universidade federal do rio de janeiro os papÉis sociais...

168
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS E A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO EM BLANCA SOL DE MERCEDES CABELLO DE CARBONERA Cláudia Regina da Silva Rodrigues 2015

Upload: hoangliem

Post on 10-Nov-2018

224 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

1

Universidade Federal do Rio de Janeiro

OS PAPÉIS SOCIAIS E A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO EM BLANCA

SOL DE MERCEDES CABELLO DE CARBONERA

Cláudia Regina da Silva Rodrigues

2015

Page 2: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

2

OS PAPÉIS SOCIAIS E A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO EM BLANCA

SOL DE MERCEDES CABELLO DE CARBONERA

Cláudia Regina da Silva Rodrigues

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do

Rio de Janeiro como requesito para

obtenção do Título de Mestre em Letras

Neolatinas (Área de concentração:

Estudos Literários Neolatinos – Opção:

Literaturas Hispânicas).

Orientadora: Professora Doutora Cláudia

Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva

Rio de Janeiro

Março de 2015

Page 3: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

3

Os papéis sociais e a representação do feminino em Blanca Sol de Mercedes

Cabello de Carbonera

Cláudia Regina da Silva Rodrigues

Orientadora: Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte

dos requisitos necessários para a obtenção do título de mestre em Letras Neolatinas

(Área de concentração: Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas

Hispânicas).

Examinado por:

______________________________________________________________

Presidente, Profa. Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva

(UFRJ)

______________________________________________________________

Profa. Doutora Suely Reis Pinheiro (UFF)

______________________________________________________________

Profa. Doutora Silvia Inês Cárcamo (UFRJ)

______________________________________________________________

Profa. Doutora Rita Diogo (UERJ), Suplente

______________________________________________________________

Profa. Doutora Sônia Reis (UFRJ), Suplente

Rio de Janeiro

Março de 2015

Page 4: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

4

Page 5: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

5

Os papéis sociais e a representação do feminino em Blanca Sol de Mercedes

Cabello de Carbonera

CLÁUDIA REGINA DA SILVA RODRIGUES

Orientadora: Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte

dos requisitos necessários para a obtenção do título de mestre em Letras Neolatinas

(Área de concentração: Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas

hispânicas).

Aprovado por:

______________________________________________________________

Presidente, Profa. Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva

(UFRJ)

______________________________________________________________

Profa. Doutora Suely Reis Pinheiro (UFF)

______________________________________________________________

Profa. Doutora Silvia Inês Cárcamo (UFRJ)

______________________________________________________________

Profa. Doutora Rita Diogo (UERJ), Suplente

______________________________________________________________

Profa. Doutora Sônia Reis (UFRJ), Suplente

Rio de Janeiro

Março de 2015

Page 6: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

6

Ao meu glorioso Deus que me proporcionou meios para alcançar as vitórias almejadas. Ao meu filho, a quem devo muito da minha força. Pelo amor nutrido por ele, fui capaz de superar limites e, ter coragem para avançar cada dia mais. Ao Rafael pelo companheirismo maravilhoso! E pelo apoio necessário para superar os obstáculos que se apresentaram no caminho. E a todos que sempre estiveram ao meu lado, que acreditaram que a minha demanda chegaria ao fim, dedico este trabalho.

Page 7: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

7

AGRADECIMENTOS

Ao nosso Senhor Deus pela oportunidade que tem me concedido nas diversas áreas

de minha vida, em especial por possibilitar a realização deste curso;

À Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva, pelo apoio

acadêmico e pela serenidade que sempre demonstrou durante a trajetória;

À Professora Doutora Helena Gomes Parente Cunha pelas leituras sedutoras que

me fizeram perceber um novo horizonte;

À Professora Doutora Angélica Maria Santos Soares (in memorian) por suas aulas

altamente elucidativas e motivadoras;

A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele toda a motivação se faz

presente e também surge quando o cansaço se torna aparente;

Ao Rafael, meu amado companheiro, que com sua paciência e capacidade de

resignação soube conduzir-me nos diversos momentos em que precisei de

sustentação;

A Maria Dalva do Carmo (in memorian), minha tia querida, por todo afeto e amparo

que dedicou a mim e a minha família;

A meus pais, sem os quais essa jornada nem ao menos teria sido iniciada.

Aos meus amigos Maria Rita Vieira Coelho e Luciano Prado da Silva que nunca

deixaram de me incentivar e auxiliar sanando as mais diversas dúvidas;

Ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas e ao CNPq pelo auxílio

financeiro e aos funcionários da UFRJ pelo apoio prestado sempre que necessitei.

Page 8: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

8

“Não to mandei eu? Sê forte e corajoso; não temas nem te espantes, porque o Senhor, teu Deus, é contigo por onde quer que andares.” Josué 1- 9.

Page 9: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

9

RESUMO

OS PAPÉIS SOCIAIS E A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO EM BLANCA SOL DE MERCEDES CABELLO DE CARBONERA

Cláudia Regina da Silva Rodrigues

Orientadora: Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-

Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Letras Neolatinas (Área de concentração: Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas Hispânicas).

Este trabalho de pesquisa tem como proposta fazer um estudo do romance

Blanca Sol da escritora peruana Mercedes Cabello de Carbonera, literatura de ordem moralizante-corretiva, onde a autora denunciou de forma sistemática um universo social que se articula segundo as condições econômicas. Pretendemos fazer uma breve análise sobre a representação da mulher e alguns possíveis papéis sociais que ela assume, com a intenção de tentar analisar o pensamento da época e a reação da sociedade; buscando identificar as contradições e conflitos resultantes das relações sociais ali existentes. Apresentamos inicialmente uma breve discussão sobre a questão da identidade para melhor elucidar a perspectiva da representação, feita através da protagonista do romance analisado, destacamos os aspectos: maternidade e infância, heroína ou anti-heroína e público e privado.

Palavras-chave: século XIX, escritura feminina, representação social.

Rio de Janeiro Março de 2015

Page 10: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

10

RESUMEN

LOS PAPELES SOCIALES Y LA REPRESENTACIÓN DEL FEMENINO EM BLANCA SOL DE MERCEDES CABELLO DE CARBONERA

Cláudia Regina da Silva Rodrigues

Tutora: Profesora Doctora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva Resumen de la Memoria presentada al Programa de Pós-Graduação em

Letras Neolatinas, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como requisito parcial a la obtención del título de Máster en Letras Neolatinas (Área de concentração: Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas Hispânicas).

Este trabajo de investigación tiene como objetivo hacer un estudio de la

novela Blanca sol de la escritora peruana Mercedes Cabello de Carbonera. En este trabajo se propone abordar la cuestión de la mujer en la sociedad y sus múltiples aspectos. Para eso se utilizará como referencia la novela Blanca Sol; literatura de caracter moralizante-correctiva, que denunció de forma sistemática un universo social que se estructura de acuerdo a las condiciones económicas. Tenemos la intención de hacer un breve análisis de la representación de mujeres y algunos de los posibles roles sociales, con la intención de intentar tratar el pensamento de la época y la reacción de la sociedad; buscando identificar las contradicciones y los conflictos derivados de las relaciones sociales existentes en el momento. He aquí una breve discursión sobre la cuestión de la identidad. Para aclarar aún más la perspectiva de la representación presentada por la protagonista de la novela analizada destacamos algunos aspectos: maternidad e infancia, heroína o anti-heroína y público y privado.

Palabras clave: siglo XIX, escritura de las mujeres, representación social.

Rio de Janeiro Marzo, 2015

Page 11: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

11

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ................................................................................................... 13

2. A MULHER E A LITERATURA ..................................................................... 20

2.1. Um olhar diferenciado .................................................................................... 25

2.2. Representação e poder no romance ........................................................... 31

3. UMA QUESTÃO DE IDENTIDADE ............................................................. 40

3.1. Identidade: pressupostos teórico-metodológicos ...................................... 41

3.1.2. A identidade entre outras percepções ................................................. 45

3.2. Configurações da identidade na sociedade moderna .............................. 47

3.3. A fragilidade das relações humanas ........................................................... 53

3.4. Breve reflexão sobre o papel social das mulheres ................................... 59

4. A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA NA NARRATIVA FICCIONAL ........ 77

4.1. O romance e sua trama ................................................................................. 81

Page 12: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

12

4.2. Focos, perspectivas e visões ........................................................................ 96

4.2.1. A Construção da Narrativa ................................................................... 101

5. POSSIBILIDADES DE REPRESENTAÇÃO NO ROMANCE BLANCA

SOL .......................................................................................................................... 104

5.1. A trajetória descrita por Carbonera em sua obra .................................... 104

5.2. Maternidade e Infância ................................................................................ 119

5.3. Heroína ou Anti-heroína? ............................................................................ 128

5.4. Público e Privado – Conflitos e Interesses ............................................... 134

6. CONCLUSÃO ................................................................................................... 140

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................... 144

8. ANEXOS ............................................................................................................ 159

Page 13: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

13

1. INTRODUÇÃO

A vida tem duas faces: positiva e negativa. O passado foi

duro mas deixou o seu legado. Saber viver é a grande

sabedoria. Que eu possa dignificar, minha condição de

mulher, aceitar suas limitações. E me fazer pedra de

segurança dos valores que vão desmoronando. Nasci

em tempos rudes. Aceitei contradições, lutas e pedras

como lições de vida e delas me sirvo.

Cora Coralina

Este trabalho de pesquisa pretende fazer uma breve análise do romance

Blanca Sol1 (1889) da escritora peruana Mercedes Cabello de Carbonera. A

excelência da narrativa Blanca Sol não reside apenas no conteúdo do romance,

situa-se principalmente nas estratégias narrativas que Carbonera utilizou para

despertar no leitor algumas reflexões sobre temas polêmicos dentro da sociedade

como a questão da mulher. A obra foi publicada primeiramente em partes em um

folhetim para depois ganhar o formato de livro.

A decisão de implementar essa pesquisa foi motivada primeiramente pelo

meu crescente interesse pela literatura, como também pela vontade de divulgar e

tornar acessível a questão da mulher na sociedade, levando o leitor a uma possível

reflexão, e incitando o interesse naqueles que procuram entender mais sobre o

assunto. Não tenho a pretensão de esgotar o assunto nem tampouco de transformar

condutas através desta pesquisa. Meu intuito é a divulgação do tema e em especial

do trabalho de Mercedes Cabello de Carbonera.

_____________ 1 A partir deste momento a obra será apresentada pela sigla BS.

Page 14: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

14

Escritoras como Mercedes Cabello de Carbonera, no Peru, Gertrudes Gómez

de Avellaneda, em Cuba, e Juana Manso na Argentina são apenas alguns dos

nomes que abordaram a temática da educação da mulher e deslocaram os olhares,

antes subjugado ao domínio patriarcal, para um panorama que conferisse valor ao

tema.

Mercedes Cabello dá ênfase à educação da mulher e à função que exercia na

família e na sociedade; ela associou o público e o privado, dentro da sociedade

burguesa. Fez uma dura crítica à educação religiosa que recebiam as meninas; na

opinião dela, a educação recebida orientava e encaminhava as mulheres por

caminhos errôneos e contribuía para arruinar tanto o domínio público como o

privado. A escrita de autoria feminina tem se mostrado presente no meio literário e

suscitado a necessidade crescente de estudos literários que consideram a questão

cada vez mais importante, face ao crescente número de escritoras que têm

publicado suas obras. Essas escrituras, na maior parte, almejam a possibilidade de

surgimento de uma identidade diferenciada para a mulher como sujeito social.

Elas almejam uma educação igualitária para mulheres e homens, assim como

também um modelo diferente daquele que somente as prepara para serem mães e

esposas exemplares. Uma educação que fosse além das aulas de bordado, música

e poesia; onde pudessem ter acesso às matérias científicas, tais como: matemática,

história, geografia etc. Defendiam que o campo de atuação feminino deveria

ultrapassar as fronteiras do lar e das atividades domésticas.

Enquanto estruturação social, a literatura de autoria feminina é responsável

aqui por revelar valores, representações sociais e significados sobre as construções

de identidades femininas.

Page 15: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

15

As escritoras comprometidas como o assunto buscavam espaços em que

pudessem compartilhar opiniões e reflexões. Os jornais locais eram um excelente

suporte para a divulgação de seus escritos. As intelectuais vinculadas ao campo

literário se reuniam em veladas y tertulias literarias2 para compartilhar e discutir a

questão.

Dentre os diversos nomes que levaram ao leitor o seu pensamento em favor

da educação feminina que valorizasse a mulher e a retirasse da situação de

dependência da família ou do marido se destaca Mercedes Cabello (1842-1909). Ela

assumiu uma postura radical; segundo a historiadora Sara Beatriz Guardia:

es Mercedes Cabello de Carbonera, quién más se ocupó de la educación femenina con un discurso diferente al de las mujeres de su generación. Ella fue una opositora tenaz del rol que la sociedad tradicional le asignaba a la mujer y combatió en todos los escritos la pasividad e inacción a la que estaba condenada. (Guardia, 2002, p. 176)

Sua obra foi muito criticada e, na segunda edição do romance BS

acrescentou um prólogo3 à obra que na verdade era uma nota explicativa. A

motivação do ato foi a necessidade de descartar possíveis comparações, não

deixando possibilidades para que houvesse confusão entre a realidade e a ficção.

Deixa claro que a função principal da obra é criar tipos humanos que reflitam vícios

que o escritor deseja corrigir muito mais que representar personagens da realidade.

______________ 2 Tertúlias e veladas literárias (tradução nossa). 3 O prólogo encontra-se na seção de anexos.

Page 16: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

16

Cabe aqui mencionar Ismael Pinto Vargas, em seu livro Sin Perdón y Sin

Olvido (2003), que descreve Carbonera como uma mulher cuja ação de “analisar,

refletir, pensar em voz alta, expressar ideias que muitas vezes vão contra a corrente

de uma sociedade profundamente patriarcal e repressiva”4 (Vargas, 2003, p.96,

tradução nossa), era incansável. Sua ideologia vai contra o pensamento dominante

masculino e provoca o distanciamento da escritora do meio literário, culminando em

seu esquecimento após a sua morte. Felizmente seu pensamento ficou guardado

em sua escritura, nos permitindo questionar acerca da temática.

A presente pesquisa buscará contribuir com a questão da construção da

identidade da personagem feminina através do universo ficcional da narrativa Blanca

Sol de Mercedes Cabello de Carbonera, assim com também algumas possibilidades

de representações sociais.

A violência simbólica representada pelo poder conferiu aos homens uma

posição de supremacia e relegou as mulheres à esfera privada, excluindo-as do

ambiente público. Para tanto será observado como a autora, envolvida em um

contexto em que predominava a dominação masculina, dimensionava determinados

aspectos relativos a não sujeição da mulher através da obra citada.

Para tais reflexões serão utilizados como arcabouço teórico - Michele Perrot

com seu conceito de Público e Privado, Pierre Bourdieu em Dominação Masculina e

Poder Simbólico, e, Gérard Genett em Discurso da Narrativa, auxiliando na

observação dos aspectos formais, técnicos e estruturais do objeto narrado.

______________ 4 No original: “analizar, enjuizar, pensar em voz alta, expresar ideas que muchas veces van a

contracorriente de una sociedad profundamene patriarcal y represiva”.

Page 17: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

17

Tendo em vista que o encadeamento homem - mulher passa pelo viés da

relação de dominação, algumas autoras procuram dar voz ao sujeito feminino

através de seus próprios escritos, buscando mudanças que atenuem cada vez mais

as assimetrias existentes neste universo. Assim foi Mercedes Cabello de Carbonera,

uma mulher com ideias muito à frente de seu tempo, que não se calou diante da

sociedade patriarcal de sua época.

A partir dos pressupostos dos Estudos Culturais em cruzamento com

aspectos teóricos da ficção literária, considera-se que a identidade da mulher é

perpassada por outras identidades, como a de gênero e classe social, tornando-se

recorrente a violência simbólica imposta às mulheres a todo momento; às vezes de

forma suave e quase imperceptível, sem que ao menos suas vítimas percebam que

estão sofrendo.

Como essa violência se configura na sociedade do final do século XIX e quais

são as consequências que trouxeram às mulheres? Quanto a essa questão,

buscaremos elucidar o assunto através do suporte teórico já citado anteriormente; e,

também nos auxiliará na abordagem de questões semelhantes apresentadas na

narrativa Blanca Sol.

Bourdieu, através de sua análise a respeito da universalização da dominação

masculina, faz com que pensemos sobre a lógica de uma história que apresenta um

“estado arcaico”; que, ainda hoje, é difundido em muitos lugares. Faz uma análise a

partir de uma perspectiva externa, não se utiliza de uma “visão masculina” sobre a

questão. A figura feminina, apresentada pela autora em Blanca Sol, tende à

categoria da anti-heroína; a personagem principal é uma mulher voluntariosa que

termina caindo no abismo da perversão total. Utiliza-se de “máscaras estéticas” para

conseguir alcançar os seus objetivos, dissimulando e mentindo todo o tempo.

Page 18: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

18

Para tanto, viola os conceitos de civilização e civilidade existentes naquele

período; e, Jean Starobinski em seu livro Máscaras da Civilização nos diz que as

pessoas são preferidas segundo o emprego “elegante”, “delicado”, que fazem dos

recursos da linguagem (...) e, vemos como a autora buscou demonstrar os vícios da

sociedade através da personagem principal, que mantinha a conduta admirável

diante da sociedade.

A questão do gênero está incluída na dualidade masculino – feminino (ou

porque não dizer feminino – masculino), porém é equivocado tratar desse problema

utilizando-se de elementos opostos ou binários, pois isto deixa a impressão de se

tratar de “forças” opostas que concorrem dentro de um mesmo sistema, onde

deveriam se limitar a existir. Esse esquema de oposições tende a desvalorizar e

inferiorizar o sujeito feminino, por isso exemplo bastante útil é o esquema: PÚBLICO

X PRIVADO. Como de fato se configura dentro da sociedade? Pode-se dizer que

trouxe prejuízos para o sujeito feminino? Se trouxe, quais foram? A partir da leitura

de Michele Perrot tentaremos elucidar o assunto.

Blanca Sol lança uma crítica à educação recebida pela protagonista, visto que

esta é a causa de sua ambição sem limites. Desta forma, a novela propõe reformas

específicas dentro de um Estado nacional constituído, e deixa clara a necessidade

de uma mudança no sujeito feminino propriamente dito.

O espaço privado ressalta que este é o território da mulher; a divisão de

papéis situava a mulher preferencialmente dentro da família, reservando ao homem

o âmbito externo, a representação familiar, a política. O texto de Cabello de

Carbonera pode ser entendido como parte de um entrelaçado das Ciências Sociais

da época, que elaboravam algumas inclinações e criavam tendências, as quais eram

incorporadas ou repudiadas pela sociedade.

Page 19: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

19

Sendo assim, faremos uma explanação breve sobre algumas possíveis

formas de representação e também sobre os papéis sociais encontradas no

romance peruano.

Page 20: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

20

2. A MULHER E A LITERATURA

… é que eu procuro dentro de mim, através de mim,

através de mim própria, minha mais profunda essência.

E que essa é, antes de mais nada, uma essência de

mulher.

Marina Colasanti

A literatura acompanha o progresso das atividades do homem desde os

primórdios da história da escrita. Esses escritos narram histórias de muitos

personagens, comunidades e até grandes territórios, que fazem uso desse tipo de

representação simbólica em busca de reconhecimento e visibilidade.

A correlação que a literatura tem com a história tem suscitado diversas

discussões sobre os acontecimentos inerentes às comunidades sociais. Baseado na

concepção de cada momento histórico é que foi possível impulsionar de diferentes

maneiras uma enunciação em favor de um texto não só ficcional, mas que também

comtemplasse em sua escritura um pouco do momento histórico.

Os estudos que abarcam as ações literárias têm sido direcionados para

diversas áreas, impulsionados por distintas pesquisas. Com isso, tendo como

fundamento o movimento feminista, a escritura de autoria feminina tem buscado

ganhar visibilidade por meio das narrativas que simbolizam a vivência das mulheres.

A literatura de autoria feminina procura adquirir autonomia, tendo como

elemento principal a atuação das mulheres nos mais diversos eventos, divulgando a

trajetória percorrida através da história. Nesse sentido, as escritoras sempre

buscaram legitimar e dar visibilidade à história das mulheres.

Conduzindo olhares e vozes, aliando os contextos do passado com as

práticas sociais da atualidade, as narrativas produzidas sobre a relação entre os

Page 21: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

21

gêneros são capazes de gerar uma enunciação ficcional aperfeiçoada, levando a

uma nova visão de mulher.

Esta literatura é capaz de conduzir a uma posição crítica sobre a história e a

um olhar renovado sobre a questão da mulher, sendo esta portadora de voz

autônoma e reconhecida. Com a divulgação cada vez mais ampla dos estudos de

gênero, muitas escritoras começaram a pontuar em seu trabalho a sua visão a

respeito do assunto e também a concatená-la aos relatos de luta. Tudo sem deixar

de ressaltar as peculiaridades identitárias das mulheres e, muitas vezes, também

edificando a própria identidade.

Normalmente as escritoras questionam os procedimentos de ordem patriarcal,

o qual relegou ao anonimato diversas histórias. Buscam percorrer caminhos que

possibilitem a propagação cada vez maior da questão das mulheres dentro da

sociedade. Facilitam, assim, o processo de ruptura do movimento androcêntrico;

fazendo com que as mulheres cada vez mais se apoderem de escritura e história

próprios e, permitindo também que outras considerações sejam formadas como

consequência da apropriação do relato de autoria feminina.

A mulher no curso da história obteve pouca visibilidade frente à sociedade e

teve a sua trajetória marcada pelo silêncio. No século XIX, a sua imagem foi

associada à de um sujeito de pouca (ou nenhuma) desenvoltura intelectual, sendo

mesmo considerada como desprovida de inteligência, restando-lhe a posição de

sensível, sentimental e histérica diante de uma visão patriarcalista.

Com o surgimento do movimento feminista dos anos 60 do século XX, obteve

espaço, o que viabilizou o início de uma sucessão de contestações e reflexões no

que concerne ao sujeito feminino, possibilitando assim o questionamento, com a

probabilidade de haver um olhar em uma direção horizontal entre o binômio homem-

Page 22: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

22

mulher. Devido à presença cada vez maior da teoria crítica feminista sobre a

presença feminina da mulher na literatura, surge o questionamento quanto à

existência de uma escrita feminina e, por sua vez, sobre o que é escrita feminina.

Ora, a presença de uma voz de mulher, a princípio, só pode ser feminina. Tais

perguntas soam como um desafio que indagam e também põe em dúvida a

existência dessa escrita; assinalam o anseio de valorizar um modelo de escrita

apoiada em uma representação falocêntrica. Outras vezes, pode ser entendida

como algo preestabelecido pelo biologismo.

É necessário esclarecer que o termo “escrita feminina” tinha o sentido distinto

no século XIX do que tem hoje. Antes a “escrita feminina” poderia ser reconhecida

por um caráter que expressava uma sensibilidade contemplativa e um

sentimentalismo exacerbado; hoje denota outro sentido, passando pela escrita de

denúncia, como também pela autobiografia.

Tratando-se da escrita de autoria feminina é relevante salientar que as

percepções e valores são distintos dos que existem no universo masculino; as

estruturas convencionais são violadas e devem ser considerados aspectos

predominantemente femininos e suas experiências de vida.

Virgínia Woolf, em seu livro Um teto todo seu, escrito em 1926, investiga a

presença da mulher na literatura e conclui que é necessário que ela tenha um

espaço isolado para trabalhar e que seja independente financeiramente para que

possa escrever. Neste livro, o narrador cita seu exemplo, já que só foi possível

tornar-se escritora por ter recebido a herança de uma tia, que possibilitou a

independência econômica e um espaço só dela.

Page 23: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

23

Minha tia, Mary Beton, devo dizer-lhes, morreu de uma queda de cavalo, quando estava em Bombaim. A notícia da herança chegou certa noite quase simultaneamente com a da aprovação do decreto que deu o voto às mulheres. A carta de um advogado caiu na caixa do correio e, quando a abri, descobri que ela me havia deixado quinhentas libras anuais até o fim da minha vida. Dos dois — o voto e o dinheiro —, o dinheiro, devo admitir, pareceu-me infinitamente mais importante. Antes disso, eu ganhara a vida mendigando trabalhos esporádicos nos jornais, fazendo reportagens sobre um espetáculo de burros aqui ou um casamento ali; ganhara algumas libras endereçando envelopes, lendo para senhoras idosas, fazendo flores artificiais, ensinando o alfabeto a crianças pequenas num jardim de infância. (…) Nenhuma força no mundo pode arrancar-me minhas quinhentas libras. Comida, casa e roupas são minhas para sempre. Assim, cessam não apenas o esforço e o trabalho árduo, mas também o ódio e a amargura. Não preciso odiar homem algum: ele não pode ferir-me. Não preciso bajular homem algum: ele nada tem a dar-me. Assim, imperceptivelmente, descobri-me adotando uma nova atitude em relação à outra metade da raça humana. (Woolf, 1926, p. 45-46)

Virgínia Woolf também faz uma interessante suposição envolvendo o

reconhecimento da genialidade de William Shakespeare e o fato de ele ser um

homem. Ela cria a história de uma irmã hipotética de Shakespeare e argumenta

como seria se ela tivesse a mesma genialidade do irmão. Será que obteria o mesmo

reconhecimento e fama? Teria espaço para expôr o seu talento e seria apoiada pela

família?

A resposta dada por Woolf é obviamente negativa, e a partir daí a autora

constrói um enredo irrefutável para a vida de uma mulher daquela época. E nos faz

refletir, ao presumir que uma quantidade grande de talentos foram relegados ao

esquecimento pelo simples fato de pertencerem ao gênero feminino.

O conhecimento feminino sempre foi tido como menos importante no

ambiente cultural e na literatura; a mulher era excluída do processo de criação no

século XIX. A escrita de autoria feminina era tida como algo específico de “mulher

para mulher”, envolto no pensamento antigo que a denominava como leitora

insignificante. Aceitava-se como natural e verdadeiro tal premissa e transformava o

trabalho delas em algo inferior, sem valor e até marginal. Por isso, este tipo de

escrita, muitas vezes, tinha tom de denúncia.

Page 24: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

24

Essa superação da necessidade de apresentar-se sob anonimato, do uso de

pseudônimo masculino e do uso de métodos capazes de ocultar seu desejo, permite

a reconstrução da forma de percepção do feminino e também é um modo de

recuperar as experiências silenciadas pela cultura patriarcal dominante; tem um

ideal de liberdade e racionalidade.

Por meio dos personagens na escrita de autoria feminina, são estabelecidas

relações que indagam e também discordam das posições ocupadas na sociedade

por mulheres e homens. Essa escrita salienta a luta da mulher por reconhecimento e

visibilidade, sobretudo pela revisão da identidade feminina na sociedade. A escrita

de autoria feminina latino-americana é diversificada e portadora de diversas nuances

que traduzem o sofrimento e as faces encobertas que compõem as histórias de vida

de muitas mulheres. Essas trajetórias são imersas em memórias e tradições que

revelam o ser feminino e são parte da edificação da história da mulher.

Quase sempre interpretada como um ser humano destinado a gerar filhos e

também a providenciar o bom funcionamento do lar através das tarefas domésticas,

sendo quase sempre expulsa da sala de visita, a mulher foi excluída praticamente da

História e da Literatura. Mas, esse sujeito ignorado tem reivindicado seu espaço a

partir da década de 1970; tem pleiteado um lugar onde, na maioria das vezes, é

analisada por homens, os “guardiães do discurso” (Eagleton, 1988, p.27).

Tendo a teoria a concessão para revelar o imaginário e as possibilidades, a

escrita das mulheres revela o universo feminino de uma forma minuciosa, muitas

vezes vivenciada pela escritura. São textos que descortinam um mundo de mulheres

que desempenham “pequenos-grandes” fazeres domésticos, sujeitos dóceis que se

preparam para vivenciar outros papéis, para lutar e conquistar espaço.

Page 25: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

25

As personagens literárias fazem parte do imaginário latino-americano e

buscam suas raízes no cotidiano, expressando-se através das ações humanas e dos

conflitos. São fundamentadas através das imagens que os indivíduos têm de si e de

seus semelhantes; vão desconstruindo representações e revelando possibilidades.

2.1. Um olhar diferenciado

Cada mulher em particular é um sujeito em construção, e

a feminilidade, um conjunto de representações que

tentam produzir uma identidade entre todas as mulheres,

mas que, por isso mesmo, não pode dar conta das

questões de cada sujeito.

Maria Rita Kehl

Em meio a um cenário patriarcal, surge Mercedes Cabello de Carbonera.

Moquegua foi a cidade de seu nascimento, em 17 de fevereiro de 1842 no Peru. Era

filha de um professor de Matemática, Gregorio Cabello Zapata, e de María Mercedes

Llosa y Mendoza. Oriunda de uma família de pessoas cultas teve a sua disposição

uma vasta biblioteca; recebeu uma educação muito à frente das mulheres de sua

época, aprendeu francês que lhe proporcionou a oportunidade de ler muitos livros de

que um grande número de peruanos até então não tinham conhecimento.

Carbonera ainda criança teve acesso a uma ampla cultura humanística que

superava as expectativas contextuais relacionadas à mulher. Foi uma grande

escritora e colaboradora da imprensa da época. Sua produção literária é composta

de seis obras: Sacrificio y Recompensa (1886), Los Amores de Hortensia (1887),

Eleodora (1887), Blanca Sol (1889), Las Consecuencias (1890) e El Conspirador

(1982).

Page 26: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

26

Também publicou alguns ensaios: “La novela moderna” ganhou o primeiro

prêmio no Concurso Hispano-americano realizado na Academia Literaria de la Plata

em 1891, sendo publicada em 1892; a carta ensaio La Religión de la Humanidad, foi

publicada em 1893; e o último livro Conde León de Tolstoy que escreveu antes de

desaparecer da vida pública.

Mercedes Cabello de Carbonera é uma destacada representante da literatura

peruana e uma importante escritora de ensaios e romances. Defendeu a igualdade,

a civilização e o progresso; reivindicou a educação da mulher dentro da sociedade

peruana do século XIX, para que pudesse ter uma vida intelectual e conhecimento

suficientes que permitissem confrontar o materialismo e a superficialidade que

abundavam em seu meio. A autora rompe com a clausura do sujeito feminino e

critica as limitações concedidas às ocupações ou destinos que tem a mulher na

sociedade peruana5.

Mas, para isso, teve de enfrentar muitas dificuldades pelo fato de ser mulher e

se dedicar à tarefa intelectual. Certamente que sua postura sempre adiante da

sociedade em que vivia lhe causou um grande número de dificuldades e inimizades.

A capital peruana era, então um dos centros políticos e sociais mais

importantes do território hispano-americano, pois era detentor de um dinâmico

círculo intelectual composto de um grande número de mulheres que tiveram

participação ativa na literatura de autoria feminina. Uma das revoluções silenciosas

mais importantes do século dezenove foi a mudança da situação da mulher no

mundo, em geral e no Peru, em particular.

_______________ 5 Nossa pesquisa tende a retomar alguns conceitos e assuntos.

Page 27: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

27

Tais mudanças essas que ocorreram no íntimo do lar e também na esfera

econômica e social do espaço público; tais variações foram profundamente

significativas para a sociedade feminina daquela época.

Neste período somente algumas personalidades ousaram utilizar-se de

mecanismos que permitissem que elas ocupassem alguns espaços antes negados.

Podemos mencionar como principais representantes Flora Tristán, Juana Manuela

Gorriti, Teresa González de Fainning, Mercedes Cabello de Carbonera, Antonia

Moreno Leyva, Clorinda Matto de Turner e Maria Jesús de Alvarado, dentre outras,

que deixaram profundas marcas na história.

Tais modificações de comportamento estão diretamente ligadas às

transformações da estrutura social e aos avanços no processo de modernização do

país. Podemos destacar um fator como fundamental para o maior impacto nos

câmbios ocorridos, o processo educativo. A tarefa para elas não foi fácil nem

tampouco gratificante. O castigo por violar os costumes da época as condenou,

muitas vezes, à escuridão, ao isolamento, à marginalização.

Muitas mulheres abriram o caminho, desenvolvendo as próprias estratégias

para expressar sua opinião em uma sociedade cuja estrutura tendia, a ocultar e

restringia a participação delas, principalmente na vida pública. Vale muito destacar a

representante da literatura feminina, ou melhor, um dos maiores nomes da poesia de

língua hispânica, Sóror Juana Inés de la Cruz. Monja do final do século XVII e figura

de grande influência cultural e política, sua vida atravessou importantes períodos da

colônia espanhola e, através de sua obra, extraem-se momentos significativos não

apenas da formação intelectual da mulher, mas também da formação intelectual da

elite e os limites impostos pela Igreja.

Page 28: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

28

Uma das várias manifestações do processo de emancipação da mulher foi a

proliferação da produção escrita em Lima. A atividade periodística e literária era um

sinal inquestionável da modernidade. As tertúlias literárias promovidas por Juanna

Manuela Gorriti são manifestações das relações entre escrita e individualidade, são

uma mescla do mundo público e privado ao mesmo tempo, um espaço diferenciado

da experiência dos lares.

A palavra escrita, sem dúvida, resultava em ameaça aos poderes tradicionais

e ao patriarcalismo. Através das publicações e da leitura apareciam outros espaços

vitais; tudo diretamente ligado ao desenvolvimento da individualidade e à ampliação

do mundo interno, o que seguia as aspirações femininas no panorama da cultura

pública. A visibilidade da produção de Carbonera questiona aspectos de uma

intimidade preservada ao longo dos séculos da história e propicia a insurgência de

uma existência marcada pelo recato, sutileza e até mesmo segredo; por uma rotina

marcada pela submissão, pela obediência e, em sua minoria assinalada pela

resistência e afirmação. Em seu discurso literário, a construção da representação

feminina foi moldada a partir de juízos de critério moral e valorativo geridos pela

fundamentação patriarcalista.

Aqui a questão da identidade relaciona-se diretamente às especificidades do

mundo moderno exercendo uma influência determinante sobre a identidade cultural.

Através de suas publicações, Carbonera passou a difundir a voz e o olhar das

mulheres, sempre marcadas por lutas. Utilizou-se da pouca visibilidade que

permeava o sujeito feminino através dos tempos como uma maneira de negar o

papel legitimado à mulher daquela época, garantindo assim uma forma de

representatividade e significação.

Page 29: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

29

Seus textos retratavam o ponto de vista da mulher cuja representação reside

na particularidade e na especificidade de seus personagens que também fazem

parte da história da sociedade em que vive. Dessa forma, através de sua escritura

foi capaz de fazer com que o sujeito feminino pudesse se projetar em um

determinado contexto histórico político, econômico e também social. Carbonera

representou o real captado através de sua ficção; operando entre os limites da

criação ou real, um discurso ficcional que permitisse comprovar as relações

existentes entre os papéis sociais.

Em seu universo ficcional, as representações integraram classes essenciais,

buscando através de suas enunciações configurar os constituintes tanto da

dominação como da resistência e as relações de poder; visando a influenciar a

sociedade através do descortinamento das identidades.

Foi uma escritora de ideias liberais, leitora incansável; nas referências

bibliográficas de seus trabalhos ensaísticos são evidentes os reflexos de sua

formação intelectual. Conhece o doutor Urbano de Carbonera, com quem se casa e

por ocasião do matrimônio viaja a Lima. A mudança para a capital serviu para

consolidar o processo educacional iniciado em sua terra natal.

Posteriormente torna-se participante ativa no movimento literário, contribuindo

em revistas. Utiliza-se incialmente do pseudônimo Enriqueta Pradel, para somente

mais tarde começar a usar seu nome. Por seus ensaios em favor da emancipação

da mulher, converteu-se na mais destacada ensaísta peruana.

Também teve participação de grande importância nas veladas literárias

organizadas em Lima, na casa da escritora argentina Juana Manuela Gorriti, onde

leu alguns de seus trabalhos sobre a importância da literatura, a educação da

Page 30: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

30

mulher, o idealismo como elemento gerador de poesia e a mulher diante da escola

materialista, dentre outros.

Porém, no momento em que começa a ingressar no mundo literário, seu

marido não a acompanha em nada que fazia parte de seu universo (atuações,

atividades e apresentações públicas). Ele vai viver em outra cidade e a deixa

sozinha, com isso Carbonera intensifica seus trabalhos como escritora.

Após a morte do companheiro, em 1855, pôde concentrar seus esforços em

sua produção periodística e literária. Publica romances e aumenta o prestígio que já

havia conquistado em âmbito nacional e internacional.

Suas ideias distintas e voltadas para o progresso não agradavam a muitos

conservadores; fez ataques ao modelo de educação aplicado no colégio de freiras

em um artigo que escreveu intitulado Los exámenes. Em um trecho diz que dessas

escolas saem mulheres vazias, vaidosas; mulheres ociosas e egoístas que amam

mais aos salões que seu próprio lar (apud Vargas, 2003, p. 788). Depois da metade

da década de noventa, fica enferma, e com o passar dos anos seu estado de saúde

vai se agravando; é internada em um manicômio por sua família e falece em 12 de

outubro de 1909.

Teve um papel muito importante na América Latina, comunicando e

estabelecendo maneiras de pensar distintas da época, e também serviu de porta-voz

de ideais políticos e sociais. Carbonera não aceitava os convencionalismos de sua

época; como diz Ismael Pinto Vargas, para ela, a mulher é quem deve decidir a

quem entregar-se e a quem amar, mesmo que transgredindo a moral e os

convencionalismos. Mercedes Cabello de Carbonera foi uma apaixonada

incentivadora de mudanças que favorecessem a classe feminina, desejava melhorar

Page 31: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

31

a situação mediante uma grande campanha de educação de massas, especialmente

a educação da mulher. Afirmava que:

Siempre he creído que la novela social es [de] tanta ó [sic] mayor importancia que la novela pasional. Estudiar y manifestar las imperfecciones, los defectos y vicios que en sociedad son admitidos, sancionados, y con frecuencia objeto de admiración y de estima, será sin duda mucho más benéfico que estudiar las pasiones y sus consecuencias. (Carbonera, 1894, p. I).6

A loucura que afetou Carbonera no final de sua vida pode-se dizer que é fruto

de falta de adequação entre suas aspirações intelectuais e a sociedade em que

vivia, somando-se a esse fato a saúde que se encontrava debilitada.

Mercedes Cabello foi uma grande escritora, porém ao final de sua vida foi

esquecida. Após sua morte, apenas um jornal publicou uma pequena nota na qual

informava o falecimento; nem um outro redigiu nada sobre o assunto, era como

fizessem um complô diante do fato.

2.2. Representação e poder no romance

Mercedes Cabello de Carbonera es uno de los

personajes más interesantes de la intelligentsia peruana

del siglo XIX. No obstante, uno de los menos conocidos.

Por no haber sido apadrinada por alguna ideología al uso

y la moda, su obra y su fascinante aventura intelectual se

han mantenido en un piadoso limbo. También, y dentro

de cierta tradicción oral, se le hacía y hace estar incursa

en una leyenda negra que habla de un interessado

silencio y la preterición de su obra, por oscuras y

reaccionarias fuerzas. Hasta ayer, aquélla tenía un cierto

sustento. Hoy, creemos que no.

Ismael Pinto Vargas

_______________ 6 Sempre acreditei que o romance social é muito ou maior importância do romance pasional. Estudar e mostrar as imperfeições, os defeitos e vícios que em uma sociedade são admitidos, sancionada, e muitas vezes são objeto de admiração e estima, certamente será muito mais benéfico para estudar as paixões e as suas consequências. (Carbonera, 1894, p. I) (tradução nossa)

Carbonera construiu e projetou a identidade social feminina através da

representação das práticas sociais. Sua escrita produziu argumentos com

Page 32: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

32

significados e efeitos suficientes, que trouxeram ao leitor a possibilidade de

compreensão de contextos socioculturais diversos. Segundo Vargas:

La vida y la obra de Mercedes Cabello de Carbonera están signadas por una transparente pureza moral. Ella encarna en un tiempo en que el escribir era un ameno pasatiempo o un simpático despliegue de erudición, la actitud y la aptitud literaria como un medio de acción. Fue un personaje atrayentemente contradicitorio que jamás dudó en ir contra la corriente, sin que le importara mucho enajenarse el malhumor ni la impopularidad, ya de los de su própio gremio, ya del común de la gente, o de las poderosas instituciones con las cuales en algún momento se enfrentó. Por lo que, sin proponérselo, concitó ardientes adhesiones y abjuraciones terribles, especialmente en los últimos tramos de su vida literaria activa. (Vargas, 2003, p. 15) 7

No Peru, na segunda metade do século XIX, as mulheres começaram a

almejar uma posição que a retirasse do ambiente familiar levando-a rumo aos

fechados círculos sociais da esfera pública. Através do estudo e da interação cultural

elas foram se conscientizando da necessidade de participação no âmbito social.

Mercedes Cabelo de Carbonera teve uma importante contribuição no

processo de conquistas dessas mulheres. Em seus escritos o tema que mais

aparecia era a situação da mulher. Ela não concordava com a imposição do

matrimônio às mulheres e a consequente confinação ao ambiente familiar.

Es una muralla levantada para condenarla a eterna minoria y a eterna esclavitud… ¡El positivismo le veda a la mujer todas las carreras profesionales y todos los medios de trabajar para ganar por sí misma la subsistencia! Y es aquí donde esa doctrina ha incurrido en gravísimo error, resultándole que, no obstante sus generosas miras, ella no mejorará sino mas bien, afianzará la desgraciada condición en que hoy se halla la mujer en nuestras sociedades. (Carbonera, 1893, p. 45-46) 8

_______________ 7 A vida e obra de Mercedes Cabello de Carbonera são marcados por uma pureza moral clara. Ela viveu em uma época em que a escrita era um passatempo divertido ou uma boa exibição de erudição, a atitude e a aptidão literária como um meio de ação. Era um personagem atraente e contraditório que nunca hesitou em ir contra a corrente, não se importando em alienar-se e tornar-se impopular, o que ocorria entre os próprios que frequentavam o grêmio, as pessoas comuns, ou instituições poderosas as quais enfrentou. Assim, sem querer, atraiu adesões ardentes e terrível retratação, especialmente nos últimos annos de sua vida literária ativa. (Carbonera, 1893, p. 45-46) (tradução nossa) 8 É uma muralha construída para condenar a minoria a uma eterna escravidão... O positivismo proibe a mulher de ter uma carreira profissional e também todas as outras formas de trabalho para ganhar o seu sustento! E é aqui que esta doutrina tem cometido erro grave, resultando que, apesar de sua generosa visão, não vai melhorar, e sim contribuirá com a condição infeliz da mulher em nossa sociedade. (tradução nossa)

Page 33: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

33

Mercedes Cabelo de Carbonera dá vida às suas personagens porque são

parte de sua própria vida. Usa a literatura como instrumento de denúncia da

sociedade peruana do final do século XIX, também da condição da mulher hispano-

americana, de sua subordinação (consentida ou não). Tudo isso a partir de seus

escritos e também através da representação de seus personagens nos romances de

sua autoria.

Em Blanca Sol9, Carbonera faz surgir, a protagonista, que leva o mesmo

nome da obra, e Josefina, a costureira. Elas interpretam dois padrões distintos de

sujeito feminino. Enquanto Blanca Sol desempenha o papel da mulher à frente de

seu tempo que ao final torna-se cortesã; Josefina é uma moça que vive sobre o

domínio do sistema patriarcal e mesmo passando por privações financeiras mantém

uma conduta recatada.

En el momento en que Alcides, observaba con mayor afán, vio que algunas mujeres, se dirigían a un punto como si trataran de socorrer a una persona, dirigiose allá, con natural curiosidad, y divisó que sostenida por pobre mujer del pueblo, estaba una joven, que había caído al suelo, privada de sentido. En ese momento otra mujer descubría el rostro de la joven, agitando al aire con su pañuelo y diciendo: -Es el calor de la concurrencia, lo que debe haberla producido este desmayo. Al mismo tiempo Alcides, profundamente impresionado exclama: -¡Es ella, es ella! ¡Josefina! Y pasando por entre la multitud, pudo llegar hasta colocarse delante de la joven. Y diciendo y haciendo, Alcides levantó a la joven en sus robustos brazos, como lo haría con una criatura, dirigiéndose luego al primer coche que se presentó por allí. (…) Después que Alcides subió al coche, llevando en brazos su preciosa carga, encontrose perplejo, sin saber que determinación tomar. (BS, 1889, p.107-108) 10

_______________ 9 Romance publicado em formato de folhetim em 1888 nas páginas do El Nacional. Devido ao êxito dessa primeira publicação, surgiram várias edições em formato de livro. Utilizamos a segunda edição que foi editada pela Imprensa e Livraria do Universo de Carlos Prince em 1889 e incorpora “Un prólogo que se ha hecho necesario”, que a autora redigiu devido ao escândalo que acompanhou a popularidade do romance. (O prólogo encontra-se em anexo)

Page 34: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

34

Assim que conseguiu encontrá-la pensou:

-He aquí un trance difícil e inesperado, decía, mirando a la joven, que pálida, inerte, con la cabeza reclinada, y la frente cubierta con algunas guedejas de pelo, estaba allí asemejándose más, a una muerta, que a un ser lleno de vida y juventud como era ella. Llevarse a la propia casa, a una mujer desmayada, es indigno de un caballero: entregarla a manos extrañas y decir que había sido recogida como una desconocida; hubiera sido lo más expedito, pero Alcides no quería ni pensaba abandonar a la que en ese momento, era para él, tesoro de inapreciable valor. (…) Josefina, la casta doncella que podía brindarle todo el sentimentalismo y la ternura de su virgen y amante corazón, estaba allí, en su poder, suya era y nadie podría arrebatársela. (…) ¡Que hacer!… No hubo remedio… Un momento después, Josefina, siempre desmayada, estaba recostada en uno de los ricos divanes del salón de recibo de la casa de Alcides. (…) (BS, 1889, p.107-108) 11

______________

10 No momento em que Alcides, observa com o máximo cuidado, vi que algumas mulheres foram em direção a um ponto como se estivesse tentando ajudar uma pessoa, e saiu correndo, com a curiosidade natural, e viu que sustentada pela pobre mulher do povo, estava uma jovem, que havia caído no chão, sem sentidos. Enquanto isso Alcides, profundamente impressionado exclamava: ̶ "É ela, é ela! Josefina! E passando por entre a multidão, pode ficar na frente dela. Assim dizendo, Alcides levantou a jovem com seus braços fortes, como faria com uma criatura, dirigindo-se ao primeiro carro que passou por ali. (...) Após Alcides entrar no carro, carregando sua preciosa carga em seus braços, encontrou-se perplexo, sem saber o que fazer. . (BS, 1889, p.107-108) (tradução nossa) 11 Situação difícil e inesperada, disse, olhando para a jovem, que estava pálida e imóvel, com cabeça reclinada, e a testa coberta com algumas mechas de cabelo, mais parecendo que estava morta, do que um ser cheio da vida e da juventude como ela era. Levá-la para sua própria casa, uma mulher inconsciente é indigno de um cavalheiro: entregá-la nas mãos de estranhos e dizer que foi recolhido como uma estranha; teria sido a melhor, mas Alcides não queria nem pensar em abandonar o que para ele era um tesouro de valor inestimável. (...) Josefina, a donzela casta que poderia lhe dar todo o sentimento e a ternura de uma virgem, e amoroso coração, estava ali em seu poder, era sua e ninguém pode retirá-la. (...) O que fazer! ... Não havia escolha... Um momento depois, Josefina, sempre desmaiada, estava deitado em um dos ricos sofás do salão de recepção da casa de Alcides. (…) (BS, 1889, p.107-108) (tradução nossa)

Page 35: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

35

Josefina que era moça muito recatada ficou confusa:

¡El corazón latía! Llamola sacudiéndole el cuerpo.-¡Josefina! ¡señorita Josefina!… Al fin ella exhaló largo y angustioso suspiro, y recobrando el conocimiento miró asombrada la elegante y lujosa alcoba de Alcides, luego fijando en él sus ojos, abiertos desmesuradamente en señal del asombro que la poseía, exclamó: ¡Dios mío! ¿Qué ha sido de mí? ¿Donde estoy?… Alcides, con el más sincero y afectuoso tono que le fue dable emplear, díjola: Está usted en mi casa en la casa de un caballero, que sabrá respetar como merece a la señorita Josefina. Ella intentó con un brusco movimiento, ponerse de pie, pero su cuerpo no obedeció a su voluntad, y volvió a mirar a Alcides, cual si dudara de sus palabras. -Lo que necesitamos ahora es, que usted recobre sus fuerzas para llevarla luego a su casa. ¿No le parece bien? -Sí ahora mismo-y Josefina haciendo un nuevo esfuerzo, se incorporó y púsose de pie en actitud de partir. -Espero señorita Josefina, que me concederá usted un sincero perdón por mi osadía al traerla a mi casa; pero es el caso que yo no conocía la dirección de la casa de usted y… Ella nunca se había encontrado sola con un hombre, y menos en sus propias habitaciones como estaba ahora. (BS, 1889, p.107-108) 12

Com a publicação de BS em 1889 que fazia uma crítica direta à sociedade

limenha e aos diversos costumes populares. Surge um escândalo nos círculos

sociais em torno da publicação, o que termina por abalar sensivelmente a reputação

de Carbonera. Muitas personalidades amigas dela consideraram um erro a

publicação; em 1893, sua posição social era muito delicada.

_______________ 12 O coração batia! Ele a chamou sacudindo-lhe o corpo. ̶ Josefina, senhorita, Josefina! Por fim ela suspirou de forma forte e angustiada, e recobrando o sentido olhou assombrada o elegante e luxuoso quarto de Alcides, logo fixou o olhar nele demonstrando sinal de assombro, exclamou: Meu Deus! O que aconteceu comigo? Onde estou?... Alcides com o mais sincero e afetuoso tom lhe disse: ̶ Você está na casa de um cavalheiro, que saberá respeitá-la como merece. Ela tentou levantar-se com movimento brusco, pôr-se de pé, porém seu corpo não a obedeceu, e voltou a olhar para Alcides como se duvidasse de suas palavras. ̶ O que necessitas agora é que recobre as forças para que eu possa leva-la para sua casa. Não te parece bom? ̶ Sim, agora mesmo, e Josefina fazendo novo esforço se pôs de pé como se fosse partir. ̶ Espero que a senhorita me perdoe a ousadia de trazer-lhe a minha casa; mas como eu não conhecia o endereço de sua casa... Ela nunca havia ficado sozinha com um homem, e muito menos no quarto como se encontrava agora. (BS, 1889, p.107-108) (tradução nossa)

Page 36: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

36

No transcorrer da história, a mulher nutriu a submissão e o silêncio e aceitou

o comando do homem e o sistema social vigente. Para que tais condutas fossem

fundamentadas, havia diversas influências atuantes na relação social entre mulheres

e homens alicerçadas, em bases de perspectivas comportamentais, culturais e

ideológicas dentre tantas outras.

No final do século XIX, a mulher ainda se mantinha subordinada à sujeição do

sistema patriarcal dominante, circunstância vigente desde os primórdios da

colonização. O contexto educacional foi decisivo, junto à Igreja para a manutenção

do sistema cuja visão ideológica promovia a manutenção do patriarcalismo. A

estrutura patriarcal impõe assimetrias a todas as atividades humanas.

E, nesse contexto, uma forte corrente ideológica foi representada pelo

positivismo na figura de Auguste Comte, que, sintonizado com o pensamento

vigente, enfatiza normas de comportamento para a mulher oitocentista, preceito que

logo se divulga para outros países. Partindo da premissa de que seu destino

consistia em disciplinar as forças humanas, baseado na relação contínua entre o

sentimento e a razão como reguladora das atividades, a questão da mulher também

foi abordada na teoria positivista.

Comte considerava essenciais as diferenças entre homens e mulheres, mas

vacilou quanto à valorização dessas diferenças, o que implicava inferiorização para

a mulher. Articula a conduta desejável a uma mulher e, ao mesmo tempo valoriza a

função exercida pela mulher “virtuosa”, deixando registrado perspectivas essenciais

em sua conduta:

O culto positivo erige o sexo afetivo como providência moral de nossa espécie. Cada digna mulher ministra habitualmente a esse culto a melhor representação do verdadeiro Grande Ser. Sistematizando a família, como base normal da sociedade, o regime correspondente faz dignamente prevalecer naquela a influência feminina, transformada, enfim, em supremo árbitro privado da educação universal. Por todos estes títulos, a verdadeira religião será plenamente apreciada pelas mulheres, logo que elas reconhecerem suficientemente os principais

Page 37: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

37

caracteres que as distinguem. Aquelas mesmo que a princípio deplorarem a perda de esperanças quiméricas não tardarão em sentir a superioridade moral de nossa imortalidade subjetiva, cuja natureza é profundamente altruísta, sobre a antiga imortalidade objetiva, que não podia deixar de ser radicalmente egoísta. (Auguste Comte, 1983, p.130)

Percebe-se a partir da citação que Comte tem uma posição definida no que

se refere à conduta feminina frente à sociedade da época. Dentro da concepção

positivista, não há espaço para uma mulher emancipada; admitindo-se somente a

ela a submissão ao homem e a dedicação total à família. De acordo com os

preceitos positivistas, a mulher devia dedicação integral ao marido e aos filhos; une-

se a isso o fato de a maior parte delas possuir pouca instrução, elas tinham a função

restrita ao ambiente doméstico, sendo mantidas, dessa forma, excluídas da

sociedade.

Mesmo convencida das vantagens que o Positivismo oferecia, Carbonera não

deixava de atacar o fato de as mulheres serem obrigadas a aceitar uma posição

passiva, o que considerava uma injustiça:

¿Queréis que la mujer sea verdaderamente virtuosa, con esa sólida virtud positiva y util a si misma, y a la sociedad? Pues abridle francos todos los caminos; más aún, impulsadla por la senda del trabajo, ya sea profesional, industrial o de cualquier outro género, adecuado a sus facultades. Cerrad para siempre esa puerta maldita del matrimonio obligado, ella es la entrada a todos los adúlterios, y el gérmen de los infortunios de la família. Salvad a la mujer de esa esclavitud pasiva, que mata las fuerzas vivas de su inteligencia y todas las energías de su voluntad. (Carbonera, 1893, p. 47)13

______________ 13 Queres que a mulher seja verdadeiramente virtuosa, com aquela forte virtude positiva e útil para si e para a sociedade? Então lhe abra de verdade todos os caminhos; e a impulsione ao trabalho, quer seja profissional, na indústria ou de outro gênero, algo adequado as suas habilidades. Feche para sempre essa porta maldita do casamento forçado, ela entrada dos adultérios e o germe das desgraças da família. Salvem as mulheres da escravidão passiva, que mata as forças de sua inteligência e todas as energias da sua vontade. (Carbonera, 1893, p. 47) (tradução nossa)

Page 38: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

38

Essas palavras não foram bem recebidas pela sociedade na época;

sociedade esta predominantemente machista, que reservava o trabalho remunerado

aos homens, e estes não aceitavam as duras críticas que Carbonera fazia.

Mercedes Cabello de Carbonera dedicou a sua vida ao cultivo das letras e

perseguiu com intrepidez a luta por denunciar a forma preconceituosa a qual as

mulheres eram submetidas na sociedade limenha; ela foi defensora da educação e

da emancipação da mulher. Mas a sua coragem e determinação, expressas através

de seus escritos, não foram compreendidas pela comunidade detentora dos

preceitos patriarcais. Sendo assim, tornou-se impossível a sua caminhada; o vigor

de sua postura, traduzido por suas opiniões, fez com que não surgisse interesse por

parte dos interlocutores. Sua escrita pretendia ocasionar mudança nos contextos

social, político e cultural.

A autora assumiu uma liberdade com todos os riscos que se oferecem a uma

mulher no século XIX. Foi chamada de insana por várias vezes nas páginas dos

principais diários; até que foi sugerido que deveria ser internada em um manicômio

após ter feito um discurso no Liceu Fanning, onde defendeu a educação laica e

causou um escândalo ao destacar a necessidade de as mulheres conhecerem o seu

próprio corpo.

Foi internada em 27 de janeiro de 1900, e ali onde permaneceu por nove anos

até falecer em 12 de outubro de 1909. Patricio Ricketts Rey de Castro, investigador

do trabalho da escritora, escreve sobre o final lastimável da vida da autora:

Quatro meses antes da morte de Mercedes, a revista Ilustração Peruana [1909, pp. 270-273] publicou um extenso artigo em maio sobre o hospício onde o escritor sobrevivia em silêncio, com a alma vazia, à espera da morte. Cinco fotografias, reproduzidas com nitidez, ilustram o texto, no qual o jornalista visitante, Carlos Sánchez Gutiérrez, deixou uma comovida nota sobre Cabello, a quem podemos distinguir à distância, na fotografia do corredor do pavilhão das mulheres. Ali, sentado em uma poltrona e inclinado para frente, como descrito pelo jornalista, descobrimos a autora de El Conspirador. (Ricketts, 2008, p. 44) 14

Page 39: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

39

Em seguida apresenta o comentário que transcrevemos abaixo:

Uma notável escritora peruana, sentado pacificamente em uma grande poltrona, nos olhou com o mais profundo desprezo. Talvez tenha nos reconhecido e teve pena, talvez seu orgulho tenha iluminado o cérebro por um segundo e nos julgou pequenos, ao ver-se de novo no Ateneo e no Livro, na Revista e no Jornal e; mas, oh amargas ironias do destino! : Estava ali uma pensadora que já não pensa uma tocha que não dá luz e que espera o último suspiro da para qu e seja extinto o seu último raio... (apud Ricketts, 2008, p.44) 15

______________ 14 Cuatro meses antes del fallecimiento de Mercedes, la revista Ilustración Peruana [1909, pp. 270-273] publicó un extenso artículo en mayo acerca del hospicio donde la escritora sobrevivía en silencio, con el alma vacía, a la espera de la muerte. Cinco fotografías, reproducidas con gran nitidez, ilustran el texto, en el que el periodista visitante, Carlos Sánchez Gutiérrez, nos dejó un conmovido apunte de Cabello, a quien podemos distinguir, a distancia pero con claridad, en la fotografia del corredor del pabellón de las mujeres. Allí, sentada en un sillón de banqueta e inclinada hacia delante, tal como la describe el periodista, descubrimos a la autora de El Conspirador. (Ricketts, 2008, p. 44)

15 Una notable escritora peruana, sentada beatíficamente en un gran sillón de banqueta, nos miró con el más profundo desdén. Quizá se nos reconoció del oficio y nos tuvo lástima, quizá si su gloria iluminó su cérebro por un segundo y nos halló pequeños, al verse ella de nuevo en el Ateneo y en el Libro, en la Revista y en el Diario; pero, ¡oh ironías amargas del destino! : he allí una pensadora que ya no piensa, una antorcha que no da luz y que espera el último soplo de la Intrusa para que se extinga su último rayo… (apud Ricketts, 2008, p.44)

Page 40: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

40

3. UMA QUESTÃO DE IDENTIDADE

Nos últimos anos, o conceito de identidade foi tema de inúmeras pesquisas

em diversas áreas. Trata-se de um termo de definição extremamente complexa por

envolver diversas vertentes que o tentam explicar.

É bastante comum buscar relacionar a formação e a transformação das

identidades com uma sociedade mais ampla que reflete toda uma estrutura social.

A identidade de um indivíduo não se esgota em si mesma. Está em

permanente processo de mudança e varia de acordo com os estímulos recebidos

através da interação. E, é a partir dessa relação que cada um procura respostas

para entender determinadas condutas e também para definir sua própria conduta.

É um processo de sucessão temporal e de pequenas mudanças. Para

entender o conceito referente a um determinado grupo é preciso recorrer à História,

é necessário compreender a cultura do indivíduo; o que não é um processo simples.

Vejamos como Raymond Williams conceitua a palavra cultura:

[…] é uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua inglesa. Isso ocorre em parte por causa de seu intrincado desenvolvimento histórico em diversas línguas europeias, mas principalmente porque passou a ser usada para referir-se a conceitos importantes e em diversas disciplinas intelectuais distintas e em diversos sistemas de pensamento distintos e incompatíveis. (Williams, 2011, p.117)

A identidade é um ponto de referência através do qual surge o conceito de si

e a imagem de si; e, identidade social se configura através do resultado das

dinâmicas das relações sociais do homem inserido na sociedade, ou seja, se

configura através de diversas combinações.

Os papéis sociais são impostos aos indivíduos a todo momento e estes

favorecem a composição das identidades através dos processos de construção e

configuração constantes.

Page 41: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

41

As transformações ocorridas com o advento da modernidade promovem

questionamentos e rupturas referentes às práticas de dominação vigentes. As

relações existentes entre gênero e história não ficaram isentas dessas variações que

atuaram diretamente na representação da identidade feminina enquanto prática

subversiva ao discurso dominante patriarcal.

Mas a identidade não depende somente do desejo ou do interesse da pessoa

em afirmar quem é, pois muitos indivíduos não possuem representação nem força

simbólica para afirmar ou negar sua posição. É preciso mais, a representação é feita

através de sua autoimagem e do reconhecimento, ou seja, de sua identidade.

A identidade é o que permite ao sujeito o reconhecimento de sua existência; o

que se dá a partir da percepção de si mesmo (e do outro), de seu saber, de seu

conhecimento de mundo, seus julgamentos e crenças. É o direito de reconhecimento

a uma voz; é o cessar de um silenciamento a fim de legitimar-se, estar autorizado a

agir. Isso se dá através da força do reconhecimento por parte do outro que é o

integrante de determinada comunidade.

3.1. Identidade: pressupostos teórico-metodológicos

Os processos identitários são discutidos a partir de enfoques conceituais e

contextuais tendo a identidade como categoria de análise, considerada como sendo

uma construção social constituída por inúmeras nuances. Dessa forma, cada

indivíduo é representado socialmente por suas características peculiares. O termo

em questão também é muitas vezes utilizado como sendo sinônimo do vocábulo

personalidade; nesse sentido considera-se que a forma como o sujeito se expressa,

pensa e se comporta são os elementos fundamentais que compõem o termo.

Page 42: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

42

E é atuando através de sua história social que será determinada a sua

personalidade ou identidade. O termo identidade não é de fácil precisão conceitual;

sua definição não se restringe somente à vida cotidiana, avança e entra no campo

da bagagem cultural de cada um. As experiências vividas que variam de contexto a

todo o tempo – os estímulos recebidos são diversos.

A identidade é promovida pela socialização e garantida pela individualização.

Temos aqui uma bifurcação em que “a identidade passa a ser qualificada como

identidade pessoal (atributos específicos do indivíduo) e/ou identidade social

(atributos que assinalam a pertença a grupos ou categorias)” (Jacques, 1998, p.

161). Diante da multiplicidade de aptidões e qualificações imputadas à identidade,

salienta-se a expressão da identidade social, visto que os seus constituintes, além

de irem em direção ao social, vão também em direção ao individual.

O termo identidade pode ser utilizado para designar, de certa forma, uma

especificidade construída através da interação com outros indivíduos; sendo assim,

não é inata e pode ser compreendida como uma manifestação sócio-histórica de

individualidade. A contextualização social será responsável por oferecer as diversas

formas de identidade, que é integrada por múltiplos papéis. A identidade é um

espaço amplo onde se manifestam os diversos personagens que existem em cada

indivíduo, porém, estes não se limitam a tais manifestações, são capazes de

diversas outras possibilidades constantemente.

Quando se discute tal concepção, é necessário levar em consideração que

existem entendimentos distintos quanto ao surgimento e à formação da identidade

em cada ser. São duas perspectivas: a essencialista e a não-essencialista. A

primeira baseia-se na concepção biológica; acreditando que as características de

cada indivíduo são inatas, ou seja, são informações que já estão registradas na

Page 43: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

43

pessoa, são concepções pré-definidas, herdadas; nesta teoria o indivíduo é o

elemento central e é constituído de forma única. É como se existisse um conjunto

cristalino, autêntico, de características que não se alteram ao longo do tempo, como

sugere Woodward (2000, p. 12).

Para os essencialistas, a identidade é algo imutável e que permanece, ou

seja, dentro dos grupos as características são partilhadas, não havendo espaço para

mudanças. A concepção essencialista vem sendo reprovada, segundo Stuart Hall

(2006) pelo simples motivo de que não leva em conta a multiplicidade que nos

constitui. Os essencialistas baseiam-se em uma concepção clássica, onde as

identidades têm sua formação preconcebida, como se o indivíduo já fosse dotado

desde o nascimento das particularidades que o constituem.

Segundo Semprini, “Sua existência, sua homogeneidade interna, sua

especificidade cultural seriam de fato, aceitas como tal e pouco suscetíveis à

evolução. Assim, os negros, os índios ou as demais minorias, são consideradas

como peças imóveis do mosaico social” (Semprini, 1999, p. 90-91). Essa concepção

é muitas vezes utilizada para justificar os chamados “desvios” dos homossexuais e a

“inferioridade” das mulheres, ou seja, contribui para reforçar processos

discriminatórios, às vezes, podendo até parecer, de acordo com a concepção

essencialista, que determinadas condutas são irrefutáveis.

Os estudiosos do assunto utilizam-se de diferentes mecanismos que buscam

justificar a objetividade identitária; podemos usar como exemplo a carga histórica do

indivíduo ou a etnia. Creem na cultura como algo que pode ser transformado e

reproduzido pela vida como um elemento estável que sofre poucas oscilações.

É interessante ressaltar que o grupo dos essencialistas legitima sua posição

apoiado em influência científica que, por sua vez, confia em um discurso

Page 44: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

44

“essencialista genético”, segundo o qual “cada grupo está condicionado

definitivamente quanto à inteligência e em seu potencial de mobilidade social

conforme seu patrimônio genético” (Semprini, 1999, p. 91). Consideram o ser como

uma unidade básica e, apesar de algumas diferenças produzidas pelo convívio,

existe uma variante essencial.

Já os não-essencialista ou construtivistas organizam a questão do ponto de

vista histórico, considerando as opções políticas, sociais e econômicas, outorgando

fundamental relevância às relações de poder.

Faz-se oportuno questionar o aspecto ativo em que estão envolvidas as

relações sociais, é condição essencial para entender que os liames são mutáveis e

cambiantes todo o tempo. Em síntese, o discurso construtivista percebe a identidade

como o resultado de uma concepção que depende de uma variante de elementos.

Pensar em identidade como algo imóvel implica desconsiderar a diversidade

cultural e sua dinâmica constante. Para os não-essencialistas, a identidade não é

inerente ao indivíduo e sim caracterizada por sua plasticidade.

Produz-se através do contato constante das culturas; é o caráter nômade da

humanidade que permite a diversidade e o enriquecimento cultural; a produção e/ou

reprodução se dá através do resultado constante das relações de identidade com a

diversidade.

As características de cada indivíduo não são totalmente determinadas no

nascimento, são (re) construídas ao longo da vida como resultados múltiplos de

processos temporais, originando-se através da interação e do ato de inserção. É um

constante processo de reedificação permanente, flexível e dinâmico.

Page 45: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

45

3.1.2. A identidade entre outras percepções

Podemos também encontrar o emprego do termo identidade como sendo um

sinônimo de subjetividade, ou até mesmo que os termos identidade e subjetividade

são expressões distintas. Em suma, são múltiplas as interpretações existentes.

Porém, Guattari se posiciona da seguinte maneira:

Seria conveniente dissociar radicalmente os conceitos de indivíduo e subjetividade. Para mim, os indivíduos são o resultado de uma produção de massa (…) Freud foi o primeiro a mostrar até que ponto é precária essa noção de totalidade de um ego. A subjetividade não é passível de totalização ou centralização do indivíduo. Uma coisa é a individualização do corpo. Outra é a multiplicidade dos agenciamentos da subjetivação: a subjetividade é essencialmente fabricada e modulada no registro social (Guattari, 2000, p. 31).

Ao tratar da subjetividade, Guattari usa uma abordagem psicanalítica, pois é

um conceito que inclui pensamentos e sentimentos tanto conscientes quanto

inconscientes. Ou seja, trata a questão mostrando que somos seres individuais.

A identidade social é figurada através do resultado das dinâmicas das

relações sociais do homem inserido na sociedade através de diversas combinações,

uma sucessão temporal de pequenas mudanças, o que se contrapõe totalmente a

concepção de natureza humana.

O entendimento fica ainda mais elucidativo quando analisamos um

determinado grupo e também recorremos a sua história; o processo de identificação

começa dentro de um determinado grupo social. Tais relações sociais determinam

os papéis sociais desempenhados por cada um de nós; as atribuições com que nos

deparamos rotineiramente favorecem o surgimento da identidade de cada um.

“As identidades não estão nos indivíduos, mas emergem na interação entre

os indivíduos agindo em práticas discursivas particulares nas quais estão

posicionadas” (Lopes, 1998, p. 8).

Page 46: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

46

A definição de quem é cada indivíduo dependerá diretamente das

experiências vivenciadas que vão revelando os diferentes matizes das relações;

relações repletas de significados definindo a posição de cada um.

Segundo Woodward, “todas as práticas de significação que produzem

significados envolvem relações de poder, incluindo o poder para definir quem é

incluído e quem é excluído”. (Woodward, 2009, p. 18). Ou seja, a partir das

identificações é determinado quem pertence a um grupo ou não.

O conceito de identidade tem relação direta com o reconhecimento do

diferente; “é na relação com o outro que me identifico com o não-outro” (Oliveira,

2006, p. 27). A identidade e a diferença não são conceitos preexistentes ou

preestabelecidos, e sim fazem parte do mundo de cultura de cada indivíduo ou

grupo; são o resultado de procedimentos representativos, logo assinalados através

de modelos figurativos que compõem cada pessoa.

Identidade e diferença, ambas as concepções só podem ser compreendidas

uma com relação à outra e são criadas cultural e socialmente; ambas têm ligação

direta com as relações de poder. A identidade e a diferença não são, nunca,

inocentes (Woodward, 2009, p. 81); quem tem o poder de representar tem o poder

de definir e determinar a identidade; portanto a representação ocupa um lugar de

destaque na questão da identidade. A compreensão das identidades somente se dá

através de um conjunto de signos; e a identidade e a diferença são elementos

concebidos através das relações sociais.

A identidade não é uma essência; não é um dado ou um fato – seja da natureza, seja da cultura. A identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado, podemos dizer que a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um fato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsciente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder (Silva, 2009, p. 27).

Page 47: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

47

A todo instante nossa identidade está sendo moldada. Isso acontece não só

pela diversidade de possibilidades oferecidas no dia a dia, como também através

das representações sociais. Conforme Jonathan Rutherford (1990, p.19, 20) “(…) a

identidade marca o encontro de nosso passado com as relações sociais, culturais e

econômicas nas quais vivemos agora (…) a identidade é a intersecção de nossas

vidas cotidianas com as relações econômicas e políticas de subordinação”.

3.2. Configurações da identidade na sociedade moderna

Não há como entender o conceito de identidade sem questionar o processo

histórico; esse tem causado diversas mudanças que certamente refletiram na

identidade social. Com isso, foram anexadas variações às identidades e aos

respectivos papéis sociais; e, para que fosse possível uma adaptação às mudanças

assumidas nos diferentes papéis, ocorreram (e ocorrem) rupturas nas

personalidades. Agora é formada por diversas partes; diversas por serem várias e,

também, por serem diferentes. Segundo Bauman (2005, p.18):

Sempre faltarão peças em um quebra-cabeça que tenha a identidade como fim, assim é sempre um jogo incompleto (sem nenhuma noção de quantas peças faltam no jogo), enquanto que aquele comprado em uma loja geralmente vem completo e possui na caixa (ou em outro local) a imagem impressa – o objetivo a ser alcançado. (Bauman, 2005, p.18)

Assim como Bauman, o sociólogo britânico Anthony Guiddens é um dos

maiores colaboradores acerca da interpretação do conceito de modernidade. Com

suas ideias soube influenciar sobremaneira diversas áreas da teoria social

contemporânea. Em suas reflexões sobre a modernidade e as consequências

trazidas para a vida social, Guiddens delimita o conceito como: “Um estilo, costume

de vida, ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e

Page 48: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

48

que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência”

(Guiddens, 1991, p, 11). Essa definição que dá sobre a modernidade é pouco clara e

carece de argumentos que melhor a elucidem.

Guiddens explicita em seus escritos a melhor forma de entender a

modernidade, e direciona o foco no distanciamento promovido em relação ao

ordenamento social tradicional. Para ele, tanto em sua extensionalidade quanto em

sua intencionalidade, as transformações na modernidade são mais profundas que a

maioria dos tipos de mudanças características dos períodos precedentes (Guiddens,

1991, p, 14).

As características da modernidade estão expressas em todos os lugares,

causando transformações tanto na esfera pública quanto na privada. Não é mais um

elemento fundamental o espaço físico para que haja interação entre os indivíduos;

as novas tecnologias organizam a constituição social de modo que priorizam a

economia e a otimização do tempo. As atividades mais locais estão sendo

motivadas por ações distantes, é a era da globalização. Nesse sentido, Guiddens

aponta três aspectos capazes de separar a modernidade das épocas anteriores.

Primeiro que a velocidade das transformações na modernidade é muito

superior à do passado. Segundo, é que o objetivo de tais mudanças agora ocorre

em âmbito global, alcançando um extenso território; e terceiro é que o sentido

primordial das organizações modernas não são mais constituídos como antes, tais

como o sistema político e as relações comerciais.

Declara que a grande experiência da modernidade, repleta de perigos globais,

não é de maneira alguma o que os pais do Iluminismo tinham em mente quando

falaram da importância de contestar a tradição (Guiddens, 1991, p, 76). Para ele, o

progresso das entidades e a nova forma de viver causam preocupação.

Page 49: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

49

Na concepção do autor, o momento atual não é outro senão o moderno.

Opinião de que vários outros estudiosos do assunto discordam.

Daniel Bell (1973) concebe esse período como “além” da modernidade, onde

esse “além” representa a sociedade pós-industrial. Bauman (1998) e Harvey (1992)

o denominam de pós-moderno. Já Lipovetsky e Charles (2004) conceituam a época

como hipermoderno. Essa é uma extensa discussão que envolve vários estudiosos,

porém Guiddens admite e também concorda com a ideia de que vivemos um

momento que escapa ao nosso domínio e ainda não conseguimos compreender em

sua totalidade as mudanças que vêm acontecendo.

Apesar disso, ele discorda que a modernidade tenha sido superada por outro

período. Sugere que observemos a natureza da própria modernidade, a qual, por

certas razões bem específicas, tem sido insuficientemente abrangida, até agora,

pelas Ciências Sociais (Guiddens, 1991, p, 12).

Ressalta que o processo atual de transformações por que passa a sociedade

nada mais é que uma fase de amadurecimento da modernidade. Segundo o autor,

tempo e espaço na atualidade dissociam-se dos referenciais concretos anteriores.

Não há mais necessidade da interação física nas práticas sociais como antes, tem-

se agora um maior número de possibilidades diante de si, incluindo novas formas de

agir, novos hábitos.

Surge na modernidade uma forma de reflexividade, onde os indivíduos estão

em processo constante de avaliação e reformulação de suas atividades e práticas.

Partindo dessa perspectiva, até os vícios são escolhas: são modos de se enfrentar a

multiplicidade de possibilidades que quase todos os aspectos da vida cotidiana,

quando se olha de maneira adequada, oferecem (Guiddens, 1991, p, 122). Ele se

Page 50: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

50

utiliza de duas nomenclaturas para nomear modernidade, chama de simples e

também de nova, sendo que a segunda é também conhecida como reflexiva.

É caracterizada pela reflexividade social, não querendo dizer que antes tal

interação era inexistente, e sim que na atualidade é praticada constantemente; uma

espécie de juízo estendido a vários ramos da vida em geral. Guiddens menciona

que:

A reflexividade tem dois sentidos: um que é bastante amplo e outro que diz respeito mais diretamente à moderna vida social. Todo ser humano é reflexivo no sentido de que pensar a respeito do que se faz é parte integrante do ato de fazer, seja conscientemente ou no plano da consciência prática. A reflexividade social se refere a um mundo que é cada vez mais constituído de informação, e não de modos preestabelecidos de conduta. É como vivemos depois que nos afastamos da tradição e da natureza, por termos que tomar tantas decisões prospectivas. Nesse sentido, vivemos de modo muito mais reflexivo do que as gerações passadas. […] A radicalização da modernidade significa ser obrigado a viver de modo mais reflexivo, enfrentando um futuro mais incerto e problemático (Guiddens, 1991, p, 87).

Guiddens chama a atenção para a “democratização das emoções”, onde,

apesar de vivermos subordinados às relações de poder, as interações sociais são

vivenciadas de outra forma. Percebemos que na atualidade pondera-se mais o ato

de relacionar-se como o outro e, também há uma maior facilidade de troca, o que

antes não ocorria de forma tão simples. A tradição perde a sua força, a crença nos

ritos e mitos do passado já não existe mais. Guiddens afirma que “a tradição,

digamos assim, é a cola que une as ordens sociais pré-modernas”.

Assim afirma Guiddens: “Em outras palavras, a tradição é uma orientação

para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influência ou, mais

precisamente, é constituído para ter uma pesada influência sobre o presente”

(Guiddens, 1997, p. 80).

A tradição é responsável por controlar a sistematização da comunidade.

Através dela a leitura de mundo está vinculada aos costumes; faz com que surja um

Page 51: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

51

sentimento de aceitação diante dos fatos. Apesar de a tradição ser o guia para o

direcionamento de atitudes e procedimentos, por outro lado se vincula ao futuro que

é admitido como algo contínuo, tempo atual. E a tradição se encarrega da adaptação

ao período seguinte; não ocorre um rompimento e sim um encadeamento sucessivo.

A chegada da modernidade é inserida e remodelada na tradição, dando

continuidade a novos moldes e costumes, mas nunca abandonando totalmente o

que já existia. Muitos traços dos valores preexistentes subsistem e se representam

na sociedade atual. Houve uma transformação da sociedade e de como as pessoas

passaram a ver o mundo e lidar com as relações; podemos dizer que tantas

inovações também trouxeram insegurança.

A modernidade pode-se dizer, rompe o referencial protetor da pequena

comunidade e da tradição, substituindo-as por organizações muito mais impessoais.

O indivíduo se sente privado e só num mundo em que lhe falta o apoio psicológico e

o sentido de segurança oferecido em ambientes tradicionais (Guiddens, 2002, p. 38).

Para o autor, não é só a invenção de uma nova nomenclatura que será capaz

de esclarecer as atuais relações sociais; é preciso refletir sobre os efeitos. Assim

elucida Guiddens:

Em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as consequências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes. Além da modernidade, devo argumentar, podemos perceber os contornos de uma ordem nova e diferente do que é atualmente chamado por muitos de “pós-modernidade”. (Guiddens, 1991, p, 12-13)

A modernidade abre espaço “para relacionamentos baseados muito mais em

comunicação efetiva do que em papéis sexuais intencionalmente estabelecidos”

(Guiddens, 2000, p, 93). Logo, o papel social feminino ganha outro contorno, pois “o

caminho para a modernização reflexiva passa necessariamente por uma ampla

Page 52: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

52

democracia sexual com todas as oportunidades e também problemas que isso

acarreta” (Guiddens, 2000, p, 135).

O autor reconhece que essas alterações de ordem privada atuam

intensamente na área pública. O indivíduo experimenta a liberdade da opção

proporcionada pela reflexividade da modernidade, onde as tradições já não

direcionam comportamentos.

Para Guiddens “as rotinas que são estruturadas por sistemas abstratos têm

um caráter vazio, amoralizado – isto vale também para a ideia de que o impessoal

submerge cada vez mais o pessoal” (Guiddens, 1991, p, 122). Com essa afirmação,

procura mostrar que a nova fundamentação entre o pessoal e o social surge

rapidamente; são condições distintas, mas interligadas.

Pode-se dizer que o público e o privado adquirem um lugar unificado, mesmo

que sendo diferenciadas em suas especificidades. Guiddens tentou produzir um

princípio que buscasse abarcar não só a prática dentro da sociedade como também

a teoria. Não limitou suas explicações nem às macroestruturas, nem aos próprios

indivíduos. Guiddens recebeu várias críticas sobre esse conceito. É necessário

salientar que ele em nenhum momento enunciou que a reflexividade se sobrepôs às

tradições. Afirmou que não vivemos em um mundo tradicional, mas sim em um

mundo de tradições, deixando evidente como as tradições se tornaram parte de uma

recente possibilidade.

Page 53: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

53

3.3. A fragilidade das relações humanas

Zigmund Bauman, um dos maiores sociólogos da atualidade, em seu livro

Amor Líquido, escreve sobre a modernidade, lançando seu olhar sobre o caráter

tênue dos laços afetivos.

Destaca o cunho volátil que vivenciam as relações entre os sexos, onde

homens e mulheres são irrelevantes uns para os outros; as estruturas familiares já

não têm o alicerce de antes. Faz a seguinte reflexão:

Se uma súbita rajada de vento viesse afastar a neblina, ninguém sabe ao certo que tipo de margem iria revelar, nem se da névoa emergiria uma terra suficientemente firme para sustentar um lar permanente. Pontes que levam a lugar nenhum, ou a nenhum lugar em particular: quem precisa delas? Para quê? Quem perderia seu tempo e seu bom dinheiro para planejá-las e construí-las? (Bauman, 2004, p.28)

O mundo passa por uma série de modificações em diversas áreas

(econômica, cultural, tecnológica, social etc), podemos dizer que é o resultado da

globalização, ou como nomeia Bauman (2005) a “modernidade líquida”.

E uma das consequências é a crise de identidade que, segundo Hall, “é vista

como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as

estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de

referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (Hall

2006, p.27).

Bauman tratou a questão da modernidade e da individualização de uma forma

singular, mostrando como o processo de globalização com suas características tão

bem delineadas, que são o aspecto móvel e o dinamismo, pôde trazer uma

identidade diferenciada à geração da atualidade. Ele chamou de modernidade

líquida as relações onde os laços afetivos se desfazem com muita facilidade, onde já

Page 54: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

54

não se nota mais o interesse por relações duradouras como antes. Ele compara os

relacionamentos às ações da bolsa de valores:

Relacionamentos são investimentos como quaisquer outros, mas será que alguma vez lhes ocorreria fazer juras de lealdade às ações que acabou de adquirir? Jurar ser fiel para sempre, nos bons e maus momentos, na riqueza e na pobreza, “até que a morte nos separe”? (…) A primeira ciosa que os bons acionistas (…) fazem de manhã é abrir os jornais nas páginas sobre mercado de capitais para saber se é hora de manter suas ações ou se desfazer delas. É assim também com outro tipo de ações, os relacionamentos (Bauman, 2005, 15).

O autor revela que já não se tem certeza para onde se está indo, onde se vai

chegar ao fim de um relacionamento, chegando a questionar sobre quem seria

capaz de investir tempo e dinheiro em seu planejamento e construção. Afirma que

“Formar uma família é como pular de cabeça em águas inexploradas e de

profundidade insondável” (Bauman, 2005, 29). O indivíduo passou a ser visto como

mais localizado e “definido” no interior dessas grandes estruturas e formações

sustentadoras da sociedade moderna.

Dois importantes eventos contribuíram para articular um conjunto mais amplo

de fundamentos conceituais para o sujeito moderno. O primeiro foi a biologia

darwiniana, […] o segundo evento foi o surgimento de novas ciências sociais (Hall,

2006, p. 30).

A felicidade para o homem moderno tornou-se uma questão obrigatória, como

o próprio ato de respirar. Não é mais concebível uma vida de privações e

imposições; o homem é o centro, o elemento mais importante. As obrigações e

convicções que a Igreja impunha no passado já não fazem tanto sentido para a

maior parte das pessoas. O século das luzes trouxe a concepção de que os

prazeres terrenos são permitidos, e com isso formou a ideia de que a felicidade era

um modelo a ser perseguido.

Page 55: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

55

O progresso carregou de expectativas o homem moderno; a tecnologia busca

resolver problemas e trazer facilidades que mudaram e mudam o rumo da antiga

história; os bens materiais podem auxiliar nas tarefas cotidianas e otimizá-las.

Mas, como na vida tudo possui dois lados, um positivo e outro negativo,

juntamente ao progresso e à tecnologia vieram alguns prejuízos, como menciona

Lipovetsky:

Com início nos séculos XVIII e XIX, as refutações da ideia de progresso ganharam força na sequência das duas grandes guerras mundiais, dos extermínios em massa, do totalitarismo, do perigo atômico e, mais recentemente, da degradação dos ecossistemas e das ameaças biotecnológicas. (Lipovetsky, 2010, p. 287)

O homem moderno começa por vivenciar os reveses que a modernidade

carregada de tecnologia traz à humanidade.

Lipovetsky diz que “a fé num futuro necessariamente melhor e mais feliz

desvaneceu-se” (2010, p. 287). O homem, agora carregado de um sentimento de

insegurança, busca novas formas de mudar o cenário de acúmulo de solidão,

angústia e até medo. Podemos dizer que novas patologias surgiram com o advento

da modernidade; ouvimos falar de síndromes e sintomas associados à vida

moderna, doenças que de fato não se sabe o que são e nem tão pouco de onde vêm

e simplesmente os médicos dizem que é uma virose.

Continua a saga atrás de soluções e também em busca da tal felicidade

prometida pela modernidade. O consumo cada vez maior faz com que se pense ter

obtido o prazer que lhe faltava, a satisfação de que precisava, mas, rapidamente

aquilo já não lhe serve mais. E, Lipovetsky, nos põe a pensar com suas

interrogativas: Será possível que o caminho seguido pela civilização tecno comercial

seja um impasse fatal?

Page 56: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

56

Será possível que o culto moderno do Homo felix seja o instrumento da nossa

maior infelicidade? (Lipovetsky, 2010, p. 287)

Tanto Lipovetsky quanto Bauman referem-se ao caráter superficial das

relações afetivas e à explosão de consumo em busca da felicidade, como também

concordam que o indivíduo que confia a sua felicidade a outro está fadado ao

fracasso. Lipovetsky (2010, p. 302) diz que:

o indivíduo está inevitavelmente condenado às decepções e às mágoas da vida. Uma vez que preciso de outros para ser plenamente feliz, a minha felicidade é necessariamente fugaz e instável. Sem o outro não sou nada; com o outro, estou a sua mercê: a felicidade à qual o homem pode aceder só pode ser uma “felicidade frágil”. (Lipovetsky, 2010, p. 302)

O sentimento de impotência diante da realidade inunda cada ser, mas a ilusão

ou sonho de alcançar a felicidade pode compensar essa situação e servir para

orientar um sentido que ajude a mudar e atingir o almejado objetivo.

Ao mesmo tempo em que o autor nos mostra a realidade de consumo no

planeta, mantém um olhar questionador e positivo diante da postura adotada pelos

chamados “alter consumidores” que são aqueles que decidem por produtos que

diminuem o impacto na natureza. Ele afirma que, “este novo tipo de consumidor

empenha-se pessoalmente no seu modo de consumo” (Lipovetsky, 2010, p. 294).

Visa a elucidar o tema em questão sempre nos mostrando duas vertentes;

dessa forma, ao falar do que chamou de barbárie moral, expõe que: “São muitos os

que levantam a voz contra o naufrágio de uma civilização cada vez mais marcada

pelo egoísmo, a primazia do dinheiro, a delinquência, a grande criminalidade

econômica e financeira” (Lipovetsky, 2010, p. 306).

Desde os antigos gregos, o ser humano vive em busca do grande segredo da

felicidade, na eterna procura do que o fará feliz e satisfeito com a sua vida. Se

pensarmos na felicidade associada ao amor, é possível afirmar que em uma

Page 57: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

57

sociedade que não cessa de prestar culto ao ideal amoroso e na qual a verdadeira

vida está associada ao que se saboreia a dois, a relação estável e exclusiva

constitui ainda um fim ideal. Essa premissa seria facilmente aplicável a tempos

passados porém na atualidade já não ocorre da mesma forma.

A relação paradoxal que encontramos nos faz entender como os indivíduos

celebram hoje um universo dominado pelo mercado, ao qual nem a esfera da

intimidade consegue escapar, numa sociedade onde as necessidades dos cidadãos

estão constantemente em observação e são alvo de elaboradas estratégias de

mercado. Mas, podemos perceber que esse fato tão comum na atualidade também

pode ser notado nas relações do passado; onde pessoas precisam “ter para ser”, é

necessário cada vez mais estar à frente, como se vivêssemos em uma competição,

é necessário ostentar.

A felicidade, substituída pela satisfação de desejos nunca aplacáveis, jamais

é experimentada. O que nos resta é a ansiedade da felicidade. Segundo o sociólogo

polonês Zygmunt Bauman, tornar a si mesmo vendável é uma das tarefas mais

importantes que as pessoas têm numa sociedade de consumo, além de conquistar a

felicidade. Ainda segundo o sociólogo, a felicidade é o principal objetivo da

sociedade de consumo, ou seja, os homens vivem para ser felizes por meio das

coisas que adquirem, paradoxalmente, e por meio daquilo que descartam.

As compras são o ópio da sociedade que, quanto mais isolada e frustrada

com a solidão, tédio do trabalho, fragmentação da mobilidade social, segue

buscando o consolo na felicidade imediata proporcionada pelas mercadorias. Ou

seja, consumo como forma de fazer transparecer a condição de felicidade propiciada

pelas novas experiências.

Page 58: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

58

Há a fragilidade dos vínculos humanos, que são misteriosos, conflitantes e

inseguros na medida em que o homem contemporâneo está abandonado à sua

própria vontade, de modo que, ao mesmo tempo, possui grande facilidade de

conceder e descartar sentido nas “relações amorosas”.

O homem moderno, ávido por relacionar-se, ao mesmo tempo em que busca

uma relação, e desta maneira repudia a solidão, não abre mão de sua liberdade, e

para manter a liberdade mantêm a relação, entretanto com outra configuração.

Desta maneira, temos um novo modelo de relação amorosa: é a relação líquida,

frouxa. A felicidade, que é uma parte do paradoxo, prazer-desprazer, satisfaz o

homem na medida em que supera um sofrimento. Os fluídos movem-se facilmente,

quer dizer: simplesmente “fluem”, “escorrem entre os dedos”, “transbordam”,

“vazam”, “preenchem vazios com leveza e fluidez”.

Muitas vezes não são facilmente contidos, como por exemplo, em uma

hidrelétrica ou num túnel de metrô, lugar onde se podem observar as goteiras, as

rachaduras ou uma pequena gota numa fenda mínima. O mundo é identificado como

líquido, em que as relações se estabelecem com extraordinária fluidez, que se

movem e escorrem sem muitos obstáculos, marcadas pela ausência de peso, em

constante e frenético movimento. O amor também passa a ser vivenciado de uma

maneira mais insegura, com dúvidas acrescidas à já irresistível e temerária atração

de se unir ao outro.

Quando, com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa

civilização, por atender de forma tão inadequada às nossas exigências de um plano

de vida que nos torne felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento, que

provavelmente poderia ser evitado; quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à

mostra as raízes de sua imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um

Page 59: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

59

direito justo, e não nos mostrando inimigos da civilização. Podemos esperar efetuar,

gradativamente, em nossa civilização alterações tais que satisfaçam nossas

necessidades e escapem a nossas críticas. Mas talvez possamos também nos

familiarizar com a ideia de existirem dificuldades, ligadas à natureza da civilização,

que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma.

3. 4. Breve reflexão sobre o papel social das mulheres

Nos dias atuais, convivemos com uma grande quantidade de informações e

questões novas que surgem e é preciso compreendê-las de alguma forma, fazer

julgamentos e tomar posições por vezes. Essas interações fazem com que sejam

criados universos novos que migram em direção a novas representações que são

construídas a todo o tempo, quase sempre pautadas no senso comum, almejando

visibilizar melhor a comunicação e direcionar os comportamentos. Assim vai sendo

formada a identidade de um grupo e a noção de estar inserido nele.

As representações sociais são categorias que servem como orientação para

melhor entender o funcionamento de âmbito social, apresentando características

voltadas para a dimensão do conteúdo. Podem ser uma forma de entender como se

articula a sociedade, cujo aumento da velocidade das informações tem obrigado a

uma constante reavaliação e construção de novos paradigmas, onde não há mais

espaço para as tradições.

As representações sociais podem ser entendidas como a manifestação do

real e não como o reflexo da realidade; estão em constante mudança como o

produto que buscam moldar, são enérgicas e ativas.

Page 60: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

60

As representações sociais quando ligadas ao imaginário nacional, estão

associadas ao caráter simbólico do funcionamento representativo do indivíduo que

estão a todo o tempo participando de experiências de âmbito social.

A representação aqui é construída mediante a ação de fenômenos

emocionais e mentais que permitem que se torne pessoal e presente no mundo

interior algo que não está presente.

Sendo assim, a relação entre o que já havia com o que está sendo inserido no

universo de cada indivíduo é entendida como as estruturas de conhecimento que

circulam entre as pessoas dos diversos grupos, e também como um processo social

voltado diretamente para o ato discursivo através do qual o universo de significados

vai sendo construído.

As representações sociais são fundamentadas a partir de emoções, hábitos e

palavras; e para uma melhor compreensão é necessário revisar os comportamentos

e suas estruturas. O entendimento torna-se ainda mais evidente através da

contextualização e do funcionamento das interações sociais.

Perceber que são fundamentadas por informações e conceitos que a

representam, onde existe uma tendência a associar o gênero às características

biológicas percebidas através da diferenciação sexual. Tais características são

formadoras na oposição da construção do masculino e do feminino, que, por sua

vez, são apreendidas através dos estereótipos de gênero estabelecidos em cada

cultura. E, julgamos que tais conflitos presentes na estruturação do masculino e do

feminino residem nos modelos de gênero oriundos de cada cultura, reforçando

assim o nexo diferenciado que se atribui às relações. Assim, pode-se perceber como

é comum observar meninos e meninas de diferentes idades atribuindo valores

preconcebidos quanto à ordem sexual.

Page 61: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

61

É a própria sociedade que fornecerá os conceitos e atributos com os quais

cada indivíduo construirá a representação social. Temos inserido no tema a questão

de gênero que traz à tona a relação desigual entre homens e mulheres enquanto

sujeitos sociais.

O homem e a mulher são definidos socialmente através de padrões de

conduta concebidos como inerentes a cada um; o que, além de conferir uma

caracterização binária entre as categorias sociais, também mostra uma relação

assimétrica e diferenciada entre elas. Estudos indicam que é evidente a existência

de uma relação díspar no âmbito das relações sociais. Tal fato se deve à

estruturação social dos gêneros, onde os papéis são valorados e distinguidos com

base no sexo do indivíduo.

Tanto preconceito nas relações se deve ao fato de ter havido uma

fundamentação no poder de dominação, onde a relação desigual, discriminatória e

opressiva, levada ao longo do tempo pela força da tradição, criou um sistema que

excluía a mulher do contexto público e a relegava exclusivamente ao lar. Sendo

assim, durante muito tempo à mulher foi destinada a tarefa dos cuidados da casa e

da família; e, como forma de justificativa, as consideravam como seres inferiores aos

homens.

Percebemos que a desigualdade gerada pela atribuição de aspectos distintos

para mulheres e homens em decorrência de seu sexo é uma das causas do

preconceito e da violência que atinge as mulheres. Esse procedimento é

disseminado de acordo com o tipo de valor que define e põe em vigor o

ordenamento dominante que continuamente será difundido através da história.

Page 62: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

62

Como espólio desse desnível de âmbito histórico, temos as atitudes e

pensamentos que priorizam o predomínio de um sexo sobre o outro, justificando

uma relação desigual nas culturas.

Alguns elementos são essenciais para a fundamentação da desigualdade

entre os sexos tais como a distribuição das atribuições entre as representações

sociais inerentes a cada um. E, a partir das condutas, das emoções e dos símbolos

conseguimos entender a formação do sistema representativo dos grupos diversos. É

através das representações sociais dos grupos que conseguimos perceber a

estruturação e a essência dos diferentes objetos reconhecidos socialmente. As

preconcepções que são estabelecidas sobre cada objeto ou indivíduo serão os

direcionadores das diferenças entre os gêneros e na vinculação com a relação

desigual entre os sexos.

Os processos de significação com suas consequências são necessários para

entender como os indivíduos tomam posse dos conceitos; também a investigação

dos aspectos culturais dos grupos e a forma como concebem a realidade são os

elementos que favorecem o entendimento dos componentes que tecem as relações

sociais. As relações de gênero estão baseadas em um sistema de oposições

binárias que separam homem-mulher, sobrepondo como dominante o ser masculino.

Porém, o assunto em questão pertence a um conjunto de forças iguais e contrárias

ao mesmo tempo, que terminam por atuar em direções opostas devido ao sistema

antagônico no qual estão inseridos.

Esse comportamento pode ser explicitado através do ato da fala ou das

condutas, que têm sua origem em bases culturais que contribuem para perpetuar a

condição de inferioridade atribuída à mulher.

Page 63: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

63

No final do século XIX, a concepção do momento estava em transformar a

vida social mais civilizada e moderna. E, para isso, era preciso mudar a imagem da

mulher, onde podemos destacar a fragilidade física da qual decorriam a sua

delicadeza e debilidade moral, argumento esse que tem suas origens na filosofia

iluminista.

Os filósofos dessa época acreditavam que as mulheres eram seres providos

de sentimento e de muita imaginação, sendo incapazes de conceitualizar e criar algo

relevante. Para eles, a razão não era característica feminina; acreditavam que não

passaram da fase da imaginação e da imaturidade. Era necessário manter o domínio

dessas condutas, pois sem controle a mulher poderia tornar-se louca.

Era preciso ser fiel a seu marido e também obediente, além de cuidar dos

filhos; ações tidas como deveres naturais que além de reforçar o sistema opressivo

também serviam para legitimar a inferioridade da mulher no âmbito racional. A

diferença biológica entre mulheres e homens servia para justificar as desigualdades

sociais e culturais, representando a mulher como o sexo frágil e o homem como o

forte e disciplinador. Enquanto ao homem prevaleceria o impulso sexual, na mulher

somente deveria predominar o instinto materno, características que resultaram de

um processo histórico-social.

Na década de 1970, as mulheres iniciaram uma manifestação contra essa

desigualdade, começando a interpelar a condição subalterna que lhes era imposta.

O ser mulher não é uma questão que se baseia em uma norma da natureza ou é

determinada pelo sexo ou pela biologia; e sim é proveniente de aspectos

socioculturais. Tem sua elaboração no imaginário do grupo, o qual é responsável por

fornecer os elementos que constituirão os seus principais aspectos. Logo, não é

plausível afirmar que mulheres e homens são diferentes pelo fato de confirmar o

Page 64: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

64

conceito de haver uma essência implícita em cada um, servindo tão somente para

legitimar as desigualdades entre homens e mulheres. E a oposição de um gênero

com relação ao outro é um dos princípios pelos quais são destacadas as assimetrias

dentro das relações de poder da sociedade.

Neste sistema binário atribuem-se características completamente opostas aos

seres; as mulheres são englobadas dentro de um mesmo campo semântico, com

atributos como o ser amável, sensível e cuidadosa; enquanto para os homens tem-

se o trabalho, o poder e a força. Tal composição representativa, pautada na

superioridade do homem, dá realce ao vigor masculino, justificando o mito do

homem como ser superior. Isto contribui para provocar ainda mais as condutas

estereotipadas, primando pelos valores e categorias dos meios de socialização da

cultura.

Desde muito tempo a história das mulheres tem sido marcada por opressão.

Aquelas que mostravam resistência, principalmente quanto às imposições

determinadas pela Igreja, sofriam acusação de prática de bruxaria e a Inquisição as

queimava. Eram perseguidas, muitas exiladas e mortas por desejarem a liberdade

que não era conferida a elas; mas, buscar fazer com que suas vozes fossem

ouvidas fez com que as mulheres fossem conquistando território, fazendo com que

os outros percebam que não são inferiores.

Falar sobre a trajetória histórica das mulheres através dos tempos implica

entender a história das lutas femininas pela emancipação. Cabe citar aqui Virginia

Woolf (2004, p.62), em Um teto todo seu:

qualquer mulher nascida com grande talento no século 16 teria certamente enlouquecido, ter-se-ia matado com um tiro, ou terminado os seus dias em algum chalé isolado, fora da cidade, meio bruxa, meio feiticeira, temida e ridicularizada.(Virginia Woolf 2004, p.62)

Page 65: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

65

O patriarca era quem presidia a única ordem “perfeita” e íntegra na

sociedade; a família era o centro do grupo, um verdadeiro clã onde se incluíam a

esposa, filhos, parentes, dependentes e eventuais (e disfarçadas) concubinas.

Dentro desse sistema, aos homens eram permitidas várias regalias, inclusive ter

atitudes que indiquem uma dupla moral.

Há muitos anos as mulheres lutam para aumentar o seu papel dentro da

sociedade, porém o sistema patriarcal sempre as rejeitou em vários setores e o

mercado de trabalho é um daqueles em que as mulheres tiveram de lutar para

conquistar o seu espaço. Sempre foi preciso lutar para ter acesso ao espaço público

e não continuar confinada ao ambiente doméstico.

Muitos acreditavam que, se a mulher não estivesse voltada para o lar, este

acabaria por esfacelar-se, haveria um distanciamento dos filhos e elas se tornariam

indiferentes diante da família. Sempre se acreditou que ao homem era destinado o

espaço público; e a mulher, por sua vez, deveria ser o centro da família e do lar.

Dividiram-se o homem e a mulher em esferas distintas, quer seja por força da

própria natureza ou por confirmação das relações sociais.

Acreditava-se que mulheres e homens eram munidos de diferentes

características, logo as funções também haviam de ser diferentes e uma tentativa de

fuga desse paradigma seria inconcebível. Para os religiosos mais radicais, defender

a igualdade entre homens e mulheres era imoral e totalmente avesso ao natural.

O sujeito feminino, segundo a concepção patriarcalista, deveria ter a vida

totalmente voltada para o marido, os filhos e seu lar, enfim, suas funções principais

eram o casamento e a procriação. Dentro da família, o desempenho de papéis

sempre foi muito bem delimitado, as funções são diferenciadas e definidas. Ao pai

cabia (em alguns casos ainda hoje é assim) o sustento do lar e a manutenção, que

Page 66: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

66

seriam conseguidas por ele através da sua atividade no espaço público, onde ele

tem livre acesso para interagir com os outros fora do ambiente do lar, o que, acima

de tudo, assegurara a sua masculinidade. À mulher, sendo responsável pela família,

sempre lhe era reservado somente o espaço doméstico.

Durante muito tempo a constituição da família se organizava dessa forma;

porém, aos poucos as mulheres foram percebendo que poderiam desempenhar

outros papéis dentro da sociedade, como trabalhar fora e envolver-se com a política,

enfim, ter acesso ao espaço público. A presença feminina em recintos como uma

fábrica era desaconselhada por ser um ambiente sujo, ou por deixar a mulher

exposta a uma investida de assédio sexual, além de os operários temerem a

concorrência. Porém, a Primeira Guerra Mundial faz com que esse quadro se

modificasse; na Inglaterra e na França as mulheres começam a trabalhar em

fábricas de munição enquanto muitos homens foram para a guerra.

Aos poucos as mulheres começavam a alcançar espaços nunca antes

permitidos a elas. O afastamento da mulher da esfera doméstica, seu lugar natural,

é muitas vezes tido como uma degradação moral, consequência da exploração

capitalista. As meninas, que eram alfabetizadas, tornaram-se mulheres que

reivindicavam uma sociedade onde tivessem mais oportunidades que as que o

ambiente doméstico era capaz de proporcionar.

Com o passar do tempo muitas começaram a ter formação superior, era o

efeito da modernidade, desejavam ser as companheiras inteligentes, não mais a

dona de casa. “As representações sociais são como formas de compreender a

relação diária da vida em sociedade, onde o individuo é valorizado com a sua

participação na reelaboração de significados para o fenômeno da vida cotidiana”

(Teixeira, 1999).

Page 67: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

67

Podemos inferir a partir dessa afirmação que as representações ou papéis

sociais são construídos a todo o momento, através das diversas interações entre os

sujeitos. A sociedade é essencialmente histórica, assume padrões de valores e

normas sociais de acordo com os estímulos recebidos pelo grupo ao qual pertence e

também dependendo de suas necessidades.

A construção cultural transcende os séculos, passando pelas representações

transmitidas de geração em geração e que, constituída em “cultura”, define o lugar

do homem e da mulher com âmbitos diferenciados e antagônicos. Mesmo com a

grande transformação dos costumes e valores que vem ocorrendo nas últimas

décadas, ainda perduram muitas discriminações, muitas vezes ocultas, relacionadas

a gênero (Swain, 2001).

As relações sociais sejam elas no âmbito familiar, comunitário ou político,

atuam diretamente no âmbito psíquico, definindo os papéis e as representações

sociais. “O destino de identidades e atividades como a separação dos âmbitos de

ação para homens e mulheres, que estão valorizados de forma diferente, é a

expressão social da desigualdade” (Veloso, 2001). A partir daí emerge a

desigualdade de recursos e poderes, levando a uma nivelação diferenciada nas

relações entre homens e mulheres. É muito evidente essa hierarquização.

Podemos citar vários exemplos para ilustrar o fato, quando se fala em

mercado de trabalho, onde os salários são diferenciados pelo sexo; outro exemplo

clássico é a divisão de tarefas dentro de casa; mesmo hoje em dia com as mulheres

trabalhando fora de casa, é comum vê-las responsáveis pelas tarefas domésticas

sem ter a ajuda do homem que julga não ser essa sua obrigação.

A desigualdade gera uma situação vulnerável para as mulheres, impede o

aprofundamento da democracia e a vivência da cidadania para todos. Ao mesmo

Page 68: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

68

tempo, as relações são acompanhadas de desigualdades de classe, raça e etnia,

determinantes da construção de inúmeras discriminações e injustiças (Ammann,

1997, p. 84-104, apud Araújo, 2002). O universo público é feito, é articulado e é

incorporado especificamente dentro do espaço privado; onde, aliás, a fala feminina

circula muito bem. A cidade é um espaço social e sexuado que demarca o espaço

público como masculino e o privado como feminino.

O gênero é quem vai determinar a posição social de cada indivíduo; para isso

serão levados em consideração o sexo, a classe social a que pertence e, outro fator

muito relevante é a raça. Porém, essa interpretação é estritamente pessoal e surge

através das dinâmicas sociais. Diante disso, “o gênero constitui uma realidade

complexa, não podendo, portanto, ser considerado um conceito fixo” (Saffioti, 1999

apud Carloto, 2001), mas constantemente redefinido pelos indivíduos em situações

na qual se encontram e que acabam por compor-se em momentos históricos.

Não é difícil perceber que qualquer indivíduo, independente do sexo, é capaz

de desenvolver qualquer tarefa, são os próprios indivíduos que delimitam as funções

de acordo com o sexo. Como já mencionado anteriormente, tradicionalmente aos

homens foi delegada a tarefa da proteção e sustento; e às mulheres, a procriação e

os cuidados com a família. São construções sociais que buscam justificar essa

relação de dominação. Segundo Bourdieu a divisão sexual:

É arbitrária em estado isolado, a divisão das coisas e das atividades (sexuais e outras) segundo a oposição entre masculino e feminino recebe sua necessidade objetiva e subjetiva de sua inserção em um sistema de oposições homólogas, alto / baixo, em cima / embaixo, na frente / atrás, direita / esquerda, reto / curvo (e falso), seco / úmido, duro / mole, temperado / insosso, claro / escuro, fora (público) / dentro (privado) etc (Bourdieu, 2002, p.8).

Na verdade, quando se trata de gênero é desnecessário e até mesmo

equivocado fazer uso de elementos binários opostos.

Page 69: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

69

Dessa forma é até possível acreditar que se trata de “forças opostas” que

concorrem dentro de um mesmo sistema, onde deveriam se limitar a existir.

Para Bourdieu (2002), os dominados aplicam categorias construídas do ponto

de vista dos dominantes às relações de dominação, fazendo-as assim serem vistas

como naturais. Essa ideia é compartilhada por Moreira (2012), a qual acrescenta

que, além da definição dos papéis sociais em feminino e masculino, as

representações e imagens de gênero constroem os corpos biológicos, não só como

sexo genital, mas igualmente moldando-os e sujeitando-os às práticas normativas

que hoje se encontram disseminadas no ocidente. Sendo assim, podemos

considerar as representações sociais como sendo uma alternativa de conceber a

realidade de cada indivíduo.

Com o passar dos anos, as mulheres perceberam que poderiam ir além do

espaço privado e que poderiam tornar-se parte do mundo público. Iniciou-se a luta

pela emancipação da mulher e se puseram a questionar a dominação masculina;

surge a necessidade da presença das mulheres em todas as esferas sociais.

Em suas reivindicações, as mulheres buscaram pertencer ao ambiente

cultural vinculado somente aos homens, que sempre tiveram direitos sobre esse

mundo. Garantiram o direito ao voto, a cidadania e ao mundo público obtido

mediante muitas lutas e reivindicações. Deste modo, Carneiro (2012) mostra que a

luta feminina é uma busca para a construção de novos valores sociais, morais e

culturais. É uma luta pela democracia, que deve nascer da igualdade entre os sexos

e evoluir para igualdade entre todos, suprimindo a desigualdade de classe.

A busca pela democratização das relações de gênero persistiu e com a

Constituição Federal de 1988 a mulher conquistou a igualdade jurídica (Carneiro,

2012). A concepção de gênero está diretamente voltada para o social e refere-se às

Page 70: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

70

relações de desigualdade existente entre ambos os sexos. Segundo Scott (1995),

gênero é uma categoria de análise sociológica e histórica que permite compreender

as relações sociais que estabelecem saberes para a diferença sexual.

Estes saberes atribuem conceitos às diversidades anatômicas influenciando

diretamente as relações sociais; tais saberes são relativos e variam dentro de cada

cultura. O papel social das mulheres sofreu muitas modificações desde a

Antiguidade até hoje. No passado elas tinham a função essencial da maternidade,

não lhes cabendo questionar nem tampouco planejar. Aos homens cabia a função

da subsistência da família e às mulheres cabia, universalmente, a posição de

subordinação; algo que destoasse dessa forma de organização era tido como

transgressor.

Mas muitas mulheres tentaram fugir do domínio patriarcal, o que certamente

lhes rendeu muito sofrimento. Segundo Woodward (2000, p. 10), “os homens

tendem a construir posições de sujeito para as mulheres tomando a si próprios como

ponto de referência”. No desempenho de seu papel social, o sujeito feminino exerce

uma série de atividades que são constituídos socialmente através da interação.

Os papéis sociais que cada indivíduo desempenha são definidos pela

sociedade; a história de vida de cada um é determinada pelas condições históricas

do grupo social ao qual pertence; vai sendo edificada através do tempo dentro de

cada segmento social.

Ainda hoje em nosso meio social, vemos fortes marcas de uma cultura

predominantemente machista, fazendo-se separações de funções de acordo com o

sexo de cada um. Com as diversas manifestações feministas, essa posição tem sido

repensada, mas ainda está longe de se tornar lembrança.

Page 71: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

71

Há muito, a mulher é considerada inferior ao homem; e as relações sociais

que envolvem indivíduos de sexos distintos são marcadas por processos

discriminatórios e insistem em pregar que a mulher tem de se submeter à vontade

do homem. Porém, as mulheres têm alcançado autonomia e não mais aceitam uma

posição de submissão.

As mudanças ocorridas na sociedade ultimamente trouxeram muitas

alterações para o papel da mulher; mas essas mudanças somente se tornaram

possíveis mediante lutas e reivindicações. Destaco o dia 8 de março de 1857 –

quando surgiu o Dia Internacional da Mulher. Nesta ocasião, operárias de uma

fábrica têxtil estabeleceram estado de greve, sendo o motivo do protesto a

diminuição da jornada trabalhada e também em protesto quanto aos baixos salários.

O movimento tomou grande repercussão pelo fato de os empresários terem

determinado que ateassem fogo na edificação, o que terminou com a morte de

muitas operárias.

Em 1910, na Dinamarca, em memória às operárias mortas durante o protesto

de 1857, realizou-se o 2º Congresso Internacional de Mulheres. A partir daí vai

sendo dada a continuidade na luta política e, o feminismo é transformado em

movimento social. Vale ressaltar duas grandes contribuições no campo literário que

são Flaubert e Beauvoir. Em 1857, o escritor francês Gustave Flaubert consegue

chocar a sociedade com a publicação de Madame Bovary.

E, no ano de 1949, na França, Simone de Beauvoir publica o seu ensaio

intitulado O Segundo Sexo. Esse trabalho promoveu um novo olhar sobre a causa

das mulheres e, muito contribuiu com a luta feminista, assim como a de Flaubert. E

fica registrado nesse caminho de luta social a famosa frase de Simone de Beauvoir

a respeito do conceito de gênero: “Não se nasce mulher, torna-se”.

Page 72: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

72

O que as mulheres sempre buscaram através de suas lutas sociais foi a

igualdade de direitos, as mesmas oportunidades entre os gêneros, a desconstrução

do estereótipo de inferioridade em relação aos homens e também a desconstrução

da ideologia machista que subjugava as mulheres e as tratava como se fossem de

propriedade deles. A esse respeito, Rosiska Darcy de Oliveira (1993, p. 109)

menciona que: “A revolução da diferença não tem porque enfraquecer a luta pela

igualdade, mas deve, certamente, redefini-la. […] o projeto da diferença é pós-

feminista, não porque nega e contradiz o projeto de igualdade, mas porque corrige

suas distorções”.

A luta pela conquista de atuação no espaço público é uma constante para as

feministas; porém a vida cotidiana com suas funções de mãe e mulher está inserida

neste contexto de reivindicações. O sujeito feminino é sempre visto como,

essencialmente, destinado ao casamento e à procriação; as mulheres normalmente

são definidas por suas funções biológicas e não por engajamento na sociedade.

Como já vimos, o ordenamento social sobrepõe binômios como masculino-

feminino, público-privado, natureza-cultura, na tentativa de explicar as diferenças

entre os seres; mas, na realidade, tal disposição não é suficiente para dar conta da

multiplicidade identitária existente. Segundo Maria Odila Leite da Silva Dias:

Não há porque considerar a oposição como se apresenta hoje, com sua carga de definições culturais herdadas do passado, como se fosse necessária ou inata. O estudo das relações de gênero caminha no sentido de documentar as diferenças sociais, de nuançá-las de modo que um dia, eventualmente transformadas, possam se aproximar: neste momento, em vez de destacar-se em contornos de nitidez cultural desnecessária, estarão provavelmente nuançadas em uma multiplicidade de diferentes que não somos capazes de ver hoje (Dias, 1994, p. 373).

Desde os anos 1970, os estudos de Joan Scott têm sido utilizados nas

argumentações acerca da questão de gênero. Para a autora (1990, p. 5) o caráter

social das distinções de sexo, “indicava uma rejeição ao determinismo biológico

Page 73: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

73

implícito no uso dos termos como sexo ou diferença sexual”. O estudo do gênero

serviu para desmistificar estereótipos sobre as definições que envolvem o quesito da

feminilidade. A respeito da construção das relações de gênero, Scott acrescenta

outra teoria sobre a questão do gênero como sendo uma categoria capaz de explicar

e também fazer entender as relações de poder:

O gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político tem sido concebido, legitimado e criticado. Ele não apenas faz referência ao significado da oposição entre homem e mulher; ele também o estabelece. Para proteger o poder político, a referência deve parecer certa e fixa, fora de toda construção humana, parte da ordem natural ou divina. (Scott, 1990, p. 5)

Podemos dizer que a principal característica do gênero é trazer à tona as

estratégias de dominação que dão suporte à construção da dicotomia entre sexos.

Segundo Scott:

O termo “gênero” torna-se, antes, uma maneira de indicar “construções culturais” - a criação inteiramente social de ideias sobre papéis adequados aos homens e às mulheres. Trata-se de uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e de mulheres. “Gênero” é, segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. Com a proliferação dos estudos sobre sexo e sexualidade, “gênero” tornou-se uma palavra particularmente útil, pois oferece um meio de distinguir a prática sexual dos papéis sexuais atribuídos às mulheres e aos homens (Ibidem).

Foi em meio aos debates feministas que se iniciou o uso do vocábulo gênero,

buscando explicar as causas das relações de subordinação e dominação existentes

entre homem e mulheres. O feminismo não só examina os aparelhos do sistema

patriarcal, como também os esquemas e instrumentos de dominação.

Além disso, como menciona Félix Guatarri (1996, p. 73), o feminismo não

coloca apenas “o problema do reconhecimento dos direitos da mulher […] Ele é

portador de um devir feminino que diz respeito […] a todas as engrenagens da

sociedade”, o que contribui para aumentar a área de atuação enquanto crítica da

cultura. A intenção ainda é dar visibilidade a lutas e ganhos das milhares de

Page 74: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

74

mulheres, aos espaços de inserção e como despertam para a formação profissional

e atividades que as ponham fora do ambiente doméstico.

Com as mulheres atuando no mercado de trabalho, suas reivindicações e

lutas serviram de subsídio para a criação e estruturação do movimento feminista,

que trouxe como resultado as conquistas sociais e políticas como o uso da pílula

anticoncepcional, o direito ao voto, direitos trabalhistas entre outros, mostrando que

a emancipação feminina é possível e necessária.

A mulher tem paulatinamente superado os padrões impostos por uma

sociedade machista e patriarcal. A busca pela igualdade entre os sexos não

terminou; é um processo constante visando igualar os papéis sociais, tornando-os

homogêneos e isentos de preconceitos.

No imaginário da sociedade patriarcal, a mulher sempre esteve condicionada

a sua capacidade reprodutora, se acreditava que ao sexo feminino estava

relacionado um comportamento emocional imprevisível e pouco estruturado. Assim,

separavam as mulheres em um grupo que era frágil fisicamente, logo inferior; e

acreditava-se no mito de passividade inerente à figura feminina, onde se esperava

que fosse delicada e passiva sempre. Essa tese encontra raízes ainda na filosofia

Iluminista. De acordo com Rachel Soihet:

Constituem-se as mulheres, de acordo com a maioria dos filósofos iluministas, no ser da paixão, da imaginação, não do conceito. Não seriam capazes de invenção e, mesmo quando passíveis de ter acesso à literatura e a determinadas ciências, estariam excluídas da genialidade. A beleza, atributo desse sexo, era incompatível com as faculdades nobres, figurando o elogio do caráter de uma mulher como a prova de sua fealdade. (Soihet, 1997, p. 9)

O fato de considerar as mulheres inferiores é bem fácil de entender, era

preciso que fossem submissas, obedecessem a seus maridos e se dedicassem aos

cuidados dos filhos. No âmbito educacional, os homens, quando ingressavam no

Page 75: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

75

ensino secundário, já vislumbravam uma formação superior; enquanto para as

mulheres, a opção consistia nas escolas normais, destinadas à profissionalização e

ao preparo para o mundo doméstico (Soihet, 1997). Para Margareth Rago:

Mais do que a inclusão das mulheres no discurso histórico, trata-se, então, de encontrar as categorias adequadas para conhecer os mundos femininos, para falar das práticas das mulheres no passado e no presente e para propor novas possíveis interpretações inimagináveis na ótica masculina. Mais recentemente, a discussão se volta para os próprios homens, também eles excluídos dos campos históricos em benefício da figura ficcional do Homem, construído à imagem de Deus. Deixando de lado a polêmica relativa à divisão de espaços que os estudos da masculinidade colocam, não há dúvida de que também os homens se descobrem profundamente estrangeiros para si mesmos, ocultos que estavam numa interpretação que os elevava à categoria de deuses (Rago, 1998, p. 95).

No decorrer dos séculos, o mundo associou a feminilidade à imperfeição; até

mesmo alguns homens cultos disseminaram que o ideal da educação feminina era

auxiliar na tarefa doméstica. Muitos acreditavam que o sexo feminino era

biologicamente inferior. A explicação para a suposta fragilidade feminina decorria de

uma presumida questão de diferença orgânica, onde se acreditava que as mulheres

possuíam a constituição do sistema nervoso diferente do homem, justificando assim

a submissão, a indulgência e a doçura.

As mulheres tinham seus limites impostos através da biologia, sendo

impedidas de se igualarem ao sexo oposto. Havia, e ainda hoje existe em algumas

regiões, um empenho muito grande por parte dos homens em provar que a própria

constituição feminina a impedia de atingir o mesmo sucesso que o homem.

Os argumentos consistiam em uma fragilidade natural que impossibilitava a

equivalência de oportunidades no contexto intelectual. Todo esse quadro, que

culminava em torno da educação das mulheres e também com relação às condutas

apropriadas a elas, suscitou movimentos feministas onde lutaram por

reconhecimento de direitos legais e cívicos fundamentais; como o direito ao voto, à

educação, à igualdade de acesso e de possibilidades no mercado de trabalho.

Page 76: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

76

Observou-se um aumento no domínio da intervenção das mulheres a partir de

discussões relacionadas à diferença sexual e à discriminação cultural implantada e

fundamentada com a ideologia patriarcal.

Em pleno período de uma cultura patriarcal, a atuação feminina na escrita se

mantém mesmo podendo ser penalizada e ter a sua enunciação silenciada. Mesmo

assim deixaram registrados seus manuscritos com os personagens que denotam a

celebração da capacidade de pensar, sentir e agir de cada uma das figuras

femininas representadas, mesmo quando aparecem como derrotadas.

Esta escrita constitui um olhar elucidativo sobre a condição da mulher; porém,

somente após muitos anos de lutas e reivindicações, as escritoras aos poucos foram

alcançando uma significativa libertação, rejeitando a submissão ao pai, ao marido e

até mesmo ao amante.

Havia uma tentativa de submeter-se ao estatuto competitivo do mundo

masculino com o intuito de obter o reconhecimento social e profissional. Uma

perspectiva onde a aventura do sujeito humano na vida privada não mais é obrigada

a se refugiar na loucura feminina (ou histeria), ou na arte; ainda que muitas ainda se

vejam atreladas ao fantasma da geração precedente. Vivenciam armadilhas

constantemente renovadas as mulheres que são obrigadas à sobrevivência e

igualmente destinadas à liberdade.

Page 77: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

77

4. A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA NA NARRATIVA FICCIONAL

Ocultar lo imaginario bajo las aparencias de la vida real,

es lo que constituye todo el arte de la novela moderna.

Mercedes Carbonera

No aspecto da literatura e da crítica literária, uma das temáticas recorrentes

tem sido a feminina; e a crítica literária feminista preocupa-se em agir diretamente no

ordenamento social, deixando evidente o seu caráter político.

É a literatura interferindo na disposição da sociedade; desconstruindo o

caráter discriminatório das ideologias de gênero erigidas ao longo do tempo. À

literatura implica indagar a forma como essa escritura aborda e marca a diferença de

gênero construída ao longo do tempo, promovendo a mostra das concepções

preestabelecidas e ocasionando um processo de mudança nas mentalidades; ou,

até mesmo, difundindo o posicionamento crítico do autor em relação às convenções

sociais historicamente solidificadas que têm oprimido mulheres e silenciado vozes.

Este tipo de escritura visa uma transformação da condição subjugada da

mulher; buscando alcançar o rompimento do discurso patriarcal dominante,

libertando a mulher de uma posição de opressão e submissão. Busca desconstruir a

oposição homem-mulher que marca e delimita o sistema patriarcal.

Mercedes Cabello de Carbonera narra a história da sociedade limenha,

propiciando uma interpretação sobre uma ótica feminina em BS. Isto porque relata

os acontecimentos e a ação dos personagens de forma que possibilita uma visão da

sociedade da época. Há o redimensionamento da cultura, no qual percebemos a

incorporação da mulher no espaço público. Em BS a princípio não fica evidente que

existe um grande conflito; o grande componente transgressor é a história da

protagonista.

Page 78: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

78

Na concepção da protagonista tanto a região conflituosa de autodefinição da

mulher que se relaciona com a história e as contribuições culturais do sistema

patriarcal, como a aceitação inerente do mito da passividade e, também os códigos

de condutas presumíveis sempre foram bem definidos para ela.

Sendo assim, para Blanca Sol nunca houve a possibilidade de aceitar as

normas da sociedade patriarcal vigente. Dessa forma, é feita a construção do texto

relacionando a sociedade limenha do final do século XIX a partir de um olhar

predominantemente feminino, às histórias pessoais que permeiam os fatos refletidos

na obra. A não aceitação pelo sujeito feminino dos padrões impostos pelas

ideologias e práticas sociais dominantes, muitas vezes foi praticamente

imperceptível.

Mas, na verdade, serviu para fundamentar uma trajetória de lutas e

reivindicações que possibilitaram dar maior visibilidade ao sujeito feminino no

contexto social do final do século XIX. Muitos críticos discutem o tema do

personagem feminino. Ruth Brandão menciona que:

Marcada pela letra e pela materialidade dos significados, é, principalmente, figura de linguagem e figura literária. Como fetiche, remetendo à ilusão de completude, que, se se cobre de letras, revela-se, entretanto, insuficiente para se definir. É necessário sempre mais e mais palavras para se dizer sobre ela que nunca se diz toda. Muda de posição no discurso, é percebida de diversas maneiras, encarna o pretendido enigma de uma feminilidade que se pode representar falicamente, mas que, se se mostra com adornos fálicos, estes, entretanto, são o brilho do que ela não é. (Brandão, 2006, p. 29)

A linguagem utilizada transmite seus pensamentos e informações traduzindo

a sua intenção de denunciar o tipo de conduta moral existente na sociedade limenha

do final do século XIX, além de também criticar a educação que as meninas

recebiam.

Page 79: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

79

El novelador puede presentarnos el mal, con todas sus consecuencias y peligros, y llegar a probarnos, que si la virtud es útil y necesaria, no es sólo por ser un bien, ni porque un día dará resultados finales que se traducirán en premios y castigos allá y la vida ultratumba, sino más bien, porque la moral social está basada en lo verdadero, lo bueno, lo bello, y que el hombre como parte integrante de la Humanidad, debe vivir para el altísimo fin de ser el colaborador que colectivamente contribuya al perfeccionamiento de ella. Y el novelista no sólo estudia al hombre tal como es: hace más, nos lo presenta tal cual debe ser. Por eso, como dice un gran pensador americano: «El arte va más alla de la ciencia. Ésta ve las cosas tales cuales son, el arte las ve además como deben ser. La ciencia se dirige particularmente al espíritu; el arte sobre todo al corazón.» (BS, 1889, p.4) 16

O romance BS foi criado a partir de um conjunto de pressuposições extraídas

da sociedade em que vivia. Ela apresenta um modelo17 de mulher cuja aparência se

assemelha ao das heroínas românticas, mas que na verdade é frívola e tem o

caráter debilitado, disposta a qualquer ato para satisfazer seus desejos.

A tessitura da obra tem sustentação no mundo real, ou seja, onde houve uma

seleção de cenas do cotidiano, mescladas a processos ideológicos, dando

sustentação e legitimação à condição feminina do final do século XIX.

Vemos fundir-se a temática do desejo e da paixão com a da questão

financeira quando Blanca, desesperada, resolve largar tudo para ficar com o amado;

pois, dessa forma, se entregaria a sua paixão e resolveria seus problemas

financeiros.

_____________

16 O romancista pode nos apresentar o mal, com todas as suas consequências e perigos, e chegar a nos provar que se a virtude é útil e necessária, não é só para o bem, nem porque um dia nos dará resultados que levem a recompensas e punições além-túmulo a vida. Mas porque a moralidade social está baseada na verdade, no bem, no belo, e o homem como parte da humanidade deve viver para contribuir coletivamente. E o romancista não só estuda o homem como ele é: faz mais, ele nos apresentada como deveria ser. Portanto, como disse um grande pensador americano: "A arte vai além da ciência. Esta vê as coisas que são, a arte como deveriam ser. A ciência é particularmente dirigida ao espírito; arte especialmente ao coração. " (BS, 1889, p.4) (tradução nossa) 17 Digo “modelo” não no sentido de ser exemplar a ponto de merecer ser imitada; e sim, simplesmente, na acepção de ter sido uma escolha da autora.

Page 80: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

80

A alienação do mundo moderno e o desejo de consumo desenfreado também

foram representados na obra em análise. Blanca procura sempre estar adornada de

maneira luxuosa e cercada de belos objetos, o que a faz se sentir forte e com a

certeza de despertar a admiração e o afeto dos que a cercam. É um exemplo de

vida esvaziada que tenta suprir seus anseios através do consumismo vazio, muitas

vezes levando à mentira, ao desengano e à falência.

O discurso de Carbonera se refere ao inconformismo, ao surgimento da

mulher-sujeito, a um ambíguo jogo de opostos, contemplando a rebeldia da mulher

entre movimentos de aparências e acomodações. Sua escritura apresenta

impessoalidade e objetividade, a palavra é justa e concisa, há consciência artística,

obsessão descritiva e autonomia do texto. Ou seja, o romance leva o leitor a

contemplar as cenas durante a leitura.

Em sua narrativa, o essencial é a descrição que faz da história. Ela não só

narra, mas também descreve, expressando os movimentos da vida; o herói tem vida

própria e a obra existe soberanamente, não há a transmissão transbordante da

subjetividade do autor. Através dessa representação são constituídos os paradigmas

de espaço e tempo, da linguagem e do discurso; expondo o objeto da materialidade

do mundo em que vive – é uma forma de representação do real possível e do

imaginário.

A construção da personagem literária, em geral, é feita através de sua

constituição física e também através da representação de suas ações e emoções. É

a representação ficcional do sujeito envolvido em uma trama composta de uma

estrutura, formando assim o enredo. A personagem, sendo um dos componentes da

obra literária, tem sua edificação elaborada durante o processo de tessitura do texto;

subsiste e tem a sua destinação apresentada dentro de um enredo.

Page 81: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

81

Antonio Cândido menciona que o enredo e a personagem exprimem juntos os

intuitos da narrativa, a visão da vida que decorre dela, os significados e valores que

a animam. Ou seja, é por meio da caracterização da personagem que é verificada a

importância que possui dentro da obra (Cândido, 1976, p. 64). É através da

personagem que a realidade fictícia e representativa começa a existir; através das

impressões transferidas mediante a verdade ficcional.

4.1. O romance e sua trama

Neste romance Carbonera utiliza-se da literatura como meio de denunciar o

sistema social da época, exibindo os vícios de uma sociedade. Não repete em sua

obra um estereótipo cultural, simplesmente como o da mulher sofredora, indefesa ou

incapaz. Pelo contrário, tendo em vista que as instituições sociais são centradas na

figura do patriarca, detentor de autoridade incontestável.

Carbonera apresenta em BS uma mulher forte, decidida e sedutora, que não

se submete às demandas do patriarcalismo. Ela não é um personagem feminino

sonhador, romântico e nem tampouco ingênuo; é apaixonada por uma vida repleta

de futilidades e diversão. Sua experiência pessoal de vida foi vazia; buscou ser feliz

através de um mundo de fantasias, caprichos e desvarios.

Sendo ela subversora dos códigos de conduta do comportamento feminino,

sempre reage contra as imposições do sistema. Rebela-se através de sua

sensualidade, por meio de seu comportamento durante a narrativa. Não se

subordina à ideologia patriarcal nem tampouco às convenções da Igreja; a

subordinação, a resignação e a intuição, que são atributos classificados como

Page 82: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

82

femininos por excelência, não fazem parte de seu universo identitário. Blanca não se

adapta ao paradigma de mulher celebrado pela ideologia da época.

É uma mulher-sujeito, definida pela própria voz; e, não apresenta nem um

pouco do perfil de mulher daquela época. Além disso, tem seu caráter permeado de

vícios; sua conduta é amoral e se afasta totalmente do paradigma dos bons

costumes. Com isso, Carbonera formulou uma crítica contundente. Fez da

prostituição da protagonista um meio de traduzir a emancipação feminina e exprimiu

um sentido de liberdade também.

Evidenciou em sua obra a retratação fiel de uma parcela da sociedade

burguesa, com atitudes duvidosas e a falsa moral. Com isso o romance foi

considerado subversivo e rendeu muitos problemas para a autora. Tenta remover as

mulheres da alienação do pensamento ideológico e incitá-las a uma não aceitação

da opressão feminina.

Aos poucos o caráter dos parentes com os quais convive é também exibido;

estes são a sua mãe e três tias solteironas; mas Carbonera não estende muito as

descrições nesta parte, somente o suficiente para o leitor entender como foi

relevante à educação que recebera ainda criança.

A protagonista é uma personagem que possui uma personalidade complexa,

porém previsível; é a representação da burguesia superficial, não possui obrigações

nem mesmo os afazeres domésticos. É um tipo de personagem esférica, porém a

sua inquietude psicológica faz com que se aproxime mais das características de

uma personagem esférica. Na composição da personagem principal, além de seus

diversos atributos inerentes à personalidade, podemos destacar os artifícios usados

para realçar sua beleza. Recursos que faziam parte dela e que incitavam o desejo

entre os homens.

Page 83: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

83

O início do século XIX foi um marco para o avanço na forma de pensar dos

homens. Alguns conceitos estão em decadência e o surgimento de novas formas de

pensar estão sendo privilegiados. Nesse contexto, alguns pensadores continuam em

ascensão e até mesmo ganham reconhecimento. Charles Baudelaire é um deles

que, sobremaneira soube como contribuir de forma pertinente através de suas

ideias. Ele menciona a respeito da figura feminina:

Que homem, na rua, no teatro, no bosque, não fruiu, da mesma maneira mais desinteressada possível, de um vestuário inteligentemente composto e não conservou dele uma imagem inseparável de beleza a quem pertencia, fazendo assim de ambos, da mulher e do traje, um todo indivisível? (Baudelaire, 1991, p. 60)

Blanca foi vítima do meio em que viveu; buscou ser feliz e ter uma condição

de vida a mais favorável possível, porém, permaneceu sempre deslocada do mundo

real. A questão da religiosidade é um fator bastante importante para as mulheres

daquela época; mas para Blanca a presença da tradição cristã é muito pouco

relevante, ela somente simula ser religiosa para adquirir mais influência junto à

sociedade. E, ao final, em um momento de grande desespero, se põe a rezar e a

fazer promessas para se livrar dos infortúnios que suas atitudes pouco

consequentes lhe trouxeram.

Arrodillose nuevamente, y con el fervor más sincero dijo: -Virgen Santíssima, si salvas mi fortuna, te prometo vestir el hábito de los Dolores por el resto de mi vida; te prometo, con todo mi alma, renunciar al lujo y a todas las fiestas del mundo, y entregarme al cuidado de mais hijos, como la madre más amorosa, como tú lo fuiste con tu Hijo, mi Redentor: escucha madre mía esta plegaria que desde el fondo de mi alma te dirijo esta pecadora. Te prometo además, hacer todos los años el mes de María con tanto o mayor lujo que el que hasta ahora te he dado. Y si mi destino es que Alcides me salve, que el sea mi… amante… (BS, 1889, p. 127). 18

________________ 18 Ajoelhou-se novamente, e com fervor sincero disse -Virgen Santíssima, se salvas minha fortuna, eu prometo vestir o hábito das Dolores para o resto da minha vida; prometo, com toda a minha alma, renunciar ao luxo e a todas as festas do mundo, e me entregar aos cuidados de meus filhos, como a mãe mais amorosa, como você era com o teu Filho, meu Redentor, minha mãe ouve esta oração que, desde o fundo da minha alma te dirige esta pecadora. Prometo também fazer todos os anos no mês de Maria com luxo tanto quanto ou maior do que tenho feito até agora. E se o meu destino é que Alcides me salve, que seja meu... amante ... (BS, 1889, p. 127) (tradução nossa)

Page 84: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

84

Blanca foi vítima de sua própria conduta irresponsável e seus desejos

inconsequentes geraram sentimentos de angústia, aflição e desespero. A falência de

seu marido, ocasionada pela própria falta de cuidado e também por conta das

exigências de luxo dela mesma, leva ambos ao desespero: “Al fin llegó un día en

que Blanca, se vio sola, deseperada, humillada, hundida en la miseria, y sin más

recursos que sus propias fuezas, o mejor, su propia belleza, y entonces profunda

reacción operose en su alma” (BS, 1889, p. 137)19.

Seu marido enlouquece e é internado em um manicômio; ela, por sua vez,

sente-se “obrigada” a prostituir-se, como uma espécie de fuga. Ocorre assim um

deslocamento na vida da protagonista; sai de cena a grande senhora da alta

sociedade e surge a cortesã.

A esse respeito Antonio Cândido nos diz que: Na medida em que o problema

é deslocado para dimensões tão vastas e incontroláveis como Natureza e Raça, o

intelectual e o político perdem de vista a dimensão mais acessível, que são os

aspectos sociais, onde está a chave (Cândido, 2010, p.120). Blanca deu vida ao seu

imaginário, por ser ela dotada de instintos nunca antes satisfeitos, visto que seu

casamento se deu por conveniência financeira e ela repudiava o marido.

Ela passou a “(...) conceber a vida como soma das atividades do sexo e da

nutrição, sem outras esferas significantes” (Cândido, 2010, p.125). Porém, antes de

adotar essa posição, ela aparece totalmente fragilizada por conta da falência e

principalmente por saber que seu sentimento por Alcides era verdadeiro, não mais

um pequeno flerte, e ele agora a repudiava. Este era um assíduo frequentador das

reuniões na casa de Blanca que se apaixona por ela.

_____________ 19 Finalmente chegou o dia em que Blanca se vio sozinha, deseperada, humilhado, afundada na miséria, sem mais recursos do que suas próprias forças, logo depois operou-se reação profunda em sua alma "(BS, 1889, p. 137). (tradução nossa)

Page 85: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

85

Tornou-se ainda mais descontrolada quando soube que ele iria se casar com

Josefina, a moça que foi sua costureira. Talvez tenha sido uma das poucas vezes

em que Blanca demonstra afeto; e, muito fragilizada, tenta aproximar-se dele:

Escribió una carta dirigida a Alcides, carta apasionadísima, romántica, llena de sentimiento, de súplicas, de ruegos; le pedía que viniera a verla, una vez, una sola vez. Le reprochaba su volubilidad, recordándole su amor al que ella por su mal dio crédito, y concluía diciéndole que Blanca Sol, aquella mujer que un día él jugara una coqueta sin corazón, era la misma que hoy le llamaba para caer en sus brazos, rendida, ebria de amor. Alcides recibió la amorosa misiva, leyola con la sonrisa de la compasión, y la indolencia del desinterés, y después de romperle en mil pedazos, echó en olvido las súplicas de Blanca (BS, 1889, p. 140).20

E, logo em seguida estava decidida a não mais sofrer por ele:

Blanca se alejo de aquél sitio con el semblante indignado y el aire resuelto, del que ve tocar a su término, y resolverse definitivamente, una situación de largo tiempo insostenible. Iba jurándose a si misma, no penar jamás, ni pronunciar una sola vez en el resto de su vida, el nombre de Alcides; de ese infame, que había esperado verla abatida por las desgracias para insultarla y despreciarla. (…) Pues, no faltaba más, que ella, Blanca Sol, llorara y ¿por qué? Porque a un hombre, a un miserable, le había dado en gana insultarla. ¡Llorar por él! ¡Cómo si no hubiera en el mundo otros hombres!... Aquella noche tomó, no una, sino muchas copas repitiendo: ¡A la prosperidad de mi porvenir! (BS, 1889, p. 142). 21

______________ 20 Ele escreveu uma carta para Alcides, carta apaixonadíssima, romântica, cheia de sentimentos, apelações, súplicas; pedia que viesse vê-la uma vez, apenas uma vez. Censurou sua volubilidade, lembrando-se do amor que ela não valorizou, e concluiu dizendo que Blanca Sol, a mulher que um dia ele julgou ser desalmada, era a mesma que hoje lhe pedia para caísse em seus braços, rendida, cheia de amor. Alcides recebeu uma carta de amor, leu com o sorriso de compaixão e desinteresse, e depois de rasga-la em pedaços, esqueceu o assunto (BS, 1889, p. 140). (tradução nossa) 21 Blanca se afastou daquele lugar indignada e com ar resoluto, como quem percebe a chegada do fim. Ele sai jurando a si mesma, não punir-se jamais, nem pronunciar uma só vez no resto de sua vida o nome de Alcides; daquele infame, que tinha esperado para vê-la abatida para poder insultá-la e desprezá-la. (...) Bem, nada mais falta, ela, Blanca Sol, chora e por quê? Porque um homem, um miserável, lhe havia insultado. Chorar por ele! Como se não houvesse outros homens no mundo... Naquela noite, tomou, não uma, mas muita bebida repetindo: A prosperidade do meu futuro! (BS, 1889, p. 142). (tradução nossa)

Page 86: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

86

Podemos destacar do trecho acima algumas expressões que evidenciam o

estado de angústia e desespero de Blanca diante da recusa de Alcides; este que

não só resolveria sua crise financeira, como também seria capaz de fazê-la

entregar-se a um universo até então esconhecido por ela, um mundo repleto de

sentimentos.

Temos os termos: semblante indignado, aire resuelto, lágrimas

desbordadas22. Toda essa arrebentação de sentimentos foi o suficiente para enfim

Blanca providenciar uma mudança em sua vida; essa conduta simboliza a liberdade

do sujeito feminino, ocorre um deslocamento social dentro da trama. Criou para si

uma nova identidade, agora não somente com o uso de máscaras sociais da

feminilidade, como também agindo conforme a sua opção.

A citação de Maria Rita Kehl elucida bem o assunto: “Cada mulher em

particular é um sujeito em constante construção, e a feminilidade, um conjunto de

representações que tentam produzir uma identidade entre todas as mulheres; mas

que, por isso mesmo, não pode dar conta das questões de cada conjunto” (Kehl,

2008, p. 111).

Blanca foi vítima de sua própria conduta irresponsável; seus desejos

inconsequentes geraram, ao final de sua história, sentimentos de angústia, aflição e

desespero. A falência de seu marido que foi ocasionada por sua própria falta de

cuidados e também por conta dos excessos dela, leva ambos ao desespero.

_____________

22 Semblante indignado, ar decidido, lágrimas transbordantes.

Page 87: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

87

Blanca deu vida a seu imaginário ao se tornar meretriz; digo imaginário por

ser a protagonista dotada de desejos e instinto nunca antes satisfeitos, visto que se

casou com um homem que na realidade sempre lhe causou repulsa. A prostituição

permite que ela se torne personagem de sua vida real, retirando-a do um universo

fictício que foi a sua trajetória durante a narrativa.

Blanca é uma mulher decidida e, busca, além do mais, continuar a ser a

grande dama. Ao final do romance, ela segue sendo cortejada. Tornar-se prostituta

também é uma forma de continuar a ser desejada e, também um modo de dar

segmento a sua trajetória de personagem que sempre se impõe diante da

sociedade. Nesta sociedade dominada pela hipocrisia e pela mediocridade; segue

celebrando a si mesma.

A ficção é a direção na qual segue o autor ao produzir uma obra. E é a partir

dessa direção que será estabelecido um ambiente de troca de expectativas, assim

como também será estabelecida a interação entre o leitor e o texto ficcional; entre o

imaginário que surge a partir do conhecimento adquirido através da realidade do

texto. A escritura é ao mesmo tempo a representação do mundo social simbolizada

pelo reflexo do real, contrapondo-se entre o imaginário e a realidade concreta. A

escrita literária desperta especialmente meios de formação de sentido.

Segundo Iser (1996), no momento da leitura o leitor carrega consigo um

repertório de ordem social, histórico e cultural, sendo que a interpretação de

determinado texto ocorrerá por meio do diálogo entre esse repertório do leitor e o

texto. Ainda segundo o autor, “quase toda estrutura discernível em textos ficcionais

mostra um aspecto duplo: é ela estrutura verbal e estrutura afetiva ao mesmo tempo

(Iser, 1996, vol.1, p.51)”.

Page 88: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

88

A construção do sentido é feita através de uma cadeia de significações que

permite a identificação e o reconhecimento do universo representado. É interessante

notar o tom de crítica à sociedade limenha que Carbonera expõe aqui; sua obra é

classificada como romance social. Podemos entender melhor essa distinção

segundo a enunciação de Antonio Cândido:

Romance profundamente social, pois, não por ser documentário, mas por ser construído segundo o ritmo geral da sociedade, visto através de um dos seus setores. E, sobretudo porque dissolve o que há sociologicamente essencial nos meandros da construção literária (Cândido, 2010, p. 39).

Logo, presume-se que as representações apresentadas por Carbonera em

seus textos foram capazes de, além de veicular um ideal emancipatório para as

mulheres, também cumprir a missão de participar na construção das identidades

femininas e no processo social em que as representações foram elaboradas.

Tudo exposto a partir de uma narrativa carregada de emoção, mas que

mesmo assim tem muita consistência. As emoções são tão bem articuladas que nos

deixam a impressão de serem fatos nos quais pudemos tocar; deixa delineado um

retrato na mente de cada um que lê a descrição da cena. Vêem-se condensadas na

obra rebeldia, melodrama e violência.

BS, apesar de ser uma obra realista, apresenta diversos ingredientes que o

Romantismo expôs em demasia; por exemplo, a inconformidade de Blanca diante de

seu mundo e a carga exacerbada de dramaticidade e emoção. A narrativa cumpre a

função de contar a história de uma heroína (ou anti-heroína?) que se afasta

totalmente dos paradigmas e convencionalismos da figura feminina existente no

século XIX.

A narrativa ficcional BS exibe desde as primeiras linhas fatos que nos

esclarecem previamente que haverá um desequilíbrio no ordenamento social

durante a narrativa, ocasionado pela protagonista e sua conduta ainda criança, na

Page 89: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

89

escola. Logo no início do romance, o narrador a apresenta por meio da educação

que lhe foi dada na infância, como podemos observar através da leitura do trecho

que segue: “La educaron como em Lima educan a la mayor parte de las niñas:

mimada, voluntariosa, indolente, sin conocer más autoridad que la suya, ni más

limites a sus antojos, que su caprichoso querer (Carbonera, 1889, p. 18).”23

Carbonera criou a figura de Blanca Sol dotada de personalidade caprichosa moldada

já em sua infância. Admite seus desejos e ao final a sua sexualidade; o

ordenamento social preestabelecido vai sendo desconstruído durante a narrativa.

A protagonista permite revelar a condição da mulher rica da sociedade

peruana do final do século XIX. O discurso de Carbonera se debruça sobre o

comportamento humano tentando descortinar os conflitos evidenciados nas relações

sociais em face dos problemas da realidade fora do mundo literário. Criou em seu

romance uma personagem que a todo instante proclama a própria liberdade, apesar

de ser dependente do marido.

Em sua construção imaginária, consagra o poder de dominação sobre si e

seu desejo. O seu casamento é convencional e sancionado pela ideologia burguesa

e, logo no início, utilizava-se da “máscara” da esposa feliz; porém, não tem

introjetado em si os termos de opressão. É caracterizada de forma bem clara para o

leitor, logo no início da obra, não deixando dúvidas quanto às suas condutas.

Apresenta complexidade psicológica; tem seu perfil traçado já na infância, tendo

como suporte capaz de validar e legitimar o seu caráter a apresentação de sua mãe

que sugestiona os seus atos.

______________ 23 A educaram como em Lima se educam a maior parte das meninas: mimada, voluntariosa, indolente, sem conhecer mais autoridade que a sua, nem mais limites que seus desejos, que seu caprichoso querer. (tradução nossa)

Page 90: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

90

Ela teve a sua personalidade forjada pelos conselhos e direcionamento de

sua mãe que, desde que Blanca era pequena, a ensinava até mesmo como vestir-se

para as festividades de modo a despertar muito mais que os olhares alheios. Dizia

“procura que nada te iguale ni te sobrepase en elegancia y belleza, para que los

hombres te admiren y las mujeres te enviden, este es el secreto de mi elevada

posición social (Carbonera, 1889, p. 6).”24

Blanca tem sua personalidade permeada por conflitos, sendo sempre tomada

por ambiguidades. Ser a mulher virtuosa e religiosa ou não? Tornar-se adúltera? E o

cuidado com os filhos? São inquietações e características também da mulher

moderna; a confusão entre aproveitar a vida como se não possuísse obrigações. Era

como se buscasse sustentação para a sua própria identidade. Nesse sentido é uma

mulher moderna. A esse respeito, bem elucida Zigmund Bauman:

Num ambiente de vida líquido, moderno, as identidades talvez sejam as encarnações mais comuns, mais aguçadas, mais profundamente sentidas e perturbadoras da ambivalência. É por isso que estão firmemente assentadas no próprio cerne da atenção dos indivíduos líquidos, modernos e colocados no topo de seus debates existenciais. (Bauman, 2004, p. 38)

Nunca aceitou a determinação da ideologia patriarcal burguesa e por sua vez,

Carbonera nunca tentou convencer o leitor da existência de um conflito durante a

narrativa. No romance, a composição da personagem feminina, em seu projeto

literário, desempenha um papel essencial em seu propósito de denúncia dos vícios e

deformações da sociedade, mostrando os resultados desastrosos que uma

educação irregular pode acarretar.

_______________ 24 procura que ninguém te iguale a ti nem te supere em elegância e beleza, para que os homens te admirem e as mulheres te invejem, este é o segredo da minha elevada posição social. (tradução nossa)

Page 91: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

91

Através de Blanca, seu marido Serafin Rubio teve sua fortuna desfeita; ele se

sentia fascinado pelo seu jeito e seu modo de se arrumar; sempre repleta de

adornos, o que realçava ainda mais a sua beleza. Ele era um grande admirador

dela, disposto a tudo para agradá-la. A esse respeito, menciona que a mulher:

é sem dúvida, uma luz, um olhar, um convite à felicidade, às vezes uma palavra; mas ela é sobretudo uma harmonia geral, não somente no seu porte e no movimento de seus membros, mas também nas musselinas, nas gazes, nas amplas reverberantes nuvens de tecido com que se envolve, que são como que os atributos e o pedestal de sua divindade; no metal e no mineral que lhe serpenteiam os braços e o pescoço, que acrescentam suas centelhas ao fogo de seus olhares ou tilintam delicadamente suas orelhas. (Baudelaire, 1991, p. 53).

Blanca Sol toma a palavra durante toda a narrativa; é mulher-sujeito, tem o

domínio de sua fala e de seu corpo, está sempre desvestida de qualquer ideologia

patriarcal. É uma obra que visivelmente nos retira do consciente da realidade e nos

remete claramente para a realidade fictícia. Isso se deve ao fato de Carbonera ter se

utilizado do mundo real em que viveu e participou de experiências de uma mesma

sociedade que descreveu em sua obra.

As diferentes nuances que o narrador ilustra na cena, as mudanças e

transferências surgidas determinarão a natureza temporal. Sendo a narrativa

minuciosa, a autora sintetizou uma longa séria de ações, muitas vezes em uma

pequena cena, fazendo-a parecer duradoura; e, tudo com poucas palavras, narrando

uma variedade considerável de fatos. Podemos observar a vida que foi introduzida

na narrativa e sofreu transformações como na vida real – a rotina após o casamento,

mas o que parecia uma vida próspera e segura converteu-se com o tempo no retrato

do passado: outra vez a falta de dinheiro. Com isso, resolve dar uma solução

tornando-se prostituta.

Page 92: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

92

A narrativa não fica no plano do irreal e imaginário, ocorre de tudo como na

vida real: bailes, encontros amorosos que terminam em casamentos, e até

insinuação de adultério. A protagonista é um sujeito que não se prende nem às leis,

nem às regras; nem tampouco ao ordenamento social vigente. Transgride o valor

patriarcal moralista estabelecido pela sociedade. Personagem tirana, todos

obedeciam às suas ordens e aos seus desmandos, seus gostos eram sempre

satisfeitos.

Os limites impostos pela moral cristã burguesa não foram suficientes para

induzi-la a uma vida conjugal discreta e recatada; não cabia a Blanca Sol o discurso

de mãe e esposa, atuante no círculo familiar e afastado de uma imagem sensual. À

mulher era (e ainda é em alguns casos) reservado o espaço limitado, no qual em

sua subjetividade, tenta mudar sua realidade e limitar-se a cumprir com seu dever de

procriação e cuidado com os filhos.

A protagonista é dotada de uma paixão obsessiva, pois deseja ter sempre

muito mais do que possui, não só em bens como também em prestígio e posição

social. A obra tem por objetivo evidenciar o contexto sócio-histórico da época. A

identidade feminina em BS é construída a partir de um discurso que a representa

socialmente como uma mulher à frente de seu tempo.

A composição da personagem é muito bem delineada por sua aparência

física, sempre trajando vestidos caros e muitas joias; seus trajes impõem significado

sobre o corpo representado e, torna-se alvo de admiradores e de bajuladores.

Problematiza a questão da divisão de classes sociais dentro da narrativa; a

personagem objetiva se manter em posição social favorecida e não aceita os

revezes financeiros a que é acometida durante a narrativa. A sensualidade que

caracteriza a sua conduta faz com que a composição de sua imagem vincule-se à de

Page 93: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

93

uma mulher fútil; dentro dos espaços de representação de gênero está associada ao

modelo não convencional de mulher do século XIX.

Durante a narrativa, tem sua postura reprovada até mesmo por outras

mulheres, mas, devido à posição social que ocupa, nenhuma delas deixa

transparecer o que pensa. A representação social do corpo da mulher é

constantemente regida por estatutos que deixam evidente a própria conduta, ou

melhor, o uso que deve ou não fazer de seu corpo.

Sobre a representação do corpo feminino, esclarece Michele Perrot: “Corpo

desejado o corpo das mulheres é também, no curso da história, um corpo dominado

e subjugado, muitas vezes roubado, em sua própria sexualidade” (Perrot, 2004, p.

76). Para Blanca Sol seu corpo não seria submetido aos limites impostos a uma

mulher; não serviria de reservatório de características que delimitam seu espaço,

que não lhe permitissem se relacionar com outras identificações além daquelas

preestabelecidas pelo discurso do feminino.

A protagonista rompe com a ordem patriarcal vigente e abre espaço para a

atuação de uma relação distinta entre gênero, corpo e representações sociais,

sendo o seu corpo um elemento que almeja a um novo paradigma ao gênero

feminino. Durante a narrativa, Carbonera busca examinar diferentes aspectos da

sociedade limenha, tentando elucidar razões que expliquem a decadência do Peru.

São tratados na obra alguns temas tais como a corrupção política, o papel do

matrimônio, da mulher na sociedade e também o papel da Igreja. O corpo feminino é

explorado de maneira que deixa evidente a realidade da mulher através dos conflitos

individuais matizados aos problemas das relações humanas.

Podemos definir o papel da mulher na sociedade com distintas classificações.

Há muito é vista como a figura protetora e detentora de muitas virtudes, sendo a

Page 94: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

94

maternidade a expressão máxima para tais considerações. À mulher não cabia

questionamentos sobre o fato de querer ser mãe ou não; a maternidade era um dos

atributos da virtuosidade feminina. Com o passar dos anos muitas mulheres

começaram a trabalhar fora de casa e assumir responsabilidades que antes eram

inerentes somente aos homens.

Com o aumento no número de divórcios, muitas tinham também a

responsabilidade com o sustento da casa e a educação dos filhos. Mas, antes de

tais avanços, como ainda no século XIX, houve algumas mulheres que não se

submeteram às imposições do sistema patriarcal. Dessa forma Blanca Sol, ela

assumiu o comando familiar e adotou uma postura de dominação, mesmo sendo

dependente financeiramente de seu marido. O drama em que vive é resultado dos

seus desejos sem limites e sua insatisfação diante da vida. Sabota a sua própria

felicidade ao tentar fazer com que o mundo se adapte aos seus ideais e caprichos.

É fato que os papéis sociais são definidos previamente desde a Antiguidade;

e o convívio social pressupõe uma infinidade de regras e condutas preestabelecidas

pela sociedade. É necessário que haja uma adequação nas relações que surgem a

todo o tempo, a fim de garantir um convívio harmônico dentro da sociedade.

A cada vinculação estabelecida, é requerido aos partícipes determinado

comportamento. Porém, muitas pessoas, para conseguir admiração e

reconhecimento, usam “máscaras sociais”, evidenciando dessa forma padrões de

comportamento que escapam de sua legítima identidade. E assim foi Blanca Sol,

utilizou-se de “máscaras sociais” a fim de manter uma constante de admiração em

torno de si; e foi realmente capaz de atrair olhares e determinado reconhecimento.

Page 95: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

95

O uso das “máscaras” impede o conhecimento do verdadeiro. Segundo Jean

Starobinski25 em seu livro Máscaras da Civilização:

A máscara aceita é a exterioridade reconhecida como tal (…). Ela delimita e protege o espaço em que uma interioridade pode, idealmente, tomar inteira posse de si (…); esse espaço – pelo que é preciso entender – não é apenas a consciência de si, a conversação consigo mesmo, mas também a consciência moral, o julgamento, ciosos de sus independência e habilitados a intervir em qualquer circunstância (Starobinski, 1993, p. 254).

Para ela não havia a possibilidade de não ser percebida e de forma sempre

distanciada das outras mulheres. Ou seja, nenhuma se comparava a Blanca em

riqueza, maneiras nem tampouco em fortuna; para isso desenvolveu uma maneira

particular de tratar as pessoas e de se comportar. Ela utilizou-se de meios

convencionais e também daqueles que estavam longe da moral e dos bons

costumes. Starobinski nos diz que:

as pessoas serão preferidas segundo o emprego “elegante”, “delicado”, que fazem dos recursos da linguagem; a escolha que dirigem aos melhores vocábulos assinala à atenção da “melhor sociedade”. A fala “pura”, “depurada”, é considerada como indicativa de virtudes da pessoa”. (Starobinski, 1993, p. 254)

Os personagens, geralmente, aparecem omitindo seus reais sentimentos uns dos

outros; não são facilmente desnudados entre eles, utilizam-se frequentemente de

“máscaras”.

______________

25 Jean Starobinski é médico psiquiatra, professor de literatura francesa e história de medicina.

Page 96: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

96

4.2. Focos, perspectivas e visões

A narrativa diz sempre menos do que aquilo que se

sabe, mas faz muitas vezes saber mais do que aquilo

que diz.

Gérard Genette

Ao se propor a análise de uma obra literária, temos diante de nós inúmeras

possibilidades de classificações e nomenclaturas que servirão para evidenciar os

aspectos mais relevantes e significativos da técnica da criação literária. Nos estudos

que contemplam o foco narrativo na literatura, é interessante passar pelas

considerações de Gérard Genette, em O Discurso da Narrativa (1985), em que o

autor apresenta considerações relevantes sobre a estrutura narrativa.

Sua obra contempla a questão da composição dos narradores; investigando

as possibilidades em relação ao distanciamento do fato narrado, Genette divide o

assunto em dois momentos. Enuncia que a narrativa dos acontecimentos é aquela

em que o narrador toma mais distância do objeto narrado:

A “imitação” homérica de que Platão nos propõe uma tradução em “narrativa pura” não comporta mais que um breve segmento dialogado. Ei-lo, primeiro, na sua versão original: “diz ele, e o velho, à sua voz, ganha medo e obedece. Vai-se embora em silêncio, ao longo do areal onde rola o mar, e, quando, fica só instantaneamente o velho implora ao senhor Apolo, filho de Leto dos belos cabelos”. E agora na escrita platônica: “O velho, ouvindo tais ameaças, teve medo e foi-se embora sem dizer nada; mas, uma vez fora do campo, dirigiu a Apolo instantes orações” (Genette, 1995, p. 163).

Na citação acima é mostrada a comparação que Genette faz entre dois

trechos da narrativa homérica, sendo o segundo uma tradução feita por Platão. O

intuito foi de mostrar como a tessitura do texto pode parecer mais próxima do real a

partir da retirada de alguns termos. Esse tipo é constituído basicamente de falas e

evita a imitação; quer seja do narrador, quer seja das personagens.

Page 97: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

97

A narrativa dos acontecimentos pode-se dizer que equivale ao discurso

indireto, um tipo de discurso contado. Já a narrativa das falas, quando também se

baseia no discurso indireto, mostra menos distanciamento dos acontecimentos.

Assim, podemos perceber que a distância pode ser variável e basicamente faz parte

das opções de quem narra. Genette propõe um estudo do foco narrativo a partir de

dois recursos. O primeiro é o ponto de vista – onde podemos perceber como se

configura a personagem – um narrador cujo ponto de vista orienta a perspectiva da

narrativa.

Junto a isso temos a voz, ou seja, quem de fato narra se em primeira ou

terceira pessoa. E também a focalização, que pode ser interna – narrativa focada na

consciência da personagem apresentada (em primeira ou segunda pessoa, como se

um narrador estivesse falando para a personagem e para o leitor ao mesmo tempo)

– ou externa, quando o foco da narrativa é o personagem e, não através dele.

Mediante essa breve exposição das teorias de Gérard Genette, torna-se fácil

perceber como dentro de um universo narrativo é possível observar uma variedade

de distanciamentos.

É evidente que esse aspecto não e o único recurso que o escritor pode

utilizar; porém é um aspecto que pode conceder a quem narra novas possibilidades

de criação. Na verdade Genette não propõe uma definição exata de narrativa;

simplesmente estabelece o que há na tessitura do texto e o que não há. Segundo

Genette:

Toda narrativa comporta com efeito, embora intimamente misturados e em proporções muito variáveis, de um lado representações de ações e de acontecimentos, que constituem a narração propriamente dita, e de outro lado representações de objetos e personagens, que são o fato daquilo que se denomina hoje a descrição. (Genette, 1976, p. 262)

Page 98: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

98

No romance BS, a autora não buscou exibir uma realidade ilusória; mas, com

a intensidade de sua ficção, provocou no leitor a sensação de ilusão da realidade.

Roland Barthes (1968), em seu texto O efeito da realidade, lança o foco nos

detalhes expostos na descrição de uma cena do conto de Flaubert Um coração

simples. A narrativa da cena destacada por Barthes podemos dizer que faz com que

haja um aumento do valor da informação exposta através das minúcias.

Parte do processo de descrição leva à fragmentação do signo para designar o

real; é um dos recursos mais significativos que pretende “esvaziar o signo e afastar

infinitamente o seu objeto até colocar em causa, de maneira radical, a estética

secular da ‘representação’” (Barthes, 2004, p. 190). Carbonera, ao apresentar

Serafín Rubio, utiliza-se na narrativa da cena de uma quantidade considerável de

detalhes que terminam por exercer dupla função, ou seja, apresentam a pessoa

física dele assim como também traça o perfil psicológico do personagem.

A história é montada em torno da personagem principal e apresenta pontos

de tensão diretamente relacionados à construção de sua ficção, o que, intensifica os

efeitos que desejava causar no leitor. Em BS, o narrador sabe toda a trajetória de

vida e o destino final de todos os personagens; o foco narrativo aqui é capaz de

direcionar as ações de quem atua. O narrador sabe, vê, ouve e conta tudo sobre o

enredo; conduz o leitor a fim de garantir a veracidade do fictício relatado. Segundo

Gancho:

Não existe narrativa sem narrador, pois ele é o elemento estruturador da história. Dois são os termos mais usados pelos manuais de análise literária para designar a função do narrador na história: foco narrativo e ponto de vista (do narrador ou da narração). Tanto um quanto outro referem-se à posição ou perspectiva do narrador frente aos fatos narrados. Assim, teríamos dois tipos de narrador, identificados à primeira vista pelo pronome pessoal usado na narração: primeira ou terceira pessoa (do singular). (Gancho, 2002, p. 26)

Page 99: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

99

Temos, no romance estudado, o narrador heterodiegético, aquele que está de

fora da história, contando tudo sobre os personagens e analisando todas as ações.

A articulação do tempo através da linguagem induz o leitor a uma perfeita sensação

de tempo transcorrido. Há equilibrada sintonia no tempo da história, que surge

cronologicamente desde o início do romance, com a protagonista ainda criança.

A estrutura do romance comporta bem o surgimento das funções “descritiva

(deve modular no sucessivo a representação de objetos simultâneos e justapostos

no espaço) e narrativa (restitui na sucessão temporal do seu discurso a sucessão

igualmente temporal dos acontecimentos)” (Genette, 1976, p. 266). Essa minúcia de

descrições torna evidente diversos aspectos dentro da narrativa. Podemos destacar

dois deles: a condição social e a paixão.

Manuseou muito bem o seu cenário imaginário, mostrando ao leitor que a

literatura, através da linguagem e das vivências humanas problematizadas é capaz

de enunciar mundos. Para Iser:

A ficção mobiliza o imaginário como uma reserva de uso específico a uma situação. No entanto, a configuração que o imaginário ganha pela ficção não reconduz à modalidade do real que, através do imaginário, deve ser justamente revelado. (Iser, 1983, p. 379)

Carbonera soube combinar o imaginário com o real por meio da escrita do

romance. Ela de forma alguma pretendeu esgotar a realidade, tendo em vista o fato

de a ficção ser uma parcela da realidade, houve sim, uma apreensão da realidade. A

obra tem sua tessitura produzida conforme o plano de seu idealizador e tem

dependência direta na elaboração estética que o autor imprime em sua obra.

Wolfgang Iser chama a atenção para a presença dos elementos que fazem parte do

mundo real no texto ficcional.

Page 100: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

100

Diz que “Se o fingir não pode ser deduzido da realidade repetida, nele então

surge um imaginário que se relaciona com a realidade retomada pelo texto” (Iser,

1983, p. 958). Segundo Iser a ficção é tida como a “configuração do imaginário ao se

notar que ela não se deixa determinar como uma correspondência contrafactual da

realidade existente”. Outro aspecto relevante do texto ficcional de que trata Iser é o

fato de que na realidade ficcional algo sempre será representado de um modo

desigual da realidade e:

Ao mesmo tempo… o que (pela ficção) se representa tem apenas a qualidade de um como se, que não é idêntico nem ao real, nem ao imaginário; à diferença do imaginário, ele é dotado de forma, e à do real, é irreal. Deste modo a ficção mantém uma constante quanto ao imaginário e quanto ao real. (Iser, 1983, p. 379)

Carbonera ambienta o seu romance em um universo possível e aceitável; põe

as referências culturais e sociais (costumes, divisão social, abusos,…) em

conformidade com a representação social do século XIX.

Propõe transformar a narrativa em objeto de denúncia; faz com que o

entendimento do leitor seja construído aos poucos. Leva o leitor a se reconhecer no

universo desenvolvido dentro da narrativa. Para Iser, o chamado “ato de fingir” é a

reiteração do real dentro do texto. Ou seja, a narrativa como uma possibilidade

surgida através da escolha de componentes do mundo real e o surgimento através

da tessitura do texto. Para ele “Como o texto ficcional contém elementos do real sem

que se esgote na descrição deste real, então, o seu componente fictício não tem o

caráter de uma finalidade em si mesma, mas é, enquanto fingido, a preparação de

um imaginário” (Iser, 1996, p.13).

O mais importante em um texto é a natureza relacional entre os elementos

que o compõem. Podemos afirmar que o texto fictício é uma realidade que se

configura pela força do imaginário.

Page 101: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

101

Sendo a literatura responsável pela conversão da plasticidade do real em

ficção, ou seja, da experiência da realidade; é motivadora da concretização do

imaginário através da ficção.

Cabe à literatura tecer correspondências entre as fases da criação e os acontecimentos da vida. Na realidade, a obra não está fora de seu “contexto” biográfico, não é o belo reflexo de eventos independentes dela. Da mesma forma que a literatura participa da sociedade que ela supostamente representa, a obra participa da vida do escritor. O que se deve levar em consideração não é a obra fora da vida, nem a vida fora da obra, mas sua difícil união (Maingueneau, 1995, p.46).

4.2.1. A Construção da Narrativa

Com tantas descrições, atributos e características utilizadas, o modo como a

autora exibe os objetos chega a denunciar quem são os envolvidos ou a quem

pertence cada objeto. Esse tipo de trabalho trouxe ao romance uma constituição

paralela à sociedade; trata de um conjunto de informações que consegue remeter

diretamente ao personagem sem causar maiores dificuldades para o leitor, indicando

até a que camada social pertencia e levando a entender a psicologia do sujeito.

A narrativa tem um toque de impessoalidade que termina por arrancar do

leitor sensações nas descrições e nas cenas narradas.

¡Las recepciones de Blanca Sol! ¡Los salones aristocráticos de la mujer de moda! El palenque del lujo de la elegancia, donde se realizaban las justas de la belleza y de las gracias, que acreditaban el buen nombre de sus convidados... (BS, 1889, p. 35) 26

______________ 26 As recepções de Blanca Sol! Os salões aristocráticos de mulher elegante! A arena de luxo e da elegância onde se realizam os momentos de beleza e graça, atestando o bom nome de seus convidados... (BS, 1889, p. 35) (tradução nossa)

Page 102: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

102

BS é uma narrativa em terceira pessoa em que a protagonista é apresentada

aos poucos e tem a sua personalidade delineada ainda na infância através da

educação que recebera de sua família. Os adjetivos que aparecem refletem os

traços do caráter que a personagem revelará ao longo da narrativa. O narrador é

onisciente; consegue evidenciar a protagonista tanto internamente como

externamente. Com isso vai aos poucos desnudando a postura da personagem e

sua realidade vivenciada.

Em BS, vemos isso na conduta da protagonista e de sua costureira (Josefina),

a qual se tornou, posteriormente, sua rival. Ela é uma figura dotada de poucas

virtudes e possui hábitos que contradizem a moral e os bons costumes, assumindo o

papel de mulher caprichosa e rebelde. Josefina é uma moça frágil, sofredora,

resignada e de conduta exemplar. Tem sua trajetória marcada pelo sofrimento;

desde cedo sentiu o peso da responsabilidade da casa. Com a falta de dinheiro e a

família para sustentar, dedica-se exaustivamente à costura, de dia e de noite.

Jovem virtuosa, é a representação da mulher ideal da sociedade patriarcal.

Ela simboliza a solidão e o isolamento, sente-se exilada de sua condição de uma

moça de sua idade. Foi educada como as moças de sua época; preparada para se

casar cedo, desempenhar o papel de mãe e para o trabalho doméstico, o que

compreendia a costura, a cozinha e a educação dos filhos.

Nesse período, o casamento era uma preocupação familiar; mas para

Josefina o sustento dos irmãos e de sua avó era a sua principal preocupação; ela é

uma mulher trabalhadora, honesta e de bom coração. Temos aí dois mundos

antagônicos; o primeiro repleto de vaidade e mentiras. Já o segundo, apesar de ser

extremamente humilde, é dotado de moral e de atitudes generosas, não havendo

espaço para golpes traiçoeiros e maliciosos, pode se dizer que é um universo

Page 103: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

103

baseado na ordem. Ambas convivem em uma mesma realidade fictícia, mas não se

inter-relacionam.

Page 104: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

104

5. POSSIBILIDADES DE REPRESENTAÇÃO NO ROMANCE BLANCA SOL

5.1. A trajetória descrita por Carbonera em sua obra

Algunos dirían que el acontecimiento fundamental, a lo

largo plazo, es lo que se denomina la “liberación de las

mujeres”: su entrada em la vida pública, el control de la

fecundidad (la pildora) y, al mismo tiempo, la extensión

de los valores tradicionalmente “femeninos”, los del

mundo privado, a la vida de ambos sexos.

Tzvetan Todorov 27

O romance BS foi publicado pela primeira vez no jornal La Nación em 1º de

outubro de 1889. A narrativa que conta uma história cotidiana; classificada como

romance social, pois trata dos costumes e deformações da sociedade do século XIX.

A chegada do século XIX esboça, de certa forma, a modernidade; o aumento

da produção intelectual feminina; mas não, pelo menos ainda, a ponto de

transformar a mulher em um ser independente capaz de dizer o que pensa. Todavia,

Mercedes Cabello ousou com sua escritura.

Como já vimos, o trabalho de Carbonera reflete sobre a presença da mulher

nas práticas sociais e discursivas de uma cultura construída com base no

androcentrismo; expõe a imagem da mulher e a projeta sem máscaras. Qual o

objetivo de mostrar uma personagem subversiva em pleno século XIX?

A própria narrativa de ficção está em discussão em BS; podemos perceber a

tentativa da autora em mostrar o quanto a literatura também pode ser um poderoso

condutor de denúncia.

_____________

27 Tzvetan Todorov é escritor, crítico e lingüísta francês de origem búlgara.

Page 105: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

105

Carbonera construiu uma narrativa que desconstrói a identidade do sujeito

feminino daquela época. A mulher era vista como “o outro”, o ser marginal e vivia

sob a ideologia do patriarcado que naturalmente usurpava o direito alheio. E a

escritura de Carbonera era uma tentativa de combater as relações de opressão.

Podemos dizer que a escrita de Carbonera buscava uma representação que

ressaltasse o distinto de uma mulher; uma diferente daquelas que atendem aos

padrões convencionais de conduta; como uma forma de edificar uma identidade

particular e característica, silenciada pelo patriarcalismo dominante.

BS apesar de ser uma obra realista, apresenta diversos ingredientes que o

Romantismo expôs em demasia; por exemplo, a inconformidade de Blanca diante de

seu mundo, a carga exacerbada de dramaticidade e emoção.

Como já visto, é uma obra que visivelmente nos retira do consciente da

realidade real e nos remete claramente para a realidade fictícia. Isso se deve ao fato

de Carbonera ter se utilizado do mundo real em que viveu e participou de

experiências, de uma mesma sociedade que descreveu em sua obra. A

sensualidade ocupa um lugar central no romance porque ocupa na vida, Carbonera

queria simular a realidade.

Un momento después, siguiendo su costumbre de veterano de las filas de Cupido, Alcides arrodillado a los pies de Blanca, le juraba con eficacia y fervorosamente que su amor no había disminuido un punto, y que si estuvo aquella noche con Josefina, fue para olvidarse un momento de la ingratitud de ella, la única mujer que él amaba. Las palabras dichas entre ruido de besos, los besos cortados tan sólo para dar paso al suspiro, que el exceso de respiración les hacía exhalar. Promesas dichas al oído, para que ni el aire al pasar las pudiera sorprender... ¡Ah! ¡quién había de creer; que aquella mujer tan tierna tan apasionada,(…) (BS, 1889, p. 97) 28

_______________

28 Um momento depois, seguindo o costume do Cupido, Alcides ajoelhados aos pés de Blanca, jurou de forma eficaz e apaixonadamente que o seu amor não tinha diminuído um ponto, e que, se ele esteva aquela noite com Josefina, foi para esquecer-se um momento de ingratidão dela, a única mulher que ele amava. As palavras faladas entre ruídos de beijos, beijos interrompidos somente para suspirar, que o excesso de ar respiração lhe fazia exalar. Promessas ditas entre ruídos, para que nem o ar ao passar pudesse surpreender... Ah! Quem haveria que acreditar que aquela mulher tão terna, tão apaixonado, (...) (BS, 1889, p. 97) (tradução nossa)

Page 106: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

106

Carbonera mostrou como a mediocridade era característica profundamente

representativa do ser humano, como na maioria dos casos de felicidade e desgraça

é simplesmente a acumulação gradual e insensível de fatos miúdos e banais, e que

o pequeno e opaco são mais próprios do homem que o grande e radiante; o vulgar e

o pobre parecem-lhe legítimos porque são certos, porque representam a experiência

humana. O romance é o modelo de um drama burguês. Logo no capítulo I o leitor é

apresentado ao tipo de educação recebida por Blanca ainda menina, deixando

evidente que, ao se tornar adulta, será uma pessoa detentora de uma personalidade

pouco louvável. Revela-se o perfil da personagem, fútil e despreocupada.

O ambiente em que vivia era um terreno fértil para a edificação de sua

personalidade de pouquíssima elevação afetiva. Ela desejava uma vida repleta de

charme e encantamentos, sem maiores preocupações. Sua mãe, em vez de ensinar-

lhe a ser uma pessoa honrada e de bons costumes, somente soube aguçar na filha

uma personalidade desafiadora e sem limites.

Blanca fue siempre de la opinión contrária. Y a favor de la riqueza del futuro marido, ella argumentaba manifestando todo el caudal de experiencia adquirida en esa vida ficticia, impuesta pelas necesidades que para los suyos fueron eterna causa de sinsabores y contrariedades. (…) Ella vivía muy contenta en el colegio, sólo si se fastidiaba por las horas tan largas de capilla, a las que también al fin, concluyó por acostumbrarse, y ya ni el cansancio del arrodillamiento, ni la fatiga de espíritu, que antes sintiera, presentáronsele después; pero ¡cosa más rara! acontecíale ahora en la capilla, que la imaginación traviesa y juvenil; emprendía su vuelo, y con abiertas alas, iba a perderse en un mundo de ensueños, de amores, de esperanzas, de todo, menos de cosas que con sus rezos o con la religión se relacionaran. (BS, 1889, p. 7-8) 29

A força do discurso literário foi responsável por emoldurar a personagem da

protagonista; que, no decorrer das primeiras páginas, traz a imagem de Blanca por

completo.

Page 107: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

107

Como podemos observar no trecho destacado abaixo:

Blanca era picante, graciosa y muy alegre. Además de lo que enseñaron sus profesoras, ella aprendió, prácticamente muchas outras cosas, que en su alma quedaron hondamente grabadas; aprendió, por ejemplo, a estimar el dinero sobre todos los bienes de la vida: «hasta vale más que las virtudes y la buena conducta», decía ella en sus horas de charla y comentarios con sus amigas. (BS, 1889, p. 6). 30

O posicionamento subversivo tem na protagonista sua maior representante.

Também, o enfrentamento às práticas dominantes da época marca a atuação

feminina na obra. A narrativa apresenta uma série de características que definem

perfeitamente a sua posição dentro da trama. Blanca pertencia a uma família

distinta, porém já sem recursos financeiros. Teve uma criação que a tornou mimada,

irresponsável e despreocupada com o mundo, somente lhe interessavam seus

caprichos e uma vida de luxo.

Sua família não lhe deu uma formação imoral, e sim uma educação irregular,

onde não aprendeu a respeitar os bons costumes e os convencionalismos da

sociedade, para ela, nada disso existia. Desejava usufruir da vida da melhor forma

possível e também desejava um parceiro que a atraísse, mas não foi dessa forma

que aconteceu. Estudava em um colégio de freiras, que na realidade em nada

contribuiu para a sua educação.

_______________ 29 Blanca sempre foi de opinião contrária. E a favor da riqueza do futuro marido, ela argumentava manifestando toda a sua experiência adquirida em uma vida fictícia, imposta pelas próprias necessidades que para os seus eram causa eterna dos problemas e contratempos. (...) Ela viveu muito feliz na escola, só se você incomodado pelas longas horas na capela, que também, ao fim, acabou se acostumando, e nem o cansaço de ficar ajoelhada, nem a fadiga do espírito que antes sentia, apresentava-se mais tarde; mas coisa mais estranha! Acontecia na capela, a imaginação travessa da juventude; empreendia vôo com asas abertas, perdía-se em um mundo de sonhos, amores, esperanças, tudo, exceto as coisas referentes às orações ou a religião. (BS, 1889, p. 7-8) (tradução nossa)

30 Blanca era picante, engraçada e muito alegre. Além do que seus professores ensinaram, ela aprendeu praticamente muitas outras coisas que em sua alma estavam profundamente gravadas. Ela aprendeu, por exemplo, a estimar o dinheiro sobre todos os bens da vida: << até vale mais que as virtudes e a boa conduta>>, dizia em suas conversa com as amigas. (BS, 1889, p. 6) (tradução nossa)

Page 108: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

108

As dirigentes do estabelecimento eram cúmplices violentas do sistema

machista e patriarcal, além de tratar de forma diferenciada as meninas dependendo

de sua classe social. Em BS aparece a contradição existente entre a sociedade da

época e suas atitudes frente ao desejo e ao dinheiro. Temos aí a explicação da

condenação do personagem, a sua negativa em ocupar a sua posição e, dessa

forma, ultrapassando o limite do que lhe era permitido. Blanca Sol vivia afastada do

mundo real e mergulhada no imaginário.

Não possuía senso de responsabilidade com os filhos, nem com o dinheiro,

nem tampouco com o marido. Viviam em um mundo este idealizado por ela, onde se

imaginava superior aos demais seres; e, além de tudo, não possuía limites. As

atitudes da protagonista lhe conferem o domínio masculino, que está sempre muito

bem assegurado, como se não quisesse, nem necessitasse requerer justificação. Na

obra de Mercedes Cabello de Carbonera, vê-se a figura da personagem principal

que se mostra inconformada com a sua situação de mulher e com tais regras que

deveriam ser seguidas para que não houvesse transgressão do convívio social.

Surge uma inversão das substâncias, Blanca é uma personagem

fundamentalmente ambígua, em que coexistem sentimentos e apetites contrários,

onde não se distinguia mais o egoísmo da caridade ou a corrupção da virtude…

Talvez, através desse traço, a autora tenha melhor delineado a prova da

humanidade da personagem.

Mas sua indefinição não é só moral e psicológica; diz respeito profundamente

a seu sexo. Porque, sob a delicada feminilidade dessa moça, encontra-se um

decidido varão. A tragédia de Blanca é não ser livre. A escravidão acontece-lhe não

apenas como produto de sua classe social – a pequena burguesia caracterizada por

determinadas condições de vida e preconceitos – e de sua condição provinciana –

Page 109: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

109

mundo pequeno em que são escassas as possibilidades de fazer algo –, mas

também, e talvez acima de tudo, pelo fato de ser mulher.

Na realidade fictícia, ser mulher constrange, fecha as portas, condena a

condições mais medíocres que as do homem. É verdade, na realidade fictícia a

aventura está proibida à mulher; também o sonho parece privilégio masculino, pois

aquelas que buscam a evasão imaginária são malvistas.

Blanca tem consciência clara da situação de inferioridade em que se acha a

mulher. Ser mulher – sobretudo se se tem inquietações e fantasias, transforma-se

numa verdadeira maldição.

A obra BS é um romance realista que retrata uma sociedade adoecida e

cheia de vícios, tendo a crise moral como um de seus principais ingredientes e uma

causa da insatisfação do indivíduo, aliada à futilidade de existência. Tem como

personagem principal uma mulher fútil, pronta a satisfazer seus desejos a qualquer

custo, que, ao final, transforma-se em prostituta.

Podemos dizer que a forma que Carbonera deu a seu romance é também

uma crítica dura à forma literária romântica. A estrutura da feminilidade no romance

em questão é, a princípio, de uma mulher emancipada, independente e à frente de

seu tempo. A escritura é capaz de estampar um olhar feminino de modo tanto

objetivo como subjetivo.

Sua narrativa apresenta fatos fictícios baseados em acontecimentos da

sociedade da época. A ação se desenvolve de forma progressiva, apresentando os

personagens de forma clara e compassada, alcançando uma estabilidade dos fatos

para logo em seguida fazer com que a personagem principal entre em clima de

tensão e tenha seu universo desestabilizado.

Page 110: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

110

Blanca Sol, a personagem principal, é impulsiva e sentimental; dotada de uma

rebeldia individual e egoísta, não respeita as regras impostas ao convívio social

simplesmente por considerar seus caprichos mais importantes. Na verdade, ela não

consegue entender o funcionamento da realidade e da objetividade do mundo. E,

para satisfazer suas vontades, é capaz de qualquer ato, do roubo à mentira.

Enfrenta a família e a sociedade para pôr em prática seus prazeres, sua

desenfreada vaidade e seu materialismo. Deixa sempre bem clara a sua preferência

pela vida terrena, como podemos observar na narrativa em alguns momentos em

que faz enormes doações tentando mostrar um gesto caridoso diante da sociedade

e da Igreja. O que, na verdade, é mais um de seus acessos (ou, quem sabe,

excessos).

Casou-se com Serafim Rubio ao qual não demonstrava afeto; o fato se deu

por necessitar de dinheiro para pagar dívidas e despesas suas e de sua família.

Como diz na obra: “(…) fue la victima elegida para pagar las deudas de Blanca”

(Carbonera, 1889, p. 12)31. Achava-o nada interessante, mas o que menos lhe

agradava era a sua pequena estatura. Mas, ainda assim, casou-se com ele e para a

infelicidade dela em poucos anos de casamento, já tinha cinco filhos, fato que não

lhe agradava:

Blanca quejábase amargamente de esta fecundidad, que engrosaba su talle e imperfeccionaba su cuerpo, impidiéndola ser como esas mujeres estériles, que dan todo su tiempo a la moda y conservan la independencia y libertad de la joven soltera. (Carbonera, 1889, p. 21) 32

_____________ 31 “(...) foi a vítima eleita para pagar as dívidas de Blanca”. (Carbonera, 1889, p. 12) (tradução nossa)

32 Blanca queixava-se amargamente da fertilidade, que engrossava seu corpo e o tornava imperfeito, a impedia de ser como essas mulheres estéreis, que doam seu tempo para a moda e preservar a independência e liberdade de jovem solteira. (Carbonera, 1889, p. 21) (tradução nossa)

Page 111: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

111

A personagem principal não se comporta como uma pessoa adulta capaz de

assumir responsabilidades. E, ao se casar, continua levando uma vida de solteira,

nem sequer assume o nome de seu marido após o casamento, continua a ser

simplesmente Blanca Sol. Seu marido, ao contrário do que acontece, passa a ser

conhecido como o marido de Blanca. Porém, ela é demasiadamente rebelde e ativa

para contentar-se com sua condição de mulher.

À medida que progride a sua derrota financeira e seu desejo pelo amado, ela

se torna mais atrevida e imprudente; começam a multiplicar-se estes sinais

exteriores de sua identificação com o viril: como se fosse para escandalizar o

mundo. Seu esposo não era capaz de satisfazer seus desejos e não se sentia

atraída por ele, que tinha um jeito simplório e uma figura desinteressante.

Mesmo todo o luxo que lhe proporcionava não era suficiente; desejava muito

mais, tudo que lhe brotasse à mente. Mas, para Blanca, era preciso mais que o

dinheiro de seu marido e a posição social que ostentava com toda a sua corte de

aduladores; necessitava que ele ocupasse também uma posição de destaque dentro

da sociedade limenha: “̶̶ Quiero que tu seas Ministro. ̶̶ ¿Ministro yo? ̶̶ observó él

asombrado y casi espantado por tal ocurrencia” (Carbonera, 1889, p. 29)33. Para

isso, recorreu às suas amizades sociais e políticas com o intuito de conseguir um

cargo de Ministro de Estado.

Creio que essa foi também uma tentativa de “virilizar” seu esposo; porém, ele

já havia lhe dado várias demonstrações de que jamais seria o homem viril e bem-

sucedido que ela esperava. Possuía vários admiradores, com os quais sempre

flertava, porém nunca foi adúltera.

______________ 33 “̶ Quero que você seja Ministro. ̶ Ministro eu? Observou ele assombrado com a acorrência.” (Carbonera, 1889, p. 29) (tradução nossa)

Page 112: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

112

Aos trinta anos, cansada do matrimônio enfadonho e fracassado, se apaixona

por um de seus admiradores e resolve entregar-se. Mas, esse a repudia e se casa

com uma moça de origem humilde que foi costureira dela.

Serafim Rubio é levado à falência por conta da falta de cuidado com os

negócios e também por causa dos exageros de sua esposa. E, diante da evidência

de adultério de Blanca, que na verdade não foi consumado, termina louco em um

manicômio. Blanca é agora obrigada a conviver com o desprezo da sociedade, a

falta de recursos financeiros e filhos para sustentar; com isso decide viver em um

bairro pobre da cidade. E, para resolver seus problemas financeiros, torna-se

prostituta. Ao final da obra deixa a seguinte reflexão: “mañana habrá dinero para

pagar mis deudas” (Carbonera, 1889, p.144).34

Ao final da narrativa, mais uma vez demonstra uma conduta de resistência ao

domínio masculino na medida em que encontra na prostituição uma possibilidade de

libertação dos padrões de obediência esperados pela sociedade. O movimento de

insubordinação representado através de suas atitudes contribui com a negação da

manutenção do sistema patriarcal dominante e a deterioração do discurso

hegemônico característico da época.

As outras mulheres da sociedade não ousaram discordar das opiniões,

enfrentar decisões ou descumprir ordens estabelecidas pelos homens dos

respectivos núcleos familiares. Assim, o domínio masculino dos lares prolongava-se

na sociedade como um todo deixando pouco espaço para comportamentos distintos

e questionadores.

______________ 34 Amanhã haverá dinheiro para pagar minhas dívidas. (Carbonera, 1889, p.144) (tradução nossa)

Page 113: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

113

A representação do corpo no romance está centrada na imagem de Blanca

Sol, onde surge a todo o momento um jogo de sedução. Ao final é necessário

prostituir-se para obter o próprio sustento e de seus filhos. Naquela época, o corpo

ocupava papel secundário, porém ela rompe com esse limite, restaurando e

aprofundando a questão da carne, isto é, do corpo animado.

Promove a liberação obsessiva do corpo íntimo sexuado. Nunca lhe

couberam as coerções e disciplinas herdadas do passado. Blanca Sol tem desejo

por um mundo diferente daquele que faz seus sonhos em pedaços. Talvez

possamos dizer que essa atitude tenha sido a tentativa de dominar o tempo, fazendo

uma recuperação do passado de glória e cortejo, curando-se da ação do tempo, cujo

resultado foi um final indesejável para ela. Ou até mesmo para ter certeza de um

novo recomeço, sendo que agora utilizará uma nova máscara social, a de prostituta.

A autora utilizou-se das próprias experiências, fez da vida uma provedoria

literária. Repetiu nas escrituras as vivências reais, transformou o real em fictício;

tinha convicção que a realidade para ela era material de trabalho. É muito cuidadosa

com o trabalho que faz na própria estrutura – a ordem dos relatos, a organização do

tempo, a graduação dos efeitos, a ocultação ou exibição de algum dado e também a

linguagem utilizada na escritura.

Carbonera delineou a personagem de Blanca Sol em uma direção inversa; fez

com que a protagonista ocupasse uma posição distinta àquela destinada a uma

mulher na sociedade do século XIX. Porém, os demais personagens femininos

presentes no romance não seguem esse paradigma; estes se restringem à família e

à casa de modo que o poder representado pela figura masculina permanece em sua

hegemonia histórica.

Page 114: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

114

Na obra BS, vemos que a relação de gênero aparece marcada pela

desigualdade de oportunidades, sustentada pelo comportamento dos grupos sociais

centralizados no androcentrismo. Ampara-se em estratégias atreladas à diferença

sexual, o que termina por reforçar a marginalização das mulheres, o sistema

opressivo e a representação do poder desigual.

No século XIX, sociedade machista, a mulher vivia alienada em seu próprio

corpo (rejeitada como objeto de prazer para ela mesma). Às mulheres, restava

guardar o corpo como um santuário cerrado para somente dar prazer ao seu homem

em uma relação fértil e limpa. Ao focalizar o cotidiano de vidas comuns, a autora

possibilita a exposição de uma contemplação diferenciada sobre os fatos. Carbonera

não se utilizou somente da visão patriarcal dominante, mas também da feminina, ao

considerar o papel da mulher dentro de um contexto social.

A protagonista rompe o silêncio e rompe com o modelo tradicional de sujeito

feminino; isso ocorre ao expor uma personagem feminina com força e função dentro

do contexto social, oferecendo ao leitor uma possibilidade de reflexão acerca da

mulher e suas experiências diferenciadas. A escritura de Mercedes percorre as

construções culturais do sujeito de gênero (masculino / feminino), através da

representação simbólica que existe no imaginário da sociedade patriarcal.

A representação dos papéis de cada personagem e da respectiva aceitação

no ambiente social manteve-se sob composição da herança do patriarcalismo.

Nesse sentido, a autora estabelece relações de poder através do imaginário social

controlado e moderado pelo discurso tradicional dominante, expressando os

conceitos de identidade e diferença como sendo constituições culturais e sociais.

O desespero e a falta de sossego que, pouco a pouco, convertem Blanca em

adúltera são consequências da falência do marido e da frustração matrimonial, e

Page 115: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

115

esta frustração é principalmente erótica. O temperamento ardente de Blanca não

tem um companheiro à altura, e ela, bela e refinada, o satisfaz, ele que aspira a tão

pouco nesse campo. Sai da vida solitária que tinha e se encontra ao lado de uma

mulher bonita e desejada. Sua felicidade sexual explica em boa parte sua cegueira,

seu conformismo, sua pertinaz mediocridade.

Allí, al alcance de su mano, estaría siempre ella, hermosa, seductora, complaciente, con sus ojos de garza y sus labios atrevidamente voluptuosos. Sí, ya él podía llamarla, suya, su mujer, y al pronunciar estas palabras, su alma, bañábase en infinito deleite, y en sangre se encendía en inextinguible voluptuosidad. (Carbonera, 1889, p. 20) 35

Ao fazer a oposição homem-mulher, forma-se um elemento binário que induz

a uma relação desigual, onde um dos elementos terá a vantagem da primazia,

adquirindo uma relação benéfica, enquanto o outro receberá o valor contrário.

Segundo Michele Perrot36 entre os séculos XVII e XIX surgem vários

discursos sobre a força que também têm as mulheres, o que trouxe insegurança aos

homens: “O sentimento angustiante da alteridade feminina (…) foi reforçado no

século XIX pela própria vontade da divisão acentuada de papéis, tarefas, espaços,

pela rejeição da mistura que acabou numa segregação sexual mais intensa” (Perrot,

1995, p. 6).

A dualidade presente na obra surge representada através de personagens

masculinos e femininos, senhores e servos; os que detinham o poder através de sua

posição dentro da sociedade e, os que somente obedeciam, os comandados; como

é o caso da costureira e também da doméstica de Blanca.

_______________ 35 Ali, ao seu alcance, estaria sempre ela, bonita, sedutora, complacente, com seus olhos de garça e lábios atrevidamente voluptuosas. Sim, ele poderia chamá-la de sua mulher, e ao dizer estas palavras, a sua alma, enchia-se de infinito prazer, e sangue se iluminava com desejo insaciável. (Carbonera, 1889, p. 20) (tradução nossa) 36 Michele Perrot, “Poder dos Homens, Potência das Mulheres”. Revista Vozes. Rio de Janeiro: Vozes, v. 89, n.1, p. 6-13, 1995.

Page 116: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

116

Estas dualidades representadas tinham como função manter uma sociedade

baseada no androcentrismo da época.

Sendo assim, a obra apresenta uma multiplicidade de papéis sociais; porém a

visão e o domínio patriarcal são representados não só pelo homem, como também

pela protagonista, que se manteve alheia ao modelo de comportamento das

mulheres de sua época.

Não é difícil perceber como a identidade de Blanca Sol é repleta de

significados e, considerando que as identidades são construídas nas práticas sociais

e nos discursos, ela mesma decidiu por manter o legado cultural e comportamental

que recebera de sua família. Subverteu o discurso homogêneo patriarcal

contrariando os costumes da época; transmite através de suas atitudes algumas

impressões muito pessoais e não relacionáveis às outras mulheres.

A diferença reside em suas reações e em seus descontentamentos, ousando

seguir uma direção oposta às estabelecidas previamente pelo sistema patriarcal

dominante. A protagonista tem sua personalidade formada por traços de futilidade e

superficialidade; não estava interessada somente na felicidade doméstica que o

destino reservava às mulheres daquela época. Desejava muito mais, queria

desfrutar também do espaço público. O gênero tem relação direta com a categoria

social feita através do contraste, onde se pode nomeá-lo como um sistema de

diferenciação produtor de desigualdades sociais.

O papel do homem e da mulher é constituído culturalmente e muda conforme

a sociedade e o tempo. Esse papel começa a ser construído desde que o (a) bebê

está na barriga da mãe, quando a família começa a preparar o enxoval de acordo

com o sexo. Ou seja, por ter genitais femininos ou masculinos, a eles são ensinados

pelo pai, mãe, família, escola, mídia, sociedade em geral, diferentes modos de

Page 117: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

117

pensar, de sentir, de atuar. Todavia, nem sempre o que foi delineado para uma

pessoa é o que realmente ela gostaria que fosse; e, logo começa uma busca de

identificação que não corresponde às mensagens recebidas desde o nascimento.

Estas mensagens reforçam a desigualdade existente entre homens e

mulheres, principalmente em torno a quatro eixos: a sexualidade, a reprodução, a

divisão sexual do trabalho e o âmbito público/cidadania.

De um modo geral podemos dizer que as mulheres desde que nascem são

educadas para serem mães, para cuidar dos outros, para “dar prazer ao outro”.

Porém, em BS, tais informações não foram bem aceitas pela personagem, ela não

aceitava nem sequer sua fertilidade (que era abundante), na verdade desejava ter

liberdade para fazer o que melhor lhe conviesse.

Quando consideramos a construção dos papéis de gênero e suas implicações

na construção da identidade masculina e feminina que determinam uma dinâmica de

relação e de poder, sempre favoráveis ao homem, vemos que isso tem sérias

implicações no exercício dos direitos sexuais e reprodutivos e da própria

sexualidade por parte das mulheres. E, também ocasiona graves consequências

para o exercício pleno da cidadania, onde esses direitos sexuais incluem o direito a

ter controle e decidir livre e responsavelmente nos assuntos relacionados com a sua

sexualidade, incluindo a saúde sexual reprodutiva, livre de coerção, discriminação e

violência.

A desigualdade de gênero, como outras formas de diferenciação social, trata-

se de um fenômeno estrutural com raízes complexas e instituído social e

culturalmente de tal forma que se processa cotidianamente de maneira quase

imperceptível e com isso é disseminada deliberadamente, ou não, por certas

instituições sociais como escola, família, sistema de saúde, Igreja, etc.

Page 118: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

118

Mas, infelizmente, naquela época ser uma mulher pública era visto de forma

preconceituosa e estava associado a “ter uma vida fácil” (meretriz) e também não ter

valor intelectual. Porém, ser um homem público era muito diferente, normalmente

este era um político ou algum tipo de autoridade cuja capacidade intelectual as

pessoas reconhecem.

Como bem elucida Michele Perrot sobre a concepção do modelo de mulher

“(…) os atributos daqueles que dominam a esfera pública (razão, inteligência,

habilidade) os daqueles a quem “a sombra a casa pertence” - coração, natureza,

sensibilidade. Segundo Bourdieu:

Em oposição à mulher, cuja honra, essencialmente negativa, só pode ser defendida ou perdida, sua virtude sendo sucessivamente a virgindade e a fidelidade, o homem “verdadeiramente homem” é aquele que se sente obrigado a estar à altura da possibilidade que lhe é oferecida de fazer crescer sua honra buscando a glória e a distinção na esfera pública (Bourdieu, 2002, p.32).

Blanca Sol era uma mulher forte e certa de seus desejos e, utilizava-se do

poder decisório que possuía em benefício próprio a todo o momento. Sempre

demonstrava que discordava de atitudes ou opiniões que possivelmente a

colocassem em posição desprivilegiada, principalmente se surgissem de seu marido,

assim como cumprimento das ordens e regras impostas pela sociedade tradicional.

O estabelecimento da subversão no romance tem em Blanca Sol seu principal

modelo, visto que, ao negar a posição relegada às mulheres termina por reivindicar

a liberdade de escolha. Era o desejo de poder participar do universo público, espaço

destinado somente aos homens. A esse respeito, Bourdieu faz uma excelente

elucidação:

Excluída do universo das coisas sérias, dos assuntos públicos, e mais especialmente dos econômicos, as mulheres ficaram durante muito tempo confinadas ao universo doméstico e às atividades associadas à reprodução biológica e social da descendência; as atividades (principalmente maternas) que, mesmo quando aparentemente reconhecidas e por vezes ritualmente celebradas, só o são realmente enquanto permanecem subordinadas às atividades de produção, as únicas que recebem uma verdadeira sanção

Page 119: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

119

econômica e social, e organizadas em relação aos interesses materiais e simbólicos da descendência, isto é, dos homens (Bourdieu, 2002, p. 58).

Na sociedade do século XIX, a atividade educativa estava associada à Igreja

católica; porém, algumas mulheres obtiveram uma educação sofisticada. Como já

vimos, a educação oferecida nestes locais não era igualitária, pois tratava com

notável consideração as meninas ricas e com desprezo as pobres. No romance, as

freiras são cúmplices do sistema machista; e, nos colégios, que eram católicos em

sua maioria, o comportamento da sociedade é reproduzido de acordo com o sistema

patriarcal. As religiosas ensinavam às meninas a se submeterem às regras

preestabelecidas pelo patriarcalismo.

5.2. Maternidade e Infância

Com a chegada à fase adulta, o ser humano começa por se dissociar dos

pais, o que para ele é uma etapa de vida complicada, pois requer inúmeras

respostas oriundas de questionamentos e situações que surgem no cotidiano.

Antes não era necessária a tomada de decisões nos mais diversos

momentos, normalmente se pode contar com a presença dos pais ou responsáveis

e, com essa mudança, aparecem as dificuldades que muitas vezes levam a soluções

equivocadas.

Em BS, temos uma criança que foi mimada por sua mãe e suas tias, as quais

não lhe impuseram limites nem tampouco lhe ensinavam que devia ter uma conduta

moral que não ferisse os interesses alheios. Como viviam de uma pequena renda e

tinham uma vida de excessos, e não se privavam de nada que uma pessoa de

classe alta pudesse desfrutar. Era preciso que sua mãe, por exemplo, pedisse

Page 120: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

120

favores para alguns comerciantes, pois, sem dinheiro não conseguia pagar as

dívidas contraídas através de gastos excessivos e com isso necessitava préstimos.

Sua mãe a orientava a buscar um marido rico que pudesse sustentar seus luxos

mais os de sua família, amor nem pensar! : “(…) aprendió, por ejemplo, a estimar el

dinero sobre todos los bienes de la vida: hasta vale más que las virtudes y la buena

conducta” (Carbonera, 1889, p. 6).37

Segundo Walter Benjamin38, a criança necessita dos brinquedos e também de

vivenciar brincadeiras. É a fantasia infantil que transforma um objeto em jogo e

brincadeira, por isso defende que as crianças devem construir seus brinquedos para

que possam desenvolver ainda mais a criatividade.

Aqueles que brincam livremente em contato com a natureza, que ouvem

histórias contadas pela mãe, avós ou qualquer outro adulto desenvolvem a

imaginação, são mais tranquilas e se tornam adultos equilibrados. Na vida das

crianças, os sentimentos se manifestam com pureza e sem ambiguidade.

A experiência infantil se realiza como embriaguez, isto é, como

reconhecimento e imersão na poderosa força vital que emana das coisas. Embora

entendendo que a criança constrói sua visão de mundo com base na sensibilidade,

não existe uma infância pura ou um mundo da fantasia separado e alheio ao social.

O mundo perceptivo da criança se enraíza e, ao mesmo tempo, se confronta

com o mundo histórico.

______________

37 (...) aprendeu, por exemplo, a estimar o dinheiro sobre todos os bens da vida: até mais que as virtudes e a boa conducta” (Carbonera, 1889, p. 6). (tradução nossa) 38 Walter Benjamin é filósofo e crítico alemão que muito colaborou com sua ideologia em diversas áreas.

Page 121: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

121

A criança, como o jovem que ainda não se adaptou às exigências do mundo

adulto (do trabalho e da razão instrumental), está aberta à recepção das

semelhanças sensíveis e sua formação individual se produz como aprendizado (e

criação) do mundo. Assim, a experiência infantil da brincadeira, da expressão

mimética e lúdica, se constitui como o gérmen do novo que pode ser contraposto à

experiência do adulto, adaptado às condições do mundo regido pelo modo de

produção e de representação modernos.

A infância deve ser vivenciada em sua plenitude, porém como poderia a

protagonista do romance BS desfrutar de tais qualidades se não conheceu nada

disso quando criança? Como poderia ela proporcionar o necessário para o bom

desenvolvimento dos filhos, se, não conhecia esse mecanismo? Pelo contrário, essa

fase da vida dela foi suprimida, lhe ensinaram a ser uma adulta com interesses um

tanto duvidosos.

Blanca não vivenciou as fases de uma criança com brincadeiras inocentes

como os demais pequeninos. Ensinaram-lhe a ser muito vaidosa, era soberba com

os outros e revestida de um sentimento de superioridade inabalável que a sua bela

figura lhe assegurava. Em uma das cenas do romance, uma das meninas de sua

escola acusa sua mãe de obter favores de um comerciante e é agredida por Blanca,

que certamente acredita ser natural a conduta de sua mãe.

Un día una de las niñas, la más humillada por la pobreza con que ella y su madre vestían, la dijo: -Oye Blanca: mamá me ha dicho que la tuya se pone tanto lujo, por que el señor M. la regala vestidos. -Calla cándida observó outra-si es que la mamá de Blanca no paga a los comerciantes y vive haciendo roña, eso lo dicen todos. Blanca tornose encendida como la grana, y con la vehemencia propia de su carácter, saltó en el cuello de una de las niñas, (…), y después de darles de cachetes y arrancarles los cabellos, escupiole en el rostro diciéndole: ¡Toma! Pobretona, sucia, si vuelves a repetir eso, te he de matar (BS, 1889, p. 6). 39

Page 122: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

122

Uma atitude como essa certamente seria reprovada por qualquer mãe, porém

a de Blanca recebe o episódio de outra forma: “Cuando su madre llegaba a conocer

algunos de esos precoces juicios de su hija, reía a mandíbulas batientes, y

exclamaba: ̶ Sí, esta muchacha sabe mucho”.(BS, 1889, p. 7)40

Sua mãe era a responsável pela formação deformada da menina, não

cessava de oferecer exemplos negativos e aprovar as atitudes oriundas do

aprendizado. Durante uma conversa com suas amigas de colégio:

La una decía, que una hermana suya había roto con su novio por asuntos de família, y su hermana depique se iba a casar con un viejo muy rico, que le procuraría mucho lujo, y la llevaría al teatro, a los paseos y había de darle también coche próprio. ¿Qué importa que sea viejo? Mamá me ha dicho que lo principal es el dote, y sí cuando el viejo muera se casará con un joven a gusto de ella. (BS, 1889, p. 7) 41

Entender as características do mundo da criança nos escritos de Walter

Benjamin implica refletir sobre outros conceitos que perpassam seus escritos, como:

a experiência moderna, a natureza e o uso da linguagem a partir de uma teoria

mimética e das semelhanças, a reconstrução da história a partir de detalhes e

ruínas, a temporalidade como repetição ou como criação, noções que, no conjunto

do seu pensamento, se entrelaçam.

________________ 39 Certo dia, uma das meninas, a mais humilhada pela pobreza que ela e sua mãe usavam, disse: ̶ Ouve Blanca: mãe disse que a sua usa tanto luxo, porque o Sr. M. a presenteia com vestidos. ̶ Cale-se, observou outra – se a mãe de Branca não pagar os comerciantes é o que todos dizem. Blanca ficou furiosa, pulou no pescoço de uma das meninas, (...), e depois de golpeá-la e puxar-lhe os cabelos disse: Toma! Pobretona, suja, se voltares a repetir isso, eu te mato. (BS, 1889, p. 6) (tradução nossa) 40 Quando sua mãe tomava conhecimento das precoces decisões de sua filha, ria muito e dizia: Sim, esta menina sabe muito. (BS, 1889, p. 7) (tradução nossa)

41 Uma das amigas disse que sua irmã tinha terminado com o namorado por assuntos de família, e sua irmã logo iria se casar com um senhor rico que lhe proporcionaria luxo, e a levaria ao teatro e teria seu carro próprio. O que importa que seja velho? Mamãe me disse que o principal é a herança, e quando o velho morrer poderá se casar com um jovem de sua escolha. (BS, 1889, p. 7) (tradução nossa)

Page 123: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

123

Ao apresentar a visão da criança e a sua sensibilidade ante o mundo,

Benjamin manifesta a sua própria sensibilidade e imaginação criadora. E embora

não tenha a preocupação de explicitar relações educativas, seus escritos instigam a

discussão sobre as premissas educacionais que orientaram a formação de crianças

e jovens no processo de constituição da sociedade burguesa.

Suas advertências a respeito da educação alemã ocorrem no momento em

que a formação infantil se tornava objeto do interesse do regime totalitário que se

instaurava na Alemanha. Nesse contexto, seus escritos assumem um sentido

político relevante, na medida em que a valorização da vida infantil se vincula

claramente a uma nova leitura da história, que visa a retomar a tradição e a memória

do que foi sufocado, reprimido no processo de constituição da modernidade.

Tentar entender a experiência infantil significa questionar com argúcia as

formas de educação modernas para tentar uma reformulação teórica condizente

com uma nova prática política revolucionária. A criança faz sua aprendizagem do

mundo de modo mágico e prazeroso.

É como se, no processo de educação exercido na sociedade moderna, a

fantasia e a criatividade fossem superadas pela lógica e pela adaptação da criança

aos objetivos que a sociedade coloca ao adulto. Benjamin não se descuida das

mudanças históricas e do caráter social da aprendizagem infantil. Desse modo, o

brinquedo e a brincadeira infantil estabelecem “um diálogo mudo, baseado em

signos, entre a criança e o povo” (Benjamin, 1974/1985, p. 246).

As coisas e as palavras com todas as possibilidades de expressão constituem

um universo de signos que expressam uma situação cultural e histórica precisa, cuja

diversidade tem como pano de fundo a luta de classes que, por sua vez, fundamenta

as experiências e lembranças infantis.

Page 124: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

124

Podemos dizer que existe um paradoxo entre o sujeito infantil e a infância do

sujeito. É necessário que as crianças de tal idade estejam em condições de

aprender determinadas coisas; quando não ocorre assim, esse sujeito não é um

sujeito real, mas um sujeito construído. Blanca Sol foi uma criança que certamente

não teve a oportunidade de aprender nada referente à infância e, em sua fase

adulta, só pode externar o que trazia dentro de si. Os prejuízos foram irreversíveis

chegava até a esconder, o quanto fosse possível, a gravidez, para que pudesse usar

vestimentas mais justas que não mostrassem sua forma.

Certa vez, ao experimentar um vestido novo, sofreu um desmaio; ficando

preocupada a costureira, esta pediu que a acompanhante chamasse seu marido, e a

resposta foi que Blanca a proibira de contar a seu marido esses episódios. Na

verdade estava grávida de novo e se recusava a usar roupas condizentes com seu

estado. Durante quase todo o romance, praticamente não se percebe a presença

dos filhos dela, estes são criados pelos empregados da casa, pois a ela não

interessava a educação dos filhos e sim um mundo de vaidades.

E, como não havia recebido uma educação como deveria, era fácil de

reproduzir e, em consequência se interessar por outros valores que não os

referentes à família. Talvez a renúncia da maternidade se deva também ao fato de

os filhos serem extremamente parecidos com seu marido, e este lhe causava asco:

“Los hijos de Blanca, por desgracia de ellos, eran extraordinariamente parecidos con

D. Serafin, es decir, eran feos, trigueños y regordetes. ¿Seria esta la causa por qué,

Blanca era madre tan poco cariñosa para ellos?” (BS, 1889, p. 32)42

_____________ 42 “Os filhos de Blanca, para a desgraça deles, eram extraordinariamente parecidos a D. Serafin, ou seja, eram feios, trigueiros e gorduchos. Seria esta a causa pela qual Blanca era uma mãe tão pouco carinhosa?”(BS, 1889, p. 32) (tradução nossa)

Page 125: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

125

Ela foi uma vítima nas mãos de adultos que não souberam como lidar com a

infância; e com isso seus filhos também sofreram. A criança, tendo chegado ao

mundo depois dos adultos, faz-se rapidamente depositária imaginária dessa

diferença temporal. O universo dela, em verdade, é alheio a sua realidade. Tenta a

todo o momento criar algo interessante; e logo que se torna mãe nega a si mesma o

fato, fazendo com que seus filhos sejam privados de sua companhia e carinho.

Gastón Bachelard43 apresenta uma filosofia ontológica, da infância onde

destaca o seu caráter durável. Por alguns de seus traços, a infância dura a vida

inteira. É ela que vem animar amplos setores da vida adulta. Para o pensador

francês, é preciso viver, por vezes é muito bom viver, com a criança que fomos, pois

nos fornece uma consciência de raiz: toda a árvore do ser se reconforta. Os poetas

nos ajudarão a reencontrar em nós essa infância viva, essa infância permanente,

durável.

Assim, a abordagem bachelardiana da infância realiza-se através de uma

análise poética, pois o filósofo acredita que “existe um sentido em falar de análise

poética do homem”. Os psicólogos não sabem tudo. “Os poetas trazem outras luzes

a respeito do homem” (Bachelard, 1988, p.120), resgatando este momento vital

como revelação da beleza que existe em nós, no mais íntimo de nossa memória.

A obra bachelardiana contribui para a compreensão de que são nos encontros

indeléveis, através da ação criadora da mão no enfrentamento e reconhecimento de

todas as consistências e resistências das matérias, que “as intimidades do sujeito e

do objeto se trocam entre si” (Bachelard, 1991, p. 26), para extrair e sintetizar a lição

das coisas, enriquecendo e ampliando experiências de aprendizagem.

_____________ 43 Foi filósofo e poeta francês que estudou sucessivamente as ciências e a filosofia.

Page 126: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

126

Portanto, para Bachelard, a ação de conhecer na infância é baseada no fazer.

As qualidades sensíveis que a criança extrai da matéria não se devem apenas à

percepção, mas muito a uma atitude lúdica de curiosidade e observação, uma

vontade de investigar as provocações do mundo. A manipulação transformadora das

matérias permite inúmeras possibilidades de sensações e criações. Esta ação

investigativa é acompanhada de uma multiplicidade de imagens que se instalam no

inconsciente e que depois o adulto, sobretudo através da mediação poética,

recuperará amplificadas.

Considero fundamental partir destas reflexões bachelardianas, pois ao

interagirmos com a criança, com suas produções expressivas e poéticas, nos

deparamos com este sentimento de “maravilhar-se” de novo, com esse momento

prazeroso de criação e invenção. Neste instante dinâmico e mágico nos conectamos

com a criança, entramos em sintonia e dialogamos com gestos, olhares, sons,

palavras, ou com toda riqueza do silêncio pleno de compreensão da grandeza que

significa o momento da primeira vez. A partir das reflexões de Bachelard, podemos

perceber o quanto foi distinta a infância da protagonista da obra peruana em

questão, era uma existência infeliz, sem amor:

¡Sus hijos! Algunas veces en medio del regocijo general de una fiesta, sentía que le daban ganas de llorar; se acordaba de ellos entregados a manos mercenarias que nunca pueden reemplazar los cuidados de la madre. (Carbonera, 1889, p. 40) 44

Buscamos cada vez mais considerar a criança como sujeito ativo e capaz.

Desconsideramos seu poder de imaginar, que vai muito além das palavras, ao

alcançar outros sentidos e significados não verbalizáveis de sua experiência.

_____________ 44 Seus filhos! Às vezes, em meio a alegria geral, sentia vontade de chorar; lembrava-se deles entregues a mãos mercenárias que nunca podem substituir os cuidados da mãe. (Carbonera, 1889, p. 40) (tradução nossa)

Page 127: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

127

Respeitar a especificidade do seu momento de vida significa preservar seu

ser poético, sua maneira poética de enfrentar o mundo e a si mesmo, sua forma

singular de encontrar o outro, maravilhando-se ou se horrorizando, e criar

significados que ultrapassam o sentido único, na aventura de conhecer a si própria

no ato de imaginar, interpretar e inventar a realidade.

A forma poética é o modo como a criança expressa e pensa o seu todo, seu

jeito simultaneamente particular e universal de ser e estar no mundo, seu jeito

singular e coletivo de falar do mundo como uma maneira de falar de si. Exatamente

por estar desarmada de conceitos racionais, a criança estabelece uma relação direta

com os objetos e o mundo que a cercam.

Seu olhar torna-se um olhar primal, seduzido, encantado pela novidade.

Nestes momentos, o poético configura-se como a forma infantil de perceber e

expressar seu entorno. Por isto, para Bachelard, o poeta é aquele que preservou em

si a maneira direta da criança. Em cada poeta há uma criança preservada no verbo;

na criança o poético é o mundo que se faz jogo, brinquedo, experiência.

A negação da infância aponta para uma negação da subjetividade da infância,

a qual, impedida de entrar em contato com sua vida simbólica – já que os objetos

externos são mais valorizados –, deixa de sonhar, se transformar, e se emancipar.

É preciso conhecer as condições da subjetividade da infância, os produtos da

sua negação, por mais que isso nos entristeça e nos assuste, sendo o único recurso

para lutarmos contra a barbárie que muitas vezes se aloja na realidade de uma

criança. Assim, ver e ouvir a criança é fundamental em qualquer estudo que

realmente deseja estudar a infância. Esse olhar e esse ouvir ficam ainda mais

pertinentes quando leva em consideração o princípio de toda e qualquer infância: o

princípio de transposição imaginária do real, comum a todas as gerações,

Page 128: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

128

constituindo-se em capacidade estritamente humana. É preciso levar em

consideração uma concepção modificada da mente infantil em quaisquer ocasiões.

E assim podemos dizer que Blanca passou a se relacionar consigo mesma,

com sua “estrangeirice” e com os outros – isto é, a experimentar a sua

transitoriedade – de uma maneira nova. Aquilo que sempre resta e faz falta em seus

sonhos deixou de ser creditado num paraíso perdido no passado e vivido junto a

uma realidade que tentou criar, para ser, ao contrário, buscado neste mundo de

homens. Porém, não alcançou o desejado final.

5.3. Heroína ou Anti-heroína?

Nem monstros nem heróis!

Flaubert

A presença de personagens que tiveram bastante relevância dentro da

narrativa por meio de seus atributos pode ser percebida em diversas obras.

Em quase todo o romance surge um personagem que se põe a refletir a cerca

de suas próprias aspirações e convicções mais profundas a fim de superá-las. Este,

dessa forma, pode ser marcado por um descrédito que o apresenta de forma dúbia,

pois, representa a condição humana com toda a multiplicidade social, ética e

psicológica; e ao mesmo tempo, buscará ultrapassar a sua própria condição, dando

início ao que podemos chamar da caracterização que constitui a figura do herói.

O termo herói é de origem grega heros (nobre, semideus). E, segundo afirma

Feijó (1984, p. 12): “foram os gregos que deram o nome a eles, como também foram

os mitos gregos os que mais sobreviveram, que não se transformaram em religião

nem desapareceram. O nascimento do herói, portanto se deu com o mito”.

Page 129: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

129

Muito se confunde o mito como sendo uma inverdade; mas, ao contrário

dessa concepção, concebe-se a terminologia como a crença de um povo, ou seja,

uma verdade desse povo. Feijó (1984, p. 13-14) menciona que: “um mito sobrevive

num povo não porque lhe explique a sua realidade, mas por refletir em aspecto real

desse mesmo povo e até de todos nós: os mitos refletem sempre um medo de

mudança. (…) O mito seria, então, um consolo contra a história. E o herói, um

consolo contra a fraqueza humana”.

A figura do herói é caracterizada por atitudes que beneficiam e influenciam a

sociedade, as pessoas e os pensamentos através de sua determinação, poder e

inteligência. Em contrapartida existe também a figura do anti-herói que, ao contrário

do que muitos pensam, não e o oposto do herói; e sim, alguém que é na verdade a

representação de um ser humano comum, mortal. Podemos dizer que este possui

características encontradas no cotidiano, capaz de vencer ou ser derrotado como

qualquer um.

A palavra anti-herói também tem origem no grego (anti – oposição, contra /

heros – semideus, nobre, chefe). Levando-se em consideração a origem e o

significado do termo, pode parecer que ao falar em anti-herói fazemos referência a

um personagem completamente oposto ao herói. Na verdade, a oposição que ocupa

é uma oposição ao modelo do herói clássico; visto que o seu surgimento é resultado

de uma crescente humanização do herói.

Ao considerarmos a figura do herói e a do anti-herói, conceberemos a

possibilidade de a história de um povo e o surgimento de um mito serem

proposições diretamente relacionáveis. Mesmo que exista um hiato entre a história e

o surgimento de um mito, não podemos deixar de pontuar que é a partir do mito que

muitas histórias de deuses, heróis e também algumas sociedades primitivas são

Page 130: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

130

relembradas através da releitura das narrativas. É a possibilidade de reconhecer e

reencontrar o passado, permitindo a legitimação de valores sociais. O conceito de

mito abrange uma realidade cultural extremamente complexa e ampla.

O surgimento do herói pode ser entendido como a associação do conceito de

mito à inquietação, ou até mesmo a necessidade de obter respostas que abarquem

questões referentes ao povo e sua história. Pode fazer referência às aspirações e

desejos de uma sociedade, e também à procura de resoluções em torno do

reconhecimento do papel de cada um dentro da sociedade. Segundo Jabouille, o

homem concebe o conceito de mito como:

Uma resposta teológica para as suas [do homem] aspirações, uma compreensão mais vasta que o integre, de uma forma sacral, no macrocosmo a que pertence e, simultaneamente, um encontro consigo próprio e com a divindade, encontro que lhe traga a Paz e a Fé. Mas também, uma integração social, uma personalização da sociedade circundante (…) uma generalização, uma socialização de seus problemas individuais, uma projeção do ego numa escala dimensionada cosmicamente, uma compreensão do Ser que não passa pela vida ontológica. (Jabouille, 1986, p. 180)

O conceito de mito e o de herói mítico ultrapassam os limites da imaginação

ou do surgimento de um mundo que sobrevive aliado ao mundo real. Ou melhor, a

partir do momento que concebemos a existência do mito e do herói, estabelecemos

um elo entre o passado e o tempo original. Pode-se dizer que são mundos que

admitem a possibilidade de comunicação, isso dentro de um universo fictício.

O herói é alguém que empreende uma jornada, quer seja física ou psicológica

e que de alguma maneira rompe com tradições e conceitos estabelecidos, tentando

encontrar a si mesmo e a sua devida posição no universo. É capaz de sofrer

transformações para adaptar-se e moldar-se ao meio, às necessidades; e também

às circunstâncias culturais, políticas e sociais. Sua existência é permeada de lutas e

dificuldades como para qualquer outro; tendo ele a possibilidade de acertar ou não,

vencer ou não.

Page 131: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

131

Pode-se dizer que o que é capaz de converter o anti-herói em herói é

exatamente a capacidade e a oportunidade de tentar transformar as situações nas

quais se envolve. É esse empenho que o transforma em herói; é a perseverança em

prol de suas necessidades que o faz assumir a posição de herói.

A aventura do herói nada mais é do que um processo de individualização. Ou

seja, o herói tem vida própria e a obra existe soberanamente, não há a transmissão

transbordante da subjetividade do autor. O herói abdica de sua vida para seguir em

uma viagem perigosa, retornando ao seu mundo com resoluções, além de trazer a

transformação interior, revelando assim a construção da própria identidade.

A existência do herói está diretamente ligada à restauração do equilíbrio do

mundo real. O herói tradicional foi canonizado pela literatura; e, com o passar do

tempo as figuras divinas, de sentimentos sublimes, perderam a sua

representatividade. A configuração do herói ganhou outro enfoque e passou a ser

inserida em um outro tempo.

A segunda metade do século XIX foi marcada por lutas sociais; e por

consequência uma nova forma de retratar o mundo foi regida através de concepções

distintas. Com isso, um dos pontos que muito se destacou foi a vida cotidiana em si

e algumas de suas características tais como o egoísmo, o adultério e a vaidade. Os

romances dessa época não mais mostravam a mulher como uma figura idealizada; e

sim, exibiam os seus defeitos e qualidades com naturalidade.

A representação do herói desaparece, dando lugar ao anti-herói ou ao herói

problemático. A sociedade burguesa do século XIX, regida pelas aparências e pela

hipocrisia presente na sociedade, tem na protagonista do romance BS a

representação de uma mulher livre e à frente de seu tempo.

Page 132: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

132

Ela, em momento nenhum, permitiu que seu casamento, mesmo que sendo

concebido como uma questão administrativa, servisse de prisão matrimonial.

A figura do herói / anti-herói surgidas nas narrativas no final do século XIX são

o reflexo da sociedade da época. Caracterizam e problematizam a vida dos cidadãos

e as questões sociais questionando os valores da sociedade.

Pretendem transmitir, através de sua representação, seus pensamentos e

angústias, assim como o grotesco ou até mesmo o caricaturesco que se tornou o ser

humano. Seu mundo inviabiliza uma construção humana baseada em moldes

tradicionais. Muitas vezes, dentro da narrativa a figura do herói chega a confundir-se

com a do anti-herói. No caso de Blanca, há uma representação do herói em suas

atitudes, que, de certa forma, liberta as mulheres que se identificam com a conduta

da personagem.

O herói é o próprio agente de transformação, derrubando regimes

preestabelecidos e decadentes, propiciando a renovação da vida. Durante a leitura

do romance, temos a impressão de a vida ter um valor medíocre e insípido; as cenas

narradas são permeadas de ações covardes e enganosas, os personagens em sua

maioria não são dignos de louvores. Vale ressaltar que a protagonista apesar de ser

uma personagem de ficção do final do século XIX, tem grande apego à matéria e à

carne que a tornaram moderna.

A protagonista do romance em questão pode não ter sido uma heroína

corajosa, mas demonstrou muita coragem quando percebe que tudo estava mal em

sua vida, e que precisava empreender um novo rumo em sua história. Ela é o retrato

da heroína fracassada, porque termina por sofrer as consequências causadas por si

própria. Podemos dizer também que é uma heroína contraditória; por ser vítima de

Page 133: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

133

seus devaneios; levou toda a sua história de vida e não alcançou a lucidez

necessária para uma vida pautada na realidade.

Segundo Massaud Moisés (1992, p. 272), “herói é um homem divinizado, filho

ou descendente de deuses”; ou seja, um ser dotado de características nobres, o que

em nada se aproxima da protagonista do romance.

Blanca Sol é um paradoxo de si mesma, pois encena a força de um herói com

a determinação que possui, lutando para concretizar os seus interesses. Como

também é uma heroína que está condenada à autodestruição e à negação na

tentativa de realização de seus desejos. Perde totalmente a noção da realidade e

declara a sua condenação após a falência do marido. Seu mundo inviabiliza uma

construção humana baseada em moldes tradicionais. E, muitas vezes, dentro da

narrativa, a figura do herói chega a confundir-se com a do anti-herói.

Blanca Sol é a representação da heroína, reflexo de uma sociedade sem

moral; onde de, maneira velada, tudo é permitido e ninguém é punido. Ela apresenta

condensados em si os atributos de uma heroína: a beleza, o dinamismo e a

capacidade de intervenção; assim como também têm destaque algumas

características de um anti-herói, tais como: a falta de virtudes morais e espirituais.

Assim podemos dizer que a protagonista se converte em heroína a partir do

momento em que começa a enfrentar dificuldades em sua vida. Ela precisa

acreditar, e também fazer com que acreditassem, que em sua decisão de tornar-se

prostituta residia a virtude, levando-se em consideração sua necessidade de

estabelecer-se financeiramente. Era uma manifestação de força, ação e palavra por

parte dela; como também uma tentativa de reverter a sua falta de identificação e

adequação com o mundo e com a vida.

Page 134: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

134

Há na atitude de Blanca Sol uma relação contraditória com os ideais de um

personagem heróico. Pois este normalmente é um ser que supera obstáculos e não

se deixa corromper pelos vícios da sociedade; as atitudes dela estão, em sua maior

parte, voltadas para as de um anti-herói. Ela reivindicou através de suas atitudes um

espaço de liberdade que não era conferido às mulheres daquela época. Pode-se

concluir que, para a sociedade do século XIX, ela foi uma anti-heroína por

expressar-se através de suas condutas pouco aceitáveis. Mas, como uma

representante do sujeito feminino, Blanca Sol reclamou o seu direito à diferença e

também à aceitação dentro da sociedade.

5.4. Público e Privado – Conflitos e Interesses

Nas últimas décadas têm acontecido mudanças relevantes na situação das

mulheres, em busca de novos pontos de equiparação e acomodação na questão de

gênero e na partilha de tarefas. A constante busca de mudança na esfera privada,

assim como a maior aceitação da mulher na esfera pública, obtiveram resultados

bastante expressivos na condição das relações sociais de gênero.

Público e privado são dois termos que possuem vinculações que ultrapassam

a simples noção de espaço. Para melhor compreensão é preciso dominar as

relações de sentido que envolvem a questão e as formas como se realizam as ações

e procedimentos que envolvem e configuram os termos. É interessante ressaltarmos

que a noção do que era íntimo tomou diferentes dimensões com o passar do tempo;

fazendo com que exista um limite tênue entre o que é considerado público e o que

pode ser chamado de privado.

Page 135: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

135

Tem havido uma crescente valorização do privado; uma forma de

alastramento de significado para o que antes era considerado alheio. E o que era

considerado público vem ganhando um novo significado. Entendia-se por público

algo que não fosse capaz de adentrar na intimidade do sujeito, causando exposição

das referências pessoais do indivíduo.

Assim como também se fazia menção ao que estava exposto para a

observação de todos; era o ambiente regido pelo princípio da impessoalidade. Com

o transcorrer do tempo, não é mais possível tratar a questão do público e do privado

referindo-se somente ao espaço; é necessário também observar como as relações

têm sido processadas. Agora, o que é privado ultrapassa o limite da casa do

indivíduo, invadindo assim o espaço público. E o que antes era somente de domínio

público, vem sendo mesclado à significação e ao funcionamento do privado.

O espaço público é considerado como condição de liberdade; como condição

de realização do próprio sentido de existência do ser humano. Não ter acesso a

esse ambiente seria como abdicar da própria liberdade, ou depreciar a si mesmo. De

fato, o homem só é capaz de sentir-se realizado como cidadão se estiver integrado

ao corpo social. Nesse sentido, podemos dizer que as divisas da esfera privada

estão entrando em processo de decadência; mas, deixando lugar para a ascensão

da esfera íntima.

Para o sociólogo Richard Sennett, este é um novo modo de construção da

esfera pública. Segundo ele (2002, p. 317), “nada do culto à intimidade pode

conduzir a uma tal hipertrofia da esfera íntima, que, no limite, chegaria a aplicar um

retraimento do espaço público, por meio do afrouxamento dos papéis sociais que o

constituem.”

Page 136: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

136

Havia falta de espaço para que as mulheres pudessem se expressar com a

mesma intensidade que os homens, principalmente nos séculos passados, como

menciona Michellet Perrot (1998, p. 59), “Restritas ao espaço privado, no melhor dos

casos ao espaço dos salões mundanos, as mulheres permanecem durante muito

tempo excluídas da palavra pública.”

O lar, visto como a maior representação do espaço privado tem em seu

interior depositado tudo que faz referência à intimidade. Os segredos, os

pensamentos, os sentimentos, como também a intimidade física e psicológica de

cada indivíduo são resguardados no interior de cada um; assim como também no

interior de seus lares.

Podemos dizer que a presença do espaço privado está expressa no ambiente

doméstico como um lugar onde o sujeito feminino usufrui uma voz (sua) e uma

subjetividade. Esse espaço associado ao espiritual, o interior e doméstico; enquanto

o masculino é visto como o externo e público.

À mulher era (e ainda é em alguns casos) reservado o espaço limitado, no

qual em sua subjetividade, tenta mudar sua realidade e limitar-se a cumprir com seu

dever de procriação e cuidado com os filhos. Para a protagonista do romance

peruano BS, obra considerada transgressora por tratar da história de uma mulher

que infringia as regras da sociedade patriarcal, o espaço da casa, que deveria ser

destinado ao prazer da família, torna-se ambiente público e palco de muitas

recepções.

Na obra, vê-se sempre o lar, ou seja, o espaço doméstico a partir do qual

Blanca tenta intervir no espaço público. Isso fica claro no episódio em que a

protagonista utiliza-se de suas influências, conquistadas com as variadas recepções,

para conseguir um posto de Ministro do Estado para seu marido.

Page 137: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

137

Para Blanca Sol nada do que pudesse fazer referência ao espaço privado e à

família eram interessantes; em sua casa foi utilizado o mais alto luxo e requinte

europeu, era se como preparasse um ambiente para si e também para o público.

Essa visão diferenciada do espaço privado e da intimidade propriamente dita

Anthony Giddens denominou de “nova intimidade”. Para Guiddens (1993, p.11), “a

intimidade estaria passando por uma reestruturação genérica, com ganhos

ampliados, em relação à configuração primitiva”. A atribuição da intimidade passou a

ser designada pela recomposição do papel do casamento, da maternidade e da

família; e também propriamente do amor. O amor romântico idealizado que em

grande parte dos romances aparecia, cedeu lugar ao amor associado à ideia de

liberdade. Àquele que concede autonomia de escolha do parceiro sem os arranjos

de caráter econômico nas camadas mais abastadas, deixando de lado as tradições

familiares. Nas palavras de Guiddens:

O amor romântico introduziu a ideia de uma narrativa para a vida individual (…) Contar uma história é um dos sentidos do “romance”, mas esta história torna-se agora individualizada, inserindo o eu e o outro numa narrativa pessoal, sem ligação particular com os processos sociais mais amplos. O início do amor romântico coincidiu mais ou menos com a emergência da novela: a conexão era a forma narrativa recém-descoberta (Guiddens, 1993, p. 50).

Mas, para Blanca Sol o ideal de amor romântico somente lhe ocorreu quando

Alcides, um de seus admiradores, que em várias ocasiões tentou ter envolvimento

afetivo com ela e foi rejeitado, já não aceitava. Ela não se importou nem mesmo em

se expôr para conseguir se aproximar dele e ter a chance de convencê-lo de seu

amor, mas não foi possível, pois ele evitou de toda as formas as diversas investidas

de Blanca.

Page 138: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

138

Esta inclinação dela rompe os limites de seu sexo; está implícito o seu caráter

dominante, na rapidez com que ela assume as funções varonis. O heroísmo, a

audácia, a liberdade são, aparentemente, prerrogativas masculinas; entretanto,

Blanca descobre que os varões que a cercam tornam-se covardes, medíocres e

escravos tão logo ela assume uma atitude “masculina” (a única que lhe permite

romper a escravidão a que estão condenadas as de seu sexo).

Assume o papel do homem porque não tem outro remédio, uma vez que seu

marido renuncia a ele e alguém deve assumir o mando da casa. Em Blanca, a

virilidade não é apenas uma função que assume para preencher um claro, mas

também uma ambição de liberdade, uma maneira de lutar contra as misérias da

condição feminina.

Fica claro na obra a relação de dominação existente, sendo legitimada pelo

processo de violência simbólica. Blanca Sol se ocupava de compromissos sociais;

uma forma de manter-se sempre como uma figura pública e também de não assumir

a maternidade. Além de sentir rejeição por seu esposo, ainda tem de conviver com o

fato de seus filhos serem parecidos com ele.

Ela poderia ter sido, mas não foi, uma pessoa discreta que cumpre com suas

obrigações de mãe e mulher, em vez de tornar-se uma pessoa pública; mantendo-se

em silêncio e não se tornando vulnerável diante da sociedade. A esse respeito

Sennett faz a seguinte menção:

As obsessões com a individualidade são tentativas para se solucionar os enigmas do século passado pela negação. A intimidade é uma tentativa de se resolver o problema público negando que o problema exista. Como acontece com toda negação, isso só serviu para entrincheirar mais firmemente os aspectos mais destrutivos do passado. O século XIX ainda não terminou (Sennett, 1988, p. 44).

Ela desejava que todos soubessem como era a sua personalidade; o que

terminava por ocorrer através do convívio social. Era uma forma de “autenticar” ou

Page 139: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

139

“legitimar” a si mesma através de seus atributos; uma forma de compensar o vazio

que existia na vida pública de uma mulher do final do século XIX. Não havia um

limite entre a vida íntima (privada) e o restante que é transitável no espaço público;

para ela nada disso importava. Em sua vida, somente existia uma linha

extremamente tênue entre as questões de ordem pública e privada. Conforme

Sennett (1988, p. 412):

A intimidade é uma tirania, na vida diária… Não é a criação forçada, mas o aparecimento de uma crença num padrão de verdade para se medir as complexidades da realidade social. É a maneira de se enfrentar a sociedade em termos psicológicos. (1988, p. 412)

Assim buscamos abordar a representação do sujeito feminino e seus papéis

sociais, utilizando como suporte a obra peruana Blanca Sol de Mercedes Cabello de

Carbonera, publicada no ano de 1889. Para auxiliar na pesquisa, fizemos alusão a

alguns teóricos cujas escrituras puderam contribuir com o trabalho.

Page 140: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

140

6. CONCLUSÃO

O mito da mulher desempenha um papel considerável na

literatura; mas que importância tem na vida cotidiana?

Em que medida afeta os costumes individuais? Para

responder a essas perguntas seria necessário

determinar as relações que mantém com a realidade.

Simone de Beauvoir

O estudo foi centrado na obra de Mercedes Cabello de Carbonera; autora que

propôs um olhar mais acirrado nas questões sociais ocorridas na época. Intencionou

fazer uma literatura de denúncia, na qual expõe os vícios da sociedade peruana do

século dezenove. Carbonera, mulher empenhada e determinada, foi capaz de

dedicar sua vida à reivindicação de direitos a uma sociedade igualitária; onde

pudesse externar a sua escrita sem precisar ter de conviver com discriminações e

censuras sobre o conteúdo.

Nosso esforço nesse trabalho foi o de refletir sobre os modos de

representação do feminino e os papéis sociais dentro da obra literária Blanca Sol.

Para tanto, valemo-nos do recorte de algumas cenas do romance.

Seguimos, como princípios norteadores, o estudo de teóricos e estudiosos no

assunto para marcar as distinções pertinentes; a nosso ver são significativas e foram

muito interessantes para melhor explanação dos assuntos abordados.

Para fundamentar as ideias apresentadas e para sustentar e abordar o nosso

tema, sempre que julgamos necessário, fizemos referência a vários autores. Sempre

que possível, ao longo de nossa abordagem, fizemos referência e evidenciamos a

questão da representação da mulher; e, dentro do romance, o sujeito feminino

estava à frente das mulheres que viveram no século XIX. Sendo assim, lançamos o

olhar para a realidade fictícia da obra em questão, percebemos que as mulheres

Page 141: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

141

evoluem ou se transformam de acordo com as mudanças ocorridas na vida de cada

uma ou até mesmo da sociedade; há uma necessidade de constante adaptação à

natural evolução das situações e dos próprios cidadãos. E, acreditamos ter

contribuído para mais uma possibilidade de estudo e de abordagem de um tema tão

vasto, como é o da representação da mulher e os papéis sociais.

O projeto no romance BS de Carbonera se orienta em torno da formação da

nação burguesa, onde o mau exemplo feminino vivido pela protagonista da obra é

uma advertência; Cabello tem como base a união da raça branca com os valores

burgueses. A autora destaca, através do romance, os dois meios de trabalho mais

comuns que a mulher poderia seguir naquela época. É interessante observar como o

trabalho feminino se relaciona com a configuração do ser feminino e a necessidade

de haver uma mudança na educação tradicional.

Todo o discurso sobre a mulher e sua função na sociedade nos fez pensar

que a educação da mulher deveria ser um “espelho” daquela que recebem os

homens, ou seja, deveriam ser educadas para que fossem símbolo de civilidade de

toda nação, onde a civilidade pode ser entendida como sinônimo de ser educado de

forma igualitária.

O romance situa de forma irrefutável um determinado período histórico do

Peru; e diante dos relatos históricos é possível perceber como a visão androcêntrica

alicerçava as comunidades com ações dominantes e centradas no patriarcalismo.

Mas, outras perspectivas buscaram dar uma maior visibilidade ao tema,

questionando a concepção injusta que norteia as relações entre mulheres e homens

e sendo capaz de suscitar outras oportunidades e expectativas sobre o assunto.

No romance foram utilizadas estratégias narrativas que trouxeram um realce

especial durante a leitura, e permitiram que o silêncio da voz narrativa deixasse de

Page 142: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

142

fora da escritura os pensamentos, enunciações ou ações limites dos sujeitos–

agentes femininos, transformando a obra em um “agradável mergulho” no panorama

que ia sendo experimentado durante a leitura de cada capítulo.

A obra BS de Carbonera pode ser interpretada através de sua diversidade de

papéis sociais, fundamentando a perspectiva feminina representada através da

protagonista como alternativa de estruturação identitária continuada. A obra retrata

um mundo de pessoas cujas existências são adornadas de hipocrisia, miséria,

elevado grau de mesquinhez e de sonhos medíocres.

A sociedade de que tratou a autora é tão viciosa quanto aquela em que

Flaubert tanto fez questão de trazer à tona em suas escrituras, e menciona que:

Mas a sociedade não é talvez o infinito tecido de toda essa mesquinhez, dessas trapaças, dessas hipocrisias, dessas misérias? A humanidade pulula assim sob o globo, como um sujo punhado de chatos sobre um vasto torrão. (Flaubert, 1993, p. 89)

O romance de Carbonera foi muito criticado, no entanto teve o importante

papel de fornecer modelos de conduta, com o interesse de contribuir para uma

nação peruana moderna. Podemos citar como exemplo o caso de Josefina (a

costureira de Blanca), que, apesar de ser uma personagem construída sobre os

parâmetros românticos, é constituída como modelo feminino a seguir e se contrapõe

à protagonista. É uma ruptura com o romance romântico, é o retrato de um universo

onde a mediocridade vai aos poucos afogando a figura da heroína; as qualidades

morais e psicológicas são retiradas, dando vida à anti-heroína.

Carbonera representou o real captado através de sua ficção; operando, entre

os limites da criação e ficção, um discurso ficcional que permitisse comprovar as

relações existentes entre os papéis sociais e a ficção.

Page 143: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

143

Em seu universo ficcional, as representações integraram classes essenciais,

buscando através de suas enunciações configurar os constituintes tanto da

dominação como da resistência e, as relações de poder; visando influenciar através

do descortinamento das identidades. Ao final das reflexões que esbocei ao longo

dos capítulos, percebi que acabei me empenhando na função de escrever um texto

que não está livre de questionamentos. Foram levantadas perguntas para as quais

não se esboçou resposta, indagações cuja solução não pode ser uma só.

Em sociedades onde se fez presente o domínio do patriarcalismo, o passado

ainda não se encontra morto. E através da literatura obtemos suporte para provocar

inquietações e questionamentos sobre o presente, buscando romper com os (ainda

persistentes) abusos contra a mulher, que, às vezes, na sociedade atual, é colocada

nas sombras do esquecimento, fora do lugar de enunciação e como subalterna.

Page 144: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

144

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AMMANN, Safira Bezerra. Mulher: trabalha mais, ganha menos, tem fatias irrisórias

de poder. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, Ano XXIV, n. 55, nov. 1997.

ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ática, 1989.

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC

Editora,1981.

AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental.

São Paulo: Perspectiva, 2011.

BACHELARD, Gastón. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BARROS, Roque S.M.de. A ilustração brasileira e a ideia de universidade. São

Paulo USP/FFCL, 1959.

BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução de

Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira et. al. São Paulo: HUCITEC, 1997.

BARTHES, Roland. “Da ciência à literatura”. In: ______. O rumor da língua. Trad.

Mario Laranjeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

Page 145: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

145

__________. “Efeito de real”. In: ______. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira.

2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade. O pintor da vida moderna. Vols. 3 e

4. São Paulo. Companhia das Letras. 1991.

_________. As Flores do Mal. Trad. Introdução e Notas. Ivan Junqueira. Rio de

Janeiro. Nova Fronteira, 1985.

_________. O Poema de Haxixe. Int. Eurico Malizia. Trad. A.P. Marie Cambe. Rio de

Janeiro: Newton Compton Brasil Ltda. 1996.

BAUMAN, Zigmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 2005.

_________. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

_________. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro:

Zahar, 2003.

_________. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio

de Janeiro: Zahar, 1999.

BEAUVOIR, Simone. O Segundo sexo – fatos e mitos; tradução de Sérgio Milliet. 4

ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1980.

Page 146: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

146

_________. O Segundo Sexo – a experiência vivida; tradução de Sérgio Millet. 4 ed.

São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1980.

BELL, Daniel. O advento da sociedade pós-industrial: uma tentativa de previsão

social. São Paulo: Cultrix, 1973.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. I. Trad. Sérgio Rouanet. São Paulo:

Brasiliense, 1985.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo. Companhia

das Letras, 2011.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

_________. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

BRANDÃO, Roberto Carlos. Identidade e etnia: construção da pessoa e resistência

cultural. São Paulo: Brasiliense,1990.

BRANDÃO. Ruth Silviano. Mulher ao pé da letra: a personagem feminina na

literatura. 2. ed. revista. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 7, 10-11.

BROMBERT, Victor. Em louvor de anti-heróis. São Paulo: Ateliê, 2004.

Page 147: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

147

BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Unesp, 2002.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CABELLO DE CARBONERA, Mercedes. Blanca Sol. Edición Crítica de Oswald

Voysest, USA, Stockecero, 2007.

_________. Blanca Sol (Novela Social). Lima – Perú: Carlos Prince, 1894.

Disponível em: http://www.librodot.com. Acesso em 25 març. 2013.

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: estrategias para entrar e salir de la

modernidad. Buenos Ayres, Editorial Sudamerica, 1992.

CÂNDIDO, Antônio. O discurso e a cidade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.

_________. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 8ª edição.

São Paulo: T. A. Queiroz, Editor, Ltda., 2000.

_________. A Personagem de Ficção. 5 ed. São Paulo. Perspectiva: Scipione, 1976.

CARAZAS, Milagros. Mercedes Cabello, una escritora peruana del siglo XIX –

Escritura y pensamiento. Año 4, 8, 2011.

Page 148: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

148

CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17,

n. 49, Sept. / Dec. 2003.

CAMPBELL. Josef. O herói das mil faces. Tradução Adail Ubirajara Sobral, São

Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução

de Cleonice Paes Barreto Mourão, Consuelo Fontes Santiago. Belo Horizonte:

Editora UFMG, 2006.

COMTE, Auguste. Curso de Filosofia positiva; Discurso sobre o espírito positivo;

Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo; Catecismo positivista. Trad.

José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

CORNEJO POLAR, Antonio. O condor voa. Literatura e cultura latino-americanas.

/org. de Mario J. Valdés/. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.

DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. 9 ed. São Paulo:

Contexto, 2007.

DERRIDA, Jacques. Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

Page 149: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

149

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. “Teoria e método dos estudos feministas:

perspectiva histórica e hermenêutica do cotidiano”. In: COSTA, Albertina de Oliveira

e BRUSCHINI, Cristina (Orgs). Uma questão de gênero. São Paulo: Fundação

Carlos Chagas, 1992. p. 39-53.

_________. Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma

hermenêutica das diferenças. In: Estudos feministas. Vol.2, n.2, 1994. p. 373-382.

DOMINGUES, José Maurício. Criatividade Social, Subjetividade Coletiva e

Modernidade Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1999.

EAGLETON, Terry. Una introducción a la teoría literaria. Trad. de José Esteban

Calderón. México, FCE: 1988.

ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1963.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro:

Zahar, 1990.

EXPILL Y, Charles. Mulheres e costumes do Brasil. São Paulo: Nacional/INL, 1977.

FEIJÓ, Martin Cezar. O que é o herói. São Paulo: Brasiliense, 1984.

FOUCAULT, M. História da sexualidade – Vol.1: A vontade de saber. 11 ed.

Rio de Janeiro: Graal, 1988.

Page 150: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

150

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro, Editora Imago, 1997.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2002.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Trad: Fanny Wrobel. Rio de Janeiro:

Zahar, 1978.

GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Lisboa, Vega, 1995.

_________. “Fronteiras da Narrativa”. In: ___. Análise Estrutural da Narrativa. Rio de

Janeiro: Ed. Vozes, 1976.

GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole - o que a globalização está fazendo de

nós. Rio de Janeiro: Record, 2000.

_________. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

_________. A constituição da sociedade. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo:

Martins Fontes, 1989.

_________. As consequências da modernidade. Tradução: Raul Fiker. São Paulo:

Editora UNESP, 1991.

_________. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas

sociedades modernas. São Paulo: UNESP, 1993.

Page 151: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

151

GUARDIA, Sara Beatriz. Voces y cantos de las mujeres. Lima: CEMAL, 1999.

_________. Mujeres peruanas. El otro lado de la historia. 4. ed. Lima: Librería

Editorial Minerva, 2002.

GUATARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do desejo. 6 ed.

Petrópolis: Vozes, 2000.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 3ª ed., Rio de Janeiro:

DP&A, 2006.

HAHNER, June E. A mulher no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

_________. Emancipação do sexo feminino: a luta pelos direitos da mulher no Brasil

(1850-1940). Florianópolis: Ed. Mulheres, 2003.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.

ISER, Wolfgang. O Fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia

literária. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.

_________. O Ato da Leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes

Kreschmer São Paulo: Ed. 34, 1996.

Page 152: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

152

JABOUILLE. Victor. Iniciação à ciência dos mitos. Lisboa: Editorial Inquérito, Lda.,

1986.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária.

Tradução Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1979.

JOZEF, Bella. História da literatura hispano-americana. 4. ed. Rio de Janeiro:

Francisco Alves/UFRJ, 2005.

JOUVE, Vincent. A Leitura. Tradução de Brigitte Hervor. São Paulo: Edunesp, 2002.

LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaios sobre o hiperconsumismo.

Trad. Patrícia Xavier. 2ª reimp. Lisboa: Edições 70, 2010.

_________. & CHARLES, Sebastien. Os tempos hipermodernos. São Paulo,

Barcarolla, 2004.

LYOTARD, Jean-Francois. O pós-moderno. Tradução: Ricardo Correira Barbosa. 3ª

ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.

MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins

Fontes, 1995.

MOISÉS, Massaud. A análise literária. 10.ª ed. São Paulo: Cultrix, 1969.

Page 153: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

153

MANOEL, Ivan Aparecido. Igreja e educação feminina (1859-1919): uma fase do

conservadorismo. São Paulo: Unesp, 1995.

MOI, Toril. Teoría literaria feminista. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995.

MOITA LOPES, Luiz Paulo. Socioconstrucionismo: discurso e identidades sociais.

Campinas, SP: Mercado das Letras, 2003.

MONTIEL, Edgar. “A nova ordem simbólica: a diversidade cultural na era da

globalização”. In: SIDEKUM, Antônio (Org.). Alteridade e multiculturalismo. Ijuí: Ed.,

Unijuí, 2003.

MORIN, Edgar. O método III: o conhecimento do conhecimento. Mira-Sintra:

Publicações Europa-América, Biblioteca Universitária, 1986.

NAVARRO, MÁRCIA Hoppe. (org.) Rompendo o silêncio: gênero e literatura na

América Latina. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1995. p.38.

OLIVEIRA, Rosiska Darcy de. Elogio da Diferença: o feminino emergente. 3.ed. São

Paulo: Brasiliense, 1993.

PIERSON, Christopher. Prefácio. In: GIDDENS, A., PIERSON, C. Conversas com

Anthony Giddens: o sentido da modernidade. Tradução: Luiz Alberto Monjardim. Rio

de Janeiro: Editora FGV, 2000.

Page 154: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

154

PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: Fundação Editora da UNESP,

1998.

_________. (org.). História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras,

1993.

_________. Os excluídos da história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

PINHO, Wanderley. Salões e Damas do Segundo Império. São Paulo: Martins

Fontes, 1970.

PRIORE, Mary. A mulher na história do Brasil. São Paulo: Contexto, 1989.

RAGO. Margareth. “Epistemologia feminista, gênero e história”. In: PEDRO, Joana

Maria & GROSSI, Miriam Pillar. Masculino, feminino, plural: gênero na

interdisciplinaridade. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998. p. 21-41.

_________. Descobrindo historicamente o gênero. In: ______. Cadernos Pagu, 11,

Campinas, 1998. p. 89-98.

RAMA, Ángel. A Cidade das Letras. São Paulo: Brasiliense, 1985.

RIBEIRO, Arilda Inês Miranda. Mulheres educadas na colônia. In: LOPES, Eliane

(org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

Page 155: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

155

RICKETTS, Patricio Rey de Castro. La tragedia de Mercedes Cabello. Ínsula

Barataria, Nº 8, Año 6, 2008.

RUTHERFORD, Joseph. (org.). Identity: community, culture, difference. Londres:

Lawrence and Wishart, 1990.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Rearticulando gênero e classe social. In:

COSTA, A.O. ; BRUSCHINI, C. (Orgs.) Uma Questão de gênero. São Paulo; Rio de

Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.

_________. Violência de gênero: lugar da práxis na construção da subjetividadade.

Revista Lutas Sociais, São Paulo, n. 2, 1997.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma

sociologia das emergências. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org),

Conhecimento prudente para uma vida decente: “Um discurso sobre as ciências”

revisitado. Porto: Edições Afrontamento, 2003. p. 735-775.

_________. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade (5 ed.), São

Paulo: Cortez, 1999.

SANTOS, Myrian Sepúveda. Teoria da Memória, In: AVRITZER, L., DOMINGUES, J.

M. Teoria Social e Modernidade no Brasil. Belo Horizonte, UFMG, 2000.

Page 156: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

156

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise. Educação e Realidade, Porto

Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-100, jul./dez. 1995.

SEMPRINI, Andréa. Multiculturalismo. Bauru / São Paulo: EDUSC, 1999.

SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade.

Tradução: Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos

Culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

SOARES, Angélica. (Ex)Tensões: Adélia Prado, Helena Parente Cunha e Lya Luft

em prosa e verso. Rio de Janeiro: Viveiros de Castro, 2012.

_________. A paixão emancipatória; vozes femininas da liberação do erotismo na

poesia brasileira. Rio de Janeiro: Difel, 1999.

_________. Transparências da memória – estórias de opressão: diálogos com a

poesia brasileira contemporânea de autoria feminina. Santa Catarina. Editora

Mulheres, 2009.

SOIHET, Rachel. História das mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS,

Ronaldo (org.). Domínios da História. Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de

Janeiro: Campus, 1997.

Page 157: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

157

_________. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem

urbana 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

_________. Violência simbólica. Saberes masculinos e representações femininas.

In: Revista Estudos Feministas. Vol.5, Nº1, 1º semestre de 1997. Rio de Janeiro,

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS/UFRJ.

STAROBINSKI, Jean. 1789: os emblemas da razão. Trad. Maria Lúcia Machado.

São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

_________. As máscaras da civilização. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo:

Companhia das Letras, 2001.

SWAIN, Tania Navarro. Feminismo e representações sociais: a invenção das

mulheres nas revistas “femininas”. História: Questões & Debates. Curitiba: UFPR, n.

34, 2001.

VARGAS, Ismael Pinto. Sin perdón y sin olvido. Mercedes Cabello de Carbonera y

su mundo. Lima: Universidad de San Martín de Porres, 2003. (Serie Periodismo y

Literatura 499).

VOYSEST, Osvaldo. “Mercedes Cabello de Carbonera la cuestión del naturalismo

en el Perú: pautas hacia una interpretación de Blanca Sol". En Blanca Sol. Ed.

Osvaldo Voysest. Buenos Aires: Stockcero, 2007: vii-xxix.

Page 158: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

158

WILLIAMS, Raymond. Palavra - clave: Un vocabulario de la cultura y sociedad:

Buenos Aires Nueva Visión, 2003.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual.

In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade

e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 9. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro:

Vozes, 2009.

WOOLF, Virginia, Um teto todo seu, Trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1987.

TEIXEIRA, Vanessa Lopes. O Trabalho Feminino numa Agricultura Familiar em

Crise. Monografia. Niterói, Universidade Federal Fluminense, 1999.

TODOROV, Tzvtan. Memoria del mal, tentación del bien. Indagación sobre el siglo

XX. Barcelona: Península,Traducción de Manuel Serrat Crespo. Ediciones

Península, Barcelona, 2005.

Page 159: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

159

8. ANEXOS

Anexo 1 – O Prólogo

CABELLO DE CARBONERA, Mercedes. Blanca Sol (Novela Social). Lima – Perú:

Carlos Prince, 1894. Disponível em: http://www.librodot.com. Acesso em 25 março

2013.

Un prólogo que se ha hecho necesario

Siempre he creído que la novela social es de tanta o mayor importancia que la

novela pasional.

Estudiar y manifestar las imperfecciones, los defectos y vicios que en

sociedad son admitidos, sancionados, y con frecuencia objeto de admiración y de

estima, será sin duda mucho más benéfico que estudiar las pasiones y sus

consecuencias.

En el curso de ciertas pasiones, hay algo tan fatal, tan inconsciente e

irresponsable, como en el curso de una enfermedad, en la cual, conocimientos y

experiencias no son parte a salvar al que, más que dueño de sus impresiones, es

casi siempre, víctima de ellas. No sucede así en el desarrollo de ciertos vicios

sociales, como el lujo, la adulación, la vanidad, que son susceptibles de refrenarse,

de moralizarse, y quizá también estirparse, y a este fin dirige sus esfuerzos la novela

social.

Y la corrección será tan más fácil, cuanto que estos defectos no están

inveterados en nuestras costumbres, ni inoculados en transmisión hereditaria.

Pasaron ya los tiempos en que los cuentos inverosímiles y las fantasmagorías

quiméricas, servían de embeleso a las imaginaciones de los que buscaban en la

novela lo extraordinario y fantástico como deliciosa gulosina.

Page 160: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

160

Hoy se le pide al novelista cuadros vivos y naturales, y el arte de novelar, ha

venido a ser como la ciencia del anatómico: el novelista estudia el espírito del

hombre y el espítitu de las sociedades, el uno puesto al frente del otro, con la misma

exactitud que el médico, el cuerpo tendido e el anfiteatro. Y tan vivientes y humanas

han resultado las creaciones de la fantasía, que más de una vez Zola y Daudet en

Francia, Camilo Lemoinnier en Bélgica y Cambaceres en la Argentina, hanse visto

acusados, de haber trazado retratos cuyo parecido, el mundo entero reconocía, en

tanto que ellos no hicieron más que crear un tipo en el que imprimieron aquellos

vicios o defectos que se proponían manifestar.

Por más que la novela sea hoy obra de observación y de análisis, siempre la

estará vedado al novelista descorrer el velo de la vida particular, para exponer a las

miradas del mundo, los pliegues más ocultos de la conciencia de un indivíduo. Si la

novela estuviera condenada a copiar fielmente un modelo, sería necesario

proscribirla como arma personal odiosa.

No es culpa del novelista, como no lo es del pintor, si depués de haber creado

un tipo, tomando diversamente, ora sea lo más bello, ora lo más censurable que a su

vista se presenta, el público inclinado siempre a buscar semejanzas, las encuentra,

quizá sin razón alguna, con determinadas personalidades.

Los que buscan símiles como único objeto del intencionado estudio

sociológico del escritor, tuercen malamente los altísimos fines que la novela se

propone en estas nuestras modernas sociedades.

Ocultar lo imaginario bajo las aparencias de la vida real, es lo que constituye

todo el arte de la novela moderna.

Y puesto se trata de un trabajo meditado y no de un cuento inventado, precisa

también estudiar el determinismo hereditario, arraigado y agrandado con la

Page 161: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

161

educación y el mal ejemplo: precisa estudiar el medio ambiente en que viven y se

desarrollan aquellos vicios que debemos poner en relieve, con hechos basados en la

observación y la experiencia.

Y si es cierto, que este estudio y esta experiencia no podemos practicarlos

sino en la sociedad en que vivimos y para la que escribirmos, también es cierto, que

el novelista no ha menester copiar personajes determinados para que sus

creaciones, si han sido el resultado de la experiencia y la observación, sean todo un

proceso levantado, en el que el público debe ser juez de las faltas que a su vista se

le manifiestan.

Los novelistas, dice un gran crítico francés, ocupan en este momento el

primer puesto en la literatura moderna. Y esta preeminencia se les ha acordado, sin

duda, por ser ellos el lazo de unión entre la literatura y la nueva ciencia

experimental; ellos son llamados a presentar lo que pueda llamarse el proceso

humano, foleado y revisado, para que juzgue y pronuncie setencia el hombre

científico.

Ellos pueden servir a todas las ciencias que van a la investigación del ser

moral, puesto, que a más de estudiar sobre el cuerpo vivo el caprichoso curso de los

sentimientos, pueden también crear situaciones que respondan a todos los

movimientos del ánimo.

Hoy que luminosa y científicamente se trata de definir la posibilidad de la

irresponsabilidad individual en ciertas situaciones de la vida, la novela está llamada

a colaborar en la solución de los grandes problemas que la ciencia le presenta.

Quizá si ella llegará a deslindar lo que aun permanece indeciso y oscuro en ese

lejano horizonte en el que un día se resolverán cuestiones de higiene moral.

Page 162: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

162

Y así mientras el legislador se preocupa más de la corrección que jamás llega

a impedir el mal, el novelista se ocupará en manifestar, que sólo la educación y el

medio ambiente en que vive y se desarrolla el ser moral, deciden de la mentalidad

que forma el fondo de todas las acciones humanas.

El novelador puede presentarnos el mal, con todas sus consecuencias y

peligros y llegar a probarnos, que si la virtud es útil y necesaria, no es sólo por ser

bien, ni porque un día dará resultados finales que se traducirám en premios y

castigos allá en la vida ultratumba, sino más bien, porque la moral social está

basada en lo verdadero, lo bueno y lo bello, y que el hombre como parte integrante

de la Humanidad, debe vivir para el altísimo fin de ser el colaborador que

colectivamente contribuya al perfeccionamiento de ella.

Y el novelista no sólo estudia al hombre tal como es: hace más, nos los

presenta tal cual debe ser. Por eso, como dice un gran pensador americano: «El arte

va más allá de la ciencia. Ésta ve las cosas tales cuales son, el arte las ve además

como deben ser. La ciencia se dirige particularmente al espíritu; el arte sobre todo al

corazón.»

Y puesto que de los afectos más que las ideas proviene en el fondo la

conducta humana, resulta que la finalidad del arte es superior a la de la ciencia.

Con tan bella definición, vemos manifiestamente que la novela no sólo debe

limitarse a la copia de la vida sino además a la idealización del bien.

Y aquí llega la tan debatida cuestión del naturalismo, y la acusación dirigida a

esta escuela de llegar a la nota pornográfica, con lo cual dicen parece no haberse

propuesto sino la descripción, y también muchas veces, el embellecimiento del mal.

No es pues esa tendencia la que debe dominar a los novelistas

sudameridanos, tanto más alejados de ella cuanto que, si aquí en estas jóvenes

Page 163: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

163

sociedades, fuéramos a escribir una novela completamente al estilo zolaniano, lejos

de escribir una obra calcada sobre la naturaleza, nos veríamos precisados a forjar

una concepción imaginaria sin aplicación práctica en nuestras costrubres. Si para

dar provechosas enseñanzas la novela ha de ser copia de la vida, no haríamos más

que tornarnos en malos imitadores, copiando lo que en países extraños al nuestro

puede que sea de alguna utilidad, quedando aqui en esta joven sociedad,

completamente inútil, esto cuando no fuera profundamente perjudicial.

Cumple es cierto al escritor, en obras de mera recreación literaria, consultar el

gusto de la inmensa mayoría de los lectores, marcadamente pronunciado a favor de

ciertas lecturas un tanto picantes y aparentemente ligeras, lo cual se manifiesta en el

desprecio o la indiferencia con que reciben las obras serias y profundamente

moralizadoras.

Hoy se exige que la moral sea alegre, festiva sin consentirle el expirarnos

ideas tristes, ni mucho menos llevarnos a la meditación y a la reflexión.

Es así como la novela moderna con su argumento sencillo y sin enredo

alguno, con sus cuadros siempre naturales, tocando muchas veces hasta la

trivialidad; pero que tienen por mira sino moralizar, cuando menos manifestar el mal,

ha llegado a ser como esas medicinas que las aceptamos tan sólo por tener la

aparencia del manjar de nuestro gusto.

Será necesario pues en adelante dividir a los novelistas en dos categorías,

colocando a un lado a los que, como decía Cervantes, escirben papeles para

entretener doncelas, y a los que pueden hacer de la novela un medio de

investigación y de estudio, en que el arte preste su poderoso concurso a las ciencias

que miran al hombre, desligándolo de añejas tradiciones y absurdas

preocupaciones.

Page 164: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

164

El Arte se ha ennoblecido, su misión no es ya cantar la grandiosidad de las

catedrales góticas ni llorar sobre la fe perdida, hoy tal vez para siempre; y en vez de

describirnos los horrores de aquel Infierno imaginario, describiranos el verdadero

Infierno, que está en el desordenado curso de las pasiones. Nuevos ideales se le

presentan a su vista; él puede ser colaborador de la Ciencia en la sublime misión de

procurarle al hombre la Redención que lo libre de la ignorancia, y el Paraíso que

será la posesión de la Verdad científica.

Mercedes Cabello de Carbonera

Page 165: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

165

Anexo 2 – Iconografia

Mercedes Cabello Llosa em sua chegada a Lima.

Page 166: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

166

Anexo 3 – Iconografia

Mercedes Cabello de Carbonera no esplendor de sua juventude.

Page 167: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

167

Anexo 4 – Iconografia

Mercedes Cabello de Carbonera, 1890.

Page 168: Universidade Federal do Rio de Janeiro OS PAPÉIS SOCIAIS ...avataresantenados.com.br/formsnl/claudiarodriguesmestrado.pdf · A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele

168

Anexo 5 – Iconografia

Capa do romance ao ser publicado em formato de livro (não mais em folhetim).