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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS IGOR FIDELIS MAIA DISPUTAS EM TORNO DA RITALINA: uma análise sobre diferentes possibilidades de um fármaco NATAL 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

IGOR FIDELIS MAIA

DISPUTAS EM TORNO DA RITALINA: uma análise sobre diferentes possibilidades de

um fármaco

NATAL

2017

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IGOR FIDELIS MAIA

DISPUTAS EM TORNO DA RITALINA: uma análise sobre diferentes possibilidades de

um fármaco

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências Sociais da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

como parte dos requisitos para obtenção do

título de Mestre em Ciências Sociais.

Orientadora: Profa. Dra. Berenice Alves de

Melo Bento

NATAL

2017

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN

Sistema de Bibliotecas – SISBI

Catalogação da Publicação na Fonte - Biblioteca Central Zila Mamede

Maia, Igor Fidelis.

Disputas em torno da Ritalina: uma análise sobre diferentes possibilidades de um fármaco / Igor Fidelis Maia. - 2017.

136 f. : il.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Natal, RN, 2017.

Orientador: Prof.ª Dr.ª Berenice Alves de Melo Bento.

1. Medicalização - Dissertação. 2. Ritalina – Dissertação. 3. Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade – (TDAH) - Dissertação. 4. Comportamento social - Dissertação. I. Bento, Berenice Alves de Melo. II. Título.

RN/UFRN/BCZM CDU 316.62

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IGOR FIDELIS MAIA

DISPUTAS EM TORNO DA RITALINA: uma análise sobre diferentes possibilidades de um

fármaco

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências Sociais da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte como parte dos

requisitos para obtenção do título de Mestre em

Ciências Sociais.

Orientadora: Profa. Dra. Berenice Alves de Melo

Bento

Aprovado em 23 de Março de 2017

BANCA EXAMINADORA:

______________________________________________ Profa. Dra. Berenice Alves de Melo Bento

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

(Orientadora)

______________________________________________ Prof. Dr. Pedro Paulo Gomes Pereira

Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

(Examinador Externo)

______________________________________________ Profa. Dra. Ana Karenina de Melo Arraes Amorim

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

(Examinador Externo)

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AGRADECIMENTOS

Estes últimos dois anos cursando o mestrado foram marcados por momentos de crise,

desorientação e de desafio. Terminar uma graduação, já engatar no mestrado e finalizar a

dissertação ao mesmo tempo em que tentei seleção para o doutorado foi uma escolha que

trouxe muito desgaste e algumas vitórias. Foi bastante difícil dar conta de todas as atribuições

satisfatoriamente e só foi possível concluir tudo isso com o apoio constante de algumas

pessoas.

Agradeço primeiramente à minha família: meu pai, mãe e irmã. Pelo carinho,

paciência sem fim e intensa dedicação em me fazer crescer e ser mais feliz.

À Andresa, meu grande amor, por me dar forças para encarar a vida, por me fazer

pleno, pelo companheirismo cotidiano e pelo diálogo crítico na escrita dessa dissertação. À

Cauê por não me deixar ficar triste quanto estamos juntos, ser meu maior estímulo para me

tornar uma pessoa melhor e por me ensinar o que é amar sem limites.

À minha família de Natal (tias, tio, primas e avó) pelo auxílio sempre disponível e

carinho nos momentos difíceis. Minha família de João Pessoa, São Paulo e Portugal, por

fazerem de tudo pra me ajudar mesmo estando longe.

Aos meus amigos Mariano, Mikelly, Micarla e Tarcísio. Pela rede de apoio que

construímos ao longo desses anos. Por me lembrar constantemente dos prazos, compromissos

e da necessidade de me dedicar mais. À Landerson por ser tão solícito e me proporcionar

outro olhar sobre minha pesquisa. À Marcus por ser um dos meus companheiros de rebeldia

na Universidade e a seu pai por ter feito a revisão ortográfica dessa dissertação. À Jota por ter

me ensinado a potência de errar. Como também outrxs amigxs que, de perto ou de longe,

acompanharam esse percurso dando sempre palavras de apoio e os melhores conselhos.

Agradeço aos funcionários do PPGCS, Otânio e Jefferson, por compreender os nossos

problemas, serem sempre tão dedicados e pelas conversas cotidianas.

Por último, sou muito grato a Berenice por nossa parceria que vem desde a minha

graduação. Pelos conselhos pertinentes, leitura minuciosa dos meus textos e por me formar

como pesquisador. Agradeço também aos professores Pedro Paulo Gomes Pereira e Ana

Karenina de Melo Arraes pela leitura do meu trabalho e pelas contribuições.

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RESUMO

Esta dissertação apresenta uma pesquisa histórica e sociológica sobre a capacidade da Ritalina

de produzir normalização social. Para tanto, foi feita uma análise da trajetória dessa droga, de

discursos proferidos publicamente pelos seus usuários e uma autorreflexão ancorada nos

efeitos objetivos da Ritalina no corpo do pesquisador. Há um confrontamento entre o discurso

largamente difundido de que esse fármaco produz obediência às normas sociais, e o material

empírico que tive contato ao longo da pesquisa. Esse psicofármaco de efeito estimulante é

uma das drogas mais consumidas no mundo e também uma das que reúnem o maior número

de críticas e controvérsias. Denominado popularmente como a pílula da obediência, está

associado diretamente à medicalização de crianças em ambiente escolar e já foi acusado de

poder produzir um genocídio do futuro. São diferenciados aqui dois usos dessa droga: o das

pessoas que possuem o diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade

(TDAH), e aquele dos que utilizam Ritalina como um ―aprimorador cognitivo‖ que maximiza

a concentração em atividades de estudo. A partir de uma investigação com base na história

desse fármaco, nas declarações de seus usuários em dois endereços eletrônicos, e na

experiência do pesquisador, evidenciou-se uma rede de relações heterogêneas que envolvem o

consumo de Ritalina e que insistentemente têm sido caracterizadas como normalizadas ou

obedientes.

Palavras-chave: Ritalina, TDAH, medicalização.

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ABSTRACT

This dissertation presents a historical and sociological research about Ritalin's ability to

produce social normalization. Therefore, an analysis was made of the trajectory of this drug,

of speeches publicly pronounced by its users and a self-reflection anchored in the objective

effects of Ritalin on the researcher's body. There is a comparison between the widely-used

speech that this drug produces obedience to social norms, and the empirical material that I had

contact throughout the research. This psychotropic drug is one of the most consumed in the

world, and also one that brings together the most criticism and controversy. Popularly called

as the pill of obedience, is directly associated with medicalization of children at school and

has been accused of being able to produce a genocide of the future. Two uses of this drugs are

distinguished here: the people who have the diagnosis of Attention Deficit/Hyperactivity

Disorder (ADHD), and those who use ritalin as a cognitive enhancer which maximizes the

concentration in study activities. From an investigation based on the history of this drug, in

the declarations of its users on two electronic addresses, and in the researcher's experience, a

network of heterogeneous relations involving the consumption of Ritalin was evidenced, even

though insistently have been characterized as normalized or obedient.

Keywords: Ritalin, ADHD, medicalization.

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LISTA DE SIGLAS

ABDA Associação Brasileira do Déficit de Atenção

AMA American Medical Association

APA American Psychiatry Association

CHADD Children and Adults with Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder

DSM Diagnostic and Statistical Manual

GEDA Grupo de Estudos de Déficit de Atenção

OMS Organização Mundial de Saúde

TCC Terapia Cognitivo-Comportamental

TOC Transtorno Obsessivo Compulsivo

TDAH Transtorno do Déficit de Atenção e/ou Hiperatividade

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10

CAPÍTULO I – A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA RITALINA .................................. 21

1.1 Metilfenidato e comportamento infantil ......................................................................... 28

1.2 Discussões em torno da obediência ................................................................................ 37

1.3 Discussões em torno da inteligência ............................................................................... 44

CAPÍTULO 2 – A VIDA VIRTUAL DOS SUJEITOS TDAH .......................................... 53

2.1 O site da Associação Brasileira do Déficit de Atenção .................................................. 55

2.2.A direção do site ............................................................................................................. 65

2.3 O fórum das pessoas com TDAH ................................................................................... 70

2.4 Medicalização e agência ................................................................................................. 77

CAPÍTULO 3 – O USO DE RITALINA COMO “DROGA DA INTELIGÊNCIA” ....... 82

3.1 As ―drogas da inteligência‖ ............................................................................................ 83

3.2 Cerébro Turbinado .......................................................................................................... 85

3.3 Disciplina medicalizada e molecularização da performance cognitiva .......................... 95

CAPÍTULO 4 – RELATO AUTOETNOGRÁFICO ........................................................ 100

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 120

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 123

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação apresenta uma pesquisa histórica e sociológica sobre a capacidade

da Ritalina de produzir normalização social em seus usuários adultos. Para tanto, foi feita uma

análise da trajetória dessa droga, de discursos proferidos virtualmente no portal da Associação

Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA) e no blog ―Cérebro Turbinado‖ 1, além de uma

autorreflexão ancorada nos efeitos da Ritalina no corpo do pesquisador. Esse psicofármaco2

de efeito estimulante é um dos mais consumidos no mundo e também um dos que reúne o

maior número de críticas e controvérsias. Denominado popularmente como a ―pílula da

obediência‖, está associado diretamente à medicalização de crianças em ambiente escolar e já

foi acusado de produzir um ―genocídio do futuro‖ 3. Foi realizada então, a partir desse

contexto, uma comparação entre o discurso largamente difundido o qual diz que esse fármaco

produz obediência às normas sociais, e o material empírico que tive contato ao longo da

pesquisa. Este trabalho tem como foco questionar se esse medicamento, cujo nome

farmacológico é metilfenidato, pode produzir normalização a partir dos relatos de seus

usuários.

São diferenciados aqui dois usos dessa droga: o de jovens e adultos que possuem o

diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), e aqueles que

utilizam a Ritalina acreditando que ela funciona como um ―aprimorador cognitivo‖ 4,

maximizando a concentração em atividades de estudo. No primeiro caso, é comum o discurso

de que o TDAH é um transtorno inventado para produzir lucros para a indústria farmacêutica,

patologizando comportamentos de crianças que não se ajustam adequadamente ao ambiente

escolar, tornando-as, assim, obedientes através do tratamento com Ritalina5. Já para o segundo

grupo, há a crítica de que as exigências capitalistas de produtividade têm induzido as pessoas

1 Endereço eletrônico do portal da ABDA: www.tdah.org.br/. Acesso em 12 de fevereiro de 2017.

Endereço eletrônico do Cérebro Turbinado: www.cerebroturbinado.com/. Acesso em 12 de fevereiro de 2017. 2 Psicofármacos são considerados aqui enquanto medicamentos que atuam no funcionamento do cérebro e estão

associados ao tratamento de doenças mentais. 3 Sobre esse assunto consultar a matéria no portal da Unicamp ―A ritalina e os riscos de um 'genocídio do

futuro'‖.

Fonte: http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/08/05/ritalina-e-os-riscos-de-um-genocidio-do-futuro.

Acesso em 01 de maio de 2016. 4 Aprimorador cognitivo será usado sempre entre aspas para enfatizar que esta é uma categoria utilizada pelos

usuários de Ritalina e o trabalho não traz nenhuma conclusão se esse medicamento aprimora ou não a cognição. 5 Essa abordagem será mais detalhada no tópico 1.2. Discussões em torno da obediência.

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a ingerir substâncias como essa para dar conta da competição em ambientes como o trabalho

ou a universidade6. Irei detalhar nos próximos capítulos as fontes de onde emanam esses

discursos e, a partir dessa contextualização, questionarei se nas duas situações é possível

observar a ligação entre o uso da substância e a docilização dos corpos em relação às

exigências disciplinares (FOUCAULT, 1975).

Foi realizada uma descrição histórica das controvérsias que têm sido produzidas em

torno do metilfenidato, contrastando esses dados com o relato dos sujeitos presentes em dois

endereços eletrônicos: o portal da Associação Brasileira do Déficit de Atenção e o blog

―Cérebro Turbinado‖. Nesse primeiro sítio, que é referente à principal associação brasileira de

portadores do TDAH, é possível encontrar amplo material informativo sobre o transtorno e

também um fórum com longas discussões entre os seus leitores. Já o blog é um canal

informativo sobre substâncias utilizadas para potencializar atividades cognitivas que,

abrangendo o uso da Ritalina, dissemina na rede um rico conteúdo sobre essas práticas e

também depoimentos de seus usuários. A partir da análise desses espaços foram feitos os

seguintes questionamentos: os efeitos de contenção, apatia ou comportamento zombie like7

são relatados? A ingestão de Ritalina se dá exclusivamente com propósitos de fortalecer a

competitividade acadêmica ou laboral de seus usuários?

Além desse conteúdo virtual, fez parte da dissertação uma análise autoetnográfica

(Ellis & Bochner, 2000) de experiências de uso da Ritalina como ―aprimorador cognitivo‖

que foram vivenciadas pelo pesquisador. Este método tem como propósito conectar os relatos

pessoais com suas determinações socioculturais. E isso foi feito através da análise das

experiências do pesquisador a partir do referencial teórico que perpassou todo o trabalho. Esse

procedimento fez com que fosse possível realizar uma contestação às descrições

estereotipadas dos efeitos do metilfenidato e do perfil dos sujeitos com TDAH.

6 Essa outra abordagem será mais detalhada no tópico 1.3. Discussões em torno da inteligência.

7 O efeito denominado de zombie like é muitas vezes citado como uma demonstração de que a Ritalina produz

um estado de letargia em seus consumidores, deixando-os apáticos e suscetíveis a qualquer forma de controle. A

pediatra Aparecida Moysés comenta em entrevista: ―Também pode apresentar surtos de insônia, sonolência,

piora na atenção e na cognição, surtos psicóticos, alucinações e correm o risco de cometer até o suicídio. São

dados registrados no Food and Drug Administration (FDA). São relatos espontâneos feitos por médicos. Não é

algo desprezível. Além disso, aparecem outros sintomas como cefaleia, tontura e efeito zombie like, em que a

pessoa fica quimicamente contida em si mesma‖.

Acesso em: http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/08/05/ritalina-e-os-riscos-de-um-genocidio-do-futuro

Último acesso: 28 de março de 2016.

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Foram utilizados para pensar esse cenário, alguns intelectuais que pesquisam a

crescente importância dos dispositivos biotecnológicos na vida social contemporânea. O

sociólogo inglês Nikolas Rose, em suas reflexões sobre A Política da Própria Vida (2007),

pode ser considerado a principal referência que norteou as discussões dessa dissertação.

Embasadas, especialmente, nesse livro, as teorizações de nosso trabalho sobre os diagnósticos

psiquiátricos e uso de psicofármacos não foram marcadas pelo discurso fatalista bastante

presente em outras análises. Ao invés disso, a obra de Rose nos estimulou a uma consideração

mais atenta às variadas implicações dessas tecnologias na atualidade. Além dele é pertinente

mencionar os escritos de Paul Preciado8 (2008) sobre o regime farmacopornográfico e as

considerações de Paul Rabinow (1999) sobre mudanças contemporâneas nos regimes de

saber-poder e na autopercepção dos indivíduos. Essas questões foram consideradas na

pesquisa, mas para serem melhor compreendidas demandam uma maior aproximação com o

campo.

A partir do discurso oficial, sabe-se que o TDAH é considerado pela psiquiatria e

outras ciências da saúde como um transtorno neurobiológico fortemente influenciado por

fatores genéticos. É caracterizado por um padrão persistente de desatenção, hiperatividade e

impulsividade, cuja origem remonte à infância, estando presente em dois ambientes ou mais

(casa, escola e trabalho, por exemplo) (APA, 2013). Contudo, apesar de ter sido considerada

historicamente uma desordem da infância, uma grande quantidade de estudos sobre TDAH

também têm sido focados na população adulta (KOOIJ SJ et al, 2010). Atualmente se tem a

compreensão de que os sintomas sentidos nos primeiros anos persistem para o resto da vida

(CLEAVE, 2008).

O metilfenidato é utilizado como um psicoestimulante para elevar o nível de alerta

do sistema nervoso central, produzindo uma maior concentração, coordenação motora e

controle dos impulsos. É uma substância controlada, possui semelhanças estruturais com as

anfetaminas e só pode ser vendida com retenção de receita. Segundo seus defensores, é o

tratamento para TDAH mais amplamente pesquisado, clinicamente efetivo e mais comumente

prescrito (NIH, 1998). O acesso legal a essa droga se dá pela avaliação de um médico

8 Em uma carta aberta publicada no início de 2015, Paul Preciado renuncia a seu nome de nascimento. Embora

tenha assinado todos os seus livros e alguns artigos como Beatriz, a partir desse momento ele opta por ser

reconhecido como Paul. Fonte: http://paroledequeer.blogspot.com.br/2015/01/catalunya-trans-por-paul-b-

preciado.html. Acesso em 12 de fevereiro de 2016

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especializado em psiquiatria ou neurologia que procura verificar se o paciente atende às

expectativas do diagnóstico para conceder as receitas.

Há uma intensa produção discursiva que aponta o TDAH como um exemplo

pertinente de como a psiquiatria e os psicofármacos podem ser utilizados de forma

problemática. Emanando de diversas fontes, como livros, matérias em jornais e revistas,

vídeos ou artigos científicos, críticas bastante severas têm sido produzidas em torno do

assunto. Dados que demonstram um enorme crescimento na quantidade de pessoas

diagnosticadas e nas vendas desse medicamento conduziu muitos à interpretação de que o

déficit de atenção é uma condição inventada para produzir lucros para a indústria

farmacêutica9.

Ao mesmo tempo, há o argumento de que o seu uso em crianças se dá com o intuito

de produzir um maior ajustamento ao contexto escolar, para que elas deixem de lado as

brincadeiras e mantenham o foco nas atividades de estudo. A pediatra Maria Aparecida

Affonso Moysés, ao ser entrevistada por um portal da UNICAMP, fez a declaração alarmante

de que o alto índice de utilização da Ritalina na sociedade pode produzir um ―genocídio do

futuro‖. Ela justifica isso pelo fato de que as crianças que estão sendo medicadas são as que

fazem questionamentos com frequência e que sentem necessidade de modificar as regras.

Segundo a médica, são essas pessoas que fazem com que a sociedade se transforme, portanto,

atacar às suas potências criativas é obstruir o aprimoramento das condições de vida do

presente. É um lugar comum nesse conjunto de críticas a nomeação da Ritalina enquanto a

―droga da obediência‖.

Para além do uso legitimado, há também algumas pessoas que relatam a

administração de comprimidos de metilfenidato para maximizar a capacidade de concentração

ao estudar. São geralmente indivíduos que estão se preparando para fazer concursos e usam a

substância para aumentar as horas de dedicação. Há uma série de notícias na rede que

abordam esse fato em tom de novidade e de forma alarmista, como em ―concurseiros usam

Ritalina para turbinar o cérebro‖ ou ―concurseiros usam Ritalina para prestar exames‖ 10.

9 Esses dados e algumas interpretações sobre eles serão analisados no tópico 1.2 Discussões em torno da

obediência. 10

São exemplos desse caso:

- http://noticias.r7.com/educacao/noticias/estudantes-usam-remedio-para-turbinar-cerebro-20090927.html

- http://www.gabaritofinal.com.br/2014/08/ritalina-droga-dos-concurseiros-conheca.html.

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14

Nesse contexto são também frequentes textos que apontam os perigos dessa utilização

indevida, desacreditando o potencial da substância nesse papel inusitado e descrevendo uma

série de efeitos colaterais que o uso sem orientação médica pode ocasionar11. Nessas

abordagens, há um cenário de disputa em torno da possibilidade da Ritalina ser considerada a

―pílula da inteligência‖.

Em suma, o metilfenidato não é uma substância apática. O seu surgimento e

disseminação produziu tensões significativas na utilização de psicofármacos, primeiramente

nos Estados Unidos, mas depois estendendo-se a vários outros países. Da mesma forma que

outros medicamentos psiquiátricos como a fluoxetina (Prozac), foi produzido um amplo

conjunto de discussões em torno do metilfenidato. Esses discursos heterogêneos com

frequência se mantêm numa oposição entre os que conferem a essas substâncias uma enorme

importância e aqueles que denunciam o uso delas como um dos males da contemporaneidade.

Em suas múltiplas abordagens, foi possível observar que há nas últimas décadas uma intensa

produção discursiva em torno da Ritalina.

O que os críticos denominam de forma difusa de efeito normalizador produzido pela

Ritalina foi definido aqui através do conceito foucaultiano de disciplina. Esse teórico francês

aborda as técnicas do poder disciplinar principalmente em seu livro Vigiar e Punir (1975).

Nesse texto, há o detalhamento de operações que intercruzam saberes e poderes e estabelecem

vínculos entre os corpos e as exigências sociais de tempo e espaço. Essa concepção teórica

afirma que os indivíduos são produtos desses regimes de poder, em que as instituições sociais

produzem os sujeitos de forma a torná-los dóceis e úteis. Essas considerações podem ser

relacionadas à patologização dos comportamentos infantis que perturbam o funcionamento

regular da escola. Ou o uso de medicamentos para diminuir as distrações e maximizar o foco

no âmbito do trabalho, aumentando a produtividade e eficácia de empresas ou corporações.

A partir dessas considerações, utilizarei um recorte etário e focarei apenas pessoas

com mais de dezoito anos de idade. Essa escolha se dá pelo fato de que a discussão em torno

do TDAH geralmente é centrada no período da infância, com poucos enfoques em outras

fases da vida. Essa circunscrição me conduz mais facilmente a pensar as distinções morais

que se estabelecem entre diferentes substâncias psicoativas que são geralmente consumidas na

11

Uma notícia que ilustra essa abordagem: http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,estudo-da-unifesp-derruba-

mito-de-que-ritalina-turbina-cerebros-saudaveis-imp-,974204.

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fase adulta. Um exemplo prático dessa consideração está no fato de que médicos

estadunidenses, como David Bearman e Claudia Jensen12, apontam a maconha medicinal

como uma alternativa terapêutica para o déficit de atenção e enfrentam dificuldades ao

prescrevê-la para seus pacientes.

Para dar conta dessas discussões de forma satisfatória, essa dissertação foi dividida

em quatro capítulos. No primeiro, há uma reflexão com base na reconstituição histórica da

Ritalina, discutindo, dessa forma, sua criação em laboratórios suíços e suas primeiras

utilizações clínicas, acompanhando, para tanto, anúncios veiculados nesse período que

promoviam o seu consumo. A partir da revisão bibliográfica, foi possível observar que esse

processo foi marcado pela construção progressiva da ligação entre o metilfenidato e o TDAH

enquanto um fato científico, chegando à atualidade, marcada pelo excesso de prescrições e

pela formação de bioidentidades13 (LIMA, 2005) nos portadores do transtorno.

O segundo é focado sobre o conteúdo do portal eletrônico da ABDA e nas interações

entre portadores de TDAH em um fórum presente nesse site. Esta associação é bastante

atuante no meio virtual, difundindo informações sobre a perspectiva psiquiátrica do transtorno

e defendendo tal abordagem das críticas que ela recebe. Paralelo a esse material informativo,

há um espaço de discussão em que os participantes dialogam informalmente sobre a

influência do transtorno em suas vidas. Embora grande parte das vezes utilizem um linguajar

próprio ao discurso psiquiátrico, essas pessoas não necessariamente se demonstram

completamente conformadas aos ditames médicos. A partir do contato com esses sujeitos e do

site, foi possível problematizar a concepção psiquiátrica do transtorno e ter uma melhor noção

de como os sujeitos diagnosticados se relacionam com o saber médico.

Já no terceiro momento, foi produzida uma análise dos textos sobre medicamentos

potencializadores da cognição veiculados pelo blog ―Cérebro Turbinado‖. Nesses artigos, que

abrangem também a Ritalina, foi possível verificar declarações que aderiam a critérios

capitalistas de produtividade e competitividade, sendo assim, na maior parte das vezes, o

consumo de psicofármacos associado a essas determinações sociais. Porém, essa prática não

12

Para ter acesso a declarações desses dois médicos: http://www.truthonpot.com/2013/04/01/medical-marijuana-

and-adhd-the-facts/. 13

De acordo com Lima (2005, p.14), estamos vivenciando na atualidade a passagem de uma cultura marcada

pelo sujeito psicológico, cuja identidade referia-se ao desenvolvimento dos aspectos emocionais e afetivos, para

o momento das bioidentidades, em que as subjetividades se ancoram nos padrões biológicos e predicados

corporais.

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foi pensada apenas em termos de uma docilização dos corpos em relação às exigências

disciplinares, mas como um estilo de vida farmacológico que pode até mesmo proporcionar

mais autonomia a seus usuários.

Por último, há a descrição e análise de uma experiência pessoal do pesquisador sobre

o consumo do metilfenidato para potencializar atividades cognitivas. Esse relato foi utilizado

como uma forma de questionar concepções estanques do efeito do metilfenidato e percepções

estereotipadas do perfil dos sujeitos com TDAH.

Portanto, a partir das questões comentadas acima, este trabalho procura responder à

seguinte questão: é possível que a experiência em torno dessa droga, cada vez mais

consumida e discutida, seja descrita apenas como produtora de obediência? Porém, antes de

iniciarmos estes capítulos serão recuperadas as principais etapas de confecção da pesquisa.

A construção da pesquisa

Fui aprovado no mestrado de Ciências Sociais com um pré-projeto de pesquisa que

tinha por foco analisar as relações entre o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos

Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders –DSM) da Associação de

Psiquiatria Americana (APA) e as práticas de poder-saber sobre a vida no capitalismo

contemporâneo. Eu tinha a intenção de fazer uma análise documental da edição atual desse

manual (DSM-5, 2013), atentando também para as mudanças que ocorreram entre as suas

edições. As questões que eu planejava observar eram alterações entre essas edições (como as

que tornavam os diagnósticos mais fluídos e incluíam mais pessoas), as mudanças na

abordagem teórica ou o aumento no número das categorias.

Entendia que os efeitos produzidos por esse manual de psiquiatria estão relacionados

com o que Foucault entende como biopolítica (2009), pois pensei o DSM enquanto um objeto

cultural mais amplo (ZORZANELLI, 2012), que reproduz valores do contexto em que está

inserido e, ao mesmo tempo, dissemina noções sobre o que é normal e anormal ou doença e

saúde. Isso pode ser visto no fato de que sua concepção de transtorno mental possui influência

até mesmo na formulação de políticas públicas, e estas regulam as intervenções corporais nos

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sujeitos e os esquadrinha enquanto população. O polo da anatomopolítica (FOUCAULT,

1975) poderia ser observado na capacidade do manual definir se determinada condição pode

ter acesso a serviços médicos ou não14, restringindo o alcance de tecnologias sobre o corpo

dos indivíduos. E ainda o polo da biopolítica, na função estatística que o manual exerce,

produzindo dados sobre a quantidade de pessoas diagnosticadas e possibilitando intervenções

posteriores15.

Após o projeto passar pela arguição da banca, fui alertado da abrangência dessa

pesquisa que tinha como foco um manual de mais de novecentas páginas. Já estava tendo

alguns diálogos com minha orientadora, Berenice Bento, para reformular a pesquisa e

pensávamos na possibilidade de focar em apenas um transtorno, já que, dessa forma, o

número de páginas a serem analisadas seria consideravelmente menor. Ciente de que o

trabalho proposto no pré-projeto dificilmente seria exequível, fiz preferência por focar em

apenas uma categoria que é o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

Mais precisamente, escolhi estudar um psicofármaco específico e a rede de relações que estão

ao seu redor. Dessa forma, desloquei-me do DSM como um objeto central para analisar uma

série de fatores exteriores, como a indústria farmacêutica, a história da farmacologia, as

associações de portadores de TDAH, os grupos de biohackers ou usuários de medicamentos

psiquiátricos sem prescrição médica.

Isso ocorreu apenas no final do primeiro ano de mestrado e um dos fatores

importantes para a decisão foi o fato de que consegui ter acesso à Ritalina e iria poder

consumi-la. Após ter tido contato com o medicamento e sentido a intensidade de seus efeitos,

tive uma noção diferente do que já havia pensado sobre a discussão TDAH-Ritalina. A

14

A presença da transexualidade no manual possibilita em países como os EUA que as companhias de seguro

reembolsem as terapias hormonais e em casos bastante raros as cirurgias.

15 Sobre os dois polos da biopolítica: ―Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século

XVII, em duas formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois polos de

desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos polos, o primeiro a ser

formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas

aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em

sistemas de controle eficazes e econômicos — tudo isso assegurado por procedimentos de poder que

caracterizam as disciplinas: anatomopolítica do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde,

por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser

vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a

duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos

mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população‖. (FOUCAULT,

1976, p.125).

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18

utilidade prática desse psicoativo me permitia dar conta de algumas obrigações de forma

bastante satisfatória e me fez pensar que não necessariamente essa substância deveria ser

concebida de forma negativa. Além disso, bastante influenciado por pesquisadores como

Norman Zinberg (1984), perguntava-me se seria possível esse psicoativo ser sempre

prejudicial, mesmo variando os contextos sociais, os indivíduos que os consomem ou a forma

como a substância se apresenta.

Em meio a essas experiências e reflexões, o percurso do mestrado prosseguia e

cresciam as exigências de que a dissertação fosse tomando forma. Uma dessas etapas foi a

disciplina de Seminário de Dissertação, em que era exigido a exposição sobre o

desenvolvimento da pesquisa e se haviam mudanças desde o pré-projeto. No PPGCS, é uma

etapa denominada informalmente de pré-qualificação e é preciso no final da disciplina

apresentar o projeto de pesquisa definitivo do mestrado para uma banca de avaliação. No

começo do curso, fiz uma apresentação sobre a minha pesquisa, porém nesse estágio ela ainda

tratava sobre o DSM. Foi só no momento final do seminário que escrevi um texto sobre a

Ritalina e tentei delinear as primeiras reflexões, já definindo a problemática central e que iria

entrevistar os usuários com e sem TDAH.

Essa arguição foi um dos primeiros momentos de reflexão mais aprofundada sobre

esse tema de pesquisa recém definido e houve importantes contribuições. Nessa banca, fui

criticado por um dos avaliadores pela abrangência do trabalho, que tinha como objetivo

entrevistar dois grupos de usuários. Ele argumentou que cada uma das modalidades de uso

desse medicamento implicava discussões diferenciadas e que seria bastante complicado dar

conta de forma satisfatória da amplitude dos debates. Outro membro da banca afirmou que a

Ritalina poderia produzir uma inteligência específica que poderia ser descrita como ―careta‖,

neutra ou obediente. Outra pessoa presente ressaltou a necessidade de problematizar questões

mais abrangentes, como o próprio modo de produção capitalista e a influência da indústria

farmacêutica. Nesse sentido, esse medicamento estaria relacionado com práticas produtivistas

e com fins de controle. Essas primeiras contribuições foram importantes nesse momento e me

auxiliaram a refletir sobre outras formas de consumo que não fossem marcadas por essa

lógica. Portanto, insisti nas distinções entre os usos de Ritalina com e sem TDAH e decidi

investigar se seria possível essa utilização produzir algo diferente de relações obedientes e

conformadas às expectativas sociais.

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19

As preocupações do primeiro examinador eram bastante razoáveis, tendo em vista

que no semestre seguinte tive que cursar ainda algumas disciplinas e não consegui dar conta

de fazer as entrevistas. Nesse período, havia a exigência de escrever o texto para a

qualificação e me restringi, nessa tarefa, a desenvolver a problemática e escrever ainda um

capítulo focado na história da Ritalina. Por ainda estar envolvido no último semestre com

outras disciplinas, percebi que não haveria tempo disponível para realizar as entrevistas, fazer

a transcrição das falas e analisar esses dados. Percebendo a importância da internet nesse

cenário, e com o intuito de tornar o projeto exequível, decidi aplicar um questionário em

grupos de Facebook, mas encontrei algumas dificuldades.

Busquei contato com um dos maiores grupos dessa rede social de portadores adultos

do TDAH. Havia, nesse espaço, uma frequência diária de postagens e discussões entre os

membros, que, inclusive, respondiam algumas das questões que eu estava interessado em

debater. Além disso, havia boa receptividade a trabalhos científicos sobre TDAH, já que

quando alguns pesquisadores divulgavam questionários ou solicitavam colaboradores para

entrevistas, várias pessoas demonstravam interesse em ajudar. Por causa disso, acreditei que

não teria muitos problemas para aplicar o questionário e pensei que seria propício também

utilizar algumas das discussões que já haviam acontecido no grupo. Porém, a minha proposta

foi rigidamente rejeitada pela moderação e com respaldo dos outros membros.

Antes de entrar em contato direto com o grupo, mandei uma mensagem privada para

a moderadora mais ativa, demonstrando o interesse de fazer a pesquisa. Frisei para ela que

não citaria o nome das pessoas, podendo borrar os seus nomes ou usar nominações fictícias

para garantir anonimato. Mencionei ainda que, após a aprovação dela, iria entrar em contato

com o grupo para requisitar a autorização individualmente, e me identifiquei no final como

mestrando da UFRN em ciências sociais. Após algumas horas, ela me respondeu negando a

possibilidade de autorizar a pesquisa por não saber se as pessoas gostariam de ser expostas, e

que isso seria problemático já que o grupo é bastante amplo e algumas pessoas poderiam

reconhecer os comentários das outras. Assim que li esse seu retorno, escrevi um texto

detalhando mais os procedimentos da pesquisa, prometi falar individualmente com todas as

pessoas que teriam suas falas utilizadas e que poderia cumprir qualquer exigência que elas

estabelecessem. Mencionei ainda que, se não fosse possível usar o conteúdo em si do grupo,

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20

gostaria de poder postar ao menos um questionário. Porém, não obtive mais nenhuma

resposta.

Logo após a nossa discussão, essa moderadora postou um comunicado no grupo

demonstrando a importância de ter cuidado com as pesquisas realizadas nesse espaço e que

qualquer trabalho científico feito sem autorização seria excluído e o autor banido

imediatamente. Ela argumentou ainda que não se sabe a intenção das pessoas que estão por

trás desses trabalhos e já houve casos de uma delas que quis usar o conteúdo do grupo para

dizer que a medicação não traz benefício o suficiente. Todos os comentários louvaram essa

decisão e concordaram com essas precauções, argumentando que essa proteção era sensata.

Essa reação mostra que há forte rejeição à perspectiva que desacredita a existência do TDAH

e que tece críticas a medicamentos como a Ritalina. Foi possível observar isso mais

claramente ainda no fato de que matérias com esse conteúdo também eram proibidas. Assim

acredito ainda que a recusa a minha proposta de pesquisa se deu baseada na área do

conhecimento em que ela se localiza. Inserir-se na área de Ciências Sociais parecia, aos olhos

dos membros desse grupo, apontar para uma necessária negação do TDAH e/ou para fortes

críticas ao uso da Ritalina. Contudo, essa perspectiva não é sem razão haja vista uma série de

trabalhos científicos na área das Ciências Humanas que caminham justamente nessa direção.

Portanto, embora essa experiência tenha me desestimulado um pouco, ter sido

rejeitado me proporcionou a noção de que muitos sujeitos TDAH, seja no fórum da ABDA ou

nesse espaço do Facebook, consideram desrespeitosos os questionamentos à materialidade do

transtorno e ao caráter terapêutico dos estimulantes. Isso me deixou bastante sensível quanto

aos dramas dos TDAH e tornou-me reticente a esse tipo de produção, especialmente das

Ciências Humanas, que frequentemente se posiciona sem considerar adequadamente os

próprios sujeitos. Nesse sentido, a partir do ocorrido no grupo do Facebook, eu passei a reler

essa produção teórica. Também por causa desse evento, a nova estratégia de pesquisa

consistiu em me deter num material empírico que já vinha tendo contato ao longo da pesquisa,

mas que não era o foco central: os discursos que circulavam em dois endereços eletrônicos

que, de certa forma, representam os usuários de Ritalina com e sem TDAH.

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21

CAPÍTULO I – A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA RITALINA

Embora as discussões e polêmicas em torno da Ritalina tenham se intensificado a

partir dos anos noventa e tomado consistência em meados dos anos 2000 até a atualidade, esse

medicamento possui uma trajetória que remonta ao final da primeira metade do Século XX.

Para ter uma noção mais precisa de como esse cenário marcado pelo excesso de diagnósticos

e prescrições se constituiu, pode ser elucidativo investigar as condições históricas que

possibilitaram o momento atual. Tal procedimento metodológico pode ser adequado para uma

contraposição aos discursos do saber médico sobre esse psicofármaco, como, por exemplo, o

de que a sua utilização foi desde sempre para o tratamento de TDAH16.

Uma referência importante para nos aproximarmos da trajetória do metilfenidato é o

texto Not Just Naughty: 50 Years of Stimulant Drug Advertising de Ilina Singh (2007),

pesquisadora dos aspectos sociais e éticos da neurociência e psiquiatria. Nesse artigo,

percebemos que alguns caminhos para descrever de onde uma droga psiquiátrica veio,

segundo Singh (2007), podem ser traçados a partir do acompanhamento da sua criação a nível

molecular em laboratórios, da emergência da substância no território da clínica ou, até

mesmo, nos seus anúncios e propagandas direcionadas para médicos e o público em geral17.

Nesse capítulo, tentarei delinear alguns aspectos da história da Ritalina tendo como base esses

três âmbitos mencionados pela autora. Singh posiciona os anúncios como uma parte

importante desse processo, tendo em vista que há uma escassez de informações sendo

divulgadas pela Novartis18 acerca de sua história.

16

Essa afirmação pode ser encontrada no artigo sobre o Metilfenidato da Wikipédia em inglês. De acordo com o

texto: ―Foi autorizado pela primeira vez pela FDA em 1955 para o tratamento do que era então conhecido como

hiperatividade‖. Em tradução livre. ―It was first licensed by the U.S. Food and Drug Administration (FDA) in

1955 for treating what was then known as hyperactivity‖.

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Methylphenidate#cite_note-131. 17

No Brasil e na maior parte do mundo, a propaganda de medicamentos controlados é proibida para o público

em geral, sendo restrita apenas aos profissionais de saúde que podem receitá-los. Porém, a publicidade desses

medicamentos é permitida nos Estados Unidos e na Nova Zelândia. 18

―Novartis foi criada em 1996 a partir da fusão da Ciba-Geigy e Sandoz Laboratories, ambas empresas suíças

com longas histórias. Ciba-Geiby foi formada em 1970 a partir da fusão de J.R. Geigy LTD (fundada na Basileia

em 1758) e CIBA (Fundada na Basileia em 1859). Combinando a história dos dois sócios fundidos, a história

completa da empresa alcança 250 anos‖. Em tradução livre. ―Novartis was created in 1996 from the merger of

Ciba-Geigy and Sandoz Laboratories, both Swiss companies with long histories. Ciba-Geigy was formed in 1970

by the merger of J. R. Geigy Ltd (founded in Basel in 1758) and CIBA (founded in Basel in 1859). Combining

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22

O metilfenidato foi sintetizado pela primeira vez em 1944, na Suíça, pelo químico

Leandro Panizzon, da antiga empresa CIBA (atualmente, Novartis S/A). Esse acontecimento é

precedido por um conjunto de trabalhos de outro cientista dessa mesma companhia, Max

Hartmann, que desde o começo do Século XX manipulava compostos químicos derivados da

piperidina. Ele descobriu a possibilidade de alguns desses compostos serem usados enquanto

tratamentos para doenças como a diátese do ácido diurético e, em 1924, o estudo dessas

substâncias também resultou na síntese de nikethamide, um estimulante que altera o ciclo

respiratório e que posteriormente foi deixado de lado por ser considerado perigoso. O

metilfenidato, que também é um derivado da piperidina, apareceu posteriormente a esse

conjunto de pesquisas. Foi somente em 1950 que, ao lado de Max Hartmann, Panizzon

aprimorou a síntese dessa substância e conseguiu uma patente dos EUA para começar os

testes em humanos e a preparação do medicamento. Como acontece com muitos

psicotrópicos, as suas invenções não resultam de um estudo para a cura de uma doença

específica, já que geralmente em sua descoberta molecular os usos mantêm-se em aberto

(DUPANLOUT, 2009).

O nome de Ritalina foi criado nesse período e fazia referência a um apelido da

esposa de Panizzon, que utilizava a substância como um estimulante antes de suas partidas de

tênis. Quatro anos depois, o medicamento é aprovado para tratamento de desordens

psicológicas sob esse nome fantasia de Ritalina e passa a ser comercializado na Suíça e

Alemanha. Em 1956, ocorreu a aprovação da Food and Drug Administration (FDA) e o

medicamento chegou aos Estados Unidos, fazendo grande sucesso.

Nesse período, a Ritalina era indicada para diversas condições e considerada útil para

a maioria dos diagnósticos psiquiátricos (SINGH, p.134). Seu uso era prescrito para sintomas

como depressão, cansaço e letargia, principalmente em pacientes de meia idade e idosos.

Desde o início da comercialização nos EUA até os anos setenta, é frequente nos anúncios do

medicamento a sugestão de uso para pessoas com fadiga crônica, pacientes com depressão,

auxílio para a verbalização na psicoterapia e até mesmo sujeitos esquizofrênicos. Nesse

conjunto de propagandas, nenhuma criança é retratada. Apenas adultos na meia-idade ou

velhice, frequentemente com ares de cansaço ou tristeza, mas podendo apresentar, em outro

the histories of the merger partners, the company's effective history spans 250 years‖. Fonte:

https://www.novartis.com/about-us/who-we-are/company-history. Acesso em 12 de fevereiro de 2017.

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23

quadro do anúncio, sorrisos largos e aparência de satisfação. Slogans frequentes nesse

contexto são Ritalin Sparks Energy ou Helps Brighten the Day19 e várias vezes há um texto

que promete o alívio da fadiga crônica e aprimoramento do espírito e da performance.

É nesse contexto que a CIBA anuncia a entrada do Ritonic no mercado. Esse tônico

consistia num coquetel de metilfenidato, hormônios e vitaminas. Seu uso estava relacionado à

melhora do humor, aumento da vitalidade e da condição nutricional de seus usuários, que

eram os pacientes geriátricos, de meia idade e que haviam passado pela menopausa

(MENHARD, p.35). No anúncio sobre o Ritonic foram referenciados estudos que conduziram

testes em asilos de idosos e que verificaram os seus riscos e benefícios (BARE, W. 1960;

BACHRACH, S. 195720; NATENSHON, A. L. 1958). Os resultados desses três estudos são

bastante otimistas e relatam que a grande parte dos participantes melhorou nitidamente seus

sentimentos de bem-estar e vitalidade, deixando de apresentar sintomas de fraqueza, lassitude

ou cansaço. No estudo de Wesley W. Bare há ainda um agradecimento à Ciba

Pharmaceutical Products pelas doses usadas na pesquisa. Porém, mesmo com essas

publicações, o Ritonic foi retirado do mercado pela FDA com a justificativa de que não havia

provas substanciais de que o tônico fosse tão efetivo como alegavam.

19

―Ritalina faísca energia‖ e ―Ajuda a iluminar o dia‖, em tradução livre. 20

No anúncio do Ritonic havia a informação de que esse artigo estava para ser publicado. Não encontrei

nenhuma informação sobre ele na internet.

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24

Figura 01 - Anúncio de 1959 da CIBA.

FONTE: http://www.bonkersinstitute.org/medshow/ritonic.html (Editada pelo pesquisador. Para consultar a

original, ver Anexo A).

Outro uso veiculado na época se trata de uma injeção de metilfenidato indicada para

induzir pacientes de psicoterapia à fala. A chamada Parenteral Ritalin teria como propósito

ajudar os seus consumidores a verbalizar e torná-los mais cooperativos num curto espaço de

tempo, que poderia ser tão pequeno quanto cinco minutos, segundo o seu anúncio. Essa

utilização parece estar relacionada a um período em que a psicanálise ainda ocupava uma

posição privilegiada na psiquiatria, e que as terapias com drogas deveriam disputar o lugar

com as já tradicionais. É curioso como nesse período de transição na psiquiatria, onde a

psicanálise perdeu sua hegemonia para uma vertente biológica (RUSSO & VENANCIO,

2006), esses dois paradigmas, que hoje entendemos como nitidamente opostos, imiscuíam-se

em algumas situações. Em um anúncio de 1959, há a declaração de que a Ritalina injetável

promove a verbalização do material reprimido e subconsciente21. Outro cartaz, de 1956,

21

A Ritalina Parenteral o torna mais acessível à psicoterapia por promover a verbalização do material

subconsciente reprimido. Tradução livre de ―Parenteral Ritalin renders him more accessible to psychotherapy by

promoting verbalization of repressed and subconscious material‖.

Fonte: http://www.bonkersinstitute.org/medshow/kidritdrunk.html. Acesso em 01 de janeiro de 2017.

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25

utiliza um linguajar psicanalítico, prometendo a sua eficácia no tratamento de depressão leve

a moderada em neuróticos e psicóticos22.

Sobre outros usos da Ritalina parenteral, há outra propaganda, também de 1959, que

a indica para o pós-operatório de cirurgias que envolviam barbitúricos como anestésicos,

diminuindo o efeito desses sedativos e facilitando a recuperação23. As injeções de Ritalina

foram retiradas do mercado em 1988, talvez devido ao potencial de abuso que uma dosagem

tão forte pode provocar, assim como especula Ilina Singh:

Só podemos imaginar o que uma injeção de anfetamina faria em um paciente num

consultório médico; essa forma de Ritalina parece ter sido retirada do mercado

muito rapidamente, por razões que só podemos especular. Por um lado, o potencial

de abuso seria alto. Por médicos, pacientes ou ambos?

(SINGH, 2007, p.136, em tradução livre)24

.

Entretanto, não havia uma associação com risco ou abuso em torno da droga, mas,

pelo contrário, havia uma insistente produção discursiva que retratava a Ritalina como um

medicamento inofensivo, que não poderia causar problema (WEBER, 2000). Em manuais de

química dos anos sessenta, ela era agrupada na classe dos tônicos, ao lado da cafeína, geleia

real e do extrato de malte. E em outra publicação dos anos cinquenta há a afirmação que ―A

Ritalina age com mais doçura e por mais tempo que a cafeína e as anfetaminas e não leva ao

costume‖ (DUPANLOUT, 2009). Já havia nessa época o emprego relacionado a

emagrecimento, melhoria da performance atlética e como automedicação para melhorar o

desempenho intelectual (ITABORAHY, 2009, p.62). Existiam também propagandas que

afirmavam a possibilidade de utilização por pessoas saudáveis: ―(...) segundo a recomendação

22

Ritalina é um estimulante cortical suave e mais seguro, que é particularmente útil para o tratamento de

depressões suaves e moderadas em pacientes neuróticos e psicóticos. Tradução livre de ―Ritalin is a mild, safer

cortical stimulant which is particularly ‗efficacious in the treatment of mild to moderate depressions in neurotic

and psychotic pacients‘‖ Fonte: http://prescriptiondrugs.procon.org/view.resource.php?resourceID=005745.

Acesso em 01 de janeiro de 2017; 23

Administrada imediatamente após a cirurgia, Ritalina parenteral rapidamente desperta os pacientes

anestesiados, diminuindo os efeitos de barbitúricos, complicações pós-operatórias e minimizando a necessidade

de estender o uso de internação. Tradução livre de ―Administered immediately after surgery, parenteral Ritalin

quickly arouses your anesthetized patients decreasing barbiturate effects and postoperative complications and

minimizing the need for extended recovery-room care‖. Fonte: https://www.amphetamines.org/methylphenidate/ritalin.html. Acesso em 01 de janeiro de 2017. 24

One can only imagine what a shot of amphetamine would do to a patient in the doctor´s office; this form of

Ritalin appears to have been taken off the market very quickly, for reasons about which we can only speculate.

For one, abuse potential would be high. By doctors or patients or both?

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da época [anos 50], os sujeitos saudáveis também podiam aproveitar da Ritalina: ‗quando

você quiser estar em plena forma no dia seguinte de ter passado uma noite acordado,

refletindo‘.‖ (Weber, 2000 apud ITAPORAHY, 2009).

Havia claramente uma ligação entre o uso da substância e o aprimoramento do estilo

de vida ou aparência em seus usuários (SINGH, 2007). Por mais que posteriormente haja a

construção do estreitamento entre o metilfenidato e doenças objetivas com fundamentação

científica, nesse primeiro momento as indicações são bastantes vagas e imprecisas. Ao invés

da descrição de efeitos precisos como ―[...] melhora a atenção e a concentração, além de

reduzir comportamento impulsivo [...]‖ (vide bula da Ritalina no Anexo B), vemos com

frequência frases como ―aprimoramento do comportamento e da maneabilidade25‖.

Por exemplo, no anúncio abaixo, de 1957, vemos a indicação para o aprimoramento

(improve) dos espíritos e performance26. Mas também, no mesmo texto, a Ritalina é indicada

para os apáticos (apathetic) e mal-humorados (moody).

25

―[...] improvement in behaviour and manegeability‖. 26

Fonte da imagem: http://static4.businessinsider.com/image/52af54e5eab8ea322643dd6a-

960/ritalin%20depression.jpg. Acesso em 01 de janeiro de 2017.

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27

Figura 02 - Anúncio de 1957 da CIBA

Fonte: http://static4.businessinsider.com/image/52af54e5eab8ea322643dd6a-

960/ritalin%20depression.jpg. Acesso em 01 de janeiro de 2017.

O uso cosmético (KRAMER, 1994) desse psicofármaco, ou seja, sem ligação direta

com um transtorno psiquiátrico, não se deu pela subversão das orientações do dispositivo

médico. Foi determinado por este. É possível observar essas questões claramente nas suas

promessas de energizante para o espírito (―boosts the spirit‖), alívio para a fadiga física

(―relieves physical fatigue‖), além do estimulante para idosos apáticos ou mal-humorados e

até mesmo numa das primeiras utilizações de sua história: a ação tonificante do comprimido

para as partidas de tênis de Margarite, esposa do primeiro cientista a sintetizar o

metilfenidato.

Portanto essa droga que hoje em dia é classificada ao lado da cocaína pela Drug

Enforcement Administration (DEA)27 e que portá-la sem prescrição médica em países como o

27

Informações da DEA sobre o metilfenidato podem ser vistas em:

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28

Reino Unido pode levar a uma prisão de cinco anos ou mais28, já foi consumida sem muito

controle e sem nenhuma associação com o TDAH. A mesma forma de consumo que era

sugerida nas propagandas da Novartis nos anos cinquenta, hoje em dia é condenada e implica

em punição jurídica dos usuários em vários países. De acordo com Dupanlout (2009, p.122), é

―o decreto médico [que] traça a fronteira entre um melhoramento químico de si legítimo e

ilegítimo29‖.

A construção da aliança entre a Ritalina e o TDAH enquanto um fato científico

precisaria ainda de alguns anos para ser consolidada. Esse processo não aconteceu de forma

repentina, como a partir de alguma descoberta ou fruto de uma pesquisa específica, mas

demandou o envolvimento ativo de diversos atores que não necessariamente fazem parte do

mundo da ciência.

1.1 Metilfenidato e comportamento infantil

Apenas em 1963, quase dez anos após as primeiras vendas, a CIBA anuncia que a

Ritalina também pode ser prescrita para crianças com problemas de comportamento

(MENHARD, 2006, p.35). Ao mesmo tempo, essa não era a sua principal utilização como é

possível perceber nos anúncios dessa década, que não retratam crianças. Durante os anos 60,

pesquisadores começaram a pensar na Ritalina como um tratamento para a síndrome da

criança hiperativa, reação hipercinética, desordem do impulso hipercinético ou hiperatividade,

nomenclaturas antigas para TDAH. (MENHARD, 2006, p.36). Segundo Dupanloup (2004),

entre os anos 50 e 70 foram publicados nos EUA centenas de estudos sobre que efeitos gerais

ou específicos os estimulantes podem ter nos comportamentos infantis30. Principalmente entre

1957 e 1964 foram publicadas várias pesquisas sobre o uso de metilfenidato em crianças com

distúrbios de comportamento.

https://www.dea.gov/druginfo/concern_meth.shtml. 28

A legislação do Reino Unido sobre essa questão pode ser vista em:

http://www.legislation.gov.uk/ukpga/1971/38/schedule/2. 29

No original: ―Le décret médical trace la frontière entre une amélioration chimique de soi légitime et illégitme‖. 30

―Entre 1950 e 1970, segundo Loney (1980, 267), são publicados nos Estados Unidos centenas de estudos

sobre o efeito gerais e específicos dos estimulantes (principalmente a Ritalina e a Dexedrina) no comportamento

infantil‖ (p.128) (Tradução livre). Original: ―Entre 1950 et 1970, selon Loney (1980, 267), des centaines

d‘études portant sur les effets généraux ou spécifiques que ces stimulants (principalement la Ritaline et la

Dexedrine) peuvent avoir sur les comportements infantiles sont publiées aux USA‖ (p.128)

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29

Porém, o uso de estimulantes para controlar crianças com problemas

comportamentais é uma prática que antecede a Ritalina em algumas décadas, com seus

primeiros experimentos datando o final dos anos trinta. Um estudo pioneiro foi o do psiquiatra

Charley Bradley (1937), que administrou sulfato de benzedrina em crianças com problemas

comportamentais num hospital chamado Emma Pendleton Bradley Home em Rohde Island,

nos Estados Unidos. Quando ocupou o cargo de diretor desse instituto, Bradley conduziu uma

série de estudos acerca dos cérebros das crianças, sendo que alguns dos exames realizados

deixavam os seus pacientes com fortes dores de cabeça. Tentando aliviar esses efeitos

colaterais, Bradley prescreveu a benzedrina e percebeu efeitos inesperados. A droga não

aliviou as dores como era pensado, mas fez com que a escola se tornasse mais fácil para as

crianças, havendo relatos das professoras e enfermeiras de que elas melhoraram tanto no

comportamento quanto no desempenho escolar. Após a ingestão dos comprimidos, elas

mesmas começaram a chamar o medicamento de ―pílulas aritméticas‖ como referência ao

melhoramento nos estudos (STROHL, 2011).

Nessa época, tranquilizantes menores e antidepressivos eram as drogas mais

utilizadas para problemas de comportamento em crianças. Existem algumas propagandas de

tranquilizantes no American Journal of Psychiatry nas décadas de cinquenta e sessenta, e já

nesse período esses fármacos podiam ser prescritos para esse tipo de diagnóstico. Segundo

Singh:

Crianças ansiosas, crianças hiperativas e crianças emocionalmente perturbadas

foram entidades clínicas bem estabelecidas no final dos anos cinquenta. Distúrbio

emocional tem sido desde muito tempo uma descrição clínica ambígua de uma

criança com grande variedade de sintomas comportamentais, cuja etiologia era

largamente desconhecida. (SINGH, 2007, p.137, tradução livre)31

.

31

―Anxious children, hyperactive children, and emotionally disturbed children were well estabilished clinical

entities by the late 1950´s […] Emotional disturbance had long been an ambiguous clinical description of a child

with a wide variety of behavioral symptoms whose etiology was largely unknown‖

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30

Figura 03 - Equanil

Equanil era um ansiolítico e está sendo indicado nesse anúncio de 1959 para ―a criança que é diferente‖. No

texto há a afirmação de que pode ―ajudar a criança – e seus pais – a aproveitar uma vida mais normal‖.

Fonte: http://www.bonkersinstitute.org/medshow/different.html, acesso em 01 de janeiro de 2017.

Assim, Bradley apontou pela primeira vez a possibilidade de estimulantes servirem

para o mesmo propósito que outros psicofármacos, porém seu estudo foi ignorado por cerca

de vinte e cinco anos pelo fato de tranquilizantes possuírem uma resposta mais precisa e

reproduzível (STROHL, 2011). Quando pôde ser recuperado, provou-se como um importante

precursor das pesquisas sobre anfetaminas (como o metilfenidato) e seu uso em condições

como o TDAH. Foi somente em 1957 que Maurice W. Laufer, sucessor de Bradley no

instituto de Rohde Island, retomou esses estudos e recomendou explicitamente o uso de

Ritalina para crianças com síndrome hipercinética (DUPANLOUT, 2009).

Nos anos que sucedem essas duas publicações, há uma vasta produção de artigos e

pesquisas sendo realizadas que investigam os transtornos de comportamento em crianças (as

nomenclaturas adequadas, etiologias, formas de diagnóstico) e se aprofundam no tratamento

com estimulantes. Até o final dos anos sessenta, esses transtornos eram descritos por pelo

menos 38 terminologias diferentes, como ―síndrome hipercinética‖, ―hiperatividade‖,

―disfunção cerebral mínima‖, ―lesão cerebral mínima‖, etc. Essa proliferação de estudos pode

ser explicada pela aprovação da entrada da Ritalina nos EUA e pelo consecutivo interesse da

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31

CIBA em encontrar novas utilizações para seu produto. Sobre esse assunto o psiquiatra

Lawrence H. Diller afirma que:

A pesquisa sobre Ritalina abasteceu várias bolsas e carreiras acadêmicas nos anos

sessenta. E diferentemente da anfetamina, a Ritalina estava sobre a patente da Ciba-

Geigy. Essa fórmula em particular não poderia ser copiada por outros fabricantes,

portanto a empresa gastou dinheiro em propaganda e a promoveu para a profissão

médica e financiou mais estudos que suportavam esse uso.32

. (DILLER, 1998,

tradução livre).

Esse conjunto de pesquisas culmina com a publicação, em 1966, pelo serviço público

de saúde dos Estados Unidos, do documento intitulado “Minimal Brain Dysfunction (MBD)

in Children: Terminology and Identification” de autoria de Samuel Clements. Esse texto de

trinta páginas parecia ter como intenção unir um conjunto de referências sobre MBD e

fundamentar cientificamente essa doença enquanto uma entidade diagnóstica. São citados

cento e vinte e quatro artigos que foram escritos desde 1921 a 1964 e havia uma tentativa de

construir uma classificação mais homogênea e precisa desse transtorno.

O documento descreve duas abordagens diferentes acerca dos transtornos infantis

representados pela oposição entre organicidade e ambiente. O primeiro está relacionado com

variações genéticas, irregularidades bioquímicas ou anormalidades no sistema nervoso

central. A segunda corrente considera as relações interpessoais dos indivíduos, fatores

socioeconômicos e culturais e traumas psicológicos. Há nesse texto uma bipolarização entre a

psiquiatria psicanalítica e a biológica, que no período ainda estava em embate, com

preponderância da psicanálise.

Embora haja a tentativa de conciliação entre as duas perspectivas, é perceptível em

outros trechos a tomada de posição pelo tratamento medicamentoso e pela teoria biológica. É

citada, por exemplo, a insatisfação dos médicos com abordagens puramente psicogênicas e

explicações interpessoais para qualquer comportamento desorganizado (CLEMENTS, 1966,

p.1). Há também a reclamação de que a organicidade é considerada na sintomatologia, mas

frequentemente ignorada na definição do diagnóstico e no tratamento (CLEMENTS, 1966,

32

Ritalin research fueled many grants and academic careers in the 1960´s. And unlike amphetamine, Ritalin was

under Ciba-Geigy´s patent. This particular formulation could not be copied by other manufacturers, and

therefore the company spent money to advertise and promote it to the medical profession – and to fund more

studies that supported its use.

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32

p.6). Esse relatório teve efeitos importantes na legitimação do transtorno, passando a ser

referenciado em alguns anúncios da Ritalina, que apontavam o reconhecimento estatal de sua

existência33.

O impacto alcançou a publicação da segunda edição do DSM (1968), que incluiu

pela primeira vez a categoria de Reação Hipercinética da Infância. Porém, a escolha dessa

nomenclatura foi marcada pela adesão à corrente teórica da psicanálise através do termo

Reação. Diferentemente dessas outras publicações que se baseavam numa causalidade

orgânica, o texto do DSM dava margem para a avaliação em fatores psicológicos e ambientais

(LIMA, 2005, p.72). Havia até mesmo a afirmação que se o comportamento fosse causado por

fatores cerebrais, deveria ser classificado em outro diagnóstico34. A terminologia de disfunção

cerebral mínima não se encaixava bem nesse raciocínio, tendo em vista que localizava

etiologicamente o cérebro para explicar o comportamento desviante das crianças.

Ao mesmo tempo, os oficiais do sistema público de saúde estadunidense passam a

fazer campanhas sobre o MDB entre o público médico e geral, distribuindo panfletos e

exibindo pequenos filmes sobre como reconhecer, avaliar e tratar essa doença (SINGH, 2007).

Os anúncios da Ciba desse período, no final dos anos 60, sofrem mudanças e passam a retratar

pela primeira vez crianças. Os textos e imagens dessas propagandas estão centrados, a partir

de então, a convencer os médicos da necessidade do diagnóstico. Eles parecem ter um

conteúdo educativo e se contrapor ao discurso que defende a MDB como um mito da

medicina, como é possível ver na imagem abaixo.

33

Como em um anúncio de 1971: ―Essa síndrome – hoje facilmente diagnosticada através das histórias dos

pacientes, sinais neurológicos e testes psicométricos – tem sido classificada por um painel de especialistas

reunidos pelo Departamento de Saúde, Educação e Bem Estar dos Estados Unidos como Disfunção Cerebral

Mínima, ou DCM‖. (Em tradução livre) Original: ―This Syndrome – now readily diagnosed through patient

histories, neurologic signs, and psychometric testing – has been classified by an expert panel convened by the

United States Department of Health, Education, and Welfare as Minimal Brain Dysfunction, or MDB‖. Fonte do

anúncio: http://www.bonkersinstitute.org/medshow/myth.html. Acesso em 01 de Janeiro de 2017. 34

―Se esse comportamento é causado por um dano cerebral orgânico, deve ser diagnosticado apropriadamente

sob uma síndrome orgânica cerebral e não psicótica‖. (Em tradução livre) Original: ―If this behavior is caused

by organic brain damage, it should be diagnosed under the appropriate non-psychotic organic brain syndrome‖

(APA, 1968, p.50).

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33

Figura 04 - Anúncio da CIBA de 1971

FONTE: http://www.bonkersinstitute.org/medshow/myth.html.

Esse anúncio é um dos primeiros a representar o estereótipo da criança com

problemas de comportamento cujo tratamento indicado é a Ritalina. Esse tipo de imagem

passa a ser veiculada e continua por várias décadas, chegando até a atualidade. Nela, a figura

retratada é sempre um menino que parece estar fora de controle, podendo aparecer gritando,

pulando ou brigando com algum colega. A particularidade da década de setenta é que todos os

anúncios encontrados dialogam com o médico, tentando convencê-los da objetividade da

disfunção cerebral mínima. São usadas estratégias argumentativas que evocam experiências

clínicas em comum desses profissionais, como é descrito no texto do anúncio acima: ―Qual

profissional médico que nunca foi, uma hora ou outra, chamado para examinar uma criança

hipercinética, impulsiva e excitada?‖35. Essa necessidade de persuasão desaparece

significativamente nos anos oitenta.

Paralelo ao progresso da aliança entre metilfenidato e controle infantil, algumas

críticas e polêmicas começaram a aparecer. Portais de notícias de amplo alcance nos EUA

publicaram matérias alarmistas, denunciando o uso de estimulantes semelhantes à anfetamina

em crianças. Podemos citar as publicações da revista Time ―Too many drugs‖, em 1961, e

35

No original: ―What medical practitioner has not, at one time or another, been called upon to examine an

impulsive, excitable hyperkinetic child?‖.

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34

―Pepills for students‖, em 1970, e a do Washington Post ―Omaha Pupils Given ‗Behavior

Drugs‖, em 1971. De acordo com Diller (1998), o clima político antiautoritário dos anos

setenta também contribuiu para o aumento da temperatura acerca do uso da Ritalina36.

Essa série de críticas resultou em mais uma participação do governo estadunidense

nas polêmicas sobre a Ritalina. Em 1971, acontece uma audiência pública sobre o uso de

drogas modificadoras do comportamento em crianças, denominada de ―Use of behavior

modification drugs on gramar school children‖. Nenhuma ação formal foi tomada após as

audiências.

Foi também nesse período que houve a publicação dos primeiros livros criticando

abertamente a medicalização do comportamento desviante nas crianças através da Ritalina.

Em 1975, Peter Schrag e Diane Divoky lançam The Myth of the Hyperactive Child, and Other

Means of Child Control, inaugurando um processo de críticas sistemáticas ao consumo

desenfreado de metilfenidato. Nesse mesmo ano foi publicado o primeiro livro que analisou o

TDAH numa perspectiva sociológica pelo norte-americano Peter Conrad, cujo título é

Identifying Hyperactive Children: The Medicalization of Deviant Behavior. Nesse estudo

pioneiro, Conrad demonstra que, com o surgimento desse diagnóstico nas crianças, há o

deslocamento entre o que era considerada desobediência na sala de aula para um problema

médico. Posteriormente esse sociólogo se tornou um dos maiores especialistas nos estudos

sobre medicalização, pesquisando os processos em que várias outras condições como

alcoolismo, delinquência ou homossexualidade tornaram-se questões reguladas pela medicina

e como esse saber tornou-se uma instância de controle social.

Um ano após esses livros surgirem, o psiquiatra Roger Freeman participa das

discussões públicas através de seu texto Minimal Brain Dysfunction, Hyperactivity, and

Learning Disorders: Epidemic or Episode?. Freeman (1976) atenta para o fato de que o

suporte massivo de pais frustrados, de profissionais, do governo e da indústria farmacêutica,

produziu uma epidemia de MBD em proporções alarmantes. Outras abordagens, que se

diferenciavam da perspectiva neurológica, explicavam o aumento de comportamentos de

36

―O clima cultural no começo dos anos setenta também colaborou para aumentar a temperatura em torno da

questão do uso da Ritalina. Os espíritos anti-autoritários dos anos sessenta encorajaram a propagação de teorias

‗não repressivas‘ do desenvolvimento das crianças e da educação‖. (Em tradução livre) Original: ―The cultural

climate in the early 1970´s also helped raise the temperature around the issue of Ritalin use. The

antiauthoritarian spirits of the sixties encouraged the spread of ‗nonrepressive‘ theories of child development and

education […]‖ (DILLER, 1998)

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35

desatenção e hiperatividade a partir de mudanças culturais na contemporaneidade. Gerald

Block, por exemplo, publica um texto em 1977 associando esses sintomas com as enormes

mudanças que aconteceram no último século. Block parece ter influenciado o famoso livro

Ritalin Nation de Richard DeGrandpre (2000), que defende a tese de que a epidemia de

TDAH é resultado de questões sociais próprias de sociedades como a estadunidense e sua

obsessão pela performance e competição.

Porém, mesmo com essas oposições claras ao enlace entre a Ritalina e o TDAH, essa

ligação se tornou com o passar dos anos mais difícil de ser dissociada. Um conjunto de

pesquisas no final dos anos setenta, representadas principalmente pela figura de Virginia

Douglas, produziram uma reformulação no conceito de reação hipercinética. A partir desse

momento, há um deslocamento dos sintomas de hiperatividade para uma ênfase nas

dificuldades de atenção e no controle dos impulsos. Essa mudança de foco foi fundamental

para que na terceira edição do DSM (1980), ocorresse a mudança na nomenclatura para

―distúrbio de déficit de atenção (DDA)‖, que incluía um subtipo com e outro sem

hiperatividade (LIMA, 2005).

Essa alteração garantiu mais especificidade à entidade diagnóstica, podendo ser

diferenciada de outros transtornos da infância que também tinham como sintoma a

hiperatividade, como o autismo e ansiedade. Ao mesmo tempo, foi possível incluir outras

inúmeras crianças que não apresentavam a hiperatividade e até mesmo facilitou a

incorporação de adultos no transtorno. E foi após algumas críticas ao destaque dado à atenção,

que a nomenclatura atual foi adotada na revisão da terceira edição do DSM (1987):

―transtorno do déficit de desatenção/hiperatividade‖. Segundo Diller (1998), foi a partir desse

ponto que o TDAH se tornou inextricavelmente ligado à Ritalina. Dupanlout parece concordar

com Diller quando afirma que: ―Depois dos anos 80, um arsenal de estudos e publicações

foram implantados para desarmar as crenças e resistências suscitadas contra o uso de um

derivado de anfetamina em crianças‖ 37 (DUPANLOUT, p.140, tradução livre).

Esse cenário dificultou a aparição de críticas mais consistentes à medicalização da

infância, mas favoreceu um fenômeno oposto: a autoidentificação de sujeitos com o TDAH e

a construção política de uma identidade em torno da doença. Esse fenômeno, que é bastante

recente, é visto de forma exemplar na criação de associações de pais e portadores de TDAH.

37

Depuis les années 80, un arsenal d‘études et de publication a été déployé pour désamorcer les craintes et les

résistances que suscite l‘usage d‘un dérivé d‘amphétamine auprès des enfants (p.140, tradução livre).

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36

Em 1987 foi formada, nos EUA, a primeira organização com esse propósito, denominada de

Children and Adults with Attention Deficit Disorders38 (CHADD), que, em 1993, já havia

crescido bastante o seu número de membros, abrindo várias filiais ao redor do país (DILLER,

1998). Essa associação é muito atuante no território norte-americano, fornecendo apoio às

famílias, disseminando informações que facilitam o diagnóstico e tratamento, combatendo as

críticas ao TDAH, financiando pesquisas, em suma, configurando-se como um novo sujeito

político de muita importância no cenário de disputa em torno da Ritalina e do TDAH.

O metilfenidato é uma substância que ao longo de sua história sofreu defesas e

oposições muito fortes. Ao mesmo tempo em que há uma grande suspeita em torno de seu

uso, o discurso da medicina, aliado à indústria farmacêutica, construiu um regime de verdade

em seu entorno que o legitimou e protegeu de qualquer limitação significativa. O Estado, seja

norte-americano ou de outros países, frequentemente se subordinou aos imperativos da

medicina e contribuiu para a hegemonia de um paradigma ―médico-legal‖. Isso pode ser

pensado como resultado do crescimento de uma forte medicalização em nossa sociedade, em

que progressivamente a medicina passa a assumir um papel de regulação social que antes era

exercido pela igreja ou pela lei (AGUIAR, 2004).

Nestas primeiras décadas de comercialização já haviam ocorrido várias

manifestações de descontentamento na esfera pública em relação ao consumo do

medicamento. Porém, a partir dos anos noventa, essas disputas tornam-se mais acaloradas e

surgem meios mais nítidos para compreender o crescimento nas vendas. Após esse período, o

consumo de Ritalina só aumentou nos Estados Unidos, e começou a chegar a outros países,

como o Brasil em 1998. Esses fatores modificam significativamente o cenário, abrindo

caminho para o aparecimento de novas críticas à existência do transtorno, mas também para a

organização coletiva de sujeitos que se autoidentificam como portadores de TDAH.

38

Foi criada com o nome de Children with Attention Deficit Disorders e em 1993 muda a nomenclatura para

também incluir adultos.

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37

1.2 Discussões em torno da obediência

Nas discussões atuais sobre o metilfenidato são frequentes referências às estatísticas

que fundamentam a existência de uma epidemia de TDAH e a difusão do uso dessa droga. É

raro encontrar notícias, artigos científicos ou relatórios que não fazem uso desse artifício, pois

o crescimento gigantesco nos diagnósticos e vendas de Ritalina é expresso em dados que

impressionam. Ao contrário dos períodos anteriores, que não dispunham de dados confiáveis

em âmbitos nacionais (DILLER, 1998), a partir dos anos noventa e, principalmente na virada

do século, esses dados alarmantes vieram à tona.

Segundo o relatório internacional de uso de narcóticos da ONU (2008, apud

ITABORAHY, 2009), a produção mundial de metilfenidato passou de 2,8 toneladas, em

1990, para 19,1 toneladas, em 1999, o que representa um aumento de mais de 580%39. Já em

2004, chegou a 33,4 toneladas; em 2005, a 28,8 toneladas, e quase 38 toneladas produzidas

em 2006. Este crescimento da produção mundial, de 1990 a 2006, consiste em um aumento de

mais de 1.200% (ITABORAHY, 2009). Até esse período, 82,2%, de toda essa quantidade,

eram consumidos nos EUA. Nesse país, a produção cresceu 700 % entre 1990 e 1998 e quase

cinco milhões de pessoas – a maioria crianças – usavam o fármaco (DILLER, 1998).

No Brasil, a produção do metilfenidato passou de 40 kg, em 2002, para 226 kg, em

2006, ou seja, entre esses anos, a produção nacional cresceu 465% (ITABORAHY, 2009). O

número de caixas vendidas teve um aumento de 1.000 unidades, em 2000, para 2.000.000, em

2010. Esse nível de compra fez do Brasil o segundo maior consumidor desse medicamento no

mundo, ficando atrás apenas dos EUA, de acordo com o Conselho Federal de Psicologia

(2011). Segundo um relatório da ANVISA (2012, p.10), ―No ano de 2011, o gasto direto total

estimado das famílias brasileiras com a aquisição de metilfenidato foi de aproximadamente

R$ 28,5 milhões [...]‖.

39

Lawrence Diller também demonstra esses dados em outros anos da década de noventa:

―A partir de 1991, no entanto, a produção de Ritalina aumentou acentuadamente, e a produção tem crescido

significativamente todo ano desde então. A quantidade de Ritalina produzida em 1993 foi 5,110 kg e em 1996 a

cota foi de 11, 775 kg‖. (Em tradução livre) Original: ―Beginning in 1991, however, the production of Ritalin

rose sharply, and production has grown significantly every year since. The amount of Ritalin produced in 1993

was 5, 110 kilograms, and for 1996 the quota was 11, 775 kilos‖ (DILLER, 1998).

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38

Esses números expressam um cenário, que a partir desse período, estabeleceu-se no

Brasil e no mundo em torno da Ritalina. Se foi difícil constatar a epidemia de TDAH no

começo dos anos noventa, na atualidade essas questões se tornaram mais claras. Porém, há

ainda pesquisadores que defendem a legitimidade dessa quantidade de diagnósticos e vendas

do medicamento. De acordo com a versão oficial da psiquiatria, o TDAH é subdiagnosticado

no Brasil e vários portadores do transtorno continuam sem passar pelo tratamento. Nesse

sentido, defendem que as preocupações pelo excesso de uso de estimulantes carecem de base

científica, sendo necessárias mais campanhas educativas para identificar os indivíduos com

TDAH não tratados no Brasil (MATTOS, ROHDE & POLANCZYK, 2012). Essa tese é

adotada pelas associações de TDAH e se encontra frequentemente nas notícias sobre o

assunto. Portanto, mesmo com o crescimento das vendas, é possível constatar que existe

atualmente um amplo cenário de disputa em torno da legitimidade do transtorno de déficit de

atenção e de seu tratamento com Ritalina.

Em suas pesquisas mais recentes sobre a globalização do TDAH, Peter Conrad

(2014) defende que dois fenômenos facilitaram essas mudanças significativas no número de

diagnósticos e vendas do medicamento nas últimas duas ou três décadas: o advento da internet

e dos grupos de pais e portadores. O uso popularizado da internet causou mudanças claras no

acesso à informação sobre doenças e terapêuticas. Pesquisas sobre saúde são um dos assuntos

mais procurados em sites de busca como o Google e muitas pessoas fazem com frequência

autodiagnósticos a partir de conteúdos encontrados na rede. Segundo a antropóloga Maria

Elisa Máximo, esse site de busca ―constitui-se como o canal por excelência para a procura de

respostas para problemas de saúde, construção de diagnósticos e para a pesquisa de possíveis

tratamentos e/ou soluções‖ (2015, p.5). Isso não é diferente com as doenças psiquiátricas ou

mais especificamente com o TDAH. A facilidade do acesso à informação e a testes virtuais

que diagnosticam a presença do transtorno podem ser considerados fatores que contribuíram

para o crescimento dos diagnósticos.

Ao mesmo tempo, as associações de pais e portadores se tornaram um aspecto

bastante relevante no cenário sobre a Ritalina e o TDAH. Esses grupos representam uma

virada importante na projeção pública do déficit de atenção e na autoidentificação de seus

portadores. Ao invés de uma doença que tem na figura do médico a principal autoridade ou

condição biológica fictícia para interesse da psiquiatria ou indústria, o TDAH torna-se cada

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39

vez mais uma identidade política que demandam direitos40. Essa forma de organização

coletiva estruturada em torno de uma doença é um fenômeno recente, mas que já formou

grupos em torno de condições como o autismo, bipolaridade, AIDS ou dislexia. O

antropólogo estadunidense Paul Rabinow, analisando o surgimento da nova genética, teoriza

sobre essas questões a partir do conceito de biossocialidade. Ele afirma que, com as

transformações nos saberes e tecnologias da vida, há uma forte influência sobre as dinâmicas

socioculturais e a autopercepção dos indivíduos. Nesse sentido, surge a criação de identidades

e grupos fundamentados em condições biológicas.

Desde a formação da CHADD, as pessoas com TDAH passaram a exercer uma

influência mais organizada na opinião pública. Essas associações têm como objetivo produzir

informação acessível sobre o déficit de atenção, oferecer diversas formas de apoio aos

portadores e influenciar a criação de políticas públicas. Elas se tornaram uma importante força

política no cenário de disputa sobre a Ritalina e o TDAH a partir dos anos noventa, e a sua

influência cresceu cada vez mais. Atualmente, os sites das organizações de portadores

geralmente são os principais meios de informação sobre o déficit de atenção na internet,

apresentando textos bastante didáticos e testes que oferecem um pré-diagnóstico. Segundo

CONRAD (2014), estes grupos alteraram dramaticamente o entendimento, aceitação e

tratamento de TDAH em vários países (2014, p.38). A maior parte deles atua principalmente

em meio virtual e se configuram em importante fonte de divulgação do transtorno e um dos

principais canais de disseminação da concepção neurológica do TDAH em diferentes países.

Portanto, tanto a facilidade de acesso e distribuição de informação propiciada pela internet,

quanto o engajamento coletivo de associações foram aspectos importantes a partir desse

período. Que, inclusive, confluíram em um mesmo sentido, tendo em vista que as associações

atuam principalmente em âmbito virtual.

Nesse sentido, uma simples busca no Google sobre o tema pode proporcionar alguma

noção da intensa mobilização que há entre diferentes grupos para emitir opiniões sobre TDAH

e o uso de Ritalina. Porém, nesse contato inicial, os resultados talvez exprimam questões que

aparentemente não possuem uma conexão clara, mostrando, de fato, a diversidade do uso e

40

As associações de portadores de TDAH se engajam principalmente para solicitar atendimento educacional

diferenciado. A ABDA, por exemplo, divulga alguns direitos dessas pessoas, como o de ter 60 minutos

adicionais na prova do Enem. E publica também textos e vídeos demandando a aprovação de projetos de leis em

âmbito nacional que beneficiariam os portadores do transtorno. O site dessa associação tem uma aba específica

sobre essas questões: http://www.tdah.org.br/br/sobre-tdah/legislacao.html. Acesso em 12 de fevereiro de 2017.

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indicações em torno da Ritalina. Encontramos nos primeiros resultados sítios que tratam de

uma patologia mental, enumerando as suas principais características e formas de tratamento41.

Baixando um pouco o cursor do mouse verificamos referências ao contexto escolar e crianças

que são inquietas nesse ambiente42, e logo após notícias que retratam drogas capazes de

ameaçar o futuro da humanidade43. Ao passarmos para a segunda página da pesquisa, nos

deparamos com manchetes que sugerem a existência de substâncias capazes de produzir

inteligência para quem as ingerir44, e também que essa droga pode produzir milagres45. Há

ainda uma comparação entre as formas de educar crianças nos Estados Unidos e na França46 e

uma estatística que afirma o aumento de 800% no consumo de Ritalina no Brasil em 10

anos47. Portanto, vamos de sinapses de células neurotransmissoras para crianças sendo

desobedientes na escola, passando por drogas que são ao mesmo tempo capazes de destruir o

futuro, produzir inteligência, milagres e que sofreram um imenso aumento em seu consumo.

Tentarei nessa sessão delinear algumas conexões entre essa confusa rede de atores e de

disputas.

Desde principalmente os anos 70 até a atualidade vários livros foram publicados

contestando a visão psiquiátrica hegemônica em torno do TDAH e de seu tratamento

medicamentoso (BREGGIN, 2001, 2002; CONRAD, 1976, 1980, 2004; DILLER, 1998;

DEGRANDPRE, 2000; SCHRAG & DIVOSKY, 1975). Existem diferentes abordagens nesse

conjunto de textos, que vão desde a completa negação da existência desse transtorno a

indicações de tratamento que não passam pelo uso de fármacos. São feitas frequentemente

críticas bastante incisivas e comumente há a afirmação que está ocorrendo um tipo de

patologização indevida de comportamentos que são característicos de crianças, que estão

sendo transformados em uma condição médica passível de ser medicalizada. Para que as

crianças se tornem mais obedientes, principalmente no contexto escolar, os médicos estão

prescrevendo drogas que induzem um comportamento bem ajustado para esse ambiente. Por

desconsiderarem fatores pedagógicos que influenciam no rendimento escolar e interesse dos

41

www.tdah.org.br/sobre-tdah/tratamento.html 42

drauziovarella.com. br/.../ritalina-contra-a-inquietacao-na-vida-escolar/ 43

http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/08/05/ritalina-e-os-riscos-de-um-genocidio-do-futuro 44

http://www.gabaritofinal.com.br/2014/08/ritalina-droga-dos-concurseiros-conheca.html 45

http://www.tdah-reconstruindoavida.com.br/2011/02/ritalina-faz-milagres.html 46

http://equilibrando.me/2013/05/16/por-que-as-criancas-francesas-nao-tem-deficit-de-atencao/ 47

http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/08/entenda-os-motivos-para-o-aumento-de-800-no-uso-de-

ritalina-no-pais-4572982.html

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estudantes, pais e professores estão pressionando psiquiatras para medicar esses jovens que

poderiam se adaptar à escola através de outras formas. Em vários momentos, esse grupo de

textos apresenta comparações entre o metilfenidato e outros estimulantes como a cocaína e

anfetamina, demonstrando a semelhança entre essas substâncias e aparentemente

argumentando pela necessidade do combate frente a todas elas.

Um dos maiores opositores ao TDAH é o psicólogo estadunidense Peter Breggin,

que foi considerado pelo New York Times o mais conhecido crítico da existência desse

transtorno nos EUA48. Desde o começo dos anos noventa, ele tem dado entrevistas, escrito

artigos e se envolvido em polêmicas, contestando a validade científica dessa doença e

argumentando que não existem testes laboratoriais ou exames que atestem a existência desse

déficit. Escreveu Talking Back to Ritalin (2001) e The Ritalin Factbook (2002), onde afirma

que as crianças diagnosticadas necessitam de melhor instrução e disciplina, e que a Ritalina

pode produzir mau funcionamento do cérebro.

Breggin, junto ao neurologista Fred Baughman, prestou declarações no congresso

dos EUA contra o uso abusivo de metilfenidato. Isso se deu no contexto de uma série de ações

judiciais coletivas no ano de 2000, que acusavam a Novartis e a Associação Americana de

Psiquiatria por criarem um mercado lucrativo em torno do déficit de atenção e de seu

tratamento medicamentoso. Apesar da ampla participação desses dois pesquisadores, tecendo

fortes críticas contra a Ritalina, as ações judiciais foram rejeitadas até o fim de 2002.

Outro importante intelectual que se opôs ao discurso oficial sobre a Ritalina e o TDAH

foi o pediatra estadunidense Lawrence Diller, que, embora diagnostique e trate o déficit de

atenção em sua prática clínica, escreveu dezenas de artigos e ao menos quatro livros que

denunciam os falsos diagnósticos e excesso de prescrição de estimulantes. Diller divulgou

seus pensamentos sobre medicações psiquiátricas em palestras em seu país e outros lugares do

mundo, em programas de televisão e rádio, no congresso dos Estados Unidos e para o

conselho de bioética desse governo. Seu livro Running On Ritalin foi escrito no final dos anos

noventa e é um dos primeiros textos a denunciar a epidemia do consumo dessa droga em

terreno norte-americano, num período em que esse país consumia cerca de 90% da produção

mundial do medicamento (1998). Ao mesmo tempo, o autor localiza historicamente esse

48

Informação retirada da página sobre Peter Breggin no Wikipédia. Acesso:

https://en.wikipedia.org/wiki/Peter_Breggin Último acesso em: 25 de março de 2016.

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fenômeno e traz a sua experiência na clínica para demonstrar essas mudanças sociais.

Posteriormente, Diller escreve ainda Remembering Ritalin (2011) a partir do reencontro com

seus antigos pacientes que são agora adultos, buscando retomar as questões que estavam

presentes no seu primeiro livro.

Porém, para além de livros, essa lógica de argumentação está disseminada em uma

extensa produção de artigos, notícias e vídeos, que advém de diversos locais e são produzidos

em várias línguas. Nos EUA, as matérias sobre o déficit de atenção estão presentes com

frequência em grandes canais de mídia, como o New York Times, Los Angeles Times,

Washington Post e já foi capa da revista Time. No Brasil, redes de notícias de grande

circulação como a Carta Capital publicaram matérias que reproduziam em partes esses

argumentos. O programa Fantástico da Rede Globo exibiu, em 2013, uma reportagem com o

Dr. Dráuzio Varella que expunha fortemente os argumentos biológicos, mas também retratava

o caso de uma criança que foi equivocadamente diagnosticada com TDAH por não estar com

um rendimento adequado na escola49. De acordo com ITABORAHY (2009, p.72), entre 1998

e 2008, foram publicadas 72 matérias sobre a Ritalina em jornais e revistas de grande

circulação no Brasil50.

A produção acadêmica nacional também acumulou uma série de discussões sobre a

medicalização do comportamento infantil através do consumo de estimulantes. Destacam-se

trabalhos produzidos nas áreas de antropologia, saúde coletiva e educação, que demonstraram

através de pesquisas qualitativas questões desconsideradas pela psiquiatria que produz o

discurso oficial sobre o déficit de atenção. Na área das ciências sociais, foi produzida por

Tatiana Barbarini (2011) uma dissertação fortemente influenciada por uma perspectiva crítica

à medicalização da infância, que, através de etnografia num ambulatório psiquiátrico com

crianças diagnosticadas com o déficit, defendeu a tese de que esse ―transtorno‖ é elaborado

com a intenção de punir desvios sociais. Podemos citar ainda outro trabalho de antropologia:

elaborada recentemente, a dissertação de Fernando Moura (2015) foca nos discursos de

professores de escolas públicas em Florianópolis sobre o TDAH, mostrando como no regime

contemporâneo de medicalização, a possibilidade de uma patologia engendra variadas formas

de governo na instituição escolar. Há ainda outra pesquisa na área da educação, realizada por

49

A matéria pode ser vista no seguinte endereço: https://www.youtube.com/watch?v=m2DTIZfCq0k. 50

Essa pesquisa exploratória sobre a divulgação do metilfenidato no Brasil centrou nos jornais Folha de São

Paulo, O Globo e Extra, além das revistas Veja e Época.

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43

Diana Cardoso (2007), que também está centrada na concepção de docentes sobre o TDAH e

como isso interfere na gestão dos comportamentos em sala de aula.

No campo da saúde coletiva, destacam-se os excelentes trabalhos de Cláudia

Itaborahy (2009) e Luciana Caliman (2006), ambos vinculados ao Instituto de Medicina

Social da UERJ. O primeiro se trata de uma dissertação que analisa as publicações brasileiras

sobre o uso da Ritalina de 1998 a 2008, em jornais e revistas, mas também em periódicos de

psiquiatria. O segundo é uma tese que faz uma extensa reconstituição histórica do processo de

biologização moral da atenção, desde a segunda metade do século XVIII até a consolidação

do diagnóstico de DDA nas três últimas décadas do século XX. É importante mencionar ainda

o psiquiatra Rossano Cabral Lima (2005) que realizou uma crítica ao determinismo biológico,

procurando considerar explicações psicológicas, sociológicas e pedagógicas, em seu livro

Somos Todos Desatentos? O TDA/H e a construção de bioidentidades.

Esse conjunto de críticas ao TDAH que estão centradas no questionamento de seu

diagnóstico e que apontam a possibilidade do tratamento medicamentoso produzir obediência

às normas sociais são bastante influenciadas por outros embates contra a psiquiatria. Essa

ciência sofreu fortes oposições ao longo de sua história devido à carência de objetividade na

definição de transtorno mental. Nas críticas mais recentes, houve a desaprovação da

patologização de comportamentos que poderiam ser considerados apenas desvios de

determinado padrão, e o argumento de que o crescimento dos diagnósticos se dá a partir de

uma relação indevida entre esse saber e a indústria farmacêutica. Devido aos vínculos com

essas empresas mais doenças surgem, mais pessoas são diagnosticadas e mais medicamentos

são comprados para tratar dessas condições. Nesses discursos é exposto como ao longo dos

anos aquilo que é considerado uma doença mental passou por reformulações, ocorrendo um

vasto crescimento no número de categorias diagnósticas e ao mesmo tempo a flexibilização

dos limites entre sanidade e patologia.

Para além da produção crítica, muitos autores desenvolveram suas carreiras

acadêmicas ao longo desses últimos trinta anos pesquisando o TDAH em uma perspectiva

biológica. Um dos mais famosos é Russell Barkley, que desde o final dos anos setenta até a

atualidade pesquisa o déficit de atenção, sendo considerado um dos maiores especialistas

nessa doença. Ele escreveu pelo menos quinze livros que estão relacionados à saúde mental na

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infância, tendo mais de cento e oitenta artigos científicos publicados nesse campo de pesquisa,

e é editor da revista acadêmica The ADHD Report.

Ele é considerado um dos principais cânones na perspectiva neurológica do TDAH e

foi responsável pela escrita de um consenso científico sobre esse transtorno em 2002 assinado

por 86 psiquiatras e psicólogos. No texto desse documento, há a demonstração de profunda

preocupação com as notícias sobre o TDAH na mídia. O autor afirma que não há controvérsia

científica sobre a existência do TDAH, mesmo que seja frequentemente dito pela mídia ou

pelos críticos que essa doença não existe. Argumenta-se que não há uma discordância sobre

esse fato, da mesma forma que ninguém questiona se fumar causa câncer ou se a AIDS é

causada por um vírus51.

1.3 Discussões em torno da inteligência

O metilfenidato foi utilizado desde sua criação com fins não terapêuticos, como foi

citado nos tônicos revigorantes para idosos, ou pessoas em geral a fim de diminuir os efeitos

do cansaço físico. Em alguns textos sobre a história desse estimulante é mencionado

rapidamente que já nesse período anfetaminas eram usadas para melhoria do desempenho

intelectual (ITABORAHY, 2009, p.61). Porém, não encontrei descrições mais consistentes

sobre esse fato na bibliografia utilizada e nem referências nas propagandas da Novartis. Sabe-

se que na atualidade, para além do uso da Ritalina no tratamento de TDAH, várias pessoas

estão consumindo essa droga para aprimorar capacidades cognitivas com fins de estudo. Se a

arbitrariedade do primeiro caso ainda suscita discussões e não traz uma conclusão definitiva,

para o segundo grupo, o caráter cosmético é evidente. Esses usuários são pessoas que não

apresentam o diagnóstico de uma patologia formal, mas que subvertem a indicação de alguns

estimulantes para aumentar a concentração e permanecer mais tempo estudando.

O metilfenidato é apenas um exemplo dessa classe de drogas conhecidas como

nootrópicos ou Smart Drugs, que são compostos capazes de melhorar o desempenho mental

51

―Occasional coverage of the disorder casts the story in the form of a sporting event with evenly matched

competitors. The views of a handful of nonexpert doctors that ADHD does not exist are contrasted against

mainstream scientific views that it does, as if both views had equal merit. Such attempts at balance give the

public the impression that there is substantial scientific disagreement over whether ADHDis a real medical

condition. In fact, there is no such disagreement—at least no more so than there is over whether smoking causes

cancer, for example, or whether a virus causes HIV/AIDS‖.

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sem produzir efeitos colaterais muito fortes. Esses produtos químicos são oficialmente

indicados para doenças neurodegenerativas como Mal de Parkinson ou Alzheimer, mas que

quando ingeridas por indivíduos saudáveis podem produzir aumento na concentração e foco,

redução da fadiga mental, maior retenção de conteúdo e motivação. É devido a esses efeitos

que cada vez mais pessoas estão adotando o uso diário de nootrópicos, buscando maximizar

os níveis de performance cognitiva em ambientes como empresas, universidades ou as forças

armadas.

Essas drogas funcionam como uma forma de biohacking, manejando o

funcionamento biológico para, conforme alegam alguns de seus usuários, aprimorar algumas

características mentais. Se na informática os hackers são sujeitos que burlam o funcionamento

usual de programas de computador, os biohackers expandem essas práticas para o território

do corpo, manipulando os funcionamentos biológicos através de aprimoramentos corporais

independentes da medicina, como implantes magnéticos, body modification, uso de

hormônios ou outras drogas. Os nootrópicos têm sido classificados como parte desse grupo de

intervenções no corpo, pois esses medicamentos podem expandir alguns limites da capacidade

humana, como passar muito tempo sem dormir ou se alimentar.

Porém, por mais que o uso de Ritalina com esse propósito tenha crescido, a sua

utilização não-médica não é autorizada legalmente. Desde 1971 está incluída na convenção de

substâncias psicotrópicas da ONU por apresentar potencial de abuso e desde que chegou ao

Brasil em 1998, foi considerada pela ANVISA, em portarias, como uma substância

psicotrópica na categoria A3, necessitando de receita especial por alto risco de dependência

química (FREESE et al, 2012). Portanto, o acesso a essa droga pode se dar através de

comércio ilegal, frequentemente feito na internet (BARROS, 2009). Existem fóruns online,

grupos em redes sociais ou blogs que vendem a Ritalina sem prescrição e que acumulam

discussões vastas sobre o efeito desse estimulante para a concentração em usuários sem

TDAH. De acordo com Barros, ―mesmo sem estudos epidemiológicos sobre assunto, é fácil

constatar que existe um mercado ilegal para esse tipo de prática no Brasil‖ (2009, p.11).

Essa forma de comercialização da Ritalina causa indignação em muitas pessoas e já foi

reportado em notícias no Brasil e no mundo enquanto um problema de saúde pública. Porém

também é preciso considerar que para além do acesso ilícito, existem vários relatos de

indivíduos saudáveis que conseguem receitas de Ritalina com neurologistas e psiquiatras. Não

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46

é simples distinguir nos dados as formas de acesso ao medicamento, sejam as mediadas por

um médico ou o comércio considerado ilegal, para podermos explicar as suas vendas

gigantescas. Para compreender essas questões, seria adequada a utilização de uma

metodologia qualitativa que, através do contato aproximado com os usuários, poderia

proporcionar o acesso a informações mais detalhadas da relação dessas pessoas com os

medicamentos que utilizam.

Os artigos científicos que tratam do metilfenidato como um ―aprimorador cognitivo‖

geralmente datam o início dessa utilização nos anos noventa, quando várias pesquisas

mostraram que estudantes universitários sem TDAH estavam usando a Ritalina. Vários

surveys foram feitos em campus estadunidenses, e esses dados mostraram que muitas pessoas

estavam consumindo o medicamento para fins de estudo. Essas pesquisas, que compreendem

mais de 25 publicações52, foram realizadas desde 1998 e vêm traçando um panorama do quão

disseminado está o uso de metilfenidato com esses propósitos. Alguns desses trabalhos foram

baseados em pequenas universidades, mas outros focaram em grandes amostras e permitiram

fornecer o dado de que 7% dos estudantes das universidades estadunidenses já usaram a

Ritalina para estudar (McCabe, Knight, Teter, & Wechsler, 2005). Em alguns campi o número

dos que usaram em 2007 chega a 25%, (MAHER, 2008).

No Brasil, ainda não foi realizado estudo com ampla amostragem que possibilite

sabermos como anda o uso não prescrito de metilfenidato; porém algumas pesquisas foram

realizadas entre estudantes universitários, principalmente os que cursavam a graduação em

medicina. Ao menos sete pesquisas foram realizadas em diferentes estados e demonstraram

um consumo considerável de metilfenidato entre parte de estudantes da área da saúde. Esses

estudos utilizaram principalmente questionários fechados que foram preenchidos por parte

dos estudantes e apresentaram resultados discrepantes, variando entre 8% e 60%. Um desses

trabalhos, feito entre universitários da cidade de Campos dos Goytacazes (RJ), com

participação de 150 estudantes dos cursos de medicina e farmácia, demonstrou que 60% deles

faziam o uso não prescrito da Ritalina para estudar. Já a pesquisa feita somente entre os

estudantes de medicina da UFBA, das 186 pessoas entrevistadas, 8,6% (16) admitiram que já

52

O artigo Are Prescription Stimulants “Smart Pills”? (FARAH & SMITH, 2011) comenta cada uma dessas

publicações.

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47

fizeram o uso dessa substância. Foram feitas ainda pesquisas em universidades de Minas

Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul53.

Para além das estatísticas produzidas no Brasil, existem nos últimos anos pesquisas

semelhantes sendo conduzidas em outros países. No Canadá, existem alguns dados do

consumo não prescrito desde 2001 entre estudantes de ensino médio. Já existem estudos na

Colômbia, Irã, França, Itália, Holanda e Portugal demonstrando que a Ritalina e outros

medicamentos também estão sendo utilizados como aprimoradores cognitivos nesses locais

(LAJE et al, 2015). A quantidade de pessoas fazendo uso dessas substâncias em contexto

universitário faz com que esse fenômeno não possa ser concebido como uma questão

individual, mas uma tendência seguida coletivamente em diversos locais do mundo. Essa

forma de consumo de drogas não é motivada em vista da cura de uma condição biológica, mas

se mostra estar diretamente relacionada com as exigências capitalistas de alto desempenho e

competitividade.

Esse conjunto de pesquisas proporcionou um clima de pânico e uma série de notícias

foi publicada sobre o assunto. Essas matérias frequentemente exageravam os dados e

chegavam a afirmar que o uso de drogas para aumentar a concentração era a regra entre

estudantes universitários, sem que isso tenha sido comprovado nas pesquisas (SINGH et al,

2012). Questões acerca do acesso a essas substâncias também foram em alguns momentos

dramatizadas, como se fosse extremamente fácil consegui-las ou que vários vendedores

poderiam ser encontrados nas universidades. Segundo Smith & Farah (2011), vários canais

populares de mídia dos EUA têm relatado esse assunto, como os jornais diários The New York

Times, The LA Times, The Wall Street Journal; revistas como Time, The Economist, The New

Yorker, e Vogue; e redes de difusão de notícias como BBC, CNN, e NPR.

O jornal científico Nature também participou do debate (MAHER, 2008) através da

publicação de uma enquete sobre o uso de estimulantes para aumentar a performance entre os

seus leitores. Essa matéria, datada de 2008, trouxe mais fama ao uso de metilfenidato para

aprimoramento cognitivo, já que um em cada cinco dos 1.400 participantes da votação

53

Na Faculdade de medicina de Minas Gerais foram entrevistados 120 alunos dos 6 anos do curso médico e 25%

(35 alunos) faziam uso de metilfenidato (NAKASU et al, 2016).

Em uma faculdade de medicina do sul do Brasil foram entrevistados 152 do 5º e 6º ano de medicina e (34.2%)

(52 participantes) faziam uso de metilfenidato (SILVEIRA et al, 2014).

Em São Paulo foram entrevistados 5128 alunos universitários e 44,1% (2286) já fizeram uso em algum momento

na vida (Pasquini, 2013).

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48

confirmou a utilização dessas drogas para intensificar a produtividade no trabalho. Entre os

que utilizavam essas substâncias, a Ritalina foi a mais consumida, ocupando uma margem de

62% do total. Muitos desses usuários parecem sustentar o próprio uso baseados em estudos

que demonstram a capacidade desse medicamento de aperfeiçoar as funções executivas e a

memória de indivíduos saudáveis.

Em outra matéria da Nature, que também causou muita polêmica (FARAH et al,

2004), é defendido pelos seus autores o uso de psicofármacos para aumentar a performance

cognitiva. Nessa publicação, assinada por sete pesquisadores, é feita uma defesa de como os

nootrópicos podem trazer muitos benefícios para os indivíduos e para a sociedade, desde que

pesquisas sejam realizadas para calcular riscos e benefícios, e que o Estado programe políticas

de regulação. Eles apontam ainda que o crescimento dessa prática traz questões éticas

importantes para serem discutidas (FARAH et al, 2008).

Existem ainda alguns relatos na mídia internacional de experiências com as Smart

Drugs, veiculados em grandes veículos de comunicação como a revista Vice54 e a rede BBC55

e Huffington Post56. São relatos que possuem nítidas similaridades em seu conteúdo e estilo de

escrita, abordando a temática dessas drogas de forma sensacionalista e difundindo a crença na

impressionante capacidade desses remédios na cognição. Encontramos a descrição do uso de

Ritalina e Modafinil por jornalistas e de como esses medicamentos afetaram o seu ritmo de

trabalho. Os autores comentam que há um intenso aumento em suas produtividades, seja

escrevendo bem mais textos do que o usual, lendo livros e textos com extrema facilidade, e

principalmente adquirindo uma forte ânsia de dedicar-se ao trabalho e se afastar de atividades

recreativas.

Na mesma direção, o debate midiático nacional tem crescido com o passar dos anos e

várias matérias foram publicadas. As revistas ―Veja‖ e ―Carta Capital‖, os Jornais ―Folha de

São Paulo‖ e ―O Globo‖ e os portais de notícias ―Uol‖ e ―Terra‖, já escreveram reportagens

sobre o tema (ITABORAHY, 2009). E, além deles, vários jornais locais de cidades como

54

A matéria pode ser vista em: <http://www.vice.com/pt_br/read/tomar-o-nootropico-modafinil-me-fez-amar-o-

trabalho-e-odiar-as-pessoas>, acesso em 12 de novembro de 2016. 55

O texto da BBC pode ser acessado em: <http://www.bbc.com/news/magazine-35091574>, acesso em 16 de

novembro de 2016. 56

My Experience with smart drugs de Johann Hari: http://www.huffingtonpost.com/johann-hari/my-experiment-

with-smart_b_156954.html

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49

Pernambuco57, Rio Grande do Sul58, Bahia59, Piauí60, etc., também publicaram textos sobre

uso não médico de Ritalina. Essas notícias se espalham também por blogs que tratam de

concursos públicos, tendo em vista que essa utilização está acontecendo frequentemente entre

esse público. Assim há uma série de notícias na mídia que abordam esse fato em tom de

novidade e de forma alarmista, como em ―concurseiros usam Ritalina para turbinar o cérebro‖

ou ―para prestar exames‖ 61. Além disso, são também frequentes textos que apontam os

perigos dessa utilização indevida, desacreditando o potencial da substância nesse papel

inusitado e descrevendo uma série de efeitos colaterais que o uso sem orientação médica pode

ocasionar62.

Ao mesmo tempo, um conjunto de discussões sobre aprimoramento cognitivo tomou

corpo no campo emergente da neuroética. O crescimento dessa prática fez com que várias

questões teóricas surgissem e fossem amplamente debatidas; questionando, por exemplo, se

isso não seria uma trapaça semelhante ao atleta que utiliza uma substância para melhorar o

rendimento em competições, até mesmo pensando a possibilidade do uso coercitivo dessas

substâncias no futuro e considerando os perigos que essa prática pode trazer para os

indivíduos e para a sociedade. Assim são questões que envolvem segurança, liberdade de

escolha e igualdade ao acesso (FARAH et al, 2008).

A temática da segurança foi discutida em pesquisas que buscam avaliar os possíveis

riscos do consumo de metilfenidato em pessoas saudáveis. Esse é um tema que tem

frequentemente chamado atenção, pelo fato de que a maior parte das pesquisas só alcança os

efeitos colaterais em usos de até dois anos. Além disso, o cérebro é um órgão de

57

Matéria veiculada no Diário de Pernambuco: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vida-

urbana/2015/06/22/interna_vidaurbana,582444/pernambuco-tem-maior-consumo-de-ritalina-no-nordeste.shtml.

Acesso em 22 de dezembro de 2016. 58

Matéria veiculada no Correio do Povo: http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/566018/Uso-de-Ritalina-

preocupa-pais,-psicologos-e-autoridades-sanitarias. Acesso em 22 de dezembro de 2016. 59

Matéria veiculada no Portal da Bahia: http://www.tribunadabahia.com.br/2014/08/25/conhecida-das-criancas-

ritalina-agora-virou-droga-dos-concurseiros. Acesso em 22 de dezembro de 2016. 60

Matéria veiculada no Jornal Meio Norte: http://jornal.meionorte.com/theresina/medicamento-e-consumido-

ilegalmente-por-estudantes-e-concurseiros-298017. Acesso em 22 de dezembro de 2016. 61

São exemplos desse caso: <http://noticias.r7.com/educacao/noticias/estudantes-usam-remedio-para-turbinar-

cerebro-20090927.html>, acesso em 13 de novembro de 2016, e

< http://www.gabaritofinal.com.br/2014/08/ritalina-droga-dos-concurseiros-conheca.html>, acesso em 13 de

novembro de 2016. 62

Uma notícia que ilustra essa abordagem:< http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,estudo-da-unifesp-

derruba-mito-de-que-ritalina-turbina-cerebros-saudaveis-imp-,974204>, acesso em 06 de novembro de 2016.

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50

funcionamento complexo e é ainda pouco conhecido, assim, não se sabe se os benefícios de

um uso discriminado podem valer a pena, com a possibilidade de causar problemas no futuro.

Já a discussão sobre liberdade de escolha envolve a preocupação de que esse tipo de

fármaco possa ser utilizado coercitivamente no futuro. Embora essa afirmação soe um pouco

exagerada e pareça remeter a um futuro distópico, já existem indícios de que esse tipo de

situação possa ocorrer. Na Força Militar dos EUA e na de outros países, já se utilizam

compostos químicos para melhorar o desempenho de seus pilotos. Isso se dá pelas condições

de trabalho e pela necessidade frequente de hábitos de sono diferenciados, como quando é

preciso passar dias sem dormir (BARROS, 2009). É provável que essa lógica possa ser

estendida para outros profissionais como médicos plantonistas, bombeiros ou policiais, que

poderiam usufruir de medicamentos privadores do sono. De acordo com Barros (2009, p. 30):

―A justificativa da importância e extensão social relativa ao bom desempenho de um

profissional pode acarretar não apenas a autorização para o aprimoramento neurocognitivo

farmacológico mas pode implicar em coação direta para a prática‖.

Podemos pensar que há também uma coação indireta no uso de metilfenidato em

crianças, que podem em algumas situações serem ―diagnosticadas‖ pelos seus professores

como portadores de TDAH. Com o diagnóstico ―de verdade‖ do psiquiatra, sobra pouca

margem de escolha para os pais diante da autoridade de um médico. Se a partir desse tipo de

situação ocorre a medicalização de crianças, podemos imaginar quando essa prática se

expandir em empresas ou corporações que perceberem nisso uma possibilidade de aumentar o

desempenho dos funcionários. Os defensores do aprimoramento cognitivo argumentam que a

proibição também já é em si uma coerção direta ao não uso desses medicamentos.

O terceiro eixo de debates na neuroética tem como tema a questão das injustiças

sociais. Nesse ponto, há certa apreensão que a introdução dessas drogas na vida social irá

agravar as desigualdades já existentes, tendo em vista que o acesso a elas se dá apenas entre

sujeitos com renda suficiente para a compra. No caso dos universitários, por exemplo,

ampliar-se-ia a distância entre aqueles que têm dinheiro para maximizar o desempenho e os

que não têm. Dessa forma, autores como Greely et al. (2008), defendem que o governo

estabeleça regras para o uso desses fármacos para que estes não proporcionem um aumento

das desigualdades já existentes.

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51

Em algumas críticas feitas à Ritalina há a negação de seu emprego tanto para as

pessoas diagnosticadas com TDAH, quanto no seu consumo para aprimoramento das funções

cognitivas. Os argumentos contrários ao uso de Ritalina para tratar TDAH são facilmente

transpostos para o uso desse medicamento como ―aprimorador cognitivo‖. É comum

encontrarmos, em notícias que criticam o uso indiscriminado do metilfenidato, uma

comparação entre a ação farmacológica e estrutura molecular desse medicamento com outros

estimulantes como a cocaína e a anfetamina63. As críticas feitas pelas pessoas contrárias ao

uso de Ritalina mostram como elas se apoiam em argumentos também do discurso de

proibicionismo das drogas. As declarações alarmistas de que as pessoas estão usando cada vez

mais psicoativos, de forma desnecessária e com um alto risco de dependência, tornaram-se

presentes no enfrentamento ao alto índice de consumo de metilfenidato. Isso pode ser

demonstrado no fato de que associações antidrogas como a Foundation for a Drug-Free

World, começaram a fazer campanhas contra a Ritalina, como mostra a imagem abaixo.

Figura 05 - Imagem da campanha contra a Ritalina promovida pela Foundation for a Drug-Free

World

Fonte: https://s3.amazonaws.com/files.digication.com/Mf3abf2524c62499828366ea60b283363.jpg.

Acesso em 01 de janeiro de 2017.

63

São exemplos de notícias que fazem a comparação entre Ritalina e Cocaína:

Ritalin and Cocaine: The Connection and the Controversy:

http://learn.genetics.utah.edu/content/addiction/ritalin/

RITALINA, a cocaína legalizada. http://www.juridicohightech.com.br/2014/03/ritalina-cocaina-legalizada.html

A ritalina e os riscos de um 'genocídio do futuro'. http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/08/05/ritalina-

e-os-riscos-de-um-genocidio-do-futuro

Acessos em 05 de maio de 2016.

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52

Já outra abordagem mais favorável à Ritalina e outras Smart Drugs é apresentada por

organizações como o Center for Cognitive Liberty and Ethics64 (CCLE). A partir do impacto

que as inovações tecnológicas na neurociência têm proporcionado, grupos como o CCLE

defendem a necessidade da preservação da ―liberdade cognitiva‖. De acordo com esse

conceito, todas as pessoas devem ter o direito de gerir seus processos mentais e alterar seus

estados de consciência. Dessa forma, a crítica feita em torno do metilfenidato é direcionada à

medicalização e não à substância em si. O CCLE chegou a publicar artigos denunciando

escolas nos Estados Unidos que pressionaram pais para buscarem o tratamento de TDAH para

estudantes. Portanto, os partidários da liberdade cognitiva defendem a proibição da

interferência não consensual nos processos cognitivos de alguém, mas também a

autodeterminação dos estados de consciência e funcionamentos cognitivos.

Diferentemente da relação entre Ritalina e TDAH, esse novo tópico do uso como

expansor cognitivo é bastante recente. Já é possível perceber um conjunto de polêmicas na

mídia e algumas discussões teóricas sendo realizadas, mas pouca participação estatal no

cenário. Ao mesmo tempo é possível questionar se há aqui outra relação entre o uso de

metilfenidato e produção de disciplina, que tem sido pouco investigada.

64

Para mais informações consultar: http://www.cognitiveliberty.org/

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53

CAPÍTULO 2 – A VIDA VIRTUAL DOS SUJEITOS TDAH

―É preciso uma cultura de obediência e padronização num mundo sem valores‖,

afirma o idealizador do projeto que incluirá Ritalina na merenda escolar. A Ritalina,

droga da obediência muito famosa nas mais tradicionais escolas brasileiras, está para

se tornar componente obrigatório na merenda das escolas públicas. A ideia é do

Deputado Júlio Santos do PPGI-RJ (Partido Progressista do Grande Irmão). A

intenção é padronizar cabeças e dopar crianças para que estudem muito e

questionem pouco. ―Existe hoje a necessidade de criar uma cultura da obediência

numa sociedade que se perdeu em excessos liberais. Assim evitamos agressões

contra professores, cortamos esse papo de homossexualismo e nos prevenimos

contra a presença de futuros adultos se rebelando contra políticos honestos. O lema é

estudar mais, pensar menos‖, afirma Santos. Segundo linhas do projeto, a ideia é

ministrar 70 mg diários via oral diluídos nos sucos ou mesmo misturados aos

alimentos. ―Quiçá presente até nos bebedouros!‖, afirma Júlio César Lombroso,

diretor da Escola Estadual Emílio Guerra, em Teresina no Piauí.

(Reportagem humorística retirada do site Diário de Pernambuco. Câmara discutirá

inclusão de Ritalina na merenda escolar. Fonte:

http://www.diariopernambucano.com.br/noticias/camara-discutira-inclusao-de-

ritalina-na-merenda-escolar/. Acesso em: 25 de dezembro de 2016).

Neste capítulo irei tratar do portal da Associação Brasileira do Déficit de Atenção

(ABDA), grupo este que atua principalmente através de meio virtual. A ABDA se define

como uma associação de pacientes cujo objetivo é disseminar informação científica sobre o

TDAH e, ao mesmo tempo, servir como suporte para as pessoas com esse transtorno e seus

familiares. A associação e sua página eletrônica foram criadas em 1999, reunindo a maior

quantidade de material informativo online sobre TDAH no Brasil. Inclusive a página é o

primeiro resultado ao se pesquisar em português sobre o transtorno em sites de busca como o

Google. Contém um material extenso e diverso, divulgando textos sobre diagnóstico e

tratamento de TDAH; artigos científicos em português e em outros idiomas; lista de médicos

que oferecem atendimento nas principais cidades do Brasil; venda de livros e camisetas,

relatos pessoais escritos ou em vídeo; aspectos da legislação sobre TDAH e um fórum de

discussão para os frequentadores do site.

A ABDA é um exemplo das inúmeras organizações de pacientes com TDAH que

existem no mundo e que têm a norte-americana CHADD (Children and Adults with Attention-

Deficit/Hyperactivity Disorder) como modelo. Esses grupos fazem parte das transformações

no cenário cultural sobre o TDAH a partir de meados dos anos noventa, em que ocorreu a

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construção coletiva de uma bioidentidade desses sujeitos e a participação política em torno

das demandas dessa comunidade. Esse fenômeno é característico daquilo que o antropólogo

Paul Rabinow (1999, 2008) denominou de biossocialidade, em que, devido às transformações

nas tecnologias biológicas, os sujeitos passam a organizar-se frequentemente em torno de

aspectos corporais ou condições biológicas compartilhadas. Ao mesmo tempo pode ser lido de

acordo com o conceito de individualidade somática de Nikolas Rose (2013), que se refere às

pessoas que passam cada vez mais a compreender a si mesmas de acordo com a biologia e a

agir na vida pública de acordo com uma cidadania biológica.

O surgimento e a progressiva popularização da internet durante esse período

forneceu um lócus importante para o exercício dessas bioidentidades. O espaço virtual se

tornou um meio de divulgação das organizações de portadores de doenças, e, ao mesmo

tempo, canal de interação entre pessoas de distintos lugares do mundo que sofrem de uma

mesma condição. No caso do TDAH, é frequente o engajamento de seus portadores para

disseminar a existência do transtorno e a validade de seu tratamento medicamentoso. Diante

disso, a internet pode ser considerada a principal ferramenta de difusão desses discursos.

Portanto, o site da ABDA se apresenta como um espaço importante na demonstração de que o

TDAH é um transtorno psiquiátrico real, atuando ainda como uma das fontes para propiciar o

reconhecimento público dessa condição.

Iniciando e influenciando esse processo de criação das associações, a CHADD surgiu

em 1987 e se envolveu intensamente no cenário público estadunidense, popularizando

informações sobre TDAH e oferecendo suporte para os familiares e portadores do transtorno.

Essa organização influenciou, inclusive, a criação e aprovação de políticas públicas que

garantiram novos direitos para o grupo que ela representa. Foi também réu de processos

jurídicos, junto à Novartis e à APA, por promover em excesso (over-promoting) o diagnóstico

e o tratamento medicamentoso do déficit de atenção (BREGGIN, 2001).

Após o pioneirismo da CHADD, várias outras associações foram criadas ao redor do

mundo. Atualmente existem dezenas em diversos países, como na maior parte da Europa,

América do Norte e Sul e até mesmo em locais como a Arábia Saudita, Chipre e Singapura.

Existem ao todo quase cem grupos semelhantes localizados em todos os continentes, e a

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ADHD World Federation, que é uma instituição internacional que reúne todo esse conjunto65.

Assim, destacamos mais uma vez como a internet tornou-se, portanto, um importante lócus de

sociabilidade, construção de vínculos e participação política para as pessoas diagnosticadas

com TDAH.

Embora essas associações tenham vários aspectos em comum, algumas delas diferem

entre si sobre o tratamento medicamentoso. Umas poucas como as associações da Itália e

França enfatizam a importância do contexto social e de terapias psicológicas (CONRAD &

BERGEY, 2014). Contudo, a maior parte das associações consultadas defende que o uso de

medicamentos psiquiátricos é o principal tratamento para o déficit de atenção, sendo o

metilfenidato um dos mais citados. A ABDA, por exemplo, aponta a Ritalina como um dos

medicamentos mais recomendados em consensos de especialistas e já publicou textos

combatendo as críticas ao fármaco e às políticas públicas que buscam restringir o seu

consumo. Isso faz com que esse material empírico seja bastante fértil, tendo em vista que os

discursos veiculados pela associação respondem a perguntas centrais dessa dissertação, como

a relação entre o consumo de metilfenidato e controle social.

Em vista disso, irei me aproximar analiticamente do site da ABDA para descrever e

analisar o fortalecimento de vínculos entre os sujeitos TDAH e como o discurso promovido

pelo site responde à possibilidade da Ritalina produzir obediência em seus usuários. Além do

conteúdo desse endereço eletrônico, terei como base as discussões que acontecem no fórum

nacional de pessoas com TDAH que fazem parte do portal da ABDA.

2.1 O site da Associação Brasileira do Déficit de Atenção

Ao pesquisar a palavra TDAH no buscador Google, os três primeiros resultados

remetem ao site da ABDA. O primeiro deles é um texto que define o que é TDAH, argumenta

que não há nenhuma controvérsia sobre sua existência, aponta os principais sintomas, causas e

a prevalência. O segundo resultado é o próprio site oficial da ABDA e o terceiro um texto

assinado por essa associação que trata do déficit de atenção sem hiperatividade. Considerando

65

Lista das associações de TDAH ao redor do mundo: http://www.tdah.org.br/br/a-abda/associacoes-de-pais-e-

portadores-de-tdah-no-mundo.html, acesso em 22 de dezembro de 2016.

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56

que ao pesquisar sobre o transtorno nessa ferramenta de busca – que, ressalte-se, é uma das

principais no mundo – encontramos resultados majoritariamente associados a links do site

dessa associação, é possível pensar que a ABDA tem um forte controle sobre as informações

acerca dessa condição. Apesar de ser um endereço eletrônico de uma associação específica,

ele aparenta ser um tipo de site oficial do Transtorno do Déficit de Atenção e/ou

Hiperatividade no Brasil, tendo em vista que o seu endereço oficial é tdah.org.br.

Essa presença disseminada do conteúdo do site na rede parece ter sido produzida

conscientemente pela organização, considerando um de seus objetivos que é ser uma

referência na América Latina na divulgação do TDAH. Segundo o site, ele já é uma referência

nacional na web e possui um amplo acesso que, segundo a ABDA, é em média de 200 mil

visitas mensais. Há ainda uma página do Facebook da associação com 183.846 curtidas na

qual são postados diariamente charges, frases motivacionais, indicações de livros, além do

conteúdo do site oficial. Em vista disso, a ABDA é um dos mais importantes meios de

comunicação e mediação entre a produção acadêmica e psiquiátrica sobre o TDAH e o

público em geral (ITABORAHY, 2007). Portanto, é importante refletir sobre essas questões

ao observar de forma meticulosa esse espaço virtual, que pode também ser considerado como

uma das maiores forças de proteção dos interesses das pessoas com TDAH no Brasil.

Foi assim que, desde o início da minha pesquisa, o site da ABDA aparecia nas buscas

realizadas sobre o TDAH. Por volta do final de 2015, centrei-me, de fato, no website e passei

a ler o seu conteúdo, também acompanhando a página do Facebook que replicava todas as

novas postagens publicadas no site. Dessa forma, tive contato com os principais eventos em

que a ABDA estava envolvida, li os artigos que foram publicados e soube quando a

associação era mencionada na mídia. Notei a abordagem teórica que associação seguia e os

principais sujeitos que falavam em nome dela. Portanto, houve um período de imersão nesse

endereço eletrônico que durou um pouco mais da metade do mestrado, e logo nas primeiras

versões escritas do trabalho utilizei trechos do conteúdo para pensar sobre o déficit de

atenção. O material veiculado nesse espaço virtual é particularmente interessante para pensar

a abordagem da psiquiatria sobre o transtorno, tendo em vista que não é escrito com o

linguajar hermético das pesquisas dessa área, mas é direcionado para o público leigo e mais

direto em suas colocações.

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A página inicial do sítio da ABDA apresenta um design básico. O logo da associação

está na parte superior-esquerda do cabeçalho e no lado direito estão os links para as páginas

no Facebook, Twitter, Google Plus e Youtube. Logo abaixo há um menu principal

apresentando as categorias que filtram o conteúdo disponível, variando entre informações

sobre a instituição, a definição do déficit, textos da associação, dicas para os portadores,

venda de produtos (livros e camisetas), lista de profissionais para atendimento no Brasil, o

fórum de discussão e um espaço para efetuar doações. Mais abaixo há uma sequência de

imagens passando automaticamente e apresentando um conteúdo variado, como: algumas

matérias em destaque; convites para a participação em pesquisas sobre TDAH; venda de um

livro de autoria de Paulo Mattos; divulgação do fórum que acontece no site; e de cursos e

eventos em que a associação está envolvida. Em seguida, estão os textos postados mais

recentemente e quase no rodapé os apoios e parcerias que financiam a ABDA. Em uma aba da

lateral direita há a carta de esclarecimento sobre o TDAH com as opções em português, inglês

e espanhol, uma enquete sobre as profissões menos preparadas para lidar com o transtorno e

um link para fazer doações.

Entre as várias categorias do menu principal, uma das primeiras é denominada de

―Sobre o TDAH‖ e apresenta informações como: a definição do transtorno; questionários que

auxiliam o diagnóstico; como é feito o tratamento; depoimentos pessoais; projetos de lei que

interessam aos portadores; e as perguntas mais frequentes respondidas (FAQ). Esses textos

têm como fundamento a produção científica sobre o transtorno, porém se detendo na

produção de psiquiatras e neurologistas que demonstram que se trata de uma disfunção

orgânica. Os principais pesquisadores citados nas referências fazem parte do conselho

científico da associação, sendo mencionados principalmente os psiquiatras Paulo Mattos e

Luís Rohde.

Na definição do transtorno é enfatizado o seu caráter neurobiológico, com causas

genéticas e que frequentemente acompanham os indivíduos por toda a vida. As características

diagnósticas são baseadas no texto do DSM 5 que descreve o transtorno como um padrão

persistente de desatenção e/ou hiperatividade que podem ser observados desde a infância

(APA, 2013). Embora o texto do manual aponte a importância desses sintomas estarem

presentes em dois ou mais ambientes, essa exigência não está presente na definição da

ABDA. Além disso, o texto da associação argumenta que fatores culturais, como as diversas

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práticas entre diferentes sociedades, não produzem influência sobre o transtorno. A

discrepância na quantificação dos diagnósticos entre países como França e EUA é atribuída a

metodologias diferenciadas entre os estudos que produziram as estatísticas e não à quantidade

objetiva de pessoas com TDAH (ROHDE etal, 2014).

Nessa seção há ainda uma descrição das principais causas do transtorno associadas a

determinadas pesquisas científicas. Nesse sentido, algumas alterações no funcionamento do

cérebro são apontadas como as principais causas do comportamento diferenciado dos sujeitos

com o déficit, que estão localizadas principalmente na região frontal desse órgão. Os

neurotransmissores apresentariam um comportamento defeituoso em comparação com um

cérebro saudável. Dessa forma, esses sujeitos teriam dificuldades em capacidades reguladas

pelos neurônios como prestar atenção, memória, autocontrole, organização e planejamento.

Em vista disso, o tratamento medicamentoso seria utilizado para equilibrar esses níveis

desregulados na produção neuronal.

Esta definição do transtorno deixa clara a filiação teórica da ABDA com a psiquiatria

biológica e podemos notar nesse texto a presença de posições reducionistas próprias a essa

corrente. É frequente a declaração do monopólio desta área quanto a discorrer sobre as

condições biológicas e os processos de adoecimento, desconsiderando a possibilidade de

outras abordagens teóricas produzirem considerações também sobre este aspecto da existência

humana. De acordo com Aguiar:

A psiquiatria biológica traz como pressuposto central a ideia de que ‗o cérebro é o

órgão da mente‘ e tem como característica principal a afirmação dos métodos e do

vocabulário médico como os únicos legítimos na investigação e descrição dos

transtornos mentais, de modo que, segundo Tissot, não haveria mesmo nenhuma

outra psiquiatria possível: ‗a adição de biológico‘ à psiquiatria deveria constituir um

pleonasmo. (AGUIAR, 2004, p.20).

Até mesmo as terapias psicossociais passam por uma reformulação e só são

consideradas nos termos da psiquiatria hegemônica. Dessa forma, na seção do site da ABDA

sobre o tratamento, é declarado que ele deve ser multimodal, através do uso de medicamentos,

psicoterapia, técnicas para lidar com os sintomas e em alguns casos com a fonoaudiologia.

Porém, a única psicoterapia que defende possuir evidências científicas quanto a resultados

positivos para o TDAH é a cognitivo-comportamental, onde é possível utilizar programas de

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treino em habilidades sociais. Sobre a psicanálise, por exemplo, alega-se que não existem

pesquisas demonstrando benefícios para este tipo de problema (MATTOS, 2005). É notável,

neste caso, como a perspectiva da neurociência atualmente autoriza (ou não) e explica como

operam algumas práticas terapêuticas ―psi‖ (AZIZE, 2010).

Assim como a CHADD, a ABDA participa das discussões públicas que envolvem o

TDAH, opinando sobre a legislação atual e elaborando proposta de mudanças. Ela comenta as

principais notícias que têm repercussão na mídia, por vezes corrigindo alguns erros nas

matérias ou fazendo até mesmo críticas agressivas. Esses debates têm a intenção de defender

os interesses das pessoas com déficit de atenção e preservar a concepção psiquiátrica do

transtorno. Em algumas situações, a associação ganha o direito de resposta sobre informações

divulgadas que são consideradas inadequadas. Isso aconteceu, por exemplo, quando houve

uma entrevista com a médica Ana Beatriz Barbosa Silva no ―Programa do Jô‖ defendendo o

TDAH como um traço de personalidade. Posteriormente, o psiquiatra Paulo Mattos concedeu

uma entrevista, no mesmo programa, defendendo a concepção neurológica do transtorno e

rebatendo, assim, o que havia sido dito pelo outro entrevistado.

Um dos principais embates travados pelas organizações de pacientes é combater o

discurso de que o TDAH não existe. A ABDA se dedica com afinco nesse debate de forma

que já na seção inicial do site, onde há um espaço com as principais matérias veiculadas, há

uma chamada para um texto cujo título é: ―TDAH, uma doença inventada?‖.

Figura 06 - Imagem retirada da página inicial da ABDA

Fonte: tdah.org.br, acesso em 15 de dezembro de 2016.

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60

A ABDA nega qualquer controvérsia nesse sentido, defendendo que existem

consensos internacionais publicados pelos mais renomados médicos e psicólogos a esse

respeito, e que, inclusive, a Organização Mundial de Saúde (OMS) atesta a existência do

transtorno. Segundo a ABDA, aqueles que insistem na não existência do TDAH não possuem

a formação científica adequada para emitir uma declaração desse tipo. Nesse sentido, os

principais argumentos usados pela associação em resposta aos críticos do TDAH consistem

em referenciar instituições como a AMA66, além da própria OMS, afirmando que há uma

extensa produção científica que valida a existência do transtorno. Em contrapartida, a ABDA

ainda busca desqualificar os próprios críticos alegando que não se tratam de cientistas, que

não estão vinculados a importantes grupos de pesquisas, não publicam em periódicos e nem

fundamentam suas afirmações em pesquisas, entre outros. É o que podemos acompanhar na

seção ―O que é o TDAH‖ quando a ABDA responde à seguinte pergunta:

Por que algumas pessoas insistem que o TDAH não existe?

Pelas mais variadas razões, desde inocência e falta de formação científica até mesmo

má-fé. Alguns chegam a afirmar que ―o TDAH não existe‖, é uma ―invenção‖

médica ou da indústria farmacêutica para terem lucros com o tratamento. No

primeiro caso se incluem todos aqueles profissionais que nunca publicaram qualquer

pesquisa demonstrando o que eles afirmam categoricamente e não fazem parte de

nenhum grupo científico. Quando questionados, falam em ―experiência pessoal‖ ou

então relatam casos que somente eles conhecem porque nunca foram publicados em

revistas especializadas. Muitos escrevem livros ou têm sítios na Internet, mas nunca

apresentaram seus ―resultados‖ em congressos ou publicaram em revistas científicas,

para que os demais possam julgar a veracidade do que dizem. (Retirado de

<http://www.tdah.org.br/br/sobre-tdah/o-que-e-o-tdah.html>, acesso em 15 de

dezembro de 2016)

Desse modo, esse grupo defende a ideia de que só pode ser considerado aquilo que

passa pelos critérios de produção de verdade do regime científico, ao passo que se posiciona

de forma intransigente frente às opiniões baseadas em experiências pessoais, que não são

vistas como válidas. Mais ainda, acaba posicionando a ampla produção nas ciências humanas

sobre os aspectos sociais e culturais dos processos de adoecimento e das noções de saúde

como meras opiniões pessoais. Assim, as pesquisas materializadas numa longa lista de livros

e artigos, produzidas desde os anos setenta, em áreas como sociologia, psicologia e educação

66

Associação Médica Americana (American Medical Association), ou AMA, fundada em 1847, é a maior

associação de médicos e de estudantes de medicina nos Estados Unidos. Em 2011, a AMA tinha 217.490

membros.

Fonte: Wikipédia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Associa%C3%A7%C3%A3o_M%C3%A9dica_Americana.)

Acesso em 01 de janeiro de 2016.

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são menosprezadas e silenciadas quanto à produção e reflexões sobre o transtorno. Também

psiquiatras que publicaram alguns livros contra o uso indevido de Ritalina, como Lawrence

Diller, Peter Breggin e Fred Baughman, tornam-se fontes não confiáveis por não publicarem

no que a ABDA considera por periódicos especializados ou congressos científicos.

Nessa direção, outra forma de minorar as críticas é através da invisibilização destes

discursos contrários à concepção neurobiológica do TDAH, como é possível ver em:

―Não existe controvérsia sobre a existência do TDAH?

Não, nenhuma. Existe inclusive um Consenso Internacional publicado pelos mais

renomados médicos e psicólogos de todo o mundo a este respeito‖.67

.

Afirmar que não existe controvérsia é negar, conforme mencionamos, uma ampla

bibliografia produzida que se coloca de modo contrário ao discurso oficial sobre o TDAH e

que produziu sólidos argumentos no que se refere à própria existência do transtorno, mas

também ao alto índice de diagnósticos e ao consumo dos fármacos.

Quando as críticas ao discurso oficial da psiquiatria parecem surtir certos efeitos

objetivos em políticas públicas, a ABDA radicaliza a sua oposição, chegando até mesmo a

associar os discursos contrários a atividades ilícitas ou ao preconceito com portadores de

doenças mentais. Esse tipo de situação ocorreu em 2014 quando a Secretaria Municipal da

Saúde de São Paulo publicou uma portaria regulamentando a prescrição de metilfenidato, de

forma que, a partir de então, tornou-se necessária a avaliação de uma equipe multidisciplinar

para o tratamento farmacológico ser aprovado. O texto da portaria aponta que transtornos

como o TDAH têm sido considerados controversos por muitos estudiosos, já que é difícil a

distinção entre os casos do déficit e ―problemas escolares decorrentes de modelos

pedagógicos inadequados ao contexto social das crianças, de questões familiares cada vez

mais complexas e do contexto sociocultural em que há competição, produção de estigmas e

exclusão‖ (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2014).

Em uma carta pública68 em repúdio à decisão da prefeitura de São Paulo de restringir

o escopo de decisão dos médicos sobre a prescrição de Ritalina, a ABDA afirma que esses

protocolos disciplinares são ―pseudocientíficos‖ e ―demagógicos‖. Nesta nota, a associação

67

Disponível em: http://www.tdah.org.br/sobre-tdah/o-que-e-o-tdah.html Acesso em: 01 de abril de 2016 68

A carta aberta pode ser consultada em: http://www.tdah.org.br/br/artigos/reportagens/item/1080-carta-aberta-

%C3%A0-popula%C3%A7%C3%A3o-sobre-tdah.html. Acesso: 01 de janeiro de 2016.

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discorda veementemente da ação da secretaria de saúde, declarando que ela exclui a

população menos favorecida de ter acesso um tratamento considerado de primeira linha por

qualquer diretriz científica nacional e internacional. Essa medida seria uma demonstração de

discriminação sobre os portadores de transtornos mentais, denominada por eles de psicofobia.

Em outra nota de esclarecimento69 sobre o TDAH, a ABDA afirma que considerar

medicamentos como a ritalina ―perigosos‖ ou que tornam as crianças ―obedientes‖ pode ser

considerado, em alguns casos, até mesmo uma afirmação criminosa, tendo em vista que se

divulga ―informações erradas sobre saúde pública‖.

Existem outras atuações dessa associação para disseminar a teoria psiquiátrica e

neurológica sobre o TDAH e isso acontece através de diversas formas. Existem algumas

cartilhas como uma sobre as perguntas frequentes relacionadas ao transtorno, outra sobre os

direitos dos portadores de TDAH e duas voltadas para profissionais de educação e alunos.

Realizam ainda eventos como um Congresso Internacional bianual e um Simpósio para

médicos (pediatras, neurologistas e psiquiatras, entre outros). E também oferecem cursos de

capacitação para professores (rede pública e privada) e para psicólogos.

Porém, por mais que a psiquiatria biológica insista que o déficit de atenção se trata

de uma disfunção no desenvolvimento neurológico, presente invariavelmente em diferentes

culturas, a leitura dos sites de organizações como a ABDA torna difícil sustentar a redução a

apenas o domínio biológico. Por exemplo, a lista de sintomas utilizada pela ABDA enumera

uma série de condutas que tencionam na verdade o funcionamento de regras sociais e

econômicas estabelecidas. Assim, o transtorno parece estar sempre relacionado a um tipo de

desajuste com ambientes como o trabalho e a escola, e isso é mais nítido nas crianças, que

obtém o diagnóstico pelo baixo rendimento e/ou mau comportamento nos estabelecimentos de

ensino.

A atenção frente a uma conduta desconforme a determinadas expectativas sociais e a

possibilidade do tratamento medicamentoso regularizar as pessoas diagnosticadas está

presente em alguns textos de farmacologia e psiquiatria. Dessa forma, o Manual de

Psicofarmacologia Clínica menciona o sintoma de ―relações sociais insatisfatórias‖ para

caracterizar o TDAH, e descreve que o uso de estimulantes pode ―produzir uma organização

69

Essa nota pode ser conferida em: http://www.tdah.org.br/br/artigos/reportagens/item/360-peticao-online-sobre-

o-manifesto-de-esclarecimento-a-sociedade-sobre-o-tdah-o-seu-diagnostico-e-tratamento.html. Acesso 01 de

janeiro de 2016.

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mais eficaz do comportamento‖ (2009, p.462). Inclusive em um boletim da ANVISA sobre o

consumo de Metilfenidato podemos encontrar esse discurso já que segundo esse documento

―[...] o medicamento deve funcionar como um adjuvante no estabelecimento do equilíbrio

comportamental do indivíduo, aliado a outras medidas, como educacionais, sociais e

psicológicas‖ (ANVISA, 2012). Ou seja, essas drogas podem atuar conjuntamente a outros

mecanismos para produzir a normalização do paciente em relação ao meio no qual ele se

encontra.

De acordo com a definição da psiquiatria hegemônica, produto das teses da

Associação Psiquiátrica Americana, ―um transtorno mental deve produzir sofrimento e

incapacidade significativos o suficiente para perturbar atividades sociais e profissionais

básicas‖ (APA, 2000). O TDAH se enquadra nessa ordem de patologias por produzir uma

série de ―sintomas‖ que atacam relações sociais básicas como estudo, trabalho e

relacionamentos amorosos. Segundo a ABDA, são sintomas que se encontram com grande

frequência em adultos com TDAH:

Instabilidade profissional

Rendimento abaixo da capacidade intelectual

Falta de foco e atenção

Dificuldade de seguir rotinas

Tédio

Maior incidência de divórcios e separações conjugais

Maior incidência de acidentes de trânsito

Dificuldade de planejamento e execução das tarefas propostas

Maior índice de desemprego

Procrastinação

Ansiedade diante das tarefas não estimulantes

Maior índice de desistência em Universidades / evasão escolar

Dificuldades nos relacionamentos; relacionamentos instáveis

Frequente alteração de humor

Frequentes esquecimentos, perdas e descuidos para datas e reuniões importantes

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Dificuldades para expressar suas ideias, colocar em prática o que está pensando/em

sua cabeça

Dificuldade para escutar e esperar a sua vez de falar

Frequente busca por novas coisas que o estimulem; intolerância a situações monótonas

e repetitivas

Repetição frequente de erros, frequente falta de atenção com coisas simples 70.

Ao realizar a leitura desses comportamentos descritos acima para produzir o

diagnóstico, o psiquiatra se encontra na função de intérprete do grau de ajustamento do

paciente a certos costumes definidos histórica e socialmente. Mesmo que seja possível ou até

frequente a existência de um desequilíbrio nos neurotransmissores, é complexo o

discernimento entre as causas biológicas e passíveis de medicação e as que possuem outras

origens. Os comportamentos listados pela ABDA também podem sugerir inconformidade

frente a relações de trabalho capitalistas, descumprimento de regras de conduta socialmente

definidas ou a não adaptação às formas como nos envolvemos sexual e afetivamente.

Por outro lado, os psiquiatras que defendem a objetividade em torno do transtorno,

afirmam que o déficit de atenção e hiperatividade é uma das condições com mais evidências

científicas até mesmo dentro de toda a medicina. Existem milhares de artigos em torno do

assunto que acumularam um sólido conhecimento, e portanto há a descrição de quadros

clínicos passíveis de serem diferenciados de comportamentos normais, como a presença dos

sintomas desde a infância em pelo menos duas áreas diferentes (casa e escola, por exemplo).

(ROHDE & MATTOS, 2011).

Porém, o rigor desses critérios não impede a existência de falsos diagnósticos, nem

que o psiquiatra ou neurologista se contenha sempre em prescrever os estimulantes. A

avaliação psiquiátrica envolve um encontro entre sujeitos humanos com suas diferenças,

preconceitos e valores. O profissional médico não está isento de agir de acordo com seus

fundamentos e é de fato impossível conter completamente a subjetividade e ser neutro. De

acordo com o psiquiatra Peter Kramer, que é um entusiasta dos efeitos de psicofármacos, a

70

Esses sintomas não são exatamente os listados pelo DSM 5 mas sim uma lista elaborada pela ABDA.

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65

escolha de utilizar ou não essas substâncias não repousa em critérios absolutos, tendo em vista

que:

A farmacoterapia, quando olhada de perto, parece tão arbitrária – tanto quanto uma

arte, não menos no sentido depreciativo de ser impressionista onde idealmente

deveria ser objetiva – quanto a psicoterapia. Como qualquer outra abordagem séria

da vida emocional humana, a farmacoterapia com propriedade se baseia em

tentativas falíveis de compreensão íntima de uma outra pessoa (KRAMER, 1994).

Por isso, esse encontro entre médico e paciente não está preservado dos aspectos

culturais que regulam as interações entre os sujeitos. A ação de conferir o diagnóstico para um

indivíduo depende da avaliação subjetiva do psiquiatra sobre seu paciente. Essa compreensão

íntima do outro, mencionada por Kramer, pode ser caracterizada por uma relação de não

alteridade e ser dificultosa a distinção entre o transtorno objetivo e o desvio de condutas

socialmente definidas.

2.2. A direção do site

No endereço eletrônico da ABDA é frequente a propaganda das vendas do livro No

Mundo da Lua do psiquiatra Paulo Mattos. Logo na página inicial há um cartaz divulgando o

desconto de 20% na compra do livro e em outras seções a mesma mensagem é veiculada. Este

pesquisador é uma das principais autoridades no país nas discussões sobre o TDAH e

frequentemente aparece na mídia para fornecer explicações didáticas sobre o Déficit de

Atenção71. É também um dos criadores da ABDA e permanece envolvido com ela desde a

fundação, ocupando atualmente a presidência do conselho científico. Mattos é professor da

UFRJ e membro das associações brasileiras de psiquiatria e neurologia, além de fazer parte da

American Psychiatric Association (APA). É coordenador do GEDA (Grupo de Estudos de

Déficit de Atenção) que foi criado em 1999 e recebe suporte de pesquisa do Laboratório

Janssen-Cilag, fabricante do medicamento Concerta72. É ainda membro do comitê consultivo,

71

Paulo Mattos já foi entrevistado em programas como:

Programa do Jô (https://www.youtube.com/watch?v=5jV796ovgVI). Acesso em 01 de Janeiro de 2017.

Globo News (https://www.youtube.com/watch?v=Ylqh_3UVtzM). Acesso em 01 de Janeiro de 2017.

De Frente com a Gabi (https://www.youtube.com/watch?v=NTyD2-63BWM). Acesso em 01 de Janeiro de 2017. 72

Concerta é um medicamento a base de metilfenidato de liberação prolongada. Ao contrário da Ritalina, a

substância do comprimido é absolvida em partes, fazendo efeito ao longo do dia. Segundo a bula: ―Parte do

comprimido de Concerta dissolve-se logo após a ingestão, pela manhã, proporcionando uma dose inicial do

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palestrante ou recebe verba de pesquisa clínica das indústrias Janssen-Cilag, Eli Lilly,

Novartis e GlaxoSmithKline (ITABORAHY, 2007). Na contracapa de No Mundo da Lua há a

indicação de que a obra também recebeu patrocínio da Novartis.

Este livro é um guia para portadores do transtorno e pessoas próximas, escrito em

forma de perguntas e respostas, que tem como intenção auxiliar no convívio com o transtorno.

Ele intenciona traduzir o linguajar do conhecimento técnico-científico das ciências da saúde

para o público em geral, tornando este discurso mais claro e conciso (MATTOS, 2005). O

autor argumenta ainda que a estrutura didática do livro se deve ao fato de que portadores de

TDAH não leem por muito tempo e não gostam de textos longos. O conteúdo aborda a

definição convencionada sobre o transtorno, baseando-se nos critérios diagnósticos do DSM;

as principais evidências sobre as causas para o seu surgimento; as diferenças entre as idades; e

quais as principais formas de tratamento. Além disso, fornece um guia comportamental que

sugere uma série de técnicas para diminuir o impacto do TDAH na vida de seus portadores e

familiares.

Essas técnicas que Mattos prescreve perpassam sugestões sobre múltiplos aspectos

da vida desses sujeitos, focando não apenas no âmbito escolar, haja vista o impacto nessa

área, mas também sobre questões afetivas e sexuais das pessoas com o transtorno. Ele

menciona, por exemplo, o caso de um homem que sentia a necessidade frequente de ter

relações extraconjugais, justificando que isso era devido à característica própria ao transtorno

de estar ―sempre à procura de novas emoções‖ (MATTOS, 2005, p.137). Ele dá dicas, nesse

sentido, sobre quem seria o (a) parceiro(a) ideal para pessoas com o transtorno:

Aqui vai um conselho difícil: o companheiro ou companheira tem que ter um perfil

determinado não só para poder conviver bem com um portador de TDAH e

aproveitar ao máximo a vida a dois, como também para ajudar em diferentes

aspectos da sua vida. [...] São características desfavoráveis: pessoas muito críticas e

exigentes (consigo próprias e com os outros), pessoas submissas e complacentes

com tudo, pessoas muito detalhistas, ―certinhas‖ e pouco flexíveis no pensar. Um

companheiro ou companheira também com TDAH, então é melhor pensar duas

vezes. Outra coisa: a vida sexual é importante em qualquer relacionamento a dois,

mas para quem tem TDAH isto pode ser vital. Procure alguém com quem você tem

sintonia no sexo. (MATTOS, 2005, p.142)

medicamento; o restante é liberado lentamente durante o dia, para manter o efeito do medicamento‖. Fonte:

http://www.janssen.com/brasil/sites/www_janssen_com_brazil/files/product/pdf/concerta_pub02_vp_0.pdf.

Acesso em 02 de janeiro de 2016.

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67

Mattos fornece, portanto, orientações bastante detalhadas que tocam em múltiplos

aspectos da existência desses indivíduos. Seu livro pode ser considerado um manual que

encoraja uma série de práticas de cuidado com o corpo e que intervém nos sujeitos de maneira

global. Este profissional da medicina atua como um tipo de guru que aconselha aspectos

pedagógicos, indica formas de organizar o cotidiano, modos apropriados para se relacionar

com as pessoas, substâncias que devem ser ingeridas, grupos políticos para serem associados

e material informativo que deve ser conhecido. Considera inapropriada a intervenção de não-

médicos nas discussões sobre TDAH, mas invade questões mais próprias a outros domínios

de conhecimento ainda mais sem levar em consideração as discussões que já acontecem nas

outras áreas. Isso se torna claro, por exemplo, nas explicações detalhadas de aspectos

pedagógicos que não considera a produção teórica da educação. Quando Mattos trata da

utilização de prêmios como forma de parabenizar um bom comportamento, escreve que:

Tem muita gente que implica com esta história de prêmios, pelos motivos mais

variados (alguns até estranhíssimos e complicadíssimos, que não vamos abordar

aqui). Não se trata de ―comprar‖ ninguém. Acontece que a vida é exatamente assim.

Se você é um bom funcionário, não falta e se dedica ao trabalho, tem grandes

chances de ser promovido, ganhar um aumento ou até ser convidado para outro

emprego melhor. O mesmo vale para a forma como você trata sua namorada ou seu

vizinho. (MATTOS, 2005, p.85, grifos nossos)

O que ele considera como motivos ―estranhíssimos‖ e ―complicadíssimos‖

provavelmente dizem respeito às críticas ao método pedagógico behaviorista. Bastante

criticado nas discussões próprias ao campo da educação é considerado adequado por Mattos

para os sujeitos com TDAH. As orientações desse psiquiatra, membro da ABDA, ilustram

adequadamente o processo social denominado de medicalização, em que há uma expansão do

alcance da medicina para outras áreas. Este profissional passa a exceder a função do

tratamento de doenças para atuar como um mentor capaz de guiar seus pacientes nas múltiplas

práticas de suas vidas.

Ao ter contato com o texto No Mundo da Lua, é possível perceber que várias partes

do conteúdo do site da ABDA são semelhantes ao conteúdo desse livro. A argumentação

insistente de que o transtorno é legítimo, a crítica agressiva contra as alegações de que TDAH

não existe e o tom casual na escrita estão presentes nos dois âmbitos. Além disso, os direitos

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autorais do livro foram cedidos para a ABDA e em alguns momentos o autor sugere aos

portadores a filiação a esta associação. E a defesa do pensamento científico e das instituições

de pesquisa norte-americanas que podemos ver no site é frequente também no livro de Paulo

Mattos, como podemos ver em:

Esta História de TDAH não é uma invenção para vender remédios, ganhar

dinheiro com tratamentos etc.?

Para responder a esta pergunta instigante e não me acusarem de estar ―puxando a

sardinha para o meu lado‖, o melhor mesmo é reproduzir o que a Associação Médica

Americana, uma das mais rigorosas e influentes do mundo, disse a este respeito em

1998, quando se levantou a mesma questão por aquelas bandas de lá: ―O TDAH é

um dos transtornos mais bem estudados em medicina e os dados gerais sobre sua

validade são muito mais convincentes que a maioria dos transtornos mentais e até

mesmo que muitas condições médicas‖. (MATTOS, 2005, p.16 e 17)

Em outro momento, para justificar o tratamento com estimulantes em detrimento de

abordagens alternativas, Mattos desenvolve uma argumentação semelhante: ―A ideia de se

‗tentar‘ alguma outra coisa antes dos medicamentos é comum, mas ela se baseia em

preconceitos, não em evidências científicas. [...] Por vezes, o próprio médico, geralmente por

falta de informação atualizada, acha que o medicamento deve ser reservado para ‗casos mais

difíceis‘‖ (MATTOS, 2005, p.146 e 147).

Ainda a crítica agressiva contra a alegação de que o transtorno não existe também

pode ser vista no livro:

De uma vez por todas: o TDAH não é secundário a problemas com a mãe (ou o pai,

ou o avô, ou quem quer que seja), não é um conflito inconsciente de medo do

sucesso e não é um problema de personalidade. É um transtorno com forte influência

genética em que existem alterações na química do sistema nervoso. (2005, p.46).

Em outro momento, acrescenta:

Aliás, sempre tive uma curiosidade: como é possível alguém saber que existem

inúmeras doenças ‗orgânicas‘ no resto do corpo (diabetes, hepatite, asma, câncer,

hipertensão, etc.) e nenhuma do pescoço para cima? Ali só temos doenças

psicológicas? [...] Com bilhões de circuitos que utilizam milhares de

neurotransmissores diferentes, nunca nada falha? Francamente... (ibid, p.49)

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Embora a argumentação desse psiquiatra defenda critérios de validação do

conhecimento marcadamente cienticifistas e rejeite explicitamente a contribuição de outras

áreas, algumas de suas colocações merecem atenção. Alguns pesquisadores que denunciam a

inexistência do TDAH ou fazem críticas ao uso de Ritalina, frequentemente nem sequer

consideram a possibilidade da existência do transtorno ou de que a medicação pode facilitar a

vida de algumas pessoas. Ao tentar combater o determinismo biológico, este discurso crítico à

medicalização parece se colocar numa pretensa posição de porta voz da verdade que é

ocultada pelo discurso psiquiátrico. Segundo Adriano Aguiar, essa argumentação ―acaba

apelando mais uma vez à ideia de uma ‗verdadeira causa dos transtornos mentais‘, caindo

novamente em um pensamento ‗essencialista‘ que reivindica a verdade e a natureza das

coisas‖ (AGUIAR, 2004, p.140).

Por outro lado, uma questão deliberadamente esquecida por Mattos e tangenciada

pela ABDA, é a existência de falsos diagnósticos que poderiam explicar os altos índices de

indivíduos sob tratamento. Há uma forte confiança nos critérios diagnósticos que, se seguidos

à risca parecem produzir de fato um diagnóstico confiável. Porém, já existe no Brasil uma

série de pesquisas de cunho etnográfico produzidas no ambiente escolar que demonstram

situações em que crianças foram identificadas com o transtorno e posteriormente isso foi

repensado (MOURA, 2015). O que antes era considerado déficit foi relacionado a falhas na

formação escolar ou fatores da dinâmica familiar dessas crianças. Foi observado que os

docentes eram atores bastante responsáveis por categorizar os discentes como portadores de

transtornos, quando não havia uma outra causa mais adequada (CARDOSO, 2007). Essas

reflexões poderiam enriquecer o pensamento de Paulo Mattos sobre o déficit de atenção,

porém, não se sabe se é de interesse desse pesquisador divulgar informações que possam

diminuir o consumo da Ritalina, tendo em vista que o mesmo recebe financiamentos das

empresas que comercializam esse medicamento.

Este livro faz parte de um gênero da literatura científica bastante comum na

atualidade que tem como objetivo a difusão dos conhecimentos neurológicos para um público

mais amplo do que o dos especialistas. A tradução dessa linguagem para pessoas leigas exige

a simplificação de um vocabulário técnico para termos mais cotidianos. Esse procedimento

faz com que muitas pessoas tenham contato com a produção científica dessas áreas e passe a

utilizar o seu acervo semântico. Segundo Azize (2012), tal literatura é responsável pela

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disseminação e popularização da neurociência na sociedade, estimulando uma noção de

pessoa fundamentada nas funções cerebrais. No próximo tópico veremos como essa

autoidenficação a partir de condições biológicas ocorre no fórum do portal da ABDA.

2.3 O fórum das pessoas com TDAH

Para além dos outros conteúdos presentes no site que já foram mencionados, há ainda

um espaço de discussão entre os portadores de TDAH. Trata-se de um fórum nacional em que

os frequentadores do portal da ABDA participam e discutem informalmente aspectos das suas

vidas relacionados com o transtorno. As discussões são bastante diversificadas, mas trago

aqui momentos em que os membros constroem uma comunidade coletiva com base no

diagnóstico e as relações que eles estabelecem com o tratamento medicamentoso. Tenho

como base a produção teórica do sociólogo Nikolas Rose (2013) sobre as novas formas de

constituição do sujeito no período marcado pela política da própria vida.

Primeiramente, cabe dizer que existem regras no fórum definidas pela administração

da ABDA e elas são bastante rigorosas, regulando o conteúdo que pode ser discutido, a forma

como a discussão deve ser levada e os termos que podem ser utilizados. É divulgada uma

série de obrigações nas 45 regras do fórum, que sugerem enfaticamente que os membros

evitem ―discussões pessoais‖, e que eles prezem ―a boa convivência e o respeito mútuo‖

através justamente do cumprimento das regras. Assim, estão proibidos: tópicos não

relacionados ao TDAH; propagandas ou comercialização de produtos; postagens com

conteúdo preconceituoso; a divulgação de outros sites sem a prévia autorização dos

moderadores; divulgação de eventos; conteúdo ou tópicos em caixa alta seja parcialmente ou

em sua totalidade; postagens ou respostas sem conteúdo, ou com conteúdo mínimo; apologia

político-partidária.

Algumas regras restringem significativamente o debate sobre determinados assuntos,

como a número onze, que deixa explícito a proibição de tópicos ou posts cujo conteúdo

questione a existência do TDAH. De forma semelhante, a regra dezenove afirma que matérias

e sites que contestem a existência do TDAH não podem ser divulgados no fórum. Portanto, a

polêmica histórica que existe em torno desse transtorno, que acumula uma série de livros,

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artigos ou vídeos, não pode ser mencionada nesse fórum. A literatura que questiona o TDAH

não é um assunto sequer enunciável nesse espaço. Para além da existência do transtorno, o

crescimento no número de diagnósticos e uso excessivo dos estimulantes também se mostram

como questões que não podem ser discutidas já que não foi encontrado um tópico que

debatesse essas questões.

Apesar dessas normas em alguma medida restringirem as interações no fórum, uma

grande quantidade de tópicos foi criada e questões abrangendo múltiplos aspectos da vida

desses sujeitos foram debatidas. São compartilhados com frequência relatos sobre como a

experiência de viver com o déficit afeta as relações interpessoais de seus portadores, e como

os tratamentos (medicamentoso, terapia e técnicas) podem aliviar os sintomas. Embora exista

diversidade no conteúdo, há uma constância nos diálogos que se assemelha com a estrutura de

um grupo de apoio, em que os participantes relatam os problemas em comum e são buscadas

soluções coletivamente. Este é um aspecto presente em praticamente todas as conversas:

discute-se sobre os problemas ocasionados pelo TDAH em setores como o trabalho,

universidade, relações conjugais, etc.

Há uma identificação geral com as características diagnósticas que, segundo os

participantes, parecem estar os descrevendo. Alguns deles se identificam com a própria

nomenclatura do transtorno, afirmando que, ao invés de estar com o déficit, são TDAH. O

fórum só permite a participação de maiores de 18 anos e muitos deles só foram diagnosticados

já adultos. Quando falam da primeira vez que seus problemas foram associados com um

transtorno médico, relatam esse momento como uma experiência de descoberta. O diagnóstico

surge como uma explicação que faz com que todas as dificuldades apresentadas durante a

vida dos TDAH faça sentido. Essas três pessoas, por exemplo, comentam que:

Joana

Azevedo73

29 de janeiro de 2016 às 19h35

Eu só descobri quando já tinha 37. Minha vida era uma bagunça generalizada. Depois do

diagnóstico e tratamento, as coisas foram entrando nos trilhos aos poucos. Hoje sinto que

tenho algum controle sobre a minha vida.

Mas ás vezes fico pensando quanto tempo perdi…

73

Todos os nomes dos membros do fórum são fictícios visando preservar suas identidades.

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Evelyn

Cunha

1 de fevereiro de 2016 às 15h16

Boa tarde.

Eu desde criança tive problemas na escola, era desatenta, inquieta, achava-me burra e feia. Todos eram

melhores que eu, parecia que nada entrava na minha cabeça… [...] Enfim, descobri que sou portadora

do TDAH através da minha filha. Ela estava tendo muitos problemas na escola, a psicóloga da escola

me chamou para conversar e a encaminhou para fazer terapia. Depois do diagnóstico dela, descobri o

meu. Eu li o livro ―No mundo da Lua‖ e me vi naquele livro, chorei muito, parecia que o autor falava

da minha vida. Fiz vários testes, passei por várias Psicólogas, e veio o resultado. Mas não fiquei triste,

pelo contrário, eu vi uma luz no fim do túnel!.

Sandro Gomes

Lima

14 de julho de 2016 às 17h24

[...]

Bom, tenho 45 e o diagnóstico veio há cerca de um mês. A surpresa foi positiva e é

como se eu tivesse recebido as chaves da casa própria. Pude revisitar todo o meu

passado desde as primeiras memórias, cuidadosamente, em todas as principais áreas de

minha vida, sob a nova ótica. Fui achando muitas respostas e gostando do muito do

―mergulho‖. Vindo à tona, aos dias atuais, o que fazer agora?

Nesses relatos há uma divisão temporal entre o período anterior e posterior ao

diagnóstico. No primeiro momento são marcantes os sentimentos de angústia e frustração

frente a um modo de ser que sofre com os sintomas de desatenção, hiperatividade e

impulsividade. Após ter contato com a classificação psiquiátrica para esses transtornos, esses

sujeitos declaram que os sintomas passam a fazer sentido e podem ser mais bem controlados

através do tratamento. Ao mesmo tempo, várias pessoas no fórum afirmam que é

reconfortante encontrar outras que passam por experiências semelhantes. Nesse sentido,

afirmam que se sentem felizes por ―encontrar pessoas que falam a mesma língua‖, que é

―incrível ver que não é o único assim‖ e que os ―relatos trazem conforto‖.

O diagnóstico funciona como uma matriz explicativa para experiências que fogem à

compreensão: anterior a esse ato discursivo, os sujeitos TDAH sofrem seus sintomas sem

compreender a justificativa dessas suas dificuldades. A identificação com o transtorno confere

ordem a sensações de desconexão com exigências centrais para a vida cotidiana em nossas

sociedades. Se considerarmos esses relatos, diagnosticar uma pessoa com TDAH não é apenas

descrever objetivamente uma realidade. Partindo das reflexões de Austin (1990) sobre a

capacidade performativa da linguagem, é possível afirmar que os diagnósticos não são

declarações constatativas, mas sim operações discursivas que constroem realidades. Afirmar

que alguém é TDAH é produzir uma conexão entre seu modo de vida e os sintomas de um

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transtorno mental que demandam um tratamento específico. Possui a capacidade de construir

vínculos identitários, possibilitar a criação de uma comunidade entre indivíduos com

condições semelhantes e incitar técnicas corporais para o alívio dos sintomas. Isso não quer

dizer que não possam existir alterações neuronais que causam esses sintomas, mas que o

diagnóstico associa esses problemas com uma construção teórica que produz um modo de

vida das pessoas com o déficit.

Em outros momentos, há um compartilhamento de características comuns da

experiência com o transtorno que justifica pensarmos em uma comunidade de sujeitos TDAH.

Geralmente, esse reconhecimento mútuo se dá a partir da percepção de que existem

semelhanças nos relatos entre os membros, principalmente quanto às dificuldades enfrentadas

e na falta de compreensão da sociedade em relação a suas particularidades. Nesse sentido,

algumas falas evidenciam essas características:

Rejane Sousa

2 de fevereiro de 2016 às 23h02

Me identificando com tudo aqui. Nunca sei nada direito. Há dias que sentar e me concentrar

em determinadas atividades, me dá vontade chorar ou sair correndo de braços abertos pelo

mundo hahaha. Brincadeiras à parte, alcançar e concluir um curso de Graduação e Pós, não foi

fácil. Ainda mais, sem saber que tinha a doença. Várias vezes me senti burra. O que para uma

pessoa, podia ser explicado 1 vez, para mim, pelo menos umas 3…. depois disso, eu ficava

com vergonha e tentava ler sozinha. Também buscava ajuda dos amigos. Cheguei num ponto

de me questionar se havia feito a escolha da profissão certa. Via muita gente boa e…. ―eu‖ na

outra margem. Aos poucos, venho compreendendo que de alguma forma, mesmo com

dificuldades nós também somos bons. [...] Vamos juntos, pessoal! Nos apoiando e trocando

experiências. Esse mundo de tratamento é novo para mim, tenho muitas expectativas. Quero

aprender um pouco de vocês!!

Emily Cardoso

Pereira

18 de julho de 2016 às 13h16

ola pessoal,

Me identifico muito com vcs.

Tudo começou, em 2013. quando minha ex-chefe psicologa me demitiu pq eu ‗nao conseguia

acabar as coisas‘ e ela disse ‗acho q vc tem TDAH‘. Fui ao psiquiatra e comecei a tomar

ritalina durante 1 ano mas nao funcionava!Acho ate que piorou..Descartei a ideia…entao,

agora em 2016 voltei a estudar sobre o assunto pois comecei duas faculdades e nao terminei

nenhuma (Administração e Engenharia de Produção) e vi que sou muito agitada, odeio ficar

mto tempo no mesmo lugar..Então, considerei que realmente tenho TDAH (minha familia tb,

inclusive).

Fico pensando no tempo perdido, nas decisões impulsivas e fico muito mal…tenho ate

vontade de me matar…tenho ido no psiquiatra mas nao esta sendo o suficiente…AFF

Bom, sou bailarina clássica desdos 7 anos e isso me ajudou MTO na questão de disciplina.Sou

muito organizada (acho q ate para uma pessoa ‗comum‘). Meu grande problema é manter o

foco, controlar o tempo, hiperatividade (tedio…) e acabar as coisas heheheh

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VAMOS NOS AJUDAR!!

ABRAÇOS

O sentimento de inadequação é bastante presente nos relatos e o sofrimento

decorrente desse estado chega ser insuportável para alguns indivíduos. Pude encontrar ao

menos três referências à possibilidade de suicídio ao longo de todas as postagens. As

dificuldades no âmbito profissional e escolar são as mais citadas, o que pode sugerir que a

dificuldade do desempenho adequado nesses setores sejam as que mais prejudicam os

portadores do transtorno. Da mesma forma, com frequência o TDAH está associado pelos

críticos a pessoas que não atingem as exigências de ambientes como esse e sofrem

indevidamente o diagnóstico. Porém, a relação dificultosa também é narrada em outros

âmbitos, como nas relações interpessoas entre familiares ou conjugues, como no caso abaixo:

Sérgio

3 de fevereiro de 2016 às 8h19

Os relacionamentos amorosos são mesmo complicados, principalmente os nossos!

Comportamentos impulsivos, rotina entediante entre tudo o mais. Pior quando a outra pessoa é

alguém perfeccionista, controladora, avessa a riscos e que parece adorar o marasmo diário.

Completaremos 10 anos de casados, mas começamos a namorar ainda quando eu estava no

colegial e ela no início da faculdade (sou repetente 2 vezes), totalizando 16 anos de

relacionamento. Vira e mexe temos nossas desavenças, mas acabamos segurando a bronca. Em

geral eu levo bem a situação, a rotina. Só que de vez em quando passo por períodos

conturbados, nos quais falto enlouquecer e chutar tudo para o alto, mas sou bastante resiliente.

Ainda assim, nesses momentos, é difícil segurar a emoção e os impulsos, que direciono para

outras coisas.

Mas fiquem firmes! Licota, faça sim seu tratamento medicamentoso e procure também por

psicólogo, em especial da linha TCC74

. Fazendo isso, você vai seguir em frente em diversas

áreas da vida que parecem atravancadas.

Outra questão importante para considerarmos é a proibição de ―consultas online‖ no

fórum, ou seja, os membros não estão autorizados a fazer aconselhamento médico nas

discussões. Segundo as regras, tópicos e posts com esse conteúdo serão deletados sem aviso

prévio. Esta obrigação parece resguardar a posição privilegiada de uma consulta médica,

partindo da crença de que nada substitui a avaliação face a face de um médico para avaliar

uma doença. Porém, no interior do fórum a prática de aconselhamento coletivo acontece em

74

Terapia Cognitivo-Comportamental

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algumas situações. Dessa forma, sobre o tratamento medicamentoso, alguns usuários avaliam

os efeitos dos estimulantes, relatando especialmente os resultados positivos, além de

discutirem sobre quais as substâncias são mais efetivas e quais são as melhores formas de

consumi-las. Como podemos ver nos casos abaixo:

Maria

Rita

4 de fevereiro de 2016 às 15h45

Já tomei a Ritalina de comprimido de 10 mg e me deu uma dor de cabeça terrível também e não deu

nenhum efeito positivo. Quando tomei a Ritalina LA de 20 mg melhorou um pouco minha atenção me

tirou o sono excessivo que tinha e parecia que tinha colocado um ouvido de cachorro minha atenção

melhorou e me tornei mais produtiva mas teve os efeitos colaterais como estômago ruim e entre outros.

E na época o neurologista me receitou também um remédio que foi muito bom pra dor de cabeça e ele

pediu pra eu tomar a ritalina LA somente nos dias de semana mas para mim a diferença medicada e pra

não medicada era muito grande e me fazia mal deixar de toma-la somente no sábado e domingo ou eu

parava de tomar de vez ou tomava a semana toda.

Mas medicada percebi que tive menos pensamentos aleatórios como quando tenho sem a medicação

pois reduzi significativamente minha impulsividade que era de mais mas minha mãe percebeu maiores

diferenças relacionado a comportamento do que eu e então costumo tomar remédios e paro de toma-los

quando estou de ferias pois gosto da minha mente livre nas férias.

JD84

2 de fevereiro de 2016 às 1h22

Durante a época que estava desenvolvendo a parte prática do TCC75

, estava usando dois comprimidos de

Ritalina 10mg de uma vez, acompanhado de cerca de três xícaras de café nesse período – 5h. Como eu

precisava de raciocínio rápido, acho que foi a dose ideal, mas a sensação é de estar drogado. Nunca usei

cocaína, mas já vi conhecidos meus usarem, e a sensação que tive é que meu comportamento ficou igual

ao deles quando nesse estado: falastrão, com pouco filtro, inquieto, raciocínio a mil.

Minha psiquiatra disse pra usar 15mg, já que a de 10mg não estava dando efeito positivo – me deixava

aéreo. Usei 20mg pra não ter que guardar metade de um comprimido pra usar na próxima vez que ia

estudar. Recomendo não tomarem uma dose diferente da que o médico aprovou.

Estou usando 10mg de novo para escrever a monografia, mas, sinceramente, não sinto efeito nenhum.

Não quero usar 20mg por agora por conta desse efeito ―trincado‖ que dá.

Alguns membros pedem sugestões de posologia e outros relatam efeitos adversos,

pedindo sugestões de como resolver esses dilemas com as substâncias utilizadas,

especialmente a Ritalina. Assim, a experiência dos usuários que sofrem do transtorno é levada

em conta nesses casos. Mesmo que o diálogo com o médico seja quase sempre salientado

como uma etapa decisiva para apontar direcionamentos na vida dessas pessoas, em muitos

75

Trabalho de Conclusão de Curso

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momentos foram buscadas e compartilhadas experiências e indicações quanto ao uso e efeitos

das substâncias.

Júnior

13 de fevereiro de 2016 às 15h23

Quando receitam uma medicação de curta duração, vcs tomam várias ao dia? Tenho faculdade de

manhã, estágio a tarde e faculdade a noite também então teria que tomar 3 ritalinas?

Juliana Silva

3 de fevereiro de 2016 às 10h29

Também senti sono ao usar a Ritalina 10 mg, e uma dor de cabeça insuportavél. [...] A unica coisa

que me incomoda bastante é a falta de apetite que sinto após tomar a medicação, perdi 4kg e parece

que não paro de perder peso.

Acontece a mesma coisa com alguém ai que também toma Venvanse?

A relação desenvolvida com o tratamento medicamentoso em geral é bastante

positiva, porém pode divergir em alguns momentos. Muitos apontam o uso das drogas como

uma salvação para os problemas enfrentados no viver com o transtorno, outros relatam

desconfiança com o uso de medicamentos e preferem outras terapêuticas. Tais declarações

contrastam com as descrições dos efeitos de Ritalina feitas em algumas notícias ou por

pesquisadores das ciências humanas, que caracterizam a ação da droga de forma monolítica e

sempre como um agente que dopa seus usuários, tornando-os resignados e obedientes. Além

disso, é demonstrada a importância do médico para mediar o tratamento, porém essa presença

não é incontestável. Se o médico não atender a determinadas exigências pode ser trocado.

Algumas postagens exemplificam isso:

João

Rodrigues

11 de fevereiro de 2016 às 14h28

[...], também trato com Venvanse. Perdi um pouco de peso e tenho boca seca, mas nada

exagerado. O neuro disse que com o tempo as coisas voltam ao normal.

Eu me preocupo com os efeitos da medicação, mas da maneira que a vida estava, não tem

condições. Estava absolutamente sem rumo e frustrado!

Agradeço todos os dias à ciência por ter descoberto tratamentos pros córtex pré-frontal

disfuncionais. Hehehe

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Sandro

Gomes

Lima

18 de julho de 2016 às 15h40

Bom, como já estou convicto que em mim a impulsividade é um fator fortíssimo, e como já li

por aí que nós TDAH temos na cabeça uma ferrari com freios de fusca, o monitoramento e os

cuidados com o que penso e principalmente com os motivos por detrás dos pensamentos, a

forma como ajo e seus porquês, são meu principal ―alvo‖ de atenção.

Além de adotar a prática de ter um diário comigo o tempo todo, no qual registro o que

acontece em mim, o que me facilita na minha terapia cognitivo-comportamental, a prática de

meditação e yoga também vem me auxiliando muitíssimo (isto é, adotei práticas ayurvédicas).

Tudo isso serve apenas para – a despeito das críticas – afastar-me o máximo que posso de

remédios sintéticos. Nada contra a psiquiatria. Mas considero-a ainda muito incipiente em

tudo (como a Ciência é um processo né…) e ninguém (fora Deus, pois sou daqueles que

acredita n‘Ele) me conhece melhor como eu mesmo. Além do mais, todo cuidado é pouco

com remédios sintéticos porque eles – na minha opinião – ―mascaram‖ o que realmente

acontece.

Joana Pereira

25 de abril de 2016 às 10h08

Não gosto de nenhum tipo de medicamento, se sentir uma dor de cabeça evito ao máximo,

Mas sou de confiar nos médicos que me atendem e acompanham minha filha desde

pequenina, não gosto de trocar de profissionais e ainda gosto de debater. [...] Acho que o

relacionamento médico paciente deve ser de cumplicidade e confiança. Se não confias no

profissional, busque outro.

Portanto, estes usuários de medicamentos psiquiátricos além de produzirem, como

comentamos, apreciações detalhadas dos efeitos dessas drogas, pensando as formas mais

adequadas de consumi-las, tecem ainda avaliações da própria orientação do médico que as

prescreveu que, se não atender a certos critérios, pode ser substituído. Isso se contrapõe à

ideia corrente de que a Ritalina poderia produzir um estado de letargia em seus usuários. Para

dar conta da complexidade envolvida nessas relações é preciso sair da distinção binária entre

obediência e liberdade, para, assim, atentarmos para a agência desses indivíduos em construir

vínculos, oferecer conselhos e fornecer apoio entre seus pares.

2.4 Medicalização e agência

A criação de associações de pacientes faz parte de um contexto cultural marcado pelo

o que o sociólogo Nikolas Rose (2013) descreve como o surgimento de uma nova política

vital. Nesse contexto, há um intenso crescimento da medicina e outras ciências da vida na

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produção econômica e subjetiva das sociedades ocidentais. O cuidado com a saúde e a

reconstrução pessoal através da influência sobre o corpo são bastante difundidas, e os

indivíduos passam a compreender frequentemente a si mesmos em termos biológicos. Além

disso, as tecnologias confeccionadas por pesquisadores de áreas como a biologia molecular

têm produzido alterações radicais na forma como podemos compreender a própria vida. Essas

transformações ocorrem ao longo da primeira metade do século XX e são caracterizadas

principalmente por mutações em cinco domínios.

Primeiramente, o olhar clínico da biomedicina que passa a compreender e intervir

sobre o corpo em um nível molecular. As entidades biológicas deixam de ser pensadas em

nível molar (coração, estômago, membros etc.) para serem visualizados em um linguajar

moleculares, como em termos de ―propriedades dos códigos de sequência das bases de

nucleotídeos e suas variações, dos mecanismos que regulam a expressão gênica e a

transcrição, [...] da função dos componentes intracelulares [...] com os seus mecanismos

particulares e propriedades biológicas‖ (ROSE, 2013, p.26). A segunda mutação é

denominada por Rose de otimização e, nesse caso, as nossas capacidades vitais não são

delimitadas apenas pelos polos de saúde e doença, mas passam a ser administradas,

modeladas e projetadas visando um estado excelente de saúde (ROSE, 2013). Além disso, as

quartas e quintas mutações tratam respectivamente do surgimento de uma expertise somática

e de economias da vitalidade.

A terceira mutação teorizada por Rose, central para as reflexões desenvolvidas nessa

dissertação, é denominada por ele de subjetificação e trata de novas formas de

autocompreensão dos sujeitos e de expectativas em relação às condições corporais que

passam a ser mais constantes nessa nova política vital. Valores, que orientam a conduta dos

indivíduos, centrados na existência corporal passam a ser dominantes, constituem os

chamados ―indivíduos somáticos‖ e incitam concepções de ―cidadania biológica‖. Portanto, as

políticas da vida recentes contribuíram para fazer de nós as pessoas que nos tornamos. Ainda,

de acordo com Rose: ―Exercício, vitaminas, tatuagens, piercing corporal, drogas, cirurgia

plástica, redesignação sexual, transplante de órgão: a existência corpórea e a vitalidade do si-

mesmo tornaram-se o lugar privilegiado de experimentos do si-mesmo‖. (ROSE, 2007, p.44)

O antropólogo estadunidense Paul Rabinow, com forte influência de Michel Focault,

também pesquisa como essas relações de saber têm tomado forma com as mudanças

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contemporâneas nas relações de poder. De acordo com Rabinow (1999), projetos científicos

da biotecnologia, como o sequenciamento do genoma, são característicos de um período

marcado pelo que esse autor chama de biossocialidade. Esse conceito exprime o fato de que

na atualidade, em diversas situações, a natureza será conhecida e refeita na técnica, tornando-

se artificial. Nesse contexto de desenvolvimento das tecnologias biológicas, há uma forte

influência sobre as dinâmicas socioculturais e a autopercepção dos indivíduos. Essas

considerações teóricas são demonstradas empiricamente pelo antropólogo, através das

associações de portadores de doença, que se organizam politicamente em torno de uma

condição biológica.

Rabinow desenvolve essas análises a partir de uma pesquisa realizada na primeira

metade dos anos noventa na França com pacientes e familiares que se organizaram

politicamente na Associação Francesa contra as Miopatias (AFM). Essa associação se engajou

no cenário público francês com a intenção de encontrar um tratamento e cura para algumas

doenças através da contribuição para pesquisas científicas, provendo amostras de DNA e

levantando fundos. Essa pesquisa o levou a identificar novas formas de identidades coletivas

que estavam vindo à tona em torno das pesquisas sobre genética. Posteriormente, ele abrangeu

o alcance do conceito de biossocialidade para tocar em outras identidades clínicas que não

estão diretamente relacionadas à genética (RABINOW, 2008).

Atualmente, associações como estas não se restringem às pesquisadas por Rabinow

ou aos portadores de TDAH, apresentando uma ampla diversidade de grupos, cada um com

suas especificidades. Embora façam parte desse contexto de difusão da biossocialidade e

sejam marcadas pelo contexto cultural das políticas vitais pesquisadas por Rose, as

associações produzem críticas a esse mesmo cenário exterior que as constitui. Os grupos

formados por autistas são um caso que ilustra bem essa criticidade que pode existir nessas

coletividades (ORTEGA, 2009). Alguns indivíduos com autismo produziram teses que

confrontam o discurso do saber médico e psiquiátrico sobre essa condição. Para essas pessoas,

o que eles apresentam não se configura em um transtorno ou anormalidade que deve ser

tratada, mas sim uma diferença social como qualquer outra. Procurar uma cura para o autismo

ou desenvolver algum tratamento é visto como algo semelhante a propor um tratamento para

pessoas canhotas, negras ou homossexuais. O conceito de neurodiversidade foi cunhado pela

socióloga Judy Singer (1999), portadora de uma versão leve de autismo, justamente para

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explicar essa diferença. De acordo com ela, as conexões neurológicas atípicas (ou

neurodivergentes) não devem ser tratadas, mas sim respeitadas como qualquer diferença

humana.

As associações de portadores de TDAH, embora apresentem também as suas

diferenças internas, não desenvolvem um distanciamento tão nítido do saber médico. Pelo

contrário, como apresentamos, muitos desses grupos têm médicos e outros profissionais da

saúde em sua diretoria e reproduzem as teses da psiquiatria biológica. A ABDA, então, é um

exemplo disso, onde praticamente não existem portadores do transtorno nas funções

burocráticas e conselho da associação. Isso poderia sugerir que, no fórum da ABDA, se

confirmaria a descrição estereotipada dos sujeitos TDAH como vítimas do controle médico,

imagem está veiculada com frequência pela mídia e pelos críticos. Porém, não foi exatamente

isso que foi observado nas interações entre os membros desse espaço. Embora exista essa

forte presença dos profissionais da saúde na composição da ABDA, no espaço do fórum as

pessoas fazem declarações que não necessariamente estão restritas ao que dita esse saber.

A partir de certa perspectiva das ciências humanas e em particular dos críticos do

TDAH, seria possível pensar que a prescrição dos psicofármacos responde a um processo de

medicalização social, em uma concepção estritamente negativa, ou que se trata de uma forma

de controle para um comportamento desviante, como o de pessoas que não conseguem atingir

um desempenho adequado na escola, trabalho ou nas relações interpessoais. Então, esse

discurso parece sugerir que os indivíduos diagnosticados pela classificação psiquiátrica são

vítimas do discurso ideológico dos médicos, e que é necessário desvelar esse falseamento em

busca da verdadeira causa do que é pensado enquanto um transtorno. Essa abordagem teórica

está presente em alguns pensadores da antipsiquiatria (SZASZ, 1974) ou nas primeiras

acepções do conceito de medicalização (ZOLA, 1972; ILICH, 1976).

Porém, para ser utilizado de forma adequada com o material empírico aqui analisado,

o conceito de medicalização necessitaria de uma inflexão a partir da concepção de poder

foucaultiana (2013). Os processos de expansão da medicina para os mais múltiplos âmbitos da

existência humana não podem ser considerados simplesmente como uma força que diz não,

que reprime e produz controle social. Pelo contrário, há um caráter positivo atuando nesses

processos que induz determinada forma de estar no mundo e depende significativamente da

agência dos sujeitos. É necessário atentar não apenas para o que a medicalização proíbe ou

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dificulta, mas também para o que esses processos induzem a fazer. Dessa forma, é possível

encontrar ferramentas teóricas baseadas nessas reflexões em estudiosos dessas temáticas

como os próprios Nikolas Rose e Paul Rabinow.

O que pode ser observado na rede de apoio entre sujeitos TDAH, no fórum da

ABDA, não são pessoas passivas que foram dominadas e coagidas a consumir um

psicoestimulante. Não relatam nenhuma situação em que apresentaram dependência química

dos medicamentos, muito menos sintomas de abstinência quando deixam de tomá-los. O que

não significa que não ocorra, mas nem uma menção no fórum, durante o período de avaliação

desta pesquisa, sinaliza uma escassa ocorrência desses efeitos. Da mesma forma, não

mencionam o efeito colateral de zoombie like, bastante presente em notícias que criticam a

Ritalina, em que o usuário da droga fica quimicamente contido em si mesmo. São

apresentadas relações complexas e variadas com os fármacos, desde pessoas que não se dão

bem com o tratamento medicamentoso a outras que identificam nessas substâncias uma

ferramenta de suma importância para as suas vidas. Como já discorremos, são também feitas

avaliações dos efeitos obtidos, repensada a quantidade dos comprimidos, os horários mais

adequados, compartilhadas táticas para lidar com as reações adversas e, se for o caso, o

medicamento é substituído em diálogo com o médico. Além de o próprio médico não ser

considerado uma autoridade que não pode ser questionada, mas sim um dos atores que fazem

parte da vida das pessoas com o transtorno que, se não atender às expectativas do paciente,

pode ser substituído por outro que forneça mais confiança. Em geral, as dificuldades

cotidianas daqueles que se identificam como TDAH são pensados em termos de sintomas e

nomeados de acordo com a linguagem médica, mas a utilização desses discursos carrega um

grau importante de ação autônoma por parte dos indivíduos. Isso está de acordo com o que

teóricos contemporâneos dos estudos sobre medicalização reivindicam: uma maior atenção ao

papel ativo dos indivíduos nesses processos.

Portanto, para além de produzir apenas resignação e obediência, o diagnóstico e uso

de medicamentos como a Ritalina tornam possível o exercício de bioidentidades. Os sujeitos

que frequentam o fórum não são pessoas apáticas e com a criatividade obstruída pela ação dos

medicamentos. São indivíduos que possuem dificuldades semelhantes na cognição, que

encontram na nomenclatura do diagnóstico uma fonte de explicação para seus problemas, e

que utilizam os psicofármacos como uma ferramenta para viver sem tanto desconforto.

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CAPÍTULO 3 – O USO DE RITALINA COMO “DROGA DA

INGELIGÊNCIA”

Neste capítulo utilizarei como objetos de análise fóruns virtuais e blogs que circulam

informações a respeito da Ritalina enquanto ―aprimorador‖ cognitivo. Descrevo

principalmente o blog ―Cérebro Turbinado‖, que conta com cerca de 40 textos, levando em

consideração também as respostas de seus leitores na seção de comentários. Além do site em

si será considerado o e-book ―Turbine seu Cérebro‖, escrito pelo autor do blog, onde consta

um material mais detalhado sobre o aperfeiçoamento farmacológico do cérebro. Menciono,

ainda, a existência de fóruns de discussões internacionais e nacionais a respeito dessa

substância, que serão trazidos enquanto exemplos de espaços virtuais de discussão sobre a

Ritalina e outros fármacos para a cognição.

Cabe destacar que dentre as chamadas ―drogas da inteligência‖, a Ritalina é o

medicamento que possui maior repercussão na mídia (ITABORAHY, 2009), com algumas

discussões sociológicas realizadas sobre o crescimento de seu consumo e o único com

estatísticas sobre o nível de sua utilização no Brasil. Além disso, possui uma presença virtual

marcante, que varia entre relatos de usuários sobre seus efeitos em forma de texto ou vídeos;

comercialização ilegal com um preço mais elevado do que nas farmácias; críticas agressivas

ao seu consumo massivo em blogs, jornais e revistas; e também defesas de sua utilização para

as pessoas com TDAH.

A utilização dessa droga é pensada aqui enquanto uma das múltiplas formas de

construção do corpo através do uso de biotecnologias que tem ocorrido na

contemporaneidade. E ao mesmo tempo relacionada à produção de subjetividade e criação de

estilos de vida que tem ocorrido com o uso de psicofármacos, principalmente devido ao

contexto de crescimento do consumo e diversificação da finalidade dessas substâncias. Nesse

sentido, será utilizada neste capítulo noção de psicofarmacologia como uma forma de vida,

elaborada por Nikolas Rose, para pensar as práticas coletivas dos usuários de Ritalina como

um ―aprimorador cognitivo‖. Também utilizaremos as teorizações de Paul Preciado sobre o

surgimento de um regime farmacopornográfico na atualidade, que tem o potencial de

estimular modificações significativas nas práticas de cuidado com o corpo e na autopercepção

dos sujeitos.

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Para tanto me deterei na aparição da Ritalina enquanto ―aprimorador cognitivo‖ no

blog ―Cérebro Turbinado‖. Nesse sentido, será feita uma reflexão sobre os discursos que

aderem a um modo de vida marcado pela necessidade de ter um super desempenho

(BARROS, 2014), e de atender a critérios socialmente definidos de produtividade. Por fim,

será questionada a associação entre esses hábitos e a docilização dos comportamentos em

relação às exigências disciplinares.

3.1 As “drogas da inteligência”

O uso de psicoativos como estímulo para atividades intelectuais não é algo recente.

Movimentos artísticos e literários como os Beats, e Charles Baudelaire e outros membros do

Club des Hashischins foram fortemente influenciados em seus processos criativos por essas

substâncias. Algumas delas foram utilizadas com essa finalidade a partir da promessa de que

produziriam a expansão da consciência ordinária, fazendo com que seus usuários tivessem

acesso a pensamentos não usuais. Interlocutores das pesquisas de Edward MacRae e Gilberto

Velho, por exemplo, declaram que há uma relação positiva entre maconha e a criatividade

(MACRAE & SIMÕES, 2000), e que ela dá clareza e facilita o autoconhecimento (VELHO,

1998).

Porém, há modalidades de uso de psicoativos para mediar a criação intelectual que

não se caracterizam por alterações na percepção sensorial, com a diminuição da autonomia do

corpo e da razão. Conforme mencionado anteriormente, as chamadas Smart Drugs, ou

―drogas da inteligência‖, são compostos capazes de melhorar o desempenho mental em

indivíduos saudáveis, potencializando algumas capacidades cognitivas, através do aumento na

concentração e foco, controle dos impulsos, redução da fadiga mental, maior retenção de

conteúdo e motivação. Portanto, geralmente não causam fuga da realidade, mas têm uma

potencialidade de produzir maior engajamento com a vida social. São substâncias que,

dependendo de como são consumidas, podem driblar processos biológicos como cansaço,

sono, e fazer com que seus usuários possam estudar durante horas em estado de vigília.

É devido a esses efeitos que cada vez mais pessoas estão adotando o uso diário

desses psicofármacos, buscando maximizar os níveis de performance cognitiva em ambientes

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como empresas, universidades ou as forças armadas. Suas vendas excederam um bilhão de

dólares, em 2015, no mundo e essa demanda vem crescendo rapidamente (CHINTHAPALLI,

2015). Inclusive, existem atualmente algumas lojas virtuais em território nacional e

internacional que comercializam substâncias como essas76. Dentre elas, são comumente

utilizados medicamentos para doenças neurodegenerativas, suplementos alimentares, extratos

vegetais e principalmente alguns psicoestimulantes usados na psiquiatria.

Um dos principais medicamentos utilizados é o metilfenidato que, de forma não

prescrita, é muito procurado pelo seu efeito estimulante, que reduz a fadiga mental e prolonga

o tempo de estudo, mas também pelo aumento na concentração, fazendo com que seus

usuários foquem em determinada tarefa e não se distraiam (FARAH et al, 2015). Esses

consumidores não apresentam o diagnóstico de uma patologia formal, mas subvertem a

indicação para aumentar a concentração e permanecer mais tempo estudando. É amplamente

divulgada em blogs e nas redes sociais como uma droga capaz de melhorar o desempenho

cognitivo, sendo até mesmo comercializada ilegalmente em alguns desses espaços virtuais.

Os usuários das ―drogas da inteligência‖ criaram alguns espaços mais restritos de

discussão online sobre medicamentos que aumentam a capacidade cognitiva. Esses fóruns

foram iniciados no começo desse século em plataformas como o Loungecity e Reddit e

constam com a participação de centenas de pessoas se engajando em exaustivas discussões.

Nesses espaços, debatem-se com afinco questões como: dosagens adequadas, combinações

entre diferentes substâncias, táticas de redução de danos, entre outras. Também são feitos

aconselhamentos entre os usuários, incluindo a busca por substâncias específicas de acordo

com o efeito procurado, divulgações de pesquisas científicas e compartilham-se diariamente

vários relatos da relação desses usuários com as drogas. São importantes espaços de interação

e talvez o principal meio de acesso às informações sobre psicofármacos para fins de

desempenho intelectual, mostrando-se ainda como um canal de comunicação especial entre os

membros do que pode ser considerada uma comunidade dos usuários das ditas ―drogas da

inteligência‖.

No Brasil, existem fóruns semelhantes no facebook e em grupos de whatsapp, porém

são fechados e dificilmente é possível ter acesso a seus conteúdos. O canal informativo mais

acessível, então sobre nootrópicos em nosso país são blogs que produzem textos sobre o

76

São exemplos dessas lojas: NootrópicosBrasil, Nootrobox, Nootroo, Peaknootropics e Ceretropix.

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assunto. Embora essas páginas não apresentem a estrutura de fórum (que é caracterizada por

sequências de postagens destinadas a promover debates sobre questões específicas), através

da seção de comentários é possível ter contato com a fala dos usuários dessas substâncias.

Além disso, os próprios blogs veiculam um estilo discursivo e tratam de temáticas bastante

semelhantes entre eles, onde é possível observar as motivações, as indicações de como

consumir os medicamentos, as formas de adquirir as drogas: em suma, é possível perceber

aspectos de um estilo de vida farmacológico próprio aos usuários das ―drogas da

inteligência‖.

Destaco então o sítio ―Cérebro turbinado‖ que, baseado em pesquisas da área de

farmacologia, disponibiliza amplo conteúdo sobre essas drogas e também publica textos com

base em experiências pessoais. As matérias frequentemente iniciam relatando como as

substâncias podem auxiliar pessoas que precisam dar conta de uma alta carga de estudos. Em

seguida, são descritos os efeitos esperados a partir de literatura científica combinada aos

relatos do autor do blog. Nesse sentido, são espaços virtuais que podem ser considerados

meios importantes para a produção de relações em torno das Ritalina. No próximo tópico, há

uma descrição detalhada sobre esse sítio e a rede de relações que ele abarca.

3.2 Cérebro Turbinado

O endereço eletrônico cerebroturbinado.com nos direciona a um blog que tem como

tema o aprimoramento cognitivo através do uso de medicamentos. Nesse espaço são

divulgados textos que discorrem detalhadamente sobre substâncias que podem ser utilizadas

por indivíduos saudáveis para estimular a produção intelectual. São escritos por uma única

pessoa que é usuária desses compostos e descreve nos textos as suas experiências com os

medicamentos, demonstrando conhecimento de uma ampla variedade deles e das melhores

formas de utilizá-los. Por ser estudante de medicina, seus artigos frequentemente são

fundamentados em pesquisas científicas e o autor sempre aponta a necessidade de consultar

um médico antes de usar qualquer medicamento. Além do conteúdo veiculado no blog, o

autor ainda comercializa um ebook no qual aprofunda mais o assunto no valor de 30 reais.

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86

O principal foco do blog é uma classe de substâncias químicas denominadas de

nootrópicos. De acordo com a definição, os nootrópicos possuem a propriedade de aumentar o

desempenho cognitivo, porém sem apresentar níveis de toxicidade. O termo foi criado pelo

químico romeno Corneliu Giurgea (1972) a partir das palavras gregas nous (mente) e trepein

(dobrar), para designar substâncias que produzem de forma segura benefícios cognitivos. Em

suas pesquisas nos anos sessenta para produzir novas drogas sedativas, Giurgea e sua equipe

sintetizaram uma série de compostos focando principalmente numa substância denominada

Piracetam. Este medicamento nunca chegou a produzir um efeito de sedação, porém

apresentou efeitos positivos em funções cognitivas.

Essa descoberta inesperada deslocou o foco dos estudos e fez com que esses

cientistas começassem a produzir experimentos em animais e posteriormente em cobaias

humanas, sobre a capacidade dessa droga de facilitar a memória e os processos de

aprendizagem, observando ainda a utilização no tratamento de doenças neurodegenerativas

associadas à velhice. Embora esse seja um conceito científico bastante preciso, o termo

nootrópico foi disseminado com um sentindo diferente do que foi atribuído pelo químico

romeno. De acordo com Giurgea (1982), para uma substância fazer parte dessa classificação é

necessária a ausência de qualquer efeito estimulante, sedativo ou tóxico. Portanto a Ritalina

não pode ser considerada parte dessa classificação, tendo em vista que é um psicoestimulante

com efeitos colaterais e apresenta potencial de dependência.

Porém mesmo que haja uma questão terminológica que diferencia as ―drogas da

inteligência‖ dos nootrópicos, essa classificação é frequentemente confundida. Muito do que

se vincula na mídia sobre aprimoradores cognitivos está relacionado à Ritalina ou ao

modafinil77. E entre os próprios usuários de nootrópicos, fármacos utilizados na psiquiatria

são constantemente mencionados e parecem ser populares entre eles. O ―Cérebro Turbinado‖

escreveu ao menos dois textos sobre a Ritalina e produziu um relato sobre o uso diário desse

fármaco durante sete dias. Quase nenhum outro medicamento recebeu a atenção que o blog

deu ao metilfenidato, seja nos textos que focam diretamente na droga ou nas referências em

77

Stavigile é um medicamento que tem como substância ativa a modafinila, que age no cérebro para aumentar o

estado de vigília (estado de se manter acordado). É este medicamento é destinado ao tratamento da narcolepsia,

auxiliando na manutenção do estado de vigília (manter-se acordado).

Fonte:

http://www.anvisa.gov.br/datavisa/fila_bula/frmVisualizarBula.asp?pNuTransacao=9433122013&pIdAnexo=18

57435. Acesso em 28 de dezembro de 2016.

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87

outros artigos. Esse fato pode sugerir que dentre o público dos usuários desses fármacos, o

medicamento foco dessa dissertação é um dos mais comentados.

Ao ter contato com o discurso do blog, é possível pensar que as razões para consumir

nootrópicos são influenciadas pelas demandas de competitividade e produtividade próprias à

sociedade capitalista. Principalmente nos artigos introdutórios à temática, o autor afirma que o

uso delas se justifica pelos ―ambientes acadêmicos cada vez mais competitivos‖, as ―jornadas

de trabalho extenuantes‖ ou a necessidade de enfrentar ―vestibulares e concursos‖. Em uma

seção que esclarece dúvidas frequentes sobre os nootrópicos, o autor afirma que:

Nootrópicos e drogas inteligentes possuem aplicações terapêuticas e indicações

clínicas oficiais, reconhecidas por agências sanitárias. Contudo, em pessoas

saudáveis os nootrópicos são cada vez mais usados com o único objetivo de

melhorar a performance de pessoas que já possuem um desempenho cognitivo

saudável e normal. De acordo com a mídia, isso ocorre amplamente em ambientes

de trabalho competitivo, como o Vale do Silício, considerada a capital mundial da

indústria de tecnologia; centros financeiros, como Wall Street e em universidades

nos Estados Unidos e Reino Unido.

(Disponível em: http://www.cerebroturbinado.com/2016/06/respondendo-aos-

ceticos-sobre.html).

Tanto nos fóruns virtuais internacionais quanto no conteúdo do referido blog, é

sempre reiterada uma motivação para o uso dessas substâncias orientada por uma necessidade

de maximizar o desempenho em atividades acadêmicas e/ou profissionais. Aqui no Brasil é

frequente o uso entre concurseiros que desejam estudar por horas para conseguir um vínculo

empregatício estável. Em outro exemplo veiculado no site, também são frequentes

comentários sobre o modafinil, droga oficialmente indicada para pessoas com distúrbio do

sono, que, quando usada por indivíduos saudáveis, pode inibir o sono por longos períodos

Segundo o autor do site:

É que o modafinil, segundo seus usuários, garante um foco extraordinário, um

estado de "superconcentração", em que é possível trabalhar ou estudar sem cansaço,

por várias horas seguidas. Em terras apaixonadas pela produtividade, resultados e

sair em primeiro lugar em tudo; o modafinil é ouro.

(Disponível em: http://www.cerebroturbinado.com/2015/07/como-funciona-o-

stavigile.html).

Da mesma maneira, podemos observar um uso que responde à busca por

produtividade também em postagens sobre a Ritalina:

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Ela é a menina dos olhos dos concurseiros que ambicionam o emprego dos sonhos.

É a queridinha de jovens que sofrem a pressão dos vestibulares. E é o estimulante

predileto de muitos executivos bem sucedidos. Fonte:

http://www.cerebroturbinado.com/2015/08/ritalina-tudo-o-que-voce-sempre-

saber.html

Em trechos do e-book ―Turbine seu Cérebro‖, argumentos semelhantes sobre as

motivações para o uso dessas substâncias são utilizados. No capítulo ―Os nootrópicos são as

drogas do século XXI‖, o autor comenta que a inteligência é uma das habilidades mais

valorizadas atualmente no mercado de trabalho, citando como exemplo os altos salários dos

funcionários das grandes empresas de tecnologia. Prossegue o raciocínio defendendo que,

pela sua experiência, vale a pena fazer tudo o que for possível para garantir o sucesso e, se o

cérebro não consegue dar conta das demandas do meio, faz sentido buscar as maneiras de

obter essa adaptação. Assim, o uso de nootrópicos é justificado tendo em vista que:

Para sobreviver numa sociedade cujo lema mais forte é ―o homem é o lobo do

próprio homem‖, não há armamento mais eficiente que um cérebro mais forte,

dinâmico e mais resiliente – isto é, um que não cederá ao estresse, ao cansaço ou à

tensão. O desempenho cognitivo – envolvendo a percepção, o raciocínio lógico, o

juízo, a concentração, o processamento de informações, a memória e o aprendizado

– é altamente exigido no mundo de hoje. (p.15)

Essa declaração demonstra a proximidade ideológica entre o autor do site e as

exigências de nosso regime econômico, ou ainda a resignação em relação a esses

determinantes sociais. Esses discursos dão a entender que existe uma adesão por parte desses

indivíduos a características do que o filósofo Félix Guatarri denomina de subjetividade

capitalística (1985; 1996). De acordo com esse autor, o capitalismo não é apenas um regime

econômico, tendo em vista que esse regime se sustenta a partir de uma produção serializada

de subjetividade. Essa produção capitalística modela os indivíduos de acordo com as

máquinas de controle social, portanto, interliga essas instâncias com os modos perceber o

mundo e de se articular com o meio urbano.

Nesse sentido, a dinâmica do capital funciona como um operador semiótico a serviço

de determinadas formações sociais que ressoam nas instâncias psíquicas dos sujeitos. Ou seja,

os padrões do mercado serializam e individualizam as pessoas modelando minuciosamente os

seus modos de vida. Portanto, as necessidades próprias ao regime econômico, como as de

competição e produtividade, são interiorizadas pelos sujeitos, como o que vemos entre os

usuários de nootrópicos e ―drogas da inteligência‖. De acordo com Guatarri, nessa produção:

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Os indivíduos são reduzidos a nada mais do que engrenagens concentradas

sobre o valor de seus atos, valor que responde ao mercado capitalista e seus

equivalentes gerais. São espécies de robôs, solitários e angustiados,

absorvendo cada vez mais as drogas que o poder lhes proporciona, deixando-

se fascinar cada vez mais pela promoção. E cada degrau de promoção lhes

proporciona um certo tipo de moradia, um certo tipo de relação social e de

prestígio. (GUATARRI e ROLNIK, p.40).

Nesse trecho, o autor comenta a adesão a uma subjetividade individualizada em

especial pelos trabalhadores na sociedade capitalística. Ao mencionar ―as drogas que o poder

lhes proporciona‖, ele estava utilizando o termo ―drogas‖ num sentido figurado para se referir

aos efeitos positivos que esse modo de vida oferece. Porém, é possível atribuir um sentido

diferente a essa frase, e pensar como as drogas, em um sentido literal, podem auxiliar nesse

processo de ascensão a posições superiores na hierarquia social. Portanto, essas substâncias e

discursos sobre a necessidade de um desempenho cognitivo turbinado podem produzir uma

serialização da subjetividade em relação às máquinas de controle social.

Outro aspecto do blog ―Cérebro turbinado‖ que merece ser considerado é a relação

estabelecida com o saber médico ou, de forma mais abrangente, com o modo de produção de

conhecimento da ciência. Logo na página inicial, na parte lateral à direita, há uma postagem

em destaque que divulga a venda do e-book. Nela está escrito que ―ninguém está fadado a ter

o mesmo desempenho intelectual para sempre. A ciência sabe como otimizá-lo‖. Em outros

textos do blog, voltados a contra-argumentar críticas ou desconfianças em relação aos

nootrópicos, frequentemente o autor afirma que existem anos de ciência fundamentando o uso

dessas substâncias em indivíduos saudáveis. Além disso, todas as vezes que escreve sobre

alguma droga são referenciadas pesquisas que justificam os seus efeitos positivos para a

cognição. Portanto, as pesquisas científicas são discursos basilares na produção de

conhecimento sobre as substâncias analisadas pelo administrador do site. Embora as

experiências pessoais sejam frequentemente utilizadas para justificar o uso das drogas, sobre

esse método o autor afirma que ―trata-se de puro empirismo e nenhum fundamento científico.

São as coisas que eu senti, durante a minha experiência‖78.

A importância dada às pesquisas científicas não se restringem aos textos publicados

pelo administrador da página, ela abrange também os leitores, como podemos ver em alguns

78

Fonte: http://www.cerebroturbinado.com/2015/08/ritalina-tudo-o-que-voce-sempre-saber.html. Acesso em 29

de dezembro de 2016.

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90

de seus comentários. No caso abaixo é possível observar os leitores do blog discutindo com o

autor sobre pesquisas científicas relativas ao metilfenidato. Nesse exemplo, trata-se de uma

pesquisa desenvolvida na UFRGS sobre o dano produzido no DNA de ratos após consumirem

o metilfenidato. Esse trabalho foi citado por um leitor chamado Henrique e teve resposta do

autor do blog.

Figura 07 – Comentários em uma postagem do Cérebro Turbinado

Fonte da imagem: http://www.cerebroturbinado.com/2015/08/ritalina-tudo-o-que-voce-sempre-saber.html.

Acesso em 29 de dezembro de 2016.

Figura 08 – Resposta a um comentário pelo autor do blog

Fonte da imagem: http://www.cerebroturbinado.com/2015/08/ritalina-tudo-o-que-voce-sempre-saber.html.

Acesso em 29 de dezembro de 2016.

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91

O comentário do leitor foi feito na matéria que apresentava o relato de uma

experiência de uso da Ritalina por sete dias. O autor do blog demonstra já ter conhecimento

da pesquisa mencionada e responde aos questionamentos utilizando um linguajar próprio às

pesquisas da farmacologia. O mesmo diálogo com certas pesquisas científicas sobre as drogas

também pode ser visto nos fóruns internacionais sobre nootrópicos. No Reddit, por exemplo,

as discussões se estendem ao longo de várias páginas e discorrem sobre as pesquisas de forma

mais aprofundada. Além de haver uma seção específica para o compartilhamento de artigos

científicos, ao longo do fórum existem comentários sobre temáticas como o aumento dos

níveis de dopamina, testes genéticos, redução de prolactina, efeitos no sistema nervoso

autonômico etc. O próprio estilo de escrita desses espaços é marcado por uma linguagem

técnica característica das ciências biológicas. Esses fóruns em inglês são descritos no blog

como uma importante fonte de informação, e um dos seus objetivos é facilitar o acesso a

conteúdos como esses em língua portuguesa.

A discussão sobre essas pesquisas ocorreu ainda em outros momentos no espaço para

comentários do blog. Isso dá a entender que não há um distanciamento tão claro entre o

discurso do saber médico e os usuários dessas drogas, tendo em vista que com frequência o

consumo dessas substâncias é fundamentado em pesquisas farmacológicas. Nos textos

produzidos no ―Cérebro Turbinado‖, citar pesquisas é uma forma de argumentar e defender a

legitimidade dos efeitos das drogas discutidas, fazendo referência aos primeiros trabalhos

realizados nos anos sessenta até os mais atuais. Dentre eles, são também referenciadas

pesquisas científicas que inclusive explicam os efeitos positivos no uso da Ritalina em

indivíduos saudáveis. Para ter uma ideia da presença dos artigos científicos, em um texto do

blog ―Cérebro Turbinado‖ que contra-argumenta críticas aos nootrópicos, são citadas mais de

vinte pesquisas sobre substâncias como Piracetam, Ginkgo Biloba, Sulbutiamina e L-teanina.

Ainda sobre isso, o e-book afirma que existem centenas de estudos sobre as substâncias que

melhoram o funcionamento cerebral.

Em contrapartida, os sujeitos TDAH, no fórum da ABDA, que vimos no capítulo

anterior, não mencionaram em um só momento artigos científicos sobre o seu transtorno, mas

sim textos mais didáticos e simplificados como o livro ―No Mundo da Lua‖. De acordo com o

que foi observado, os dois grupos de usuários de Ritalina utilizam discursos diferentes para

legitimar o consumo dessa droga. As pessoas com TDAH que participam do portal da ABDA

geralmente narram as dificuldades que passam por serem portadoras de um transtorno,

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92

demonstrando como o sofrimento causado pela sua condição é aliviado com o uso do

metilfenidato. Já o autor do ―Cérebro Turbinado‖, e parte de seus leitores, relatam os efeitos

objetivos proporcionados pela droga na concentração e na redução da fadiga.

Para além dessas questões gerais, notadas no blog, é importante analisar como o

metilfenidato é descrito no conteúdo desse site. A Ritalina é mencionada com frequência nos

textos do blog, porém, além de menções pontuais, foram escritos dois textos que focam

diretamente nela. O e-book dedica uma seção específica para esse medicamento, fazendo um

balanço geral das principais pesquisas sobre esse fármaco em pessoas sem o déficit de

atenção. Nos dois artigos do ―Cérebro Turbinado‖ foram feitos alguns comentários por

leitores que também serão considerados para análise.

O primeiro texto é denominado de ―O crescente mercado ilegal de Ritalina‖ e nele é

feito uma descrição de alguns meios em que se comercializa esse medicamento de forma não

prescrita na internet. De acordo com esse artigo, o metilfenidato é bastante comercializado no

espaço virtual e de forma bastante visível. Alguns vendedores chegam a fazer pacotes

promocionais para quem compra mais de uma caixa, e podem vender o produto com um preço

quatro vezes maior que o da farmácia. Através de sites voltados especialmente para essa

comercialização, ou mesmo no grande site de vendas gerais ―mercado livre‖, não é preciso

grandes esforços para adquirir o medicamento sem passar pela avaliação de um médico. O

autor menciona ainda declarações da polícia federal de que não há estrutura para efetuar a

fiscalização desses crimes eletrônicos. Outra questão importante é que nessa matéria autor

relaciona o alto índice de vendas desse fármaco a esse consumo não prescrito. Ele afirma que:

Você seria um tolo em acreditar que o crescimento galopante no uso de Ritalina se

deve apenas a criancinhas com déficit de atenção. Claro, o TDAH é cada vez mais

diagnosticado. Mas não é preciso pensar muito para concluir que muitas dessas

caixas de Ritalina acabam nas mãos de quem não tem doença psiquiátrica alguma.

(Disponível em: http://www.cerebroturbinado.com/2015/08/o-crescente-mercado-

ilegal-de-ritalina.html.)

Essa afirmação parece ter sido pensada tendo em vista a facilidade com que é possível

ter acesso à Ritalina sem passar por um médico, porém outras pessoas também chegaram à

mesma conclusão com base, de fato, em pesquisas. A psicóloga Denise Barros (2014)

produziu uma tese em que foram entrevistados usuários de metilfenidato como um

aprimorador farmacológico e, a partir do contato com esses sujeitos, sugeriu que seria

bastante provável que os altos índices de consumo da Ritalina também sejam resultado da

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aquisição por pessoas que não possuem o diagnóstico de TDAH. Também, para além das

pessoas que participaram da pesquisa de Barros, há o relato, em sua tese, de uma rede mais

ampla que tem consumido o fármaco.

Já o segundo texto é denominado de ―Ritalina: tudo o que você sempre quis saber,

mas tinha medo de perguntar‖ e nele é feito um experimento de uso diário, por uma semana,

desse medicamento. Embora o blog aconselhe repetidamente que é necessário procurar um

médico antes de utilizar qualquer medicamento e também para avaliar a saúde, nesse caso o

autor demonstra como adquiriu o fármaco se fazendo passar por portador de TDAH. Sobre

esse momento, e observando os procedimentos médicos, o autor afirma que:

O que eu fiz? Bastou fingir que eu tinha TDAH. Não, eu não irei fazer um

guia para você ou publicar uma cartilha de ―como conseguir Ritalina no

psiquiatra‖. Está fora do escopo desse texto discutir a fundo questões como a

existência do TDAH (ainda calorosamente debatida). Mas está aqui uma

prova de que psiquiatras prescrevem o remédio por vezes

despreocupadamente. Os sintomas do TDAH são vagos e o critério de

diagnóstico é fraco - é praticamente clínico. Em muitos psiquiatras, é no

estilo ―responda a esse teste da Capricho para vermos se você tem TDAH e

leve sua receita, até a próxima‖.

Fonte: http://www.cerebroturbinado.com/2015/08/ritalina-tudo-o-que-voce-

sempre-saber.html).

O relato dessa experiência contrasta com o que se mostra ser uma carência de

reflexões de psiquiatras sobre os falsos diagnósticos e a possibilidade dos médicos

prescreverem os medicamentos sem se aterem a critérios mais rígidos. Autores como Paulo

Mattos, por exemplo, demonstram bastante confiança nos critérios para diagnosticar TDAH, e

argumentam que, a partir de uma análise cuidadosa do comportamento do paciente, a

avaliação é feita com segurança (MATTOS, 2005). A defesa do rigor desses critérios é tanta

que esse psiquiatra não chega a considerar sequer em seu livro a existência de falsos

diagnósticos, já que parece pressupor que necessariamente os médicos produzirão uma leitura

adequada. Porém, talvez pela falta de diálogo com as pesquisas fora da psiquiatria, esses

pesquisadores não levam em conta que a prescrição exagerada e os diagnósticos que foram

posteriormente reconsiderados são realidades documentadas em alguns trabalhos que abordam

essa questão.

Ainda sobre a experiência de fingir ter TDAH, é interessante observar a contradição

entre o respeito à autoridade médica e os momentos em que esse poder é burlado no conteúdo

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do blog. Se por um lado, o próprio paciente produz seu diagnóstico ao induzir o médico, por

outro, a figura médica é sempre apontada como possuidora da legitimidade para fundamentar

o uso ou não de medicamentos. Assim, é constante a lembrança de que o conteúdo não tem a

―intenção de curar, diagnosticar ou tratar qualquer doença, nem endossa o uso de qualquer

substância com fins medicinais‖. No e-book isso também é reforçado quando é dito que as

informações não são aconselhamentos médicos, mas sim uma interpretação leiga de estudos

científicos. Isso pode levar a uma interpretação de que as constantes declarações presentes no

blog que reafirmam esse monopólio da figura do médico podem ser até mesmo mecanismos

de defesa quanto a possíveis críticas relacionadas a questões como incentivo à

automedicação. Da mesma forma, com frequência o autor do blog também afirma que não é

responsável pelo risco que os leitores possam enfrentar caso venham a consumir substâncias

como a Ritalina.

Retomando mais propriamente o segundo relato sobre a ritalina no blog ―Cérebro

Turbinado‖, são ressaltados os efeitos positivos para aumentar a concentração e reduzir a

fadiga mental, embora sejam citados vários efeitos colaterais e um potencial de causar

dependência psicológica. Chegou a ser narrado um efeito de foco bastante intenso em uma

experiência em sala de aula decorridos trinta minutos após a ingestão de um comprimido de

dez miligramas. De acordo com o texto, o assunto da aula não era interessante, mas sob o

efeito da droga estava sendo prazeroso acompanhar a fala do professor. Ele afirma ainda que

manteve o foco durante um tempo mais prolongado do que o usual. Depois, em outro

momento em que estava estudando, a mesma sensação havia sido obtida, o autor relata que:

―A atenção é tanta que beira a obsessão. Você fica tão absorto nas páginas dos livros que até

mesmo esquece de beber água ou de comer‖. Além disso, foi mencionado ainda nesse texto

que houve maior resistência na execução de provas como o simulado do Enem: ―o

desempenho era como se eu tivesse acabado de começar a prova, mesmo que 4 horas já

tivessem se passado‖.

Na conclusão do relato, é feita uma avaliação que compara os benefícios atingidos

com os efeitos adversos causados pela Ritalina. Segundo o autor, após 4 horas da ingestão do

remédio a sensação de foco alto e aumento na motivação passam e surge um estado de

cansaço extremo, com um desempenho pior do que o anterior à ingestão do metilfenidato,

acrescido de um forte desinteresse por qualquer coisa. Além dessas desvantagens, é

mencionado que existe uma possibilidade bastante provável de, além de criar dependência

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psicológica, gerar crises de ansiedade, elevar a pressão arterial e acelerar os batimentos

cardíacos. Em vista de tudo isso, o texto é concluído com a afirmação de que o uso diário é

insustentável e mesmo que tenham sobrado comprimidos, o autor não pretende ingeri-los. Em

vez desse forte estimulante, para o autor, seria preferível o consumo de nootrópicos que, ao

invés de agredirem o cérebros, possuem propriedades neuroprotetoras. O e-book desenvolve

uma argumentação semelhante e afirma que os riscos para o seu consumo são muito altos e

podem afetar negativamente a saúde mental.

Uma última questão a ser mencionada sobre o blog de maneira geral, trata da relação

estabelecida pelo site com as notícias veiculadas na grande mídia sobre nootrópicos.

Curiosamente, há também nesse caso uma relação tensionada com conteúdo produzido nas

reportagens. Da mesma forma que o portal da ABDA, o ―Cérebro turbinado‖ se posicionou

criticamente sobre reportagens que apresentavam informações consideradas erradas. Foi

produzido um texto que respondia uma matéria sobre nootrópicos transmitida pelo programa

Fantástico, da Rede Globo, no dia 05 de junho de 201679. Embora o autor do blog reconheça

que este programa geralmente produz investigações que julga de qualidade, ele afirma que

nesse caso em particular a matéria foi ―pobre de conteúdo‖ e ―ignorou a produção científica

que respalda o uso dessas drogas‖.

Ele declara que ―as autoridades consultadas eram desatualizadas e não se deram o

trabalho de consultar minimamente as pesquisas já realizadas‖. Comenta ainda que a

reportagem faz um ―desserviço‖ ao debate racional guiado pela ciência e que ―poderia não ter

ido ao ar‖80. Da mesma forma que alguns textos da ABDA, foi feita então uma referência a

portais de artigos científicos, como o Google acadêmico, onde constam centenas de artigos

que deveriam ter sido lidos. Os dois grupos de usuários de Ritalina passam por situações de

confronto com a visão divulgada na mídia sobre as suas modalidades de consumo.

3.3 Disciplina medicalizada e molecularização da performance cognitiva

79

A reportagem pode ser consultada em: https://www.youtube.com/watch?v=lAtKOhuPxr4. Acesso em 29 de

dezembro de 2016. 80

Fonte da resposta do blog: http://www.cerebroturbinado.com/2016/06/a-ciencia-que-respalda-os-nootropicos-

e.html. Acesso em 29 de dezembro de 2016.

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É consenso entre diversos intelectuais trabalhados nessa dissertação que, desde

meados da segunda metade do século vinte, estamos vivendo um processo de transformações

com fortes implicações para a vida social. Segundo essa produção teórica, é cada vez mais

presente o estímulo à medicalização da sociedade, apontando então para questões que

anteriormente pertenciam a outros domínios e que passam a ser condicionadas pelas práticas

médicas (CONRAD, 1980). Nesse contexto, esses saberes excedem o tratamento de doenças e

passam a exercer um papel de matriz comportamental, determinando regras de conduta,

cuidados com o corpo e novas maneiras de estar no mundo. As identidades são

frequentemente modeladas de acordo com a aparência corporal, e os valores culturais

dominantes exercem forte influência nesses processos (CASTIEL, 2013). De acordo com

Aguiar (2004, p.133), a medicina passa progressivamente a assumir, na modernidade, o papel

de regulação social que foi exercido pela igreja ou pela lei.

Esse processo de medicalização, que segundo alguns autores pode ser situado

inicialmente no começo dos anos setenta nos EUA (CASTIEL, 2013), tem sido considerado

um tema importante de debate nas ciências sociais. A psiquiatria também é fortemente

influenciada por esses processos históricos e, desde 1980, consolida-se enquanto uma

disciplina hegemonicamente calcada na biologia. Tal ciência passa a ser cada vez mais

capitalizada e se aproxima de indústrias como a farmacêutica, sofrendo modificações a partir

da influência dessas empresas. Os psicofármacos, que surgem e começam a ser prescritos na

década de cinquenta, inserem-se nesse contexto de hegemonia da medicina e são utilizados

em algumas situações para propósitos diferentes do tratamento de transtornos mentais. A

psiquiatria se populariza como uma forma de intervenção molecular no funcionamento da

mente, ajustando os níveis de humor de acordo com as situações nas quais as pessoas se

envolvem.

Da mesma forma que as cirurgias plásticas, dietas nutricionais ou outras práticas de

cuidado com o corpo passam a gerir aspectos cotidianos e a psiquiatria acompanha esse

processo. Dessa forma, ela extrapola o espaço do hospício e passa a ser disseminada na

sociedade em geral, por vezes tendo como alvo comportamentos que não são necessariamente

considerados patológicos. A utilização corrente de psicofármacos ilustra esse crescimento da

psiquiatria, tendo em vista que ocorre tanto a disseminação desses medicamentos em

diferentes ambientes, quanto uma diversificação dos propósitos para utilizá-los. A presença

dessas substâncias pode ser vista atualmente em presídios, asilos para idosos e escolas, como

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também em outros ambientes que passam a utilizar essas intervenções moleculares. De acordo

com Rose, em uma conferência sobre o futuro da psicofarmacologia (2014):

Em certo sentido, a psicofarmacologia se tornou um estilo de vida. Em mais e mais

circunstâncias, mais e mais pessoas, em mais e mais regiões, (as pessoas) estão

rotineiramente modulando, afetando, manejando, os seus humores, seus desejos,

seus sentimentos de felicidade ou tristeza, manejando isso através de drogas. E

várias práticas não psiquiátricas têm se tornando altamente dependentes do uso

dessas drogas. Em asilos para idosos existem níveis muito altos de prescrição de

drogas anti-psicóticas. Eu acredito que quase todas as pessoas aceitam que essas

drogas são prescritas nesses asilos, por razões de controle, mais do que por razões

terapêuticas. (Tradução livre) 81

.

Sobre o uso de psicoativos na atualidade, e em especial os fármacos produzidos pela

indústria farmacêutica, é interessante mencionar as produções de Paul Preciado. Esse filósofo

afirma que o capitalismo atualmente se caracteriza por um regime fármacopornográfico. No

seu livro Testo Yonqui (2008), Preciado percebe uma descontinuidade no capitalismo a partir

de meados dos anos 70, em que a indústria fordista do automóvel passa por um processo de

deslocamento da centralidade econômica e subjetiva. Uma nova governamentalidade do ser

vivo surge e fornece as condições de possibilidade de transição para outra fase do capitalismo.

Nesse contexto, dispositivos de produção e controle da subjetividade se articulam em

processos de governo biomolecular (fármacopoder) e semiótico-técnico (pornopoder), dando

sentido à definição feita pelo autor de um regime farmacoponográfico.

Nesse regime, há uma molecularização do biopoder (PELBART, 2015, p.24), e são

centrais transformações como a da depressão em Prozac, a masculinidade em testosterona e a

ereção em Viagra. Ao mesmo tempo, também podemos pensar que a performance ativa dos

ambientes competitivos desse sistema é materializada em substâncias químicas, como as

―drogas da inteligência‖ e os nootrópicos. Nesse sentido, a sociedade contemporânea está

habitada por subjetividades que se definem pelas substâncias que dominam seus

metabolismos, assim, podemos falar de sujeitos Prozac, sujeitos cannabis, sujeitos cocaína,

81 Original: ―In a certain sense, psichopharmacology has become a way of life. […] In more and more

circumstances, more and more people, in more and more regions, are routinely modulating, shaping, affecting,

managing, their moods, their desires, their feelings of happiness or sadness, managing this through drugs. And

many non psychiatry practices have also become highly dependent on the use of these drugs. In homes for the

elderly there are very high levels of prescript8ion of anti-psychotic drugs. I think almost everybody accepts that

those drugs are prescribed in those homes for the elderly for reasons of control rather than for reasons of

therapy‖. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=VF83oKPVYKM. Acesso em 01 de janeiro de 2016.

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sujeitos álcool, sujeitos Ritalina, sujeitos cortisona, sujeitos silicone, sujeitos heterovaginais,

sujeitos dupla-penetração, sujeitos Viagra etc. (PRECIADO, 2008, p.33).

Embora o consumo de estimulantes para atividades intelectuais possa parecer algo

inusitado, diante desse contexto que viemos apresentando, torna-se mais fácil compreender

como essas práticas podem vir à tona. Esse consumo desenfreado dos fármacos interage na

produção da vida coletiva e pode estar relacionado com as estruturas de poder e o

reforçamento das normas sociais. Ainda de acordo com Preciado, é possível fazer um paralelo

com o uso dessas substâncias e a ―descrição de Foucault dos dispositivos disciplinares

ortopédicos e arquitetônicos do panóptico ou da prisão‖ (2008). Nesse sentido, a partir de uma

reflexão sobre a pílula contraceptiva, esse autor afirma que medicamentos como Prozac,

Viagra ou a Ritalina, são panópticos comestíveis. São infiltrações das técnicas de controle

social que fazem dos corpos suportes e efeitos de um programa político.

Segundo as teorizações foucaultianas sobre o regime disciplinar e a produção dos

sujeitos através desse esquadrinhamento espacial e temporal, é através do controle minucioso

das operações do corpo e da sujeição de suas forças que se impõe uma relação de docilidade-

utilidade (FOUCAULT, 2013). Essa anatomia política aumenta as forças do corpo em termos

de utilidade, e diminui essas mesmas forças em termos políticos de obediência, portanto

produz um elo entre uma aptidão acentuada e uma dominação aumentada (2013, p.134).

Foucault afirma ainda que, sob o efeito do funcionamento desse regime, são produzidos nos

sujeitos corpos dóceis.

Fazendo uma leitura das ―drogas da inteligência‖ a partir dessas contribuições de

Foucault, parece haver uma ressonância entre a produção de corpos dóceis e o uso de Ritalina,

ao menos de acordo com o que foi visto no blog ―Cérebro turbinado‖. Podemos ver através

dele como medicamentos como a Ritalina são utilizados em resposta a exigências sociais de

produtividade. Portanto, propiciam aos usuários atingir conformidade em relação a essas

demandas.

Porém, Paul Preciado ressalta que a relação entre corpo e poder não deve ser pensada

de acordo com o modelo dialético de dominação e liberdade, em um movimento unidirecional

em que um poder exterior infiltra o corpo dos indivíduos (2008, p.136). Mas, esse controle

pode se dar de forma mais democrática e privatizada, e é frequente que não seja o poder que

atue desde fora e de uma maneira não consensual, mas o próprio corpo que deseje esse poder.

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Para compreender como essas questões ocorrem no uso do metilfenidato como

―aprimorador cognitivo‖, é possível recorrer às pesquisas que abordam diretamente os

usuários dessa substância. Em suas pesquisas sobre indivíduos que praticam o consumo desse

medicamento psiquiátrico, Denise Barros (2014) pôde aproximar-se dos usos e sentidos

atribuídos ao consumo desse fármaco pelos sujeitos que foram pesquisados. É possível

observar nesse trabalho uma contraposição ao relato estereotipado dos usuários de Ritalina,

que os descreve por vezes como pessoas domesticadas e em estado de letargia, ou em outros

momentos como indivíduos preguiçosos que buscam subterfúgios para evitar altas cargas de

estudo. Assim como os portadores de TDAH, o uso do medicamento trouxe para esses

sujeitos uma sensação de autonomia e maior margem de controle sobre suas decisões. Os

efeitos obtidos através da droga maximizavam os níveis de atenção e facilitavam a realização

de tarefas consideradas importantes, propiciando uma sensação de potência e percepção de

serem um pouco mais ―senhores da própria casa‖. A realização dessas atividades,

anteriormente consideradas bastante dificultosas, facilitou o processo de alcançar uma meta

desejada que, por vezes, era inclusive o sonho da vida de alguns entrevistados.

Assim, as motivações mencionadas nesse estudo estão em consonância com o que foi

relatado no blog ―Cérebro turbinado‖, estando, portanto, diretamente relacionadas ao aumento

da produtividade em atividades cognitivas. Tais sujeitos buscam turbinar suas capacidades

cognitivas para maximizar as suas competitividades, atingindo um desempenho superior ao de

concorrentes em provas, concursos ou vestibulares. Entretanto, de forma curiosa, foi relatado

ainda que a ingestão dessas substâncias estava relacionada com uma insistência na aprovação

para cargos públicos, onde poderiam escapar especialmente desta intensa competição e

também das incertezas do mercado de trabalho. Portanto, de acordo com o que foi discutido

nesse tópico, a afirmação de que o uso de Ritalina produz necessariamente obediência é

imprecisa, e escapa de compreender as nuances que caracterizam as relações complexas em

volta desse fármaco.

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CAPÍTULO 4 – RELATO AUTOETNOGRÁFICO

Nesta seção, terei como base uma narrativa pessoal focada em minha experiência

com a Ritalina como ―aprimorador cognitivo‖ para, dessa forma, incluir esse aspecto como

parte da análise produzida na dissertação. O relato será orientado metodologicamente pela

autoetnografia, que se trata de um gênero autobiográfico de escrita e pesquisa em que é feita a

tentativa de conectar as descrições pessoais às determinações socioculturais (Ellis & Bochner,

2000). Através do uso de autoetnografia, pesquisadores podem usar suas experiências, junto às

dos outros participantes, para complementar as suas pesquisas. Para realizar tal procedimento

adequadamente, é necessário analisar a própria história a partir das mesmas lentes usadas para

interpretar o mundo dos outros participantes (SMITH, 2005).

Mesmo que o método etnográfico pressuponha a descrição da experiência do

pesquisador em campo, retratando um encontro entre diferentes subjetividades, a abordagem

aqui utilizada apresenta algumas particularidades. Na autoetnografia, o foco está nas

sensações experienciadas pelo pesquisador, balanceando o rigor metodológico com uma

redação do texto marcada por emoção e criatividade. É assumidamente um diálogo entre arte

e ciência e desloca a distinção entre sujeito e objeto. Nesse sentido, a escrita não é marcada

pelas formas tradicionais de redação do texto científico, que por vezes apelam para a

impessoalidade ou distanciamento, mas sim incita o uso de coloquialismos, linguagem

sentimental e em primeira pessoa.

O surgimento e desenvolvimento da autoetnografia podem ser localizados entre o

final dos anos setenta e início dos oitenta, a partir do trabalho de pesquisadores como David

Hayano (1979) que utilizou o termo em referência a estudos em que o antropólogo era um

membro bastante inserido no grupo pesquisado e possuía, em vista disso, uma visão íntima

dessa realidade. Outras referências pioneiras são: o livro de David Sudnow (1978), em que o

autor explora a sua experiência de se tornar um pianista de jazz, e a produção de Patricia e

Peter Adler (1987) sobre como os pesquisadores podem documentar as suas experiências e

emoções junto aos outros participantes. Posteriormente, alguns trabalhos, que analisavam

experiências pessoais do pesquisador, passam a ser compreendidas como autoetnográficas,

como algumas narrativas pessoais feministas (KREIGER, 1991) e indígenas (GONZALEZ &

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KRIZEC, 1994), narrative ethnography (ABHU-LUGHOD, 1993), self-ethnography (VAN

MAANEN, 1995), autobiographical ethnography (REED-DANAHAY, 1997) ou reflexive

ethnography (ELLIS & BOCHNER, 1996).

No caso da presente pesquisa, a influência da minha subjetividade ocupou um papel

importante em seu processo, tendo em vista que muitas das hipóteses formuladas estavam

relacionadas com experiências particulares que tive. Ao longo da descrição das interações

virtuais dos usuários do medicamento, senti certo incômodo por estar analisando este

fenômeno sem mencionar a relação que eu possuía com a droga. De forma semelhante ao que

foi explicitado por Viviane Vergueiro (2015), a posição de pesquisador me colocava em um

distanciamento desconfortável em relação às minhas vivências. Isso por que a forma como

analisava alguns aspectos dessa experiência e as conclusões que chegava estavam

influenciadas pelas situações que passei sob o efeito da droga.

Ao mesmo tempo, ao fazer as leituras da produção teórica das ciências humanas

sobre os usuários de Ritalina, percebi que não compartilhava de determinados aspectos da

interpretação corrente. Embora tenha encontrado estudos excelentes que, inclusive, nortearam

esta dissertação, considerei que, por vezes, as descrições do efeito do metilfenidato ou das

pessoas com TDAH eram problemáticas. Uma das formas que assumiam acabava construindo

um discurso negativista que exacerbava o efeito placebo, o potencial de dependência ou fazia

comparações sensacionalistas com substâncias como a cocaína e anfetamina. Outra forma

insistia na caracterização dos portadores do transtorno enquanto vítimas das enganações do

conluio entre a indústria farmacêutica e a psiquiatria. A percepção dos efeitos da Ritalina no

meu corpo e o contato com os sujeitos com déficit de atenção me permitiu questionar essas

interpretações.

Porém, mesmo ciente que minha narrativa poderia proporcionar alguma contribuição,

senti um óbvio desconforto e principalmente insegurança por relatar o uso ilícito de

psicoativos em uma pesquisa científica. Se realizar pesquisas sobre usuários dessas

substâncias já acarreta alguns constrangimentos, que dirá a autoidentificação enquanto um

membro desse grupo. Porém, desde que consumi alguns comprimidos de Ritalina, foi

frequente a tentação de relatar isso em pesquisa e de pensar analiticamente sobre essa

experiência. E foi apenas nas etapas finais da confecção da dissertação que tomei a decisão,

em diálogo com a orientação, de que seria oportuno relatar essas vivências em vista das

implicações positivas para sustentar as análises aqui produzidas.

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Além dessas incertezas, foi também um fator de insegurança o fato de que o próprio

método autoetnográfico é constantemente alvo de críticas por unir uma escrita artística,

próprio ao gênero autobiográfico, com a análise cultural da etnografia. Alguns antropólogos,

por exemplo, são bastante reticentes quanto à legitimidade desse outro método, tendo em vista

que a etnografia já abarca necessariamente a reflexividade sobre a presença do pesquisador

em campo (VERGUEIRO, 2015). Assim, já imaginava que seriam prováveis alguns

enfrentamentos no que compete à aceitação dessa abordagem pelos critérios de produção de

conhecimento da academia.

Essa parte da pesquisa foi bastante inspirada no livro ―Testo Yonqui‖ de Paul

Preciado (2008), em que este intelectual queer administra doses de testosterona em gel e, a

partir dessa experiência, ancora suas reflexões sobre as transformações nas técnicas de

governo sobre o corpo na contemporaneidade. Posso perceber as suas considerações sobre a

produção de subjetividade do farmacopoder – que produz sujeitos com base nas drogas que

eles consomem – em alguns momentos da minha relação com a Ritalina. De forma

semelhante ao que ele escreveu, tento produzir aqui um ensaio corporal ou uma ficção

autopolítica. A minha utilização do metilfenidato não é parte central da dissertação, mas

constitui um elemento importante que deve ser mencionado como narrativa da construção da

pesquisa.

Desde que consumi aproximadamente trinta comprimidos de Ritalina ao longo do

período de mestrado acabei adquirindo o hábito de escrever em estado de alerta. Havia uma

sensação de ansiedade e angústia que descarregava escrevendo com urgência e em fluxo, sem

pensar muito nos resultados da própria escrita. Atribua esse estado à ação do estimulante que

potencializa a concentração de dopamina nas fendas sinápticas, deixando-me em estado de

euforia. Sentia como se meu pensamento estivesse se movendo em alta velocidade e, algumas

vezes, precisava me levantar e caminhar um pouco. Nos momentos em que as ideias não

vinham e eu não conseguia escrever, sentia certa angústia que provavelmente era intensificada

pela ansiedade. Passado o frenesi, revia pacientemente o que havia produzido, revisando,

assim, o texto.

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103

Portanto, concretamente, essa substância fez parte das condições que possibilitaram

esse trabalho e assim deve constar nos caminhos metodológicos que explicam como

exatamente desenvolvi a presente pesquisa. Seria mais confortável se eu omitisse a presença

desse agente e evitasse o inconveniente de vincular uma pesquisa científica ao terreno abjeto

do uso não prescrito de drogas. Porém, é mais preciso e criterioso demonstrar as condições

objetivas de realização de uma pesquisa, independente das rejeições morais que isso pode

acarretar. É próprio ao cientista seguir as conexões lógicas que a empiria fornece, utilizando

as metodologias consideradas adequadas e sustentando os resultados adquiridos, mesmo que

encontre fortes resistências e até mesmo aversão. É intrigante como se convencionou que a

Ritalina é uma droga que produz obediência e que, sob o efeito dessa substância, as pessoas

entrariam automaticamente em um estado de letargia e exprimiriam comportamentos

necessariamente contidos e apáticos. Em um momento de avaliação do meu trabalho durante

o mestrado, um colega leitor afirmou que possivelmente também seria produzida uma escrita

metódica e ―quadrada‖, ou seja, comportada, a partir do estímulo da Ritalina. Esse meu colega

não está sozinho. Há uma produção discursiva que gerou uma imagem bastante estática dessa

droga, desconsiderando que a substância em si não poderia causar sozinha tantos efeitos

desastrosos. O significado das experiências com substâncias psicoativas não pode ser inferido

somente a partir das características farmacológicas, tendo em vista que é também dependente

das expectativas individuais e do contexto social em que essa utilização ocorre. Porém, no

caso do metilfenidato, a despeito dessas variáveis, é constantemente reiterada a relação de

obediência, resignação e docilidade.

Pensando nisso, lembro que o escritor Jack Kerouac produzia seus textos utilizando

frequentemente um inalante de anfetamina, quimicamente próximo ao metilfenidato. Segundo

Nikolas Rasmussen (2006), foi a partir do efeito desse estimulante que o autor beatnick

produziu sua forma particular de escrita, classificada como prosa espontânea e marcada pelo

fluxo livre e sem muitos filtros. Movido muitas vezes por esse inalante denominado

Benzedrina, e inspirado na velocidade das improvisações do Jazz, Kerouac produziu

importantes obras voltadas para temáticas como viagens de carona, drogas, pobreza,

promiscuidade, espiritualidade e música. Foi considerado um escritor subversivo e

representante da geração Beat – um grupo de escritores que influenciou a cultura americana

após a segunda guerra. Curiosamente, esse inalante possui a mesma substância do primeiro

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medicamento utilizado para tratar crianças com problemas comportamentais por Charles

Bradley em 1937 (STROHL, 2011).

Penso em como ironicamente o efeito de uma droga pode estar em aberto,

dependendo de variáveis importantes, como o contexto social subjacente. O metilfenidato foi

pensado e utilizado de formas muito diversas ao longo de sua história, sendo considerado

inofensivo, perigoso, útil, redentor e até genocida ao longo dos cerca de cinquenta anos de sua

existência clínica. Então, pergunto: o que faz exatamente com que um medicamento seja

concebido de forma tão diversa ao longo do tempo? Como ele passa a ser simplificado e

relacionado apenas a uma determinada terapêutica? Faz sentido atribuir a essa substância a

capacidade de normalizar os seus usuários? Quais são as forças que disputam a verdade da

Ritalina e quais os mecanismos utilizados para impor esses regimes de verdade?

Eu passava no período por algumas dificuldades no mestrado. Não conseguia me

concentrar no que os professores falavam em sala de aula, nem dar conta da leitura dos textos

das disciplinas que eu estava cursando. Sentia-me cansado e impaciente. Estar dentro de uma

sala de aula era sufocante e, por isso, frequentemente saía para os corredores, até mesmo

quando algumas vezes já tinha chegado atrasado. Ao mesmo tempo, passava por dificuldades

naquela que ainda era a minha pesquisa. Além de não ter concentração nas aulas, não

conseguia ler e escrever no ritmo que tinha quando na graduação e isso me deixava aflito.

Foi nesse contexto que um amigo de outro curso de humanas me falou da existência

de um medicamento que me ajudaria a estudar. Segundo ele, seria possível permanecer lendo

durante horas seguidas sem apresentar cansaço e a escrita fluiria instantaneamente,

preenchendo com facilidade várias laudas. Ele falava de forma muito empolgada e prometia

efeitos incríveis, mostrando que usar essa substância era um claro diferencial. Argumentava,

assim, que as pessoas que não a consumiam não podiam ―competir‖ com aquelas que fazem o

uso. Ele estava se referindo à Ritalina e seu potencial em pessoas com altas cargas de estudo.

Já havíamos consumido várias outras substâncias psicoativas, mas isso ocorria em

contextos relacionados a momentos de prazer e diversão, ou seja, apenas de forma recreativa.

Esse era mais um momento em que analisávamos a possibilidade de usar alguma droga nova,

porém, nesse caso, a experiência tinha o intuito de garantir o desempenho ideal diante das

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exigências de produtividade da universidade. Portanto, estávamos em busca de efeitos em

esferas profissionais e acadêmicas ao invés de um uso recreativo.

Eu estava um pouco nervoso por nunca ter usado essa droga e apreensivo com o que

poderia acontecer. Já tinha ouvido de algumas pessoas que a Ritalina era uma droga muito

forte e que era preciso ter muito cuidado com sua utilização sem a mediação de um médico. O

fato de ser um medicamento de tarja preta também contribuiu para me deixar preocupado com

os efeitos adversos ou o potencial aditivo. Por outro lado, senti certa desconfiança do relato

excessivamente empolgado feito pelo amigo em questão. Como uma substância poderia

produzir tamanha capacidade intelectual? Como seria possível adquirir ―inteligência‖, no

sentido de uma ativa e ágil capacidade cognitiva, de forma imediata e não através de um

processo acumulativo ao longo do tempo?

Por fim, meu amigo comentou que tinha contato com um médico que poderia

prescrever a receita em seu nome e dividiríamos o preço do remédio e os comprimidos pela

metade. Após ele ter pegado a receita, fomos a uma farmácia e adquirimos uma caixa de

Ritalina com sessenta comprimidos.

Eu estava pesquisando desde a graduação sobre o manual de diagnósticos da

Associação de Psiquiatria dos Estados Unidos e tinha interesse em analisar a arbitrariedade

das categorias psiquiátricas, pensando nos efeitos sociais e políticos dessa classificação do

comportamento em termos de doença mental. Eu tinha em mente refletir sobre diagnósticos

como ―Disforia de Gênero‖ e o histórico preconceito do DSM com a transexualidade que,

claramente, seriam passíveis de problematização. Mas não conseguia ter tanto estímulo com

essa temática, provavelmente por que propus a leitura de um manual enorme e de conteúdo

maçante.

Quando descobri que teria acesso ao metilfenidato, pensei que essa seria uma

oportunidade para inserir uma questão mais instigante na minha pesquisa. O fato de que teria

acesso ao metilfenidato, seguraria a caixa em minhas mãos, leria o texto da bula e consumiria

a substância, me fez crer que teria contato com uma perspectiva bastante particular. Isso me

trouxe um estímulo adicional para me engajar com as obrigações do mestrado, pois achei que

facilitaria uma reflexão que buscasse ser diferenciada sobre as controvérsias em torno da

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Ritalina. Instigava-me a possibilidade de produzir conhecimento deslocando um binarismo

central da produção científica: a separação entre sujeito e objeto. Portanto, pensei que essa

experiência poderia facilitar uma abordagem metodológica rica e pouco utilizada nos estudos

sociológicos sobre o saber psiquiátrico e suas tecnologias.

Além disso, o distanciamento entre pesquisador e sujeitos pesquisados, nomeados

frequentemente como objetos, já vinha sendo bastante criticada desde minha graduação.

Porém, a possibilidade de centrar as pesquisas em nossas subjetividades, relatar

minuciosamente experiências pessoais e tomá-las como foco analítico, não foi algo

mencionado como possível. Parto do princípio de que esses relatos não são prejudiciais para

garantir a objetividade de um trabalho, mas, pelo contrário, contém em si uma potencialidade

de gerar reflexões sobre um campo estrutural mais amplo em que o pesquisador se insere.

Outro fator que contribuiu para adotar a autoetnografia foi o fato de que vinha lendo

já havia alguns anos a obra de Paul Preciado e estava seduzido por suas pesquisas,

principalmente a obra anteriormente mencionada em que este filósofo consome testosterona

em gel e teoriza sobre essa sua experiência. ―Testo Yonqui‖ foi um dos primeiros livros que

me incitou a pensar sobre a realidade social e me fez crer na possibilidade de fazer pesquisa

com rigor teórico e, ao mesmo tempo, investindo em propostas metodológicas ousadas. Tive

uma melhor noção de que seria possível utilizar também uma linguagem que fugisse daquela

mais ortodoxa sem que isso debilitasse a análise produzida. Instiguei-me com a possibilidade

de fazer algo parecido a partir do meu consumo de Ritalina.

Tomei um comprimido pela manhã de uma sexta-feira pouco antes de começar a ler.

Em poucos minutos, tive a impressão de que minha cabeça estava inchando e comecei a me

sentir num forte estado de euforia e bem-estar. Os efeitos da droga não me pareciam tão

intensos e não havia nenhuma alteração na percepção sensorial ou diminuição da autonomia

do corpo, apenas me sentia mais disposto e com o pensamento um pouco mais acelerado.

Quando foquei nos estudos, consegui deter minha atenção por um longo período no texto e

parecia que absorvia o conteúdo mais facilmente. Também sentia a impressão de que o que lia

sob efeito de Ritalina ficava mais fixo na memória. Esse medicamento funcionava como um

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energizante para as atividades cognitivas, tendo em vista que eu podia permanecer lendo

durante muito mais tempo do que se não a utilizasse.

Quando não estava sob o efeito do estimulante, sempre senti necessidade de fazer

algumas paradas periódicas no estudo. Mais ou menos a cada meia hora eu dava uma olhada

no nas redes sociais, via algum vídeo pequeno, ou fazia caminhadas fora de casa, enfim,

procurava alguma atividade prazerosa que pudesse me distrair durante alguns minutos.

Enquanto consumia Ritalina continuava por horas na mesma tarefa e não sentia necessidade

de nenhuma dessas paradas, nem mesmo para me alimentar ou beber água. Contudo, apenas

quando o nível de agitação pelo uso da Ritalina era alto, precisava dar breves pausas. Percebi

que guiado pela substância a relação com meu corpo era diferenciada, pois me posicionava e

permanecia com uma postura ereta, com pouca necessidade de sair desse estado.

Durante esse primeiro fim de semana de uso, estava me preparando para a

participação em uma aula sobre Karl Marx para graduandos em ciências sociais, que

aconteceria na segunda-feira. A partir da experiência na sexta, consumi um comprimido no

sábado alguns minutos após o almoço. Já havia percebido que ingeri-lo após essa refeição

era mais proveitoso para mim, tendo em vista que nesse momento sentia muito sono e pouca

disposição para estudar. Depois que o estimulante começava a fazer efeito qualquer sinal de

cansaço desaparecia e eu estava pronto para começar a estudar. Nessa tarde, li vários textos,

mais até do que havia planejado, e que não necessariamente tinham alguma ligação com a

aula que eu deveria participar na segunda. Os efeitos notados na cognição e a capacidade

recém adquirida de ler várias páginas em pouco tempo, possibilitou-me finalizar uma série de

textos que vinha acumulando.

Em alguns momentos, eu me sentia bastante excitado e, de modo inesperado, não

conseguia me concentrar, provavelmente, esse estado era produzido no momento de pico dos

efeitos do metilfenidato. Somente nessas horas eu me levantava da cadeira e tentava fazer

qualquer outra coisa, porém, eram breves momentos, pois logo voltava para a leitura que eu

estava realizando. Continuei durante esse dia lendo e fazendo anotações sobre a obra e vida de

Marx, ainda li alguns zines sobre vegetarianismo e um livro sobre a história dos movimentos

sociais na Europa no século XIX. Comecei por volta de uma hora da tarde e quando me dei

conta já era noite, porém continuei nesse processo até por volta das 21 horas e fui dormir.

No domingo, tomei mais um comprimido depois que almocei e continuei trabalhando

com o mesmo material, porém, tentando me deter mais no que realmente interessava para o

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meu compromisso. Consegui finalizar a leitura de partes de algumas biografias e de resenhas

dos principais livros de Marx e comecei a estruturar a apresentação da minha fala para a

manhã do outro dia. Nesse momento, já considerava bastante prazerosa a ação estimulante da

Ritalina, mas, com o passar das horas, ia me sentindo cada vez mais exausto e com uma dor

de cabeça crescente. Quando se aproximava por volta do início da noite, era bastante

dificultoso continuar lendo e só a ideia de ter que continuar por muito mais tempo me

provocava certo mal-estar. Estudei até 19h, abri uma cerveja, e comecei a escutar uma lista de

discos que havia separado para ouvir.

Cheguei à universidade na segunda às 07h30min, e, como ainda estava muito

cansado, tomei outro comprimido. Consegui, assim, disposição para rever a apresentação,

acrescentar mais algumas coisas e me preparar para a aula que seria às 09h30min. Fiquei

bastante ansioso por ter que falar em público sob o efeito da Ritalina, tendo em vista que meu

pensamento estava bastante acelerado e possivelmente poderia me comunicar de forma

atropelada. Apesar disso, senti depois que consegui apresentar normalmente o conteúdo,

talvez apenas em alguns momentos me expressando muito rápido.

Depois disso, eu ficara tão eufórico que não consegui almoçar. Comprei uma boa

refeição em um restaurante no campus e mesmo assim não encontrei o mínimo de apetite para

me alimentar. Lembro que tanto o metilfenidato quanto outros estimulantes já foram

utilizados para o emagrecimento e pude perceber, nesse caso, que essa indicação não era sem

propósito. Isso me preocupou bastante por que meu baixo peso já não me permite passar por

esse tipo de situação, e, assim, fiquei apreensivo de que poderia sentir esses efeitos adversos

em outros momentos. Por conta disso, essa foi uma das poucas vezes que consumi um

comprimido antes de completar as 24 horas entre duas doses, evitando a partir de então essa

prática que poderia ser arriscada ao meu corpo.

Fiz uso de Ritalina durante os primeiros períodos de escrita da dissertação, que

coincidiam com o momento da pré-qualificação. Essa é uma etapa no segundo semestre do

mestrado em que cursamos uma disciplina sobre métodos de pesquisa e passamos por uma

banca que avalia o quanto progredimos nesse primeiro ano. A primeira versão do meu texto,

que seria então lido pela banca, não saiu muito bom; minha orientadora, por exemplo,

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qualificou essa primeira produção de ―um texto anêmico‖. Reescrevi fazendo o uso

continuado do metilfenidato e consegui produzir, com um tempo mais curto, uma quantidade

maior de páginas, trazendo um conteúdo mais rico e de bibliografia mais extensa. O

medicamento, dessa forma, acabou me dando o impulso necessário para fazer as pesquisas

preliminares e ainda pude fazer o mapeamento de algumas discussões que daria continuidade

ao longo do mestrado. Porém, deixou suas marcas no texto: por ter sido escrito às pressas, não

havia citação de várias referências que eu estava utilizando.

Já no momento da qualificação, o medicamento também desempenhou um papel

importante, fazendo com que eu pudesse passar dias e noites estudando sem apresentar muita

fadiga. Mantive o protocolo de tomar esse estimulante após o almoço e assim estudar até o

momento em que o cansaço e a dor de cabeça fossem intensos. Nesse período, mantive o

hábito de tomar a Ritalina com um copo de café ou um energético. Dessa forma, o estímulo

inicial era potencializado e eu sentia uma explosão de energia e concentração, que algumas

vezes me deixava agitado demais para conseguir escrever ou compreender o que estava lendo.

Depois de um tempo, a excitação se estabilizava e era possível continuar a produzir realmente

focado e sem me importar com os estímulos externos que poderiam me distrair em outro

contexto.

Nesse processo de escrita da qualificação, tive como meta estabelecer a estrutura da

dissertação e produzir um capítulo. Era preciso, desse modo, definir a metodologia, escolher

as principais referências teóricas utilizadas, delimitar o perfil dos sujeitos pesquisados e

escrever o que viria a ser uma história da Ritalina. Como eu tinha que dar conta das

obrigações com uma disciplina que ainda cursava, cumprir essas exigências adequadamente

seria bastante dificultoso. Para atingir esse objetivo, acabei intensificando, em alguns

momentos, a ingestão dos comprimidos. Houve um dia, por exemplo, que tomei a primeira

dose depois do almoço e passei o dia escrevendo. Chegando ao início da noite, tomei outro

comprimido com um enérgico de guaraná, pois sentira que os efeitos do primeiro já eram

bastante reduzidos, e voltei a escrever. Após várias horas, já no meio da madrugada, tomei

mais um e tive condições de permanecer até o começo da manhã nessa produção intensa. Fui

dormir já eram cerca de 08 horas, tinha o texto pronto e um sentimento de dever cumprido.

Após ter defendido a qualificação e consumido os trinta comprimidos que havia

adquirido, não mais tive acesso ao fármaco e terminei a escrita da dissertação sem o seu

auxílio. Nos primeiros meses após deixar o consumo, passei pelo que acredito que possa ser

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caracterizado por uma sensação próxima à dependência psicológica. Sentia falta da potência

dos efeitos da Ritalina na hora de estudar, tendo em vista que não tinha o mesmo nível de

concentração ou de resistência para permanecer em tarefas cognitivas por horas. Isso me

desestimulava bastante e fez com que eu não conseguisse voltar às atividades do mestrado de

fato com empenho por ao menos um mês. Porém, com o início do último semestre de

mestrado e os prazos finais se aproximando, retomei um bom ritmo de leitura e escrita,

chegando posteriormente a mesmo ultrapassar a dedicação anterior a essas atividades. Não

senti um sintoma de dependência química ou necessidade urgente de voltar a consumir

Ritalina, pelo contrário, decidi que seria melhor não voltar a utilizá-la, a fim de evitar assim,

talvez, uma dependência psicológica e preferi aumentar minhas habilidades de leitura e escrita

através do exercício diário dessas práticas.

O uso continuado do medicamento também produziu algumas alterações na forma

com que eu interagia com as pessoas, ao menos sob seu efeito. Como o principal local em que

estudava era a própria universidade, fiz uso do metilfenidato com frequência nesse ambiente

e, em certos momentos, sob o efeito dessa substância, acabava encontrando conhecidos. Um

dos efeitos mais curiosos da Ritalina era o fato de me fazer sentir confiante e não pensar

muito antes de falar. Havia uma sensação de bem-estar e segurança, mesclada à euforia, que,

em algumas poucas situações, gerava uma forte vontade de me movimentar, sair e conversar.

Quando esta vontade chegava a me impedir de continuar a escrever – provavelmente quando

fazia misturas pouco apropriadas entre o medicamento e cafeína, ambos estimulantes – eu saía

andando pelos corredores até encontrar um conhecido. Se havia alguém para bater um papo,

eu falava de forma acelerada e sem pensar muito no que estava dizendo. Após algumas dessas

conversas, eu refletia sobre determinadas falas e comportamentos meus naquelas ocasiões que

chegavam até a me constranger.

Certa vez, passei em frente a uns amigos que estavam vendendo artesanato no

corredor do bloco de aulas em que estudávamos. Cumprimentei-os rapidamente e passei a

olhar seus produtos. Meu pensamento estava bastante acelerado e eu me expressava no

mesmo fluxo: à medida que passava o olho sob cada um dos objetos reiterava como gostaria

de comprá-los. Assim, falava freneticamente que, se tivesse dinheiro, compraria esse e aquele

e aquele outro; também aquele desse lado e... Olha! Como esse desenho é muito bonito! E

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essa tela? Eu colocaria no meu quarto! Mas não tenho dinheiro, se eu tivesse, eu compraria

isso e aquilo e esse outro. Meus amigos, então, mostraram-se, de fato, aborrecidos com meu

estado, pedindo até mesmo para parar de falar tanto, enquanto eu continuaria a replicar meu

interesse em seus produtos.

Não poderia deixar de lado algumas reflexões sobre questões que subjazem ao meu

relato. Uma delas, diz respeito ao cenário que apresento para o consumo da Ritalina que pode

talvez apontar para uma visão de certa forma caricaturada dos usuários dessa substância,

especialmente daqueles para fins cognitivos. Assim, eu descrevia minha falta de estímulo, o

cansaço, entre outros. Apesar de estar ciente disso, foi de fato necessário marcar esses

momentos, pois foram eles a me conduzir ao contato com a Ritalina, ao compartilhar com

meu amigo das dificuldades por quais passava. Além disso, estar nessas condições acabou

permitindo a possibilidade de comparação entre elas e uma mudança brusca que se instaurava

com o uso da Ritalina.

Minhas sensações eram bastante nítidas quanto às modificações sensoriais por quais

passava. Em comparação, a grosso modo, penso que seria o mesmo que negar um efeito de

maconha, por exemplo. Além disso, não encontrei na pesquisa questionamentos quanto ao

efeito real do meltifenidato, ou seja, da substância em si, mas sim em relação à existência ou

não do TDAH. Inclusive, os questionamentos a respeito da droga se voltam justamente aos

seus fortes efeitos, incluindo uma capacidade de produzir ―obediência‖ a partir de seu

consumo. É por isso que penso que os dias de uso contínuo do medicamento podem responder

a algumas questões desta pesquisa, apesar de realmente entender que experiências de maior

contato, por anos, por exemplo, contém suas especificidades. Foi assim que diversos relatos

de usuários foram aqui considerados.

Também não posso deixar de questionar: até que ponto os efeitos da Ritalina seriam

acentuados ou orientados por minhas expectativas? Cito, como exemplo, quando tive a

impressão de que a memória daquilo que estudava se fixava melhor através do medicamento.

De fato, como discorri neste trabalho, meu uso foi voltado a atender a uma necessidade de

produtividade, o que, obviamente, responde às expectativas que tinha quanto a ler e escrever

muito. Ter clareza delas me torna mais confiante a pensar sobre a interferência das

expectativas dos usuários sobre as drogas que eles consomem e não pensar apenas em termos

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de ação química das substâncias. Nesse sentido, também me mostro ciente das diferenças

corporais que podem até mesmo alterar seus efeitos. Por isso, de modo algum tento apresentar

meu relato como um veredicto da verdade sobre a Ritalina, até mesmo por que um relato

autobiográfico não deixa de trazer consigo suas implicações quanto ao modo como ele se

constrói e se organiza, a exemplo do que Bourdieu (1996) já apontava em a ―ilusão

biográfica‖. Meu relato, então, trata-se de uma experiência particular narrada de forma

orientada que busca dialogar, sem maiores pretensões, com certa coletividade e processos

sociais.

Por fim, outra questão remete à importância da Ritalina no desenvolvimento desta

pesquisa e como afirmar isso me coloca em uma situação delicada quanto à acusação de fazer

apologias ao seu uso, tratando-a, dessa forma, como uma saída rápida e eficiente às pessoas

que estejam em condições físicas e mentais de cansaço. Nesse sentido, penso em como

escrever sobre o uso de drogas é percorrer uma linha tênue entre essas acusações de apologia

e ao mesmo tempo – tentando talvez fugir delas – cair em um discurso moralista. Assim,

percebo o quanto é melindroso esse caminho e cogito suas reais chances de falhas e mal-

entendidos.

A partir da experiência com este psicoativo, considerando, em especial, os efeitos

sentidos, acredito que seja possível tecer algumas considerações sobre certas interpretações do

TDAH e da Ritalina. Principalmente a materialidade do efeito da substância me fez considerar

a possibilidade de que esse medicamento poderia ser um artifício importante para auxiliar

pessoas com problemas ou deficiências de aprendizagem. Se os efeitos positivos para a

cognição eram nítidos para mim, que conseguia ler e escrever sem grandes problemas, não

seria estranho que o medicamento auxiliasse indivíduos com dificuldades nessas aptidões.

Entretanto, não posso desconsiderar aqui outro fator decisivo que se somou à minha

experiência de uso para entender a relação entre TDAH e Ritalina: foi justamente o contato

com os outros relatos no fórum da ABDA que descreviam como seus membros, que se

identificavam com a classificação do transtorno, sentiam grandes dificuldades no cotidiano e

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que o tratamento medicamentoso lhes proporcionava um aumento significativo na qualidade

de vida.

Ao mesmo tempo, utilizar a Ritalina, e mais uma vez o contato com o fórum,

permitiu ainda que eu desconfiasse do que é alarmado como uma capacidade inerentemente

destruidora dessa substância. Percebi que a alcunha de ―droga da obediência‖ poderia ser

questionada e que não necessariamente os seus usuários se tornariam mais resignados ou até

mesmo zumbis. Considerando propriamente o meu uso, de um modo geral, tive a impressão

de que nenhum aspecto da minha personalidade havia mudado drasticamente ou que perdia

controle sobre minhas decisões, apenas sentia o efeito estimulante da droga que,

temporariamente, dava-me mais disposição para desempenhar algumas atividades ou me

estimulava à comunicação em certos momentos. Também não vi mais tanto sentido nas

pessoas que conferiam grande poder para essa substância, como quando afirmavam, por

exemplo, a possibilidade da Ritalina produzir uma escrita comportada, ―careta‖ ou

metodologicamente tradicional.

Essas reflexões incitadas por experiências pessoais, tanto minhas quanto dos sujeitos

TDAH que tive contato, contrastavam com o discurso de alguns teóricos que são cânones nas

críticas sobre o déficit de atenção. Nesse sentido, é possível avaliar que o psiquiatra Peter

Breggin, por exemplo – que não acredita na existência do TDAH e considera o uso de

psicofármacos uma prática danosa – não apresenta um discurso consistente. Esse autor

afirmou em algumas palestras82 que o uso de qualquer substância psicoativa perturba funções

cerebrais básicas, e os estimulantes causam psicoses e transtorno obsessivo compulsivo

(TOC). Ele afirma ainda que o funcionamento do cérebro já é bastante desenvolvido pela

evolução e que qualquer substância, como até mesmo a cerveja, faz com que o cérebro se cale

através do efeito sedativo, produzindo não um melhoramento, mas uma disfunção prejudicial.

Uma primeira questão a ser levantada é a dificuldade em aceitar, ao menos sem

grande cautela, as conclusões de um pesquisador que desconsidera que o uso de psicoativos é

uma prática que remonta a um passado arcaico da existência humana, tão disseminada entre

diferentes culturas, que alguns pesquisadores afirmam inclusive que não existe sociedade que

não tenha feito uso dessas substâncias. Mas indo além disso, o discurso de Breggin é

determinista e naturaliza o efeito de estimulantes como a Ritalina, desconsiderando também

82

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=W4Xb29geVwE. Acesso em 05 de janeiro de 2017.

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as múltiplas variáveis que, como já comentamos, podem incidir nesse processo, a exemplo

das expectativas de seus usuários, a dosagem do medicamento e o contexto social em que esse

uso ocorre.

Partindo do princípio de que os efeitos de uma droga não podem ser reduzidos às

suas características químicas, mas passam necessariamente pelo contexto em que o usuário

está inserido, é possível pensar nas várias possibilidades erráticas que a Ritalina pode fazer

emergir. Nesse sentido, a própria constituição histórica desse fármaco demonstra a

diversidade de propósitos que ele pode ser utilizado, desde revigorante físico para partidas de

tênis até estimulante para pessoas com distúrbios do sono, que podem adormecer em situações

inapropriadas. Outras utilizações atuais que não foram analisadas nesse trabalho também

demonstram essa variedade, como nas aplicações nasalares para manter-se desperto em festas

ou o uso como supressor de apetite para pessoas que querem emagrecer. Cada uma dessas

modalidades implicam discussões éticas, sociológicas ou farmacológicas específicas, em

detrimento de uma desconsideração geral e precipitada.

Esse discurso generalista e simplista é mais nítido na produção midiática e

principalmente em reportagens que tratam da não existência do TDAH. Uma dessas notícias,

que teve grande repercussão, foi uma entrevista com a médica Maria Aparecida Moysés, cujo

título é ―A ritalina e os riscos de um ‗genocídio do futuro‘‖ 83. Essa reportagem foi veiculada

no final de 2013 e apresenta uma conclusão de Moysés de que o alto uso de metilfenidato

estaria dopando as crianças mais questionadoras, fantasiosas e criativas. Dessa forma, estar-

se-ia dificultando a construção de futuros diferentes e transformadores, impedindo

quimicamente os questionamentos e utopias, portanto, era o próprio atestado de um genocídio

do futuro. Há no decorrer do texto algumas imagens borradas de crianças brincando, fazendo

referência, possivelmente, ao que seria o ponto de vista delas sob o efeito desse medicamento.

Seguindo o final da matéria, alguns comentários dos leitores parabenizavam o esclarecimento

feito pela médica, ao passo que se compadeciam das crianças que eram medicadas, um até

declarava que tinha ―vontade de chorar‖.

83

Fonte: http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/08/05/ritalina-e-os-riscos-de-um-genocidio-do-futuro.

Acesso em 05 de janeiro de 2017

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Figura 09 – Imagem presente na entrevista de Maria Aparecida Moysés

Fonte: //www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/08/05/ritalina-e-os-riscos-de-um-genocidio-do-

futuro. Acesso em 01 de janeiro de 2017.

Não é do escopo dessa dissertação discutir o alto índice da Ritalina entre crianças,

tendo em vista que esta é uma discussão mais delicada e implica considerar a vulnerabilidade

própria a essa faixa etária. Porém, é emitida nessa matéria uma série de simplificações sobre o

efeito do metilfenidato que também aparecem em vários outros textos do gênero – incluindo

aqueles que envolvem ou discutem a utilização entre adultos – e que por isso vale a pena

serem discutidas. Uma primeira questão trata-se das comparações feitas com psicoativos de

efeitos mais fortes ou menos quistos socialmente, como a cocaína e anfetamina. Essa

estratégia argumentativa, presente também em trabalhos científicos das ciências humanas, em

alguns momentos, opera como uma tática sensacionalista que transporta para o metilfenidato

o caráter abjeto próprio ao consumo de psicoativos ilícitos. Parece citar o discurso

proibicionista de que essa é uma ―droga‖ como qualquer outra, e, que, de acordo com esses

padrões sociais, demanda forte rejeição e condenação.

Esse discurso geralmente vem acompanhado da longa lista de prováveis efeitos

colaterais e do potencial eminente de dependência. Por exemplo, na entrevista da médica

Aparecida Moysés, ela afirma que, após a elevação dos níveis de dopamina em doses do

metilfenidato, ―a única coisa que dá prazer, que acalma, é mais um outro comprimido de

metilfenidato, de anfetamina. Esse é o mecanismo clássico da dependência química. É

também o que faz a cocaína‖. Ao ressaltar essa possibilidade quase necessária de

dependência, esta médica contraria as declarações das pessoas do fórum da ABDA, que

tinham uma margem de decisão sobre os medicamentos, o que justamente se configurava na

possibilidade de trocá-los quando não se identificava melhora. Inclusive, conforme foi

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apresentado no capítulo 02, desenvolviam conhecimentos a respeito das melhores formas de

utilizar a medicação, e aconselhavam-se coletivamente. Além disso, os discursos alarmistas

vão de encontro à minha experiência com o medicamento que, mesmo sem a mediação de um

médico, não cheguei a me aproximar de algum sinal de dependência química.

Outra questão a ser mencionada, também encontrada na matéria ―A ritalina e os

riscos de um ‗genocídio do futuro‘‖, refere-se à retratação de crianças enquanto vítimas de

pessoas que as forçam a consumir drogas perigosas. Concordo com um comentário publicado

na matéria, em que uma leitora afirma que: ―Vocês falam da Ritalina e do TDAH como se

fosse uma coisa só de criança. Bem, o diagnóstico é feito com questionamento de sua vida

desde a infância, mas adultos também são diagnosticados com TDAH e também se tratam. E

eu sou uma prova de que o tratamento funciona!‖. Embora seja um transtorno historicamente

associado à infância, o TDAH tem sido cada vez mais diagnosticado em adultos. O fato de

que muitas pessoas estão conscientemente aderindo à classificação psiquiátrica e fazendo o

uso dos estimulantes não é algo ressaltado nesses discursos, fazendo parecer que se trata de

um fenômeno necessariamente coercivo. Porém, muitos indivíduos estão encontrando nesse

cenário não uma forma de alienação das suas vontades, mas sim uma alternativa para o alívio

de seus sofrimentos.

Outra questão importante trata-se da existência ou não do TDAH enquanto uma

disfunção neurobiológica nos trabalhos das ciências humanas. A maior parte das pesquisas de

cunho sociológico que tive contato no mestrado afirma que não há pretensão de discutir a

existência ou não do transtorno, entretanto, parecem concluir que essa condição não existe.

Numa forte ânsia de criticar a naturalização do comportamento e o reducionismo biológico, os

textos das ciências humanas parecem não considerar nem a possibilidade da existência de um

funcionamento cerebral diferenciado. Esses trabalhos podem até trazer algumas declarações

mais relativistas, que afirmam não duvidar da existência do transtorno, mas acabam, em geral,

o reduzindo a um fato necessariamente social.

Uma das pesquisas mais importantes no Brasil que segue essa lógica é o livro

―Somos Todos Desatentos?” de Rossano Cabral de Lima (2005). Neste livro, é feita uma

comparação entre os sintomas definidos pela psiquiatria sobre o TDAH e as descrições dos

traços subjetivos dos indivíduos contemporâneos à luz de Zigmunt Bauman e Richard Sennet.

Segundo Lima, há uma notável semelhança entre o perfil dos sujeitos TDAH e as tendências

subjetivas atuais, marcadas pela experiência do tempo fragmentado e a dificuldade de criar

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narrativas pessoas estáveis. Nesse contexto, acrescentaria-se ainda a falta de constância no

mundo do trabalho e a facilidade de substituir modelos de identificação antigos pelos

lançamentos do mercado global. Assim, as características do déficit de rejeição a rotinas e a

dificuldade de analisar experiências passadas e planejar o futuro são consideradas semelhantes

ao que foi teorizado por Bauman e Sennet.

Contudo, embora o autor afirme que seria equivocado reduzir o indivíduo com

TDAH às subjetividades contemporâneas, e que também não menospreza os conhecimentos

da neurociência e da genética, em alguns momentos são feitas associações simplistas entre o

contexto cultural e a autoidentificação dos sujeitos com o transtorno. Por exemplo, sobre a

influência exercida pelo discurso psiquiátrico, Lima afirma que:

O "conhecimento" (psiquiátrico), aqui, nutre-se do reducionismo biológico para

esvaziar o sujeito do senso de autoria moral de seus atos, produzindo um ser

marcado quase exclusivamente pelas manifestações corporais de sua atenção e ação.

[...] Não precisa mais olhar para seus conflitos íntimos, para suas relações familiares

ou sua biografia para entender suas deficiências e potencialidades, estando

autorizado a dispensar concepções morais, leigas e psicológicas que só teriam

servido para produzir pais culpados, agravar os desvios dos filhos e diminuir a

autoestima. Tudo que necessita para se conhecer está logo à mão, na concretude do

corpo. Atinge aqui seu ápice o processo, descrito por Sfez, de indiferenciação entre

ser e aparência. (LIMA, 2005, p.143).

Esta é uma descrição dos sujeitos TDAH, presente também em outros textos, que os

retrata como desprovidos de agência e reflexividade sobre múltiplos domínios de suas vidas.

Pelo fato de se identificarem com as características do transtorno e se disporem a consumir os

estimulantes, automaticamente seriam negligentes quanto a repensar seus padrões de

comportamentos, as formas como se relacionam com outras pessoas e seus modos de ser em

geral, constituindo-se como seres marcados ―quase exclusivamente‖ pelas manifestações

corporais do transtorno. Essa narrativa pode acompanhar uma associação entre

autoidentificação com o transtorno e um refúgio identitário, fazendo com que ―modos

hiperativos, desatentos e impulsivos não precisem deixar de sê-los‖ (LIMA, p.145). Porém,

nos relatos encontrados no portal da ABDA, várias pessoas estavam fazendo terapia

psicossocial, refletindo também nesse fórum justamente sobre diversos aspectos pessoais que

necessitavam de melhora. Demonstravam forte sofrimento com seus sintomas e parte delas

recorria a outras técnicas além da medicação, como terapia, meditação, ou então exercícios

que melhorassem a organização pessoal.

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É importante destacar que outras pesquisas demonstraram, através de etnografias em

escolas, que alguns diagnósticos realizados posteriormente foram reavaliados e atribuídos a

problemas na dinâmica de sala de aula ou má formação dos estudantes (MOURA, 2015).

Porém, o fato de que questões pedagógicas influenciam diretamente o processo de ensino-

aprendizagem não quer dizer que o funcionamento neuronal dos alunos não possa, em

algumas situações, estar comprometido. Se diagnósticos como autismo e dislexia são tão bem

aceitos, por que o TDAH não pode ter uma existência material? Se doenças em outros órgãos

têm maior legitimidade, por que as disfunções neuronais não seriam possíveis? Eu havia

decidido que era necessário tomar a existência ou não desse transtorno como um fato

realmente em aberto, distanciando-me assim de uma falsa alegação, como percebo em alguns

dos críticos, quando afirmam não saberem se o déficit é uma realidade, já que acabam

sinalizando pela sua não existência. Isso acabou me levando a dar uma real importância ao

discurso dos usuários que reclamavam o direito a terem o diagnóstico e a consumir o

medicamento. Mesmo que isso não tenha feito com que os sujeitos TDAH aceitassem a minha

proposta de fazer entrevistas a partir de algumas páginas privadas em redes sociais, consegui

me dar conta da distância que frequentemente existe entre os pesquisadores das ciências

humanas e os sujeitos que fazem parte de suas pesquisas.

Esse cenário com o qual tive contato provocou uma reflexão sobre o modo que, em

geral, as ciências humanas, ou mais especificamente a sociologia e a antropologia,

relacionam-se com as pessoas que fazem parte de suas pesquisas. Várias vezes me ocorreu o

princípio (trans)feminista da necessidade de respeito a autoidentificação dos sujeitos ao invés

da interpelação proferida por alguma fonte exterior. Os indivíduos que consomem

psicofármacos devem ser vistos como vítimas da lábia dos psiquiatras que tentam vender a

todo custo os remédios e gerar lucro para a indústria? Ou esses médicos podem servir apenas

enquanto intermediários para as pessoas terem acesso a essas substâncias?

Sentir os efeitos dessa droga no meu corpo fez com que eu pudesse ler a bibliografia

a partir de uma ótica diferente e que tem sido pouco usual. Várias descrições e interpretações

que aparecem em alguns textos das ciências humanas passaram a não fazer sentido, como

também a insistência na possibilidade do efeito placebo. Eu sabia e senti que esse estimulante

tem efeitos nítidos e essas declarações soavam irreais ou como algo dito por alguém alheio às

sensações e mudanças corporais acontecendo com os usuários de Ritalina. Tornei-me mais

sensível em relação aos textos que tratavam essas pessoas como vítimas da indústria

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farmacêutica e da psiquiatria hegemônica. Conseguia então, como já comentei, perceber que

realmente havia uma margem de agência por parte desses sujeitos pelo contato que tive no

fórum de pessoas com TDAH.

Por último, vale dizer que mesmo lendo esses discursos críticos me produzia um

desconforto, ao mesmo tempo, ficava num estado de dúvida e apreensão por estar

questionando essas verdades que alocavam o TDAH e a Ritalina apenas no polo da

obediência, normalização e medicalização dos comportamentos desviantes. Como posso ter,

de certa forma, a irresponsabilidade de duvidar que as crianças estejam sendo drogadas? E se

fosse meu filho diagnosticado com TDAH, o que eu faria? Eu tenho consciência de que o

excesso de diagnósticos e aumento vertiginoso no consumo de Ritalina é bastante

problemático e tem relação direta com processos de medicalização. Contudo, não poderia

invisibilizar o fato de que muitas pessoas estavam contentes com o diagnóstico e que seu

tratamento medicamentoso aliviava processos de intenso sofrimento psíquico.

Portanto, essa pesquisa, especialmente em meu relato autoetnográfico, teve como

objetivo desestabilizar a narrativa que insistentemente considera a Ritalina como um

medicamento capaz de produzir obediência. E ao mesmo tempo problematizar os discursos

que percebem os sujeitos TDAH como docilizados e totalmente conformados ao discurso

psiquiátrico. Para isso, tentei coadunar meus relatos pessoais com o que foi observado entre

outros usuários desse psicofármaco.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer deste trabalho podemos acompanhar as controvérsias em torno do uso da

ritalina para diferentes finalidades. Nessa direção, mesmo seu uso oficial é alvo de intensos

debates, quando se questiona o padrão de obediência que a droga pode conduzir

especialmente em crianças, alimentado pelos interesses de uma indústria farmacêutica que

não pode ser negada. Além disso, é preciso considerar uma discussão sobre o saber-poder da

medicina em estabelecer diagnósticos e suas verdades sobre doenças, transtornos e saúde. A

interferência dessa indústria se evidencia claramente ao acompanharmos a procura por um

mercado que se consolidasse para a ritalina e que ao mesmo tempo contasse com respaldo

médico. Em termos concretos, existia a droga, mas não a delimitação de um problema próprio

para ela. Por isso, a ritalina passeia por diversos grupos: idosos, pacientes em terapia,

pacientes em pós-operatório, até se receitar ao TDAH, que foi identificado mais recentemente.

Essa relação que podemos dizer arbitrária na indicação da ritalina para o TDAH se

fortaleceu de modo que se produz uma associação rápida e muito forte entre esses dois

elementos. Não se trata aqui de negar a existência do transtorno, mas, de fato, discutir a

produção dessa associação. Até por que discutir diagnósticos de TDAH não foi o foco desta

pesquisa e, além disso, acredito ter implicações preocupantes em questionar uma condição

que é sentida, vivenciada e relatada por inúmeras pessoas. Inclusive, o TDAH, como vimos,

acaba produzindo uma identidade que é reivindicada a partir dessa condição e pela busca de

demandas específicas, fomentando grupos de apoio, como exemplo a ABDA. O uso da

ritalina, aqui, encontra legitimidade nos meios médicos e legais, apesar de acabar sofrendo

intensas críticas de alguns pesquisadores e de parte da imprensa.

Esse cenário se torna ainda mais controverso quando se considera outro aspecto do

uso da ritalina: a busca pelo aprimoramento cognitivo. Nesse caso, o uso de drogas para

impulsionar a cognição representa um exemplo intrigante da produção social do corpo. Por

um lado, é possível afirmar que as exigências capitalistas de produtividade têm induzido as

pessoas a ingerir substâncias como essas para dar conta da competição em ambientes como o

trabalho ou a universidade, o que explica seu uso mais ou menos disseminado a nível global.

Isso pode ser observado no discurso de blogs como o ―Cérebro Turbinado‖ e nos fóruns sobre

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nootrópicos: a motivação central para usar essas substâncias é aprimorar o desempenho

cognitivo e lograr sucesso em setores centrais do modo de vida neoliberal. Portanto, teria

sentido sugerir a existência de uma ligação entre o uso da substância e a docilização dos

corpos em relação às exigências disciplinares (FOUCAULT, 1975).

Porém, por outro lado, essas substâncias, os discursos que as justificam e o próprio

uso não devem ser pensados apenas em termos de normalização. Na rede que se constitui em

torno deles, ocorrem relações sociais bastante heterogêneas e que não se reduzem à

incorporação de regras exteriores. São práticas de cuidado com o corpo e empreendedorismo

de si (VASCONCELOS & ZAGO, 2015) que produzem um modo de existência particular,

marcado pela sociabilidade, cooperação e produção de conhecimento com base no corpo.

Dessa forma, ao invés de estar presente apenas a docilidade própria aos corpos disciplinados,

há o uso de um artifício ilegal para atingir um objetivo de vida. Inclusive, é possível afirmar

ainda que esta autonomia sobre o corpo é mesmo um risco já que é passível de punição

jurídica tanto pelo uso das drogas quanto pela disseminação de informações que, de certa

forma, incentivam essa prática proibida.

Dessa forma, esses sujeitos que utilizam a ritalina na sua forma não prescrita burlam

as imposições sociais e experimentam uma nova relação com o corpo, alterando seus padrões

biológicos. Criam, então, uma via alternativa ao domínio e regimes de verdade dos discursos

médico-legais sobre os corpos. Nesse sentido, é possível pensar como certa rejeição social a

este uso também está associada justamente a essa modificação corporal aparentemente

inusitada daqueles padrões considerados ―normais‖ do que é corpo e como lidar com ele.

Sobre essa discussão, Paul Rabinow afirma que existe na contemporaneidade um discurso

naturalista que afirma a superioridade do biológico e emite julgamentos sobre os riscos

ligados à artificialidade. Porém, para além da instrumentalização e objetificação, também é

possível perceber nessas intervenções artificiais sobre a materialidade biológica a

possibilidade de usufruir dos potenciais da vida (RABINOW, 1991).

Esse discurso moral que se instala quanto ao uso da ritalina, como discorremos, vai

mais além envolvendo questões pertinentes quanto às desigualdades sociais que podem se

acentuar entre os usuários e os não usuários. E também como o uso pode ser incitado

coercitivamente em contextos de alta competição ou para algumas profissões como médicos

plantonistas, militares ou trabalhadores de turnos noturnos. Mas, apesar disso, a abordagem

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que é vista na imprensa, por exemplo, é sensacionalista ao desaprovar usuários da ritalina para

fins de estudo, e alarmando, muitas vezes, até mesmo sobre o uso prescrito para o TDAH.

Retomando o uso não prescrito da ritalina, ele acompanha um movimento mais geral

de progressiva medicalização social, sem uma revisão estatal das normatizações, por exemplo,

que apenas criminalizam este uso. Nesse sentido, mostra-se curiosa uma negação do Estado

quanto ao uso da ritalina para fins de aprimoramento cognitivo quando o que move esses

usuários muitas vezes é justamente o adequamento social. Além disso, este é um uso que se

aproxima bastante da própria origem da ritalina quando era indicada para idosos, a fim de dar

disposição. Nesse caso, a ritalina chegou a ser vista como inofensiva, apesar de que

atualmente aponta-se a possibilidade de causar dependência. Enquanto não surgem medidas

mais coerentes com a realidade do uso da ritalina, os usuários nas formas não prescritas

continuarão fortalecendo suas redes e prosseguindo com esse consumo de forma

criminalizada e sem a possibilidade de acompanhamento médico em momentos que isso possa

ser necessário.

Para além da modalidade de uso enquanto ―aprimorador cognitivo‖, a Ritalina possui

alguns aspectos possivelmente problemáticos em seu uso associado ao TDAH. Embora eu

tenha demonstrado ao longo da dissertação que muitas pessoas desejam o consumo desse

fármaco, o direcionamento da psiquiatria biológica pode em algumas situações realizar falsos

diagnósticos, tendo em vista que a avaliação subjetiva do médico é passível de apresentar

equívocos. Mesmo que isso não invalide necessariamente a existência do transtorno, esse

profissional pode estar desconsiderando questões que não são tão próprias ao seu domínio,

como questões pedagógicas ou culturais. Devido a isso, medidas como as sugeridas pela

portaria da secretaria de saúde de SP, que institui a necessidade de acompanhamento

multiprofissional, são meios importantes para proporcionar um diálogo entre a medicina e

outras áreas do conhecimento sobre os processos de adoecimento.

Por fim, resta dizer que esta dissertação procurou desenvolver uma pesquisa que

trouxesse outras questões para um debate que, frequentemente, se restringe às concepções

deterministas sobre o efeito da Ritalina. É uma crítica, portanto, ao determinismo biológico

que não prevê as utilizações indevidas desse medicamento, e também aos discursos simplistas

dos críticos que naturalizam a obediência.

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ANEXO A

Anúncio de 1959

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ANEXO B

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