, moldando uma identidade enganosamente contínua a partir

de um amontoado de poderes, apetites e ações descentradas. “Sessenta

milhas por hora” é apenas uma maneira arbitrária de partir o espaço e

o tempo em pedaços manejáveis, sem absolutamente nenhuma solidez ontológica. “Correndo para cima” é uma interpretação lingüística,

inteiramente relativa ao modo como o organismo humano e suas

percepções evoluíram historicamente. Mesmo assim, Nietzsche não seria cruel ou arrogante a ponto de sugerir que eu não saltasse para

fora do caminho (EAGLETON, 1997, p.147).

Nesse trecho, Eagleton se vale de um exemplo hiperbólico ao usar o elemento

bruto e banal de um caminhão vindo em sua direção. O humor reside no fato Eagleton

parecer estar descrevendo fielmente o pensamento do filósofo alemão, quando, na

verdade, nas últimas linhas, ele subverte, com um ar irônico, o pensamento do autor,

fazendo com que repensemos toda a sua descrição anterior como sendo uma sátira ou

caricatura86

– ridicularizando uma ideia filosófica, supostamente sofisticada e elevada,

como uma mera questão de adorno linguístico, que quer relativizar tudo, mas que não se

sustenta no mundo banal.

Outro exemplo que Eagleton também costuma usar é a associação de imagens da

alta cultura com elementos da cultura popular, esperando zombar da suposta

superioridade dessas ideias. Várias vezes Eagleton costuma misturar o pensamento de

um filósofo com o comportamento de um operário: “Though “ordinary” language is a

concept beloved of some Oxford philosophers, the ordinary language of Oxford

philosophers has little in commom with the ordinary language of Glaswegian dokers”87

(EAGLETON, 2008, p.4); ou utilizar um ícone da cultura pop para ilustrar seus

raciocínios: “Posso confundir Madonna com uma deidade menor, mas será que posso

estar enganado quanto aos sentimentos de reverência que isso me inspira?”

(EAGLETON, 1997, p.31). Esse intercâmbio entre o erudito e o popular, muitas vezes

usado por Eagleton, costuma misturar os níveis de cultura e gerar uma transição entre as

várias formas de linguagem e figuras culturais. O autor quer, assim, aproximar as

diferentes formas de simbolismos culturais, que são separados pelo controle

hegemônico de certos grupos, e assim desconstruir a própria diferença entre o que é

86 O que não garante que provoque o riso no leitor, pois, como observa Vladimir Propp (1992), o riso é tanto uma questão de estética quanto de psicologia do leitor. Nesse sentido, para perceber o efeito satírico é preciso que o leitor conheça as características parodiadas do autor alemão e o tipo de estilo humorístico do humor patrício conceitual inglês, diferente do estilo plebeu escrachado do humor latino. Portanto, buscamos aqui apenas focar no efeito estético que é causado pela caricatura e pela ironia. 87 Embora a linguagem “comum” seja um conceito muito ao gosto de certos filósofos de Oxford, a linguagem comum

dos filósofos de Oxford pouca relação tem com a linguagem comum das docas de Glasgow.

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considerado como alta e baixa cultura, utilizando o sarcasmo e a zombaria como

ferramentas para quebrar a aura de sagrado que essas ideias podem tomar.

A partir do que foi exposto, podemos defender que o humor, para Eagleton, pode

funcionar de duas formas: em sua forma de utopia e em sua forma de subversão.

Defendemos assim que o humor em Eagleton vai além das concepções marxistas, que

apenas o consideram como algo fútil e alienador dos problemas sociais. Para esse

marxista em particular, o humor teria uma relação dialética com a tragédia humana,

sendo, assim, indissociáveis um do outro. Nessa perspectiva, usaremos as ideias de

Vladimir Propp, em Comicidade e Riso (1992), para demonstrar como se dá essa

relação da tragédia e do humor em Eagleton.

Para Propp, o riso de zombaria seria o riso empiricamente mais comum, e ele

ocorreria em dois tipos: o riso bom e o riso mau. Segundo o autor:

No riso bom, os pequenos defeitos daqueles que nós amamos só

embaçam seus lados positivos e atraentes. Se esses defeitos existem, nós os desculpamos de bom grado. No riso mau os defeitos, às vezes

mesmo só aparentes, imaginados ou inventados, são aumentados,

inflados, alimentando assim os sentimentos maldosos, ruins e a maledicência (PROPP, 1992, p.159).

O riso bom seria aquele em que o fator negativo do escárnio ou zombaria é

embaçado, diminuído ou suavizado, causando uma despreocupação, liberdade, alívio

para que se possa aproveitar o prazer da imagem mostrada sem culpa e sem repressão. O

riso mal, por sua vez, seria aquele em que um aspecto não evidente é trazido à tona para

causar zombaria excessiva a alguém ou algo, um riso que tem a função de atacar,

ridicularizar, tornar decadente algo ou alguém. Nessa perspectiva, se tomarmos essa

ideia de que o riso se baseia num “suavização de algo negativo”, podemos sistematizar

o funcionamento do humor em Eagleton sobre dois aspectos:

1. O Humor por meio de um exagero de um aspecto negativo. Nesse sentido, o

humor seria usado como algo subversivo, para desestabilizar os adversários,

algo que, como vimos, Eagleton usa contra os conservadores e contra os liberais

pós-modernos.

2. O humor utópico resultante de uma suavização de algo negativo. Ou seja, uma

sociedade em que se possa rir ou enxergar seus defeitos como algo prazeroso, é

reflexo de uma sociedade em que seus pontos negativos foram tornados leves a

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ponto de suportarem positivamente esse fator. Esse fator está, assim, ligado

dialeticamente ao primeiro: o riso mal será ferramenta para gerar o riso bom.

Essas duas características compõem o fator humor, que constitui um dos

diferenciais de Eagleton em relação a toda uma herança marxista, carregada de

pessimismo e austeridade. Nesse sentido, podemos afirmar que as técnicas usadas em

sua primeira fase – hipérbole, antítese e sinédoque – permanecem no estilo de escrita

posterior, mas agora com um toque de humor e sarcasmo. Um novo estilo, que

corresponde, assim, a uma nova perspectiva teórica; a perspectiva de que uma teoria

revolucionária requer um estilo mais flexível, menos intransigente com a mudança, com

a subversão e com a utopia coletiva que o humor pode estruturar.

2.3.2.2 Popular

No mesmo ano em que lançou Criticism and Ideology (1976), Eagleton também

lançou seu primeiro livro popularizante: Marxismo e a crítica literária. Esse livro daria

início a uma longa carreira como escritor de livros que difundissem e esclarecessem

ideias tidas como complexas e/ou não tão notórias no meio acadêmico. Assim, com o

sucesso de Teoria da literatura: uma introdução, o crítico inglês nunca se afastou desse

tipo de escrita, de caráter pedagógico e esclarecedor. Todavia, isso não se restringiu

apenas aos livros teóricos ou aos temas abstratos. Eagleton também escreveu para

periódicos, como o London Review of Books, e jornais de grande circulação, como o

The Guardian, tanto fazendo resenhas de texto literários, quanto publicando textos

sobre “o por quê de ele não usar e-mail”. Além disso, Eagleton sempre esteve presente

em palestras, em atos públicos, discutindo ideias com as mais diversas plateias.

Podemos dizer que Eagleton, por entender, principalmente a partir do livro sobre

Benjamin, que o crítico deve fomentar um ambiente cultural para que o discurso possa

florescer amplamente na sociedade, compreende que os intelectuais, pelo menos os mais

radicais, devem ter uma preocupação com a forma com que escrevem e para quem

escrevem. Devem, assim, ter em mente a visão pedagógica e democrática que envolve o

ato de escritura. Para Eagleton, uma das tarefas mais vitais do intelectual socialista seria

“a resoluta popularização de ideias complexas, conduzida a partir de um meio de

comunicação que exclui a possibilidade do clientelismo e da condescendência”

(EAGLETON, 1991, p.105).

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A despeito de todos os livros de caráter “pedagógico” lançados, Eagleton não

deixou de lançar livros de alta teoria. Alguns livros, como A ideologia da estética

(1990) e Sweet violence (2002), são textos que incitam um alto conhecimento, tanto de

conceitos quanto de certas linguagens, para que não haja perda de alguns de seus temas

críticos. Todavia, sua linguagem permanece clara e acessível. Portanto, o que Eagleton

quer propor, ao falar da escrita democrática do intelectual, não é que devemos

simplificar todas as questões, como defendem alguns de seus críticos, mas que se deve

evitar o obscurantismo teórico praticado por alguns intelectuais – obscurantismo esse

que é muitas vezes respaldado por uma lógica política, como acontece, por exemplo, no

estilo de alguns críticos pós-modernos. Segundo a perspectiva do crítico britânico,

haveria, para alguns críticos pós-modernos, um blurring, ou um borramento, das

fronteiras entre a escrita criativa e a escrita crítica. Assim, escrever em uma linguagem

comum seria aceitar a linguagem carregada por definições logocêntricas, e, para se

evitar esse closure metafísico, ou seja, esse enclausuramento de um sentido fixo, seria

preciso demonstrar, na própria crítica, que as palavras não são estáveis e não são

representativas, mas apenas um jogo de significantes sem centro; bem como que o

próprio ato de criticar é um ato de luta contra a instituição crítica. Assim, o estilo de

alguns críticos seria uma busca por uma anti-escrita, uma espécie de crítica que, ao

mesmo tempo em que tentasse explicar, dizer, narrar algo, mostraria a sua própria

fragilidade e arbitrariedade de fazê-lo.

Como vimos, Eagleton reconhece, em parte, os argumentos pós-estruturalistas,

e, por isso, utiliza o humor como uma ferramenta desconstrutiva e autoconsciente de sua

artificialidade. Mas isso não significa que tenhamos que esquecer completamente o

caráter dialogal entre o que se diz e o que se busca com isso, ou seja, não se buscaria

somente desconstruir, mas pensar, também, na reconstrução depois da desconstrução.

Certa dose de closure seria importante para que pudéssemos delimitar nossa identidade

em negação ao que opomos. É por isso que muitas vezes Eagleton se mostra hostil a

essa escrita exibicionista, típica de alguns textos de, por exemplo, Deleuze, Derrida e do

Barthes tardio. Em uma de suas recentes críticas, por exemplo, ele acusou Gayatri

Spivak, no livro dela Crítica da Razão Pós-colonial (1999), de possuir esse

obscurantismo típico dos autores pós-estruturalistas:

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The second rule of this samizdat handbook reads: “Be as obscurantist as you can decently get away with.” Post-colonial theorists are often

to be found agonising about the gap between their own intellectual

discourse and the natives of whom they speak; but the gap might look

rather less awesome if they did not speak a discourse which most intellectuals, too, find unintelligible. You do not need to hail from a

shanty town to find a Spivakian metaphorical muddle like “many of us

are trying to carve out positive negotiations with the epistemic graphing of imperialism” pretentiously opaque

88 (EAGLETON, 1999,

p.3).

Eagleton é bastante severo com o estilo de Spivak, por considerar que ela toma

um objeto que seria “subalterno”, mas o diz de modo “elevado”, de tal forma que seria

uma escrita ininteligível para a própria comunidade que ela toma como objeto de

estudo. Nessa perspectiva, podemos afirmar que, apesar de Spivak ser pertencente a

uma corrente pós-colonial, esse elitismo linguístico não se restringe só às teorias ou

trabalhos contemporâneos – podemos citar, por exemplo, Adorno, um marxista que

também não se preocupava com um uso de uma linguagem acessível. Ratificando isso,

Martin Jay comenta que, em Adorno:

[...] sua própria forma de escrever visava deliberadamente a impedir a

recepção fácil por parte de leitores desinteressados. [...] Adorno se

recusava a apresentar suas idéias complexas e plenas de nuances de maneira simplificada. Acusando os defensores da comunicabilidade

fácil de minar a substância crítica daquilo que pretendiam comunicar,

ele resistia de modo vigoroso ao imperativo de reduzir pensamentos difíceis ao estilo coloquial da linguagem cotidiana (JAY, 1988 apud

PETRY, 2008, p.1).

Portanto, Adorno, ao contrário de Eagleton, vê, na escrita acessível, um

repositório de linguagem saturada por valores arbitrários. Nesse sentido, o que Eagleton

vê como escrita democrática, Adorno veria como escrita autoritária. O frankfurtiano não

quer aceitar essa auto-identificação entre o significante e o significado, pois para ele é

justamente por meio da negação dessa identidade que poderíamos refutar a aceitação

passiva e fácil da linguagem alienada. Seguindo essa ideia, Adorno afirma ainda, para

os que acham que a linguagem deve ser clara: “É-lhes inteligível só o que não precisam

de compreender; só o verdadeiramente alienado, a palavra cunhada pelo comércio, os

88 A segunda regra deste manual Samizdat lê-se: “seja tão obscurantista quanto você possa descentemente ir”. Teóricos pós-coloniais são frequentemente encontrados agonizando sobre a lacuna entre seu próprio discurso intelectual e os nativos de quem eles falam; mas essa lacuna pode parecer menos impressionante se eles não falarem em um discurso que muitos intelectuais também acham ininteligível. Você não precisa ser originário de uma favela para achar uma confusão metafórica spivakiana como “muitos de nós estão tentando esculpir negociações positivas

com o gráfico epistêmico do capitalismo” pretensiosamente opaco.

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afecta como familiar que é”(ADORNO, 1993, p. 91). Todavia, é importante fazer uma

objeção a Adorno quando percebemos que nem sempre uma linguagem acessível é uma

linguagem autoritária. Eagleton, diferentemente de Adorno, entende que deve haver um

privilégio do conteúdo sobre a forma, pois, até que se criem condições materiais para

que os indivíduos possam desfrutar do jogo livre dos significantes e ter acesso aos

vários níveis de leituras possíveis e às diversas linguagens especializadas, é preciso que

eles reconheçam a própria realidade alienada e contraditória em que vivem – e isso

requer, segundo Eagleton, uma linguagem que seja pedagógica e acessível, e que,

necessariamente, possua certo nível de auto-identidade, mesmo que passageira. Isso não

quer dizer, todavia, que para Eagleton toda a linguagem deve ser auto-idêntica, nem que

a crítica deveria ser palatável. Para ele, há um excesso, tanto na popularização quanto na

erudição. Nesse sentido, ele afirma:

Mas dizer que não devemos escrever de forma obscura deliberada e

intencionalmente não significa afirmar que devamos sempre fáceis de ler. [...] Mas devemos lembrar que aqueles que reagem desse modo

consumista – “se não descer direto, é indigerível” – nunca dirão a

mesma coisa sobre, por exemplo, um livro-texto de engenharia. E, assim como na engenharia, há um conjunto específico de habilidades e

linguagens que deve ser aprendido para que a teoria da literatura seja

entendida. O que estou dizendo é que o populismo não precisa ser a

única alternativa ao elitismo. Quando o jargão significa uma linguagem interna obscura, ele é politicamente questionável. Mas se o

jargão também pode se referir de maneira adequada a um idioma

inevitavelmente especializado acho que devemos fazer a distinção entre esses dois sentidos diferentes do termo (EAGLETON, 2010

p.222).

Há de se saber, assim, diferenciar entre o obscurantismo deliberado e a

necessidade de lidar com um idioma especializado. Eagleton se mostra, assim, contrário

à ideia de que intelectuais renomados não tomem como responsabilidade as

consequências de sua carência de inteligibilidade; carência essa que pode criar uma

espécie de engessamento teórico, inviabilizando assim a práxis entre a teoria e a prática

literária e cultural.

2.3.3 O eagletonismo

O estilo de Eagleton é marcado pela polêmica. Isso pode se justificar pelo fato

de ele não se adequar nem à erudição objetiva, polida e abstrata das monografias

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acadêmicas, e nem à retórica ornada, fragmentária e obscura dos ensaios dos críticos

pós-estruturalistas. Nesse sentido, veremos algumas críticas comuns ao estilo do

pensador inglês, que normalmente é condenado por ser redutor, caricatural e

oportunista.

Os que criticam o estilo de Eagleton por ser redutor são os que, como Adorno,

Spivak e Judith Butler89

, compreendem que um conhecimento complexo requer uma

forma de expressão complexa. Entende-se, assim, que Eagleton, ao fazer os seus livros

pedagógicos ou tentar escrever de forma acessível, estaria, para alguns – como os

acadêmicos elitistas – , simplificando coisas que são extremamente complexas, e para

outros – como alguns pós-estruturalistas – , ele estaria, ao usar uma linguagem “clara”,

compactuando com a falsa noção de que as palavras podem ser reflexo de um

conhecimento ou realidade – o que, como mostramos, demonstra certo exagero e

elitismo por parte desses críticos.

Uma segunda crítica afirma que Eagleton faz uma caricatura daquilo que não

concorda. Para esses críticos90

, o pensador inglês, por meio de uma retórica elaborada,

parece estar apresentando a obra de um autor fielmente, mas apenas a usa como motivo

para mostrar aquilo com o que não concorda na perspectiva do autor, ou, às vezes,

seleciona as partes do que não lhe interessa e generaliza, como se essas fossem um

ponto chave em toda a obra. Nesse sentido, poder-se-ia argumentar que muitas vezes o

fator humorístico e/ou o fator pedagógico realmente comprometem a complexidade da

apresentação de algumas teorias. Desse modo, o humor, pelo seu caráter subversivo,

tende a abusar da imagem de um autor ou de uma ideia para gerar certos efeitos de

linguagem, com interesses políticos, e, de forma paralela, a exposição didática, pelo fato

de selecionar ideias que acha relevante explanar, acaba por dar uma visão singular de

um objeto. Assim, Eagleton tenta expor a teoria do autor ou de uma corrente, mas ao

invés de fazê-lo de forma “neutra” ou estéril – ele nem acredita que isso seja possível – ,

sempre o faz associando-a aos seus interesses teóricos, como o marxismo ou a

psicanálise. Para Eagleton: “The idea that there are ‘non-political’ forms of criticism is

simply a myth which furthers certain political uses of literature all the more

89 Judith Butler responde no mesmo website a crítica de Eagleton a Spivak, seguindo a mesma linha de Adorno e acusando Eagleton de aceitar a passividade da linguagem autoevidente, alienada no comércio do já dito. 90 Como, por exemplo, Roger Kimball (1990), Willy Malley (1991), Selma Miller e Richard Freadman (1992) e Julio

Pereira (2006).

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effectively”91

(EAGLETON, 2008, p.182). Isso significa que Eagleton é ciente de que

suas análises são têm interesses maiores ou políticos, mas, ao contrário do que seus

críticos dizem, defendemos que ele consegue sim muitas vezes observar também os

aspectos positivos de seus oponentes. Podemos citar como exemplo a crítica de

Eagleton a Raymond Williams, em Criticism and Ideology, em que, apesar de

considerar seus avanços para com o leavianismo92

, critica Williams pelo seu populismo

e idealismo. Outro exemplo seria seu elogio crítico a Walter Benjamin, no livro

homônimo, em que apesar de considerá-lo como um precursor da questão da

subjetividade e da fragmentação da sociedade moderna, ao mesmo tempo o critica pelo

seu idealismo cabalístico e estilo melancólico.

Podemos afirmar, que esse discernimento de Eagleton, ao considerar

duplamente, em um autor ou ideia, as características úteis e problemáticas ou as perdas

e ganhos, faz com que muitos críticos radicais o avaliem como reformista. Da mesma

forma, o fato de Eagleton ser cômico ou de tentar sempre defender conceitos de acordo

com a necessidade histórica, faz com que muitos também o considerem como um

oportunista ou como alguém que esquece ou se arrepende do que defendera outrora.

Desse modo, ele é considerado, em alguns momentos, como inseguro, por parte dos

conservadores, e traidor, por parte dos radicais. Um exemplo disso é a crítica de Julio

Pereira à mudança de Eagleton, dos anos 80 para os anos 90, sobre o conceito de

literariedade. Segundo Pereira: “esquecido – ou arrependido – de sua própria proposta,

Eagleton não vê com simpatia as teorias culturais que dissolvem a especificidade da

literatura” (PEREIRA, 2006, p.141). Poderíamos dizer que esses termos “esquecido” ou

“arrependido” estão deslocados, se observarmos que Eagleton na verdade defendia uma

“certa” maleabilidade da especificidade literária, pois, naquele período dos anos 80, as

universidades – e, vale ressaltar, as britânicas em especial – estavam sobrecarregadas

por um cânone intransigente, que excluía as outras manifestações artísticas e elevava

certos textos à categoria especial de literatura. Podemos entender, então, o radicalismo

de Eagleton contra esses autoritarismos universitários. Anos depois, todavia, houve um

radicalismo oposto, em que qualquer especificidade era considerada como um construto

abstrato e não como uma realidade sociolinguística e cultural, fazendo com que nada

91 A ideia de que há formas “apolíticas” de crítica é simplesmente um mito que estimula certos usos políticos da

literatura com eficiência ainda maior. 92

Corrente crítica originada pelo crítico literário inglês F. R. Leavis, que defendia, entre outras coisas, uma análise

cerrada no texto literário.

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fosse “literário”, o que fez Eagleton repensar se a literariedade não possuía fatores

progressivos. Nesse sentido, vemos que Eagleton está sempre adaptando suas ideias aos

novos desafios históricos, algo que provoca ojeriza por parte de certos conservadores de

direita e de esquerda. Há, assim, nesses conservadores, uma falta do pensamento

dialético e da práxis marxista, que, em uma época de corporativismo acadêmico, faz

certos autores considerarem Eagleton, em alguns trabalhos, como extremista e, em

outros, como moderado. Sendo assim, não há, nesses trabalhos, a ideia de que devemos

considerar os esquemas teóricos em consonância com as necessidades históricas e os

objetivos propostos de acordo com essas.

Como defende James Smith (2008): não há uma escola eagletiana, no sentido de

uma teoria ou um método peculiar – asserção com que concordamos ao observar que

Eagleton, após Criticism and Ideology, recusa-se a criar um método que possa

enclausurar os fenômenos literários, e defende a ideia de que, mesmo que tenhamos

boas sistematizações teóricas, essas só podem ter uma função vital na crítica se

estiverem em consonância com a prática e com o contexto social em que são

empregadas. Contudo, apesar de Eagleton estar sempre adaptando e rearticulando sua

teoria aos novos desafios teóricos, há algumas características estilísticas que estão bem

sedimentadas em sua crítica, como a polêmica, a transdisciplinariedade, o humor e a

clareza.

O estilo polêmico deriva de sua propensão ao exagero e à hipérbole, devido a

sua impaciência com a indiferença às privações humanas; além disso, seu engajamento,

suas leituras não neutras e interessadas também geram certo desconforto e a famosa

polêmica de seu trabalho. O segundo aspecto, a sinédoque, por sua vez, acaba por

sempre alçar a teoria para além da especificação dos discursos e dos campos

acadêmicos, o que faz com que Eagleton sempre exceda os limites da teoria literária

“pura” e busque ir além das fronteiras entre disciplinas – dai sua transdisciplinariedade.

O humor, no âmbito acadêmico e no âmbito marxista, também não deixa de ser

polêmico. O que Eagleton defendeu, apoiado também por Perry Anderson, é que o

marxismo ocidental apropriou-se de uma característica comum dos críticos literários

conservadores, o tom sério, pessimista, que não permite a contradição e a subversão –

questões essas que a comédia pode trazer para os pensamentos engessados. O humor, se

bem usado, não é apenas um escape dos temas sérios e importantes, mas uma forma de

se lidar com esses mesmos, sem perder, no entanto, a utopia, que seria uma sociedade

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de prazer, e o riso, não de opressão ou de tragédias. Por fim, a clareza, como vimos, é

uma característica da escrita de Eagleton da qual ele não abre mão, posto que ele

considere essa como um aspecto democrático e progressivo. Ele entende que a

linguagem não é clara como um espelho e que é um artífice construído, mas procura

evitar o exagero de desconsiderar os usos materiais da linguagem, feitos pela sociedade,

que servem de padrão para que essa funcione com um mínimo inteligível em uma

determinada comunidade. A escrita acessível também ajuda na conscientização daqueles

que são excluídos, dando, àqueles que não têm condições materiais para desenvolver

altos graus de leituras de mundo e leituras teóricas, o acesso à cultura e ao discurso

acadêmico. Sendo assim, popularizar temas não é apenas uma forma pedagógica, mas

uma maneira de impedir que as distorções discursivas possam inviabilizar a mudança de

parâmetros de opressão e controle por uma minoria da sociedade; o que, nesse sentido,

seria uma das tarefas do crítico radical.

Somado esses quatro elementos, podemos entender o porquê do sucesso de sua

escrita dos anos 80. Claro que não defendemos que tudo é uma questão de estilo. Há

também méritos teóricos, analíticos e até editoriais envolvidos. Mas, como vimos, o

estilo também é um fator que contribuiu para que, por exemplo, Teoria da literatura:

uma introdução vendesse milhões de livros ao redor do mundo. Com uma escrita

polêmica e humorada, Eagleton consegue chamar a atenção dos leitores, que esperam

uma certa condescendência e comedimento da escrita acadêmica, mas acabam

surpreendidos com esses elementos. Com uma escrita clara e transdisciplinar, ele

consegue angariar leitores de outros campos do saber, pelo jeito diferenciado, mais

aberto a outros discursos, como ele usa diversos elementos, a priori, especializados.

Defendemos, assim, que o fator estilístico é essencial para a escrita de Eagleton, e que,

apesar de muitas vezes escrever sobre temas diversos, era de se esperar que um crítico

de formação em letras tivesse uma atenção especial com seu estilo.

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3. PARA UMA CRÍTICA REVOLUCIONÁRIA

Na passagem dos anos 70 para os anos 80 vimos que houve uma mudança na

perspectiva crítica eagletiana devido a fatores históricos, como o estabelecimento do

capitalismo avançado como modo de produção mundial, que causou uma desilusão

prática e teórica dos projetos socialistas. Além disso, houveram fatores teóricos,

ocasionados pelos novos desafios dos pós-estruturalistas ou, como define Miller e

Freadman (1992), dos construtivistas anti-humanistas93

, e também fatores estilísticos,

como a percepção de Eagleton de que a crítica poderia ser mais ousada, inventiva, e

menos austera e pessimista.

A mudança de Eagleton pode ser percebida em seu livro Walter Benjamim:

towards a Revolutionary Criticism (1981); texto em que ele explica: “the book marks a

development from my Criticism and Ideology (NLB, 1976), which was less overtly

political in timbre and more conventionally in style and form”94

(EAGLETON, 1981,

Prefácio). Assim, vemos que, devido ao surgimento de vários fatores dentro do

socialismo nos anos 80, o foco de análises literárias marxistas, que era mais voltado

para uma análise conceitual ou para uma leitura textual, passou a focar nos problemas

de produção cultural e de usos políticos dos produtos sociais. Portanto, entendemos que

o projeto crítico de Eagleton, nos anos 80, pode ser descrito como uma percepção de

que a esquerda se apartou dos movimentos sociais e dos contextos de luta de massa para

se enclausurar nos seus próprios discursos especializados, construindo e julgando

conceitos longe da realidade e das necessidades empíricas sociais. Além disso, o crítico

inglês tomou consciência de que a crítica marxista ocidental, por seu caráter austero e

pessimista, perdeu a percepção do humor e da esperança como fatores revolucionários e

produtivos. Nesse sentido, são sobre estas duas premissas, a ideia da teoria relacionada

à atuação prática e do humor como revolução, que procuraremos sistematizar o projeto

crítico de Eagleton dos anos 80.

Iniciaremos a análise observando como o próprio Eagleton resume, anos depois,

sua proposta teórica:

93 Termo cunhado por Freadman e Miller (1992), que afirmam que essa linha, compartilhada tanto por certos desconstrutivismos como marxismos, questionaria a ideia de sujeito individual, negaria o poder referencial da linguagem e dos textos literários, e desprezaria os discursos essenciais de valor, tanto morais quanto estéticos. 94 O livro marca um desenvolvimento do meu Criticism and Ideology (NLB, 1976), que era menos abertamente

político no timbre e mais convencional em estilo e forma.

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Drawing upon the example of Walter Benjamin, it sought to diversify Marxist theory with its opening towards feminism and some aspects of

post-structuralism; to deconstruct – both in its form and content –

objectionably monolithic versions of such theory; to broach questions

of cultural politics, and to recover in both style and theme a pleasure and playfulness which could not be grimly deferred until theory had

done its work, but which, as for Brecht and Bakhtin, were part of the

here and now95

(EAGLETON, 1988, p.6).

A partir de suas ideias, podemos conjecturar que, para Eagleton, o marxismo

ocidental estava cristalizado em concepções monolíticas a respeito da prática crítica, e

era preciso mudar isso: abrir-se para questões como a subjetividade da experiência,

assim como a busca por uma heterogeneidade que não pudesse ser sempre formalizada e

uma percepção de que, mesmo os dogmas da esquerda, devem e podem ser invertidos

dependendo da urgência histórica. Nessa perspectiva, se para muitos pós-estruturalistas,

como vimos anteriormente, o marxismo era uma espécie de positivismo que

enclausurava a diferença em nome de verdades ou fins sociais, para os materialistas

históricos, como Eagleton, qualquer proposta crítica que não resguardasse um pouco de

imperativos voltados para uma ação libertadora, poderia acabar inviabilizando a prática

e contribuindo para a manutenção do poder hegemônico vigente, que seria a ideologia

liberal típica do capitalismo global.

Defendemos, assim, que crítica, para Eagleton, deixou de ser uma busca por

relações textuais ou uma análise da estruturação simbólica dos textos, como fora em

Criticism and Ideology, e passou a ser, nos anos seguintes, uma crítica voltada para a

ação social, que realmente buscasse intervir no debate público e não ficasse retida ao

discurso especializado. Para o autor, deveríamos, portanto, seguir o exemplo de

Benjamin e também de Brecht, que conseguiram defender uma percepção teórica da

diversidade e da pluralidade social sem perder o conteúdo político e sem se afastar da

prática cultural. Nesse sentido, o que Eagleton tentou fazer nos anos 80 foi mostrar

perdas e ganhos da teoria literária oriunda da esquerda marxista, que se afastou da

prática social e foi incorporada pelos pós-marxismos e estruturalismos de caráter liberal.

No que concerne à arte e ao campo da estética, para Eagleton, o marxismo

ocidental sempre se manteve parte em certos elitismos e parte em certos idealismos,

95 Inspirando-se no exemplo de Walter Benjamin, esse trabalho procurou diversificar a teoria marxista com a sua abertura para o feminismo e alguns aspectos do pós-estruturalismo, tentou desconstruir –em sua forma e conteúdo – as versões objetavelmente monolíticas de tal teoria, para abordar questões de política cultural e para recuperar em estilo e tema um prazer e diversão que não poderia ser severamente adiada até que a teoria tenha feito o seu trabalho,

mas que, para Brecht e Bakhtin, faziam parte do aqui e agora.

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devido sua separação da prática revolucionária de massas, e um exemplo disso, para o

teórico britânico, foram as críticas de Georg Lukács e Theodor Adorno, pois, se, por um

lado, Lukács defendia uma forma de realismo hegeliano que poderia representar a

totalidade, por outro, teóricos como Adorno invertiam a polaridade hegeliana, levando a

negação do realismo a um extremo que silencia qualquer forma progressista que o esse

poderia possuir. Desse modo, para o crítico inglês:

If Lukács seeks to correct ideological error with full blast of the

“real”, Adorno aims more and more to outflank and embarrass it by

the guerrilla tactics of a discourse that deconstructs the rash positivity

of another speech into negativity so dire as to threaten to vanish into its own dialectical elegance

96 (EAGLETON, 1981, p.90).

Nessa perspectiva, a crítica estética adorniana se mostraria, analogamente, como

um texto moderno e pós-moderno, em que se deveriam negar estas asserções

opressivamente “positivas” da crítica realista lukacsiana. Desse modo, ambas as ideias,

em suas polaridades, perderiam, segundo Eagleton, o senso da dialética marxista, ou

seja, o entendimento de que a arte está em constante mudança e que deve se adequar a

necessidade de seu tempo. Nesse sentido, Eagleton afirma:

the profundity of Lukács’s work on the historical novel and the

brilliance of Adorno´s insights into modernism are inestimable gains for Marxist theory; but they cannot be dissociated from their

impoverishing political moments97

(EAGLETON, 1981, p.93).

Isso vale, assim, segundo o pensador britânico, para muitos dos estetas marxistas

do século XX, como Jean P. Satre, Herbert Marcurse, Pierre Macherey, Louis Althusser,

Fredric Jameson e até o seu próprio Criticism and Ideology. Para o autor britânico,

excetuando-se Bakhtin e Gramsci, que, apesar de escreverem em tempos em que a luta

de classes estava em baixa, conseguiram ser revolucionários em seus escritos, todos

esses teóricos produziram seus trabalhos muitas vezes em tempos em que a luta de

classes estavam em baixa ou foram temporariamente suprimidas e levaram essa

desilusão, austeridade e falta de alternativas práticas para suas teorias.

96 Se Lukács visa corrigir erro ideológico com o exagero do “real”, Adorno visa cada vez mais flanquear e envergonhá-lo pelas táticas de guerrilha de um discurso que desconstrói a ousada positividade de um outro discurso em negatividade tão terrível a propósito de ameaçar-se a desaparecer em sua própria elegância dialética. 97 A profundidade da obra de Lukács sobre o romance histórico e o brilho de ideias de Adorno sobre o modernismo são ganhos inestimáveis para a teoria marxista, mas eles não podem ser dissociados de seus momentos políticos

empobrecidos.

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Um reflexo desse afastamento das massas na crítica contemporânea, para

Eagleton, seria o desconstrutivismo. Nesse âmbito, nos anos 80, segundo o autor inglês,

o mundo estaria em baixa, no que se refere à luta de classes, e, com isso, a

desconstrução incorporaria esse fator social e político em algum nível na sua escrita.

Assim sendo, haveria duas posições na corrente desconstrucionista: uma reformista, que

seria a “direita” da corrente, pois, ao entenderem a razão como uma forma de

arbitrariedade linguística e serem contra o fechamento das ideias em caráter universal,

silenciariam os fatores políticos libertadores e acabariam por deixar isento de crítica o

poder hegemônico social; a outra posição seria a ultra esquerdista – que seriam os

“radicais” da corrente, segundo Eagleton – , que mostraria a “loucura” e “violência” da

desconstrução, que estariam sempre a postos para desestabilizar as semioses e os

sistemas e, com isso, defender a pluralidade ilimitadamente. Desse modo, por Eagleton

entender que essas as correntes teorizavam distanciadas dos movimentos de massa de

libertação social, colocando a filosofia antes da política, a desconstrução acabaria por

inviabilizar uma ação prática no que concerne a crítica cultural. Isso não quer dizer,

todavia, que, se bem orientada, essa não poderia contribuir largamente para a

manutenção de certas políticas marxistas. Nesse sentido, observa Eagleton:

That deconstruction, as a particular set of textual procedures, can

operate as a radical force is surely undeniable. What is at question is the appropriation of such insights and procedures in ways that

objectively legitimate bourgeois hegemony”98

(EAGLETON, 1981,

p.140).

Assim, Eagleton entende que, apesar de todos os avanços da desconstrução, e

podemos incluir aí parte da crítica marxista ocidental, na prática, suas ideias não

constituem uma ação crítica revolucionária. Para contribuir com fim dessa limitação, ele

propõe um retorno às ideias de Benjamim, Brecht e das vanguardas da república de

Weimar, pois, para o autor, muitas das proposições da desconstrução já tinham sido

trabalhadas por esses, mas de forma a não se perder o caráter revolucionário e prático de

suas proposições.

Segundo Eagleton, em seu livro Walter Benjamin, essas ideias da república de

Weimar se coadunavam com várias tradições da esquerda, como o pensamento

98 Que a desconstrução, como um conjunto particular de procedimentos textuais, pode operar como uma força radical é certamente inegável. O que está em questão é a apropriação de tais ideias e procedimentos em maneiras que a

hegemonia burguesa objetivamente legitima.

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primordial de Karl Marx na décima primeira tese sobre Feuerbach – de que os filósofos

só interpretaram o mundo de maneira diferente, e que devemos, porém, muda-lo – ,

ecoando também nas proposições de Antonio Gramsci de que a principal meta da crítica

marxista não é interpretação de textos, mas emancipação cultural das massas, e na ideia

de Vladimir Lenin, de que uma teoria revolucionária correta apenas assume sua forma

final em íntima conexão com a atividade prática de um verdadeiro movimento

revolucionário e de uma verdadeira massa revolucionária. Logo, é com base nesses

imperativos que Eagleton propõe o que deveria ser feito para que uma crítica literária

pudesse ser revolucionária.

No entanto, isso não quer dizer que Eagleton queria abandonar totalmente os

projetos teóricos em função de uma prática social. Para ele, a relação seria dialética, em

que a prática sempre se torna a consciência da teoria. Nesse sentido, as críticas de

Lukács, de Adorno, e até mesmo as ideias de Criticism and Ideology, têm seu valor e

são necessárias para uma crítica marxista que procure analisar a história de dominação

simbólica ou desconstruir os discursos hegemônicos em suas representações literárias.

Entretanto, para o pensador britânico, isso: “merely adress new answers to the same

object”99

(EAGLETON, 1981, p.97); ou seja, essas teorias e críticas não rompem

decisivamente com o modo típico de crítica burguesa que ficaria “satisfeita” em apenas

restringir-se ao campo dos discursos especializados. Seguindo esse argumento,

Eagleton, então, entende que a crítica literária acadêmica, nos moldes que foram

produzidas ao longo do século XX, faz parte de um processo histórico de divisão do

trabalho, em que a crítica, no âmbito teórico, era viavelmente possível, separada de sua

influência prática social.

Há, nessa perspectiva, uma similaridade entre as ideias de Eagleton e o conceito

de “intelectual” para Antonio Gramsci, um dos primeiros teóricos a perceber e

sistematizar em conceitos essa contradição entre teóricos e o seu meio social. Para

Gramsci, os intelectuais podem ser compreendidos sobre duas perspectivas: os

intelectuais orgânicos e os tradicionais. Os primeiros tentariam fazer uma ponte entre a

filosofia e o popular, a teoria e a prática. O intelectual seria, assim, menos um

intelectual de laboratório e mais um ativista, participante ativo na vida cultural e nas

decisões da sociedade civil. Ele buscaria dar unidade e coerência teórica às experiências

da sociedade. Os últimos – os intelectuais tradicionais – , por sua vez, seriam exemplo

99

Meramente endereça novas perguntas para o mesmo objeto.

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da presunçosa independência para com a vida cotidiana e a sociedade civil, como, por

exemplo, os filósofos idealistas e os eclesiásticos. Assim sendo, para Gramsci, essa

suposta autonomia dos intelectuais poderia ocasionar sérios problemas políticos:

Dado que estas várias categorias de intelectuais tradicionais sentem com “espírito de gripo” sua ininterrupta continuidade histórica e sua

“qualificação”, eles consideram a si mesmos como sendo autônomos e

independentes do grupo social dominante. Esta autocolocação não

deixa de ter consequências de grande importância no campo ideológico e político: toda a filosofia idealista pode ser facilmente

relacionada com esta posição assumida pelo complexo social dos

intelectuais e pode ser definida como a expressão desta utopia social segundo a qual os intelectuais acreditam ser “independentes”,

autônomos, revestidos de características próprias, etc. (GRAMSCI,

1982, p.5).

Nesse sentido, se pudéssemos transportar essas ideias gramiscianas dos

intelectuais para a nossa discussão sobre a crítica literária revolucionária, poderíamos

dizer que o que Eagleton está tentando identificar na crítica literária radical (marxista e

desconstrutivista) é uma tendência de certa parte dessa crítica a se colocar como os

intelectuais tradicionais, e que, apesar de seus esforços teóricos e discursivos, haveria

uma carência na esquerda de críticos literários “orgânicos”, que realmente pudessem ir

além da pseudoautonomia discursiva a fim de dialogar com a sociedade civil.

Para o autor britânico, essa carência de críticos literários “orgânicos” era, nos

anos 80, tão flagrante que, em seu livro de 1984, A função da crítica, ele afirma que:

“Este livro defende a tese de que a crítica atual perdeu toda sua relevância social”

(EAGLETON, 1991, p.1). Entretanto, para o teórico marxista, nem sempre a crítica teve

esse papel inexpressivo na sociedade, e, se hoje ela está assim, isso se deve, de um lado,

pela cisão das relações entre a sociedade e a academia, e, do outro, pela cooptação das

instituições literárias pela indústria literária. Vemos então que nesse livro Eagleton

tentou mostrar que a crítica literária teve relevância social apenas quando ia além de seu

discurso especializado e estava envolvida com uma crítica da cultura em si. Segundo

Eagleton, um exemplo disso, na Inglaterra, seria a crítica literária do século XVIII, que

serviu como fomentadora de uma política cultural contra a monarquia e a aristocracia; e,

do século XIX, uma crítica voltada para a moralidade pública de uma sociedade

industrial burguesa. Portanto, seria apenas a crítica do século XX que, para Eagleton,

teria se reduzido a uma questão meramente de crítica de literatura.

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Nessa perspectiva, baseado na ideia de Jürgen Habermas de “Esfera Pública”,

explicitada no livro A Mudança Estrutural na Esfera Pública (1962), Eagleton afirmaria

que a crítica literária sempre se estabeleceu por meio dessa esfera pública, que, segundo

ele, abrangeria o domínio das instituições sociais pelos quais os indivíduos se reuniam

e, com base em um discurso racional, deliberavam sobre assuntos, tornando-se assim

uma força política. Contudo, segundo o autor, na Inglaterra do século XIX, com o

avanço do modo de produção capitalista, o discurso do crítico privilegiado,

representante das paixões da sociedade ou repositório de valores culturais, começou a

não mais representar uma sociedade não muito consensual em uma esfera pública, pois

esse consenso teria sido dividido por interesses de classes e objetivos diversos. Essa

esfera pública, assim, começou a ruir, fazendo com que, por um certo período do século

XIX, a crítica buscasse como solução sempre retomar esse modelo consensual e

totalizante. Sobre isso, Eagleton descreve o crítico literário do século XIX:

Ele deve reinventar ativamente uma esfera pública fragmentada pela

luta de classes, pela ruptura interna da ideologia burguesa, pelo

crescimento de um público leitor confuso e amorfo, ávido por informação e incentivo, pela continua subversão da opinião “polida”

por parte do mercado comercial, e pela explosão e fragmentação

aparentemente incontroláveis dos conhecimentos provocados pelo aceleramento da divisão do trabalho intelectual (EAGLETON, 1991,

p.41).

Assim, com o surgimento dessas novas configurações sociais, seria uma missão

homérica para o crítico um conhecedor geral da cultura que não possuía especialização,

conseguir ter legitimidade para dar conta dos anseios de uma sociedade cada vez mais

segmentada e especializada. A partir disso, a crítica literária começou a fomentar formas

especializadas de discursos, que não mais versavam de forma consensual e geral sobre a

cultura e a sociedade. Precisando de algo que superasse o amadorismo e o generalismo

dos críticos anteriores, a crítica começou a institucionalizar-se nas universidades. Desse

modo, para Eagleton, a crítica, ao procurar resolver esses problemas na universidade,

obteve uma base institucional e uma estrutura profissional, mas sob pena de se apartar

do domínio público: “A crítica alcançou a segurança cometendo suicídio político; seu

momento de institucionalização acadêmica é também o momento de seu efetivo

desaparecimento enquanto força socialmente ativa” (EAGLETON, 1991, p.58).

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Nesse sentido, isso resultou na corrente teórica Crítica Prática inglesa, que

buscava utilizar o cientificismo, aparentemente técnico e universal, para dar

legitimidade a uma crítica literária que não podia mais se sustentar falando em nome de

toda multiplicidade de interesses da sociedade. Sendo assim, aliado a uma lógica

utilitarista capitalista, houve uma crescente segmentação do conhecimento, e a crítica

estava, assim, incorporando-se cada vez mais à indústria cultural ou se enclausurando

nas academias, de modo que, ao longo do século XX a crítica se tornaria, para Eagleton,

infimamente: “como um punhado de indivíduos criticando mutuamente seus próprios

livros” (EAGLETON, 1991, p.99). Nesse sentido, os críticos se nutriam, dentro de suas

áreas e temas de pesquisa, para legitimar certas tendências e escritores. Tal como a

literatura pós-moderna, esse tipo de crítica aparentaria ser uma forma de discurso que

quase inteiramente se autovalidaria e se autoperpetuaria, sem questionar sua própria

função social, tomando como natural o exercício de uma crítica muitas vezes sem

nenhum propósito especifico – como, por exemplo, estudar as imagens de um poema

por si só, ou fazer uma crítica dissociada da dinâmica social, criticar a poesia visual com

o mesmo olhar de uma poesia escrita, por exemplo.

A solução de Eagleton para esse isolamento crítico seria, assim, a criação de

uma contra-esfera pública, uma espécie de ambiente social institucional, educativo e

cultural popular, em que discursos diferentes e ditos marginais possam circular e serem

discutidos igualitariamente. Assim, para ele, isso não seria uma utopia esquerdista,

tendo em vista que esse tipo de contra-esfera pública existiu nos anos 30 na Alemanha

de Weimar. Desse modo, Eagleton afirma que:

Para que tal concepção não seja descartada como uma fantasia da

esquerda acadêmica, uma breve referência a uma situação histórica

talvez se faça necessária. Na república de Weimar, o movimento da classe trabalhadora não era apenas uma formidável força política;

estava também equipado com teatros, corais, clubes e jornais, centros

de lazer e foros sociais próprios. Foram essas as condições que

ajudaram a tornar possível um Brecht ou um Benjamin e a modificar o papel do crítico, que passou de intelectual isolado a funcionário

político (EAGLETON, 1981, p.104).

Nesse âmbito, a ideia de contra-esfera pública demonstra qual deveria ser a

função do crítico literário revolucionário, que, ao exemplo de Benjamim e Brecht, não

era apenas a de intelectual isolado ou tradicional, mas a de pessoa engajada no

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desenvolvimento de um ambiente cultural social. Para Eagleton, a função do crítico

marxista seria participar ativamente e contribuir diretamente na emancipação cultural

das massas. Ele deveria, assim, tomar parte e ajudar a organizar oficinas de escritores,

teatros populares e estúdios de artistas, envolver-se nos projetos de design e arquitetura,

bem como na transformação dos aparatos educacionais e culturais; enfim, tudo que

poderia contribuir para uma qualidade da vida cotidiana, do discurso público à

“consumação” doméstica, ou seja, tudo o que preconizavam as vanguardas de Weimar e

os bolcheviques. Assim, por mais que haja diferenças de situação histórica, para

Eagleton, existem algumas responsabilidades que vêm sendo tacitamente recusadas pela

teoria cultural – e seria justamente isso que daria origem a essa atual condição da crítica

literária marxista, isolada nas academias ou subserviente à indústria cultural.

Destarte, Eagleton não quer renegar toda ideia de teoria, mas, como vimos, para

ele, pelo menos nos anos 80, a relação entre prática cultural e teoria cultural se portava

de maneira mais tendenciosa para a última. Assim sendo, no que concerne à crítica

literária – que, por tratar de objetos “superestruturais”, teria uma tendência a ser

autônoma das massas – , Eagleton não acredita que ela deva ficar confinada à academia.

Ele então descreve a forma que uma “crítica literária revolucionária” deveria assumir:

It would dismantle the ruling concepts of “literature”, reinserting

“literary” texts into the whole Field of cultural practices. It would strive to relate such “cultural” practices to other forms of social

activity, and to transform the “cultural” practices to other forms of

social activity, and to transform the cultural apparatuses themselves. It

would articulate its “cultural” analyses with a consistent political intervention. It would deconstruct the received judgments and

assumptions; engage with the language and “unconscious” of literary

texts, to reveal their role in the ideological construction of the subject; and mobilize such texts, if necessary by hermeneutic “violence”, in a

struggle to transform those subjects within a wider political context100

(EAGLETON, 1981, p.98).

Essas ideias de Eagleton são bastante sugestivas, no entanto, como todo

conteúdo programático, há um questionamento de como realiza-las na prática. Nesse

100 Ela iria desmantelar os conceitos dominantes da “literatura”, reinserindo os textos “literários” em todo o campo das práticas culturais. Ele iria se esforçar para relacionar tais práticas “culturais” com outras formas de atividade social e transformar as práticas “culturais” em outras formas de atividade social e transformar os aparatos culturais. Ela iria articular suas análises “culturais” com uma intervenção política consistente. Iria desconstruir os julgamentos e premissas recebidas; se envolver com a linguagem e o “inconsciente” de textos literários, para revelar o seu papel na construção ideológica do sujeito e mobilizar tais textos, se necessário, por uma “violência” hermenêutica, em um

esforço para transformar esses temas dentro de um contexto político mais amplo.

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sentido, o que se torna bastante sugestivo na obra de Eagleton, a partir dos anos 80, é

sua ausência de sistematização ao assumir a ideia da dialética e da práxis (prática como

a consciência da teoria). Eagleton não mais tenta organizar ou formalizar uma análise,

como o fizera em seu método cientifico anos antes. Por outro lado, ele teoricamente

sabe “o que” se deve fazer, mas sempre deixa o “como” para que os críticos em

diferentes contextos e situações históricas possam explorar os efeitos dessas ideias de

forma revolucionária. Eagleton se encontra, assim, no meio de duas fronteiras: por um

lado, tenta escapar da ortodoxia da época na crítica marxista que tende a sistematizar e

definir a crítica literária; e, por outro, tenta resistir ao impulso desconstrucionista de

tudo relativizar. Desse modo, para solucionar essa questão, Eagleton tenta usar os

imperativos marxistas – como, por exemplo, a ideia de que é preciso liberar

culturalmente os homens e mulheres das opressões de uma minoria burguesa – , mas

deixa sempre seu uso ao acaso da dialética da prática, e, dessa maneira, meio obscura ao

nosso ver, ele entende que consegue resolver a questão entre ambos.

Nessa perspectiva, Eagleton afirma, em Teoria da Literatura: uma introdução,

que não importa o método literário, e nem mesmo seu objeto, mas sim seu propósito e

seu interesse para com ele. Apesar de soar relativista, o que o autor intenta é que não é

que os métodos marxistas seriam mais eficazes ou autênticos do que os outros, mas que

por, existirem vários olhares sobre o objeto textual, o que seria relevante não seria o

método utilizado para abordá-lo, mas sim os efeitos que poderíamos fazer dele. Nesse

sentido, a questão é mais política do que metodológica:

Once we have seen this, then the questions of theory and method may

be allowed to appear in a new light. It is not matter of starting from what we want to do, and then seeing which methods and theories will

be best help us to achieve these ends. Deciding on your strategy will

not predetermine which methods and objects of study are most

valuable. As far as the object goes, what you decide to examine depends very much on the practical situation

101 (EAGLETON, 2008,

p.183).

Assim sendo, para Eagleton, mais do que tentar formular um novo método, é

preciso formular um novo propósito para a prática crítica. Portanto, os críticos radicais

101 Uma vez percebido isso, as questões de teoria e método podem ser vistas sob nova luz. Não se trata de partir de certos problemas teóricos ou metodológicos, mas sim de começar com o que queremos fazer, e em seguida ver quais os métodos e teorias que melhor nos ajudarão a realizar nossos fins. Decidir qual será nossa estratégia não significa predeterminar que métodos e objetos de estudo serão mais valiosos. No que respeita ao objeto de estudo, aquilo que

decidirmos examinar depende muito da situação prática.

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seriam liberais quanto aos métodos, mas não quanto ao propósito. Dessa maneira, vários

métodos do estruturalismo e a teoria da recepção, por exemplo, possuem dispositivos e

ferramentas importantes para abarcar o conhecimento de um objeto cultural ou literário,

mas muitas vezes os sujeitos que se utilizam desses procedimentos acreditam que certos

métodos são naturalmente apolíticos. Nesse sentido, para certas críticas, alguns métodos

seriam apolíticos e preocupados apenas com o rigor metodológico científico de seus

procedimentos; todavia, para Eagleton, toda teoria ou método é político, pois sempre

que fazemos uso dele professamos um juízo sobre o texto que está prontamente

associado as nossas percepções ideológicas e a nossa forma de compreender o mundo.

Seguindo esse raciocínio, afirma o autor: “Radical critics are not different in this

respect: it is Just that they have a set of priorities with which most people at present tend

to disagree”102

(EAGLETON, 2008, p. 184). Assim, para o autor, um crítico político

não observaria arbitrariamente a luta de classes, o patriarcalismo ou o imperialismo em

um texto, enquanto um crítico literário, supostamente não partidário, apenas buscaria

entender o texto de uma forma mais completa. Para os críticos radicais, todavia, não

observar esses temas políticos, que constituem a história – e, por ser o texto um objeto

histórico, seria ele também parte dela – , é que seria uma redução por parte da crítica.

Desse modo, as críticas que analisariam um objeto textual apenas em função de

uma questão acadêmica, sem se preocuparem com as causas de sua própria conduta ou

com seus efeitos, seriam, mesmo que aparentemente indiferentes à política, cúmplices

de uma política não radical, na visão de Eagleton, por omissão. Nessa perspectiva,

vejamos o seguinte comentário de Eagleton sobre a sua posição acerca da neutralidade

da teoria, e que, para nós, também se aplicaria à crítica:

Literary theories are not to be upbraided for being political, but for being on the whole covertly or unconsciously so – for the blindness

with which they offer as a supposedly “technical”, “self-evident”,

“scientific” or “universal” truth doctrines which with a little reflection can be seen to relate to and reinforce the particular times

103

(EAGLETON, 2008, p.197).

102 Os críticos radicais não diferem quanto a isso: apenas têm uma série de prioridades sociais das quais a maioria das pessoas atualmente tende a discordar. 103 As teorias literárias não devem ser censuradas por serem políticas, mas sim por serem, em seu conjunto, disfarçadas ou inconscientemente políticas; devem ser criticadas pela cegueira com que oferecem como verdades supostamente “técnicas”, “autoevidentes”, “científicas” ou “universais” doutrinas que um pouco de reflexão nos

mostrará estarem relacionadas com, e reforçarem, os interesses específicos de grupos específicos de pessoas, em momentos específicos.

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Logo, essas características da falsa neutralidade podem ser aplicadas às

características do marxismo estrutural dos anos 70 – do qual o próprio Eagleton fazia

parte – , pois essa crítica buscava desmitificar, por meio de técnicas cientificas, como o

estudo das categorias de produção literária, as naturalidades do que era um texto

literário, expondo sua natureza como uma produção de forças sociais. Porém, ao versar

sobre as questões institucionais da crítica e seus efeitos nas práticas sociais, afirma o

autor: “uma crítica marxista academizada manteve-se quase sempre silenciosa a

respeito” (EAGLETON, 1991, p.89). Portanto, essa crítica academicista, presente no

marxismo estruturalista, acabava por ser elitista, idealista, despolitizada e, para

Eagleton, como resultado, essa se mostrava socialmente irrelevante e contribuiria para

manter os valores vigentes do capitalismo. Por conseguinte, somente com a criação de

uma contra-esfera pública poderia ser a crítica marxista, e a crítica em si, ativa, versátil,

múltipla, coletivista, igualitária e socialmente participativa.

Contudo, poderíamos erguer duas questões sobre essa proposta de Eagleton.

Primeiro: como seria possível essa contra-esfera pública na contemporaneidade? E,

segundo: seria a academia, de forma verticalizada, que deveria tomar a iniciativa de

levar adiante a mudança na sociedade?

Sobre o primeiro questionamento, poderíamos elencar alguns problemas na ideia

de uma contra-esfera pública. Visto que Eagleton toma como referência a contra-esfera

pública dos anos 30 na Alemanha, poderíamos indagar como essa ideia, que

supostamente funcionara no início do século, pode funcionar numa era pós-modernista

do capitalismo tardio, globalizado e tecnológico? Se a própria noção de esfera pública

burguesa não foi possível, porque o consenso não era mais possível, uma esfera pública

reversa ou popular não teria os mesmos problemas em angariar e unir várias instituições

e agentes sociais, ainda mais em uma época de corporativismo, especialização,

micropolíticas e pretensões locais, fluidas e instantâneas?

Sobre o segundo: por que a ênfase de Eagleton nas universidades como líderes

dessa mudança? Poderíamos argumentar, como preconiza Althusser em seu ensaio de

1968 “A ideologia e os aparelhos ideológicos do estado”, que o aparelho ideológico

escolar, nas sociedades capitalistas, é o centro dominante que dá unidade ideológica à

população. Logo, os acadêmicos formam os professores, que irão educar os indivíduos,

e, assim, atingir amplamente a população. Nesse sentido, se as universidades iniciassem

um projeto revolucionário, poderiam gerar um efeito de cima para baixo. Todavia,

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poderia se questionar que, com a informação relativamente democratizada pelos meios

de comunicação na contemporaneidade, mostra-se difícil conceber uma noção tão

vertical de mudança social. Assim, a crítica literária poderia não obter sua renovação

apenas por meio da academia, mas poderia, ela própria, organizar e forçar a sociedade

civil e as instituições estatais para que gerem um diálogo da produção acadêmica em

acordo com as necessidades sociais. Há, assim, uma ausência de problematização na

obra de Eagleton – por exemplo, entre o crítico universitário e o crítico do jornal;

sujeitos que poderiam também ajudar nesse processo de mediação entre erudição

acadêmica e função social.

Poderia se cogitar também até que ponto esses problemas levantados por

Eagleton, como sempre baseados, em grande parte, em modelos britânicos, poderiam se

adequar a outros contextos culturais. Desse modo, se pegarmos o exemplo do Brasil,

será que as necessidades históricas seriam semelhantes? O Brasil teve críticos influentes

que nem sempre fizeram parte da academia, como Álvaro Lins e Otto Maria Carpeaux,

que faziam crítica nos jornais de grande circulação pública, unindo conhecimento

literário aos anseios populares. A própria literatura surgiu no jornal, o que mostra a

notoriedade pública da literatura no Brasil, apesar dos poucos leitores até a metade do

século XX. Sobre essa ideia, o jornalista e crítico literário Manuel da Costa Pinto, em

um ensaio chamado “Guerra e Paz: a crítica literária na imprensa brasileira” (2000),

defende uma visão da crítica brasileira da primeira metade do século XX que

percebemos como bastante similar ao dilema entre os intelectuais públicos e os

acadêmicos proposto por Eagleton no contexto inglês. Para o jornalista:

Até então, a crítica literária brasileira se dava preferencialmente nos

“rodapés” – espaços semanais reservados ao comentário de livros e

acontecimentos da vida literária. Normalmente caracterizados pelo tom informal, pelas digressões de ordem pessoal, cotidiana, e pela

percepção impressionista da obra poética ou ficcional, os rodapés

eram geralmente assinados por intelectuais de formação pluralista e

que atuavam em diferentes contextos; eram jornalistas, escritores, críticos de artes plásticas ou advogados cuja educação tivera como

base a leitura dos grandes romances da literatura ocidental e que por

isso estavam aptos a discutir o momento literário com uma erudição que, todavia, não os tornava especialistas no sentido que a divisão dos

departamentos universitários viria a dar ao termo (PINTO, 2000,

p.56).

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Vemos, nesse fragmento, que o Brasil passou por uma época em que a crítica

não estava confinada nas academias, em que escritores da estirpe de Álvaro Lins, Sérgio

Milliet, Afrânio Coutinho, Sérgio Buarque de Holanda e Otto Maria Carpeaux

produziram suas críticas em jornais brasileiros. Na segunda metade do século,

entretanto, houve uma extensa migração da crítica literária para a academia, aliada a

uma ojeriza pela crítica nos jornais, caso que ficou expressivo na discussão ente Álvaro

Lins, apelidado de “imperador da crítica”, e o catedrático Afrânio Coutinho. Coutinho,

que voltara dos Estados Unidos querendo implantar no Brasil a corrente teórica New

Criticism, criticou Lins, no livro No Hospital das Letras (1963), por sua crítica

impressionista, sinalizando, assim, o marco de uma separação gradual entre a crítica

pública, considerada pelos acadêmicos como impressionista, subjetiva e redutora, e a

crítica acadêmica, defendida pelos mesmos como científica, objetiva e sistemática, que

não seria corrompida pelos anseios públicos e poderia produzir o conhecimento

independente. Nesse sentido, vê-se Coutinho em livros, congressos e discussões,

fomentando a crítica universitária e estabelecendo, a partir da segunda metade do século

XX, a consolidação da academia na crítica literária brasileira: “É uma nova mentalidade

que surge e se consolida, impulsionada pela instituição universitária, e a ela está preso

todo o futuro das letras pátrias” (COUTINHO, 1968, p.125). Contudo, apesar de o

caminho contemporâneo da crítica brasileira ter se norteado pela academia,

reverberando a situação da crítica na Inglaterra descrita por Eagleton, há um crítico em

especial que parece ter, a seu modo, principiado uma espécie de crítica literária, a um só

tempo, acadêmica e pública. Aqui nos referimos ao professor Antonio Candido.

Como observa Manuel Pinto, Candido, que começara sua crítica literária nos

jornais, a partir dos anos 50, seguindo a tendência em voga, optou pela

institucionalização acadêmica, inclusive sendo responsável pela criação da disciplina de

Teoria Literária na USP. Segundo Manuel Pinto:

Entretanto, não se pode esquecer o papel do “jornalismo cultural” em

sua biografia intelectual: autor de rodapés intitulados “Notas de crítica

literária” na Folha da Manhã e no Diário de São Paulo, Antonio Candido seria ainda responsável, em 1956, pelo projeto do

“Suplemento Literário” de O Estado de S. Paulo, que seria o mais

importante caderno de cultura da imprensa brasileira (PINTO, 2000, p.57).

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Desse modo, além da crítica de jornal, podemos ver que Candido sempre

mostrou uma postura distanciada do isolamento acadêmico, como, por exemplo, no

âmbito teórico, fazendo uma espécie de estudos culturais, ao estudar temas marginais –

como os caipiras em os Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o Caipira Paulista e a

transformação dos seus meios de vida (1964) – , ou criando o conceito da dialética da

malandragem para questionar a relação entre formação cultural e expressão literária,

discutindo até mesmo as singularidades das literaturas regionais do Brasil. Além disso,

o crítico brasileiro não se restringia às disciplinas especializadas; Candido transitava

pela sociologia, história e estilística. Ele buscou também popularizar ideias, produzindo

livros introdutórios e ensaios de cunho social, como o Direito a literatura (1988), e, no

âmbito mais geral, foi responsável pela criação de partidos políticos, como o Partido

Socialista Brasileiro (PSB) e o Partido dos Trabalhadores (PT). Nesse sentido, vemos

que, para Candido, haveria um dever como cidadão e como crítico de mediar o

conhecimento acadêmico com as necessidades da sociedade – questão que ele

reconhece que não ocorre muito, pois: “(...) há um perigo enorme nessa história de

‘missão’ do intelectual. Em geral, acaba em exibicionismo publicitário e muito imoral

autodemonstração” (CANDIDO, 2002, p.245).

Defendemos, assim, que Antonio Candido, no Brasil, constituiu um exemplo

como os acadêmicos podem dialogar com os anseios sociais, assim como, na Inglaterra,

Eagleton observou Raymond Williams como um crítico que, similarmente, questionava

a segmentação acadêmica e priorizava o discurso público, apesar de Williams ter sido

um crítico isolado, sem uma base coletiva que lhe desse apoio institucional para atuar:

Os limites da obra de Raymond Williams finalmente mostrou-se

incapaz de ultrapassar não são os que configuram disciplinas

intelectuais, política e literatura, ou texto crítico e “criativo”; são, na verdade, os limites entre a instituição acadêmica e a sociedade

política, que a ausência de uma contra-esfera pública põe em

evidência (EAGLETON, 1991, p.107).

Esses limites também podem ter sido os que a crítica de Antonio Candido, assim

como a crítica em geral no Brasil,não conseguiu superar: a ausência de uma contra-

esfera pública. Para que isso ocorra, seria necessária toda uma mudança no aparato

cultural e educacional e nas instituições públicas, em diálogo com a sociedade civil;

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algo que, até então, parece complicado de se realizar nas universidades britânicas e

brasileiras.

Por fim, entendemos que a ideia de contra-esfera pública de Eagleton precisa

enfrentar certos desafios, responder a certas questão: como negociar a relação entre

universitários e a sociedade civil, levando-se em conta que esses atuam em campos

distintos – os universitários respaldados pelo seu rigor metodológico e os agentes

culturais (artistas, jornalistas, leitores, políticos, intelectuais orgânicos) baseados em seu

suposto “senso comum”, mas respaldados por sua prática? Como evitar o risco de

manipulação e controle dos agentes sociais “não-científicos” pelos especialistas

universitários? Como fazer para que os não acadêmicos não sejam ignorados, já que,

para alguns críticos “cientistas”, não se deveria aceitar as premissas não-verificáveis dos

não acadêmicos? E, ainda, como os agentes culturais, sem o distanciamento acadêmico,

poderiam contribuir sem se contaminarem por pressões econômicas ou serem cooptados

por interesses políticos espúrios, cobrando assim da academia sua relevância social e

uma atenção para o que eles estão produzindo?

Vê-se, assim, que o problema que Eagleton tenta enfrentar está centrado na

função institucional da crítica literária. Mas isso não é apenas um problema da

disciplina literária, e sim da própria universidade como tal. Desse modo, a luta contra a

crítica literária acadêmica é, na verdade, a luta contra todo um aparato educacional que

propiciou à universidade essa autonomia de apenas produzir determinado conhecimento

sobre determinadas regras. Nesse sentido, talvez a luta de uma crítica revolucionária, no

desejo de Eagleton, possa partir de dentro da academia. Mas isso requer uma

participação da própria sociedade civil, para que se possa rediscutir o papel da crítica –

se ela teria um papel isolado, com técnicas especializadas para analisar objetos culturais

especializados, apenas pelo suposto dever do conhecimento desinteressado, ou se sua

função seria contribuir com a difusão e popularização do conhecimento, tentando

intervir pragmaticamente, por meio desse discurso com rigor científico, mas em diálogo

com a prática social e com objetivo final de promover mudanças nessa própria estrutura

social.

É na base dessas percepções, por nós analisadas, que podemos compreender uma

ruptura considerável entre o projeto crítico de uma ciência do texto literário – antes

voltado para uma rigorosa análise da produção literária e da estruturação ideológica do

texto e – e o projeto revolucionário, a partir dos anos 80, que rompe com esse

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cientificismo e austeridade do projeto anterior e propõe uma crítica mais pragmática e

anti-método, ou seja, um Eagleton cada vez menos cientista e mais ativista.

Nesse sentido, a justificativa para uma proposta revolucionária, além dos fatores

que explicitamos, também pode ser em parte pela sua própria experiência pessoal. Mais

do que apenas um defensor crítico, o próprio Eagleton dos anos 80 buscava ser uma

espécie de agitador cultural – por exemplo,104

organizando a encenação de sua peça

Brecht and Company em 1979, participando de movimentos socialistas, como os

International socialists e a workers’ socialist league, editando livros desse movimento,

vendendo jornais socialistas na rua, fazendo mediações com os trabalhadores entre as

concepções teóricas marxistas e a prática de luta dos militantes socialistas, virando foco

político para os estudantes de Oxford e até mesmo fazendo piquetes na rua em favor da

greve dos mineradores britânicos de 1984.

A despeito das muitas oposições que sofria, por ser acadêmico da tradicional e

conservadora Universidade de Oxford, e por não se comportar como a tradição dessa

universidade determinava, Eagleton não deixou seu ativismo de lado. Muitas das

reflexões surgidas desse ativismo acabaram culminando em suas ideias – o que, para

ele, significava que a função da crítica não deveria mais ser a de uma crítica científica

isolada nas academias, mas sim uma crítica ativista e revolucionária, que trabalhasse

suas ideias em diálogo com a sociedade.

104 Esses exemplos estão presentes no capítulo 6 do livro-entrevista a Tarefa do Crítico (2010), em que Eagleton

relembra suas ações políticas dos anos 80.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“A questão de saber se ao pensamento

humano pertence a verdade objectiva não é

uma questão da teoria, mas uma

questão prática. É na práxis que o ser humano

tem de comprovar a verdade, isto é, a

realidade e o poder, o carácter terreno do seu

pensamento. A disputa sobre a realidade ou

não realidade de um pensamento que se isola

da práxis é uma questão

puramente escolástica.”

(Karl Marx)

Após termos observado a passagem das ideias de Terry Eagleton de uma crítica

científica do texto literário para uma crítica revolucionária, revisamos as observações

que obtivemos ao longo do trabalho.

No primeiro capítulo, pudemos ver que a ideias althusserianas de Estrutura e

Relativa Autonomia, adaptadas por Eagleton para o campo literário, serviram como

explanadores do modo como o texto literário é produzido, e a releitura do conceito de

Marx sobre ideologia, por Althusser, serviu também para o pensador inglês explicitar a

produção simbólica configurada na arte literária. Desse modo, essas ideias foram

fundamentais para reconfigurar as críticas literárias marxistas vulgares, que acreditavam

em relações diretas, em paralelismos e em homologias estáveis, e, às vezes, até mesmo

em relações pré-determinadas do texto com seu contexto social. Essas ideias do

marxismo estruturalista também souberam respeitar a singularização do objeto cultural

segmentado em “literário” e, assim, diferenciar-se de abusos críticos puramente

sociológicos, históricos ou filosóficos, que apenas usariam esses objetos como aportes

para suas ideias. Assim, partindo dessas concepções, Eagleton inventivamente constrói

as categorias de produção literária, que, por meio de um rigor teórico e sistemático,

defenderiam a ideia de que o texto é formado por uma relação estrutural, tendo, em

última instância, a história como seu significado.

Portanto, entendemos que esse rigor teórico, do marxismo estruturalista,

mostrara-se uma grande ferramenta contra os empirismos intuitivos, que certas

correntes críticas adotavam para justificar suas práticas – a exemplo de algumas críticas

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de Raymond Williams ou Antonio Candido, que se mostraram embaraçadas quando

tiveram de formalizar qual a substância conceitual dos termos que utilizavam, como, por

exemplo, “sociedade” ou “cultura”. Desse modo, a teoria mais sistemática e abstrata do

marxismo estruturalista veio dar fundamento a este tipo de crítica, meio “frouxa” e sem

sistematização. No entanto, Candido e Williams, pelo seu desprendimento das amarras

do cientificismo ou dos métodos conceptuais, conseguiram perceber no texto certos

fatores criativos que não são passiveis a uma determinação tão precisa, e só são

inteligíveis por meio de escolhas políticas relativamente contingentes. Nesse sentido, os

citados críticos têm muito a ensinar a certos tipos de ascetismo e elitismo presentes no

marxismo estruturalista, que acredita poder tudo objetivar.

Assim sendo, não é à toa que, por um lado, nossa aplicação do método científico

conseguiu dar bases sociais à análise de Senhora, mostrando relações bem estruturadas

entre as ideologias vigentes (liberais e românticas) e as representações estéticas

(folhetim, ironias), e, por outro, vimos que o romance mostra-se, em alguns pontos,

irredutível a estruturas, ou seja, há algo sempre de fora, o que nos faz tomar consciência

de que as teorias não podem ser tomadas sem uma adaptação as subjetividades culturais

– como no caso do paternalismo ou lógica do favor de Seixas, que supostamente

romperia com a percepção determinística e sistemática da visão materialista histórica

que as ideologias sempre remetem aos seus modos de produção. Contudo, cogitamos

também que, se a “lógica do favor” fosse incorporada às categorias de produção

literárias proposta por Eagleton, ou seja, se ela se tornasse uma ideologia do favor, que

poderia ser parte da IG ou parte até do MPG, como uma relação de troca simbólica,

materializada não pela relação capital/mercadoria, mas pela relação paternalismo/favor

entre indivíduos, então poderíamos refuncionalizar o método para um contexto

brasileiro, com as particularidades de uma sociedade em que o modo de produção

capitalista era diferente da realidade europeia.

Vimos também que a ideia do silêncio, ou não dito, usado por Macherey e

Eagleton, contribuiu muito para acabar com o ar, de neutralidade, inocência e violência

inconsciente, que circunscreve certas teorias e críticas literárias. Todavia, devido a esta

crítica marxista estruturalista não ter estendido suas ideias aos fatores institucionais, que

inviabilizam a própria prática crítica radical ou uma crítica mais prática, ela acabou por

não perceber o próprio silêncio, que produzia em função do seu academicismo e de sua

falta de relação com o meio social.

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O capítulo 2 teve justamente a função de observar, sobre três perspectivas, a

falta de autoanálise que historicamente, teoricamente e estilisticamente a crítica

científica do texto literário não soube perceber em si – e à qual também não soube se

ajustar. Não obstante, reconhecemos que os esforços da cientificidade do marxismo

estruturalista serviram para organizar ou pressionar aos limites certos fenômenos

críticos obscuros, mistificantes ou aleatórios, que buscavam soluções fáceis para a

compressão do texto literário. Vemos também que essa corrente crítica fora uma das

teorias a questionar o conceito de representatividade no texto literário, uma ideia quase

dogmática para a tradição crítica literária social ou marxista. Assim, a ideia de Eagleton

da literatura como uma dupla produção e não um reflexo passivo da história, e a

tentativa de analisar não o objeto histórico representado, mas a produção da

representação em relação à estrutura social histórica, mostraram-se como uma tentativa

derradeira de lançar uma relação da mimeses como a poiese, antes que, nas garras dos

anti-racionalistas pós-modernos, a ideia de representação fosse levada do antigo

extremo, da obra como espelho social ou psicográfico do autor, para outro extremo: a

obra como fragmentos discursivos e esquizofrênicos, sem relação com o contexto

social.

Desse modo, em nossa análise sobre os fatores históricos que resultaram na

marginalização acadêmica da crítica científica de Eagleton, tentamos defender a tese de

Perry Anderson e do próprio Eagleton de que o pós-estruturalismo e a desconstrução

pareciam mais conectados aos novos estudantes de literatura – aqueles que eram

oriundos de uma sociedade politicamente desiludida, devido às derrotas no âmbito

tradicional de classe e dos sindicatos, e bastante cética com qualquer pretensão

universalizante ou totalizadora que não pudesse terminar em fascismo ou stalinismo.

Nesse sentido, com o surgimento, nos anos 80, de outras forças radicais, como o

feminismo e o anti-colonialismo, começou-se a questionar os próprios lugares dessas

frente ao velho discurso da esquerda ortodoxa, que só pensava em modos de produção e

que considerava corporativismo falar em questões de desejo e sexualidade. O marxismo

estruturalista, então, por não acreditar em ideias simples ou em doxas, pagou um alto

preço por defender um semi-positivismo esnobe, que analisava friamente e

objetivamente modos de produção e ideologia, sem levar em conta se havia a

possibilidade de se construir categorias objetivas para compreender uma literatura e

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uma sociedade pós-auchwitz, globalizada e tecnológica, e quais as necessidades e

finalidades de todo esse rigor científico.

Nessa perspectiva, levantamos as ideias de Foucault, Deleuze, Barthes, de Man

entre outros; pensadores que propuseram vários argumentos contra diversos pontos que

constituíam a crítica científica de Eagleton. Assim sendo, sobre o conceito de ciência,

vimos o quanto essa postura é problemática, do ponto de vista de uma perspectiva da

pluralidade pós-moderna, e de que as coisas não são tão objetivas e sistematizadas

quanto o crítico inglês pensava. Essas ideias implicam também na crítica ao conceito de

ideologia. Apesar de Eagleton ter possuído uma visão abrangente de ideologia como

uma significação em homologia ou contradição com a história, vimos que o rizoma

deleuziano, questionando os fundamentos da ideologia – que pressupõem uma origem,

função e centro – , e Foucault, com seu discurso-poder “megalomaníaco”, que se

entranhava em todas as micro-significações que possam ser sistematizadas e

compartilhadas, acabaram por inviabilizar qualquer posição fixa que possibilite à crítica

julgar o que é reacionário ou progressivo no texto literário, ou até mesmo o que é

literário, o que resulta na descaracterização da utilidade do conceito de ideologia. Sobre

a ideia de produção literária, vimos que os trabalhos da escola de Constância fez

repensar o marxismo estruturalista, indagando sobre os efeitos, os leitores e as leituras

que poderiam servir para libertar os vários significados do texto, que, aparentemente,

eram negligenciados pela teoria eagletiana. Como consequência, sem perceber o que os

leitores podem fazer do texto, a crítica de Eagleton acabou resistindo em mudar sua

ideia de que haveriam características ontológicas e intransitivas do literário, e, assim,

omitiu-se de problematizar o cânone literário, que muitas vezes serviu para a

manutenção velada de certos pressupostos elitistas – de que a literatura não teria

características compartilhadas com os outros objetos culturais e que, assim, ela poderia

ser o centro da crítica cultural.

Sobre o estilo, vimos que a confiança, a austeridade e o pessimismo gravitavam

numa escrita eagletiana, que se considerava científica e acadêmica, o que se refletiu nas

três categorias que propomos: a hipérbole, a antítese e a sinédoque. Contudo, a ideia do

humor e da popularização fez Eagleton rever sua teoria e seu estilo. O humor diminuiu a

soberba de objetividade na escrita de Eagleton, a partir de uma reflexão do caráter

artificial e transitório dos discursos, e também adicionou um aspecto de esperança, ao

lembrar que o marxismo também é, afinal, uma luta pelo prazer da sociedade. Por sua

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vez, o aspecto da popularização da linguagem utilizada pelo pensador inglês veio tirar a

pompa acadêmica de que os jargões só são inteligíveis para uma elite, e propor que uma

crítica deve ter o caráter pedagógico e, consequentemente, democrático.

Em suma, a partir do que observamos no capítulo 2, podemos cogitar a ideia de

que, nos anos 80, a crítica literária absorveu em suas práticas certas ideias; por exemplo:

a pluralidade de métodos, a relação mais igualitária entre autor-obra-leitor, uma ideia de

que a linguagem e a história não são significações tão estáveis, pré-determinadas e

sistemáticas, mas sim significações resultantes de um jogo de relações diferenciais em

uma determinada história e cultura, e que os objetos denominados como literários

compartilham vários elementos com diversos objetos culturais. Sendo assim,

poderíamos concluir que todo o método científico de Eagleton seria obsoleto e

impraticável? Se levássemos em conta esses fatores citados, diríamos que sim. Contudo,

poderíamos sugerir uma “atualização” desse método e defender sua legitimidade.

Portanto, se considerarmos que as categorias de produção literária não são a única

ciência, mas uma ferramenta de saber entre outras; se entendermos que as categorias de

produção literária não são uma estrutura objetiva, mas um conceito que guia e ajuda em

uma sistematização transitória e passiva de contestação; se pressupormos que essa

crítica pode se utilizar não só da literatura, mas também de outros objetos culturais; e se,

por fim, reconhecermos que esse método é apenas parte da crítica, porque apenas

organiza e analisa, mas não se preocupa com os significados, os efeitos políticos que os

leitores podem fazer do texto, poderemos dizer, a partir dessas percepções, que ainda é

possível utilizar esse método de análise das categorias de produção dos objetos

culturais, que Eagleton iniciou nos anos 70.

Contudo, ao invés de tentar refuncionalizar este método, para que ele tivesse

viabilidade prática frente aos novos desafios conceituais propostos pelas críticas

literárias pós-estruturalistas, Eagleton propôs discutir a própria noção de crítica literária.

Nesse sentido, percebemos que talvez o próprio reconhecimento, nos anos 80, de que

sua crítica não se fundamentava mais, fez o autor inglês compreender que a crítica em si

não se sustentava nos moldes como vinha sendo praticada. Logo, para o pensador

inglês, nem a sua crítica científica marxista, nem as pós-estruturalistas e

desconstrutivistas, ou até mesmo as críticas tradicionais humanistas ou formalistas,

escapam de um mesmo mal: a irrelevância social de seus feitos. Por conseguinte,

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Eagleton se questionou se a crítica literária foi sempre assim, e se deveria continuar com

essa função, que ele considerava academicista, elitista e idealista.

Assim sendo, no terceiro capítulo mostramos como Eagleton, diante de todas as

problemáticas da crítica científica, oferece uma “solução”, não apenas para sua crítica,

mas para a crítica literária em si, preconizando uma revolução de sua própria função –

tese que, como vimos, já está presente na conclusão de Teoria da Literatura: uma

introdução, mas que só se sistematiza em sua tríade de obras, sobre teoria e crítica

literária, produzida nos anos 80. Desse modo, pudemos concluir que essa sistematização

se constitui em pelo menos quatro fatores:

1. A ideia de que, no campo literário, tanto os objetos quanto os seus métodos são

múltiplos, e, assim, a crítica deve se pautar por uma dialética que busque adequar

método e objetos à necessidade de seu contexto. Nesse sentido, diferentemente de

Criticism and ideology, a crítica não pode apenas se restringir ao cânone literário,

mas deve incluir outros meios artísticos e as diferentes manifestações literárias, e

não deve se restringir apenas a buscar um método “científico” de estruturação

literária, devendo buscar também intervir nos debates públicos sobre a produção

cultural.

2. A ideia de que o humor é um fator subversivo e utópico. Ou seja, diferentemente

do que preconiza a escrita científica anterior de Eagleton, seguindo agora esse viés

do humor, a crítica marxista deveria evitar certos elitismos e intransigências com

seus próprios fundamentos, e, além disso, não deveria esquecer a ideia de que é o

prazer e o carnaval coletivo o verdadeiro objetivo da crítica.

3. A ideia de que os críticos, pelo menos os radicais, devem ter uma preocupação

pedagógica e popular, e de que a teoria surgiu justamente como uma forma de

possibilitar o acesso a discursos até então disponíveis apenas para acadêmicos

“eleitos”. Portanto, deve-se também entender que compartilhar o conhecimento e a

informação é um dever do crítico para com a democracia.

4. A ideia de que, na crítica literária, a teoria não pode ser dissociada da prática de

intervenção social. Essa noção propõe um debate entre a sociedade civil leitora e as

instituições literárias, que, por sua vez, têm como objetivo o desenvolvimento de

uma contra-esfera pública, em que os discursos artísticos literários e culturais

possam florescer intensamente na sociedade.

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Nesse sentido, todos esses quatro fatores desembocariam no objetivo de mudar a

função da crítica como ela se apresentava nos anos 80. Segundo Eagleton, essa crítica

era resultado de uma mudança advinda do século XX, em que a crítica literária, que,

historicamente, tinha uma função social relevante e atuante nas discussões públicas,

passou a se isolar e ter uma função socialmente irrelevante, ao se confinar nas

academias. Assim sendo, mostramos como, para Eagleton, a crítica literária, ao se

institucionalizar na universidade, acabou se isolando da esfera pública, ganhando assim

base institucional e segurança ideológica, mas perdendo, em contra partida, o diálogo

com os leitores e escritores – isso criou teorias sob seus próprios discursos, o que

acabou, na visão do autor britânico, resultando em uma produção crítica totalmente

irrelevante para a sociedade. Desse modo, além da sua total falta de substância social,

Eagleton considera ainda que, marginalmente, esse modelo burguês de crítica

academicista contribui para a reprodução das relações dominantes, que seriam, por um

lado, a indiferença com a dominação cultural e literária por certos grupos ideológicos, e,

por outro, o desinteresse em permitir o acesso dos indivíduos aos modos de produção do

saber.

Nesse âmbito, para Eagleton, a função da crítica atualmente seria apenas

produzir conhecimento e excluir as suas outras duas funções, que seriam: a reprodução e

a consumação do conhecimento; ou seja, os críticos literários valorizam suas produções

teóricas, mas são indiferentes a sua distribuição e a sua consumação na sociedade, e

desinteressados com as várias leituras e usos que os leitores e agentes sociais poderiam

fazer de suas produções teóricas.

Seguindo esse raciocínio, mesmo os críticos vinculados à corrente da recepção

literária, por exemplo, se praticarem esse modelo de crítica burguesa academizada, não

estarão preocupados se seus textos são debatidos nas escolas, se os romancistas estão

em contato com essas ideias e incluindo a opinião dos leitores nos seus escritos, ou se os

críticos literários não fazem nenhuma atividade para difundir suas ideias. No mesmo

âmbito, outro exemplo seria uma crítica feminista, que não estaria preocupada se as

escritoras não têm acesso às publicações ou se as leitoras de poesia já ouviram falar em

patriarcado. Logo, uma postura bastante elitista para um crítico se conformar e mostrar-

se indiferente.

Assim, para salvar as funções reprodutivas e receptivas da crítica, Eagleton lança

mão de uma ideia de contra-esfera pública, que teria a função de criar todo o ambiente

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cultural em que a academia, a sociedade e as instituições públicas poderiam atuar

conjuntamente para o florescimento de um intercâmbio cultural, como acontecera, por

exemplo, nas vanguardas dos anos 30, em que Benjamin e Brecht não atuaram somente

como produtores de ideias, mas também como reprodutores, participando da política

cultural da república de Weimar, e consumidores, no sentido de reflexionar sua teoria

através da própria produção dos artistas construtivistas e surrealistas da época. Contudo,

problematizamos a ideia de Eagleton, indagando-nos sobre como essa função

“revolucionária” da crítica poderia funcionar, na contemporaneidade, por meio de uma

contra-esfera pública que ocorreria embasada no cooperativismo e na equidade de

posicionamentos. Nesse sentido, indagamo-nos se essa ideia poderia funcionar numa era

pós-modernista do capitalismo tardio, globalizado e tecnológico, ou seja, em uma época

de corporativismo, especialização, micro-políticas e pretensões locais, fluidas e

instantâneas. Nessa perspectiva, vemos que, indo na contramão de uma contra-esfera

pública, os críticos na contemporaneidade – em grande parte, universitários – , por não

saberem como falar ou julgar sem universalizar, e serem, por isso, taxados de

dogmáticos ou superficiais, sentem-se ameaçados de perder seu status científico. Isso

faz com que eles se especializem cada vez mais em suas áreas, e, aliados a uma

valorização acadêmica pela produção de pesquisa e não pela relevância social de suas

pesquisas, eles acabam por se distanciar ou não acompanhar a enorme quantidade de

informações e ideias permitidas pelo intercâmbio de escritores e leitores – que, cada vez

mais, diversificam-se, misturando novas mídias à literatura e novos temas a sua

composição. Como resultado, vê-se que os críticos se sentem cada vez mais

embaraçados ao dialogar, sem perder sua credibilidade, com a sociedade; e, por isso,

acabam por se restringir, indiferentes à sociedade, ao máximo de conhecimento

possível.

O segundo questionamento que fizemos foi: qual o porquê da ênfase de Eagleton

nas universidades como lideres dessa mudança? Quais as razões de Eagleton não

delegar também aos próprios leitores, aos escritores, aos jornalistas, aos editores

independentes, o fomento de uma refuncionalização da crítica sobre os textos? Desse

modo, vimos que o dilema da proposta de Eagleton se resumia, nos anos 80, da seguinte

forma: embora as universidades possuam segurança estrutural e ideológica para

produzir crítica literária ou cultural, elas só priorizam a produção do conhecimento, e se

mostram indiferentes ou superiores a qualquer manifestação crítica não catedrática; por

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outro lado, as críticas não universitárias (vindas de jornalistas, autores, leitores,

produtores culturais etc.), apesar de possuírem um tipo de conhecimento mais empírico,

prático e mais preocupado com questões de distribuição e consumo do que de produção

de conhecimento, não possuem a segurança institucional das universidades, e podem ser

cooptadas pelo mercado ou por interesses ideológicos. Vemos, assim, que Eagleton não

pareceu resolver esse dilema nos anos 80.

Assim, poderíamos nos perguntar se os escritos recentes de Eagleton teriam

respostas para essas questões. Porém, ao que nos parece, o autor, em suas recentes

publicações – inclusive no seu livro mais recente sobre literatura: How to Read

Literature (2013) – , parece estar mais preocupado com temas teóricos do que

institucionais. Ou seja, apesar de reconhecer que os estudos culturais parecem ter

preponderância no meio acadêmico, o que pode ser lido como um avanço, para aquilo

que, em termos de teoria, ele defendia nos anos 80, em termos institucionais não há

comentários se houve avanços na função da crítica.

Em nosso entendimento, contudo, a proposta de Eagleton, nos anos 80, era mais

ousada do que engendrar um método ou teoria alternativa para a crítica literária. Para

ele, a questão não era propor um novo significado para a mesma crítica, nem também

um outro método, mas sim mudar o próprio significante da crítica – tal como o objetivo

final de Marx não era mudar de uma ditadura burguesa para a ditadura do proletariado,

mas a mudança da própria ditadura em si. Desse modo, seguindo o pensamento de

Eagleton nos anos 80, poderíamos ver, em nossa contemporaneidade, que ainda

existem: por um lado, os críticos expectadores, que produzem suas teorias, mas

possuem um desinteresse liberal ao observar a sociedade se engalfinhar nas discussões

sobre estética e arte, enquanto eles, por sua vez, gozam retumbantemente ao saber que a

comunidade literária não sabe o que faz; e, por outro lado, os críticos ativistas, que,

engajados numa perspectiva revolucionária, entendem que o conhecimento depende de

um diálogo com a sociedade civil – assim, as teorias deveriam ser distribuídas para essa,

e a partir da consumação da sociedade poderia o crítico repensar sua teoria. Desse

modo, poderíamos citar, como exemplo desse “critivismo” (crítica e ativismo), os

críticos culturais Boaventura Souza Santos, Slavov Zizek, Edward Said e o próprio

Eagleton. Todos esses mostraram ou mostram exemplos de uma crítica literária ou

cultural que não poderia ser dissociada de um diálogo com a sociedade, das novas

produções culturais e dos interesses públicos; portanto, são exemplos de críticos que

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sempre se perguntam qual o objetivo de seus estudos, a quem pretendem atingir ou

influenciar, e que funções a sociedade atribui a seu ato crítico, diferindo-se assim, por

conseguinte, da logocracia acadêmica, que se preocupa em produzir conhecimento, mas

é indiferente com sua reprodução e consumação pela sociedade.

Seguindo esse raciocínio, vários questionamentos podem ser suscitados a cerca

do papel da crítica, pois, levando-se em conta a doxa contemporânea, que afirma haver

um ocaso da leitura de literatura, poderíamos questionar qual o papel da literatura – e,

consequentemente, da sua crítica – na cultura; ou pelo menos questionar o papel de um

tipo de literatura típica do século XX e de uma crítica desse mesmo século. Ao mesmo

tempo em que se anuncia o fim dessa literatura e dessa crítica, entretanto, pode se ver

uma ebulição de festivais literários, um crescimento de pequenas editoras, blogs

literários e o surgimento de um nicho editorial em cadernos de cultura e revistas

literárias, e até mesmo a proliferação de congressos e seminários acadêmicos. Por

conseguinte, será que a crítica literária, frente a uma carga enorme de informação e

produção cultural do século XXI, está receosa em lidar com as novas produções

literárias, seja por desinteresse ou por falta de confiança de que suas teorias, baseadas

em modelos obsoletos, possam servir as novas produções literárias? Assim sendo, o que

teriam eles a falar sobre estas novas produções, como as literaturas marginais,

indígenas, dos guetos ou as poesias cibernéticas e o hipertexto?

Oferecendo uma possível resposta a esses questionamentos, acreditamos que é

preciso começar a pensar como os críticos universitários poderiam dialogar com essas

novas organizações da produção literária contemporânea. Desse modo, se pensarmos

que as universidades públicas brasileiras funcionam sobre o tripé de pesquisa, ensino e

extensão, poder-se-ia observar que o elemento da extensão serve, justamente, para

valorizar esse diálogo com a sociedade, acerca da experiência com as pesquisas e o

ensino desenvolvida na academia. Todavia, ao que parece, a extensão se apresenta como

o campo que menos é valorizado e praticado, inclusive por causa da sua pontuação

reduzida para a progressão da carreira dos catedráticos; ou seja, é talvez um fator

ideológico que subsidia a dissociação entre pesquisa, ensino e extensão. Contudo,

apesar de acreditarmos ser lícito aos professores ou pesquisadores de literatura o foco na

pesquisa e no ensino – não queremos desmerecer esses dois pilares – , questionamos os

professores-pesquisadores de literatura acerca da razão de eles não repensarem suas

funções no âmbito dos três pilares – pesquisa, ensino e extensão: por que não “pontuar”

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também pela extensão? Por que não atuar para além das funções normais – produzindo

livros e artigos, ministrando aulas, orientando trabalhos acadêmicos, exercendo cargos

burocráticos, participando de reuniões de colegiados, de plenárias, de bancas de seleção,

de organização de congressos, de edição e revisão de periódicos – , fazendo algo além

de publicar em eventos e atualizar o currículo Lattes? Assim sendo, qual a razão dos

professores-pesquisadores também não poderem participar ativamente, ou pelo menos

contribuir para certas ações públicas e sociais? Defendemos, assim, que, para que isso

aconteça, requer-se um mínimo de interesse na difusão do conhecimento acadêmico aos

diversos públicos de diferentes níveis de letramento e erudição; o que, por sua vez,

demandaria uma adaptação da linguagem acadêmica à linguagem popular, exigindo

também uma absolvição dos meios de comunicação de massa e dos diversos gêneros de

comunicação social, observando atentamente as mudanças dos nichos onde a sociedade

se alimenta culturalmente e intercambia seus conhecimentos. Por conseguinte, essa é

uma questão que só poderá acontecer se houver um diálogo entre os agentes sociais

(escritores, leitores, editores, jornalistas culturais e instituições públicas de cultura) e os

acadêmicos. Logo, pensamos que certas funções acadêmicas podem coexistir com

outras; por exemplo: a difusão das pesquisas e do ensino poderia ser feita em artigos ou

congressos científicos, mas também poderiam ser adaptados para a internet, blogs, sites

especializados, documentários, revistas, jornais impressos, cadernos de cultura,

entrevistas em programas de rádio e TV; além da organização de congressos e

seminários, os catedráticos poderiam também participar na organização de sarais e

eventos para a comunidade sobre arte; de forma alternada à atuação em cargos

burocráticos nas universidades, os pesquisadores poderiam também atuar em

consultoria de projetos de leis no âmbito da cultura e em audiências publicas que

versam sobre arte e cultura; etc. Portanto, há várias alternativas a esse modelo de crítica

literária e cultural institucionalizado nas universidades brasileiras.

Seguindo esse raciocínio, nos questionaríamos se os críticos literários brasileiros

deveriam continuar seguindo esse modelo europeu de críticas liberais e desinteressadas

– que só se preocupam com o conhecimento pelo conhecimento do texto; que muitas

vezes não atentam para o fato de que há uma desigualdade enorme entre a produção e

distribuição e o consumo de cultura na América latina (realidade similar também em

África e Ásia), ou seja, que há uma diferença considerável entre o nível de letramento

entre as nações do hemisfério sul e do norte. Nesse sentido, os críticos deveriam pensar

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que vários escritores, leitores e alunos de literatura só existem em potencial, pois não

tiveram ainda condições materiais de ter acesso a mostrar suas vivências e experiências

com e a partir da literatura; e isso requer um modo de pensar diferente daquele

produzido nas “metrópoles” globais, que, supostamente, possuem uma “melhor”

distribuição e consumação da crítica, para se dedicarem legitimamente ao saber

“desinteressado”.

Portanto, aqueles críticos que produzem mais um trabalho sobre a imagística das

cores nos poemas menores de Shakespeare, devem se lembrar de que são sustentados

física e mentalmente por milhares de pessoas que, devido a uma história de opressão e

exclusão, que dividiu o trabalho material do imaterial e foi perpetuada pela propriedade

privada, tiveram que vender, ao julgo da mais valia, seu tempo e sua força de trabalho,

para sobreviver e ter uma remota oportunidade – e tempo – para cogitar a utilização dos

meios de produção da consciência que eles mesmos sustentam. Isso sem falar em todos

outros tipos de dominação simbólica.

Nesse sentido, como observa ironicamente Eagleton, em um dos seus recentes

trabalhos, How to Read a Poem (2007), os críticos literários vivem hoje em um estado

permanente de espanto, com medo de que algum oficial do governo descubra que eles,

embaraçosamente, são pagos para ler poemas e romances, e, ainda mais, pagos para ler

livros sobre pessoas que nunca existiram e eventos que nunca aconteceram. Podemos

concluir, assim, que há uma possibilidade de que a rispidez ou insensibilidade da lógica

do utilitarismo do capitalismo tardio faça com que os catedráticos saiam de seus altares

e torres de marfim e busquem justificar sua função de análise de textos para além de um

discurso autotélico, e, para isso, terão de buscar na sociedade uma razão para

continuarem a existir. Será precisamente nesse momento que, talvez, a indiferença

desses com o debate público seja forçada a perecer.

Por fim, mostra-se frustrante que Eagleton, em suas recentes obras, não trate

sobre os fatores institucionais e revolucionários da crítica literária. Entretanto, é natural

que o Eagleton do século XXI esteja receoso a conjecturar sobre e julgar uma instituição

com que, em parte, ele já não possui mais tanto convívio. No entanto, é nosso dever,

baseado em suas ideias, discutir qual a função que a crítica deve seguir nos próximos

anos; e esse seu processo de transformação, de uma cientista para uma ativista, esse

critivismo, mostrou-se ser uma referência para traçarmos novos caminhos para a crítica

literária e cultural.

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