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UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - SECAD Caminhadas de universitários de origem popular Caminhadas de universitários de origem popular “(...) Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes mais pobres às universidades de excelência do país ou só o permite para os cursos com menor prestígio social.” Ricardo Henriques UFRJ

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UFRJ

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Ministério da Educação

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - SECAD

Caminhadas de universitários de origem

popular

Caminhadas de universitários de origem popular

“(...) Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes mais pobres às universidades de excelência do país ou só o permite para os cursos com menor prestígio social.”

Ricardo Henriques

UFRJ

UFRJ

Caminhadas de universitários de origem popular

Copyright © 2006 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.

Organização da Coleção: Jorge Luiz Barbosa

Coordenação Técnica: Ana Inês Sousa

Programação Visual: Seção de Produção Editorial da Extensão / PR-5 / UFRJ Coordenação: Claudio Bastos Anna Paula Felix Iannini Thiago Maioli Azevedo

Revisão de Textos: Lucinda José de Oliveira

Imagem da Capa: Anna Paula Felix iannini

Ministério da EducaçãoSecretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares

Rio de Janeiro - 2006

Caminhadas de universitários de origem popular

Presidente da República

Luiz Inácio Lula da Silva

Ministério da Educação

Fernando HaddadMinistro

José Henrique Paim FernandesSecretário Executivo

André Luiz de Figueiredo LázaroSecretário Executivo Adjunto

Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade - SECAD

Ricardo HenriquesSecretário

Departamento de Desenvolvimento eArticulação Institucional

Francisco Potiguara Cavalcante JuniorDiretor

Programa Conexões de Saberes:Diálogos entre a Universidade eas Comunidades Populares

Jailson de Souza e SilvaCoordenação Nacional

Carmen Teresa Gabriel AnhornAndréa Mayer GomesEblin Joseph FarageCoordenação na Universidade Federal do Rio de Janeiro

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Aloísio TeixeiraReitor

Sylvia da Silveira Mello VargasVice-Reitora

Laura Tavares Ribeiro SoaresPró-Reitora de Extensão

Ana Inês SousaSuperintendente Acadêmica de Extensão

Isabel Cristina Alencar de AzevedoSuperintendente de Planejamento da Extensão

Eliana Sousa SilvaDiretora da Divisão de Integração Universidade-Comunidade

Instituição Parceira:

Observatório de Favelas do Rio de JaneiroJailson de Souza e SilvaDalcio Marinho GonçalvesCoordenação Editorial da Coleção“Caminhadas de Universitários de Origem Popular”

Coleção

Caminhadasde universitários de origem popular

Bolsistas Autores

Andréa M. de O. Estrella AnacletoCláudia de Oliveira da PenhaElaine da Costa CaldeiraElaine Rangel da Silva Elizabeth Maria da Penha GamaEloana Feitosa da SilvaÉrica Silva AssisJoão Paulo Araújo da SilvaJorge Ujá Carvalho da Silva JúniorKeli Regina Silva SerraMaria do Socorro Lira Nicastro DiasPatrícia de Oliveira da PenhaPaula Gomes dos SantosRalcicléa de Araújo RosaRejania Maria de OliveiraViviane Silva Santos

Coordenação e Organização

Mônica Pinheiro Fernandes

Bolsistas de Extensão

Andréa Mendes da ConceiçãoBianca Assis de Oliveira Bianca Silva de OliveiraCarlos Henrique VasconcelosCecília Maria de Almeida da SilvaEduardo Araujo de AlmeidaFabiana Bezerra de LimaFernanda Colbert NogueiraFlávia Batista de Aguiar SantosIonara Gomes TaucáJúlia de Souza RodriguesLeomir dos Santos DornellasLuciano Pires de AlmeidaMárcio Gabriel VieiraMarcos Vinícius Gomes G. MattosMarilene dos Santos ReisMarkelle Morant Lopes de SouzaMeire Elen do Nascimento BezerraPriscilla Blini da SilveiraRoberta Maria FedericoSuzana Maria de OliveiraWellington Luiz Leite da Rocha

Bolsistas de Apoio

Caroline Dias G. PadilhaEvelyn Santos LisbôaFernanda Areias de OliveiraGabriel Rodrigues D. MarquesGustavo Oliveira dos SantosIan Anderson de Andrade NascimentoXenia Ka Ma

Prefácio

A sociedade brasileira tem como seu maior desafi o a construção de mecanismos que

permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social

e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.

A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma

educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente

democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continuada, pela melhoria

de sua qualidade. O Ministério da Educação, no atual governo, persegue de forma intensa e

sistemática esses objetivos.

Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta

contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um

lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,

por outro, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários

de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas

universidades públicas.

O programa, criado pelo MEC em dezembro de 2004, é desenvolvido a partir da Se-

cretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa

a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na cidade do

Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público

Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de Universitá-

rios de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento em várias

comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou, inicialmente,

uma rede de estudantes universitários em cinco universidades federais, distribuídas pelo país:

UFRJ, UFF, UFPE, UFMG e UFPA. A partir de maio de 2005, ampliamos o programa para

mais nove universidades federais: UFAM; UFC; UFPB; UFBA; UFMS; UnB; UFES; UFPR

e UFRGS. Em 2006, o Ministério da Educação já assegurou, em todos os estados do país, 31

universidades federais integrantes do programa.

Essas Universidades, a partir do Conexões de Saberes, passam a ter, cada uma, ao menos

25 universitários que participam de um processo contínuo de qualifi cação como pesquisadores;

construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos alunos de

origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em comunidades populares.

Dessa forma, busca-se a formulação de ações voltadas para a melhoria das condições de

permanência dos alunos de origem popular na universidade pública e, também, aproximar os

setores populares da instituição, ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas

duas instâncias sociais.

Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do

Programa: a coleção “Caminhadas” terá 14 livros publicados em 2006, reunindo as contri-

buições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2005. Em 2007, teremos

17 novas obras, que reunirão os relatos dos estudantes das universidades que ingressaram

no Programa em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes

e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses

livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que

contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes mais

pobres às universidades de excelência do país ou só o permite para os cursos com menor

prestígio social.

Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção

de uma universidade pública efetivamente democrática, uma sociedade brasileira mais justa

e fraterna e uma humanidade a cada dia mais plena.

Ricardo HenriquesSecretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Ministério da Educação

Constantemente se é obrigado

a voltar atrás algumas páginas

para descobrir onde se está,

no presente ou no

passado relembrado.

Marcel Proust

Minha história de estudante

talvez seja igual a de muitos

estudantes anônimos que

existem por esse mundo afora ...

Andréa, bolsista do Projeto

Sumário

Apresentação

Memoriais entrelaçados: narrativas coletivas de jovens universitáriosMônica Pinheiro Fernandes .................................................................................... 11

Parte 1

Capítulo 1: Infl uências

Kelly Regis e Maria do Socorro Lira ..................................................................... 21

Capítulo 2: As relações familiares na trajetória dos estudantes oriundos das classes populares

Andréa Estrella, Jorge Ujá e Elaine Rangel ........................................................... 27

Capítulo 3: A religião nas nossas vidas: rumo ao ensino superiorElaine Caldeira e Ralcicléa de Araújo Rosa .......................................................... 40

Capítulo 4: Contribuições das memórias estudantis para a construção

das trajetórias de vida

Claudia de Oliveira da Penha, Elizabeth Gama, Érica Assis,

Patrícia de Oliveira da Penha e Rejania Oliveira .................................................. 49

Parte 2

Capítulo 5: Terminalidades: como as etapas escolares vão

construindo nossa história

Viviane Silva Santos e Eloana Feitosa da Silva ...................................................... 65

Capítulo 6: Peixes fora d’água: uma refl exão acerca do ingresso

das classes populares ao ensino superior público no Brasil

Paula Gomes dos Santos e João Paulo Araújo da Silva ......................................... 85

Universidade Federal do Rio de Janeiro 11

Memoriais entrelaçados: narrativas coletivas de jovens universitários

(...) choveu muito,

a água invadiu este porão de lembranças,

bóiam na enxurrada a caminho do rio.

Deixo que naveguem, pois não as perderei.

O rio é dentro de mim.

(Adélia Prado, 2001)

De acordo com a concepção de Michel Pollak (1989), a memória é entendida como essencialmente social. Proporciona a criação de sentimentos de pertencimento e de frontei-ras sociais entre coletividades distintas, além de proporcionar a retomada do vivido como fortalecimento das ações futuras.

Com o sentido de revisita ao passado a partir das necessidades do presente, a escrita dos memoriais teve como objetivo norteador dar voz aos jovens universitários da camada popular - historicamente excluído deste espaço social – e possibilitar a refl exão e o conhecimento de sua trajetória através de seus próprios textos; mas, ao mesmo tempo, aproximando-nos de suas condições materiais de vida, de suas experiências estudantis, culturais religiosas e políticas.

A intenção não é apresentar dezesseis trajetórias solitárias e pessoais de jovens brasileiros que tiveram o “privilégio” de ingressar na universidade.

Este trabalho visa apresentar seis capítulos que expressam histórias de jovens brasileiros universitários que convivem diariamente com o estigma da pobreza e da violência atribuídos tanto à sua condição econômica quanto às de suas comunidades. Eles conquistaram o que para a classe média é entendido como o caminho natural da juventude – a universidade. Seus textos entrecruzados nos mostram que por caminhos distintos menos naturais de experiências singulares, ao serem contadas em conjunto, nos indicam a luta pelo direito à educação.

Num processo de autobiografi a, o escritor lembra, relembra fatos, dores, alegrias, afetos, desafetos, silêncios e gritos, que não devem ser contados tal qual um inventário de lembranças organizadas cronologicamente e lembradas num movimento descendente. Ao contrário, ao serem contadas, se tornam outras ações, outras lembranças. O sentido da ação para o homem, é que defi ne o seu agir. É o que determina suas escolhas. Para Hanna Arendt (1993) agir é tomar iniciativa, começar, conduzir, governar, pôr algo em movimento, ser motivo para que algo novo comece.

É nesse sentido que as memórias produzem um novo texto sobre a vida já vivida que, ao ser revisitada, promove novas possibilidades de seguir vivendo.

Apre

senta

ção

Entendemos que a produção escrita não é linear e que a elaboração dos memoriais é provocadora de seleções estabelecidas, como nas palavras de Magda Soares(1991):

a (re) construção do meu passado é seletiva: faço-a a partir do presente, pois é

este que me aponta o que é importante e o que não é; não descrevo [o passado],

pois; interpreto. (p. 31)

Propomos, portanto, que o processo de produção escrita dos alunos do Projeto Conexões que compõem este livro seja compreendido como parte fundamental para a compreensão de seu conteúdo. Os seis capítulos que compõem este livro são resultado de quatro meses de produção escrita entrecruzando a produção individual e a coletiva. Desta forma, tão importante quanto o que desejamos comunicar, é o percurso traçado/trilhado pelos seus autores.

Como veremos na seção abaixo, esta produção foi organizada pelos alunos da Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a partir do entrecruzamento dos memoriais produzidos.

Por que uma escrita coletiva? O homem é fundamentalmente social, vivendo em relação, em diálogo com o outro.

Segundo Mikhail Bakhtin (2004)

Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra,

defi no-me em relação ao outro, isto é, em ultima análise, em relação à coletivi-

dade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se

apóia sobre mim numa extremidade, a outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A

palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (p. 113)

O desafi o de produção deste livro a partir da construção do entrelaçamento dos me-moriais dos alunos é a própria produção escrita dos alunos. Foi necessário discutir com eles a concepção de linguagem que estávamos adotando. O Planejamento do trabalho levou em conta o conceito de linguagem como prática social viva.

Tomamos por base a dimensão social da linguagem, constitutiva de identidade social, dando ênfase à sua dimensão subjetiva. De acordo com Eni Orlandi (1987), sabendo que a relação está no espaço discursivo criado entre o “eu” e o “tu”, o sujeito só se completa na interação com o outro.

A compreensão de identidade como uma produção que não está nunca completa, que está sempre em processo e é sempre constitutiva no interior, e não fora da representação, é necessária para fundamentar a produção escrita das memórias estudantis como histórias entrelaçadas e constituidoras de sentidos e saberes sociais.

Aliado à produção escrita, o exercício da leitura foi um aspecto importante no processo de análise das memórias estudantis. A escolha de autores como Bernard Lahire (1997), Michael Pollak (1989), Magda Soares (1997) e Jean-Claude Forquin (1993) ajudou-nos a entender as relações de pertinência entre os temas recorrentes nos diversos memoriais. Aliado ao conhecimento científi co, textos literários como de Adélia Prado, Dr. Seuss e contos da cultura árabe; além de fi lmes como “Janela da Alma”, “Narradores de Javé” e “Quanto vale ou é por quilo?” contribuíram para ampliar nossas discussões acerca da condição de jovens universitários de origem popular que aceitaram o desafi o de falar de si sem esquecer que pertencem a um tempo histórico.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 13

Dessa forma, a produção escrita é compreendida como recurso metodológico, uma vez que promove o que Manoel Corrêa (2004) chama de textualização isto é, as várias e distintas relações que o escrevente já teve com a linguagem. Com esta mesma intenção, de construir um texto coletivo com as narrativas pessoais das trajetórias estudantis, demos início ao processo de escrita.

Metodologia: um olhar para dentro da “Janela da Alma” 1

A fi m de promover um espaço de produção de escrita que garantisse aos alunos, um movimento de introspecção e refl exão, o documentário “Janela da Alma”, produzido por Walter Carvalho e João Jardim e que trata da multiplicidade de olhares sobre o mundo, foi utilizado como recurso para mobilizar os alunos para a produção de seus memoriais.

A partir do fi lme, foi possível promover uma boa discussão a respeito das diversas pos-sibilidades de se “olhar” e ser “olhado” para e pelo mundo. Um outro aspecto fundamental que nos motivou a passá-lo para os alunos foi a sua construção. Ao distribuir as falas dos 18 entrevistados em temas como amor, cegueira, aceitação, identidade, dentre outros, o fi lme construiu uma narrativa bastante interessante. Os textos dos entrevistados, que individual-mente, contaram histórias singulares, ao serem entrelaçados formaram um texto coletivo denso e profundo.

Escrita dos memoriais Após a apresentação do documentário, os alunos fi zeram uma atividade escrita chamada

“linha do tempo”, onde assinalaram, num material didático nomeado “linha do tempo”2 , os temas mais relevantes no seu processo estudantil.

Uma segunda marcação solicitava a inserção de fatos marcantes em suas trajetórias de vida. Essa atividade tinha o objetivo de iniciar o processo de produção dos memoriais discentes.

Num terceiro momento, foram feitas as leituras “das linhas do tempo”. As questões mais recorrentes foram elencadas, resultando em seis temas, tais como:

I - Terminalidades (quarta e oitava séries, terceiro ano do ensino médio, entrada na universidade) II - Escola (aspectos positivos e negativos); III - Religiosidade, IV - Relações estudantis (organização política, fraternais, amorosa, competição), V - Relações familiares e VI - Infl uências.

A partir daí, o grupo começou a escrever seus memoriais e pudemos observar que o movimento de escrita dos alunos foi muito singular.

Um primeiro grupo escreveu muito e sempre queria acrescentar, rever, modifi car seu texto após cada leitura dos colegas. O segundo grupo reagiu à escrita, só o fazendo no prazo fi nal. E um terceiro grupo, que não alterou nada em seu texto, entregou o escrito original e não mais o modifi cou.

Contudo, todos os textos lidos produziram grande emoção em todos os participantes. Ao constatarem trajetórias semelhantes, o grupo se fortalecia e estabelecia relações com as leituras dos textos científi cos e suas experiências em seus cursos na universidade.

1 Filme Documentário de Walter Carvalho e João Jardim, produção de 2000.2 Material didático que propunha aos alunos levantarem cronologicamente fatos marcantes da sua vida estudantil.

14 Caminhadas de universitários de origem popular

Escrita dos textos coletivosOs textos coletivos foram escritos a partir dos seis temas levantados através da leitura das “linhas

do tempo”. A produção foi feita em grupo tendo como objetivo produzir uma narrativa a partir dos diversos memoriais e das refl exões advindas das diversas leituras científi cas efetuadas no grupo.

O livroOs seis capítulos que compõem este livro são construídos de forma polifônica. São

escritos pelos autores a partir das vozes de todos os alunos enunciadas em seus memoriais. Os autores são jovens universitários que integram o Projeto Conexões de Saberes da

UFRJ. Podemos conhecer um pouco deles a partir da apresentação produzida pelos alunos João Paulo e Paula, que, com um tom informal e carinhoso, caracterizam a si e aos colegas nas suas peculiaridades mais marcantes.

1. AndréaAndréa é uma mulher de pele parda, bastante jovial e gosta de expor suas opiniões com fi rmeza. Casada, atribui sua entrada na faculdade à própria determinação e es-forço e também ao incentivo do esposo. Atualmente está cursando o sexto período da Faculdade de Letras-Português-Francês.

2. CláudiaCláudia é uma mulher de pele parda e se declara forte, mas com “uma alma magra”. Bastante brincalhona, está sempre sorrindo, porém cita a seguinte frase: “por trás de todo palhaço sorridente existe um homem triste”. Desde cedo manifestava o desejo de se tornar uma professora.

3. Elaine CaldeiraElaine é uma jovem de vinte e um anos, de pele negra e bem magrinha. Tímida, nada faladeira, sempre buscando a amizade de todos. Oriunda da Baixada Fluminense, de Magé, optou por residir no alojamento estudantil e cursa Bacharelado em Dança.

4. Elaine RangelElaine é uma jovem de pele clara, tímida e relata ter difi culdades de falar em público. É a única integrante do grupo que provém da área da saúde, cursando Enfermagem.

5. ElizabethElizabeth é uma jovem de pele clara e de baixa estatura. Bastante tímida, mas fala-deira, relata que a dispersão faz parte do seu cotidiano. Atualmente está cursando a Licenciatura, já tendo concluído o curso de Português-Alemão.

6. ÉricaÉrica é uma jovem de vinte e quatro anos, de pele parda e de baixa estatura. Sempre risonha e bastante extrovertida está sempre mostrando sua aptidão para as artes, fato que culminou na escolha do curso de Dança.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 15

7. EloanaEloana é uma jovem de pele clara, bem humorada e decidida. Casada, relata que o apoio do marido foi fundamental para o ingresso na Universidade. Atualmente está cursando Serviço Social.

8. João PauloJoão Paulo é um jovem de aproximadamente vinte e seis anos, forte, de pele parda e sempre se manifesta amigável e solícito.

9. Jorge Jorge é um jovem negro de aproximadamente vinte e seis anos, muito bem humorado e brincalhão. Atualmente reside no alojamento estudantil e cursa Português-Grego.

10. Kelly Kelly é uma mulher negra de aproximadamente vinte e sete anos, oriunda da comu-nidade da Maré e que não costuma falar em público. Lutadora, sempre comparece às reuniões do projeto com sua fi lhinha, Açucena.

11. Maria do SocorroSocorro é uma mulher de aproximadamente trinta e um anos, de baixa estatura e cabe-los curtos. Sempre se mostra amigável e alegre, possuindo uma gargalhada marcante. Oriunda do Piauí, veio para o Rio de Janeiro e estuda na Universidade Federal do Rio de Janeiro, cursando Letras.

12. PatríciaPatrícia é uma jovem de pele parda, aproximadamente vinte e três anos, sendo oriunda de Paciência. Sempre se mostra séria e compenetrada. Como sua irmã, Cláudia, que também faz parte do grupo, cursa Letras.

13. PaulaPaula é uma jovem de pele branca, de alta estatura e possui vinte e dois anos. Sempre contestadora, gosta de expor suas opiniões. Oriunda de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, cursa História.

14. RalcicléaRalcicléa é uma jovem morena, de vinte anos e possui cabelos muito longos. Sensível e sempre amigável, cursa a Faculdade de Dança e é oriunda de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.

15. RejaniaRejania é uma jovem negra, de aproximadamente vinte e seis anos. Bastante alegre e extrovertida, está sempre cantando e dançando. Oriunda do Complexo do Caju, está cursando a Faculdade de Serviço Social.

16 Caminhadas de universitários de origem popular

16. VivianeViviane é uma jovem de pele parda, aproximadamente vinte e um anos. Bastante de-

cidida, sempre comunicativa, gostando de defender suas opiniões, cursa a faculdade

de Direito.

Como podemos observar, o livro é produzido por alunos universitários que, através da

escrita de seus memoriais, construíram, coletivamente, narrativas acerca de questões sociais,

políticas, religiosas e pessoais que se mostraram comuns nos diversos memoriais.

Os capítulos deste livro buscam, pelo olhar e pela voz de jovens universitários, suscitar re-

fl exões sobre suas trajetórias de vidas, as infl uências que sofreram e os percursos que traçaram.

Desta forma, o livro está organizado em duas partes que integram e articulam os di-

versos capítulos:

Parte I – Infl uênciasOs capítulos discutem as diversas infl uências que marcaram as trajetórias estudantis até

a entrada na universidade. São eles: “Infl uências”, “As relações familiares na trajetória dos

estudantes oriundos das classes populares”, “A religião nas nossas vidas: rumo ao ensino

superior” e “Contribuições das memórias estudantis para a construção das trajetórias de

vida” e apresentarão, sob diferentes prismas e enfoques, as infl uências sofridas ao longo de

suas trajetórias estudantis.

O primeiro capítulo “Infl uências” se propõe a apresentar as diversas formas de infl uências

que os jovens universitários reconheceram como importante para suas trajetórias estudantis.

No segundo capítulo “As relações familiares na trajetória dos estudantes oriundos das

classes populares”, entraremos em contato com os diversos feitios de organização familiar.

A multiplicidade religiosa que compõe nosso país está ressaltada no terceiro capítulo “A

religião nas nossas vidas: rumo ao ensino superior” e trata a religiosidade pela perspectiva

do sagrado.

A primeira parte é encerrada pelo quarto capítulo “Contribuições das memórias estu-

dantis para a construção das trajetórias de vida”, que nos apresenta a força da escola na vida

desses estudantes e nos convida para a segunda parte, que aprofundará a questão.

Parte II - Instituição EscolarCapítulos sobre as terminalidades – períodos de mudança no sistema de ensino - e a

entrada na universidade vão nos conduzir, pela lógica dos alunos, às suas refl exões sobre as

instituições escolares.

No quinto capítulo “Terminalidades: como as etapas escolares vão construindo nossa

história”, as autoras discutem a passagem da 4ª para 5ª séries, que apesar de não representar

uma mudança no sistema de ensino, culturalmente é entendido como uma “entrada” na ado-

lescência. Há ainda refl exões sobre a conclusão do ensino fundamental (8ª série), do ensino

médio (3º ano) e a entrada na universidade.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 17

No sexto e último capítulo “Peixes fora d’água: uma refl exão acerca do ingresso das classes populares ao ensino superior público no Brasil” nós conheceremos a luta dos jovens de camada popular para ingressar e permanecer na universidade pública.

Palavras entrelaçadas: início/meio/fi m/início...Escrever este livro foi, sem dúvida, o maior desafi o e, também, o maior ganho do

grupo no processo de elaboração de suas escritas. Assumir a autoria é um exercício deveras instigante, especialmente quando somos sujeitos e objetos de nossa produção. Ao analisar-mos todas as trajetórias, estaremos (re)conhecendo a voz desses novos alunos universitários que estão fazendo valer seu direito constitucional de acesso à educação pública, gratuita e de qualidade.

É importante ressaltar que os textos foram produzidos pelos alunos com a orientação do Projeto Conexões de Saberes, que, ainda que compreendendo o risco que isto signifi ca, optou por partilhar com seus alunos o desafi o da produção escrita. Concordando com Roland Barthes, quando diz que escrever é sacudir o sentido do mundo, nos impomos o desafi o de intervir em suas produções até o momento de reconhecer o limite da produção escrita de cada aluno-autor.

Os textos produzidos nesta publicação não tinham o compromisso com o formato acadêmico, ainda que alguns se apresentassem com semelhante estilo. A idéia fundamental foi entrelaçar as narrativas de jovens que, ao aceitarem participar do Projeto Conexões de Saberes, tiveram invadidos, como diz Adélia Prado, seus porões de lembranças, e permitiram, para nossa alegria, que a enxurrada as levasse para dentro de nós.

Referências bibliográfi cas ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e fi losofi a da linguagem. 9.ed. São Paulo: Hucitec, 2004

CORRÊA, Manoel Luiz Gonçalves. O modo heterogêneo de constituição da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

ORLANDI, Eni. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2.ed. Campinas: Pontes, 1987

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In, Estudos históricos. Rio de Janeiro, vol.02, n.03, 1989, p.3-15 1989

SOARES, Magda. A chave do passado. In: Metamemória – memórias travessia de uma educadora. São Paulo: Cortez, 1991.

Bibliografi a utilizada ao longo do cursoLiteratura

Dr Seuss. Ah, os lugares aonde você irá! São Paulo. Companhia das Letrinhas, 2001Prado, Adélia. Filandras. Rio de janeiro. Record, 2001. Pág, 37 a 39Aprenda a escrever na areia (fábula do folclore árabe). Fábulas em cartão postal. Autêntica

18 Caminhadas de universitários de origem popular

Textos científi cos

CADERNO CEDES. Educação, Adolescências e culturas juvenis: diferentes contextos. Campinas. V.22, n° 57. 1ª ed. Agosto/2002.

GOODSON, Ivor F. Dar voz ao professor: as histórias de vida dos professores e o seu desenvolvimento profi ssional, In. NÓVOA, António. Vida de professores, 2 ed. Portugal: Porto Editora, 1995.

Michael Pollak. Memória, Esquecimento, silêncio. In, Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.02, n.03, 1989, p.3-15 1989

Bernard Lahire (1997). Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ática,

PERRENOUD, Phillipe. Ofício de aluno. Portugal: Porto editora, 1999.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Fronteira da fé – Alguns sistemas de sentido, crenças e religiões no Brasil de hoje, In: Estudos Avançados 18 (52), 2004 São Paulo: USP

CORBUCCI, Paulo Roberto. Financiamento e democratização do acesso à educação superior no Brasil: da deserção do Estado ao projeto de reforma. In: Educação & Sociedade, Campinas, v. 12, n. 88, p.677-701, out. 2004.

PINTO, José Marcelino de Rezende. O acesso à educação superior no Brasil. In: Educação & Sociedade, Campinas, v. 12, n. 88, p.727-756, out. 2004.

CUNHA, Luiz Antônio. Desenvolvimento desigual e combinado no ensino superior – Estado e mercado. In: Educação & Sociedade, Campinas, v. 12, n. 88, p.795-817, out. 2004.

Mônica Fernandes3

3 Mestre em Educação, Professora substituta da FE/UFRJ, participante de Projeto Conexões de Saberes.

CapítulosInfluências

As relações familiares na trajetória dos estudantes oriundos das classes populares

A religião nas nossas vidas: rumo ao ensino superior

Contribuições das memórias estudantis para a construção das trajetórias de vida

Parte 1

INFLUÊNCIAS

Universidade Federal do Rio de Janeiro 21

Influências

“O risco é de Deus, mas o bordado é nosso”

(Autran dourado)

Na trajetória escolar dos jovens que relataram, no memorial, sua vida de estudante, um elemento é comum em suas descobertas: “as infl uências”. Inserida no âmbito do social, cul-tural, econômicos, políticos, regionais (urbano/rural) e interpessoais, esse elemento promoveu diversas mudanças de “rumos” em nossas vidas. Este capítulo introdutório tem por objetivo apresentar, através de fragmentos dos memoriais elaborados pelos seus participantes, algumas das diferentes infl uências marcantes que permearam a nossa trajetória estudantil e que serão aprofundadas nos capítulos seguintes.

Somos mais do que apenas “infl uenciáveis”, estamos constantemente ressignifi cando nossa personalidade porque, como sujeitos históricos, estamos em constante transformação, interferindo na mudança, e por ela sendo interferido.

Nossa “autenticidade” nos deixa livre a buscar no “outro”, um “quê” a mais, uma com-plementação como expressa a fala abaixo da universitária Rejania que via em seu irmão um impulso para a sua trajetória:

“A primeira experiência que tive em relação à escola, se deu por infl uência do meu irmão mais velho”. (Rejania)

Em nossa vida é assim, colhemos informações, hábitos e experiências e as inserimos em nossa vida e mais tarde damo-nos conta de que o outro de alguma forma nos infl uenciou.

A autora Magda Soares (2001), em seu livro “Metamemória”, relata-nos:

Minha opção pela vida universitária não foi fruto do acaso ou de oportunidade eventual: ingressei nela, é verdade, por uma oportunidade eventual, mas permaneci por escolha consciente e decisão segura [...] Filha de professor universitário pro-fundamente sensível aos problemas sociais e voltado para a busca de suas soluções, numa luta que teve como palco a universidade-palco em que, portanto, desde cedo estive presente; neta de ferrenho republicano e defensor ardoroso da liberdade e da racionalidade humanas - homem que ensinava a menina de quatro, cinco anos a cantar a Marselhesa; produto de uma educação metodista, seita protestante cujo fundamento é a responsabilidade social do cristão e seu compromisso com a luta contra a justiça e a discriminação sociais. (p. 22,23)

Esse “outro” pode ser representado por diferentes sujeitos: indivíduos que cruzaram em um determinado momento as nossas trajetórias ou instituições sociais como a família, a escola ou a igreja. De qualquer maneira os diversos depoimentos tenderam a mostrar que ao longo da nossa caminhada as nossas identidades foram sendo construídas na relação com “um outro”.

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22 Caminhadas de universitários de origem popular

Chamando atenção para o papel intransferível das infl uências que nos cercam como aponta Bernard Lahire (1997), na citação:

“Cada traço que atribuímos ao indivíduo não é seu, mas corresponde ao que

acontece entre ele e alguma outra coisa [ou alguma pessoa]”. ( p. 20)

Entre essas infl uências destacou-se nos memoriais o papel primordial desempenhado pela base familiar, na formação do indivíduo, pois é nela que aprendemos a sobreviver neste mundo de tantas incertezas. Os conselhos e as histórias que ouvimos em nossa família fi cam guardados e nos enriquece:

Os depoimentos de alguns bolsistas deixam claro o papel central atribuído à família, a despeito do entendimento que temos sobre ela na formação do nosso caráter e conseqüente-mente em nossas trajetórias.

...Isso me faz pensar que nunca tive uma família somente de quatro pessoas, porque

as dores e as alegrias se dividem por todos os parentes. Para mim, esse também

foi um fator vital na minha vida de estudante: quando não tinha ânimo para evo-

luir nos estudos, as palavras e a própria presença de meus tios, me levaram a ir

além. (João Paulo)

Sempre ouvi meus pais falarem para minhas irmãs e eu, que se quiséssemos uma vida

melhor, tínhamos que estudar, por isso, faziam questão do ensino em nossas vidas.

(Elaine)

Meus pais sempre me apoiaram muito e hoje reconheço que sem a ajuda deles,

difi cilmente conseguiria chegar aonde cheguei. Meu pai me levou ao local de

prova... Sempre me apoiando e falando que iria dar tudo certo, que estava

orando por mim na igreja e costumava dizer que eu já estava aprovada porque

além de estudar, como as demais pessoas, ainda havia outro fator favorável,

as orações. Estava a frente das outras pessoas. ( Paula)

Muitas vezes, as infl uências de nossos familiares se traduzem ou se manifestam não de forma intencional ou planejada, mas pelo simples convívio das experiências comuns cotidi-anas, como sugere Lahire (1997), na citação abaixo:

O fato de ver os pais lendo jornais, revistas ou livros pode dar a esses atos um

aspecto “natural” para a criança, cuja identidade social poderá construir-se,

sobretudo através deles: ser adulto como seu pai ou sua mãe signifi ca natural-

mente ler livros... (p. 20)

A ligação intrínseca com a família nuclear, decididamente nos faz crescer. Porém, como em toda regra, existem as exceções. Muitas vezes o reconhecimento das infl uências positivas dessa instituição pressupõe alargar, ampliar este conceito e incorporar sujeitos que ocuparam as funções de pai e/ou mãe.

Muitos estudantes tiveram como desafi o buscar em outros parentes e amigos suporte para a sua caminhada. É o caso do universitário Jorge, que devido a problemas entre os pais, foi viver temporariamente com os padrinhos, onde recebeu estímulos para ingressar em uma universidade.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 23

...Puseram-me em boas escolas públicas e me incentivaram aos estudos. Lembro-

me do meu padrinho dizendo: ‘se eu não morrer, esse será doutor’. (Jorge)

Estas pessoas fazem o papel, muitas vezes, dos pais em caso de suas ausências.A infl uência exercida por indivíduos que se tornam fi guras marcantes nas nossas vidas

a despeito das relações de parentesco ou do grau de amizade também foi destacada em vários outros memoriais. Algumas vezes essa pessoa é uma professora ou professor como deixa transparecer a fala de algumas bolsistas como Erica, Paula, Patrícia e Viviane:

...Estava tendo aula com a professora Graça, a quem sou muito grata, pois

ela me ajudou e me incentivou muito. Inúmeras vezes me davam o dinheiro

da passagem para que eu pudesse ir assistir a suas aulas que eu freqüentava

gratuitamente e me preparar um pouco dentro da dança. Para o teste de ha-

bilidade específi ca ela me ajudou em algumas questões corporais específi cas,

me deu uma sapatilha e me disse que era para me dar sorte. (Érica)

A infl uência de um professor ajudou também a vida da universitária Paula, que estudou em escola particular e estava acostumada mesmo com difi culdades na família, a ter acesso a um ensino bom e bibliotecas, pois desde criança sempre gostou de ler. Na mudança da escola particular para a pública, conheceu o professor que infl uenciaria na escolha de sua profi ssão:

...ele me infl uenciou na escolha do meu curso. Eram poucos que davam aulas

com tanta empolgação; e ele o fazia muito bem. (Paula)

...minha primeira professora era maravilhosa. Sempre me incentivou muito e

demonstrava um grande carinho por mim... Por isso, sempre me esforcei a ter boas

notas, pois não queria decepcionar minha querida professora. (Viviane)

O mesmo tipo de infl uência vinda de uma fi gura marcante e que faz muitas vezes mudar o rumo de uma vida aparece no depoimento da estudante Patrícia no trecho de sua história quando afi rma:

...por incentivo dos meus amigos e professores, tomei conhecimento do vestibu-

lar para entrar na faculdade [e de como me interesso pela literatura, efeito do

professor da matéria, que não era legal como pessoa, mas era um excelente e

apaixonado professor de literaturas]. (Patrícia)

Outras vezes essa fi gura marcante está representada no amigo que, por sua vez, pode estar no seio da própria família como indicam os depoimentos de Eloana e de Kelly. Nas falas abaixo, percebemos as infl uências exercidas respectivamente pelo marido e pelo pai destas estudantes e que fi zeram a diferença nas suas vidas universitárias:

...Nesse período o apoio do meu marido foi fundamental, pois não me pressionava

a conseguir um emprego ou pela bagunça que a casa fi cava vez ou outra, pelo con-

trário, me incentivava e até brigava comigo para que estudasse mais. (Eloana)

O pai da universitária Kelly, mesmo tendo problemas particulares, sempre tentou ajudá-la no que pôde e como ela descreve, eram muito amigos. Isto a infl uenciou a seguir adiante:

24 Caminhadas de universitários de origem popular

É claro que pela base que eu tinha, não passei. Mas percebi que meu pai desejava

muito isso; e eu tinha essa dívida com ele, entrar na universidade para fazê-lo

feliz [...]o meu pai foi na verdade a grande razão da minha insistência em fazer

faculdade, pelo rumo que minha vida tomou, eu seria uma simples dona de casa,

sem muitas expectativas. (Kelly)

Já na vida da estudante Elizabeth, como na de outros, passam a infl uenciar na escolha do caminho pessoas que não eram da família e tampouco amigos conhecidos, como ela descreve neste trecho:

...Durante o curso de alfabetização de adultos, conheci uma militante, a qual

me convidou para estudar no pré-vestibular comunitário organizado por ela e,

graças a suas orientações, escolhi o curso de letras, no qual me realizei profi s-

sionalmente. (Elizabeth)

Além de parentes e amigos, fatores, como a religião e a fé, ajudaram muitos entre nós na motivação de continuar a caminhada de nossas vidas. Eis aqui um trecho da história de Cláudia:

...minha mãe me incentivou a fazer crisma e gostei tanto que acabei me tornando

catequista. Desde cedo a vontade de lecionar me perseguia e hoje eu vejo que era

Deus escrevendo certo por linhas tortas. (Cláudia)

E como ela, Ralcicléa e Maria do Socorro também se apoiaram na religião, que teve lugar especial na vida destas universitárias:

...mas depois de um tempo, consegui me livrar dessa tristeza, pois Deus ajuda os

seus fi lhos. [...] ‘Aquele que não ama, não conhece a Deus, porque Deus é Amor’

(I João 4,18). [...]As professoras foram muito legais comigo e até hoje as encontro

por aí, com o mesmo carinho de antes. (Ralcicléia)

Nesta época comecei meu envolvimento na Igreja, não só militava, mas me envolvia

seriamente. Aprendi muito com os religiosos, acredito que este envolvimento tenha

sido um dos fatores pelos quais eu pensei um dia, fazer a diferença. Principalmente

no reconhecer que DEUS estaria sempre ao meu lado. (Maria do Socorro)

Como suas colegas de projeto, Érica também viu a religião sempre presente em sua vida juntamente com sua família. E veio recebendo muita ajuda por parte dos integrantes de sua igreja na trajetória de sua vida até a universidade.

...Sempre fui muito ligada a questões religiosas. Mamãe sempre nos levava à

igreja; [...] Nesse processo tive ajuda de mais um anjo de Deus. Minha mãe par-

ticipava da pastoral da Catequese [...] lá ela conheceu uma moça que muito me

auxiliou no esclarecimento para o pedido de isenção, nas datas, enfi m, com isso

acreditei realmente que poderia tentar vestibular, apesar de minha realidade;

Tenho certeza que na minha história, Deus me guiou por completo e eu fui somente

sendo dócil às suas convenções, me colocando sempre em sua escuta. (Érica)

Universidade Federal do Rio de Janeiro 25

Podemos perceber aproximações entre os depoimentos dessas estudantes e o relato de Magda Soares (2001) abaixo:

Ora vida nenhuma - quer em seu aspecto pessoal, quer em seu aspecto profi s-

sional - desenvolve assim; vamos compondo o nosso bordado, cumprindo um

risco desconhecido: “Deus é que sabe por inteiro o risco do bordado”, ditado

mineiro que Autran Dourado diz e repete. “O risco não é a gente que traça”,

confi rma a personagem de O risco do bordado [1976, p. 145]. (p.28)

As difi culdades a serem superadas oriundas das diferentes situações adversas vividas no nosso dia a dia exerceram, em muitos de nós, universitários, uma infl uência paradoxalmente positiva: tratava-se de enfrentar um desafi o, de remar contra a maré, de fazer dos obstáculos de naturezas distintas fontes de conhecimento para melhorar nossas vidas.

Vemos, por exemplo, nos depoimento de Maria do Socorro e Andréa que esse enfren-tamento ao longo de suas trajetórias funcionou como força propulsora:

...Ela sempre dizia: vou dar tudo a vocês, porque não existe coisa mais triste, ver

um papel ‘escrevinhando’ e não saber ler. Isso me incomodava e eu sentia mais e

mais vontade de SABER; O fato de ser de uma família de nordestinos, mestiços,

pobres e analfabetos me impulsionava a deixar de lado os rótulos discriminadores,

estes que sempre abafam pessoas supostamente inferiores. Como era o caso de

meus pais. (Maria do Socorro)

O que me fazia continuar era o fato de que eu não queria ter a mesma vida de

miséria e surras que a minha mãe tinha e sabia que só mudaria se estudasse - como

minha tia, professora de música da UFRJ e cantora do Municipal. (Andréa)

Outras vezes as difi culdades a serem enfrentadas são os desdobramentos das difi culdades socioeconômicas no plano intelectual e acadêmico como deixa transparecer o depoimento da Paula. Uma fala de um de seus professores universitários, que para muitos seria um desestí-mulo, surtiu nela, porém, um efeito contrário:

Para completar o meu desespero, ouvi um professor dizer ironicamente em uma

das aulas, quando apresentava um autor de um texto, que o autor era um ‘currículo

anônimo’. Ele explicou o signifi cado disso, disse que as pessoas que estudavam

em colégio de má qualidade não sabiam outra língua a não ser a materna, que

nunca viajaram, mas conseguiam chegar a algum lugar, se tornavam doutores,

eram conhecidos como “currículos anônimos”... E aquele professor só pôde me

estimular a lutar ainda mais. Conseguiria fazer cursos de línguas estrangeiras,

me esforçaria nos estudos para ser uma boa aluna. (Paula)

Algumas vezes, esse desafi o se manifesta na defi nição ou afi rmação da utopia desejada, na aposta em um mundo menos dogmático, mais ético como foi o caso da escolha do curso de Direito pela Viviane.

26 Caminhadas de universitários de origem popular

Esta escolha foi fortalecida por alguns acontecimentos da vida: o escândalo

da fraude do painel eletrônico de votação da câmara dos deputados [...] sem

punição, o que me deixou com muita vontade de fazer algo para evitar a impu-

nidade. (Viviane)

Infl uências vindas de vários horizontes e de diferentes sujeitos que mudam muitas vezes rumos, causam rupturas em nossas trajetórias, reorientam escolhas e olhares sobre o mundo, nos deixam inquietos com a realidade, nos incitam a continuar a caminhar. Sempre.

Referências bibliográfi casSOARES, Magda. Metamemória; memórias; travessia de uma educadora. 2.ed. São Paulo: Cortez, p.124 p, 2001.

LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares - as razões do improvável. São Paulo: Ática. 1997.

Kelly RegisMaria do Socorro Lira

Universidade Federal do Rio de Janeiro 27

As relações familiares na trajetória dos estudantes oriundos das classes populares

Submisso(s) por condição,

independente(s) por opinião.

(Vanusa)

Trajetórias: quem somos, de onde viemosComo uma casa necessita de uma fundação para se manter erguida e em segurança

todos os seres humanos necessitam de um alicerce que, normalmente, é a família. A família é a responsável pelo primeiro contato do indivíduo com a sociedade, sendo assim de extrema importância na transmissão de valores essenciais aos fi lhos, a fi m de torná-los cidadãos íntegros.

É por meio do convívio com a família que nascem os laços afetivos, fator este im-portantíssimo e determinante na vida das pessoas. A partir dessa relação e da interação com a sociedade essa pessoa passa a agregar uma diversidade de valores. Estes valores adquiridos ao longo da vida, através da família e dos conceitos sociais, associados às refl exões críticas a cerca do que a rodeia leva à formação da identidade da mesma. As-sim, entender as bases familiares de um indivíduo possibilita um aprendizado maior sobre alguém.

A formação do indivíduo não se limita apenas ao contexto do pai e da mãe (bi-ológicos ou adotivos), mas também a todos os familiares que participam ativamente do crescimento e desenvolvimento do mesmo, como avós, tios entre outros.

Recorremos ao sociólogo francês Bernard Lahire (1997) para compreendermos a importância das gerações mais velhas na formação das novas gerações. Segundo o referido autor, todos nós constituímos esquemas comportamentais através das relações de interdependência com as pessoas com quem convivemos com mais freqüência e por mais tempo, ou seja, os membros de nossa família.

Ainda nos apoiando em Lahire (1997), podemos expandir a refl exão sobre a importân-cia da infl uência familiar na vida das crianças e dos jovens também no seu desempenho escolar. A qualidade da vida escolar de um indivíduo está associada à vida familiar.

A nosso ver, só podemos compreender os resultados e os comportamentos escolares

das crianças se reconstruirmos a rede de interdependências familiares através

da qual ela constituiu seus esquemas de percepção, de julgamento, de avaliação,

Capít

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28 Caminhadas de universitários de origem popular

e a maneira pela qual estes esquemas podem “reagir” quando “funcionam” em

formas escolares de relações sociais. De certo modo, podemos dizer que os casos

de “fracassos” escolares são casos de solidão dos alunos no universo escolar:

muito pouco do que interiorizaram através da estrutura de coexistência familiar

lhes possibilita enfrentar as regras do jogo escolar. ( p. 19)

No que concerne às relações familiares, cabe ainda ressaltar que ninguém é, o que é, no vazio, ou seja, “cada traço que atribuímos ao indivíduo não é seu, mas corresponde mais ao que acontece entre ele e alguma outra coisa (ou alguma pessoa)”. (Idem, 1997 , p.18)

Podemos, então, dizer que da mesma forma que algumas relações familiares nos tornam “grandes”, alegres, determinados e felizes, outras, nos fazem tímidos, medrosos, inseguros.

Na maioria dos memoriais produzidos pelo grupo de alunos do Projeto Conexões de Saberes (PCS) da UFRJ, o tema “infl uências familiares”4 foi bastante comum.

Para Paula, aluna do 6º período de História, a família teve infl uência positiva sobre suas tomadas de decisões.

Meus pais sempre me apoiaram muito e hoje reconheço que sem a ajuda deles,

difi cilmente conseguiria chegar aonde cheguei. Minha mãe sempre foi uma mu-

lher lutadora e nas difi culdades assumiu a casa e supriu nossas necessidades.

Meu pai me levou ao local de prova para os diferentes vestibulares que prestei

na maioria das vezes. Sempre me apoiando e falando que iria dar tudo certo, que

estava orando por mim.

Para outros, entretanto, as infl uências, também defi nitivas, podem ser dolorosas e nos tornar dependentes, fatalistas ou hostis com a vida. Como foi o caso de Andréa, aluna do 6º período de Letras:

Apesar das brincadeiras, das meninices e da presença da minha mãe; a fome,

a violência doméstica e o fato de ter tido que dormir várias vezes na rua fi zeram

da minha infância uma fase para a qual eu não gostaria de retornar. (Andréa

Estrella - Letras)

Assim, este capítulo tem a intenção de analisar a infl uência familiar no decorrer da vida estudantil de alguns universitários que, apesar de serem oriundos de locais geográfi cos diferentes, viveram e vivem experiências semelhantes, tiveram suas histórias relembradas e entrelaçadas.

O Projeto Conexões de Saberes, com o objetivo de fazer o diálogo entre as Universi-dades Públicas e as comunidades populares, vem com o presente trabalho apresentar partes da trajetória de universitários oriundos dessas comunidades e compartilhar um pouco da vida desses transformadores de suas histórias.

Para tanto foi necessário que nós, universitários de comunidades e bolsistas do pro-jeto, nos constituíssemos como sujeitos-pesquisadores coletivos, para que entendêssemos o quanto já tínhamos conseguido transformar, realmente, nossas histórias e que fazíamos parte

4 Todos os artigos desta publicação foram defi nidos pelos temas centrais surgidos no processo de escrita dos memoriais dos alunos do projeto Conexões da UFRJ.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 29

do universo o qual vínhamos pesquisando. Percebemos que também éramos sujeitos pesquisados, entendemos o valor da pesquisa-ação e o quanto ela era importante dentro do projeto “Conexões de Saberes”.

Decidimos que seria interessante começar este capítulo falando sobre o lugar de onde viemos para que se possa compreender não só a trajetória de cada um, assim como trazer as subjetividades que durante muitas décadas fi caram escondidas na “gaveta dos guardados”.

Muitos de nós nascemos e fomos criados nas favelas5 , outros são moradores de áreas que fi cam afastadas do centro urbano da cidade do Rio de Janeiro. A vida nessas áreas populares não é fácil, como já dizia a letra do grupo Os Paralamas do Sucesso “Todo dia/ O sol da manhã vem e lhes desafi a/ Traz do sonho pro mundo quem já não queria/ Palafi tas, trapiches, farrapos/ Filhos da mesma agonia”. Contudo, a vida na favela tem seus encantos, suas alegrias. A favela é um lugar onde, também, mora gente guerreira; gente que luta pela sobrevivência; gente que luta por seus fi lhos e, acima de tudo, gente que luta por uma vida melhor buscando na formação escolar uma (quem sabe a única) oportunidade de mobilidade social.

Trajetória estudantilÉ justamente dessa gente oriunda de comunidades populares que luta por uma vida

melhor, que vamos falar. Vamos falar de nós mesmos, bolsistas, universitários que com muito esforço e determinação tentamos transformar o quadro de desigualdade existente no ensino público de nosso país através de nossas lutas e conquistas.

Apesar de todas as difi culdades encontradas por este grupo de universitários faz-se necessário ressaltar a importância de alguns fatores que contribuíram, no percorrer do caminho, para que as trajetórias de vida não fossem interrompidas, como a relação com amigos, familiares, namorados...; para a maioria dos bolsistas a caminhada só foi possível porque puderam contar com o apoio dos mesmos.

A chegada ao que considerávamos “a reta fi nal” (Universidade), para a maioria, foi tortuosa e demorada. Para alguns bolsistas que tiveram que passar pelo processo seletivo de vestibular por várias vezes, como João Paulo do 4º período do curso de História; Cláudia Penha do 6º período do curso de Letras e Kelly do 6º período do curso de Artes Cênicas, os quais, após dois, três e cinco anos, respectivamente, não agüentavam mais estudar, fazer provas de vestibular e nem sequer ouvir a palavra “vestibular”; no entanto, a força de vontade, associada à ajuda adquirida, fazem com que as pessoas de origem popular fi quem indignadas com seu contexto socioeconômico e tentem mudar a realidade na qual estão inseridas.

5 “Conjunto de habitações populares, em geral toscamente construídas e usualmente defi cientes de recursos higiênicos” (Dicionário Aurélio); Segundo Zaluar favela é o nome dado a espaços geográfi cos elevados (morros) que receberam esse nome em função das cabrochas que vieram acompanhadas dos soldados de canudos. “Eles tiveram que arranjar moradas. (...) As cabrochas eram naturais de uma serra chamada Favela , no município de Monte Santo, naquele estado. Falavam muito, sempre de sua Bahia, de seu morro. E fi cou a Favela nos morros cariocas”. (1999, p. 65); atualmente, defi ni-se também favela como conjunto de habitações populares, em geral de construção desorganizada e desprovida, na maioria das vezes, de recursos, habitacionais, além dos higiênicos.

30 Caminhadas de universitários de origem popular

Apresentamo-lhes alguns dos trechos que nos dizem, com muita eloqüência, o que estamos apresentando. João Paulo, assim descreve sua emoção:

Estudara e não tinha conseguido minha vaga no ensino superior, já estava ali

havia dois anos, tudo parecia desfavorável. (João Paulo – História)

Já Claudia afi rma que o motivo de sua persistência foi a ajuda que recebeu de sua irmã:

Não passei, fi quei arrasada, mas continuei tentando. Já no terceiro ano de pré-

vestibular, cansada e sem nenhuma visão de futuro para mim, eis que surge uma

luz e minha irmã decide estudar comigo. (Claudia – Letras)

Kelly consegue aprovação após tentar vestibular por cinco vezes, na primeira, estava grávida de seu primeiro fi lho:

Não larguei os estudos, me formei com barrigão. E grávida do meu primeiro fi lho

fi z vestibular e é claro que pela base que tinha não passei [...] por isso fi z cinco

vezes o vestibular até que consegui ser aprovada; meu pai fez um churrasco na

casa dele, como era de se esperar. (Kelly – Artes Cênicas)

Já outros, porque não tiveram como ingressar na Universidade mais jovens - como é o caso de Andréa M. Estrella do 6º período do curso de Letras, que só conseguiu ingressar treze anos após terminar o segundo grau - durante esse período precisaram trabalhar para sobreviver.

Às vezes, em alguns casos, o desânimo e as defi ciências escolares desses estudantes menos favorecidos economicamente foram tão grandes que eles não conseguiram acreditar que foram aprovados em uma Universidade Pública, como explicam João Paulo e Claudia, respectivamente:

Ainda não acreditava que era aluno da UFRJ. Busquei todas as desculpas

possíveis para o fato de eu ter passado; aquilo não poderia ter sido mérito

meu. Vai ver os professores estavam mais condescendentes nesse vestibular.

(João Paulo – História)

Existia uma grande torcida para que eu passasse e fi nalmente um milagre

aconteceu, na verdade eu nem fui ver o resultado, foram meus amigos que me

ligaram avisando que eu havia sido aprovada. Na hora não acreditei, fi quei dura

igual a um pau, depois da explosão de emoção e alegria eu pulava igual a saci.

(Claudia – Letras)

Apesar das difi culdades e das condições impostas pela vida, esses universitários de camadas populares conseguiram conquistar seus espaços dentro da Universidade Pública; a custas de muita dedicação e muita determinação, mostraram que é possível, sim, concretizar sonhos, até porque, como escreve Elaine Rangel, aluna do 6º período de enfermagem, “o fracasso e o sucesso andam próximos, mas o fracasso só é concretizado quando o aceitamos”.

Em alguns relatos podemos observar que além do sacrifício da maioria dos pais, outros familiares tiveram grande importância na vida escolar dos referidos bolsistas,

Universidade Federal do Rio de Janeiro 31

como tios, madrinhas e irmãos que incentivaram e/ou infl uenciaram os mesmos para que pudessem levar adiante sua trajetória estudantil. Pode-se até dizer que na maioria das histórias o gosto pelo estudo se deu por causa da convivência com seus familiares.

Elisabeth, estudante do 8º período de Letras, assim nos relata em seu memorial:

Cresci com uma tia mais velha que eu apenas cinco anos. Sempre que a via indo para a escola perturbava minha para eu ir também, até que minha mãe me ma-triculou em colégio franciscano. (Beth – Letras)

Para Jorge, estudante do 4º período de Letras:

Enquanto minha mãe sofria ao lado de meu pai, eu vivia com meus padrinhos em

um conjunto habitacional na zona norte da cidade. Lá, eles me puseram em boas

escolas públicas e me incentivaram aos estudos. Lembro-me do meu padrinho

dizendo: - Se eu não morrer, esse será doutor! (Jorge Ujá – Letras)

Andréa também relata em seu memorial:

Um dia descobri com um primo um método de aprendizado que era fascinante

(método da abelhinha);a partir de então queria ir para a escola a todo custo.

(Andréa – Letras)

Assim como Eloana, aluna do 2º período de Serviço Social:

Minha vida estudantil começou quando eu tinha por volta dos dois anos de

idade; eu permanecia junto a minha mãe quando ela passava a minha irmã seus

conhecimentos adquiridos até a quarta série, era o sufi ciente para me fazer querer,

logo depois, ter contato com as letras. (Eloana – Serviço Social)

Às vezes, esse incentivo, relatado por João Paulo, parecia acontecer de forma inconsciente.

...Quando não tinha ânimo para prosseguir nos meus estudos, as palavras e a

própria presença de meus tios me levavam a ir além. (João Paulo – História)

Às vezes os relatos nos mostram os sacrifícios dos pais na tentativa de proporcionar bem-estar aos fi lhos, e terminam deixando de ser para os mesmos uma presença cons-tante. Situações como estas são diariamente vivenciadas em diversos lugares do Brasil, já que estamos num país onde a desigualdade social afl ige várias pessoas. É o que nos descreve Rejania, estudante do 6º período de Serviço Social e, Patrícia Penha, 8º período de Letras, respectivamente:

Quando eu tinha 6 anos minha mãe não poderia fi car mais com a gente e precisava

de um colégio que fi casse com a gente durante o dia inteiro para que ela pudesse

trabalhar. Procurou muito até que encontrou um colégio católico em Paquetá. No

princípio somente eu e meu irmão mais velho fi camos, pois já tínhamos idade e no

ano seguinte meu irmão caçula conseguiu entrar, pois completou a idade mínima.

Nesse colégio, a gente ia segunda e só voltava sexta. Não era o que minha mãe

desejava, mas ela não tinha escolha. (Rejânia – Serviço Social)

32 Caminhadas de universitários de origem popular

Minha mãe trabalhava em casa de família fazendo faxinas e passando roupas,

levando minha irmã e eu. Um ano após o nascimento de minha irmã, nos muda-

mos para o bairro de Paciência, agora meus pais não pagariam mais aluguel,

mas minha mãe estava um pouco longe de suas faxinas, o que não fez com que

ela esmorecesse. Ela depois de um tempo deu um jeito de deixar minha irmã e eu

com uma moça, e voltou a fazer faxina. Quando dava ia com um tabuleiro a feira

para vender salgadinhos, e na volta fazia a feira, meus pais procuravam fazer de

tudo para que nada nos faltasse. (Patrícia – Letras)

Já em outros relatos nota-se que, mesmo os pais maravilhosos, em alguns momentos de desespero, talvez, terminem proferindo palavras que produzam decepção e, nessas circuns-tâncias, percebe-se que a perseverança do estudante se deu justamente para provar à família que se era capaz de driblar as difi culdades. Vamos observar isto nos relatos de Andréa e Elaine Rangel:

Havia passado para a segunda série primária, mas para a família de meu pai

isso não importava muito, pois eram quase todos semi-analfabetos, a parte

restante era analfabeta e, achavam que fi lho de pobre não precisava estudar.

(Andréa – Letras)

Agora com o ensino técnico concluído, já havendo estagiado deparei com o se-

guinte questionamento: o que deveria fazer trabalhar ou continuar estudando? Após

pensar bastante e contar com o apoio do meu pai optei por fazer pré-vestibular

em Madureira; apesar de ser mais um custo na renda familiar, ele assim preferiu.

Neste ano, ao sair o resultado não havia sido classifi cada. Para aumentar minha

decepção escutei do meu pai algo marcante: “Paguei pré-vestibular para você à toa”.

(Elaine Rangel – Enfermagem)

No decorrer da vida também surgem contratempos que podem nos levar a tomar direções que não pensávamos em seguir. Às vezes, pensamos em desistir no meio do cam-inho por vários fatores e o mais agravante, no nosso caso, é o fi nanceiro. As circunstâncias promovem questionamentos, mas não há obstáculo insuperável quando a força de vontade excede os limites:

Perto do fi nal do ano anterior fi cara desempregado, fi quei sem recursos, mas tive

tempo e disposição para estudar, já não dormiria mais durante as aulas. Se há males

que vêm para o bem, em relação à entrada na faculdade esse foi fundamental. O

preço foi alto, mas tenho consciência de que só assim pude passar num vestibular

de universidade pública, porque supri meu défi cit de ensino no curso aprofundei os

estudos em casa. Meu pai, com o fi nanciamento de passagens e paciência, foi vital

no decorrer do processo. No começo do ano seguinte, três anos depois de entrar no

pré-vestibular, consigo chegar à universidade. (João Paulo – História)

Em todas as histórias relatadas nota-se que a luta para vencer os obstáculos e continuar os estudos não foi em vão. Dentre nós, a grande maioria, é a primeira geração de universitários na família e esse fato acarretou mudanças não só para o estudante, mas para todos ao seu redor.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 33

Maria do Socorro, aluna do 8º período de Letras, assim nos narra:

Quando estava na sétima série, ensinei minha mãe a escrever o seu nome. Ela

tinha muita vergonha de colocar a digital do polegar no lugar de sua assinatura.

Foi uma vitória. (Maria do Socorro – Letras)

Na realidade, a nossa história de vida mostra que há mobilidade social, também, dentro das camadas mais desfavorecidas da população e nos mostra, ainda, que cada um a sua maneira, vai estruturar seu percurso na tentativa de se manter na Universidade.

Nesse percurso, as relações amorosas e a relação com os livros foram tão importantes quanto as relações familiares.

Na afi nidade com os livros podemos destacar o fato de que a maioria dos bolsistas teve acesso a eles muito cedo, ou porque tinham curiosidade e queriam desvendar o signifi cado deles e de seus símbolos, ou porque alguém os incentivava a ter contato com algum material de leitura o que, na maioria das vezes, acontecia com a família e com a escola, que têm papel fundamental na descoberta desse novo mundo para a criança. Podemos inferir que o contato, muito cedo, com os livros contribuiu para a caminhada acadêmica.

Retomando o memorial da Rejania e da Ralcicléia, esta última, aluna do 4º período de Dança, encontramos relatos importantes e comoventes sobre esta questão:

Entrei no CA onde alcancei o meu maior objetivo da época que foi aprender

a ler, pois eu sempre pegava os gibis da turma da Mônica e fi cava imaginando

o que aqueles círculos com letras queriam dizer [...]. Na primeira série ganhei

meu primeiro livro escolar, eu ainda me lembro da primeira historinha que

tinha no livro, era a de Lalá e do escuro. Também nesse mesmo tempo comecei

a ler livros de Ziraldo e livros de outros autores como o gatinho Mimi que só

pulava em botas. A leitura estimulava muito a minha imaginação. (Rejania

– Serviço social)

No CA comecei a entrar na leitura, e foi uma época de descobrir as palavras, eu

só tinha medo da prova de leitura, pois a pessoa que aplicava tinha uma cara

que me assustava, mas isso era nervosismo de criança. Lembro-me dos livros e

das músicas que acompanhavam meu aprendizado. (Ralcicléia – Dança)

Alguns bolsistas relatam que seu interesse pela leitura se deu por causa de gibis e livros infantis que viam com primos e amigos, como no caso da Andréa:

Lembro-me do dia que talvez tenha sido o único dia de muita felicidade na minha

fase infantil: havia aprendido a ler. Tinha, mais ou menos, cinco anos. Até então

dependia dos outros para saber o que tinha dentro dos gibis. Isso me incomodava

[...] Não consigo me lembrar de algo que tenha me deixado mais feliz na vida. Era

algo meu. Só meu, ninguém poderia mais me tirar! (Andréa – Letras)

Já alguns bolsistas, como a Alessandra, aluna do último período de Licenciatura em Letras, tiveram seus primeiros contatos com os livros e com a leitura em casa, com a mãe, com o pai ou com algum outro familiar.

34 Caminhadas de universitários de origem popular

Em 1984 ingressei na primeira série do ensino fundamental. Lembro-me que

aprendi a ler com minha mãe, e também ganhei uma caixa de lápis de cor por ter

tirado meu primeiro 10 (dez) na escola. (Alessandra – Letras)

Podemos considerar também que, às vezes, as relações com os livros estão implíci-tas na dedicação aos estudos. Isso pode ser observado quando um aluno consegue com freqüência tirar boas notas, como Kelly que sempre estudou em escolas particulares e nunca tirava menos de 8 (oito) em nenhuma matéria e como Viviane, aluna do 4º período do curso de Direito que sempre teve uma boa relação com os estudos, apesar de ter estudado em escolas públicas.

O que interessa nesta relação não é como e por que ela ocorre, mas sim que ela ocorra; pois um estudante que teve a chance de ter acesso ao aprendizado desde cedo, provavelmente conseguirá se articular verbalmente e na escrita com mais desenvoltura que um estudante com pouco acesso à leitura, além de absorver um gosto peculiar pelos livros:

Tinha cadastro na biblioteca da cidade, onde sempre pegava livro, li vários da série

“Vaga-lume”, na minha casa também tinha livros literários. (Elaine Caldeiras

– aluna do 4º período do curso de Dança)

Todavia, nem todos os bolsistas tiveram uma relação íntima e prazerosa, com os li-vros desde a infância. Em alguns casos o estudo na fase infantil era uma coisa meramente obrigatória, ou seja, estudava-se, lia-se porque havia uma necessidade de ser aprovado, porque a família cobrava. Às vezes essa relação mais forte com os livros só surgiu na fase adulta, em pré-vestibulares, quando a necessidade de ingressar em uma Universidade se fazia maior.

No que concerne às relações amorosas, como em toda história, existem aqueles que não gostavam de namorar na escola, como Andréa; já outros fi zeram desses namoros ver-dadeiras aventuras estudantis como Kelly:

“Eu beijei muito na hora do recreio e ainda namorava um primo, eu precisava

beijar muito, né?”. (Kelly – Artes Cênicas)

Em alguns casos a euforia da paquera ou do romance não teve um fi nal tão prazeroso, como é o caso de Elaine Rangel:

Conheci uns rapazes no primeiro ano do segundo grau e terminei me apaixonado

por um deles. Era uma loucura, um amor não correspondido, mas eu não conseguia

esquecê-lo, no dia da formatura, ele estava lá e eu não consegui resistir, convidei-o

para ser meu padrinho, porém quem seria era meu pai. Depois me arrependi por

ter entristecido aquele que tanto me apoiava, mas naquele momento só conseguia

pensar em viver um último instante com a pessoa pela qual eu era apaixonada.

(Elaine Rangel – Enfermagem)

Todavia não podemos deixar de ressaltar que o episódio supracitado foi um caso isolado na história da jovem estudante e que a referida paixão nunca conseguiu ir avante. Cabe res-saltar ainda que, bem mais tarde, foi um outro grande amor que a incentivou a continuar na faculdade, quando passava por momentos de difi culdades fi nanceiras:

Universidade Federal do Rio de Janeiro 35

Em meio a difi culdades é que se conhece o valor do amor e da amizade. Meu

namorado-amigo incentivou-me a continuar e a jamais desistir dos meus sonhos,

pois apesar daquele momento estar sendo ruim, futuramente eu poderia conseguir

oportunidades melhores. Com isso enfrentei três meses de escassez fi nanceira.

(Elaine Rangel)

A infl uência amorosa também é nítida na trajetória de Elaine Caldeira e Andrea Estrella:

Na UFRJ minha mãe não queria que eu colocasse dança, ela falava para tentar

algo que desse um emprego [...] quando peguei o formulário de inscrição, estava

em um período muito conturbado, me sentia só nessa luta e quase vacilei [...] Fui

para o curso acompanhada do meu namorado e compartilhava com ele minha

dúvida, então ele perguntou-me o que gostaria de fazer e respondi que gostaria

de fazer dança, e ele disse: - então coloca o que você quer fazer e depois agente

vê como é que fi ca. E fi z a minha escolha. (Elaine Caldeiras)

Enfi m consegui. Entrei para a Universidade Pública (UFRJ) devido a minha

determinação e a força que meu marido me deu, aliás, ele me deu força até para

cuidar de minha mãe nas horas mais difíceis. Temos nossos problemas como

todo mundo, mas saber que ele estava por perto foi fundamental para realmente

conseguir realizar meu sonho de ser uma universitária. Lógico que as pessoas

com as quais me relacionei ao longo da vida contribuíram para o fortalecimento

dessa decisão e conquista, mas foi a convivência com ele, que também tentava

uma vaga em Universidades Públicas, que ascendeu a chama do conhecimento

dentro de mim outra vez. (Andréa)

O mesmo pode ser dito de Érika, aluna do 14º período de Dança que só conseguiu rea-lizar o sonho de obter um computador com a ajuda de seu namorado e, de Eloana que tinha em seu esposo o mais crédulo em sua vitória. Quando se encontra a pessoa certa os sonhos passam a ser compartilhados a dois. Em alguns casos, algumas conquistas de vida só foram possíveis por esse motivo.

Finalmente eu sentia a emoção que durante um ano imaginava como era passar

para a universidade fazendo o curso desejado. A primeira coisa que fi z foi correr

para o telefone e contar para o meu marido, ele acreditava mais do que eu no meu

ingresso na faculdade. (Eloana Silva)

Buscou-se conhecer, também, com este trabalho, quais são os percalços pelos quais nós alunos passamos e quais são os sentimentos que nos nascem quando ingressamos no universo estudantil, seja ele, fundamental, médio ou superior.

Às vezes, algumas alterações domiciliares, como mudanças constantes do local residencial podem interferir no andamento escolar de forma positiva ou negativa.

Interfere positivamente quando conseguimos fazer novos amigos, nos adaptamos ao novo local e seguimos com o ano letivo sem maiores problemas nas disciplinas. Porém, quando as mudanças não nos permitem nenhuma das hipóteses citadas, podemos dizer que sua interferência é negativa.

36 Caminhadas de universitários de origem popular

O percurso estudantil de Elizabeth foi permeado de constantes mudanças no plano domiciliar e apesar de elas nem sempre serem bem vindas, a aluna conseguiu, depois de longa jornada chegar ao curso superior.

Meu pai recebeu a proposta de trabalhar em Brasília [...] e foi a primeira

vez que saí do meu estado natal [...] Passado o êxtase, veio a realidade, nova

escola, professora e novos coleguinhas [...] Eu amava ir para a escola, todos

eram muito atenciosos e educados, inclusive as crianças.

O ano termina e estamos de volta ao Rio[...] retornei para a mesma escola

da qual havia pedido transferência e para minha infelicidade fi quei na turma

da mesma professora da segunda série. Voltei a odiar os estudos e no fi nal do

ano, após o susto da recuperação em matemática, tomei vergonha na cara,

estudei e fi nalmente o ginásio me aguardava.

Em 1992 estávamos voltando para Brasília, mais uma vez no meio do ano.

Um ano depois, de volta ao Rio, só que agora mais mudanças. Todos os meus

colegas foram para outro colégio para cursar o segundo grau. Cheguei no

meio do ano e peguei o bonde andando literalmente, era uma tal de química

I, química II e por aí ia. Fiquei doidinha para poder acompanhar, dei uma

de autodidata, mas novamente encarei uma recuperação, a qual superei no

fi nal. (Beth – Letras)

A mudança residencial da família de Kelly para Campo Grande, quando ela ainda era criança, também não foi algo que possamos dizer, agradável, mas mesmo assim ela se adaptou ao novo bairro e à nova escola.

Ainda na quarta série no [Colégio] Luso Carioca com esse meu primeiro amigo,

meu pai anunciou que iríamos embora para Campo Grande, meu amigo chorou e

eu também, não queria fi car sem amigo. Fui embora, mudei de colégio e fui estudar

em outro colégio particular no centro de Campo Grande. (Kelly – Artes Cênicas)

Já para Andréa, a mudança para Santa Dalila (Magé) foi tão radical que ela não se adaptou nem ao novo local de moradia. Simplesmente ela se recusava a morar e estudar em seu novo endereço. Para ela, a distância dos amigos e de tudo que ela conhecia era algo terrível, porém ela não queria deixar de estudar. Como sua mãe trabalhava no Rio, não se incomodou com o fato de ela e de sua irmã continuarem na Escola Municipal Estados Unidos, no Catumbi; tudo para que os estudos das meninas não fossem paralisados.

Aos dez anos tivemos que nos mudar para Santa Dalila (Estado do Rio). Foi uma

catástrofe. Longe dos amigos e longe da escola (já havia sido transferida para o

colégio Estados Unidos no Catumbi). E dessa escola, transferência nem pensar!

Não conseguia me adaptar à nova casa nem ao novo lugar (Dalila). Vínhamos

todos os dias de madrugada e de trem para a escola; era cansativo, mas valia a

pena. (Andréa – Letras)

Universidade Federal do Rio de Janeiro 37

Observa-se que mesmo com todos os problemas ocasionados pela distância, cansaço e fome, a força de vontade e determinação das irmãs supracitadas não permitiu que elas aban-donassem os estudos. É essa determinação, é essa vontade de vencer obstáculos que faz com que nossas vitórias sejam tão saborosas.

Confl itos familiaresComo já havíamos dito no início do capítulo nem todas as bases familiares nos edifi cam

e nem todos os fi lhos são frutos do amor ou são programados como foi o caso de Beth.

A minha vinda ao mundo foi planejada, pois meu pai acreditava que já havia pas-

sado da hora de ter um fi lho e, então, um ano após o casamento dele com minha

mãe, cheguei como presente. (Elizabeth Gama – Letras)

Em alguns casos são negadas ao indivíduo quando criança sensações de carinho e afetividade e ao invés disso, o lugar que a priori deveria ser de apoio, é transformado, como nos relatam Jorge e Andréa, num ambiente de hostilidade:

Lembro vagamente da casa em que meus pais moravam [...] Minha mãe cansada

de tanto trabalhar e meu pai bêbado. E no fi nal, para completar, minha mãe sendo

espancada. (Jorge - Letras)

Um dia, porém, revoltada de ter de apanhar em casa (quase sempre sem motivo

- meu pai era alcoólatra) e ainda ter de apanhar na escola, resolvi revidar: bati

no garoto mais chato e folgado da turma. Fiquei de castigo na secretaria do

colégio o resto da aula, mas foi a glória, ninguém nunca mais bateu em mim!

[...] No 2º grau (hoje o ensino médio) já morando com minha tia, as difi culdades

também surgiram. Estudava no Colégio Estadual Amaro Cavalcanti (Largo do

Machado), já defasado na época, quase não tinha professores e nem sempre

minha tia tinha dinheiro de passagens para que eu fosse estudar, o jeito era

andar do Bairro de Fátima até o Largo do Machado; entre outras coisas tinha

ainda que dormir trancada com medo das investidas libidinosas de meu tio (era

horrível). (Andréa – Letras)

A situação acima relatada não é incomum na sociedade em que vivemos porque ape-sar de existirem leis e estatutos que defendam o direito dos cidadãos - principalmente no que se refere ao direito da mulher e da criança - a violência é um fator existente e que tende a ser mascarado pelo medo e pela vergonha pelos quais as vítimas são acometidas.

Vivenciar essa degradação é muito diferente de somente vê-las pela televisão. As marcas deixadas no indivíduo são profundas e, normalmente, arrastadas por toda a vida e, com certeza, vão interferir na fase escolar.

Os aspectos tanto positivos quanto negativos vivenciados ao longo da nossa trajetória de vida, não nos impediram de continuar sonhando, mas nos impulsionaram a buscar a conquista de uma vaga no ensino superior. Tantos foram os mestres, tantos foram os caminhos...

38 Caminhadas de universitários de origem popular

Não posso deixar de fazer referência aos grandes mestres da minha vida que

sequer chegaram a ingressar na universidade ou concluir o ensino médio, meus

pais, mas que representam os seres mais sábios que conheço. Pois, se hoje sou o

que sou, o sou por eles. Além da vida, eles sempre apoiaram muito os rumos que

minha vida escolar foi tomando, seja apoio moral, seja apoio fi nanceiro, sempre

me deixaram livre para tomar as decisões relativas ao encaminhamento dos meus

estudos, mesmo que não concordassem com elas. Foram as pessoas que sempre

acreditaram em mim e de tudo fazem para que eu possa concluir os meus estudos.

(Viviane - Direito)

ConclusãoComo se pode observar neste capítulo, apesar de nossas histórias terem sido per-

meadas de confl itos, não podemos dizer que não tivemos grandes felicidades durante nossas trajetórias.

Há várias questões positivas apontadas pelos bolsistas no que concerne a sua tra-jetória estudantil e, principalmente a sua entrada na Universidade. A grande maioria se sente orgu-lhosa e feliz por ter conseguido vencer esta batalha, bem como seus familiares e amigos; há também relatos de que a entrada na Universidade possibilitou várias oportu-nidades, dentre as quais o acesso a informações e a ampliação da capacidade de crítica.

A partir da escrita de nossos memoriais pudemos refl etir sobre nós mesmos e sobre o nosso papel na sociedade como agente de pesquisa e sujeito pesquisado. O que nos aproxima é o fato de sermos todos oriundos de áreas menos favorecidas economicamente e termos escolhidos como um de nossos objetivos de vida, apesar das difi culdades, o ensino superior público. Já o que nos diferencia é a singularidade de nossas histórias.

Michel Pollak (1988) em seu texto Memória, Esquecimento, Silêncio enfoca de forma clara a questão da memória (individual e coletiva), além de enfatizar que “sobrevivemos durante dezenas de anos com lembranças traumatizantes; lembranças que esperam o mo-mento propício para serem expressas [...] Em face dessas lembranças traumatizantes, o silêncio tem razões bastante complexas. Para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa, antes de mais nada, encontrar uma escuta.” ( p. 3). E, efetivamente, encontramos essa escuta no Projeto Conexões de Saberes, ao escrevermos nossas lembranças, nossas histórias de vida.

É importante ressaltar que a partilha dos memoriais fortaleceu a dimensão do coletivo. Foi possível, através do entrelaçamento de nossas histórias, percebermos que não somos apenas indivíduos, somos, acima de tudo, grupos mudando a realidade.

Às vezes, as más situações que passamos na vida nos causam feridas na alma, e nos fazem criar verdadeiras barreiras dentro de nós. Com isso, todos os nossos sonhos parecem ruir. Todavia é muito importante percebemos que a vida nos oferece constantes lições. Mais importante ainda é entendermos que nosso ingresso na universidade já é o começo da transformação do sonho em realidade. Vencemos a barreira do ingresso em um curso de nível superior em uma instituição de ensino público (federal), mas ainda estamos na luta constante pela nossa sobrevivência dentro da mesma.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 39

Referências bibliográfi casLAHIRE, Bernard. Sucesso escolar nos meios populares. As razões do improvável. Série Fundamentos. São Paulo: Ática, 1997.

POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. São Paulo: Revista dos tribunais Ltda, 1988.

Andréa Estrella Jorge UjáElaine Rangel

40 Caminhadas de universitários de origem popular

A religião nas nossas vidas:rumo ao ensino superior

Ele é o Primeiro, e o Último, o Manifesto e o Oculto,

e Ele tem conhecimento completo de todas as coisas.

(Surata Al Hadid: 3)

Este capítulo tem por objetivo lhes apresentar e analisar o caminho trilhado por jovens universitários no decorrer de suas vidas discentes. Mostrando-lhes os percursos e as barrei-ras que nós tivemos de passar, esses relatados em nossos memoriais, que entrelaçados, lhes ajudará a compreender as nossas trajetórias estudantis.

Após diversas leituras, observamos que dentre os dezessete memoriais, encontramos quatorze que citaram a religiosidade6 em seus textos.

Dedicaremos este capítulo a este tema que é de suma importância em nossas vidas, como força, infl uência e interferência nas nossas trilhas percorridas para alcançarmos os nossos objetivos.

Não temos como intenção explicar as várias religiões do Brasil, mas ressaltar a religiosidade presente na nossa sociedade, até nas vidas das pessoas que não professam uma fé dentro de uma doutrina específi ca. Tratando, assim, da palavra religiosidade não apenas como uma prática da religião, mas como crença de uma força sobrenatural, que as pessoas respeitam e dialogam.

Temos consciência das diferenças na prática de cada religião e não temos a intenção de colocá-las em um mesmo conjunto, sendo nós também de diferentes crenças (Elaine Caldeira, Érica, Rejania, Viviane, Patrícia, Cláudia - Religião Católica Apostólica Romana; Ralcicléa, Maria do Socorro, Paula, Eloana, Elaine Rangel - Evangélicos de diferentes de-nominações; Jorge - Espírita denominação Afro-brasileira; Alessandra, Andréia, Elizabeth, Kelly e João Paulo sem nenhuma doutrina específi ca), tentaremos falar em único discurso das intervenções sagradas nas nossas vidas e também na luta pela educação escolar e entrada na universidade.

Capít

ulo 3

6 Neste texto estamos tratando de religiosidade baseado na interpretação de Religião segundo - Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda - Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa:Religião [Do Lat. Religione] S.f 1. Crença na existência de uma força ou forças sobrenaturais, considerada(s) ser adorada(s) e obedecida(s); 2. A manifestação de tal crença por meio de doutrina ou ritual próprios, que envolvem em geral, preceitos éticos; 3. Restr. Virtude do que presta a Deus o culto que lhe é devido; 4. Referência as coisas sagradas; 5. Crença fervorosa, devoção, piedade; 6. Crença numa religião (v.religião 1 e 2) determinadas: fé, culto; 7. Vida Religiosa; 8. Qualquer fi liação a um sistema especifi co, de pensamento ou crença que envolve uma posição fi losófi ca, ética, metafísica, etc; 9. Modo de pensar ou agir; princípios.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 41

Convidamos o leitor a entrar numa refl exão de análise da importância da religiosidade na sociedade, de uma educação dentro das crenças, da relação com o sagrado, e nas interfe-rências para escolha de uma profi ssão e de construção da sociedade.

Religiosidade na história brasileiraO Brasil é um país de alta diversidade religiosa, portanto em nossa Constituição

Federal consagra-se como direito fundamental o uso liberal da religião, considerando que nosso país é laico. Portanto, o Estado tem o dever de proporcionar a seus cidadãos um âmbito de perfeita compreensão religiosa dando assim proteção e garantia do livre exercício de todas as religiões.

A sociedade brasileira em sua construção é um país religioso na sua essência, pois os primeiros habitantes já traziam dentro de sua raiz o culto e os ritos. A partir da sua colonização vieram outras culturas e assim outras manifestações religiosas que se chocaram com a já existente.

Os indígenas, nossos primeiros habitantes, deixaram como herança os cultos e ritos ligados a entidades espirituais que vem das matas e dos rios. Com a colonização, através dos portugueses se trouxe o Catolicismo que atualmente é a religião predominante no Brasil. Os africanos vindos do comércio escravo trouxeram práticas religiosas que deram origem às religiões Afro-brasileiras, ainda que enfrentando forte opressão dos seus senhores.

Chegando à segunda metade do século XIX começou a ser divulgado o Espiritismo no Brasil, atualmente considerado o país que possui o maior número de adeptos no mundo.

Nos fi ns deste mesmo século através dos imigrantes alemães chegou o Protestant-ismo. Nas últimas décadas aumentou-se o número de adeptos, alcançando uma parte bastante signifi cativa da população.

Com o crescimento das imigrações vieram outras religiões que hoje compõem inú-meras crenças fundamentadas em nosso país. Com a grande variedade destas não podemos nos deter nas especifi cidades de cada religião, não sendo a nossa intenção desvalorizar a importâncias de cada uma delas.

Observa-se que a maior parte de nossa população tem uma religião específi ca, mas não se pode esquecer as pessoas que não possuem uma doutrina específi ca.

Com isso a nossa população tem essa predominância de diversifi cação nos campos da crença, levando a pensamentos bem diferentes, que têm em comum a ligação a uma força sobrenatural, que é capaz de intervir na vida dos que acreditam.

Os preceitos culturais se fazem de formas diferentes, já que temos várias religiões e maneiras diversifi cadas de nos relacionarmos com o sagrado.

Importância da religiosidade na sociedade Na nossa construção como pessoas, não podemos deixar de mencionar a importân-

cia da educação religiosa, já que somos constituídos não apenas como corpo, mas como corpus. Se os maiores fi lósofos e pensadores criaram as suas fi losofi as com infl uências nas suas experiências e vivências, vemos então que é impossível abstrair a religião como muitas vezes é sufocada nas universidades, essencialmente em diversas disciplinas e tirada a possibilidade desta ser um conhecimento “cientifi co”.

42 Caminhadas de universitários de origem popular

Muitas vezes um discurso é abafado com a seguinte afi rmação: “você está misturando religião”; ou somos obrigados a passar o tempo de aula ouvindo o professor falar da falta da existência de Deus ou sobre algum mal que acham que algumas religiões fi zeram para a sociedade em algum período da história. É obvio que é importante falar de fatos que aconteceram na história, das épocas, e das diferentes formas de interferência que o corpo sofreu ao longo do tempo. Talvez em algum período a religião não tenha dialogado de melhor maneira com a sociedade, mas o problema é quando somos atacados sem uma refl exão sobre o que são as Instituições Religiosas hoje e a trajetória que tomam no universo contemporâneo.

O questionamento deste ser sobrenatural e criador da terra é bastante complexo em alguns campos das ciências, os pensamentos fi losófi cos foram criados em cima de expe-riências dos próprios fi lósofos, isto é, a observação da vida, da sociedade e o pensamento crítico constituíram suas fi losofi as.

O conhecimento científi co talvez seja afi rmado pela comprovação real (concreto, palpável), quando pergunta para alguém como pode afi rmar isto? A resposta é “foi com-provado cientifi camente”. Como o sobrenatural para muitos não é palpável, deixa de ser real e fi ca muitas vezes no campo da lenda, como se o homem tivesse criado Deus, como alguns tendem a afi rmar, no Período Neolítico quando o homem inventa a religião para aplacar a morte.

Será que não é um desafi o tornar o sobrenatural, Deus, um conhecimento cientí-fi co ou será mais fácil dizer que não existe? Talvez seja difícil torná-lo científi co, pois dizem que não se pode comprovar a sua existência. Pode-se comprovar a existência de algo com experimentações ou estudos que comprovem tal fato e para conhecer esta força sobrenatural são necessárias pesquisas em cima de experimentações. Os nossos relatos, dos memoriais, tornaram-se pesquisa para este livro.

Educação religiosaComo veremos nas próximas linhas, a religião muito nos proporciona para nos

constituir como cidadãos em busca de uma sociedade igualitária e na nossa formação como sujeitos vemos que ela nos ajudou para acreditarmos que poderíamos conquistar este espaço universitário que na maior parte de nossas vidas estava muito longe da nossa realidade e que hoje milhares de brasileiros vêem como um sonho impossível.

A educação quando bem construída proporciona pessoas melhores assim como um país melhor. Nossos pais ou outras pessoas que exerceram esse papel ou pessoas que as-sim se colocam à disposição de ajudar a trilhar este caminho viram na educação religiosa um marco importante nas nossas vidas. Esta se faz muito presente quando aprendida a importância do equilíbrio espiritual e o respeito pelos ensinamentos sagrados. Assim, vemos que quando somos atacados podemos dispor de mais uma ajuda na luta para não desistir de sermos vistos como parte integrante da sociedade. Observa-se isso nos relatos de nossos universitários:

Outra marca indelével na minha construção foi a religião. Meus parentes por parte

de mãe são evangélicos, e como, pela proximidade e maior afetividade que temos

sempre mais com os parentes da mãe, já nasci com formação religiosa. Houve mo-

Universidade Federal do Rio de Janeiro 43

mentos que me chateei dessa sina da qual não tinha como fugir e das limitações

que minha mãe me impunha tendo na maioria das vezes como justifi cativa os

desígnios de Deus (e, o que mais me indignava, do meu respeito sagrado pelas

suas ordens, por morrer de medo do “peso da mão do Senhor”). Hoje vejo

minha formação religiosa não só como o fator agregador dos meus parentes

como o meu ponto de equilíbrio social, mesmo que me encontre hoje “afastado

da fé”. (João Paulo)

Meu pai sempre foi muito religioso e fazia questão de levar minha irmã e eu

para a missa. O meu diálogo com Deus sempre foi intenso, direto e miraculoso

[às vezes ele ouvia as minhas preces e as atendia prontamente] (Cláudia).

Falando em religião, fui criada até a crisma pela minha mãe no catolicismo,

tive meus momentos bons e foi lá que aprendi a louvar ao Senhor e dançar para

Ele, além de conhecer o meu noivo que, com a graça de Deus, nos casaremos

logo. Por motivos de fuga das palavras na qual o padre e os líderes da igreja

estavam se posicionando, me distanciei do catolicismo e entrei para a religião

evangélica, e sou muito feliz na minha escolha. (Ralcicléa)

Da minha religião Católica foi a minha mãe que me colocou no catecismo e

sempre incentivou a participação na igreja, o meu pai não tinha religião, mas

também o agradeço, pois mesmo sem participar me levou para os encontros

e nos dava dinheiro para participar destes, quando bem pequena tenho a

lembrança a imagem do meu pai, nos ensinando a rezar. Mais tarde que iria

converter-se por muita perseverança da família, principalmente de minha mãe.

Hoje para a graça de Deus somos todos Católicos. (Elaine Caldeira)

Sempre fui muito ligada a questões religiosas. Mamãe sempre nos levava à

igreja. No mês de maio sempre me vestia de anjo para o ritual de coroação

de Maria, mãe de Jesus. Minha mãe fazia a roupa de anjo e confeccionava

minhas asas com penas de galinha que ela pedia ao senhor do abatedouro do

bairro, era também uma festa. Como podem ver, a arte sempre esteve presente

em minha formação. Ora através do violão de meu pai,ora através dos ritos da

igreja católica. Então em junho de 1990, realizei a minha primeira comunhão,

tive o primeiro contato, com o corpo e o sangue de Jesus, segundo a fé católica

a qual professo. “Pois a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue

verdadeira bebida” [Jo 6,55]. (Érica).

É a educação religiosa que desde a infância se preocupa em ensinar a seus seguidores a ética, o respeito e o culto pelas coisas sagradas e que, como seguidores, nos faz felizes por podermos dissipar coisas tão grandiosas e valiosas, pois além de respeitar o sagrado e os seus objetos, também aprendemos a cuidar da nossa humanidade.

44 Caminhadas de universitários de origem popular

Interferência do sagrado para a escolha da profi ssãoA integridade da sociedade não é digna com todos. Vemos todos os dias as diferenças

que as minorias sociais tendem a enfrentar e vemos nos esforços das nossas famílias a busca de ser melhores e diferentes. O texto de Érica Assis, Bacharel em Dança nos mostra suas lembranças.

Via a luta de mamãe e que mesmo assim não desistia jamais. Sempre nos ensinou

o caminho do bem e se preocupava com a formação de nossa dignidade.

Dizia sempre: ‘Não é porque somos pobres que levamos na testa atestados de

pobreza. Podemos ter atos diferentes, podemos ser diferentes do que dizem

que somos’.

A universidade é um espaço elitizado, apesar de muitos falarem que é um espaço de todos vemos que não é assim, senão não teríamos tantas pessoas de origem popular fora da universidade. Ainda somos vistos com intelecto insufi ciente para estarmos aqui, na universi-dade. Há uma diferença entre ser capaz e o que nos foi dado como o ensino público de menor qualidade, então fi caremos de fora? Na verdade o governo tem o dever de nos preparar no ensino público para a entrada na universidade, e esta fornecer subsídios para a permanência destes estudantes tanto do ponto de vista intelectual (o que seria um nivelamento), quanto do sócio-econônimo. Porém enquanto isto não aconteceu na política, muitos órgãos não governamentais se dispuseram a fornecer subsídios educacionais para o ingresso na univer-sidade, um desses são as Instituições Religiosas que ajudou-nos a alcançar o diferencial e nos proporcionou escolas e pré-vestibulares comunitários, como nos relatam as estudantes universitárias:

A vontade de estar perto de meus amigos de paróquia me fez sair do pré-vestibular

da Tijuca e ir para um novo em minha paróquia. (Rejania)

Cheguei até a fazer um pré-vestibular comunitário promovido pela igreja católica

de um bairro próximo, durante um período, mas não foi muito tempo. Mas mesmo

assim não desanimei. (Érica Assis)

A religião vê a educação escolar como importante para o ser humano, o estudo das ciências e sua refl exão. Algumas pessoas tendem a afi rmar que a ciência se separa do sen-sível e da espiritualidade. Na realidade, uma completa o outro, os dois aspectos foram dados por Deus, a sua criação, o homem. Alguns sem uma espiritualidade dentro de uma doutrina pensam que os que a praticam são pessoas fechadas, vivendo em um mundo preso aos seus ensinamentos, que se restringe somente aos seus templos e com portas fechadas. Veremos nos relatos mencionados neste capítulo que esses ensinamentos se transcendem, somos mili-tantes tanto nas nossas condições espirituais quanto na perseverança de amor pelo outro, pela sociedade.

Quando eu tinha 6 anos minha mãe não podia fi car mais com a gente e precisava de

um colégio que fi casse com a gente durante o dia para que ela pudesse trabalhar.

Procurou muito ate que encontrou um colégio católico em Paquetá. (Rejania)

Universidade Federal do Rio de Janeiro 45

O único contato pedagógico que tive antes de cursar o CA foi na igreja, da qual

sou membro até hoje, lá eram realizadas diversas atividades, tais como: pintura,

modelagem, corta e cola além das histórias bíblicas que eram contadas e as crian-

ças as encenavam. (Eloana)

A religião nos faz refl etir sobre a sociedade, a sua estrutura, os acontecimentos, o ser social e, nesta busca, apóia a importância de os participantes da sua estrutura serem profi s-sionais formados, e nas diversas áreas de atuação; pessoas que além de sua profi ssão assim escolhida tenham dentro de si a busca da espiritualidade, do culto e do equilíbrio da sociedade, como veremos abaixo:

Fui para a casa de meu zelador, Luís d´Oxossi e me iniciei no candomblé aos

vinte e um anos. Sou raspado de Iansã, orixá guerreira, que me auxilia nos

momentos mais difíceis da minha vida. Na casa de candomblé achei-me na vida,

descobri um anexo da minha família e é lá que recupero as minhas forças para

continuar na luta. Se hoje estou na Universidade, eu agradeço ao meu zelador.

Afi nal de contas, foi ele quem me disse: vai estudar, você vencerá através dos

estudos! (Jorge Ujá – Português/Grego)

Nesta mesma época comecei meu envolvimento na Igreja, não só militava, mas

me envolvia seriamente. Aprendi muito com os religiosos, acredito que este

envolvimento tenha sido um dos fatores pelos quais eu pensei um dia “fazer

a diferença”. Principalmente no reconhecer que DEUS estaria sempre ao meu

lado. (Maria do Socorro)

A prática da religião faz parte da formação da estrutura da personalidade do indivíduo. Muitas vezes a prática que desenvolvemos nos grupos religiosos faz querermos crescer e aprender mais para assim ser aplicado de melhor maneira, o aprendizado. Por exemplo, uma dança que adore o seu Deus e dialoga com Este, uma simples doação que faz entrar em con-tato com a sociedade, com as minorias sociais; um ato de ensinar, entre outros, transcendem, crescem, interferem em nossas vidas. A relação com o sagrado aumenta a cada instante que o conhecemos mais; a ponto de dialogar com todo o seu ser e nos faz sermos profi ssionais que, além de atuar neste espaço sagrado, vão além daquele espaço originário que foi talvez a primeira semente de escolha para atuarmos e sermos pessoas da sociedade.

Muitas destas experiências infl uenciaram a escolha profi ssional, veremos nos relatos respectivamente das nossas universitárias Rejania de Serviço Social, Cláudia de Letras-Lite-raturas e Érica Assis Bacharel em Dança:

A cada aula que passa me orgulho mais e mais da minha futura profi ssão. Na

época do vestibular nunca tive dúvida sobre qual profi ssão escolher, mesmo sem

saber na realidade como se dava a atuação do assistente social. Contudo, tinha

ciência que iria além de uma simples caridade, pois ninguém passaria anos em

uma universidade para fazer o que eu fazia no grupo jovem, isto é, dar cesta básica

e roupas para a população pobre. Sabia que era algo além. Eu via as injustiças

sociais e queria ter sabedoria para poder atuar, por isso resolvi fazer Serviço

Social. (Rejania)

46 Caminhadas de universitários de origem popular

Mais tarde minha mãe me incentivou a fazer a crisma e gostei tanto que acabei

me tornando catequista. Desde cedo a vontade de lecionar me perseguia e hoje

eu vejo que era Deus escrevendo certo por linhas tortas. (Cláudia)

Sou refl exo de minha história, foi tudo que vivi que me constitui a pessoa que sou.

Hoje estou à frente do projeto de ação social, Servos de Davi, dentro da Igreja

Católica; faço parte da comissão estadual de Dança da Renovação Carismática

Católica no Rio de Janeiro porque acredito que a dança é a extensão da ação do

sagrado em nós. Pois a dança tem como veículo o mesmo que tem a vida: o corpo,

que é criatura do criador. Sou criatura e isso me faz artífi ce do criador que me

gerou no íntimo do ventre de minha mãe. (Érica)

Relação com o sagradoDeus em sua essência é sagrado, santo em toda a sua totalidade, por ele tem-se veneração

que consiste no respeito e cuidado. O contato com o espiritual, o coloca numa entrega total a um ser que sabe de todas as suas necessidades. Muitas vezes parece que o almejado nunca será alcançado, mas o Deus sabe o que é necessário e o momento certo para o seu desejo se estabelecer, como vemos nas palavras da universitária Rejania de Serviço Social:

No meu primeiro ano só quis conhecer como era a prova, sabia que não estava

preparada ainda. O que eles exigiam era muito além do que eu tinha aprendido na

escola pública. Mas isso não serviu de obstáculo pra mim, pois eu queria entrar

neste universo e sabia que minha vaga estava assegurada por Deus para que eu

entrasse no momento certo.

A maioria das pessoas inicia sua relação com o sagrado através de diferentes ritos. A importância daquele momento ao decorrer do tempo aguça mais a compreensão em relação ao Ser sagrado, assim como nos relataram os universitários:

Quando completei 8 anos entrei no catecismo, mas como fazia muita bagunça a freira

resolveu me afastar por um ano do catecismo por achar que não estava preparada

para dar tamanha responsabilidade. A princípio agradeci, pois me sobraria tempo

para travessuras, pegar frutas e me enfi ar no meio do mato, mas quando minha turma

fez a primeira comunhão eu fi quei triste por não participar daquele momento. No

ano seguinte resolvi me comportar no catecismo e recebi pela primeira vez Jesus

na hóstia consagrada O catecismo durava apenas um ano pois no colégio tínhamos

constantemente ensinamento religioso, então a preparação era apenas para a pri-

meira eucaristia, já que nós já conhecíamos Jesus. (Rejania – Serviço Social)

Mudando de assunto eu comecei a fazer a catequese com nove anos, mas quando

estava no meio do ano eu peguei hepatite e perdi o ano letivo; levei três anos para

fazer a catequese. Minha primeira comunhão foi linda com direito a festa e tudo.

(Cláudia – Português-Literaturas)

Universidade Federal do Rio de Janeiro 47

Entrando no princípio da fé podemos pensar nos vários prognósticos que esta palavra pode traçar nas nossas vidas, sendo ligado ao sagrado, a algo sobrenatural, algo místico de ascendência, ou ligar a algo como padrão de crença:

É acreditar que as coisas são possíveis de acontecer independente dos fatos, que

para isso Deus é o principal autor. (Elaine Rangel)

“É o fi rme fundamento das coisas que não se vêem, mas se esperam” - He-

breus. (Paula)

É a questão de acreditar, mais do que acreditar é confi ar, se abandonar.

(Elaine Caldeira)

É esperar em Deus o impossível acontecer, pois ele acontece, afi nal “o melhor de

Deus está por vir”. (Eloana)

É simplesmente acreditar numa coisa que não foi comprovada cientifi camente.

(João Paulo)

É ter a certeza de que existe algo grandioso no universo capaz de mudar as coisas

em nossas vidas. (Andréia Estrella)

Fé é acreditar em algo ou em alguma coisa ainda que invisível com todas as

suas forças mentais, capaz de dominar toda a química do seu corpo e mente.

(Kelly Reges)

Fé é acreditar no que não se vê, fé é sentido. A fé é como sol em dias nublados e

chuvosos; nós não o vemos, mas sabemos que ela está lá. Com a fé sou forte como

um gigante e brilhante como uma estrela. Quem tem fé, tem poder. (Jorge)

É acreditar que nada é impossível para o autor da vida, meu lindo Deus.

(Ralcicléa)

Talvez seja difícil compreender o sentido e a relação com o sagrado, pois vemos sempre um debate sobre os escritos sagrados e os discursos ditos “científi cos” que os colo-cam em outro campo e duvidam desta existência. A espiritualidade não pode ser explicada somente por palavras e estudos escritos, ela é uma prática que apenas experimentando-a pode-se compreender, é metafísico, se transcendem dentro de cada pessoa, como vemos na experiência vivida pela Paula de História:

Durante este período me batizei na igreja evangélica e tive minha primeira expe-

riência pessoal com Deus. Cresci num lar evangélico, sempre com o fundo sonoro

de hinos de louvor a Deus, pois meu pai é músico na igreja, mas o meu encontro

com Jesus se deu bem depois. A partir deste encontro, comecei a me interessar

mais pelas coisas de Deus e aprender mais sobre a Bíblia. Muitas histórias bíblicas

aprendi neste período. (Paula)

48 Caminhadas de universitários de origem popular

Dedicamos este capítulo à refl exão do campo cientifi co no que diz respeito à religiosi-dade. Nossos relatos explicitam as suas mais diversas formas de expressão. Temos a práxis vivida e experimentada na nossa vida universitária. Para concluir, citamos o relato de Paula, que ilustra, na nossa vida cotidiana, a existência do sobrenatural e do divino.

Paro por aqui, mas minha trajetória está apenas no começo. Muito a viver, muito

a aprender, muito a dizer... Em uma outra oportunidade talvez...

...Porque “Ele [Deus] faz coisas grandes, que não se podem esquadrinhar, e

maravilhas tais, que não se podem contar” (Jo 9,19). (Paula – História)

Referência bibliográfi caBRANDÃO, Carlos Rodrigues. Fronteira da fé – Alguns sistemas de sentido, crenças e religiões no Brasil de hoje, In: Estudos Avançados 18 (52), 2004. São Paulo: USP

Elaine Caldeira Ralcicléa de Araújo Rosa

Universidade Federal do Rio de Janeiro 49

Contribuições das memórias estudantis para a construção das trajetórias de vida

“Os homens fazem sua própria historia,

mas não a fazem sob circunstâncias

de sua escolha e sim sob aquelas com que

se defrontam diretamente,

legadas e transmitidas pelo passado.”

(Karl Marx, Dezoito Brumário)

A escola é uma instituição muito discutida na contemporaneidade. É uma organização social que certamente está presente nas memórias dos indivíduos, sejam eles de origem popular, como nós, ou não.

É por meio da viagem à nascente de nossas lembranças que buscamos respostas para entendermos o que somos hoje na sociedade em que estamos inseridos. Poderemos entender, também, o quanto as nossas relações estudantis, são infl uenciadas, dentre outras, pelas relações históricas, familiares e sócio-culturais.

O presente trabalho visa a refl etir a respeito da importância do papel da escola em nossa for-mação. Não somente enquanto aprendizado e conquista do saber, mas, especialmente, enquanto formação cidadã no âmbito da construção de valores e na desconstrução de preconceitos.

A fi m de exemplifi car as infl uências da escola nas nossas vidas, colhemos fragmentos do memorial de nossos colegas participantes do Projeto Conexões a respeito das diversas formas de infl uência que sofreram ao longo de suas vidas escolares. Nós, universitários de origem popular, trazemos em nossas memórias, signifi cativas marcas dessa atuação:

Elizabeth, Jorge, Ralcicléa, Maria do Socorro, Paula e João Paulo relembram momentos difíceis na instituição escolar, seja ela a escola ou a universidade.

Durante uma das aulas da alfabetização, lembro-me como se fosse hoje, eu

conversava com um coleguinha e de repente ouvi o meu nome, era a hora da

argüição. Entrei em pânico e não deu outra, não consegui ler nada. Pra quê? A

professora levantou-se, agarrou a minha orelha, arrastou-me sala a fora e pôs-

me de castigo, sendo que só retornaria quando soubesse ler o que estava escrito.

(Elizabeth Gama)

1ª Aula: me senti um burro, um imbecil; vi que o vestibular não avalia ninguém

se está apto ou não para cursar uma universidade. Vi o quanto o estudo estava

deturpado nas escolas de ensino fundamental e ensino médio. (Jorge)

Capít

ulo 4

50 Caminhadas de universitários de origem popular

Lembro de uma vez, na primeira série, que estava numa prova de Educação Artís-

tica e tinha que pintar um coelhinho. Eu estava nervosa com o tempo que estava

acabando e pintei o coelho todo de preto e depois chorei de chegar a soluçar.

(Ralcicléa)

Sei dizer que nas 1ª e 2ª séries primárias (hoje ensino fundamental), tudo foi festa,

notas boas, letra bonita... mas a partir da 3ª série comecei a sentir o peso de não

ter alguém que me auxiliasse em casa, não porque não quisessem, mas pelo fato

de meus pais serem analfabetos. (Maria do Socorro Lira)

Se tenho lembranças boas deste colégio, muito mais são as ruins. As humilhações

que sofria por parte dos funcionários, dos professores e dos próprios alunos, pois

meus materiais eram sempre inferiores aos deles, minhas roupas sempre inferiores

e na hora da merenda era sempre constrangedor... Não era o meu mundo. Eu o

odiava e ao mesmo tempo o amava. (Paula)

Uma das professoras repetia a todo tempo para a turma que éramos burros e que

a professora anterior só podia estar embriagada quando nos passou de série,

dizendo ainda que bons eram os alunos a quem ela própria tinha dado aula no

ano anterior. (João Paulo)

Já Elaine Rangel, Rejania, Cláudia e Kelly revelam lembranças muito positivas da escola.

Quando criança, a escola era um local de diversão, assim como também era uma

extensão da minha casa, em minha mochila, levava para escola uma mamadeira

que na hora do recreio a professora me dava. (Elaine Rangel)

Meu irmão nos ensinou uma música que eles cantavam no colégio assim: “Tá quase

na hora o sinal vai bater, a minha mãezinha contente eu vou ver, adeus professora

pra casa eu irei, porém amanhã por aqui estarei”. (Rejania)

A escola era uma válvula de escape, uma fuga, pois lá eu era e me sentia im-

portante, na escola não importava ser branca ou preta, gorda ou magra, bonita

ou feia tudo isso fi cava em segundo plano, pois na escola eu encontrava o meu

paraíso. (Cláudia)

Quando tia Zenilda saía da sala pedia para fi carmos quietos. Lembro das risadas

da turma com as palhaçadas de Marlon. Um dia, a professora deixou-nos fazendo

um exercício e disse que não queria ouvir um pio e se ouvisse tiraria ponto da

turma. Saiu e fechou a porta. Ela fi cou do lado da porta atrás da parede vigiando-

nos, porém a turma logo descobriu. Ela imitava o relinche do cavalo a turma

ria, porém sem fazer um pio. Lembro ainda de Jackson, um colega, rindo, todo

vermelho, sem poder fazer barulho. (Elaine Caldeiras)

Universidade Federal do Rio de Janeiro 51

Na escola era muito bom, eu acordava cedo sozinha e ainda acordava meu pai

para ir trabalhar. Eu não faltava um dia. (Kelly)

Erica, Viviane, Eloana, Patrícia e Andrea misturam as lembranças escolares com as memórias familiares: mudanças econômicas que acarretaram em alterações em suas vidas estudantis; impossibilidades dos pais em acompanhar mais de perto as suas vidas escolares e doenças familiares.

Com a doença de meu Pai eu e meus irmãos, perdemos o benefício de bolsa

na escola que estudávamos. O benefício havia sido concedido pela empresa de

transporte ferroviário que papai era empregado. Mas encostado pelo INSS a

empresa suspendera o mesmo. Tivemos que sair da escola que estudávamos que

era particular e fomos para uma escola estadual. Para mim foi uma mudança

signifi cativa, mas não porque era privado ou público, mas devido à diferença de

estrutura entre as duas instituições. (Erica)

A minha paixão pela escola começou muito cedo, quando eu ainda não tinha idade

para entrar nela [...] Meu pai fez um grande sacrifício para manter minha irmã

e eu em nossas escolas. No entanto, apesar de sua vontade meu pai já não tinha

como arcar com nossas mensalidades. (Viviane)

Em meio à corta e cola, copia, cobre, liga etc, aprendi a ler por volta dos seis

anos, porém fui para a escola somente com sete anos para cursar o então CA;

não freqüentei creche ou jardim, pois mamãe achava-me frágil de mais por eu

ser bem magrinha. (Eloana)

Meus pais trabalhavam muito, como já disse, procuravam dar o melhor para suas

fi lhas. Minha irmã reclama um pouco (até hoje) da ausência de minha mãe em

suas reuniões escolares, já que ela tinha que trabalhar e nem sempre podia pedir

dispensa do serviço. (Patrícia)

O que me fazia continuar era o fato de que eu não queria ter a mesma vida de

miséria e surras que a minha mãe e sabia que só mudaria se estudasse (como

minha tia, professora de música da UFRJ e cantora do Municipal), e também

pelo fato de que normalmente eu só comia na escola e nas casas das patroas da

minha mãe. (Andrea)

É através das nossas vozes, produzidas pelas vozes dos nossos colegas, das nos-sas experiências, das nossas leituras e das contradições de emoções que a instituição escolar provoca, esperamos fazer borbulhar, em vocês leitores, indagações acerca de suas memórias.

Não nos colocamos como meros autores de nossas histórias pessoais, através do veículo da escrita que utilizamos, mas como co-autores ativos da transformação social através do direito de acesso e permanência na universidade. Para muitos parece utópica, mas para nós, é preciso apenas “conexões sábias e verdadeiras”, para que ela aconteça.

52 Caminhadas de universitários de origem popular

Escola: trabalhar ou estudar?Várias são as contribuições pertinentes à trajetória de cada indivíduo, as quais são

marcantes e fazem com que cada pessoa carregue em sua história peculiaridades únicas e singulares. Dentre várias formas de contribuições estão às relações estudantis. Estas incluem as relações fraternas, as diversas formas de disputas – de conhecimento, de prestígio, de popu-laridade - que se estabelecem na escola, bem como as relações de poder e as amorosas.

Focando mais de perto o ambiente escolar, veremos as diversas e distintas funções delegadas aos alunos. Philippe Perrenoud (1994) denomina o percurso escolar do aluno como um ofício.

Culturalmente, a imagem que se tem de um aluno é de mero recebedor ou reprodutor dos conhecimentos fornecidos pela escola. Sob esta concepção, na maioria das vezes, não são permitidos questionamentos, discordâncias e posicionamentos. Esta postura é, em parte, fruto da escola tradicional.

Quando o aluno se opõe ao esquema escolar sua postura é vista ou caracterizada como atitude de indisciplina. Podemos observar no relato de João Paulo.

O silencio não duraria muito, dois novos colegas chegam-se e iniciam uma conversa

que durou até a aula de inglês, na qual tomei minha primeira advertência verbal

em aula. Começaria minha vida de bagunceiro profi ssional junto com quase toda

turma. (João Paulo)

O ofício de aluno não está ligado às formas de remuneração em sua função. Seu papel é passivo e compreendido como um cumpridor de uma obrigação, no caso estudar o que lhe ensinam para entrar no mercado de trabalho e assumir as suas responsabilidades.

Perrenoud (1994) indaga se vamos à escola para viver ou para ser preparado para a vida. Segundo o autor os adultos respondem que as duas coisas se complementam. A construção que o aluno faz em sua caminhada não se limita somente ao âmbito escolar ou o de sua vida, ele engenhosamente as harmoniza,. estabelecendo relações que se darão em vários campos como veremos nos relatos de Cláudia, Érica e Eloana por exemplo, que estabeleceram relações afetivas com a escola.

Na escola eu era uma heroína, me sentia super poderosa, por isso desde cedo a minha relação com a escola sempre foi muito boa e também o era com todos aqueles que faziam parte do corpo docente. (Claudia)

Foi nesta escola que tive meu primeiro amor escolar daqueles de fi lme de ro-mance. (Érica)

A minha primeira professora me chamava de tetéia, o que levou minha mamãe a ir a escola tirar satisfações tendo em vista que quando criança tinha em sua casa um animal que era chamado assim, a professora então explicou que signifi cava graciosa e mamãe se acalmou. (Eloana)

O ofi cio do aluno só é reconhecido quando questionado perante a sociedade como anda o seu desenvolvimento na escola, se tem difi culdade ou se é bom aluno; em geral, quem lhe dispara essas perguntas é algum adulto, que mesmo sem intenção, amplia o ambiente escolar e conseqüentemente, sua condição de aluno.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 53

Muitos alunos não percebem que desempenham um ofi cio. A escola é um espaço em que as relações estudantis são construídas exercendo infl uências diretas na vida do aluno; de forma positiva ou negativa elas farão parte de sua bagagem.

Pudemos observar pelas memórias de nossos colegas que nas famílias de classes popu-lares o aluno está apenas cumprindo com uma obrigação de permanecer um período na escola e quando este se esgotar ele deve encarar o mercado de trabalho. Muitos de nossos colegas superaram esta questão e escolheram cursos pelo seu desejo e não pelo apelo fi nanceiro, como nos conta Elaine Caldeiras.

Escolher Dança foi um desafi o, é um curso artístico [...], o dinheiro faz parte e é

muito necessário, mas minha escolha foi de coração, não adianta. Não seria feliz em

nenhuma outra profi ssão e seria uma péssima profi ssional. (Elaine Caldeira)

O aluno transpassa a margem da obrigação e busca, na escola, o saber. É claro que este interesse não é percebido de imediato pela maioria dos estudantes, uma vez que não é promovida na escola a vontade harmoniosa com o saber. A busca constante para não fugir da regra da escola – tirar boas notas – realça o medo de ser oprimido, por pais e professores, por não cumprir as “leis” da escola e sofrer as discriminações por parte de sua comunidade. João Paulo nos conta o orgulho que sentia em fazer parte do grupo dos “bons alunos”.

[...] motivo para evoluir nos estudos, na minha luta por reconhecimento dos vizi-

nhos. Se hoje isso me trás timidez, antigamente o ego se infl ava com as palavras de

elogio quanto ao meu grau de instrução. As constantes exaltações me impuseram

disciplina para avançar nos estudos. (João Paulo)

A escola é capaz de reverter esse quadro, como aconteceu com a Rejania e a Ralci-cléia. É no seu espaço que o aluno se mantém a maior parte do tempo, e pode criar laços positivos de amizades.

Quando fui ao colégio pela primeira vez, fi que feliz. (Rejania)

No pré, foi o ano das descobertas e das amizades, onde conheci a Simone, o Eric

e o Robson, pessoas que me acompanharam até o último ano que fi quei nessa

escola. (Ralcicléa)

O aluno não vivencia confl itos somente na escola, alguns fantasmas o perseguem até a sua casa. A cobrança existente no espaço escolar estende-se até a casa do aluno. A cobrança pode acontecer de forma intencional ou não, levando o aluno, de certa forma, a um constrangi-mento. Ele percebe que o espaço familiar não se distancia do escolar, principalmente se há irmãos na mesma fase escolar em que ele se encontra.

Com tanto estudo, conseguia tirar boas notas, o que gerou cobrança dos meus

pais, professores e colegas, parecia que havia sido criada uma disputa, na qual

eu me sentia obrigada a ser sempre a melhor. (Elaine Rangel)

Era eu e meu irmão, nunca aprontei, mas meu irmão me deixava cheia de vergonha

ele era terrível [...] eu fui passando de ano e ele fi cou para traz, dois anos atrás

de mim. (Kelly)

54 Caminhadas de universitários de origem popular

O curso foi bem, [...] como ninguém passou no vestibular daquele ano [...] seja

pelo cansaço de fazer vários vestibulares e não alcançar seus objetivos ou mesmo

por alcançar seus objetivos, conseguindo passar no vestibular de alguma univer-

sidade pública como foi o caso do meu irmão. (João Paulo)

O que não pode acontecer é o abatimento e nem a desmotivação por parte do aluno. As difi culdades são passiveis de acontecerem a qualquer pessoa ao longo de sua trajetória de vida. Os jovens tornam-se vencedores ao remar contra a maré forte do preconceito, da difi culdade de continuidade e fi nalização dos estudos. Vejamos o que Viviane, Maria do Socorro e Eloana escrevem sobre essa questão.

Quase não acreditei e fi z questão de comprar a Folha Dirigida para verifi car se

meu nome estava na listagem, e lá estava ele. (Viviane)

No ano seguinte (1997) fui aprovada no vestibular e fui cursar a Faculdade de Letras

na UFPA-Campus Altamira. Foi tudo muito rápido, meus pais fi caram muito felizes,

pois eu era a única da família a passar no vestibular. (Maria do Socorro)

Agora pais, os meus sogros e principalmente o meu marido se orgulham de mim,

mesmo ainda faltando muito para terminar a graduação, eu já consegui vencer

as barreiras que me impediam de chegar até aqui. (Eloana)

Pudemos perceber com as nossas experiências e de nossos colegas que ser aluno é mais do que uma obrigação de criança. É um ofício que, no seu exercício cotidiano, contribui para a formação de todos nós.

Algumas refl exões sobre o percurso educacional brasileiroOs problemas educacionais fazem parte da história do Brasil desde o período colonial,

quando foi dada ênfase à escolarização da elite. A chegada dos padres Jesuítas no Brasil, em 1549, é um marco da educação no país. Após o período jesuítico, surge a reforma pombalina, a qual visava a implantação do ensino superior. Esse, porém, só é implantado com a chegada da Família real em 1808. No entanto, no que se refere ao ensino primário, tudo permanecia estático, ou seja, continuava negligenciado e até o período republicano o ensino secundário se mantinha por meio da iniciativa privada.

Assim, iam políticas educacionais, vinham políticas educacionais e nada ou quase nada era feito para melhorar a educação fundamental, pois não era de interesse político. A educação se encontrava ainda voltada, exclusivamente, para os interesses das classes que tinham o poder concentrado em suas mãos, nesta época, os grandes fazendeiros, a nobreza e os altos funcionários.

Podemos estabelecer uma relação de pertinência entre o Brasil Império e os nossos dias. As diferenças de oportunidade de estudo se refl etem ainda hoje, em especial nas classes populares.

Os discursos dos universitários João Paulo e Maria do Socorro Lira exemplifi cam bem essa realidade:

Universidade Federal do Rio de Janeiro 55

...Findado o segundo grau, como não respirava um ambiente de vestibular e pouco

sabia sobre o ensino superior, fui em busca de emprego, achando que o segundo

grau bastava para arrumar um trabalho que me daria estabilidade fi nanceira.

(João Paulo)

...Terminei o ginásio e não prossegui com o segundo grau porque tinha conseguido

um emprego num restaurante. O trabalho tomava todo o meu tempo, mas gostava

porque ajudava em casa. (Maria do Socorro Lira)

No entanto, o fato em questão não signifi ca que o estudo seja menos valioso do que o trabalho, pelo contrário. Atualmente a educação é exaltada entre os brasileiros, uma vez que a mídia, os discursos políticos e o mundo do trabalho têm um discurso unívoco em favor da educação. Apregoam sua necessidade para se conseguir bons empregos.

Entretanto a urgência requerida pela sobrevivência, a necessidade diária de se ter um trabalho para pagar as contas, a moradia e principalmente o alimento fazem com que o trabalho seja mais relevante, obrigando muitas famílias a deixarem o sonho do estudo postergado. O fato de saberem que a educação é um investimento em longuíssimo prazo nem sempre com retorno garantido, muitas vezes, os faz investir na urgência da necessidade.

A problemática descrita acima está explícita em alguns depoimentos de nossos colegas universitários, quando se referem à escolha que seus pais tiveram que tomar em relação ao poder estudar ou a ter de trabalhar.

...vindo de família popular, meus pais em suas vidas tiveram que escolher entre a

escola e o trabalho sendo o último suas opções. (Elaine Caldeiras)

Podemos verifi car também essa difícil decisão mencionada em um dos trechos descritos por Elaine Rangel em seu memorial, no qual é brilhantemente exposta pela bolsista a decisão de seus pais.

...Meus pais são oriundos do interior do Rio de Janeiro [Campos dos Goytacazes]

e passaram por muitas difi culdades – tiveram que trabalhar ainda criança seja

na roça ou em casa tomando conta dos irmãos mais novos – por isso eles não

conseguiram completar o ensino fundamental. (Elaine Rangel)

Algumas das difi culdades enfrentadas por milhões de brasileiros diariamente está repre-sentada nos versos da letra da música de Renato Russo:“Sem trabalho eu não sou nada/não tenho dignidade/não sinto o meu valor/não tenho identidade”, apresentando e enfatizando a realidade que afi rma que somente através do trabalho nos constituiremos enquanto cidadãos. Realidade que afastou e afasta esses trabalhadores dos bancos escolares e da perspectiva de um futuro melhor construído pela educação.

Em virtude do despertar da valorização da escolarização, muitos de nossos colegas universitários foram impelidos a conciliarem os estudos com o mercado de trabalho, como podemos constatar em alguns relatos de nossos estudantes:

...Aos quinze anos eu fui trabalhar, mas não interrompi meus estudos. [...] Afi nal

os estudos representavam a minha liberdade intelectual, sexual, fi nanceira e a

satisfação de minha mãe[...]. ( Jorge)

56 Caminhadas de universitários de origem popular

...No terceiro ano troquei o turno da tarde pelo da manhã, pois precisava tra-

balhar à tarde e início da noite ...este foi o ano em que me casei, não tinha como

conciliar trabalho, escola, pré-vestibular que para mim era essencial tendo em

vista o ensino defi ciente que tive no ensino fundamental e médio, ambos cursados

em instituições públicas de má qualidade [...]. (Eloana)

Como podemos perceber, nossas vidas parecem com uma reação em cadeia, isto é,

vários contratempos que enfrentamos são decorrentes de crises fi nanceiras.

Não há como negar que a situação sócio-econômica na qual estamos inseridos impul-

siona as nossas escolhas e os nossos comportamentos. Mas isso não se estabelece enquanto

regra. De acordo com Bernard Lahire (1999):

o mesmo capital, a mesma situação econômica podem ser tratados, geridos

de maneiras diferentes, e essas maneiras são tanto o produto da socialização

familiar de origem e de trajetórias escolares e profi ssionais, quanto da situ-

ação econômica presente.

E que bom que a regra não se estabelece, pois se assim fosse, muitos de nós cor-

reríamos o risco de não poder estudar. Observamos que se faz necessário incentivo e

constante luta por políticas educacionais que venham ao encontro das reais necessidades

do povo que dela usufrui.

A vida escolar vista pelos alunos É correto afi rmar que a fase escolar, especifi camente, o período da alfabetização em

diante, é importante porque indica um crescimento, uma mudança de fase. Deixamos as

chupetas, as bonecas e os carrinhos e começamos a entrar em contato com as diferenças.

Mas como lidar com todas as diferenças? Esta é uma questão que promove refl exão tanto

nas crianças quanto nos professores.

Eu era a excluída da turma, eu era a única negra na sala [...] eu não tinha amigos

desde o jardim de infância eu era sozinha. (Kelly)

Na terceira serie estudei com Brasiléia, achava ela ruim, tinha que fi car depois

do horário quando não conseguia terminar o exercício; também ela passava para

fazermos de um a mil. (Elaine Caldeira)

A trajetória de todos os estudantes universitários oriundos de comunidades carentes

representa de certa forma uma escola que deu certo e que implantou nesses estudantes algo

que os fez despertar e almejar algo mais.

Como minha mãe tinha que trabalhar, eu fui colocada na creche aos cinco

anos de idade. Foi quando aprendi a ler e a escrever, pois tudo isso sempre me

interessou. (Claudia)

Universidade Federal do Rio de Janeiro 57

Comecei a estudar com 4 anos de idade [...]eu e minha mãe íamos todo dia a pé

até a escola e eu gostava[...]nessa escola fi z o jardim 1 e era tudo divertido, tantas

coisas novas sempre deixavam as crianças maravilhadas. (Ralcicléia)

O valor do incentivo na formação escolar A partir do pensamento de Paulo Freire (2001, p.79) de que ninguém nasce feito.

“Vamos nos fazendo aos poucos, na prática social de que tomamos parte”, podemos constatar que as nossas vidas são construídas a partir das experiências com o meio que nos cerca.

Com os estudantes, como nós, não é diferente. Nossa formação se inicia no momento em que começamos a participar do mundo. A criança aprende a se comportar, adquire conhecimento e o desenvolve a partir das relações estabelecidas com os membros de sua família.

Percebemos, portanto, que o incentivo positivo ou negativo dos adultos é de suma importância na formação escolar de milhares de meninas e meninos, visto que esse processo freqüentemente invade o espaço escolar.

De acordo com a bolsista Eloana, sua mãe preferiu acompanhar os seus primeiro pas-sos escolares, dando atenção e dedicação para protegê-la, tendo em vista o seu biotipo.

...minha irmã estava com seis anos, ela já sabia ler e estava matriculada no jardim

enquanto mamãe passava-lhe os seus conhecimentos adquiridos até a 4ª série,

eu permanecia junto a elas, então mamãe passou a me ensinar também [...] não

freqüentei creche ou jardim, pois mamãe achava-me frágil demais por eu ser bem

magrinha. (Eloana)

Podemos perceber a importância do estímulo na formação escolar por meio da afi rmação do bolsista Jorge, o qual apresenta em seu relato o valor que teve a contribuição dada por seus responsáveis. Estes, representados na fi gura de seus padrinhos, na sua trajetória escolar.

...eu vivia com meus padrinhos em um conjunto habitacional na zona norte da

cidade. Lá eles me puseram em boas escolas públicas e me incentivaram aos

estudos. (Jorge)

Segundo as estudantes Elaine Caldeiras e Elaine Rangel, seus pais foram os principais motivadores do desejo de ingressarem no espaço escolar.

...Sempre ouvi meus pais falarem para minhas irmãs e eu que se quiséssemos uma

vida melhor éramos para a gente estudar, por isso faziam questão do ensino nas

nossas vidas, falando que éramos para terminar os estudos. (Elaine Caldeiras)

...tanto minha mãe (dona de casa) quanto meu pai (pedreiro) sempre me incenti-

varam a estudar. (Elaine Rangel)

A preocupação na qualidade do ensino também é aparente na atitude das mães de de-terminadas bolsistas de nosso Projeto, quando mencionam os seguintes episódios:

58 Caminhadas de universitários de origem popular

Mamãe começava a consultar algumas vizinhas e pedia algumas sugestões de

escolas para me matricular, até que decidiu me pôr em um colégio franciscano.

(Elizabeth)

Um pouco depois de nos mudarmos minha mãe me matricula em uma escola

particular para que eu venha cursar o CA. (Patrícia)

Outros atos dos adultos presentes em nossas relações pessoais funcionam como estimu-lantes para o desenvolvimento de certos comportamentos, os quais podem ser entendidos como bons ou ruins, no âmbito escolar. Podemos observar esta questão nos relatos abaixo.

Lembro-me que no primeiro concurso criado pelo colégio ganhei a medalha, já

no segundo concurso do mesmo ano, quem ganhou a medalha foi uma colega

minha. Isto acarretou para mim um clima estranho, apesar de não me importar

com o fato dela ter ganhado, a cobrança que me foi feita fez-me sentir fracassada.

(Elaine Rangel)

Quanto aos estudos, tirava a maior onda, pois no Rio estudava em colégio par-

ticular e lá em escola pública, ou seja, estava sempre na frente e graças a isso e

por motivação de uma professora de Português, comecei a dar aulas de reforço

e particular. (Elizabeth)

Tendo-se em vista um pouco da nossa realidade social, constatamos que o gosto pelos estudos, o carinho e o respeito pelo próximo foram construídos, progressivamente, à medida que trocavam experiências com as pessoas a sua volta e na sua comunidade.

Querer a diferença Há uma mudança de realidade entre a vida escolar dos pais e a do jovem de hoje. Os

ideais vêm sofrendo modifi caçõese para alguns pais, elas podem ser encaradas como orgulho de ter um fi lho indo além de onde ele não pode chegar quando era estudante.

Os relatos selecionados a seguir ilustram a aposta de algumas famílias no processo de formação de seus fi lhos.

Mas como minha mãe sempre priorizou nossa formação escolar trabalhava entre

outras coisas para arcar com as despesas da escola de minha irmã e eventuais

despesas minha e de meu irmão que estudávamos em escolas públicas. (Érica)

Eu quero pra vocês o que eu não pude ter; quero que a história de vocês possa

ser diferente da minha e de seu pai. (Érica)

Ela sempre dizia: vou dar estudo a vocês, por que não existe coisa mais triste, ver

um papel ‘escrivinhado’ e não saber ler. (Maria do Socorro)

Sei que meus pais estavam pensando no melhor para mim, em dar a mim o que

eles não puderam ter. (Paula)

Universidade Federal do Rio de Janeiro 59

De alguma forma esse pais querem fazer a diferença na história de seus fi lhos. Her-deiros da esperança de estarem promovendo a diferença, que só quer buscar primeiramente a conquista de um sonho que pode estar se tornando uma realidade. A busca por esse sonho não deve ser vista como recusa de origens, mas uma busca de oportunidades, de melhora de perspectiva com relação ao futuro tão promissor.

A referência adotada pelo jovem tem base na sua origem familiar (valores morais familiares, que desempenham uma importante infl uência na vida do ser humano) aliada aos conceitos e saberes adquiridos ao longo de sua vida escolar.

Não se pode deixar de frisar que o jovem adentra em um espaço que inicialmente não é pensado ou idealizado para ele: a universidade. Lugar onde a todo tempo ele tem de lutar para conquistar e não se deixar ser sugado pela maioria.

Podemos dizer que estamos quebrando barreiras, e fazendo a diferença, já que buscamos uma instrução para além da preconceituosamente a nós delimitada.

Por sermos de comunidades populares pensa-se que não temos o direito de alcançarmos uma oportunidade através do estudo. O máximo que podemos conseguir é um emprego melhor que nossos pais, e devemos nos dar por satisfeitos com isso. É justamente o contrário desse estigma que nós desejamos alcançar.

Quando estava no terceiro ano do segundo grau resolvi fazer um cursinho e me

preparar para o vestibular. Logo que cheguei à sala levei um susto porque percebi

imediatamente que estava entrando em um outro mundo, pois esse cursinho era relati-

vamente caro e a condição de vida dos alunos de lá era superior a minha. (Claudia)

Era um ambiente novo, em um ambiente escolar mais sério do que a escola de

onde viera [...] saia de uma escola marginalizada para uma que D. Pedro II havia

construído para ser excelência de ensino. Acabei me adaptando e também fazendo

bons amigos no período que lá estive. (João Paulo)

Cabem-nos o sonho e a luta. Para alcançá-los não estaremos livres das difi culdades presentes na vida e caminhos de qualquer pessoa.

Na faculdade comecei a aprender coisas novas, e vi também que ela não era um

bicho papão como os professores do pré falavam. (Rejania)

Obter uma aliança entre o desejo de uma instrução aliada à questão da ascensão fi nanceira pode ser perfeitamente possível. Isso não se exclui da perspectiva dos jovens de comunidade carente, pois eles querem demonstrar o seu valor para si mesmo, e para os outros.

Aos quinze anos fui trabalhar, mas não interrompi meus estudos. Continuei es-

tudando. Dos meus irmãos eu era o único que gostava de estudar e nunca havia

fi cado reprovado. (Jorge).

Para muitas pessoas o jovem que opta por se instruir está de alguma forma fugindo do mercado de trabalho e o estudo não é encarado como um trabalho, ou investimento somente como uma fuga. Isso nos meios de classe média ou alta não tem tanto questionamento, mas nos meios populares essa questão é bem freqüente e o apoio pode chegar ou não.

60 Caminhadas de universitários de origem popular

Minha mãe sempre falava pra quê tem que fazer um curso que dê emprego, e

achava bobeira. (Elaine Caldeira)

Lá eles me puseram em boas escolas públicas e me incentivaram aos estudos. Lem-

bro-me de meu padrinho dizendo: ‘Se eu não morrer, esse será doutor’. (Jorge)

Os discursos dos pais são pautados pela preocupação com o futuro, e o medo de que seus fi lhos venham a fracassar. A própria escola, entretanto, poderia ser um veículo de auxílio na quebra dessas idéias já superadas. Ela seria uma forte aliada a mostrar as oportunidades de futuro para os pais e para os alunos.

Não podemos deixar de perceber o quão valoroso é o nosso esforço. Fazer a diferença indo contra, algumas vezes, aos familiares e à sociedade, que deseja que obedeçamos a ‘hi-erarquia social’ de permanecermos no espaço a nós reservado.

Rompendo fronteirasComo pudemos perceber no corpus deste texto, o destino comum a tantos brasileiros

devido a longos anos de descaso pela educação fundamental foi por nós superado graças à persistência de nossos pais. Eles não mediram esforços para nos manter na escola. Alguns professores, os quais mesmo exercendo sua atividade em um espaço conservador, optaram por não reproduzir a ideologia da classe dominante e produziram cultura juntamente com seus alunos, indo além do imposto pelo currículo escolar. E todos os parentes, padrinhos, madrinhas, várias pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram para a nossa história pessoal e escolar. Colaborando para a nossa formação de seres sociais, presentes em todas as relações, inclusive as de estudante, ultrapassando, portando, os limites das instituições e se enriquecendo com a escola da vida.

Sendo assim, a união dos saberes escolares aos da vida cotidiana fazem com que seja-mos pessoas conscientes, tornando-nos capazes de romper barreiras, superar as difi culdades da vida e, sobretudo, vencer.

No entanto, não temos a vitória como ponto fi nal, mas como ponto de partida para uma longa e árdua caminhada, rumo à esperança de mudança social.

Muitas são as infl uências que contribuem para a trajetória dos jovens que desejam não mais permanecerem passivos às oportunidades existentes na vida. Como bem diz Marx “os homens fazem sua própria historia”. E é justamente isso que nós, jovens universitários oriundos de comunidades populares, desejamos realizar em nossas vidas.

Procuramos nos valer de todas as experiências que nos permitam um crescimento, sejam elas boas ou más, nos fortalecermos para as etapas futuras que ainda teremos que alcançar. Não deixamos de esquecer do primeiro espaço escolar do qual fi zemos parte, pois foi lá que, de certa forma, nasceu em nós o desejo de tentar mudar a nossa trajetória e onde desejamos através de nossos estudos a mudança para nossa realidade.

O exercício das tarefas escolares nos ensinou a compreender, que de alguma forma estaremos trabalhando para adquirir conhecimentos que nos serão muito úteis, daí nós termos questionado até que ponto o nosso exercício escolar está se confundindo com um ofício. O que, se analisarmos bem, não deixa de ser verdade, pois o jovem luta muito para galgar os seus objetivos.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 61

Nós, jovens, queremos e trabalhamos a cada dia para alcançarmos a diferença para as nossas vidas, desejando mudar a nossa história e as coisas que nos impuseram por tanto tempo: uma posição social e intelectual inferior. Uma visão preconceituosa que procuramos todos os dias quebrar.

Referências bibliográfi casGOODSON, Ivor F. Dar voz ao professor: as histórias devida dos professores e o seu desenvolvimento profi ssional. In: NÓVOA, Antônio (org.). Vidas de professores. 2. ed. Capítulo III. p. 78.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio.In: FLAKSMAN, Dora Rocha (tradução). Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989, p. 3-15.

SOARES, M.B. A chave do passado. In: Metamemória – memórias travessia de uma educadora. São Paulo: Cortez, 1991. Capítulo 1. p. 21-41.

LAHIRE, Bernard. Sucesso escolar nos meios populares – As razões do improvável. São Paulo: Editora Ática, 1999.

FREIRE, Paulo. Ninguém nasce feito: é experimentando-nos no mundo que nós nos fazemos. In: Política e Educação:ensaios. São Paulo: Cortez, 2001, p.79-88.

Claudia de Oliveira da Penha Elizabeth Gama Érica AssisPatrícia de Oliveira da Penha Rejania Oliveira

CapítulosTerminalidades: como as etapas escolares vão construindo nossa história

Peixes fora d’água: uma reflexão acerca do ingresso das classes populares ao ensino superior público no Brasil

Parte 2

INFLUÊNCIAS ESCOLARES

Universidade Federal do Rio de Janeiro 65

Terminalidades: como as etapas escolares vão construindo nossa história

Em frente e em frente você anda. E eu sei que

você vai longe e vai encarar seus problemas

numa boa, não importa onde7

(Dr. SEUSS)

Por que terminalidades?Há coisas que se iniciam sem que desejássemos e por isso ansiamos por seu fi m. Mas

há também coisas que terminam que desejaríamos que fossem para sempre. Resta uma con-solação: todo começo denota o fi nal de algo, assim como todo fi m é sempre o começo de uma nova fase.

Seja no inicio, seja no fi m de uma etapa da vida, alegrias e tristezas nos rodeiam, infl uências positivas e negativas invadem nossa vida, fatos marcam e nos acompanham ao longo de nossa existência.

A grande maioria de acontecimentos nós lembramos com saudades, ora porque foram maravilhosos, ora porque não os aproveitamos como deveríamos.

E é especialmente o que denominamos de fi m que fi ca com maior intensidade gravado em nossas memórias e que geralmente usamos como referencial, pois como já foi dito todo fi m pressupõe um começo. Mas é ao começo posterior, ou seja, a nossa fase atual que nos ateremos nesse momento, pois é nesta que verifi camos os refl exos através das escolhas que fi zemos.

É dentro dessa órbita que os fatos escolares vão norteando e constituindo nosso percurso de estudante.

As terminalidades escolares realizam mudanças, criam sentimentos, que se transformam em atos que fi cam para sempre escritos na nossa vida de estudante.

Este capítulo tem o compromisso de analisar as terminalidades. As infl uências de épocas tão importantes de nossas vidas escolares, quais sejam: fi m da 4ª série, que pressupõe o início do antigo ginásio; fi m deste último, que nos leva a uma nova fase, o início do Ensino Médio; fi m do Ensino Médio, que denota o caminho de entrada na universidade, objeto de análise do próximo capítulo.

7 Dr. SEUSS. Ah, os lugares aonde você irá. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2001.

Capít

ulo 5

66 Caminhadas de universitários de origem popular

Como tudo começou: a escola e suas infl uências A instituição escolar, seja ela pública ou particular, tem marcado a vida de todos que

têm a oportunidade de por ela passar. Dizemos isso, pois infelizmente em nosso país não são todos os que têm esse privilégio, muito valorizado por uns, por outros nem tanto. Seja essa marca positiva ou negativa, todos têm uma história para contar.

Histórias engraçadas, tristes, com glórias e com humilhações, com tempos de bonança e tempos de tribulação. No entanto, as histórias aqui relatadas são, acima de tudo, de vence-dores, que apesar dos tropeços e das quedas, não fi caram abatidos no chão.

Como nos manda o compositor Jair Rodrigues: “Levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima”, assim o fi zemos.

Levantamos, limpamos as roupas, tratamos as feridas, algumas deixaram cicatrizes ou seqüelas que reinam até o presente. Enfi m, nós vencemos. Em meio às lágrimas surgem os sorrisos, e o que nos feria, hoje nos faz sorrir por termos passado por difi culdades e não termos sido por elas parados, e sim as usado como impulso para o caminho que escolhemos e que percorremos atualmente apesar dos percalços da longa e tortuosa.caminhada.

Há sempre alguém (ao que se acredita enviado por Deus) que lhes oferece um copo d’água, coloca árvores frondosas onde em suas sombras podem descansar e repensar como farão o restante da caminhada. Mesmo as pessoas que se avista ao olhar para frente servem de motivação para continuar andando, crendo que após uma curva ou outra surgirá um oásis, que para uns é o término da faculdade; para outros um emprego na área em que se especiali-zou; a sonhada casa própria ou o automóvel, enfi m, não importa qual seja o seu oásis: não fi carão muito tempo nele acomodados e logo põem novamente pé na estrada lembrando das árvores, dos copos d’água, dos bancos e, principalmente, idealizam um oásis mais suntuoso do que aquele que acabaram de sair, e é para ele que caminham .

O ingresso na escola demarca justamente o início da longa e árdua caminhada para chegarmos ao primeiro oásis de nossas vidas: sermos alfabetizados. Esse percurso é marcado por diversos sentimentos e transformações que levaremos para sempre em nossas vidas.

Em nossa sociedade muito difundida é a idéia de que a escola é um investimento. Ber-nard Lahire (1997) mostra essa questão em seu livro “Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável”, quando se opõe a idéia de que o sucesso escolar nos espaços populares depende fundamentalmente de uma estrutura familiar marcada pela superescolarização, como podemos observar a seguir:

Os pais ‘sacrifi cam’ a vida pelos fi lhos para que cheguem aonde gostariam de

ter chegado ou para que saiam da condição sociofamiliar em que vivem. Mas o

sacrifício parental pode ultrapassar muito o investimento pedagógico: esta atitude

geral deverá deixar traços na organização moral doméstica e na maneira de gerir

a situação econômica da família. (p. 29)

Muitos de nós tivemos muito incentivo de nossos familiares para estudarmos, seja porque os pais possuíam a idéia de que a escola é algo importante na vida de seus fi lhos, seja porque ajudavam na realização das tarefas escolares; outros de nós porque começamos ainda bem pequenos a nossa trajetória escolar por infl uência de irmãos mais velhos que já freqüentavam a escola. Isso pode ser constatado nos relatos a seguir, que são trechos retirados dos memoriais.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 67

Viviane, aluna do 5° período do curso de Direito, nos mostra que a escola há muito já era algo importante em sua vida.

A minha paixão pela escola começou muito cedo, quando eu ainda não tinha

idade para entrar nela. Meus pais cuidaram de me colocar em uma ‘escolinha’.

(Viviane)

Érica, aluna do 14° período do curso de Dança, sinaliza que sua irmã foi a grande res-ponsável pelo início de sua caminhada escolar.

Nessa época devido à forte relação com minha irmã mais velha que se perdera ao

passar de nosso desenvolvimento, comecei a freqüentar a escola informal. Fato

que causava estranhamento a alguns familiares de meu pai. Diziam até que minha

mãe iria me deixar doida me levando para a escola, sendo eu tão novinha. Tinha

apenas dois anos e meio. Minha mãe então me levou ao pediatra para uma consulta

e o mesmo orientou mamãe a não forçar a minha ida a escola e observasse minha

conduta. A escolinha era nos fundos de uma casa. No inicio a ‘tia’ da escola me

dava apenas folha para desenhar, mas com o passar dos dias não queria mais só

pintar e desenhar queria fazer o que minha irmã estava fazendo, as letrinhas. A

tia no início relutou, mas depois de minha mãe conversar com ela passou a me dar

outras tarefas. Com isso aos quatro anos já estava lendo, me recordo que uma das

professoras que tive, me deu o livro da Gata borralheira e do Piu-Piu e Frajola,

foi meu primeiro contato com a literatura infantil. (Érica Assis)

Semelhante situação se deu com Rejania, estudante do 6° período do curso de Serviço Social, que passou a se interessar pela escola por conta das coisas que seu irmão mais velho contava dela.

A primeira experiência que tive em relação à escola se deu por infl uência do meu

irmão mais velho. Ele foi o primeiro a freqüentá-la e quando voltava contava as

coisas que aprendia. Eu fi cava imaginando como seria esse lugar e desejava ir

também, mesmo sem saber o que era. (Rejania)

Por outro lado, Elaine Rangel, estudante do curso de Enfermagem, Cláudia Penha, aluna do 6° período do curso de Letras e Ralcicléa, aluna do 4° período do curso de Dança, ingressaram muito cedo na escola.

Iniciei meus estudos por volta dos três anos de idade e desde então fui aos poucos

aprendendo a importância da aprendizagem para construir um futuro melhor,

por esse motivo encontro-me estudando até os dias atuais e não pretendo parar

nunca. (Elaine Rangel)

Como minha mãe tinha que trabalhar, fui colocada na creche aos cinco anos de

idade, foi quando aprendi a ler e a escrever, pois isso sempre me interessou. Nesta

época também conheci aquela que viria a ser minha melhor amiga, e passaríamos

juntas pelos mesmos problemas. (Claudia Penha)

68 Caminhadas de universitários de origem popular

Comecei a estudar em 1989, com 4 anos de idade numa escola chamada Sapati-

nho de Ouro que fi cava um pouco distante de minha casa, mas eu e minha mãe

íamos todo dia a pé até a escola, e eu gostava como ainda gosto de andar a pé.

(Ralcicléa)

Das diversas maneiras de ingresso na escola, percebemos que há pontos de semelhanças e diferenças nas diversas histórias. Alguns tiveram situações bem peculiares, como descreve Paula, estudante do 5° período do curso de História, que fi cou doente para começar a estudar.

Antes de completar três anos, pedi a minha mãe para entrar na escola. Como eu

chorava [...] Até que fi quei doente, tive febre. O pediatra diagnosticou febre emo-

cional e aconselhou a minha mãe que me pusesse numa escola. Assim, aos dois

anos e nove meses, em fevereiro de 1986, entrava no Jardim de Infância Raio de

Sol, que hoje já não existe, próximo à casa onde moraria. Como eu gostava de ir

à escola! Consigo lembrar que gostava. (Paula Gomes)

João Paulo, aluno do 4° período do curso de História, por sua vez, descreve que não pos-suía requisito para entrar na escola, mas como estamos no Brasil, para tudo há um jeitinho.

Três meses após me mudar, entro para a escola em circunstâncias no mínimo

curiosas. O fato de eu fazer seis anos em dezembro me colocou entre duas regras

escolares: entrar na escola se completasse seis anos até novembro – o que só me

permitia estudar um ano depois - e ingressar no ensino no ano em que fi zesse seis

anos – o período em questão. Ao fi m de muita conversação, tudo se resolve com

a intervenção de uma conhecida, que tinha amizade com uma professora dessa

escola. Essa professora intercedera por mim, me arranjando uma vaga como um

tipo de ouvinte. Meses depois fui efetivado regularmente como aluno da institui-

ção. (João Paulo)

Jorge Ujá, estudante do 4° período do curso de Letras, relata que contou com a ajuda de seus padrinhos, que muito o incentivaram a estudar. Também nos valemos de seu relato para demonstrar que, muitas vezes, aquilo que seria um obstáculo transforma-se em determinação para mudar no futuro algo que foi ruim no passado.

Enquanto minha mãe sofria do lado de meu pai, eu vivia com meus padrinhos em

um conjunto habitacional na zona norte da cidade. Lá eles me puseram em boas

escolas públicas e me incentivavam aos estudos. Lembro-me do meu padrinho

dizendo: Se eu não morrer, esse será doutor! E eu via nos estudos a esperança

de ser diferente de meu pai, de libertar minha mãe, de ser para minha fi lha (pois

um dia pretendo adotar uma criança) tudo que meus pais não foram para mim.

Meu ódio, minha indignação, meu sofrimento era a força e a determinação que

me motivavam a crescer e a ser alguém. (Jorge)

Muitos de nós ingressamos na escola um pouco mais tarde do que o pretendido, por diferentes motivos. Eloana, estudante do 2° período do curso de Serviço Social, enuncia que sua mãe a achava muito delicada e, por isso, lhe ensinou em casa até os 7 anos, época em que entrou na escola.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 69

Minha vida estudantil começou quando eu tinha por volta de dois anos, minha irmã

estava com seis anos, ela já sabia ler e estava matriculada no jardim enquanto

mamãe passava-lhe os seus conhecimentos que foram adquiridos até a 4ª serie, eu

permanecia junto a elas. Então mamãe passou a me ensinar também, começava

a longa jornada estudantil da minha vida, em meio à corta e cola, copia, cobre,

liga etc, aprendi a ler por volta dos seis anos, porém fui para a escola somente

com sete anos para cursar o então CA; não freqüentei creche ou jardim, pois

mamãe achava-me frágil de mais por eu ser bem magrinha, talvez por isso ela

tenha cedido aos meus apelos e comprado uma merendeira mias cara do que

planejara. (Eloana Feitosa)

Andréa Estrella, aluna do 6° período do curso de Letras (Português-Francês), também relata a entrada tardia na escola, mas lembra com muita alegria do período em que começou a ler por ajuda de um primo, através de um método chamado de abelhinha, o que a fez des-bravar um sedutor mundo: a leitura.

O único dia de muita felicidade na minha fase infantil: havia aprendido a ler.

Tinha, mais ou menos, cinco anos. Até então dependia dos outros para saber o que

continha nos livros e gibis. Isso me incomodava. Um dia descobri como. Voltando

no tempo lembro-me da minha infância como algo doloroso. Apesar das brinca-

deiras, das meninices e da presença da minha mãe; a fome, a violência doméstica

e o fato de ter tido que dormir por várias vezes na rua fi zeram da minha infância

uma fase da qual eu não gostaria de retornar. Para não dizer que foi de todo ruim,

lembro-me do dia que, talvez, tenha sido um primo um método de aprendizado

de leitura que era fascinante (método da abelhinha), foi a descoberta de um novo

mundo. Pronto, ninguém mais me segurava, lia tudo a todo instante! Não consigo

me lembrar de algo que tenha me deixado mais feliz na vida. Era algo meu, só

meu, ninguém poderia mais me tirar! A partir de então queria ir para a escola

a todo custo, mas apesar de minha mãe se preocupar com a educação das fi lhas

(minha irmã e eu), ela não tinha muito tempo para cuidar desses “pequenos”

detalhes: trabalhava e apanhava muito. Por isso só entrei para o colégio quando

tinha quase oito anos. (Andréa Estrella)

Maria do Socorro, estudante do 8° período do curso de Letras, lembra do percurso que fazia de sua casa até a escola.

A minha entrada no mundo escolar, só aconteceu aos sete anos, não foi muito diferente

dos meus cinco irmãos, que também só entraram na escola quando completaram sete

anos. Na época, 1977 havia pouquíssimas escolas públicas com turmas do jardim,

além do mais, o pensamento não só dos meus pais, mais de muitos era que, “criança

de três anos não aprende nada”. No ano de 1981, começava então, minha história

de estudante. Pisaria pela primeira vez numa sala de aula, foi maravilhoso aprender

a ler, “escrever” e me relacionar com outras crianças da minha idade, neste momento

vem à memória exatamente a trajetória percorrida da minha casa à escola: a avenida,

o morro, a fábrica de..., o ponto de ônibus... (Maria do Socorro).

70 Caminhadas de universitários de origem popular

Com o ingresso na escola várias coisas mudam em nossas vidas. Começamos a entender melhor o mundo onde vivemos, a perceber as diferenças existentes ao nosso redor e fazer novas amizades que, às vezes, nos acompanham pelo resto de nossas vidas.

Viviane relata que muitos amigos que fez na escola até hoje fazem parte do seu

ciclo de amizade.

No ano letivo posterior, ingressei na Escola Municipal Mendes Pereira e nela

estudei da 2ª a 4ª série. Fiz várias amizades que me acompanharam até o fi nal do

Ensino Fundamental e que mantenho contato até hoje. (Viviane)

Desta maneira, iniciamos nossa trajetória escolar, que reservava grande surpresa nas fases subseqüentes. Surpresas que, quando crianças, nós não tínhamos a mínima dimensão. Mais tarde iremos admitir: bom mesmo é ser criança.

Terminalidades: rupturas e metamorfoses: a adolescência e o ingresso no antigo ginásio

A passagem da 4ª série para a 5ª série é (talvez) o maior momento de ruptura escolar. Saímos de uma etapa em que corriqueiramente chamávamos nossas educadoras de tia, tínha-mos basicamente a mesma tia para todas as matérias, usávamos lancheira/merendeira e o melhor de tudo, tínhamos recreio.

Ao entrarmos numa fase cuja estrutura organizacional era totalmente diferente, com várias disciplinas, professores e horários quebrados, não tínhamos recreio e nem pensar em usar lancheira. A maioria lembra com muita saudade do período em que “éramos felizes e não sabíamos”, pois as responsabilidades eram bem menores.

E quanto mais responsabilidades, menos tempo para brincar, e, por conseguinte, mais nos afastamos de nossa infância, que para muitos representa a melhor etapa de suas vidas, como podemos observar no relato de Rejania.

No colégio e em minha casa a minha infância foi respeitada e degustada em cada

segundo, por isso, digo que de tão boa minha infância eu estendo até os dias

atuais. (Rejania)

Além disso, essa transição é marcada por uma modifi cação na maneira de perceber os outros e a si próprio. Caminhamos para o inicio da fase mais conturbada para os pais e, principalmente, para nós: a adolescência. Paula nos descreve que este período foi marcado por rebeldias, comuns a esta fase, e que muito amarguram nossos pais.

Durante este período, muitas transformações aconteciam. Estava na adolescência

e a rebeldia fl uía. Entristeci muito minha mãe e meu pai porque parecia que tudo

de errado que acontecia era culpa deles, e muitas coisas queria fazer e não tinha

condições. Culpava-os de tudo. Direcionava minha energia para a leitura e podia

fazê-lo porque a nova escola possuía biblioteca. Lia cinco, às vezes mais livros

por semana. (Paula Gomes)

Elizabeth, aluna do curso de Licenciatura em Português-Alemão, aponta os diversos acontecimentos vividos neste período, que coincidiu com a entrada no antigo ginásio.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 71

Ginásio, tudo tão diferente... Muitos professores, cada um com uma matéria,

conseqüentemente a cobrança seria maior e diferenciada, mas estava adorando.

Inúmeros acontecimentos novos, amizades, primeiro beijo, transformações físicas

e mais proximidade com a família. (Elizabeth Gama)

A adolescência é uma das fases mais importantes pelas quais passa o ser humano: é a fronteira entre a infância e a juventude. É nela que ocorrem as mudanças mais signifi cati-vas, mudanças de caráter biológico, físico, psicológico e comportamental que delineiam o individuo na sociedade. De acordo com os autores Jorge Lyra et alli (2002) do artigo “‘A gente não pode fazer nada só podemos decidir sabor de sorvete’. Adolescentes: de sujeito de necessidades a um sujeito de direitos”, a adolescência é um período de suma importância para o desdobramento da sociedade.

A adolescência é percebida como uma cena crucial na construção das narrativas

pessoais. Naturaliza-se a adolescência como um período essencial para o cresci-

mento do individuo e para alguns sociólogos, de linha mais evolucionista, essencial

para o desenvolvimento da sociedade, na mediada em que os jovens constituiriam

focos de mudança, de alterações no status quo. (p. 11)

Ocorre que esta fase é encarada com certa preocupação e repúdio, pois a sociedade entende o adolescente como um ser problemático, que não é capaz de tomar suas próprias decisões e, portanto, precisa a todo instaste que outros escolham o que lhes é mais conveniente, como se pode observar na exposição de Jorge Lyra et alli (2002), a seguir.

Em linhas gerais, circulam no cotidiano contemporâneo idéias sobre adolescência

e juventude que se associam à noção de crise, desordem, irresponsabilidade, enfi m,

problema social a ser resolvido, que merece atenção pública. (p. 11)

Isto não é diferente no seio familiar. A todo o momento os pais estão preocupados em instruírem os seus fi lhos para aquilo que julgam que é o melhor. Não que isso seja de tudo ruim. O problema reside no fato de que essa preocupação pode impor, em alguns casos, restrições tão exacerbadas que inviabilizam alguns direitos.

Percebemos, então, que ao adolescente não é conferida autonomia, poder de escolha, direito de expressar suas opiniões e ser ouvido, no sentido estrito da palavra, o que ocasiona um esvaziamento do direito à liberdade garantido no Estatuto da Criança e do Adolescente que abrange, entre outras coisas, a opinião e a expressão. É neste sentido que essa idéia de adolescência sem o exercício da autonomia, é prejudicial, pois como esperar do jovem certa capacidade de gerir, por si, sua vida se na fase antecedente este não teve o mínimo de autonomia?

Por outro lado, é sem dúvida a adolescência o período de maior confl ito de valores, descoberta de limites, desafi os, em que nos permitimos arriscar sem avaliar muito bem as conseqüências. É também o período em que, em geral, temos nossas primeiras experiências amorosas, como o primeiro beijo, primeiro namorado.

Associada a esta questão, a instituição de ensino, para muitos, transformou-se em um segundo lar. Afi nal, é onde passamos a maior parte de nossas vidas e conseqüentemente aprendemos muito além das matérias obrigatórias, aprendemos a construir amizades, a nos relacionarmos em grupo. Percebe-se, então, que uma grande parte dos atos típicos da vida dos

72 Caminhadas de universitários de origem popular

adolescentes concentra-se na escola. Logo, ela acaba por ser o palco em que muitos iniciam os relacionamentos a dois. São nos colegas de escola que muitos identifi cam o primeiro amor, como aconteceu com Érica.

Foi nesta escola que tive meu primeiro amor escolar daqueles de fi lme de romance. Ele morava em um bairro próximo de minha casa. Então íamos e vínhamos no mesmo ônibus. E sempre criava ilusões, coisas de adolescente. Foi uma fase mágica. Era um amor meio Platônico e não deu em nada. (Érica Assis)

Outros passam a alimentar sentimentos por seus colegas, por vezes não correspondidos.

No primeiro ano, um grupo de rapazes de uma série mais avançado aplicou trote [pintaram o rosto com batom] em mim e na Adriana que estudava na mesma turma que eu. Conheci depois esses rapazes e acabei me apaixonando por um deles, era uma loucura, um amor não correspondido, mas eu não conseguia esquecê-lo. (Elaine Rangel)

Já Kelly, aluna do 7º período do curso de Artes Cênicas, aproveitava os recreios para “beijar muito”:

“Eu beijei muito na hora do recreio e ainda namorava esse meu primo; eu pre-

cisava beijar outros, né?”. (Kelly Regis)

E em meio a diversos acontecimentos, sentimentos e transformações, saímos desta etapa rumo à outra marcada por um elevado grau de responsabilidades e decisões, na qual a necessidade de liberdade e de autonomia foi se intensifi cando.

E quando o assunto é juventude...Após a passagem pela metamorfose que é a adolescência, tem-se início mais uma fase

que ainda está sendo vivida pela maioria dos que contam essas histórias: a juventude. O mais curioso é que essa transição ocorre justamente com mais uma terminalidade escolar: fi m do Ensino Fundamental e início do Ensino Médio.

O jovem, assim como o adolescente, não é entendido pela sociedade. Algumas visões que se têm da adolescência não são tão diferentes quando o assunto é juventude.

O jovem é tido como o futuro da nação, mas como diz a compositora Negra Lee, “o que eles falam sobre o jovem não é sério, o jovem no Brasil nunca é levado a sério”. Isso é o que majoritariamente ocorre na prática. O jovem é percebido como aquele que precisa ser controlado (no duplo sentido da palavra) e que deve se adequar aos ditames da sociedade capitalista, mas as suas reais necessidades não são atendidas.

A sociedade muito espera do jovem, mas pouco oferece. Diz que ele precisa ser, mas como ele pode ser sem os devidos meios?

Esta lógica é nitidamente percebida quando, ao ligarmos nossos televisores, visualizamos a seguinte cena: jovem feliz na sua família, pois é um fi lho maravilhoso, feliz no seu relaciona-mento amoroso, pois seu amor é sempre correspondido, que consegue encontrar soluções para todos os seus problemas, que consegue passar para a universidade que quer e quando quer, consegue estudar tranqüilamente e ter boas notas porque ele é capaz. Conclui-se, portanto, que o mérito é do individuo e, sendo assim, todo mundo é capaz. Porém, não é bem isso que se evidencia na prática, mas infelizmente essa é a noção que reina na sociedade, como fi ca evidente nas palavras de Jorge Lyra (2002).

Universidade Federal do Rio de Janeiro 73

Nos dias de hoje, convivemos com a idéia de um sujeito responsável pelo geren-

ciamento do seu presente e futuro, responsável por seus projetos, cada vez mais

individualizado, dimensionado como decorrente de escolhas pessoais. (p. 10)

Na realidade, a sociedade é marcada por desigualdades. Os indivíduos possuem di-fi culdades, necessidades e padrões de vida diferentes. Sendo assim, como esperar que um aluno advindo de uma comunidade popular consiga, desde logo, conquistar uma vaga numa universidade pública se a qualidade mínima de ensino não lhe é oferecida nas escolas públicas pelo governo? Como esperar que a felicidade de sua vida familiar seja resultado de um bom comportamento, se não há oportunidades de empregos sufi cientes para empregar os pais e mães de famílias que deste labor dependem para levarem o mínimo existencial para seus lares?

Nota-se, então, que as expectativas que debruçam sobre os jovens dependem muito mais de uma atuação direta do governo, através de políticas públicas, do que da atuação individual daqueles para serem alcançadas.

Essa questão é facilmente visualizada quando se fala de educação. Percebemos que em nossas histórias diversas foram as difi culdades encontradas para o ingresso na universi-dade pública por conta da péssima qualidade de ensino oferecida pelas escolas públicas do Ensino Médio, em especial. Isto pode ser demonstrado nos relatos de Eloana e Paula, que com o advento do vestibular perceberam a péssima qualidade do Ensino Médio que lhe fora oferecido.

No 3° ano troquei o turno da tarde pela manhã, pois precisava trabalhar à tarde e

início da noite. Era o ano em que muitos fazem pré-vestibulares, porém para mim

não era possível. Sabia que não adiantaria fazer as provas, pois este foi também

o ano em que casei. Não tinha como conciliar trabalho, escola, pré-vestibular,

que para mim era essencial, tendo em vista o ensino defi ciente que tive no Ensino

Fundamental e Médio, ambos cursados em instituições públicas de má qualidade,

e preparativos para o casamento. (Eloana)

Quanto mais eu estudava, mais me dava conta de que meu Ensino Médio não havia

me preparado para o vestibular. Precisava me esforçar mais para aprender o que

os professores me ensinavam. (Paula)

Viviane, por sua vez, indignada com tal realidade, deixa sua crítica apontando a omissão estatal como fator gerador desta situação.

Também fi quei triste, pois esta chance [de fazer um pré-vestibular particular para

se preparar para as provas do vestibular], que a mim estava sendo concedida era

um retrato vivo da omissão dos órgãos competentes de realizar políticas públi-

cas que viabilizassem esta oportunidade a todos os demais jovens que, como eu,

buscavam um curso universitário numa instituição nomeada e de qualidade: a

universidade pública. Será que se nossas escolas públicas tivessem um ensino de

melhor qualidade não se tornariam elas um modelo de ingresso na universidade

pública e todos os jovens que nelas pretendem ingressar não precisariam esperar

por oportunidades oferecidas por esforços particulares que possuem consciência

de seu papel social? (Viviane)

74 Caminhadas de universitários de origem popular

Diferente não ocorreu quando da busca do primeiro trabalho. Mais uma vez as difi culdades encontradas pelos jovens, associadas ao fator preconceito e padrão que estão presentes em nossa sociedade, criaram mais uma barreira para aquilo que todos desejam: o primeiro emprego.

João Paulo enuncia os percalços com os quais se esbarrou para encontrar o tão sonha-do primeiro emprego, uma vez que desconhecia as inúmeras exigências que o mercado de trabalho faz.

Findo o 2° grau, como não respirava um ambiente de vestibular e pouco sabia

sobre o ensino superior. Fui em busca de emprego, achando que o 2° grau bastava

para arrumar um trabalho que me daria estabilidade fi nanceira. Grande engano.

A necessidade de conhecer informática básica, ter uma língua estrangeira e ex-

periência profi ssional atrapalhou (João Paulo).

Lamentável é saber que por conta de um padrão de beleza pré-estabelecido pela so-ciedade, muitas pessoas deixam de realizar o sonho do primeiro emprego. É o preconceito existente em nossa sociedade que fez mais uma vítima, Patrícia, aluna do 8º período do curso de Letras (Português-Literaturas).

Procurei emprego em lojas, mas eles só escolhiam as bonitinhas, e eu não tinha

um biotipo comercial, de novela. A procura de emprego foi o meu primeiro contato

forte com o preconceito (em uma entrega de currículos, em um shopping de Campo

Grande, minha irmã e eu encontramos uma colega, que nos informa de uma vaga

em determinada loja, como só eu procurava emprego, agradeço e vou a tal loja,

chegando lá a vendedora me olha e diz que não existiam mais vagas, sendo que a

amiga de minha irmã tinha acabado de sair da tal loja,), existiram outros momentos

como esse que a partir deste momento não me abalaram tanto. (Patrícia)

Rejania faz uma brincadeira que retrata muito bem a conjuntura dos milhares de bra-sileiros que procuram um emprego. A impressão que temos é que estamos brincando de esconde-esconde.

Nessa época procurei emprego e não encontrava: ele se escondia de mim. Minha

mãe sempre me dizia que para conseguir um bom emprego bastava estudar, e

isso não se concretizava comigo, pois eu estudava e não encontrava emprego.

(Rejania)

E nesses muros com os quais nos deparamos, concluímos que ainda há muito a ser mudado na sociedade para que o jovem veja satisfeita pelo menos uma de nossas maiores necessidades: o acesso a um ensino básico digno.

Mudanças que acompanham nossa trajetória escolarA partir destas etapas vividas, observamos que elas deixam seus vestígios, seja através

de alegrias ou tristezas que fi cam, seja através das mudanças que provocam em nós. E de mudança podemos mencionar diversas que vão ocorrendo por conta das marcas deixadas por esses períodos que não podem ser excluídos ou esquecidos de nossas vidas, e que acabam por transformar nossas atitudes.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 75

Alguns cansados com determinada situação resolvem fazer algo para mudá-la, como ocorreu com Andréa.

Um dia, porém, revoltada de ter de apanhar em casa (quase sempre sem motivo-

meu pai era alcoólatra) e ainda ter de apanhar na escola, resolvi revidar: bati no

garoto mais chato e folgado da turma. Fiquei de castigo na secretaria do colégio

o resto da aula, mas foi a glória, ninguém nunca mais bateu em mim! (Andréa)

Outros tomam decisões importantes com a fi nalidade de aproveitarem as oportunidades oferecidas que, para sempre mudarão suas vidas, como se deu com Maria do Socorro que decidiu se mudar para Altamira–PA, local em que conheceu o grande amor de sua vida.

No ano seguinte, 1993, meu tio, irmão de meu pai, me convidou para ir morar

com ele e a família em Altamira-PA. Precisei colocar a emoção de lado e agir

racionalmente (na época minha mãe estava doente), afi nal aquela chance poderia

não se repetir. Conversei com meus pais e decidi partir, na esperança de trabalhar

para ajudar, a minha família, pois a vida ali em Teresina-PI era muito difícil, sem

muitas oportunidades. (Maria do Socorro)

Há ainda aqueles que, por conta de experiências turbulentas vividas na relação profes-sor-aluno, realizaram mudanças no seu modo de agir. Viviane expõe que devido a um atrito tido com uma professora tirou uma grande lição para sua vida.

Depois desse episódio [em que me desentendi com a professora de Português da

8ª série porque questionei seu método de ensinar e ela respondeu dizendo que o

problema dos alunos é esperar a matéria toda mastigada] passei a refl etir nas

palavras dessa professora e nas minhas atitudes. Mudei completamente a minha

maneira de estudar e passei a estudar além do ensinado. Descobri uma excelente

metodologia de estudo. Isso se tornou um hábito que não consigo abandonar e

que me ajudou e tem me ajudado muito. (Viviane)

Há ainda atitudes que tomamos movidos pela emoção e, portanto, não analisamos suas implicações, mas depois nos arrependemos, como aponta Elaine Rangel.

No dia da formatura, [o meu colega de turma por quem havia me apaixonado]

estava lá e eu não consegui resistir, convidei-o para ser meu padrinho, porém quem

seria era meu pai. Depois me arrependi por ter entristecido aquele que tanto me

apoiava, mas na hora só conseguia pensar em viver um último momento ao lado

da pessoa pela qual fui apaixonada. Parando para pensar sobre aquela paixão,

acho engraçado, pois agora não tem nada a ver, fi quei até sabendo que ele casou,

contudo lembrar do que fi z com meu pai ainda dói. (Elaine Rangel)

Outras vezes, são mudanças que ocorrem em nossas vidas que mudam a historia dos acontecimentos escolares, como a mudança de escola, de casa.

A mudança de escola nos coloca em contato com outras realidades e com diferentes crianças, que podem ter refl exos negativos em nosso desempenho escolar, como aconteceu com Elizabeth.

76 Caminhadas de universitários de origem popular

Passado o êxtase a realidade, nova escola, professora e novos coleginhas [...] Era

uma escola muito pequena e especial, pois havia crianças com síndrome de Down,

as quais estudavam conosco e brincavam também na hora do recreio. Eu amava ir

para essa escola, todos eram muito atenciosos e educados, inclusive as crianças.

Pena que durou pouco, pois entrei no meio do ano. Mudei de escola novamente, agora

era uma enorme, cheia de crianças mal-educadas. Nesse ambiente, meu rendimento

despencou e, então, começaram os meus problemas em matemática. (Elizabeth)

Situação parecida se deu com Rejania, que acabou fi cando reprovada.

Ao ingressar na quinta série mudei de escola, apesar de permanecer na mesma

instituição que chamamos de colégio, mas que era na verdade uma espécie de

semi-internato. Fui matriculada no Pedro Bruno que fi cava na ilha em frente

a igreja de São Roque. As aulas começavam às 8:30 e iam até as 3:30, devido

ao horário das barcas, pois os professores vinham do Rio. Eu não participava

muito das aulas e por isso tirava notas baixas, a conseqüência disso foi a minha

reprovação. (Rejania)

Na maioria dos casos, mudar de casa é algo difícil, pois a adaptação a um novo ambiente não é nada fácil. Andréa Estrella descreve quão complexo foi residir em uma nova casa que fi cava muito longe de sua escola.

Aos dez anos tivemos que nos mudar para Santa Dalila (Estado do Rio). Foi uma

catástrofe. Longe dos amigos e longe da escola (já havia sido transferida para o

colégio Estados Unidos no Catumbi). E dessa escola, transferência nem pensar! Não

conseguia me adaptar a nova casa nem ao novo lugar (Dalila). Vínhamos todos os

dias de madrugada e de trem para a escola; era cansativo, mas valia a pena. No

novo colégio estavam meus antigos amigos e minha vontade de aprender retornou

(foi nessa época que descobri o gosto pela Língua Portuguesa). (Andréa Estrella)

Em muitas situações, a mudança de casa faz com que deixemos para trás grandes ami-zades feitas na escola, como se deu com Kelly que, quando teve que ir para Campo Grande muito lamentou, pois teria de abandonar seu primeiro amigo.

Ainda na quarta série no luso carioca com esse meu primeiro amigo, meu pai

anunciou que iríamos embora para Campo Grande, meu amigo chorou, e eu tam-

bém ,eu não queria fi car sem amigo, fui embora, mudei de colégio e fui estudar

em outro colégio particular no centro de Campo Grande, estava na quinta série,

lá eu fi quei até me formar no segundo grau. (Kelly)

Mais difícil do que se adaptar ao espaço físico é se acostumar com os novos colegas de turma, quando esses possuem estilos de vida totalmente diferentes dos nossos. Mas essa adaptação foi conquistada por João Paulo.

Entro no segundo grau como entrara nas turmas novas anteriormente, mudo.

A socialização não foi tão simples quanto tinham sido as anteriores. Agora,

entrava numa escola de área nobre, com pessoas de hábitos e interesses dife-

Universidade Federal do Rio de Janeiro 77

rentes dos meus. Enquanto eu desejava ir ao baile funk em alguma comunidade

vizinha a minha, eles queriam entrar escondidos em algum show ou boate que

não permitia a entrada de menores ou pegar o carro do pai para participar

de pegas de rua. Era um mundo novo, em um ambiente escolar mais sério do

que o da escola de onde viera, com pessoas mais elitizadas tanto no corpo

docente, com professores também de universidade, como no discente, com

alunos de Laranjeiras, Botafogo, Copacabana e Leblon. Saia de uma escola

marginalizada para uma que D. Pedro II havia construído para ser excelência

em ensino. Acabei me adaptando e também fazendo bons amigos no período

em que lá estive. (João Paulo)

Além dessas mudanças, acabamos por encontrar pessoas especiais a quem nos apegamos, compartilhamos segredos, vivemos aventura e nos auxiliam nos momentos difíceis: os amigos.

Rejania divide os bons momentos vividos com suas amizades da escola.

As minhas novas amizades nessa nova fase de minha vida me acompanharam até

a minha maioridade. A gente matava aula para passear na Quinta da Boa Vista

ou simplesmente fi cando conversando do lado de fora da escola. A gente sempre

fazia trabalhos juntas. Na realidade eu sempre fazia sozinha, pois ninguém se

interessava muito e fazia questão de tirar as melhores notas, por isso não me

importava de fazer tudo. (Rejania)

Eloana enuncia que tamanho foi um vínculo amistoso construído com uma pessoa que se tornaram madrinha de casamento uma da outra.

Novos amigos foram conquistados, pena que três anos não de para tornar os laços

tão fortes como tornaram se em seis anos, os compromissos das vidas pessoais

têm um peso maior, amigos mudam de colégio para estudarem perto de casa, ou

para trabalharem, outros acabam abandonando, enfi m a realidade nacional faz

muitos terem que escolhermos entre estudar e trabalhar, porem no segundo ano

constitui uma amizade, com uma pessoa a qual eu já conhecia, mas tornamo-nos

íntimas nas idas e vindas do colégio, pois nem da mesma turma éramos, os laços

foram e são tão fortes que hoje somos duplamente comadres, ela é minha madrinha

de casamento e eu do dela. (Eloana Feitosa)

No fi nal, o importante é saber que sobrevivemos às mudanças e com elas aprendemos. Além disso, queiramos ou não, mudanças sempre farão parte de nossas vidas, e isso não podemos mudar.

A história em nossas históriasAs terminalidades são etapas fortemente marcadas por acontecimentos históricos, es-

pecialmente políticos, que nos fazem refl etir ou não entender o mundo ao nosso redor. Todo acontecimento histórico é algo dinâmico, cujos refl exos se estendem a todos os membros da sociedade, com maior ou menor intensidade, nossas vidas acabam por sofrerem infl uências e mudarem signifi cativamente seu curso.

78 Caminhadas de universitários de origem popular

Elizabeth e Rejania relatam os refl exos econômicos sofridos por sua família por conta de planos econômicos implementados em nosso país.

Na década de noventa, ocorre uma agitação no país, pois é ano de eleição e de

Copa do Mundo. As campanhas eleitorais bombardeavam a nossa sociedade,

tinha o Collor com seu carisma, Lula com sua aparência de trabalhador, Brizola

e o mais hilário de todos, o Enéas, que só podia falar trinta segundos. Diverti-me

bastante imitando esse último. No fi m, quem ganhou a eleição foi o Collor com a

história de caçar marajás e, algum tempo depois, após descoberta de corrupção

em seu governo, foi deposto por meio de Impeachment. Foi um período em que os

jovens foram para a rua, pintaram cara e protestaram contra o governo. Ficaram

conhecidos como os cara pintadas. Contudo os anos vindouros seriam difíceis fi -

nanceiramente para a minha família, pois, no ano de 1991, ganhei uma irmãzinha,

o dinheiro do meu pai fi cou preso devido uma medida do governo novo e, assim,

comecei a cair na real. (Elizabeth)

Em casa, tinha mania de comer leite Ninho, contudo a situação econômica não

era a das melhores. Eu sentia os refl exos do governo Sarney. O vale leite de certa

forma acabou com a minha farra particular do leite em pó, em casa agora só

entrava leite de saco. Eu não entendia porque tinha acabado o leite em pó, mas

sabia que tinha um negócio de infl ação metida nisso, além dos preços dos produtos

serem altos e subirem a todo instante. (Rejania)

Rejania conta das lembranças que possui da época em que inocentemente presenciava determinados acontecimentos históricos sem entender o que realmente estava ocorrendo.

Quando eu descia para o Rio (descer pro Rio é o termo utilizado pelos moradores

que vinham de Paquetá para o Rio) lia nos muros pichados ‘Diretas Já’ e per-

guntava à minha mãe o que signifi cava. Ela sabia, mas não me explicava, talvez

por não saber como iria explicar a uma criança. Por isso guardei essa dúvida,

como tantas outras para matá-la no momento oportuno. Meu irmão cantava a

música de Figueiredo (não sei como ele se lembrava) e a gente brincava sem se

dar conta do que acontecia no país. (Rejania)

Segue relatando as refl exões que o cenário político foi gerando em sua vida, e as con-fusões que outras questões históricas geraram em si.

Contudo, estudando no meu bairro passei a conhecê-lo melhor como também os

meus vizinhos. Fui sozinha ao cinema pela primeira vez assistir “Ghost, do outro

lado da vida”, esse fato me fez sentir adulta. Passei a conviver de perto com a

realidade econômica do Brasil. Percebi que as coisas não estavam fáceis. Era

época do Governo Collor, eu tinha esperança que ele mudasse alguma coisa, pois

ele havia prometido em sua campanha eleitoral. Fiquei um pouco decepcionada

com os rumos de sua política, mas nada que um rostinho bonito não ofusque. Na

realidade minha vontade era de que Lula vencesse. Minha professora de geogra-

Universidade Federal do Rio de Janeiro 79

fi a como uma boa petista nos ensinava muito sobre política e foi com ela o meu

primeiro contato com o PT. Passei a ser petista também, apesar de não entender

muito, sabia que a oposição tinha uma proposta que realmente visava benefi ciar

a classe trabalhadora. Eu e meus irmãos quando completamos a idade de votar

votamos no PT e falamos para o pessoal de casa fazer o mesmo, não me lembro

se eles votaram, mas o recado foi dado. Nesse mesmo período comecei a assistir

o jornal nacional, vi a queda do muro de Berlim, fi quei emocionada, pois havia

pessoas que não se viam há vários anos. A reportagem da Globo realmente me

emocionou. Eu comentava isso com meus colegas, mais eles não entendiam, então

procurei saber o motivo da derrubada do muro o que me levou a descobrir Hitler

e a segunda guerra. Confesso que fi quei um pouco confusa. (Rejania)

Lamentáveis são os refl exos que as escolhas econômicas de nossos governantes geram em nossas vidas, como aponta Viviane, que descreve que seu pai teve de escolher em manter sua irmã ou ela na escola em que estudavam e que, posteriormente, seria demitido de sua empresa.

No ano de 1992 todo o país sentia os refl exos do Plano Collor, inclusive a empresa

onde meu pai trabalhava, que deixou de fi nanciar os estudos dos fi lhos de seus

empresários e, por conseguinte, não pagava mais as mensalidades da minha escola

e da minha irmã. Meu pai fez um grande sacrifício para manter minha irmã e eu

em nossas escolas. No entanto, apesar de sua vontade meu pai já não tinha como

arcar com nossas mensalidades. E como minha irmã já estava prestes a terminar

o Ensino Fundamental [antigo ginásio], meu pai optou por mantê-la em sua es-

cola e matricular-me numa escola pública. Triste fi quei por ter que abandonar

meus amigos e, principalmente, minha professora, mas isso foi necessário. No

ano seguinte meu pai seria demitido porque a empresa estava realizando cortes

de gastos. (Viviane)

Além das diversas mudanças já apontadas no texto, os acontecimentos históricos também exigem que nos adaptemos a novas realidades, como descreve Eloana.

Em 1994 a moeda nacional estava sendo modifi cada, e eu percebia isso na compra

dos meus doces, pois todas as tendinhas haviam anexado a tabela com os valores

corrigidos em URV (Unidade Real de Valor), não foi difícil para eu me acostumar,

talvez por serem os meus valores tão singelos. (Eloana Feitosa)

Lembramos de algumas coisas da história; outras esquecemos, ou simplesmente não contamos, conforme observamos no texto Memória, Esquecimento, Silêncio de Michael Pollak (1989) “As fronteiras desses silêncios e ‘não-ditos’ com o esquecimento defi nitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento” (p. 8).

Contudo, cabe ressaltar que mesmo não reconhecidos pela memória histórica de nosso país, os mais importantes de todos os acontecimentos são os que nós vivemos e construímos, e que constituem a memória de nossas histórias.

80 Caminhadas de universitários de origem popular

Enfi m, quase adultosA idade adulta se aproxima e com ela a hora de tomarmos decisões que implicam res-

ponsabilidades. Os namoros fi cam mais sérios e transformam-se em noivados, casamentos e logo a família cresce com a chegada dos fi lhos.

Ralcicléa fala sobre seu primeiro e único namorado que conheceu na escola.

[No período do 2° ano do Ensino Médio] conheci meu primeiro e único namorado,

atualmente meu noivo. Uma pessoa muito especial e somente de interesse meu

[tira o olho, hein!]. (Ralcicléa)

E mesmo quando nos relacionamos com pessoas que não fazem parte da mesma insti-tuição educacional, estes têm sido de suma importância nas horas difíceis, tornando-as menos tristes com seu apoio e incentivo.

Érica descreve a importância que seu namorado teve na sua formação acadêmica.

Também no ano de 1999 que meu coração foi despertado para o amor. Reencontrei

um rapaz que há tempos não via e meu coraçãozinho foi se envolvendo com aquela

presença. Estava há tempos sem namorar e sempre pedia a papai do céu em minhas

orações que enviasse alguém que fosse amante de minha alma. Hoje depois de seis

anos compartilhando nossas vidas e crescendo juntos tenho certeza que ele foi

realmente enviado por Deus. Léo colaborou muito com minha formação acadêmica

e profi ssional. Proporcionou-me inúmeras oportunidades de crescimento. As mais

signifi cativas foram: a realidade de ter um computador e a oportunidade de poder

compartilhar com meus amigos o momento de conclusão de curso na cerimônia

de colação Mais um anjinho enviado pelo divino. (Érica Assis)

Percebemos no relato de Elaine Caldeira, aluna do 4º período do curso de Dança, quão importante foi a presença de seu namorado num dos momentos mais tristes de sua vida..

No vestibular da UFRJ, todos os cursos artísticos têm que fazer um teste de habili-

dade específi ca (THE). E lá estava eu para a minha primeira prova, acompanhada

de meu namorado [...] A improvisei, e naquele momento não fui eu, tentei algo

que não era meu e não conto os detalhes para ninguém. Acabando falei: muito

difícil. Acho que as examinadoras ouviram, meus olhos se encheram d’água fui

pelos corredores, sozinha, querendo chorar, na saída encontrei meu namorado

nos abraçamos, me consolando naquele abraço. Ele sempre fala que a primeira

vez é sempre uma experiência. (Elaine Caldeira)

Elaine Rangel enuncia como foi bom contar com o incentivo de seu namorado no mo-mento em que as difi culdades fi nanceiras quase a fi zeram desistir de seus objetivos.

Durante estes anos de término do ensino médio e a graduação, confesso que pen-

sei várias vezes em desistir, às vezes me sentia incapacitada ou, simplesmente,

estava sem dinheiro para comprar o que queria. Enfrentei uma fase complicada

nas férias de 2004/2005, pois não contava com nenhuma fonte fi nanceira, tinha

que fi car em casa, porque não tinha dinheiro para sair. Cheguei a questionar a

Universidade Federal do Rio de Janeiro 81

idéia de largar a faculdade e procurar um emprego, afi nal, conciliar os dois é

difícil, pois o curso de enfermagem na UFRJ só tem manhã e tarde. Em meio a

situações como a citada a acima, é que conheci o valor do amor e da amizade.

Meu namorado-amigo incentivou-me a continuar e a jamais desistir dos meus

sonhos, pois apesar daquele momento estar sendo ruim, futuramente eu poderia

conseguir oportunidades melhores. Com isso, enfrentei os três meses de escassez

fi nanceira. (Elaine Rangel)

Eloana aponta como a presença e a ajuda de seu esposo foram essenciais para que ela estudasse para o vestibular.

Em 2004 a situação mudou, tinha terminado o ensino médio e não estava mais

trabalhando. Era hora de preparar-me para a faculdade estava de volta ao

CEASM, dividindo os estudos somente com os afazeres domésticos, visto que não

encontrava emprego que desse para conciliar, emprego e pré-vestibular, do qual

eu não abri mão. Nesse período o apoio do meu marido foi fundamental, pois,

não me pressionava a conseguir um emprego ou pela bagunça que a casa fi cava

vez ou outra, pelo contrário me incentivava e até brigava comigo para que eu

estudasse mais. (Eloana Feitosa)

Infelizmente nem tudo são fl ores principalmente quando o assunto é sexo, tabu ainda em muitas famílias. Kelly narra como foi viver a experiência de viver uma gravidez na juventude e as surpresas vividas por conta dela em sua família.

Neste período engravidei do meu primeiro fi lho, quando fui dar a notícia,

esperava levar uma surra e até perder o bebê por isso, mas não, minha mãe

fi cou preocupada sorriu e disse: ‘eu vou ter um netinho pra me fazer compa-

nhia?’ Fiquei aliviada, fomos ao médico pegar o resultado, e ela me deu uma

fl or de presente, fi quei emocionada, só não sabia como contar ao meu pai, eu

ainda estava no último ano quase terminando. A pior, mas a pior coisa em

minha vida, foi na hora de contar para o meu pai, ele continuava a nos visitar,

e fi nalmente minha mãe fez todos sentarem à mesa. Ver as lágrimas do meu

pai descendo dos olhos foi tortura para mim, eu tinha vontade de abraçá-lo,

pedir desculpas, tudo para fazê-lo parar de chorar, nunca havia visto meu

pai chorar. Mas no mês seguinte lá estava meu pai com um monte de coisas

para o bebê, e já com uma carteirinha do plano de saúde particular para o

meu pré-natal. Meu pai comprou tudo para meu fi lho, tudo, tudo mesmo. O

pai do meu fi lho assumiu, mas estava no quartel, nem tinha profi ssão. Fiquei

morando na minha mãe, e ainda com um marido a tira colo. Não larguei os

estudos, me formei com um barrigão. E fi z meu primeiro vestibular grávida

do meu fi lho mais velho. (Kelly Regis)

A homossexualidade ainda é numa questão pouco debatida na sociedade. Luís Felipe Rios et alli (2002), autores do artigo “Rumo à adultez: oportunidades e barreira para à saúde sexual dos jovens brasileiros”, esclarecem:

82 Caminhadas de universitários de origem popular

Em relação à homossexualidade, constatamos uma quase total ausência de pesquisas en-

tre essa faixa etária. Ao mesmo tempo constata-se a difi culdade do diálogo aberto sobre

sexualidade no âmbito familiar. Esse diálogo, se já é difícil para rapazes heterossexuais,

torna-se ainda mais raro entre os que fazem sexo com outros homens. (p. 50)

Jorge Ujá muito bem descreve as difi culdades por que passam aqueles que fazem essa escolha sexual. Infelizmente nossa sociedade é muito preconceituosa e ainda não consegue lidar com esta questão, bem como os pais.

Era minha vida. Mais tarde surge um outro agravante para que eu continuasse

estudando: Eu já não conseguia reprimir dentro de mim a minha homossexuali-

dade. E pra ser respeitado no Brasil você não pode ser apenas gay. Você tem que

ser: O gay! Notava e ainda noto no discurso das pessoas o preconceito: ‘Fulano

é gay, MAS é bem sucedido’. ‘O Junior é gay, MAS faz faculdade’. Como se eu

só fosse gente se tivesse os predicados que a maioria elegeu. Como se eu fosse

apenas uma mercadoria. Mais um motivo pra eu continuar estudando: Se eu

quisesse gritar para o mundo sem decepcionar minha mãe eu tinha que ser melhor

do que os outros. Eu tinha que ter um diferencial. Quando resolvi contar à minha

mãe sobre a minha homossexualidade, meu mundo caiu. Ela não entendia. Saí de

casa e voltei, pois ela assim pediu. Disse que eu não deixaria de ser fi lho dela por

causa disso, mas fazia de um tudo para me reprimir. Resultado: Fui trabalhar e

saí de casa. (Jorge)

A questão não é ser contra ou a favor de tal escolha sexual. Devemos entender que homossexuais ou heterossexuais, somos todos seres humanos e a nossa Constituição Fede-ral a todos garante o direito à liberdade e à igualdade. E mais do que isso, versa que nossa República Federativa do Brasil tem como um de seus objetivos promover o bem de todos sem qualquer tipo de discriminação.

Em que medida a universidade é um sonho que se torna realidade?As diversas histórias relatadas mostram quão pedregoso e cansativo foi o caminho até

alcançar mais uma etapa que encerra mais uma terminalidade: o ingresso na universidade. Todos os obstáculos encontrados no decorrer deste percurso não foram sufi cientes a

ponto de impedirem que alcançássemos um lugar em uma das melhores universidades do Brasil: a UFRJ.

É com muito orgulho que todos nós podemos hoje dizer: nós conseguimos, chegamos onde queríamos.

A alegria de ingressar na UFRJ é algo que palavras não são capazes de exprimir. Nem mesmo o melhor dos poetas seria capaz de traduzir a intensidade de tamanha satisfação em seus versos.

Concluímos, então, que não são histórias de indivíduos que se unem, mas o retrato da história de uma classe social que se reparte. Retomando ao que já fora dito, não são histórias singulares em que o mérito pertence ao indivíduo. Trata-se de explanar quão diversas são as difi culdades encontradas por jovens oriundos de camadas populares que possuem o sonho da universidade pública.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 83

Mas este sonho não é algo impossível de ser realizado; não é para poucos, como al-guns costumam dizer, no sentido de que aqueles que não conseguem devem se conformar em fi car fora dele.

A universidade é algo que pode ser por todos alcançada, com as devidas ressalvas. Primeiro: não basta idealizar a universidade, é preciso lutar para nela estar. Segundo: não depende apenas de escolhas pessoais, como se costuma afi rmar na sociedade. O ingresso na universidade está muito mais condicionado ao problema das políticas educacionais no Brasil do que possa parecer.

E como o principal obstáculo de acesso à universidade pública reside no problema da educação brasileira, é preciso que, mais do que aguardar ações, busquemos soluções alterna-tivas, que não ousamos defi nir quais sejam.

Aqui reside o desmesurado papel do Projeto Conexões de Saberes, que sobre a pers-pectiva da pesquisa-ação, busca articular a universidade e os espaços populares, através de uma pesquisa participante, em que nós universitários oriundos de camadas populares somos ao mesmo tempo sujeitos e objetos de pesquisa. E nessa perspectiva se busca criar demandas nos espaços populares e viabilizar a permanência de jovens oriundos de espaços populares na universidade.

Com tudo que foi exposto, que essas histórias sejam entendidas como gritos que clamam por mudanças na estrutura social, econômica e política de nossa sociedade; que sejam capazes de propiciar um ambiente em que todos os jovens sejam capazes de disputar em condições reais de igualdade uma vaga numa universidade pública, independentemente da origem social e, também, do curso que desejam concluir.

Será que acabou? É claro que não!E a história não acaba por aqui. Retomando ao que fora dito no início, depositamos

nossas forças na conquista de um oásis e quando este alcançamos, muito satisfeitos fi camos. E esse é o sentimento dividido por todos nós que integramos este projeto: estamos muito felizes por estarmos onde estamos.

Porém, ainda há outras etapas que precisam ser conquistadas, o que nos faz idealizar um novo oásis e para ele caminhar.

Certamente teremos novas terminalidades para desenvolver no futuro, quais sejam, fi m do curso de Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado. O que não pode ser esquecido é que estes novos caminhos não fi carão isentos das difi culdades já encontradas durante o caminho até hoje percorrido.

Muitas vitórias ainda serão comemoradas durante nossas vidas. Mas o que não foi até agora dito, pois estava reservado para o fi nal, é que a grandeza do vencer não se encontra no fato de algo conquistar. Vencer é muito mais do que isso.

Vencer é tropeçar várias vezes nas pedras existentes ao longo do caminho que a sociedade coloca, não se importar com os preconceitos e com o provável futuro que a sociedade reserva para aqueles que, como nós, não têm muitas oportunidades, passar por diversas difi culdades e, apesar de tudo isso, chegar ao seu objetivo e dizer: preciso começar uma nova caminhada, rumo a um objetivo maior, seguindo meu próprio ritmo sem me preocupar com as pessoas que estão em estágios mais avançados do que eu. Além disso, é preciso ter Paciência, como diz o título da música dos compositores Lenine e Dudu Falcão, em vista dos diversos empecilhos que esbarramos ao longo da caminhada e do tempo que corre contra nós.

84 Caminhadas de universitários de origem popular

O mundo vai girando cada vez mais veloz

A gente espera do mundo e o mundo espera de nós

Um pouco mais de paciência

Será que é o tempo que lhe falta pra perceber

Será que temos esse tempo pra perder

E quem quer saber

A vida é tão rara (Tão rara)

Que nessa perspectiva, sejamos para sempre vencedores.

Referências bibliográfi casCADERNO CEDES. Educação, Adolescências e culturas juvenis: diferentes contextos. Campinas. v. 22, n° 57. 1ª ed. Agosto/2002.

Dr. SEUSS. Ah, os lugares aonde você irá! São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2001.

LAHIRE, Bernard. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. Ática, 1997.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos histórico, 1989.

SOARES, Magda. A chave do passado. In: Metamemória – memórias travessia de uma educadora. São Paulo: Cortez, 1991.

Viviane Silva SantosEloana Feitosa da Silva

Universidade Federal do Rio de Janeiro 85

Peixes fora d’água: uma reflexão acerca do ingresso das classespopulares ao ensino superiorpúblico no Brasil

O presente trabalho busca tecer uma análise acerca do ingresso de estudantes à uni-versidade pública, baseada em relatos de dezesseis universitários que participam do Projeto Conexões de Saberes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PCS-UFRJ)8

O grupo possui algumas peculiaridades, como o local de origem, ou seja, todos somos oriundos de comunidades populares ou periferia do estado do Rio de Janeiro, apesar de esta informação não ser encontrada em alguns relatos. Além deste aspecto, percebemos que o grupo provém da camada mais pobre da sociedade. Tais fatores, aliados a outros que também são expostos por outros sujeitos-pesquisadores no decorrer do livro, nos remetem a uma convergência: a grande maioria, senão todo o grupo, pôde ultrapassar obstáculos quase intransponíveis na caminhada à tão sonhada universidade pública.

Há muito ouvimos dizer que a universidade pública no Brasil é elitista. Neste sentido, pensamos que as políticas voltadas para ampliar o acesso ao ensino superior público, como o sistema de quotas nas universidades federais e estaduais, já comprovam a elitização do ensino superior público brasileiro, do contrário, não faria sentido tal preocupação.

Nas palavras de José Marcelino de Rezende Pinto (2004), em seu artigo “O acesso à educação superior no Brasil”, podemos perceber que se estabelecem barreiras entre a sociedade e a universidade. Apesar de a universidade pública ser para todos, na prática o que se tem observado é uma realidade marcada por desigualdade e exclusão social:

Quanto às políticas envolvendo quotas para a educação superior, o que os dados

apresentados indicam é que os processos seletivos para esse nível de ensino têm

funcionado como um fi ltro étnico [que barra os afrodescendentes e indígenas] e

socioeconômico [que barra os pobres], e que, portanto, não estão ingressando

nas universidades “os mais capazes”, como defi nem a constituição, mais os bem

mais treinados. (p. 753)

Procuramos ir ao cerne da questão, entendendo o por quê do acesso ao ensino superior público ser marcado pela exclusão social. Para tal, voltamos nossos ouvidos a escutar as

Capít

ulo 6

8 As explicações acerca do PCS estão no início deste livro, logo não nos deteremos às mesmas.

86 Caminhadas de universitários de origem popular

palavras daqueles que vivem a realidade dos estigmas introduzidos por uma sociedade ex-cludente e injusta. Nós, oriundos da periferia e espaços populares, representantes da classe social mais pobre de nossa sociedade, podemos tratar com muita propriedade aquilo que vivenciamos no nosso cotidiano, a realidade de exclusão e injustiças.

O primeiro aspecto que nos saltou aos olhos quando analisávamos os relatos do grupo foi o número de vezes que as pessoas prestaram vestibular. Segundo Luiz Antônio Cunha (2004), no artigo “Desenvolvimento desigual e combinado no ensino superior – Estado e Mercado”, a criação dos exames vestibulares remonta aos anos de 1911:

A desvalorização econômica e simbólica do diploma levou à criação dos exames

vestibulares, em 1911, medida esta seguida de outras com o mesmo contenedor,

que culminaram, em 1925, com a adoção do critério de numerus clausus para

o ingresso.9 (p. 801)

Percebemos que os exames vestibulares, bem como o limite de vagas oferecido por cada curso, foram criados a fi m de valorizarem os diplomas. Se meditarmos, tomando como parâmetro, a universidade pública, perceberemos que o objetivo foi alcançado. Pois, atual-mente, um diploma de curso superior público é muito valorizado. No entanto, a inserção nas faculdades públicas, principalmente nas federais, por parte das camadas mais populares tem sido muito difícil. É o que percebemos nos relatos de Cláudia, graduanda do sexto período do curso de Letras, que precisou prestar vestibular por quatro vezes:

Quando estava no terceiro ano do segundo grau resolvi que estava na hora de fazer

um cursinho e me preparar para o vestibular. [...] Tinha dúvidas e não conseguia

resolver os exercícios, em parte por não gostar de algumas matérias e por outro

lado por nunca ter visto as matérias [...]. Não passei

No ano seguinte [...], apesar dos esforços não conseguiria novamente passar.

Já no terceiro ano de pré-vestibular [...] minha irmã resolveu fazer as provas

também e para a minha tristeza naquele ano ela passaria e eu não.

No ano seguinte [...] existia uma enorme torcida para que eu passasse e fi nal-

mente um milagre aconteceu [...] APROVADA, na hora não acreditei fi quei dura

igual a um pau, depois a explosão de emoção e alegria, eu pulava igual a saci.

(Cláudia)

Elaine Caldeira, quarto período de Dança, precisou de duas tentativas para conseguir a inserção na faculdade pública:

Em 2002, tentei o primeiro vestibular, para a Universidade Federal do Rio de

Janeiro (UFRJ) e para a Universidade Federal Fluminense (UFF). [...] Fiz as

provas e fi quei na lista de espera e muito longe. Mas não me importava, sou

teimosa, tentaria de novo. [...] Na UFF, também não havia passado, fui anulada

na primeira etapa.

9 “Cada curso passou a ter um número limitado de vagas, que cada faculdade só poderia elevar com autorização ministerial”.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 87

[...] Neste ano [2003] pedi isenção para as duas faculdades do ano anterior e

consegui isenção total para as duas. [...] No da UFF, mais uma vez não consegui

passar para a segunda fase. [...] Fui para o curso de informática e no fi nal da aula

abri meu e-mail para ver o resultado do vestibular da UFRJ, fi quei radiante [...]

passar no vestibular era a minha maior felicidade e agora conseguiria realizar

meu sonho de fazer o curso de dança. (Elaine Caldeira)

Passamos para o relato de Elaine Rangel, sexto período de Enfermagem, que precisou fazer os exames duas vezes, sendo aprovada na Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO) na primeira tentativa, mas quando na segunda, sendo aprovada para a UFRJ, optou pela mudança de curso:

...Fiz todas as provas do vestibular para as faculdades as quais tentava ingressar.

Neste ano tentava acessar o curso de Odontologia ou Nutrição. Ao sair o resultado,

havia sido aprovada, mas não classifi cada.

Mas como havia recebido a notícia por volta do meio do ano [de que havia passado

para a UNIRIO], eu estava inscrita no vestibular de três universidades [...] resolvi

fazer as provas, desta vez descontraída. Dentre as três universidades, passei para

duas: UERJ e UFRJ. (Elaine Rangel)

Elizabeth Maria, nono período de Letras (Português-Alemão), precisou de duas tentativas para ingressar na universidade pública:

No ano seguinte [1995], preparei-me para o vestibular, mas por mísero um ponto

não passei para nutrição e hoje fi co feliz por isso. Então, fi z o vestibular de 2001

para a UFRJ e passei para Português-Alemão, minha primeira opção. (Elizabeth)

Érica, décimo segundo período de Dança, também precisou prestar vestibular duas vezes:

...O primeiro vestibular tentei para educação física que acreditava que com esse

caminho conseguiria alcançar o meu objetivo profi ssional, mas não passei.

No ano seguinte, ano de 1998 tentei vestibular para dança. [...] Chegado o dia do

resultado acordei cedo e fui até a banca de jornal, comprei o jornal dos Sports

que era o mais barato. Quando vi meu nome na listagem fui tomada por um mexi-

lhão de sentimentos. Medo, surpresa, alegria, dúvida, mas ao longo do dia fui me

acostumando com a idéia de ser agora uma universitária de dança. (Érica)

João Paulo, quarto período de História, precisou de três tentativas:

Fiquei nesse pré-vestibular por três anos. No primeiro, sabendo de minhas de-

fi ciências escolares, fui às aulas principalmente para relembrar e reforçar o que

havia aprendido no segundo grau. O curso foi bem, e nesse ano fi z um grupo de

amigos. Como ninguém passou no vestibular daquele ano, mas um laço havia

sido criado, a maioria voltou no ano seguinte para continuar a busca pela vaga

na universidade. [...]Assim como outros, eu também estava cansado. Estudara

88 Caminhadas de universitários de origem popular

e não tinha conseguido a minha vaga no ensino superior, já estava ali havia

dois anos, tudo parecia se colocar contra minha aprovação. [...] No começo

do ano seguinte, três anos depois de entrar no pré-vestibular, consigo chegar

à universidade. Eu não conseguia acreditar. Já estava preparado mentalmente

para encarar mais um ano de pré, conformado com a desclassifi cação, quando

encontro um papel com notas do vestibular do ano anterior e vejo que as mais

baixas são menores que a minha nesse ano. Fiquei esperançoso, mas esperaria

a confi rmação ofi cial. Passei, mas tudo parecia surreal. (João Paulo)

Jorge, quarto período de Letras (Português-Grego), precisou de duas tentativas:

...Pensava em ser psicólogo, sociólogo, assistente social ou professor (de fi loso-

fi a ou literaturas). Daí em diante pensava em terminar meu curso e trabalhar

na área para poder bancar minha faculdade. Quando falei com minha mãe da

minha escolha profi ssional, meu mundo caiu: Ela queria que eu fosse Enge-

nheiro. Brigamos. E ela me obrigou a prestar vestibular para engenharia. Fiz

e me reprovei. [...]

Cursei um ano de pré-vestibular comunitário e durante esse ano continuei tra-

balhando. Lá decidi meu curso: Português-Grego, pois a Literatura e a cultura

grega me fascinavam. Me escrevi em três vestibulares: UERJ, Uni-Rio e UFRJ;

passei nos três. Enfi m meu sonho. (Jorge)

Kelly, sétimo período de Artes Cênicas, precisou de cinco tentativas:

...E fi z meu primeiro vestibular grávida do meu fi lho mais velho. É claro pela base

que eu tinha não passei. Mas percebi que meu pai desejava muito isso, e eu tinha

essa dívida com ele, entrar na universidade para fazê-lo feliz. Por isso, por cinco

vezes fi z vestibular, e passei. (Kelly)

Patrícia, oitavo período de Letras (Português-Literaturas), precisou de duas tentativas:

...Minhas amigas de turma e eu, fi zemos vestibular para a UFRJ, e optamos

pelo curso de medicina, não querendo nos menosprezar, mas não estávamos

preparados para um curso tão concorrido, não obtivemos êxito, e cada um

tomou um rumo em suas vidas. [...] No meio do ano de 2000, para incentivar

minha irmã em sua preparação para o vestibular, me inscrevo no pré-vestibu-

lar comunitário no qual permaneço até quase o fi m do ano, pedimos isenção

para as universidades, incluindo a UFRJ, mas de todas acabo optando por

prestar o vestibular somente para a UFRJ, pois minha irmã estava num grau

tal de desanimo que não desejava nem fazer as provas, e para minha alegria

e infelicidade, eu sou aprovada e ela não, foi um momento difi cílimo, do qual

chorei bastante até supera-lo, mas graças a Deus, no fi nal de 2002, minha

irmã consegue ser aprovada em duas instituições federais, optando por cursar

letras assim como eu na UFRJ. (Patrícia)

Universidade Federal do Rio de Janeiro 89

Ralcicléa, quarto período de Dança, também precisou de duas tentativas:

...No decorrer deste ano, tentei meu primeiro vestibular, e consegui isenção de

taxa de inscrição na UERJ e na UFRJ. Tentei os cursos de jornalismo e história,

mas não consegui passar.

...Ano de 2005. Como vocês já sabem passei, para Universidade Federal do Rio de

Janeiro (UFRJ), curso Dança, até hoje nem sei se eu passei na UERJ, mas tanto

não importa, pois passei para o curso que tanto gosto. (Ralcicléa)

Rejania, sexto período de Serviço Social, precisou de três tentativas:

...O meu primeiro ano só quis conhecer como era as provas, sabia que não

estava preparada ainda. O que eles exigiam era muito além do que eu tinha

aprendido na escola pública. [...] No segundo ano de pré-vestibular pus em

minha cabeça que seria o meu ano. Coloquei como meta a minha aprovação,

queria passar de qualquer jeito, mesmo sem estudar como se deve. [...]Pelos

meus cálculos passaria sem problema. Contudo a prova foi cancelada e na

segunda prova zerei a bendita física e fi quei reprovada. [...] Nesse ano tinha

a certeza de que passaria eu não concebia a idéia de fazer mais um ano de

pré. [...] A primeira universidade que passei foi a PUC. [...] Pouco tempo

depois descobri que passei para a UFRJ. Fiquei mais aliviada por ser mais

próximo de casa também fi z minha inscrição numa boa. Depois descobrir que

passei também pra UERJ, mas nem fi z a inscrição, pois ela estava em greve.

(Rejania)

Como o prezado leitor pode perceber, dos dezesseis alunos pertencentes ao grupo analisado, apenas cinco realizaram os exames vestibulares uma única vez e conseguiram a aprovação, quais sejam: Andrea, sexto período de Letras (Português-Francês), Eloana, segundo período de Serviço Social, Maria do Socorro, oitavo período de Letras (Português-Literaturas), Paula, quinto período de História, e Viviane, quinto período de Direito. Dentre as quais, merece destaque Viviane, que se graduará em um dos cursos mais concorridos e de maior média necessária para aprovação no vestibular da UFRJ.

Compreendemos que um dos fatores que difi cultam o acesso ao ensino superior público, por parte das camadas mais populares, são os exames vestibulares. Então, uma alternativa seria prontamente dada, a extinção dos mesmos. No entanto, a extinção do vestibular resultaria numa desqualifi cação do ensino superior público. Precisamos meditar no motivo pelo qual os alunos oriundos das classes mais pobres da sociedade encontram tantas difi culdades em serem aprovados nos exames vestibulares.

Voltamos à análise do grupo e percebemos que a maioria dos integrantes relata que não estava preparada para a realização das provas. Em outras palavras, tanto o Ensino Fun-damental como o Médio não nos prepararam para as provas, sendo necessário, na maioria dos casos, recorrer a cursos pré-vestibulares, ainda que comunitários.

No primeiro relato analisado, o de Andrea, percebemos que a mesma sempre estudou em escolas públicas e que precisou recorrer a um curso pré-vestibular comunitário. Note-se

90 Caminhadas de universitários de origem popular

também a afi rmação da defasagem do ensino público, expressa com a afi rmação de falta de professores durante o Ensino Médio:

Apesar de eu adorar estudar e fazer muitos amigos, a escola, a partir da 3ª série,

já não era a mesma para mim. Estudava no Luther King, na Praça da Bandeira, e

morava no Catumbi (Morro da Mineira). [...] Aos dez anos tivemos que nos mudar

para Santa Dalila (Estado do Rio). Foi uma catástrofe. Longe dos amigos e longe

da escola (já havia sido transferida para o colégio Estados Unidos no Catumbi).

[...] No 2º grau (hoje o ensino médio) já morando com minha tia, as difi culdades

também surgiram. Estudava no Colégio Estadual Amaro Cavalcanti (Largo do

Machado), já defasado na época, quase não tinha professores e nem sempre minha

tia tinha dinheiro de passagens para que eu fosse estudar. O jeito era andar do

Bairro de Fátima até o Largo do Machado [...] Desempregada, voltei a estudar

em um curso pré-vestibular comunitário próximo a minha casa. Depois de muito

esforço consegui ser classifi cada. (Andrea)

Cláudia relata que precisou recorrer a cursos pré-vestibulares, inicialmente em um mais “caro” e posteriormente num mais “barato”, tendo muitas difi culdades com algumas matérias por conta de um Ensino Médio técnico:

Quando estava no terceiro ano do segundo grau resolvi que estava na hora de

fazer um cursinho e me preparar para o vestibular. Logo que cheguei à sala de

aula levei um susto porque percebi imediatamente que estava entrando em um

outro mundo, pois esse cursinho era relativamente caro e a condição de vida dos

alunos de lá era superior a minha, mas continuei até o fi nal não desisti na época

eu acreditava que bastava vontade para passar no vestibular, mas a realidade era

muito outra. Tinha dúvidas e não conseguia resolver os exercícios, em parte por

não gostar de algumas matérias e por outro lado por nunca ter visto as matérias,

pois estava cursando um segundo grau técnico e lá as matérias priorizadas eram

as técnicas e não as normais. [...] Não passei, fi quei arrasada, mas continuei

tentando. No ano seguinte procurei um outro cursinho dessa vez mais barato,

porém com o mesmo grau de qualidade. (Cláudia)

Elaine Caldeira relata que sempre estudou em instituições públicas de ensino, recor-rendo a um curso pré-vestibular num curto período. Note-se a última passagem selecionada, na qual relembra a frase de um professor e reconhece a inefi ciência do ensino público, mas afi rma ser possível conquistar “um espaço”, ou seja, a tão sonhada universidade pública, através da determinação:

Na minha lembrança o primeiro colégio a estudar foi a Escola Estadual Visconde de

Sepetiba [...] Nos mudamos quando a Escola Municipal Comendador Délio Pereira

Sampaio fi cou pronta. Nesta estudei com tia Marinete na primeira série, era muito

boa e os alunos gostavam muito dela. [...] Fui para quinta séria, estudando no

colégio onde começou a minha vida de estudante o Colégio Estadual Visconde de

Sepetiba.[...] Então fui para a Escola Estadual de Magé (CEM), minha mãe queria

Universidade Federal do Rio de Janeiro 91

que fosse para o Instituto Professor Carlos Camacho que era formação de profes-

sora, o que minha irmã mais velha cursou, ela via na profi ssão de professor uma

melhor chance no mercado de trabalho, mas não era isso que eu queria. [...] No

início deste ano (2001) comecei a fazer vestibular comunitário, mas só fi quei dois

meses. [...] O ensino médio é bom e eu sou bom, essas palavras ainda estão vivas no

meu coração, [o professor] não falou no sentido que o ensino público é maravilho

porque ele não é, mas temos que passar por cima destas diferenças e não cair no

pensamento que muitas pessoas têm e desistem do caminho, pois falam que o ensino

é muito desqualifi cado, não temos como competir com quem vem de um ensino forte,

mas lembro desta frase do professor, “quem faz o ensino é a gente”, temos que lutar

para ganhar o nosso espaço, nossos sonhos. (Elaine Caldeira)

Elaine Rangel recorreu a dois cursos pré-vestibulares, sendo o primeiro fi nanciado por seu pai e o segundo comunitário, que custava R$10 (dez reais) mensais:

...Após pensar bastante e contar com o apoio do meu pai optei por fazer pré-ves-

tibular em Madureira; apesar de ser mais um custo na renda familiar, ele assim

preferiu. ...Desta vez, quis continuar para demonstrar para mim que eu era capaz.

Iniciei novamente o pré-vestibular, agora num curso comunitário que custava dez

reais mensais. Nesse local conheci pessoas maravilhosas que se tornaram amigos.

E diferentemente do outro curso, não havia clima de rivalidade, procurávamos

ajudar um ao outro, tirando dúvidas, revendo juntos questões dos vestibulares

anteriores. (Elaine Rangel)

Selecionamos um relato de Elizabeth em que a mesma aponta diferenças substanciais entre o ensino público e o privado, quando no Ensino Fundamental, e outro no qual Elizabeth afi rma ter recorrido a um curso pré-vestibular comunitário a fi m de ingressar numa univer-sidade pública, após uma primeira tentativa frustrada:

Em 1992, estávamos voltando para Brasília, mais uma vez no meio do ano. Tirava

a maior onda, pois no Rio estudava em colégio particular e lá em escola pública,

ou seja, estava sempre na frente e graças a isso e por motivação de uma professora

de Português, comecei a dar aulas de reforço e particular. [...] Durante o curso de

alfabetização de adultos, conheci uma militante, a qual me convidou para estudar

no pré vestibular comunitário organizado por ela e graças a suas orientações,

escolhi o curso de Letras, no qual me realizei profi ssionalmente. (Elizabeth)

Érica pôde transitar por instituições públicas e privadas durante o Ensino Fundamental e em seu relato podemos perceber a defasagem do ensino público, expressa quando a mesma cita a ocorrência de greve do funcionalismo – quadro de professores.

A referida aluna estudou a maior parte de sua vida em estabelecimentos públicos de ensino e nos chama a atenção o relato sobre o aspecto físico do colégio que estudou quando no seu Ensino Médio. Podemos imaginar muito mais uma verdadeira prisão, com direito a “infratores” e “policiais”, do que um colégio. No último trecho, Érica relata ter recorrido a um curso pré-vestibular comunitário, ainda que num espaço curto de tempo:

92 Caminhadas de universitários de origem popular

...Com a doença de meu Pai eu e meus irmãos, perdemos o benefício de bolsa

na escola que estudávamos. [...] Tivemos então que mudar de escola. Saímos da

escola que estudávamos que era particular e fomos para uma escola estadual.

[...] Devido a greve de professores da rede estadual de ensino já durar mais

de um mês mamãe trocou–nos novamente de escola. Agora para uma outra

escola particular, mas com as mensalidades bem mais acessíveis à nossa re-

alidade. [...] No ano de 1991, passamos a estudar em uma escola municipal

de São Gonçalo. Iria cursar a sexta-série. [...] Em 1993, estava terminando o

primeiro grau e precisava agora fazer prova para pleitear uma vaga em uma

escola que oferecia o segundo grau, atual ensino médio. [...] Agora nessa

escola a adaptação foi bem mais difícil do que na primeira escola estadual lá

na quarta série. Essa escola era no centro de Niterói então aco-lhia pessoas

de várias comunidades populares. Principalmente das redondezas da escola.

E mais uma vez o fato de ser nova demais era complicado para mim. Nem ao

banheiro eu ia; os corredores eram compridos, a escola não tinha janelas,

apenas quadradinhos nas paredes, do qual avistávamos com muito custo a

rua. A escola parecia um presídio. Quem passava no ônibus não imaginava ser

ali uma instituição de ensino e aprendizagem. Os meninos viviam explodindo

os vasos sanitários. Tinha uma galerinha na minha turma, do primeiro ano,

que viviam ameaçando as pessoas. Diziam que iriam empurrá-los de escadas

abaixo. A escola tinha quatro andares e era fria e obscura. Foi nessa escola

que tive o primeiro contato com a realidade das drogas. Uma amiga de turma

levava para escola e oferecia para mim e para outras pessoas no banheiro.

Formavam-se rodinhas para o uso de maconha. Não acredito que a direção

da escola não tomasse conhecimento, mas por inúmeros motivos fazia “vista

grossa”. Mas entre difi culdades e medos ia sobrevivendo. [...] Não tinha

condições de pagar um curso de pré-vestibular. Cheguei até a fazer um pré-

vestibular comunitário promovido pela igreja católica de um bairro próximo,

durante um período, mas não foi muito tempo. (Érica)

Eloana estudou sempre em instituições públicas de ensino e pôde atribuir duas caracterís-ticas às mesmas: “má qualidade” e um “ensino defi ciente”. Eloana pensava ser de fundamental importância o ingresso num pré-vestibular a fi m de adentrar numa universidade pública. Assim, afi rma ter recorrido a um pré-vestibular comunitário. Note-se ainda, nos primeiros trechos, o relato de transferência obrigatória entre as instituições de ensino, bem como a repetência da terceira série, talvez por falta de nivelamento do ensino nas instituições escolares:

...Por morar perto de um CIEP que havia acabado de ser construído fui

transferida para ele sem aviso prévio, tinha que me adaptar a um novo local

o qual eu passaria o dia inteiro e não mais meio período. [...] No CIEP cursei

da primeira a terceira série, já estava acostumada e mamãe insatisfeita, ela

não aceitava o fato de eu ter sido transferida sem qualquer possibilidade de

escolha, com isso em mente ela conseguiu uma vaga na escola em que havia

cursado o CA, que para me aceitar novamente me submeteram a uma prova

Universidade Federal do Rio de Janeiro 93

de nivelamento para ver se eu tinha realmente condições de cursar a quarta

série, a mesma escola que três anos antes me transferira para uma escola que

garantia ter o mesmo nível de qualidade, agora me submetia a uma prova para

testar meus conhecimentos;, prova esta na qual fi quei reprovada, não sei se

por inferioridade no ensino que tive ou por ela ter sido aplicada após um mês

de férias sem pegar em livro ou caderno, com isso tive que refazer a terceira

série tendo “passado de ano”. [...] No terceiro ano troquei o turno da tarde

pelo da manhã, pois precisava trabalhar à tarde e início de noite, era o ano

em que muitos fazem pré-vestibulares, porém para mim não era possível, sabia

que nem adiantaria fazer as provas, pois este foi também o ano em que casei,

não tinha como conciliar: trabalho, escola, pré-vestibular que para mim era

essencial tendo em vista o ensino defi ciente que tive no ensino fundamental

e médio, ambos cursados em instituições publicas de má qualidade. [...] Em

2004 a situação mudou, tinha terminado o ensino médio e não estava mais

trabalhando, era hora de preparar-me para a faculdade; estava de volta ao

CEASM, dividindo os estudos somente com os afazeres domésticos, visto que

não encontrava emprego que desse para conciliar, emprego e pré-vestibular,

o qual eu não abri mão. (Eloana)

João Paulo recorreu a um curso pré-vestibular comunitário e nele permaneceu por três anos até conseguir ingressar na universidade pública. Chamamos a atenção para a parte em que o mesmo afi rma que possuía defi ciências escolares:

...Uma amiga me indicou um pré-vestibular comunitário, em uma escola não muito

distante de casa. ...Fiquei nesse pré-vestibular por três anos. No primeiro, sabendo

de minhas defi ciências escolares, fui às aulas principalmente para relembrar e

reforçar o que havia aprendido no segundo grau. (João Paulo)

Jorge também afi rma ter recorrido a um curso pré-vestibular comunitário:

“(...) Cursei um ano de pré-vestibular comunitário e durante esse ano continuei

trabalhando”. (Jorge)

Patrícia estudou a grande parte de sua vida em estabelecimentos públicos de ensino, podendo relatar sobre as várias transferências obrigatórias entre escolas, o que já percebemos também no relato de Eloana, bem como a falta de professores nas mesmas. No último trecho, observamos que Patrícia também precisou recorrer a um pré-vestibular comunitário:

Um pouco depois de nos mudarmos minha mãe me matricula em uma escola

particular para que eu venha a cursar o CA, depois vou para uma escola mu-

nicipal no bairro mesmo, onde concluo o meu primário, e sou transferida para

uma escola municipal que tinha sido recém construída, mas como se localizava

em um bairro muito distante do centro, não tinha o quadro de professores, e

todos os alunos do colégio foram transferidos para Santa Cruz, bairro vizinho

a Paciência, mas esta transferência só durou um ano, e voltamos para o colé-

gio, onde conclui meu ginásio, e lá tomei conhecimento do 2° grau, de suas

94 Caminhadas de universitários de origem popular

especializações técnicas, cheguei a fazer prova para o CEFET, mas não obtive

êxito. Fiz prova também para o colégio estadual Daltro Santos, em Bangu, e fui

aprovada no curso de Patologia Clinica [...]. Para incentivar minha irmã em

sua preparação para o vestibular, me inscrevo no pré-vestibular comunitário

no qual permaneço até quase o fi m do ano [...]. (Patrícia)

Paula estudou boa parte da vida em estabelecimentos públicos de ensino. Merece destaque o trecho em que a mesma caracteriza o aspecto físico de um colégio, bem como o nível de ensino, considerado “fácil” quando comparado ao particular. No segundo trecho, Paula estabelece mais defi ciências no ensino público, quando expõe acerca das disciplinas oferecidas no Ensino Médio, afi rmando não ter sido preparada para o vestibular. No último trecho, Paula afi rma ter recorrido a um curso pré-vestibular, que foi fi nanciado pelo pai, e expõe as difi culdades decorrentes de um ensino de má qualidade:

...Quando passei para a 5ª série, meus pais me informaram que iriam me colo-

car num colégio público porque já não conseguiam pagar as mensalidades do

particular, que iriam aumentar uma vez que passei para uma nova fase. Minha

mãe então, me levou para conhecer meu novo colégio. Era horrível! Paredes

rabiscadas, não tinha quadra coberta, nem banheiros com chuveiros para

tomarmos banho após a Ed. Física e fediam muito. Para completar, não havia

uma biblioteca. Chorei muito, mas acabei me adaptando. Logo me senti à von-

tade porque os alunos eram iguais a mim e porque ninguém mais me cobrava

as mensalidades, mas por outro lado, demorei a me adaptar ao ensino porque

era muito diferente do que eu estava acostumada. Tudo muito fácil. [...] Quando

terminei a 8ª série, aos 13 anos, decidi não fazer Formação Geral, pois só exis-

tia este curso no colégio onde estudava. Passei a estudar no Colégio Estadual

Vicentina Goulart, em Miguel Couto, cursando Formação de Professores. [...]

Algumas matérias eu não tive, como Física e Química e outras eu só tive no 1º ano,

como História, Geografi a e Matemática. Estudei Filosofi a, Sociologia, Didática

Geral, Psicologia e estagiei em escolas públicas nos três anos de estudo. Não

estava preparada para o vestibular. [...] Decidi fazer faculdade e descobri que

precisava cursar um Pré-vestibular e meus pais, que sempre me apoiaram, me

aconselharam a procurar um [...]. Assim, me matriculei em um pré-vestibular

que meu pai poderia pagar, mas que não era bom. [...] Quanto mais estudava,

mais me dava conta de que meu Ensino Médio não havia me preparado para o

vestibular. Precisava me esforçar mais para aprender o que os professores me

ensinavam. Tudo era novo pra mim. Durante um ano estudei 10 ou 12 horas

por dia. Sabia que era quase impossível passar na primeira tentativa, mas era

a única oportunidade que tinha porque meu pai dizia que se não passasse iria

ter que trabalhar no ano seguinte, pois não teria condições de pagar mais um

ano de pré-vestibular [...] (Paula).

No relato de Rejania, percebemos que a mesma precisou recorrer a cursos pré-vestibu-lares, sendo particulares e comunitários:

Universidade Federal do Rio de Janeiro 95

...Antes de ser demitida comecei a fazer curso pré-vestibular na tijuca. Lá fi quei

por dois anos.

...A vontade de estar perto de meus amigos de paróquia me fez sair do pré-vestibular

da Tijuca e ir para o novo em minha paróquia. [...] (Rejania).

Viviane pôde estudar um curto período em instituição de ensino particular, benefi ciada por uma bolsa de estudos, mas, logo depois, adentrou em instituições públicas. No segundo trecho, chamamos atenção para o aspecto físico da instituição, classifi cado por Viviane como “feio”. Nos trechos seguintes, Viviane relata o fato de ter cursado um pré-vestibular, sendo auxiliada por uma pessoa que possuía um engajamento social, porém manifestando certo descontentamento com o ensino público. Afi rma que o ensino público é de má qualidade e que os jovens estudantes destas instituições não têm a mesma oportunidade dos que provém de instituições particulares, fato reconhecido não só por ela, mas também pelas pessoas em geral. Note-se o relato sobre as frases preconceituosas que Viviane ouviu quando no curso pré-vestibular:

...Cursei o CA e a 1ª série em uma escola particular (Colégio Catorze de

Novembro) porque, na época, meu pai trabalhava em uma empresa que pa-

gava as mensalidades das escolas dos fi lhos dos funcionários. [...] Meu pai

fez um grande sacrifício para manter minha irmã e eu em nossas escolas. No

entanto, apesar de sua vontade meu pai já não tinha como arcar com nos-

sas mensalidades. E como minha irmã já estava prestes a terminar o Ensino

Fundamental (antigo ginásio), meu pai optou por mantê-la em sua escola e

matricular-me numa escola pública. [...] No ano letivo posterior, ingressei na

Escola Municipal Professora Laura Sylvia Mendes Pereira e nela estudei da

2ª a 4ª série. Na 5ª série comecei a estudar em outra escola, que era do outro

lado da rua anterior. A Escola Municipal Marechal Mascarenhas de Moraes

era muito feia, fi sicamente e os alunos eram muito bagunceiros.

Nesse mesmo ano (1999) estava fazendo um curso preparatório para fazer

provas para várias escolas públicas de Ensino Médio [...]. Ingressei na Escola

Técnica Estadual Ferreira Viana (ETEFEV) e fi z várias amizades. [...]Um certo

dia, no curso de espanhol, Lola me chamou para conversar e perguntou-me se

eu pretendia fazer vestibular e qual a área que eu pretendia seguir. Acabei re-

spondendo que estava inclinada a fazer Arquitetura. Mais tarde resolvi revelar

a minha verdadeira vocação: Direito. Então, Lola me disse que tinha um aluno

que ajudava pessoas que queriam lutar por seus sonhos, e que ele lhe havia

pedido que escolhesse mais uma pessoa que ela gostaria que fosse benefi ciada

com a oportunidade de se preparar para o Vestibular. Isso aconteceu no ano

de 2001, quando eu estava no 2° ano do Ensino Médio[...].

Sem dúvidas que fi quei muito feliz, mas confesso que também fi quei com medo

de não conseguir responder à confi ança em mim depositada. Também fi quei

triste, pois esta chance que a mim estava sendo concedida era um retrato vivo

96 Caminhadas de universitários de origem popular

da omissão dos órgãos competentes de realizar políticas públicas que viabili-

zassem esta oportunidade a todos os demais jovens que, como eu, buscavam um

curso universitário numa instituição nomeada e de qualidade: a universidade

pública. Será que se nossas escolas públicas tivessem um ensino de melhor

qualidade não se tornariam elas um modelo de ingresso na universidade pública

e todos os jovens que nelas pretendem ingressar não precisariam esperar por

oportunidades oferecidas por esforços de particulares que possuem consciência

de seu papel social?

[...] Talvez tenha sido no pré-vestibular o momento em que mais tentaram

apagar essas lições que estavam escritas em meu coração. Mais uma vez

o fantasma da desigualdade social veio me assombrar. A maioria das pes-

soas que estudava comigo tinha nitidamente mais condições de conquistar

uma vaga no vestibular do que eu. Também me deparei com várias frases

preconceituosas que tentaram rebaixar o meu estímulo, tais como “Você que

estudou e estuda em escola pública deve sentir muita difi culdade nas provas

do vestibular”; “Você já pensou como vai ser difícil manter fi nanceiramente

a carreira de Direito? Certamente você terá que trabalhar e não terá tempo

para estudar” (Viviane).

Do grupo analisado, percebemos que a maioria dos integrantes estudou em instituições públicas de ensino durante todo o período escolar ou grande parte dele, com exceção de Kelly, Ralcicléa e Elaine Rangel10. Como o leitor pôde perceber, nos relatos são comuns as críticas ao ensino ministrado nas instituições públicas, ou seja, críticas ao Ensino Fun-damental e Médio.

Afirmações como greves, falta de professores, transferências obrigatórias entre as instituições educacionais, violência freqüente, além do aspecto físico deplorável destas instituições, também são exemplos de críticas presentes nos relatos analisados anteriormente. Ao constatarmos estes dados podemos entender por que os alunos oriun-dos das camadas mais pobres encontram tamanha dificuldade em serem aprovados nos exames vestibulares.

Parece contraditório o fato de que o ensino superior, o cume da montanha, tenha sido con-struído em bases nada sólidas. É o que podemos confi rmar nas palavras de Cláudio de Moura Castro (2002) em seu artigo Nossa educação: muito atrasada, mas tentando recuperar-se:

A educação brasileira teve um desenvolvimento desequilibrado. Em contraste com a

pirâmide educacional da maioria dos países – mesmo na América Latina –, o topo

cresceu mais que a base. Em outras palavras, a educação superior desenvolveu-se

antes que o ensino fundamental tivesse um mínimo de competência para atender

aos alunos. Em termos de quantidade e qualidade, a educação fundamental e

média permanece defi ciente. (p. 120)

11 As outras três pessoas, Kelly, Maria do Socorro e Ralcicléa, não relatam ter recorrido a pré-vestibulares.10 Ressaltamos que algumas pessoas não relataram sobre seus respectivos estabelecimentos de ensino, quais sejam: Maria do Socorro e Jorge.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 97

Entendemos que algo precisa ser feito para que não ocorra um desmoronamento da pirâmide educacional brasileira. É necessário o investimento de base no ensino brasileiro e não medidas políticas voltadas somente para a ampliação da acessibilidade nas universidades públicas e particulares, mas que não atentam para a questão da permanência. Entendemos que tais políticas funcionam apenas como medidas paliativas. Assim, concordamos com Luiz Antônio Cunha (2004), quando esse afi rma:

“Ao invés da expansão quantitativa, para cuidar, depois, da qualidade, o que

precisamos é providenciar a multiplicação da qualidade, a custos cada vez mais

baixos e para cada vez mais gente”. (p. 814)

No parágrafo anterior, estávamos nos referindo particularmente ao Programa Universidade para Todos (PROUNI), programa instituído a fi m aumentar o acesso das camadas mais pobres ao ensino superior particular.

Como o presente trabalho não objetiva uma discussão mais aprofundada acerca deste assunto, voltemos a nossa análise.

Podemos constatar que dos dezesseis alunos do grupo analisado, treze precisaram recorrer a cursos pré-vestibulares11 , em sua maioria, comunitários. Podemos concluir então, afi rmando que uma das difi culdades prementes dos alunos oriundos de camadas pobres da sociedade em alcançarem a universidade pública é a baixa qualidade de ensino nas instituições públicas de Ensino Fundamental e Médio.

Segundo alguns autores, a universidade é marcada pela “diversidade de mundos” possibilitando uma nova realidade, ampliada por conta das diversas variáveis sociais. Se pensarmos somente na universidade, podemos concordar com o autor, pois a diversidade promoverá um acréscimo na qualidade do conhecimento disseminado pela instituição. No entanto, se pensarmos nos alunos que adentrarão num mundo desconhecido, que não faz parte de suas realidades sociais, entenderemos a complexidade da questão.

Para maiores esclarecimentos, voltemos para o grupo em análise, a fi m de que o prezado leitor possa compreender o sentido de nossa idéia. Em alguns relatos podemos perceber que a universidade pública constitui uma realidade absolutamente diferente da realidade social em que estes alunos estão inseridos. Sendo assim, vários embates são travados.

Entendemos que a adaptação, a que Andrea se refere, é uma forma de ajuste a um mundo totalmente diferente do até então vivido, ou seja, uma outra realidade que se mostra dura e implacável, uma verdadeira “luta pela sobrevivência”:

...Assim que ingressei na UFRJ em 2003, apesar das difi culdades fi nanceiras e das

difi culdades de aprendizado, achava que estava no paraíso, que tinha acabado de

entrar para o clube dos deuses do Olimpo. Essa fantasia durou até o terceiro período.

A luta pela sobrevivência era tão intensa que o cansaço físico e mental tomaram conta

de mim. Tive quase uma estafa causada por estresse. Comecei a observar como a vida

acadêmica era solitária, como havia professores injustos, departamentos injustos,

leis injustas e como havia colegas querendo mostrar o quanto seus conhecimentos

eram maiores e/ou melhores que os dos outros. Minha proposta de aprendizado não

era essa! Na realidade não é a Faculdade que se adapta ao aluno é o aluno que,

normalmente tem que se adaptar a Faculdade. Isso é frustrante[...]. (Andrea)

98 Caminhadas de universitários de origem popular

No relato de Elaine Rangel, podemos acompanhar suas difi culdades na adaptação e continuação do curso. “Incapacidade” e falta de condições fi nanceiras adequadas para a manutenção de um curso integral, enfermagem:

...Durante estes anos de término do ensino médio e a graduação, confesso que pensei várias vezes em desistir, às vezes me sentia incapacitada ou, simplesmente, estava sem dinheiro para comprar o que queria. Enfrentei uma fase complicada nas férias de 2004/2005, pois não contava com nenhuma fonte fi nanceira, tinha que fi car em casa, porque não tinha dinheiro para sair. Cheguei a questionar a idéia de largar a faculdade e procurar um emprego, afi nal conciliar os dois é difícil, pois o curso de enfermagem na UFRJ só tem manhã e tarde. (Elaine Rangel)

No relato de Eloana podemos perceber críticas ao ensino ministrado na UFRJ, assim como elementos que apontam para a concepção de um “mundo novo”:

...A universidade não é como pintamos quando estamos do lado de fora, pelo menos

como eu pintava, pensava que os prédios eram bem conservados, os professores,

verdadeiros mestres, o campus como um local de estudo e refl exão, enfi m troca de

conhecimentos, e não o que vemos prédios abandonados, professores que não con-

seguem transmitir o conhecimento que possuem; os universitários em sua maioria

vão para lá para beber e se divertir, poucos valorizam o estudo, ocupam a vaga

daqueles que ainda sonham em fazer nível superior em instituição pública.

Por outro lado ao imaginar que só havia pessoas da classe média deparo-me com

gente como eu que lutou para superar as difi culdades impostas pela vida, luta con-

tra a sociedade que em sua maioria não nos aceita ocupando aquela vaga, muitos

contra a própria família que os vê como vagabundos por “apenas” estudarem,

porém, esta geração de universitários oriundos de comunidades de baixa renda

está lutando para mudar essa situação. Lutaremos! Venceremos?! (Eloana)

No relato de João Paulo podemos perceber um deslumbramento com um mundo novo, mas de adaptação difícil. Críticas à metodologia de ensino são estabelecidas e João afi rma não estar preparado para a universidade e nem essa para receber pessoas como ele, de origem humilde. Como prova de que é o aluno que se adapta à universidade e não o contrário, João utiliza o exemplo da exclusão digital. Na maioria dos cursos da UFRJ, para tratar de questões concernentes à vida acadêmica, faz-se necessário o acesso à internet, o que nem todos os alunos possuem.

Além desses dados apontados, João traz uma questão de fundamental importância para a nossa discussão, a formação do corpo docente das nossas universidades. Se já há uma elitização no processo seletivo de ingresso à universidade pública, por parte dos discentes, no corpo docente não é comum encontrar um professor oriundo de comunidade popular ou periferia; e podemos ir mais além, afi rmando que nós, os autores do presente trabalho, não tivemos aulas com professores negros, ou indígenas, ou defi cientes... Voltemos ao relato de João:

...Só assimilei que eu era um universitário de verdade no começo do segundo

período, passando todo o primeiro deslumbrado com o ambiente radicalmente

diferente de todos os que havia experimentado na minha vida de estudante.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 99

No início, pensei que seria segregado dentro do espaço da universidade, já que

viera de origem humilde. Pisei na faculdade no primeiro dia totalmente na de-

fensiva. Só pensava que se alguém fi zesse algo para me diminuir, iria receber

de volta na mesma moeda. “Não seria porque eu era pobre que deixaria algum

mauricinho pisar em mim!” As defesas caíram logo nos primeiros dias, quando

percebi o ambiente de relativa fraternidade dos mais antigos para com os que

chegavam. As amizades dentro da turma complementaram a sociabilidade que

passaria a ter então.

Segui, e a adaptação não foi fácil. Os professores vinham com uma metodologia

de ensino totalmente diferente das que havia visto até aqui – somente um tinha

os métodos parecidos com os dos professores do segundo grau, e por isso dava

as minhas aulas preferidas. O pior foi vê-los falando o que para mim era grego,

mas para o restante da turma era normal. Alguns dos alunos até debatiam sobre

certos assuntos com o professor! Isso aumentou em mim o clima de irrealidade

que experimentava desde que soubera da classifi cação. Comecei a ver que não

estava totalmente preparado para a universidade - e que ela também não estava

preparada para receber pessoas como eu, de origem humilde e que, por exemplo,

jamais havia entrado na Internet, só a conhecendo por ouvir falar dela. Percebi

que teria que me virar dentro do sistema, que é obrigatório e sem nenhuma alter-

nativa paralela. Tive sorte em encontrar pessoas com paciência para me auxiliar

nos momentos em que não pude fugir da rede eletrônica.

Hoje levo minha jornada universitária como se subisse grandes degraus de uma

escada que não tem fi m. Continuo achando que as universidades não contemplam a

maioria no Brasil tanto em seu corpo discente quanto em sua política de extensão

em suas produções, com linguagem específi ca e, por conseqüência, seletiva, além de

voltar sua produção para determinados grupos. Mas confi o que mudanças podem

haver quanto a isso, mesmo que elas não contemplem plenamente a necessidade

de todos como acredito que deveria ser.

Nas palavras de Jorge, podemos perceber o estado de impotência frente ao mundo desconhecido:

...1ª Aula [na UFRJ]: me senti um burro, um imbecil; vi que o vestibular não

avalia ninguém se está apto ou não para cursar uma universidade. Vi o quanto

o estudo esta deturpado nas escolas de ensino fundamental e ensino médio. Mais

deturpado e defasado ainda nas escolas públicas. Minha mãe é que me auxiliava

quanto a dinheiro. Ela não me dava o necessário, mas o mínimo, pois nem ela

tinha como me manter numa universidade, ainda que pública. Via no olhar dela

a tristeza de não poder me ajudar mais. Via a sua impotência.

No relato de Maria do Socorro, a inserção no espaço universitário foi duplamente difícil, visto que a mesma vem para a UFRJ por transferência da Universidade Federal do Pará (UFPA):

100 Caminhadas de universitários de origem popular

...Na época eu ainda não tinha terminado a Faculdade, e por esse motivo, vim

transferida para a UFRJ. [...] Em principio tudo foi um tanto assustador, pois o

universo universitário no qual estava inserida em Altamira-PA nem se compa-

rava em extensão, tudo aqui era para mim assustador. O primeiro impacto foi não

poder prosseguir com o curso, pois eu já estava no 5 º período e meu pedido de

equivalência foi indeferido devido a em Altamira-PA o curso de Letras ser somente

voltado à Licenciatura e na UFRJ a formação seria de Bacharelado e Licenciatura

portanto eu teria que cursar desde o 1º período. Dizer que eu não sofri na época

seria hipocrisia, porém não posso negar que estar na UFRJ é, para mim, fazer “mais

do que a diferença”, pois estar aqui é ter rompido barreiras que muitos jovens não

conseguem, sinto-me de certa forma privilegiada e motivada a prosseguir na minha

formação acadêmica. (Maria do Socorro)

Na expressão “sentimo-nos um pouco como um peixe” (fora da água), utilizada por Patrícia, podemos ter a real idéia do que é estar num mundo não somente novo, mas marcado pelo reconhecimento do não pertencimento:

...Na faculdade ao entrarmos nela sentimo-nos um pouco como um peixe, como

se de alguma forma não fossemos feitos para ela, tudo é diferente e ninguém se

preocupa em fazê-la familiar para nos, não é como na escola[...] É bem diferente.

E demora um tempo para que “a fi cha caia”, mas nada que o tempo não lhe faça

compreender. As difi culdades como distancia de casa, a falta de dinheiro, falta

de compreensão de professores, não devem ser empecilhos para a realização de

um sonho de estar em uma instituição publica federal. (Patrícia)

Nas palavras de Paula, temos mais uma vez a confi rmação de “um mundo diferente”. Difi culdades na adaptação ao ensino, o reconhecimento de que o ambiente universitário não havia sido destinado para pessoas de origem humilde e difi culdades materiais são os dados que destacamos:

...Passei para a faculdade e nas primeiras semanas de estudo percebi o quanto aquele

mundo era diferente e o quanto não estava preparada para vivenciá-lo. Tudo era muito

diferente do que eu estava acostumada, os professores, as aulas, os estudantes, o am-

biente... Tudo. Muitas vezes me perguntava o que estava fazendo lá. Não era a minha

realidade de vida, aquele mundo não era pra mim. Para completar o meu desespero,

ouvi um professor dizer ironicamente em uma das aulas, quando apresentava o autor

de um texto, que o autor era um “currículo anônimo”. Ele explicou o signifi cado disso,

disse que as pessoas que estudavam em colégios de má qualidade, que não sabiam

outra língua a não ser a materna, que nunca viajaram, mas conseguiam chegar em

algum lugar, se tornavam doutores, eram conhecidos como “currículos anônimos”,

casos raros. Pensei... “Se algum dia me tornasse doutora seria um currículo anônimo”.

Além disso, os professores passavam textos em outros idiomas sem se preocupar se

sabíamos os mesmos ou não e em suas aulas falavam em alemão, francês ou latim,

como se nós soubéssemos o que queriam dizer... Sempre me julguei inteligente, mas

agora, o que acontecia? Por que eu não era inteligente na faculdade?

Universidade Federal do Rio de Janeiro 101

Aos poucos pude sair da posição de “coitada”. Eu consegui aquele espaço, era meu.

Tinha direito a tudo aquilo. E se aquele mundo não havia sido preparado para mim

e para as pessoas como eu, algo precisava ser feito para mudá-lo. Pessoas como

eu podem e têm o direito de estar numa faculdade pública. E se não se preocupam

conosco, que passem a se preocupar porque desistir eu não vou [...].

Hoje percebo que o mais difícil não foi passar para a faculdade, mas tem sido me

manter na Universidade porque, apesar de ser pública, gasto muito com passagens

– são 2h15 de viagem até a faculdade –, com xérox e livros, pois meu curso exige

muita leitura, com lanches, etc. Além dos gastos fi nanceiros, outras difi culdades

muito me atrapalham, o fato de não falar outro idioma a não ser a língua materna,

de nunca ter viajado, de morar distante da faculdade e precisar acordar às 4h para

estudar às 7h, estar em ônibus e metrô cheios e chegar cansada... São muitas as

difi culdades, mas não são obstáculos intransponíveis.

Ralcicléa expõe difi culdades para a elaboração de trabalhos da faculdade, visto que não tem um computador:

...O primeiro período foi bastante calmo, já o segundo período foi um pouco brabo,

pois veio muitos trabalhos ao mesmo tempo, e como não tinha computador, tive

que escrevê-los a mão e pagar para outras pessoas digitarem. Mas tudo deu certo

e consegui terminar bem o segundo período.

Percebemos, através dos relatos anteriores, que os alunos pertencentes às camadas mais pobres da nossa sociedade experimentam difi culdades peculiares, isto é, difi cul-dades que, sem dúvida, um aluno pertencente às classes media e alta jamais passariam. Exclusão digital, difi culdades com a metodologia de ensino, cansaço físico pelo trajeto percorrido diariamente até a universidade, condições fi nanceiras que não atendem às necessidades da manutenção de um curso na universidade pública, entre outras, foram obstáculos estabelecidos por parte do grupo analisado.

Pudemos observar, ao longo do trabalho, que os alunos oriundos de classes pobres de nossa sociedade enfrentam inúmeras difi culdades para ingressarem numa universidade pública. As difi culdades não fi cam restritas somente ao ingresso, mas se manifestam também no decorrer da graduação.

Constatamos que a universidade pública não está preparada para receber o aluno oriundo de comunidade popular ou periferia, pertencente às classes mais pobres. A política estabelecida é a da adaptação ao sistema. O aluno precisa se adaptar, caso contrário, é tragado ou deixado à margem. Mas o que tem demais nisso tudo? Não é assim que a sociedade se comporta, de forma geral, para com os menos favorecidos? A política é “se vira, não nasceu quadrado”. E assim, nós, que não nascemos quadrados, estamos nos virando dentro de um sistema elitista, preconceituoso, que ao retrato da sociedade não faz mais do que nos taxar como coitados e inferiores.

Estamos reivindicando algo que é nosso por direito, visto que a educação pública é assegurada pela constituição brasileira. Mais que isso, ela nos assegura igualdade.

102 Caminhadas de universitários de origem popular

Contudo, que tipo de igualdade é essa em que nós, oriundos das classes mais pobres da sociedade, precisamos ser tratados de forma diferenciada, com quotas ou o PROUNI?

Precisamos mais do que medidas paliativas porque além do ingresso, lutamos pela sobrevivência na universidade. Nós é que somos massacrados todos os dias por um sis-tema injusto e discriminatório. Reivindicamos aos respectivos responsáveis mais do que nomes nas listagens dos aprovados. Queremos ser iguais, não queremos ser “os outros”, afi nal de contas, somos maioria na sociedade.

Muitos dos teóricos que criticam as políticas afi rmativas trazem à tona a questão da meritocracia. Mas se a questão é mérito, o que nós, que estudamos a vida inteira em colégios públicos, onde o ensino é precário e defasado, merecemos? Os ricos não estarão sempre em vantagem? Não são eles que sempre ocuparão as cadeiras dos cursos mais concorridos, como medicina e odontologia?

Fazem-se necessárias melhorias no de ensino básico no Brasil, visto estar no Ensino Fundamental e Médio a raiz de todos os males. De que outra maneira nós pode-ríamos ser tratados como iguais na questão da acessibilidade ao Ensino Superior? Não concordarmos com as soluções apontadas por Cláudio de Moura Castro (2002), que vê as parcerias público-privado como a melhor solução para a democratização do ensino superior, mas ele defi ne bem o paralelo entre educação pública e privada anteriormente ao ensino superior quando diz que

Toda a educação pública é gratuita – por determinação constitucional. Todos

os alunos, portanto, têm acesso a escolas primárias públicas, mas estas são

medíocres na maioria dos casos. Mas, para passar nos exames vestibulares das

universidades públicas, muito melhores e mais caras, os ricos que freqüentam

escolas particulares de alta qualidade têm uma clara vantagem. (p. 138)

Não podemos negar que enquanto nada estava sendo feito, ou seja, nenhuma prática voltada para ampliar o acesso dos menos favorecidos ao ensino superior era criada, a socie-dade, no geral, permanecia calada. Contudo, depois das políticas afi rmativas implantadas, tudo mudou e a sociedade não cansa de criticar.

Podemos concluir afi rmando que as medidas paliativas não constituem o ideal, mas algo precisava ser feito. Entendemos que o fundamento do sistema educacional brasileiro é que precisa ser reestruturado tanto no ensino fundamental e médio quanto no superior, e esperamos que isso ocorra em breve. Soluções que nem sempre são as escolhidas são pos-síveis, sem grandes acréscimos de fi nanciamento e talvez com maior qualidade de ensino. Porém, enquanto não acontecer, é preciso que os estudantes de origem popular sobrevivam dentro do sistema e permaneçam no interior da universidade. Para o bem de todos nós, ori-undos de comunidades carentes, mas também para o desenvolvimento de toda a sociedade brasileira preocupada com o próprio futuro.

Referências bibliográfi casCASTRO. Cláudio de Moura. Nossa educação: muito atrasada mas tentando recuperar-se. In: Brasil: fardo do passado, promessa do futuro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 117-151.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 103

* João Paulo Araújo da Silva é graduando da UFRJ, do curso de Bacharelado em História e atua como sujeito-pesquisador do PCS-UFRJ** Paula Gomes dos Santos é graduanda da UFRJ, do curso de Bacharelado em História e atua como sujeito-pesquisador do PCS-UFRJ.

RODRIGUES, Eder Bomfi m. Igualdade e inclusão social no Brasil: ações afi rmativas na UnB. Jus Navigandi, Teresina, a.10, n. 862, 12 nov. 2005. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7516Acesso em: 29.nov.2005.

CORBUCCI, Paulo Roberto. Financiamento e democratização do acesso à educação superior no Brasil: da deserção do Estado ao projeto de reforma. In: Educação & Sociedade. Campinas, v. 12, n. 88, p.677-701, out. 2004.

PINTO, José Marcelino de Rezende. O acesso à educação superior no Brasil. In: Educação & Sociedade. Campinas, v. 12, n. 88, p.727-756, out. 2004.

CUNHA, Luiz Antônio. Desenvolvimento desigual e combinado no ensino superior – Estado e mercado. In: Educação & Sociedade. Campinas, v. 12, n. 88, p.795-817, out. 2004.

Paula Gomes dos Santos*João Paulo Araújo da Silva**