analise diagnostic a de sistemas agrarios

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CONVNIO INCRA/FAO

CURSO ANLISE DIAGNSTICO DE SISTEMAS AGRRIOS

GUIA METODOLGICO(verso 5.0)

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NDICE

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APRESENTAO

Este documento apresenta os principais conceitos e instrumentos da metodologia denominada anlise - diagnstico de sistemas agrrios utilizada, desde 1985, pelo convnio Organizao das Naes Unidas para a Agricultura e a Alimentao (FAO) / Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA) no diagnstico de vrios projetos de assentamento e de cerca de 12 estudos microrregionais, em diversas regies do pas. Em 1997, 14 cursos de capacitao das equipes do Projeto Lumiar tambm adotaram essa metodologia. Redigido por Danilo Prado Garcia Filho, com contribuies de Paolo Groppo (Servio de Desenvolvimento Sustentvel da FAO - SDAA ), Adolfo Hurtado, Adriana Freitas, Anne Lethor e Frdric Bazin (consultores do convnio FAO/INCRA), este documento valeu-se de trabalhos anteriores do Servio de Posse da Terra da FAO-SDAA e da experincia e das concepes terica e metodolgica de inmeros pesquisadores e consultores, sobretudo os da cadeira de Agricultura Comparada do Instituto Nacional de Agronomia de Paris. Agradecemos, em particular, ao professor Marc Dufumier, do INA (Institut National dAgronomie, Paris, Frana), consultor internacional do convnio INCRA/FAO, bem como a todos aqueles que contriburam direta ou indiretamente para o enriquecimento deste documento: Gilson Bittencourt, Valter Bianchini, Benedito Silva e Carlos Guanziroli.

OBJETIVO DO GUIA METODOLGICO

O primeiro objetivo deste guia metodolgico oferecer um instrumento de apoio aos tcnicos do INCRA e de instituies parceiras que, para subsidiar a elaborao de projetos e de polticas de desenvolvimento dos assentamentos, desejam realizar diagnsticos de sistemas agrrios. Pensamos, sobretudo, naqueles que participam dos cursos de capacitao promovidos pelo convnio INCRA/FAO, sem esquecer dos tcnicos que, de alguma forma, esto envolvidos em atividades similares. O guia pretende, ainda, servir de instrumento para os agentes de desenvolvimento de outras instituies que atuam em contextos diversos. O texto segue a ordem das etapas de elaborao do diagnstico, buscando, de forma sinttica, explicar o mtodo, os seus fundamentos e os seus resultados. Para ilustr-lo, reproduzimos, em figuras ou em grficos, resultados de trabalhos, sobretudo dos diagnsticos elaborados de acordo com essa metodologia pelos tcnicos do convnio INCRA/FAO. Para precisar alguns conceitos, recorremos a textos de diversos autores, em particular do livro de

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Marc Dufumier intitulado Les projets de dveloppement agricole Manuel dexpertise (Paris: CTA-Karthala, 1997). importante frisar que este documento no deve ser encarado como uma receita ou como um guia rgido, pois cada diagnstico representa mais uma etapa de reconstruo dos conhecimentos acumulados e um exerccio de escuta, de observao, de interrogao, de interpretao e de sntese, servindo de estmulo reflexo crtica e pessoal.

1. INTRODUO

O que e para que serve um diagnstico? Essa pergunta pode parecer bvia para um mdico, que necessita saber qual a doena do paciente antes de receitar um tratamento. Mas no to evidente para quem atua no meio rural, em particular nos assentamentos. Afinal, muitas vezes, j se tem uma idia do projeto a ser implementado, dos rumos que se deseja seguir e da assistncia tcnica a ser adotada. Mas, ser que esses projetos correspondem aos dos assentados? Ser que so esses projetos os que melhor permitem explorar o potencial da regio? H, nas unidades de produo, recursos para implement-los? A mo-de-obra suficiente? Os recursos financeiros, os equipamentos e os conhecimentos so suficientes? E os sistemas de produo preconizados? Eles existem na regio? Quais foram os resultados alcanados pelo sistemas adotados? H inmeros projetos e programas de desenvolvimento rural que foram bem-sucedidos, sem contar com o apoio de diagnsticos criteriosos. Mas, existem tambm vrias experincias que esbarraram em algum obstculo - relativo ao mercado, aos canais de comercializao, instabilidade do clima, mo-de-obra, aos recursos financeiros disponveis, s dificuldades para a liberao do crdito de custeio ou de investimento, etc. - que no havia sido previsto ou dimensionado corretamente. Podemos citar alguns exemplos. Na regio semi-rida do Nordeste muitos projetos no tiveram sucesso porque apostaram no aumento da produo de mandioca, do milho e do feijo. Ora, essas culturas, apesar de aparentemente mais rentveis do que a pecuria, so imensamente arriscadas nas condies locais. Para evitar que uma seca provoque uma grave descapitalizao, os produtores plantam apenas a rea necessria ao consumo familiar e limitam os custos ao mnimo. No restante da rea, em geral, criam bovinos ou caprinos, que, quando necessrio, so vendidos. Muitos projetos basearam-se na idia de que a difuso de tcnicas mais eficientes de cultivo ou de manejo de animais resultaria numa maior produtividade e em rendas maiores. Contudo, algumas vezes, isso implica aumento de mo-de-obra, que poderia ser utilizada noutras

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atividades mais rentveis. Em outros casos, isso representa um aumento dos custos de produo e, portanto, dos riscos. Em outros, ainda, pode exigir recursos financeiros de que o agricultor no dispe. Projetos baseados na diversificao da produo podem tambm esbarrar nesses obstculos, alm de depender de um entorno econmico favorvel - fornecedores de sementes, mudas e insumos, canais de comercializao, assistncia tcnica, etc. Uma projeto pode ser adequado a alguns produtores, mas no a outros. Para evitar erros e insucessos, , portanto, fundamental verificar, durante a elaborao dos projetos, o que os agricultores vm fazendo para sobreviver e para melhorar de vida, porque vm fazendo assim e quais so os problemas mais significativos que vm enfrentando. , tambm, indispensvel entender o contexto no qual os produtores esto trabalhando, isto , quais so os potenciais e os limites dos ecossistemas e da infra-estrutura local e quem so os agentes que interferem na produo agrcola e como eles agem. , enfim, recomendvel identificar a tendncia de evoluo da regio, verificando se ela aponta para um reforo da agricultura familiar ou, ao contrrio, da agricultura patronal e das grandes empresas, se os agricultores esto diversificando a produo e mudando suas tcnicas e em que direo e como esto atuando os comerciantes e as agroindstrias . Em outras palavras, importante realizar um bom diagnstico da realidade na qual se pretende agir.

2. OBJETIVOS

2.1 O DIAGNSTICO: UMA FERRAMENTA PARA O DESENVOLVIMENTO RURAL

O desenvolvimento rural , em primeiro lugar, um encadeamento de transformaes tcnicas, ecolgicas, econmicas e sociais. Convm entender a sua dinmica passada e as suas contradies presentes para prever as tendncias futuras. Marc Dufumier, Les projets de dveloppement agricole Manuel dexpertise O diagnstico dos sistemas agrrios no um fim em si mesmo, mas uma ferramenta. Seu principal objetivo contribuir para a elaborao de linhas estratgicas do desenvolvimento rural, isto , para a definio de polticas pblicas, de programas de ao e de projetos (de governo, de organizaes de produtores, de ONG's, etc.). O diagnstico deve trazer respostas a perguntas importantes, tais como: quais so as prticas tcnicas, sociais e econmicas dos agricultores e os seus sistemas de produo; quais so as razes que explicam a existncia dessas prticas; quais so as suas principais tendncias de evoluo; quais so os principais fatores que condicionam essa evoluo; quais so os principais problemas que vm enfrentando; como se pode contribuir para superar esses

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problemas; quais seriam os sistemas de produo e os tipos de produtores mais adequados sociedade? Essas questes se aplicam, evidentemente, ao caso dos assentamentos mais antigos, nos quais os produtores j implantaram ou esto implantando seus sistemas de produo. Mas, nos assentamentos mais recentes ou na elaborao de projetos de assentamentos novos, o diagnstico pode tambm ser til. Por um lado, ele permite entender o contexto local, dos pontos de vista ambiental, econmico e social e identificar os potenciais e os obstculos desses projetos. Por outro, ele pode auxiliar na definio da rea dos lotes, na seleo dos beneficirios, na escolha dos investimentos prioritrios em infra-estrutura, na seleo dos projetos que merecem ser financiados pelo Programa de Crdito Especial da Reforma Agrria (Procera), na escolha da assistncia tcnica, etc.

2.2 EM QUE CONSISTE CONCRETAMENTE UM DIAGNSTICO?

Esquematizando, o diagnstico deve permitir: a) fazer um levantamento das situaes ecolgica e scio-econmica dos agricultores; b) identificar e caracterizar os principais tipos de produtores (familiares, patronais, etc.) e os principais agentes envolvidos no desenvolvimento rural (comrcio, empresas de integrao, bancos, agroindstrias, poder pblico, etc.); c) identificar e caracterizar os principais sistemas de produo adotados por esses diferentes produtores, as suas prticas tcnicas, sociais e econmicas e os seus principais problemas; d) caracterizar o desenvolvimento rural em curso, isto , as tendncias de evoluo da agricultura na regio; e) identificar, explicar e hierarquizar os principais elementos - ecolgicos, scio-econmicos, tcnicos, polticos, etc. - que determinam essa evoluo; f) realizar previses sobre a evoluo da realidade agrria; g) sugerir polticas, programas e projetos de desenvolvimento e ordenar as aes prioritrias; h) sugerir indicadores de avaliao dos projetos e dos programas. O diagnstico deve ser rpido e operacional, tendo em vista garantir a sua aplicabilidade no desenvolvimento rural. Mas deve ser, tambm, cientfico, no apenas descrevendo a realidade, mas sobretudo, explicando-a.

3. PRESSUPOSTOS BSICOS E PRINCPIOS DO MTODO

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3.1 A COMPLEXIDADE DOS SISTEMAS AGRRIOS

O diagnstico deve dar conta da complexidade e da diversidade que, em geral, caracterizam a atividade agrcola e o meio rural. Um primeiro fator de complexidade advm dos ecossistemas, que representam potenciais ou impem limites s atividades agrcolas. O modo de utilizao do espao que essas sociedades adotam representa um esforo de adaptao ao ecossistema, buscando explorar da melhor maneira possvel o seu potencial ou minimizar os obstculos. Essas formas de uso do espao evoluem ao longo da histria em virtude de fatos que se relacionam entre si, sejam eles ecolgicos (mudanas climticas, desmatamento, depauperao do solo, etc.), tcnicos (surgimento de novas tecnologias ou variedades, introduo de novas culturas) ou econmicos (variao de preos, mudanas nas polticas agrcolas, desenvolvimento ou declnio de agroindstrias, surgimento de oportunidades comerciais, etc.). Nesse sentido, os ecossistemas cultivados so fruto da histria, da ao passada e presente - e das sociedades agrrias que os ocuparam. A complexidade reside tambm no fato de que essas sociedades so diferenciadas, isto , so compostas de categorias, de camadas e de classes sociais que mantm relaes entre si (agricultores familiares, fazendeiros, empresas capitalistas, assalariados e diaristas,

arrendatrios e parceiros, atravessadores, agroindstrias, bancos, fornecedores de insumos, comrcio local, poder pblico, organizaes da sociedade civil, etc.). A ao de cada um depende da ao ou da reao dos outros, bem como dos seus entornos ambiental, social e econmico. Na agricultura, isso resulta na existncia de distintos tipos de produtores, que se diferenciam tanto pelas suas condies scio-econmicas e por seus critrios de deciso, quanto pelos seus sistemas de produo e pelas suas prticas agrcolas. Essa diversidade existe mesmo quando se considera apenas a agricultura familiar ou um grupo de assentados, pois nem todos apresentam o mesmo nvel de capitalizao, a mesma forma de acesso terra, aos recursos naturais, aos financiamentos e aos servios pblicos e tampouco o mesmo modo de se organizar e de se relacionar com os outros agentes sociais, etc. Ainda que se considere cada cultura ou cada criao isoladamente, a atividade agrcola complexa, pois combina os diferentes recursos disponveis (terra e outros recursos naturais, insumos, equipamentos e instalaes, recursos financeiros e mo-de-obra) com um conjunto de atividades distintas (preparo do solo, plantio, fertilizao, controle de pragas, colheita, comercializao, etc.). Nessa combinao, existe um grande nmero de fatores que determinam as prticas agrcolas: a qualidade dos solos, o clima, as pocas de liberao dos financiamentos, as flutuaes de preos, etc. Nesse sentido, at mesmo os estabelecimentos especializados em monocultura constituem um sistema de produo complexo. Vrias so as formas de analisar as realidades agrrias que privilegiam os aspectos econmicos, sociais e antropolgicos ou o meio fsico. Algumas do nfase aos dados quantitativos, outros aos dados qualitativos.

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Entretanto, como vimos anteriormente, a evoluo de cada tipo de produtor e de cada sistema de produo determinada por um conjunto complexo de fatores ecolgicos, tcnicos, sociais e econmicos que se relacionam entre si. As necessidades da sociedade podem impor mudanas a cada um desses fatores. Pode ser necessrio, por exemplo, aumentar a produo ou a produtividade de algumas produes ou limitar os gastos governamentais ou, ainda, diminuir a emisso de poluentes. Essas mesmas necessidades podem demandar alteraes nos preos dos produtos (tanto agrcolas quanto industriais), acarretando conseqncias diferentes para cada tipo de sistema de produo e de produtor. A permanncia ou o desaparecimento de um determinado tipo de produtor depende da sua capacidade de se adaptar s mudanas, ou seja, em ltima instncia, de seus resultados econmicos. So essa complexidade, essa histria e essa diferenciao que cabe entender.

3.2 O ENFOQUE SISTMICO

Nas ltimas dcadas, para a anlise de situaes complexas, tem-se utilizado as teorias e as metodologias sistmicas. Mas, em que consiste o enfoque sistmico?

... aprofundando ...

O Conceito e a Teoria SistmicaSegundo essa teoria, analisar e explicitar um objeto complexo , em primeiro lugar, delimit-lo, [...], traar uma fronteira entre esse objeto e o resto do mundo; em particular, distingui-lo dos outros objetos que, sendo da mesma natureza, so, ao mesmo tempo, diferentes o bastante para serem considerados como pertencentes a uma outra espcie do mesmo objeto; , portanto, em ltima instncia, classificar. Do mesmo modo, para diferenciar as mltiplas formas atuais [...] da agricultura, necessrio delimitar a sua distribuio geogrfica e, portanto, classific-las em tantas espcies (ou sistemas) quanto necessrias. Segundo a teoria sistmica, analisar e explicitar um objeto tambm estudar a sua dinmica de evoluo atravs do tempo e as relaes que esse sistema mantm com o resto do mundo nos seus diferentes estgios de evoluo. Para estudar a evoluo no tempo das vrias formas passadas da agricultura [...] preciso classific-las em etapas e espcies (ou sistemas) [...]. assim que a classificao das espcies dos seres vivos (Linn) e a teoria da evoluo (Darwin) pertencem ao mtodo sistmico. A teoria da pedognesis e da diferenciao climtica e zonal dos diferentes tipos de solos (Dokoutchaev, Duchaufour] e a teoria da formao e da diferenciao dos climas so tambm teorias sistmicas. Do mesmo modo, a teoria da evoluo e da diferenciao dos sistemas agrrios uma teoria sistmica. Alm disso, considerar a estrutura de um objeto complexo imagin-lo como uma combinao de subsistemas hierarquizados e interdependentes. Por exemplo, a anatomia de um ser vivo superior concebida como um sistema composto de subsistemas complementares: os sistemas sseo, muscular, circulatrio, respiratrio, etc. Cada sistema se decompe em rgos, cada rgo em tecidos, cada tecido em clulas, etc.

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Enfim, considerar o funcionamento de um objeto como um todo pens-lo como uma combinao de funes complementares que asseguram a circulao interna de todos os fluxos (de matria, de energia, de valor, etc.) e, no caso de um sistema aberto, imagin-lo como um conjunto de intercmbios com o exterior. Por exemplo, o funcionamento de um ser vivo superior se decompe em funes que so o produto da atividade de um ou de vrios subsistemas ou rgos, e que asseguram a renovao do organismo: funes digestivas, circulatrias, respiratrias, etc. Os historiadores, os gegrafos, os antroplogos, os economistas e os agrnomos, em nmero cada vez maior, utilizam, com sentido s vezes diferente, o termo sistema agrrio. esse o termo que temos utilizado para designar o conceito, ou seja, a ferramenta de reflexo que queremos construir para apreender, analisar, ordenar, classificar, compreender e explicitar a realidade complexa das mltiplas formas evolutivas da agricultura. Marcel MAZOYER. Op cit. Pour des projets agricoles lgitimes et efficace: thorie et mthode d'analyse des systmes agraires. In: Land reform, land settlement and cooperatives. Paris: FAO, 1992-93. Na anlise dos sistemas agrrios, existem vrios mtodos que se baseiam no enfoque sistmico, cada qual enfatizando um ou outro aspecto dos processos tcnicos e econmicos. H, por exemplo, abordagens que priorizam os fluxos de fertilidade e de energia e outras que privilegiam as questes econmicas. Propomos, aqui, uma metodologia centrada nos atores da histria dos sistemas agrrios, com nfase nos agricultores familiares, principal objeto de nossa preocupao.

3.3 OS PRINCPIOS GERAIS DO MTODO

O mtodo baseia-se em passos progressivos, partindo do geral para o particular. Ele comea-se pelos fenmenos e pelos nveis de anlises mais gerais (mundo, pas, regio, etc.), terminando nos nveis mais especficos (municpio, assentamento e unidade de produo) e nos fenmenos particulares (cultivos, criao, etc.). Em cada etapa, os fenmenos devem ser interpretados e confrontados com as anlises das etapas anteriores e, ao final, elaboram-se as hipteses que devem ser verificadas na etapa seguinte. Assim, constri-se progressivamente uma sntese cada vez mais aprofundada da realidade observada. Como existe um grande nmero de variveis que pode influenciar o desenvolvimento rural, importante no se perder nos detalhes e manter sempre uma viso global do objeto de estudo. A busca da explicao e no somente da descrio dos fenmenos observados deve ser uma preocupao constante. Para isso, necessrio: a) manter a perspectiva histrica em todas as etapas do mtodo; b) realizar uma avaliao econmica dos diferentes sistemas de produo, tanto do ponto de vista do produtor quanto do ponto de vista da sociedade.

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Como, em geral, as realidades agrrias so marcadas pela diversidade, importante evidenciar os mecanismos dessa diferenciao, sejam eles ecolgicos ou sociais. til, portanto, recorrer estratificao da realidade, estabelecendo conjuntos homogneos e

contrastados, definidos de acordo com o desenvolvimento rural. Isso pode ser realizado por intermdio: a) do zoneamento agroecolgico; b) da tipologia (estudo dos diferentes tipos) de produtores; c) da tipologia de sistemas de produo. Entretanto, no basta estudar cada uma das partes ou dos fenmenos da realidade agrria que se quer conhecer. necessrio entender as relaes entre as partes e entre os fatos ecolgicos, tcnicos e sociais que explicam a realidade. O estudo dos solos, por exemplo, s relevante quando relacionado com as tcnicas utilizadas ou com os problemas enfrentados pelos agricultores. Por isso, utiliza-se, em cada nvel de anlise, o enfoque sistmico (ver adiante a definio de sistema agrrio). Por fim, trabalha-se com amostragens dirigidas, de forma que se possa analisar a diversidade dos fenmenos mais importantes observados. O tamanho da amostra , pois, determinado sobretudo pela complexidade e pela diversidade da realidade estudada. No se trabalha, portanto, com amostragens aleatrias, pois elas no so representativas dessa diversidade e comprometem a anlise, justamente por seu carter aleatrio. A seleo dos nveis de anlise do diagnstico depende da problemtica do caso estudado. Para cada um deles, utilizam-se ferramentas diferentes (qualitativas ou quantitativas). A seguir, apresentamos os possveis nveis de anlise e os objetos de sntese ou o sistema que lhes correspondem.

Nvel de Anlise internacional nacional regional e microrregional unidade de produo grupo de animis (da mesma espcie) parcela (analisada de forma homognea)

Objeto de Sntese mercado mundial articulao intersetorial (agricultura/outros setores) sistema agrrio sistema de produo sistema de criao sistema de cultura

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Figura 1 As Etapas de uma Anlise-Diagnstico dos Sistemas Agrrios

SISTEMA AGRRIO

anlise dos mapas e dos estudos j existentes

leitura de paisagem

resgate da histria

zoneamento agroecolgico histria do sistema agrrio

tipologia dos produtores e tipologia dos sistemas de produo

SISTEMAS DE PRODUO

caracterizao dos sistemas de produo

estudo dos itinerrios tcnicos

anlise agronmica

anlise econmica

modelizao

SISTEMA AGRRIO

eventualmente: AMOSTRA REPRESENTATIVA aventualmente: quantificao dos diferentes tipos de sistemas de produo

sntese final do DIAGNSTICO

elaborao de PROPOSTAS para o DESENVOLVIMENTO RURAL

reviso das concluses e das hipteses anteriores12

AMOSTRA DIRIGIDA

3.4 A PARTICIPAO DOS AGRICULTORES NO DIAGNSTICO

importante conceber procedimentos democrticos que permitam realmente levar em conta os interesses [...] das diferentes classes, camadas e categorias sociais das quais se espera uma participao ativa. Essas no devem mais ser consideradas como simples executoras de projetos, elaborados sem seu conhecimento, mas devem ser integradas aos projetos desde a sua concepo inicial. Marc DUFUMIER. Op cit. No h projetos ou programas de desenvolvimento legtimos se no houver uma participao plena e efetiva dos agricultores na discusso de seus objetivos e de seus instrumentos. Nesse sentido, o diagnstico, no somente um estudo tcnico, mas tambm de legitimidade1. O diagnstico no , obrigatoriamente, uma ao reservada aos tcnicos. Seus objetivos devem ser tambm: a) fornecer aos agricultores informaes sobre a realidade na qual atuam; b) contribuir para que os agricultores formulem projetos e polticas de desenvolvimento; c) facilitar o dilogo dos tcnicos com os produtores, bem como dos produtores entre eles e com outros agentes do desenvolvimento local, estabelecendo uma base de conhecimento comum. Assim sendo, o diagnstico pode ser realizado em todas as suas etapas, em conjunto com os prprios agricultores e as suas organizaes. Nesse caso, til preservar a diferena que existe entre o olhar dos tcnicos e o dos agricultores. Se o diagnstico pode ser substancialmente realizado de maneira participativa, tambm importante que os tcnicos no deixem de analisar a realidade, de maneira cientfica e rigorosa, de acordo com as suas disciplinas e as suas prprias experincias. Caso o diagnstico esteja sendo realizado exclusivamente por uma equipe tcnica, importante que, no final do processo, antes da formulao final dos projetos e das polticas de desenvolvimento, haja mecanismos que permitam que os agricultores conheam as concluses do trabalho e participem da formulao das polticas e dos projetos delas decorrentes. No se trata apenas de uma formalidade, mas de uma confrontao do olhar dos tcnicos com o olhar dos agricultores, de forma a evitar que concluses erradas levem a solues inadequadas e ineficazes. Trata-se, tambm, de associar os principais interessados na formulaes dessas polticas.

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Marcel MAZOYER . Op. cit.

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4. AS DEFINIES INICIAIS: OBJETO DE ESTUDO E REA DE TRABALHO

A primeira tarefa, ao se iniciar um diagnstico, definir, da maneira mais concreta e precisa possvel, os objetivos do trabalho. Cabe, em virtude desses objetivos, definir claramente o objeto de estudo, ou seja, o universo social e geogrfico com o qual se deseja trabalhar. Considera-se somente um assentamento ou tambm a agricultura familiar e patronal do seu entorno? Existe algum sistema de produo ou algum aspecto da realidade que se deseja particularmente enfocar? Qual a delimitao da rea de estudo: uma grande regio, uma pequena regio, um municpio, um distrito, um assentamento ou um ecossistema? Essas definies dependem, evidentemente, da complexidade da realidade a ser estudada e do tipo de problema que se deseja enfrentar utilizando estratgias e projetos de desenvolvimento. Os problemas centrais de uma equipe do Lumiar, por exemplo, so a definio de um programa de assistncia tcnica, a escolha dos sistemas de produo e dos projetos prioritrios a serem apoiados. Mas, para a Superintendncias Regionais do INCRA ou para os rgos estaduais, pode ser mais importante definir quais so projetos que devem ser contemplados com os recursos do Procera e quais so os investimentos prioritrios em infraestrutura que devem ser realizados em cada regio e o perfil e a rea dos lotes de futuros projetos de assentamento. J para o INCRA, no nvel central, os diagnsticos podem subsidiar a definio de polticas mais gerais ou o estudo de viabilidade de projetos especficos (a aquisio de algumas reas, projetos integrados a agroindstrias, etc.). Mas o objeto e a rea de estudo dependem tambm do tempo e dos recursos disponveis, da experincia da equipe, das dificuldades logsticas de comunicao e de deslocamento, etc. Se o diagnstico tem que ser realizado com rapidez e a equipe pequena, recomenda-se limitar a rea de estudo. Se houver mais tempo ou se a equipe for maior e mais experiente, pode-se considerar uma regio maior. Pergunta-se, ento: para definir o objeto de estudo necessrio ter algum conhecimento prvio do sistema agrrio local? Isso pode realmente parecer paradoxal. Mas, na verdade, uma decorrncia do mtodo, baseado no enfoque sistmico e nas etapas sucessivas de trabalho (ver acima). muito freqente que a delimitao de uma rea de estudo seja revista algumas vezes no incio do trabalho, de forma a adeq-la aos objetivos inicialmente propostos. Podemos citar dois exemplos. Durante o diagnstico de um assentamento localizado em Jacobina, no estado de Minas Gerais, percebeu-se, aps as primeiras etapas do trabalho, que parte do municpio contemplado pelo estudo tinha uma histria e um ecossistema totalmente diferente da rea do assentamento. Essa regio foi, ento, abandonada no decorrer da pesquisa. Ao contrrio, na Amaznia, para avaliar a viabilidade do desenvolvimento do cultivo de cana-deacar e do guaran em assentamentos locais, foi necessrio buscar subsdios em reas

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localizadas fora do municpio inicialmente escolhido, de modo a estudar com mais profundidade essas culturas.

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5. ANLISE GLOBAL DA REGIO

Uma regio raramente homognea. Ela pode ser composta de espaos que apresentam caractersticas ecolgicas distintas ou ser resultado de uma combinao de diferentes modos de ocupao (ocupao espontnea, projetos de colonizao de reforma agrria, etc.). Essas diferenas ecolgicas e histricas condicionam de forma tambm diferente as atividades agrcolas. H, em geral, vrios tipos de atores sociais envolvidos na produo agrcola: fazendeiros, agricultores familiares mais ou menos capitalizados, agroindstrias, trabalhadores sem-terra, etc. Existem, tambm, diversos agentes que determinam o entorno dessa produo: comerciantes, governos municipais, estaduais e federal, prestadores de servios, etc. Em conseqncia, as formas de explorao dos espaos agrrios so, em geral, heterogneas. Por essa razo, necessrio realizar, nas etapas iniciais do trabalho, uma anlise geral da regio a ser estudada, buscando atingir os seguintes objetivos: a) identificar e localizar no espao os grandes modos de explorao do meio ambiente, isto , os distintos cultivos e as diferentes prticas agrcolas - sistemas de agricultura de corte e de queima, pecuria em grandes extenses, agricultura em pequena escala (mais ou menos mecanizada, mais ou menos diversificada), monoculturas em grande escala, permetros irrigados, cintures verdes, etc. -; b) identificar os elementos ecolgicos, tcnicos e sociais que determinaram a sua evoluo recente e a sua localizao atual - potencialidades ou fatores limitantes dos ecossistemas, condies e eventuais acidentes ou mudanas ecolgicas (secas, inundaes, desgaste dos solos, diminuio das matas, construo de barragens, etc.), evoluo da estrutura fundiria e das formas de acesso terra, evoluo das tcnicas ou dos instrumentos de produo, criao de infra-estruturas (irrigao, estradas, etc.), expanso ou retrao dos mercados, instalao de agroindstrias ou de equipamentos de armazenagem, migraes, crescimento demogrfico, mudanas nas legislaes, etc.

5.1 A COLETA E O TRATAMENTO DOS DADOS J EXISTENTES

Quando possvel, a primeira etapa do trabalho deve ser a compilao e o tratamento dos documentos histricos, estatsticos e cartogrficos j existentes. O objetivo desse esforo fazer rapidamente, com os dados j disponveis, correlaes entre as diferentes variveis (clima, solos, relevo, cobertura vegetal, estrutura fundiria, dados demogrficos e de produo, infraestrutura, etc.). Isso pode ser feito por meio de:

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a) superposio de mapas temticos na mesma escala; b) estudo de documentos antigos relativos histria, ao desenvolvimento rural e s prticas agrcolas; c) cruzamento desses dados entre eles e informaes estatsticas, etc. Entretanto, esses documentos muitas vezes no esto disponveis, so de difcil acesso ou demandam uma compilao demorada. Por outro lado, a maior parte deles no foi elaborada com a mesma finalidade a que se destina o nosso estudo isto , no visam subsidiar polticas e projetos de desenvolvimento. Portanto, esse trabalho inicial pode no trazer os frutos esperados e talvez deva ser descartado num primeiro momento.

5.2 A ANLISE DA PAISAGEM

So as paisagens agrrias que oferecem as primeiras informaes importantes para o diagnstico. Observando-as pode-se obter, mais do que por meio dos documentos existentes, informaes indispensveis sobre as diversas formas de explorao e de manejo do meio ambiente e sobre as prticas agrcolas e suas condies ecolgicas e, tambm, questionar as razes histricas dessas diferenas. Os objetivos da leitura de paisagem so: a) verificar se a regio homognea identificando e caracterizando as heterogeneidades, caso existam; b) identificar os diferentes tipos de agricultura existentes; c) identificar os condicionantes ecolgicos dessas atividades agrcolas; d) levantar hipteses que expliquem essas heterogeneidades e a formao dessa paisagem (relaes entre o homem e o ecossistema); e) elaborar, quando for o caso, um zoneamento preliminar da regio. A leitura da paisagem realizada por intermdio de percursos sistemticos de campo que permitam atravessar e verificar as diferentes heterogeneidades dos ecossistemas. importante no s observar a paisagem, mas tambm interrogar-se sobre ela e interpret-la. Cabe, sobretudo, se perguntar se a essas heterogeneidades correspondem variaes nas formas de explorao dos ecossistemas. Caso no haja documentos que esclaream essas heterogeneidades, cabe aos tcnicos descobri-las, observando algumas reas e indagando aos agricultores ou a outros informantes sobre as diferenas identificadas. Convm tambm, na anlise das paisagens agrrias, iniciar pelos aspectos mais gerais, identificando os principais ecossistemas existentes, por intermdio, sobretudo, das grandes formas de relevo, das principais formaes vegetais, dos diferentes "territrios" agrcolas, etc.

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Pode-se, em seguida, analisar os aspectos que oferecem um maior detalhamento das diferentes formas de explorao do meio e das diversas prticas agrcolas. O que olhar durante esses percursos? Os ecossistemas - unidades geomorfolgicas e a cobertura vegetal -, os tipos de agricultura - ou seja, os tipos de culturas e de criaes, a disposio no espao dessas culturas e dessas criao, a estrutura fundiria, as tcnicas utilizadas, o grau de intensificao das culturas, as espcies e o tamanho dos rebanhos, as formas de uso dos diferentes recursos naturais (solos, vegetao nativa, gua, etc.) -, as infraestruturas social e produtiva (tipo, localizao, estado de conservao, etc.) e os indicadores de nvel e as condies de vida. Como resultados, teremos: a) um zoneamento agroecolgico preliminar, caso a regio seja heterognea; b) uma caracterizao inicial das diferentes agriculturas existentes e as primeiras hipteses sobre seus condicionantes (meio fsico, estrutura agrria, evoluo das tcnicas agrcolas, infraestrutura, etc.); c) as primeiras indagaes ou as hipteses preliminares sobre a histria regional. Esses resultados podem ser representados de vrias formas, entre elas (ver exemplos a seguir): a) um mapa (ou vrios mapas superpostos) do zoneamento agroecolgico; b) croquis ou blocos-diagrama tridimensionais dessas formas de explorao do meio (ver Figura 1).

5.3 AS ENTREVISTAS HISTRICAS

Vimos que a diversidade de formas de explorao dos ecossistemas se explica pela histria das transformaes ecolgicas, das relaes sociais e das tcnicas agrcolas. essa histria que confere s diferentes zonas observadas uma certa unidade, em contraste com as vizinhas. Portanto, as hipteses levantadas devem ser verificadas por intermdio de entrevistas histricas com informantes que possam fornecer mais elementos capazes de explicar os fenmenos observados. importante verificar em especial: a) as mudanas de longo prazo ou os incidentes relevantes relativos s condies ecolgicas tais como, por exemplo, secas, inundaes, construo de barragens, diminuio das reas de mata ou da durao do pousio -; b) as mudanas ocorridas nas tcnicas agrcolas - mudanas de culturas ou de criaes praticadas, introduo ou abandono de tcnicas agrcolas, evoluo das formas de trao, dos instrumentos e das ferramentas, mudanas nas formas de reproduo da fertilidade e de combate s pragas, etc. -;

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c) os fatos scio-econmicos mais significativos - mudanas nas relaes sociais, nas formas de acesso terra, na estrutura fundiria, nas aes dos diferentes atores sociais (agricultores, fazendeiros, atravessadores, agroindustriais, populao urbana, etc.), nas polticas pblicas ou nas condies scio-econmicas mais gerais (inflao, relaes de preo, emprego e salrios, legislaes trabalhistas, ambientais e tributrias, etc.). O objetivo dessas entrevistas no s o de estabelecer uma cronologia dos fatos ecolgicos, tcnicos e sociais relatados, mas, sobretudo, estabelecer relaes de causa e efeito entre esses fatos. Deve-se, em especial, tentar identificar as trajetrias de acumulao ou de descapitalizao que levaram diferenciao dos produtores, relacionando-as com os diferentes fatos levantados e com a sua localizao. Os informantes devem ser escolhidos em virtude das suas histrias e das suas experincias profissionais. Caso se identifiquem territrios diferenciados, imprescindvel entrevistar pessoas que conheam cada um deles, em particular os moradores mais antigos das diferentes zonas. As entrevistas podem ser informais, realizadas individualmente ou com grupos de agricultores. A experincia mostra que elas so mais ricas quando so realizadas no campo e baseadas na observao e na anlise das paisagens, das prticas agrcolas, etc.

5.4 OS RESULTADOS ESPERADOS

Caso o sistema agrrio seja composto de espaos que apresentem caractersticas ecolgicas e sociais diferentes, como ocorre freqentemente, ser possvel, aps essa etapa do diagnstico, delimitar zonas relativamente homogneas e contrastadas do ponto de vista da problemtica do desenvolvimento rural. No se trata de uma estratificao meramente geomorfolgica, pois deve-se considerar os aspectos ecolgicos e sociais e, sobretudo, as relaes entre eles. Ser, tambm, possvel, com essa anlise geral da regio, explicar como os principais fatores ecolgicos, tcnicos e sociais determinaram a evoluo passada e condicionam as tendncias presentes das diferentes categorias sociais e de suas prticas agrcolas. Assim, pode-se progressivamente entrever os mecanismos que podem eventualmente vir a imprimir uma dinmica diferente ao sistema agrrio estudado e que podem vir a ser contemplados num projeto de desenvolvimento ou em polticas pblicas. Teremos, enfim, muitos elementos indicativos relativos s diferentes categorias de produtores e aos distintos sistemas de produo da regio. So esses indicativos que devem ser confirmados, detalhados e explicados nas fases seguintes do trabalho. ... aprofundando ...

O Conceito de Sistema Agrrio

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Um sistema agrrio , antes de tudo, um modo de explorao do meio historicamente constitudo, um sistema de foras de produo, um sistema tcnico adaptado s condies bioclimticas de um espao determinado, que responde s condies e s necessidades sociais do momento. Um modo de explorao do meio que o produto especfico do trabalho agrcola, utilizando uma combinao apropriada de meios de produo inertes e meios vivos para explorar e reproduzir um meio cultivado, resultante das transformaes sucessivas sofridas historicamente pelo meio natural. Poderamos, ento, definir um sistema agrrio como uma combinao das seguintes variveis essenciais: o meio cultivado o meio original e as suas transformaes histricas -; os instrumentos de produo as ferramentas, as mquinas, os materiais biolgicos (as plantas cultivadas, os animais domsticos, etc.) - e a fora de trabalho social (fsica e intelectual) que os utiliza; o modo de artificializao do meio que disso resulta (a reproduo e a explorao do ecossistema cultivado); a diviso social do trabalho entre a agricultura, o artesanato e a indstria que permite a reproduo dos instrumentos de trabalho e, por conseguinte; os excedentes agrcolas, que, alm das necessidades dos produtores, permitem satisfazer as necessidades dos outros grupos sociais; as relaes de troca entre os ramos associados, as relaes de propriedade e as relaes de fora que regulam a repartio dos produtos do trabalho, dos bens de produo e dos bens de consumo e as relaes de troca entre os sistemas (concorrncia); enfim, o conjunto das idias e das instituies que permite assumir a reproduo social: produo, relaes de produo e de troca, repartio do produto, etc.. graas a esse conceito que podemos apreender e caracterizar as mudanas de estado de uma agricultura e as mudanas qualitativas das variveis e de suas relaes e desenvolver uma teoria que permite distinguir, ordenar e compreender os grandes momentos da evoluo histrica e a diferenciao geogrfica dos sistemas agrrios. Marcel MAZOYER. Relatrio de sntese. In: Colquio Dinmica dos Sistemas Agrrios. Paris: INRA, 1987.

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Figura 2

OCUPAO DO SOLO NA COMUNIDADE DE CAPUAVA DO MOMUNA, IGUAPE, SP

Exemplo de um bloco-diagrma de uma zona rural

Encostas

LEGENDA Mata primria Mata de vrzea Capoeira Vrzea Mandioca Maracuj Pastagem Cana de acar Horticultura Bananal Casas

Plancie

GINES MALDONADO / PROTER / CNEARC in CLAVIER, P. e MALDONADO, G.. 1996. Capuava do Momuna, Une communaut malade de ses diffrences, relatrio de pesquisa, PROTER/CNEARC, Montpellier, Frana P {COLOCAR AS SIGLAS POR EXTENSO]

Figura 3 Tabela-resumo de Evoluo Histrica: o caso da Alta Araraquarense (So Paulo)

Perodo / Data

Fatos Ecolgicos

Fatos Tcnicos

Fatos Scio-econmicos disponibilidade de terras frteis (fronteira)

ciclo do caf (1945-1985) depauperao dos solos

Sistema no reproduz a fertilidade dos solos

queda dos preos fim dos subsdios planos econmicos

crise do caf (1984-1992)

esgotamento dos solos

Diminuio da rentabilidade Descapitalizao

DiversificaoPROTER, 1989.

xodo

Fonte: Danilo Prado GARCIA FILHO. Baseado em PROTER (Programa da Terra). Diagnstico dos sistemas agrrios na Alta Araraquarense. So Paulo:

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6. CATEGORIAS DE PRODUTORES E TIPOLOGIA DOS SISTEMAS DE PRODUO

6.1 TIPOLOGIA: CAPTANDO A DIVERSIDADE

Em geral, os produtores trabalham em condies ambientais e scio-econmicas distintas, mesmo em regies pequenas. Diferenas importantes podem existir, tanto no que se refere ao acesso terra, aos demais recursos naturais, informao, aos servios pblicos, aos mercados e ao crdito, quanto no que diz respeito ao nvel de capitalizao, aos recursos financeiros disponveis, aos conhecimentos adquiridos, disponibilidade de mo-de-obra, etc. Essas diferenas se traduzem em evolues distintas e em nveis desiguais de capitalizao e tambm em critrios distintos de deciso e de otimizao dos recursos disponveis. Os estabelecimentos capitalistas procuram, em geral, a otimizar a taxa de lucro do capital investido. Os produtores familiares, por sua vez, buscam otimizar a renda familiar ou, mais precisamente, a renda por ativo familiar. Se o fator mais limitante da produo for a mo-de-obra disponvel, os produtores provavelmente optaro por sistemas mais extensivos, que utilizam equipamentos e mquinas que reduzem o trabalho por unidade de rea. Se for a rea disponvel, os produtores buscaro sistemas mais intensivos, em geral mais exigentes em mo-de-obra, que aumentam a produtividade por unidade de rea (horticultura, fruticultura, irrigao, criaes intensivas, etc.). Em situaes muito adversas ou instveis, os produtores podem procurar, sobretudo, garantir alimentao da famlia ou minimizar os riscos frente a fortes variaes de safra ou de preo. Valendo-se de racionalidades scio-econmicas distintas, os produtores fazem escolhas diferentes no que se refere s culturas, s criaes, s tcnicas, s prticas agrcolas e econmicas, etc. Nem todos adotam, portanto, o mesmo sistema de produo e as mesmas formas de explorao do ecossistema. Convm, ento, aprofundar o diagnstico e realizar uma anlise mais detalhada, relacionando as condies ambientais e scio-econmicas e a evoluo de cada tipo de produtor com os diferentes sistemas de produo adotados por ele. Pode-se partir do pressuposto de que, apesar da diversidade de condies e de sistemas de produo de uma regio, possvel reunir, em categorias e em grupos, produtores que apresentam condies scio-econmicas e adotam estratgias semelhantes, apesar das significativas diferenas existentes entre eles (ver item 3.2 O Enfoque Sistmico). Trata-se da tipologia de produtores e da tipologia de sistemas de produo. A anlise das paisagens e as entrevistas histricas fornecem elementos preciosos para o estabelecimento dessas tipologias. Mas, pode ser necessrio aprofundar os levantamentos

iniciais realizando novas entrevistas com um leque mais variado de informantes, particularmente com agricultores que apresentem situaes e sistemas de produo distintos. O resultado final desse trabalho ser a definio de diversas categorias de produtores, identificando, para cada uma delas, os sistemas de produo dominantes. Cada tipo de estabelecimento ou cada tipo de produtor assim definido dever corresponder a grupos sociais relativamente homogneos, mas distintos dos demais grupos do ponto de vista da problemtica do desenvolvimento rural em anlise. Na realidade, nessa fase, trata-se ainda de uma prtipologia, que dever vir a ser confirmada por intermdio de pesquisas mais aprofundadas, como veremos a seguir.

6.2 TIPOLOGIA DE PRODUTORES

Muitas vezes necessrio distinguir os produtores familiares dos patronais ou dos puramente capitalistas. Na maior parte dos estudos realizados pela FAO, foram identificados trs grandes tipos de unidades de produo. Em um plo, encontram-se as unidades capitalistas, que dispem de reas extensas e cujos proprietrios no trabalham diretamente na produo, realizada exclusivamente por trabalhadores rurais assalariados. Nesse caso, esto, em geral, as pecurias de corte. Mas tambm foram identificados alguns empreendimentos particulares, como as usinas de lcool e de acar, as grandes propriedades pertencentes a bancos ou grandes empresas nos projetos irrigados, plantaes de seringueira ou de espcies madeireiras pertencentes a indstrias, etc.[??? SUGESTO: RESCREVER] No outro plo, situam-se as unidades familiares, nas quais o trabalho quase exclusivamente familiar. Os estudos mostraram, tambm, que esse setor bastante diversificado, tanto no que se refere capitalizao quanto aos sistemas de produo. Em certos casos, especialmente na produo hortcola e na fruticultura ou em algumas culturas (algodo, por exemplo), os produtores familiares contratam diaristas para tarefas exigentes em mo-de-obra (capina, plantio ou colheita). Entre os dois plos, esto as unidades patronais, nas quais a produo realizada pela famlia e, simultaneamente, por trabalhadores assalariados (assalariados permanentes ou assalariados temporrios em grande nmero). No h uma tipologia padro, vlida para qualquer situao. a realidade estudada que diz quais so os critrios mais pertinentes para agrupar os agricultores. Tampouco existe uma fronteira rgida entre cada tipo de produtor. Na realidade, os produtores esto sempre em evoluo e podem mudar seus sistemas de produo ou passar de uma categoria social a outra, caso apresentem uma trajetria de acumulao de capital ou, ao contrrio, de descapitalizao. importante que a tipologia revele essa dinmica.

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necessrio verificar essa mobilidade sobretudo no caso dos produtores familiares.

Dependendo do sistema de produo adotado e, por conseguinte da renda obtida, esses produtores podem estar acumulando algum capital ou, ao contrrio, se descapitalizando. O principal elemento considerado pelos produtores a renda agrcola obtida por cada membro ativo da famlia. Se as oportunidades de trabalho existentes fora da propriedade oferecerem uma melhor remunerao do que a auferida na produo agrcola, a tendncia ser de xodo. Se, ao contrrio, a renda agrcola for superior que poderia ser obtida fora da propriedade, o produtor tender a se manter na produo agrcola e, se possvel, a acumular algum capital. Pode-se, em muitos casos, distinguir pelo menos trs tipos diferentes de produtores familiares. Em primeiro lugar, os produtores familiares capitalizados, que acumularam algum capital (maquinrio e terra) e que dispem de mais recursos para a produo. Eles percebem uma renda agrcola satisfatria, que os mantm relativamente afastados do risco de descapitalizao e de serem excludos do processo produtivo. Alguns podem at se transformar,

progressivamente, em produtores patronais, medida que aumentem a rea de sua propriedade ou que introduzam sistemas de produo que exijam mo-de-obra assalariada. O segundo tipo o dos produtores familiares em capitalizao, cujo nvel de renda pode, em situaes favorveis, permitir alguma acumulao de capital, mas no garante ainda uma estabilidade a longo prazo. Ou pior: esses produtores podem, em condies adversas, seguir a direo inversa, ou seja, a da descapitalizao. Finalmente, temos os produtores familiares em descapitalizao, cujo nvel de renda insuficiente para assegurar a reproduo da unidade de produo e a subsistncia da famlia. Nessa ltima categoria encontram-se os produtores tradicionais em descapitalizao real e produtores que recorrem a rendas externas para sobreviver (trabalho assalariado temporrio, atividades complementares permanentes, trabalho urbano de alguns membros da famlia, aposentadorias, etc.). O conhecimento dessas categorias de produtores fundamental para a definio do pblico-alvo dos programas e projetos. A identificao dos fatores que determinam a capitalizao ou a descapitalizao tambm essencial para a escolha dos sistemas de produo a serem incentivados pelos projetos de desenvolvimento local, como o caso, por exemplo, dos Planos de Desenvolvimento para os Assentamentos PDAs previstos pelo Projeto Lumiar.

6.3 TIPOLOGIA DE SISTEMAS DE PRODUO

Podemos tambm distinguir e agrupar os sistemas de produo, isto , diferentes modos de combinar os recursos disponveis para obter diferentes produes. O conceito de sistema de

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produo ser detalhado adiante. Contentemo-nos, por ora, com a noo de que um mesmo tipo de produtor pode adotar sistemas de produo diferentes, em funo dos recursos de que dispe e dos limites que encontra para produzir. Podemos citar alguns exemplos. Em muitas regies , encontramos, no grupo dos produtores capitalistas, alguns voltados para a pecuria de corte e outros voltados para a pecuria bovina. Trata-se de produtores do mesmo tipo adotando sistemas de produo diferentes. Igualmente, na regio do Mearim, no Maranho, identificamos assentados praticando exclusivamente cultivos manuais (roa no toco) e produtores que dispem de recursos para mecanizar parte de suas lavouras (campos agrcolas). Muitas vezes, essas diferenas so ditadas pelas condies scio-econmicas dos produtores. Em Quixad, no Cear, os proprietrios arrendam suas terras em troca da palhada das culturas. O principal interesse da maioria deles obter as palhadas de milho e de feijo disponveis no incio da estao seca, quando os pastos j esto secos e a caatinga ainda no apresenta condies ideais de pastoreio. Eles probem, portanto, que os arrendatrios cultivem algodo, cujo ciclo mais longo. Na mesma regio, os pequenos proprietrios cultivam esse produto. As diferenas tambm podem ser um resultado do meio ambiente. Na regio pramaznica do Maranho, os assentados que residem beira dos rios ou dos lagos podem fazer cultivos de vero, utilizando as terras que se so liberadas em decorrncia da diminuio do nvel das guas (culturas de vazante). Outros, ao contrrio, s poderiam realizar plantios nesse perodo se dispusessem de equipamentos de irrigao.

7. CARACTERIZAO DOS SISTEMAS DE PRODUO

Entretanto, necessrio ir alm disso, ampliando a escala da pesquisa, ou seja, investigando as unidades de produo, as famlias, as parcelas e os grupos de animais. Em primeiro lugar, deve-se analisar cada um dos principais sistemas de produo, explicar a sua origem e a sua racionalidade. Isso requer um estudo aprofundado das prticas agrcolas e econmicas de cada grupo de agricultores - isto , das tcnicas, das variedades utilizadas, dos consorciamentos e das sucesses de culturas, etc., buscando relacion-las aos recursos de que dispem os agricultores e s condies scio-econmicas e ambientais nas quais trabalham. Recomenda-se, tambm, fazer uma avaliao dos resultados econmicos dessas prticas, tanto do ponto de vista dos produtores quanto da perspectiva da sociedade.

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Esse esforo permite identificar e hierarquizar os problemas tcnicos e econmicos que cada grupo de produtor vem enfrentando, possibilitando tambm o delineamento das tendncias de evoluo, no s do sistema agrrio como um todo, mas de cada grupo em particular. Pode-se, ento, propor as polticas ou os projetos mais apropriados para cada tipo de produtor, estabelecer prioridades para a assistncia tcnica, para o Procera ou para os investimentos em infra-estrutura, sugerir novos sistemas de cultura ou de criao, avaliar as possibilidades de mudana tecnolgica, etc. ... aprofundando ...

Conceito de Sistema de ProduoConsiderando a escala de um estabelecimento agrcola, o sistema de produo pode ser definido como uma combinao (no tempo e no espao) dos recursos disponveis para a obteno das produes vegetais e animais. Ele pode tambm ser concebido como uma combinao mais ou menos coerente de diversos subsistemas produtivos: os sistemas de cultura das parcelas ou de grupos de parcelas de terra, tratados de maneira homognea, com os mesmos itinerrios tcnicos e com as mesmas sucesses culturais; os sistemas de criao de grupos de animais (plantis) ou de fragmentos de grupos de animais; os sistemas de processamento dos produtos agrcolas no estabelecimento. Analisar um sistema de produo na escala dos estabelecimentos agrcolas no se resume somente ao estudo de cada um de seus elementos constitutivos, mas consiste, sobretudo, em examinar com cuidado as interaes e as interferncias que se estabelecem entre eles: as relaes de concorrncia entre as espcies vegetais e animais pelos recursos naturais disponveis (gua, luz, minerais, matrias orgnicas, etc.); as relaes de sinergia ou de complementaridade relativas utilizao dos recursos; a distribuio e a repartio (no tempo e no espao) da fora de trabalho e dos meios de produo entre os diferentes subsistemas de cultura e de criao: itinerrios tcnicos, sucesses e rodzios de cultura, distribuio da rea disponvel entre as culturas, calendrios forrageiros, deslocamentos de rebanhos, etc. Nessa faz, importante revelar a coerncia e a complexidade internas de cada um dos principais sistemas de produo agrcola e evitar simplificaes no que se refere lgica do seu funcionamento e sua razo de ser.2

7.1

AMOSTRAGENS NO ALEATRIAS

A elaborao de uma pr-tipologia dos sistemas de produo nos permite operar essa mudana de escala - da regio para a unidade de produo e, depois, para cada rea cultivada ou para cada grupo de animais. So inmeros os mtodos de amostragem que podem ser utilizados na elaborao de um diagnstico, sejam amostragens dirigidas, aleatrias ou estratificadas. No caso da anlise de sistemas, o que nos interessa, num primeiro momento, no a representatividade estatstica da zona estudada, mas sim abranger a diversidade de produtores e

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de sistemas de produo existentes. Por isso, importante que sejam escolhidos estabelecimentos e sistemas de produo que revelem a diversidade e as tendncias identificadas, mesmo que certos grupos e sistemas marginais ou extremos sejam pouco representativos do ponto de vista estatstico. Pode ocorrer, por exemplo, que alguns sistemas j estejam em declnio avanado. Eles nos fornecero informaes importantes sobre os fatores que os levaram a essa situao. Por outro lado, outros sistemas podem estar emergindo. Esses nos informaro sobre as novas oportunidades oferecidas pelo sistema agrrio e sobre estratgias que podero vir a ser mais difundidas no futuro. Ou pode ocorrer, simplesmente, que a anlise de casos extremos venha a trazer informaes importantes para o estudo dos casos mais freqentes. Para isso, recomenda-se que se utilize amostras dirigidas. Essa amostragem deve conter alguns produtores mais representativos de cada categoria social e de cada tipo de sistema de produo, previamente identificados. Evidentemente, caso a realidade local exija a elaborao de tipologias diferentes para cada zona, a amostragem deve refletir essa concluso. Durante as entrevistas, no raro que se encontre imperfeies ou lacunas na prtipologia elaborada. Nesse caso, a amostragem dever ser ampliada e enriquecida, tendo em vista contemplar os vrios aspectos identificados no campo. Alm disso, as amostras dirigidas apresentam vantagens prticas, sobretudo quando comparadas s amostragens aleatrias e s tipologias elaboradas por intermdio de anlises de correlaes estatsticas: a rapidez, a adaptabilidade e o baixo custo. Entretanto, pode ser necessrio quantificar o nmero de agricultores de cada tipo (tipo de produtor ou de sistema de produo), particularmente no momento de formular polticas pblicas ou projetos de desenvolvimento. Nesse caso, como veremos na parte final deste documento, deve-se realizar pesquisas utilizando amostragens mais representativas do ponto de vista estatstico.

7.1.1 A gesto e a tomada de deciso

Geralmente, a gesto dos recursos e das produes feita de forma unificada por uma pessoa ou por um grupo de pessoas (o chefe de famlia ou toda a famlia, uma diretoria ou assemblia de cooperativa, o dono do estabelecimento patronal, etc.). Mas, pode ser que haja mais centros de deciso: alguns lotes de assentamento esto divididos em duas partes, uma gerenciada por uma cooperativa, outra pela prpria famlia; alguns jovens tm uma autonomia de deciso sobre uma parte da rea ou sobre uma produo especfica da propriedade paterna, etc. Nesse caso, importante identificar as subunidades de produo pertencentes uma mesma unidade de produo e suas respectivas racionalidades.2

Marc DUFUMIER. Op. cit.

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s vezes, os produtores no tm total autonomia de deciso sobre a gesto dos recursos e das atividades produtivas. Podemos citar alguns exemplos em que essas decises so compartilhadas ou dependem de negociaes. No caso das parcerias, algumas decises so tomadas pelo proprietrio, outras pelos parceiros. O mesmo ocorre com os produtores que, em produes integradas, adotam as normas estabelecidas pelas agroindstrias. Em algumas reas remanescentes de quilombos, vrias atividades so decididas pelos mais antigos ou negociadas com eles, entre elas a localizao e o tamanho das roas de cada famlia. Certos financiamentos s esto disponveis para associaes ou para cooperativas, nas quais os critrios de deciso escapam esfera familiar.

7.1.2

Os recursos disponveis

importante conhecer a histria do estabelecimento e da famlia, sua trajetria de acumulao ou de descapitalizao, sua evoluo recente, etc., pois isso permite: a) saber como o sistema de produo e as decises do produtor levaram capitalizao da unidade de produo ou, ao contrrio, sua descapitalizao; b) identificar os eventos que provocaram uma capitalizao (herana, subsdios, altas expressivas de preos, etc.) ou uma descapitalizao (doena, partilha, frustraes de safra, etc.) e as conseqentes modificaes que acarretaram nos sistemas de produo; c) verificar se o estabelecimento realmente representativo da categoria social que se quer estudar. Deve-se, tambm, ter uma noo exata dos de recursos disponveis do estabelecimento: a) a quantidade de mo-de-obra disponvel, sua origem (familiar ou assalariada) e seus conhecimentos, a diviso de trabalho adotada, as relaes de autoridade, etc.; b) as reas cultivadas ou exploradas, as formas de ocupao dessas reas (propriedade, posse, arrendamento, reas coletivas, etc.), suas caractersticas (relevo, solos, disponibilidade de gua, etc.), seu uso atual (cultivos, pastagens, mata, plantaes perenes, etc.) e, quando for o caso, as eventuais restries de uso impostas pela legislao ou pelas relaes sociais; c) os outros meios de produo disponveis, particularmente o capital fixo imobilizado instalaes, equipamentos, rebanhos -, identificando, tambm, as formas de acesso ou de aquisio dos bens (alugados, coletivos, prprios), seu estado (anos de uso, estado de conservao), seu preo, etc.; d) os crditos ou os subsdios aos quais o produtor pode, eventualmente, ter acesso.

7.1.3

A combinao das diferentes atividades produtivas

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necessrio, por outro lado, conhecer cada um dos subsistemas de cultura, de criao e, eventualmente, de processamento dos produtos, verificando: os itinerrios tcnicos, as rotaes ou os consorciamentos, o calendrio de trabalho, a necessidade de mo-de-obra, os custos de produo, etc. A seguir, aprofundaremos melhor esses aspectos. imprescindvel relacionar sempre esse conjunto de aspectos com o potencial ecolgico de cada rea, com as formas de ocupao da terra] (propriedade, arrendamento, posse mais ou menos precria, assentamento, etc.), com a legislao vigente (legislao ambiental, condies impostas aos assentados, etc.) e com as condies do entorno (vias de transporte e de comunicao, distncia dos mercados e dos servios pblicos, acesso aos insumos ou aos mercados, disponibilidade e custo da mo-de-obra, etc.). Na maioria dos casos, para que se possa analisar criteriosamente o sistema de produo preciso realizar antes um estudo mais aprofundado de cada subsistema que o compe.

7.2

TRABALHANDO NA ESCALA DA PARCELA OU DO GRUPO DE ANIMAIS

Cabe detalhar um pouco mais a investigao que se deve realizar sobre as parcelas de terra ou sobre os grupos de animais, ou seja, o estudo dos subsistemas de cultivo e de criao. O objetivo principal dessa anlise analisar e explicar os fundamentos agronmicos que orientam as decises dos agricultores, no que se refere combinao e rotao de culturas e de criaes. Cabe, tambm, avaliar as performances tcnicas obtidas e os problemas encontrados pelos produtores.

7.2.1

Distinguindo os diferentes subsistemas

Em primeiro lugar, deve-se ter muito cuidado e rigor ao distinguir cada subsistema. Uma cultura idntica pode ser praticada em vrias parcelas, que apresentam caratersticas semelhantes (diversas roas de algodo, por exemplo). Se as condies de produo e os itinerrios tcnicos forem semelhantes, pode-se considerar que se trata de um mesmo subsistema. Ao contrrio, se, por exemplo, uma parte das terras for arrendada e o produtor adotar procedimentos diferentes (sem aporte de calcrio, sem terraceamento do solo, etc.), pode-se considerar que se trata de dois subsistemas distintos. Se as diferenas entre as condies ecolgicas dessas parcelas produzirem resultados distintos, talvez, ento, devamos consider-los como subsistemas diferentes. No raro encontrar dois cultivos consorciados - como, por exemplo, o milho e o feijo ou que sejam praticados em momentos diferentes, mas no mesmo ano e na mesma parcela

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(rotao entre o milho, no perodo das chuvas, e o feijo, na seca). Nesse caso, pode-se considerar que se trata do mesmo subsistema milho-feijo. Pode ser, ainda, que duas criaes estejam consorciadas e que, por isso, devam ser consideradas como um nico subsistema. Isso ocorre, por exemplo, nas criaes bovinas pouco especializadas, nas quais o mesmo rebanho destina-se tanto produo de carne (com engorda de animais) quanto de leite. No Nordeste, observa-se tambm a associao dos rebanhos bovinos e com os caprinos, manejados em conjunto para aproveitar os diferentes estratos vegetativos [SUGESTO: VEGETAIS] da caatinga. Ao contrrio, existem casos nos quais um mesmo cultivo, realizado em uma mesma parcela e com o mesmo itinerrio tcnico, deve ser dividido em dois subsistemas distintos. Isso acontece, por exemplo, quando uma parte do milho destinada venda e outra alimentao do gado. H sistemas de cultura mais complexos, baseados em rotaes mais longas. Na regio pr-amaznica do Maranho, por exemplo, os produtores tradicionalmente realizam seus cultivos em reas de capoeira. Nas terras mais altas, as roas no toco consorciam, em geral, arroz, milho e mandioca. Aps a colheita da mandioca, deixam a terra descansar por alguns anos (o perodo depende da necessidade da famlia e da disponibilidade de terra). O feijo tambm faz parte desse sistema de cultura. Ele plantado no final do inverno (perodo das chuvas) sob a capoeira, que , em seguida, roada para preservar a umidade e permitir o desenvolvimento do feijo (da o termo feijo no abafo). Nas reas mais midas, cultivam-se somente o arroz, o milho e, ainda, o feijo, esse ltimo imediatamente aps a colheita do arroz, sob a palha dessa cultura. Muitas vezes, o agricultor broca uma nica rea de capoeira, parte dela no alto do terreno, outra parte nas reas mais baixas. Mesmo assim, como as culturas e as prticas agrcolas so diferentes, a roa da parte alta e a da parte baixa devem ser consideradas como subsistemas distintos.

7.2.2

Itinerrios tcnicos, consorciamentos e rotaes de cultura

No que se refere s produes vegetais de cada um dos subsistemas, necessrio estudar mais detalhadamente os seguintes aspectos: a) os consorciamentos de cultura em uma mesma parcela; b) as rotaes de culturas (sucesso, no tempo, de culturas diferentes); c) o calendrio de trabalho e os itinerrios tcnicos ou, em outras palavras, a sucesso de operaes necessrias ao cultivo (preparo do solo, fertilizao, plantio, tratos culturais, colheita, etc.), a sua cronologia, os recursos mobilizados e os problemas encontrados. No que diz respeito s produes animais, deve-se estudar:

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a) as relaes entre as criaes e os subsistemas de cultivo (forrageiras, gros para alimentao animal, restituio de esterco para cultivos agrcolas, etc.); b) o calendrio de trabalho e os itinerrios tcnicos (reproduo, melhoramento gentico, alimentao, tratos sanitrios, ordenha, venda, etc.) relativos a cada grupo de animais, e tambm sua cronologia, os recursos mobilizados e os problemas encontrados. No estudo do itinerrio tcnico, o grau de detalhamento depende das necessidades do diagnstico. O objetivo destrinchar cada uma das grandes operaes realizadas em um subsistema de cultura ou de criao, tendo em vista coletar dados para as etapas posteriores do trabalho, abaixo relacionadas: a) realizar a anlise agronmica (Como o agricultor assegura a reproduo da fertilidade do meio? Como ele utiliza os potenciais biolgico e natural de que dispe? Quais so os principais fatores determinantes das prticas agrcolas e das tcnicas que adota?); b) conhecer o calendrio de trabalho e a disponibilidade de mo-de-obra no decorrer do ano; c) realizar a anlise econmica do sistema de produo (custos, produto bruto, produtividade, etc.). Para que se possa avaliar tcnica e economicamente o sistema de produo, importante considerar um ano normal, isto , a forma mais habitual do produtor conduzir seu sistema. Esse ano normal no necessariamente o ltimo ano. Quando as variaes de produo, de clima ou de preos so significativas e acontecem habitualmente, necessrio considerar aquelas que ocorrem com mais freqncia e as respostas que o produtor d a essas diversas situaes. Sempre que possvel, interessante realizar a entrevista na prpria roa, para que se possa observar sua localizao, o tipo de solo, o estado geral da cultura, etc. Para caracterizar cada operao do itinerrio tcnico, so necessrias inmeras informaes, tais como: a) a finalidade da operao e as operaes anteriores e posteriores necessrias; b) o perodo de realizao e o nmero de vezes em que a operao repetida num mesmo ciclo cultural; c) as datas de ocorrncia, o prazo geralmente cumprido pelo produtor e o prazo permitido pelas condies agroecolgicas regionais; d) a mo-de-obra necessria - nmero de dias, nmero de pessoas, tipo de mo-de-obra utilizada (familiar, assalariado permanente, diarista, parceiro, etc.) e as pessoas da famlia que participam (mulheres, jovens, etc.) -; e) o custo da mo-de-obra assalariada ou diarista, a variao desse custo durante o ano e facilidade para consegui-la; f) os instrumentos utilizados (ferramentas, equipamentos e infra-estrutura), sua origem (prprios, alugados, emprestados, etc.) e, caso no sejam prprios, a facilidade para obt-los na regio;

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g) o valor dos equipamentos prprios ou emprestados (quanto custam atualmente) e o custo do aluguel dos equipamentos contratados; h) os insumos necessrios, sejam eles biolgicos (sementes, matria orgnica, animais, etc.) ou no (insumos qumicos, peas, etc.), com as suas respectivas quantidades, qualidades (potencial gentico, adaptabilidade ao ecossistema), origens (prprios, comprados ou cedidos) e custos; i) as produes obtidas (sem esquecer os subprodutos), o destino dessas produes (comercializao, autoconsumo, consumo intermedirio de outro subsistema, semente para a prxima safra), os canais de comercializao, as tcnicas de processamento e de armazenagem e o preo dos produtos.

O Conceito de Itinerrio TcnicoO itinerrio tcnico uma sucesso lgica e ordenada de operaes culturais aplicadas a uma espcie, a um consrcio de espcies ou a uma sucesso de espcies vegetais cultivadas. O mesmo conceito pode ser aplicado a grupos de animais.

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... sintetizando ...

O que importante observar nos sistemas de produoNunca demais lembrar que os itens abaixo relacionados no devem ser considerados como um roteiro imutvel e vlido para qualquer situao e que a ordem de apresentao desses itens no necessariamente aquela que deve ser adotada na entrevista. 1. A famlia e a mo-de-obra disponvel: a) a histria e a trajetria de acumulao da famlia; b) a mo-de-obra familiar disponvel (a quantidade e a qualidade, as divises de gnero e de idade, os perodos de disponibilidade, etc.); c) eventualmente, a mo-de-obra no familiar utilizada, tais como assalariados, mutires, trocas de dias de trabalho, formas coletivas de trabalho (a quantidade, a qualidade, as relaes de trabalho, etc.); d) eventualmente, as fontes de renda no agrcola. 2. A unidade de produo: a) os meios de produo disponveis - terra, instalaes e equipamentos (a quantidade e a qualidade, a modalidade de aquisio, os perodos de disponibilidade, a utilizao efetiva) -; b) o acesso a recursos externos (o financiamento, os subsdios, a infra-estruturas, etc.); c) eventualmente, as relaes sociais que garantem o acesso a esses recursos e os meios de produo (arrendamento, condomnios, cooperativas, etc.); d) as principais produes (os diferentes sistemas de cultivo e de criao). 3. Os sistemas de cultura: a) os consrcios e as rotaes de culturas; b) os itinerrios tcnicos (a sucesso de operaes realizadas, as quantidades e a qualidade de cada recurso utilizado) e o calendrios de trabalho; c) os problemas tcnicos enfrentados; d) o nvel e o destino da produo. 4. Os sistemas de criao: a) os itinerrios tcnicos; b) as relaes com os sistemas de cultivo (a utilizao de pastagens, as capineiras, os gros, o fornecimento de esterco, etc.); c) os problemas tcnicos; d) o nvel e o destino da produo. 5. Os sistemas de processamento dos produtos (o mesmo esquema dos outros subsistemas); 6. As atividades complementares (extrativismo, atividades necessrias subsistncia da famlia, prestao de servios ou trabalho fora da propriedade, etc.). 7. As combinaes dos sistemas de cultura com os de criao:

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a) os fluxos de fertilidade e de produtos no tempo e no espao (concorrncia ou complementaridade dos componentes do sistema de produo); b) o calendrio de trabalho (concorrncia entre sistemas de cultivo e os de criao); c) o calendrio do fluxo monetrio (concorrncia entre sistemas de cultivo e os de criao); d) o calendrio de uso dos principais equipamentos (concorrncia entre sistemas de cultivo e os de criao).

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Com ou sem questionrio?Os diagnsticos que utilizam exclusivamente questionrios fechados demandam, geralmente, um grande trabalho, tanto na sua preparao quanto, principalmente, na sua anlise, devido grande quantidade de variveis que exigem. Com efeito, a variabilidade de ecossistemas, de cultivos, de criaes e de tcnicas to grande que, se houvesse um questionrio vlido para todas as pesquisas de campo do pas, ele teria de ser to extenso e complicado que se tornaria impraticvel. A experincia tem demonstrado que questionrios elaborados fora das reas em estudo, sem conhecimento da problemtica local, podem gerar retardos e imprecises no trabalho. Alm disso, questionrios fechados dificilmente permitem estabelecer correlaes entre os diferentes elementos levantados (o que fundamental na anlise sistmica) ou incluir um elemento novo que aparea durante a pesquisa. A experincia tambm mostra que a entrevista aberta, que permite acompanhar o fio condutor do pensamento dos prprios agricultores, capaz de revelar informaes qualitativas preciosas para o diagnstico. Essas entrevistas so mais ricas se forem realizadas no campo nas parcelas ou nas instalaes do produtor - ou quando seguem o calendrio de trabalho, o itinerrio tcnico adotado, etc. Porm, isso exige do entrevistador uma slida formao sistmica a fim de evitar falhas no levantamento. Por isso, em algumas situaes - por exemplo, no levantamento de dados quantitativos para a modelizao a elaborao de roteiros de entrevista ou at mesmo de questionrios mais detalhados, a serem preenchidos durante ou aps as entrevistas, pode ser til. Recomenda-se, nesse caso, que os roteiros sejam elaborados com base nos conhecimentos acumulados durante as primeiras etapas da pesquisa e que sejam utilizados mais como um lembrete ou como um organizador de anotaes de campo do que como um questionrio.

8. AVALIAO AGRONMICA DO SISTEMA DE PRODUO: ANALISANDO AS RELAES ENTRE CADA SUBSISTEMA

No que se refere ao itinerrio tcnico adotado pelo produtor, no se deve compar-lo com as tecnologias ou com os padres preconizados pelos rgos tcnicos e pela literatura especializada, pois o que importa avaliar a coerncia dos itinerrios, as razes que levaram o agricultor a adot-lo ou, em outras palavras, entender porque ele produz daquela maneira.

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Importa, tambm, avaliar os impactos dessas prticas agrcolas no ecossistema, sua sustentabilidade a longo prazo, os benefcios ou os danos agronmicos delas decorrentes.

8.1 PRODUTIVIDADE FSICA: UM CONCEITO LIMITADO

Em geral, os principais elementos considerados na avaliao agronmica dos sistemas de cultura ou de criao so os indicadores de produtividade fsica: produo por hectare ou por animal, quantidade de animais por hectare, etc. Em parte, esses indicadores so determinados pelas condies agroecolgicas locais clima, solos, disponibilidade de gua, incidncia de pragas, etc. - que os produtores, em geral, consideram nas suas decises tcnicas. So tambm determinados pelo potencial gentico dos insumos biolgicos utilizados - capacidade de germinao da semente, potencial de produo no ecossistema, resistncia s pragas e aos incidentes climticos, etc. Entretanto, as decises dos agricultores no podem apenas se basear nesses dois fatores. O potencial biolgico de um rebanho depende, em vrios casos, dos recursos de que o agricultor dispe, das oportunidades de comercializao dos produtos, etc. Por exemplo, em muitas regies, a manuteno de um rebanho especializado na produo leiteira e de alto potencial gentico invivel em virtude das condies agroecolgicas, dos preos dos produtos ou dos recursos dos produtores. Da mesma forma, pesquisas realizadas pela [POR EXTENSO] (Embrapa) em conjunto com ONGs de vrias regies do pas mostraram que, nas condies de produo (terras cidas, variaes importantes na umidade do solo, poucos insumos qumicos, etc.) dos agricultores familiares, as sementes de milho hbrido raramente so mais produtivas ou mais vantajosas do que as sementes de variedades cultivadas pelos produtores. As tcnicas empregadas so tambm decisivas. Ora, elas dependem tambm dos recursos disponveis: mo-de-obra, equipamentos e dinheiro. Quando a fora de trabalho familiar escassa,. por exemplo, geralmente muito mais importante otimizar o uso da mo-de-obra do que o uso da terra, o que pode levar os agricultores a aumentar a rea cultivada em detrimento da produtividade por unidade de rea. H tambm outros fatores que so freqentemente considerados pelos produtores, tais como as variaes de preo, as oportunidades de comercializao, etc. Portanto, seja do ponto de vista tcnico, seja do ponto de vista econmico, arriscado avaliar isoladamente um sistema de cultura ou de criao.

8.2 A REPRODUO DA FERTILIDADE E OS FLUXOS DE PRODUTOS E DE SUBPRODUTOS

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essencial analisar, em primeiro lugar, como cada um desses subsistemas e como a combinao existente entre eles contribuem para a reproduo da fertilidade dos solos e do sistema. Identificar as estratgias adotadas para garantir a reproduo da fertilidade de cada subsistema fundamental para que se possa avali-lo tecnicamente. Por exemplo, o princpio agronmico do sistema milho-feijo-mandioca, tradicional em muitas regies do Brasil, fundamenta-se justamente na reproduo da fertilidade. Quando os cultivos so realizados sucessivamente, o cultivo do milho aproveita as guas do perodo das chuvas e "amansa a terra na primeira safra; o feijo, cultivado no final das guas, oferece nitrognio para um novo plantio de milho e assim por diante; em geral, a mandioca, menos exigente, fecha o ciclo, quando as terras esto mais "fracas". O mesmo pode ser dito dos sistemas tradicionais de corte e de queima, nos quais o pousio (capoeira) serve para recompor a fertilidade do solo a custo praticamente zero. No caso citado anteriormente, situado na regio pr-amaznica maranhense, o sistema mais complexo e tambm est baseado nos fluxos de fertilidade. O milho e o arroz so plantados logo nas primeiras chuvas. Um ms depois, planta-se a mandioca, que necessita de menos quantidade de mato para se desenvolver em razo da presena das duas outras culturas. Essas trs culturas beneficiam-se da matria orgnica presente no solo e dos nutrientes fornecidos pelo corte e pela queima da capoeira (as cinzas e tambm a decomposio da matria orgnica do solo). O feijo, plantado na capoeira que se sucede colheita da mandioca, beneficia-se tanto dos restos das culturas que o precedem quanto da cobertura morta resultante da roagem da capoeira. Mas, nem sempre o resultado desses sistemas positivo, pois se a populao aumenta [POPULAO DE ONDE ? DOS ASSENTAMENTOS? A POPULAO RURAL?], os produtores passam a dispor de menos reas e so forados a reduzir o tempo de pousio (em alguns casos, a apenas um ou dois anos). A terra e a prpria vegetao perdem, assim, progressivamente o seu vigor inicial, levando a uma reduo gradual da fertilidade ou at a um colapso do sistema tradicional de cultivo. Tambm importante observar as relaes que existem entre os diferentes subsistemas. A pecuria fornece esterco para a horta ou para outras culturas, os animais fertilizam as pastagens, as sobras dos cultivos alimentam as galinhas e os porcos, os restos de uma cultura servem para fertilizar o solo ou so utilizados como cobertura morta para as seguintes, etc. Essas relaes podem ser representadas esquematicamente por intermdio de um grfico que indique os fluxos de energia ou de fertilidade entre cada subsistema, como exemplificado na Figura 3. No mesmo grfico, podem ser apresentados os fluxos de mercadorias, de mo-de-obra externa e de dinheiro.

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Figura 4

Fluxos de Produtos e da Fertilidade de um Sistema de Produo Familiar Diversificado: O caso de Janaba, em Minas Gerais

aluguel trator agrotxico semente mo-de-obra arrobas (venda)

farinha (consumo e venda)

amendoin (consumo e venda)

sist.cultivo lenha (consumo e venda) sist."cultivo"

sistema cultivo

sistema cultivo

ALGODO

MANDIOCA

AMENDOINsist.cultivo

gros (consumo)

MATA

Arroz/MilhoPastagemforragem sal mineral vacinas sist.criao

/ Feijo Sorgogros sist.criao sist.cultivo aluguel trator

GADO

GALINHAS

Horta

frutas (consumo)

leite (consumo)

galinhas, ovos (consumo e venda)

Fonte: trabalho realizado pelos participantes do curso sobre anlise-diagnstico de sistemas agrrios, realizado em Janaba (Minas Gerais), em junho de 1997, e sistematizado por Anne Lothor. [O QUE SIGNIFICA SISTEMATIZADO POR ...?]

[OBSERVAES DESTINADAS AO DIAGRAMADOR : 1 - colocar, a palavra sistema por extenso 2 - unificar as fontes (de letra) adotadas]

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8.3

AS RELAES DE SINERGIA OU DE CONCORRNCIA

Em Mirante do Paranapanema, alguns pequenos produtores familiares destinam parte de sua rea ao algodo, mesmo sabendo que os riscos desse cultivo so superiores aos da produo de semente de braquiria - outro componente importante do sistema de produo -, cuja poca de colheita posterior do algodo. Isso se explica pela ausncia de capital de giro: parte das receitas do algodo utilizada para o pagamento da mo-de-obra necessria colheita da braquiria, enquanto as receitas da braquiria permitem custear o preparo do solo do algodo. Na regio da vrzea, na Amaznia, os produtores que tm condio, ou seja, que dispem de recursos financeiros para alimentar suas famlias durante o vero, cultivam as reas que se tornam disponveis em virtude da diminuio do nvel dos rios. Nesses perodos, a pesca diminui um pouco por falta de mo-de-obra. Em compensao, as famlias que no tm condio so obrigadas a buscar recursos em atividades extrativistas (palmito ou madeira), que oferecem uma renda inferior, porm imediata. Esses dois exemplos mostram que as relaes de sinergia ou de concorrncia entre as diversas atividades associadas do sistema de produo e a distribuio dos recursos entre elas devem merecer uma ateno especial. Sem a anlise dessas relaes quase sempre impossvel realizar uma avaliao tcnica rigorosa do sistema de produo. Seria tambm temerrio propor mudanas no itinerrio tcnico, a introduo de novas produes ou a eliminao de culturas existentes, pois essas relaes afetam todo o sistema de produo. Existem alguns instrumentos relativamente simples, por meio dos quais se pode apreender essas relaes: a) os calendrios de trabalho dos diferentes subsistemas, que permitem detectar a distribuio da mo-de-obra durante o ano, os eventuais pontos crticos (momentos de pico de trabalho ou de menor disponibilidade de mo-de-obra) e os potenciais que podem ser mobilizados (ver Figura 4); b) os fluxos monetrios (despesas e receitas) verificados durante o ano, que tambm podem revelar os momentos crticos; c) e, quando necessrio, o calendrio de utilizao dos equipamentos (trator, implementos, irrigao, etc.). essencial, enfim, no esquecer as atividades complementares, tanto aquelas voltadas para a sobrevivncia da famlia (buscar gua e lenha, deslocar-se para a cidade, etc.) quanto as que proporcionam outras fontes de renda (trabalho assalariado fora da propriedade, prestao de servios aos vizinhos com mquinas e com animais, atividades comerciais, turismo rural, etc.).

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Figura 5 Distribuio Anual [OU MENSAL?????] da Fora de Trabalho pelos Diferentes Cultivos e pela Criao num Lote de Assentado Diversificado (Agricultor Familiar Descapitalizado): o caso de Promisso, em So Paulo [SE POSSVEL, RESUMIR MAIS O TTULO SUGERIDO] [INDICAR POR EXTENSO O QUE Utf]

35 30 25 Dias / UTf 20 15 10 5 0 1 2 3 4 5 6 Ms 7 8 9 10 11 12 Mximo de dias disponveis algodo quiabo milho + feijo + crotalria outros pecuria mista

8.4

AS IMPOSIES DOS ENTORNOS SOCIAL E ECONMICO

No demais repetir que toda essa anlise deve ser concluda com um esforo de sntese que considere o entorno da unidade de produo, as legislaes vigentes, as relaes sociais dominantes, etc. Podemos citar vrios exemplos em que as prticas agrcolas decorrem no somente das decises tcnicas dos agricultores, mas tambm de fatores ou de decises externas unidade de produo. Os beneficirios de crdito agrcola, por exemplo, so em geral obrigados a seguir algumas recomendaes relativamente rgidas dos financiadores. Por outro lado, o atraso na liberao dos recursos para custeio do Procera pode levar alguns produtores a realizar plantios em condies pouco favorveis, arriscando a safra, pois os eventuais prejuzos seriam menores do que o subsdio embutido no financiamento. Muitas vezes, os donos das terras impem aos arrendatrios algumas regras ou certas tcnicas agrcolas. o caso das roas cultivadas nas fazendas da regio pr-amaznica do Maranho. Os fazendeiros criam o gado solto e, por isso, os lavradores so obrigados a cercar suas roas de inverno, o que exige muita mo-de-obra e limita bastante a rea cultivada. Os produtores residentes em parques ou em reas de proteo ambiental encontram, na legislao e nas decises dos rgos que administram essas reas, limites introduo de

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certas culturas ou adoo de determinadas prticas agrcolas. No Vale do Ribeira, em So Paulo, os produtores cultivam a mesma rea h vrios anos, mesmo sabendo que a produo medocre e que os solos ficam desgastados. Isso tem uma explicao: ao proibir o corte das reas de capoeira, a legislao ambiental tornou ilegal as prticas tradicionais, baseadas no pousio das capoeiras. Essas prticas, que no s garantiam a regenerao da fertilidade dos solos mas tambm a reproduo da biodiversidade, foram, portanto, substitudas por cultivos menos diversificados, incentivando o aumento das reas de pastagem e de banana.

9. AVALIAO ECONMICA DOS SISTEMAS DE PRODUO

9.1 OS RESULTADOS DO SISTEMA DE PRODUO

A avaliao econmica dos sistemas de produo uma etapa essencial do diagnstico, pois permite: a) avaliar o potencial de capitalizao ou, ao contrrio, o de descapitalizao de cada categoria de produtor, corroborando ou negando a pr-tipologia elaborada anteriormente; b) estudar com mais profundidade as relaes sociais que caracterizam cada tipo de unidade de produo e o sistema agrrio como um todo; c) conhecer os fundamentos econmicos das associaes de atividades e das prticas agrcolas adotadas pelos produtores. Essa avaliao pode ser feita segundo dois pontos de vista: a) o do produtor, que se preocupa com a renda agrcola que o sistema de produo pode lhe oferecer; b) o da sociedade, que se interessa pela quantidade de riquezas novas geradas pelo sistema de produo.

9.1.1 O valor agregado

Para produzir, o agricultor consome alguns bens que so inteiramente transformados no processo: adubos, leo diesel, sementes, agrotxicos, rao e medicamentos para os animais, etc. Caso o produtor utilize equipamentos prprios, ele provavelmente tambm consumir peas de reposio, lubrificantes, pneus, etc. Esses bens so denominados de consumos intermedirios (CI).

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Caso

o

agricultor

alugue

equipamentos

ou

contrate

servios,

esses

custos

correspondem, tambm, em grande parte, a bens transformados no processo (consumos intermedirios ou depreciao). Portanto, esses servios devem ser considerados na anlise. O agricultor utiliza, ainda, o capital fixo de que dispe, em parte ou totalmente: mquinas, implementos, meios de transporte, equipamentos para processamento de produtos (triturador, debulhadeira, etc.), instalaes (galpo, estbulo, cercas, reservas de gua, audes, etc.), equipamentos de irrigao, ordenhadeira, animais de trao, etc. Embora esses bens no sejam inteiramente consumidos no processo, eles so parcialmente transformados, pois sofrem desgaste e perdem valor anualmente. Ento, a depreciao do capital fixo (D) deve ser considerada. Existem, evidentemente, outros custos de produo, tais como os impostos, os juros, os salrios e o arrendamento da terra. Nenhum desses itens corresponde a bens consumidos e transformados no processo produtivo, por isso, eles sero considerados posteriormente. O resultado da produo pode ser medido pelo produto bruto (PB), que corresponde ao valor total do que produzido, seja para a venda, seja para o consumo da famlia. O leque de itens que deve ser levado em conta ao se medir o produto bruto pode ser extenso: produtos das culturas, dos pomares, das hortas, das criaes e do extrativismo, lenha, objetos de artesanato produzidos no estabelecimento para o uso da famlia ou para a venda, etc. Quando a prestao de servios envolve os equipamentos utilizados no sistema de produo (mquinas e implementos, trao animal, etc.), a receita da obtida tambm deve ser includa. Quando o produtor acrescenta trabalho aos insumos e ao capital fixo de que dispe, ele gera novas riquezas, agregando valor a essas mercadorias. O valor agregado (VA) do sistema de produo igual ao valor do que se produziu menos o valor do que se consumiu: VA = PB CI D. Do ponto de vista da sociedade, um valor agregado maior significa um melhor o aproveitamento dos recursos disponveis. Pode-se, ento, calcular o valor agregado por unidade de rea disponvel. valor agregado por unidade de rea = VA / SAL, onde SAU a superfcie agrcola utilizada. Pode-se, tambm, calcular a produtividade do trabalho por meio da seguinte frmula: P = VA / T, onde P = produtividade do trabalho, T = nmero de trabalhadores empregados no sistema (incluindo os familiares).

9.1.2 A renda agrcola

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Nem todo o valor agregado pelo produtor se destina sua remunerao ou de sua famlia. A terra no costuma perder valor no decorrer dos anos e, sobretudo, no consumida no processo produtivo (exceto quando os processos erosivos so violentos). Entretanto, em alguns casos, o produtor obrigado a arrendar terras e a pagar uma taxa ao dono da propriedade por isso. O custo do arrendamento (renda da terra) deve ser portanto computado no clculo da renda final do produtor. O mesmo acontece com os juros (taxa paga pelo produtor em troca dos adiantamentos concedidos pelos bancos) e com os impostos (taxa paga ao Estado para ter o direito de produzir). O produtor pode tambm necessitar de mo-de-obra assalariada (permanente ou temporria), pagando, nesse caso, salrios. Parte do valor agregado no estabelecimento deve, freqentemente, ser repartida entre os trabalhadores assalariados, os donos da terra, o banco ou o Estado. As propores dessa partilha dependem, evidentemente, das relaes sociais e de poder vigentes. Se os proprietrios tiverem grande poder de barganha, o arrendamento poder ser elevado. Se o Estado elevar as suas taxas e os seus impostos, a renda do agricultor diminuir. Se os assalariados ampliarem sua fora de negociao, aumentaro os salrios e a renda tambm poder diminuir [NO ENTENDI O SENTIDO]. A parte do valor agregado que fica com o produtor aps essa repartio constitui a renda agrcola. Dessa forma: RA = VA S I J RT e RA = PB CI D + Sub S I J RT, onde S so os salrios, I so os impostos, J so os juros, RT a renda da terra (arrendamentos), Sub so os subsdios. No sentido inverso, quando as relaes sociais esto mais favorveis aos agricultores h uma possibilidade maior deles receberem subsdios do Estado, como ocorre, por exemplo, com os recursos do Procera. Nesse caso, necessrio computar os subsdios no clculo da renda. [OBSERVAO: PARECE QUE NA FRMULA ANTERIOR OS SUBSDIOS J ESTAVAM SENDO COMPUTADOS NO CLCULO DA RENDA.] RA = VA + Sub S I J RT O importante conhecer as propores da repartio das riquezas geradas na agricultura - ou o valor agregado -, pois elas revelam as relaes de interesse presentes no sistema agrrio. No clculo da renda agrcola, inclumos o autoconsumo, computado no produto bruto. Entretanto, pode ser necessrio calcular a renda monetria do estabelecimento, especialmente quando a renda disponvel for pouco elevada ou quando que os produtores tiverem de realizar pagamentos importantes em dinheiro (reembolso de crdito, cultivos com custos elevados, etc.). Nesse caso, a frmula simples: RM = RA autoconsumo.

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Para os produtores familiares, importante dividir a renda pelo nmero de trabalhadores familiares, pois esse parmetro que pode ser comparado remunerao das outras oportunidades de trabalho ao seu alcance. Calcula-se, ento, a renda agrcola por trabalhador (RA/UTf). Muitas vezes, os produtores tm pouca terra disponvel, o que geralmente os obriga a adotar sistemas que exigem muita mo-de-obra, mas que permitem obter uma alta re