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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA Mouzinho de Albuquerque e Ngungunhana: um estudo de caso do processo de construção de heróis nacionais em Portugal e Moçambique Isabel de Souza Lima Junqueira Barreto Rio de Janeiro Novembro de 2007 Mouzinho de Albuquerque e Ngungunhana: um estudo de caso do processo de construção de heróis nacionais em Portugal e Moçambique

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA

Mouzinho de Albuquerque e Ngungunhana: um estudo de caso do processo de construção de

heróis nacionais em Portugal e Moçambique

Isabel de Souza Lima Junqueira Barreto

Rio de Janeiro

Novembro de 2007

Mouzinho de Albuquerque e Ngungunhana: um estudo de caso do processo de construção de

heróis nacionais em Portugal e Moçambique

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II

Isabel de Souza Lima Junqueira Barreto

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de

Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da

Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte

dos requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em Sociologia (Concentração em

Antropologia).

Orientador: Peter Henry Fry

Rio de Janeiro

Novembro de 2007

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III

Mouzinho de Albuquerque e Ngungunhana: um estudo de caso do processo de construção de

heróis nacionais em Portugal e Moçambique

Isabel de Souza Lima Junqueira Barreto

Orientador: Peter Henry Fry

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e

Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de

Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia

(Concentração em Antropologia).

Aprovada por:

Presidente, Professor Peter Henry Fry (IFCS, UFRJ)

Professora Yvonne Maggie (IFCS, UFRJ)

Professor José Luis Cabaço (FFLCH, USP)

Rio de Janeiro

Novembro 2007

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IV

Barreto, Isabel de Souza Lima Junqueira

Mouzinho de Albuquerque e Ngungunhana: um estudo de caso do processo de construção de

heróis nacionais em Portugal e Moçambique\ Isabel de Souza Lima Junqueira Barreto. Rio de

Janeiro: UFRJ, IFCS, 2007

xi. 200 f.

Orientador: Peter Henry Fry

Dissertação. UFRJ. IFCS. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

Referências Bibliográficas: 200 f.

1. África, 2. Ngungunhana, 3. Mouzinho de Albuquerque, 4. Cerimônia de

Degradação, 5. Portugal, I.Fry, Peter Henry, II.Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em

Sociologia e Antropologia, III. Mouzinho de Albuquerque e Ngungunhana: um estudo

de caso do processo de construção de heróis nacionais em Portugal e Moçambique

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V

Resumo

Mouzinho de Albuquerque e Ngungunhana: um estudo de caso do processo de construção de

heróis nacionais em Portugal e Moçambique

Isabel de Souza Lima Junqueira Barreto

Orientador: Peter Henry Fry

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia

e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de

Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia

(Concentração em Antropologia).

Em 1895 o oficial português capitão Joaquim Mouzinho de Albuquerque venceu o

exército do imperador de Gaza, Ngungunhana, na batalha de Chaimite no sul de

Moçambique. Ngungunhana foi capturado, levado a Lisboa, em seguida exilado para as Ilhas

dos Açores onde foi batizado e morreu em 1906. Em 1985, para celebrar o décimo aniversário

da Independência de Moçambique, os restos mortais de Ngungunhana voltaram à capital

Maputo onde foram enterrados com honras de herói nacional. Através de biografias sobre

Ngungunhana e o folheto produzido pela Frente para a Libertação de Moçambique (Frelimo)

analisa-se a captura e exílio como fases de uma cerimônia de degradação no conceito de

Harold Garfinkel, e o retorno dos restos mortais como um ritual de celebração heróica da

resistência dos Moçambicanos no contexto de uma guerra civil que ameaçava dividir e

destruir a nação Moçambicana na sua oposição ao apartheid da África do Sul.

Com relação à Mouzinho de Albuquerque, ao analisar os discursos de três de seus

biógrafos, que centralizam suas narrativas de cunho exaltador em sua trajetória pública,

procura-se mostrar que está-se diante de um outsider no sentido empregado por Norbert Elias,

que tendo sido criado num ambiente familiar onde prevaleciam idéias absolutistas, sucumbe

ao choque entre sua visão de mundo e a ordem política do fim do século XIX, onde a

monarquia constitucional convive com uma classe política que a apóia e legitima. Este choque

o conduz ao suicídio em 1902. Cinqüenta anos depois da sua morte, Mouzinho é lembrado

pelo Estado português no afã de renovar a confiança no seu papel imperial, mas mesmo

depois da revolução dos cravos e a independência das colônias portuguesas, Mouzinho

continua ícone dos valores considerados adequados ao soldado honrado.

Palavras-chave- Ngungunhana, Mouzinho de Albuquerque, Cerimônia de Degradação,

biografias, heróis nacionais, Portugal, Moçambique

Rio de Janeiro

Novembro 2007

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VI

Abstract

Mouzinho de Albuquerque and Ngungunhana: a case study of the process of construction of

national heroes in Portugal and Mozambique

Isabel de Souza Lima Junqueira Barreto

Tutor: Peter Henry Fry

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade

Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em Sociologia (Concentração em Antropologia).

In 1895 the Portuguese army officer Captain Joaquim Mouzinho de Albuquerque

conquered the army of the Emperor of Gaza, Ngungunhana, at the battle of Chaimite in

southern Mozambique. Ngungunhana was captured, taken to Lisbon, then exiled in the

Azores, where He was baptized and died in 1906. In 1985, as part of the celebrations of the

tenth anniversary of the Independence of Mozambique, his mortal remains were returned to

Maputo where they were interred with honours of national hero. Through an analysis of

biographies of Ngungunhana and a brochure produced by the Front for the Liberation of

Mozambique (Frelimo) the dissertation shows how Ngungunhana passed through what Harold

Garfinkel termed a “degradation ceremony” from his defeat to his death. The return of his

mortal remains is analysed as a ritual for the celebration of his status as national hero of

reistance to Portuguese domination in the context of a civil war which threatened to divide

and destroy the Mozambican nation in its opposition to Apartheid in neighbouring South

Africa.

Three biographies of Mouzinho de Albuquerque concentrate on exalting his career as

national hero. They reveal that he was also an outsider (Elias) who was brought up in a

family where absolutist values prevailed but that this world view entered in shock with the

political order at the end of the 19th

century when a constitutional monarchy operated side by

side with politicians who supported and legitimated it. This shock is believed to have led to

his suicide in 1902. Fifty years after his death Mouzinho was again remembered by the

Portuguese state as part of a strategy to renew confidence in Portugal’s imperial mission, but

even after the Revolution of the Carnations and the independence of the Portuguese colonies,

Mouzinho continued to be revered as icon of values considered correct in an honoured

soldier.

Key words: Mouzinho de Albuquerque, Ngungunhana, Degradation Ceremony, biographies,

national heroes, Portugal, Mozambique.

Rio de Janeiro

Novembro 2007

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VII

Dedicatória

Para meu marido Eduardo, por ter estado sempre do meu lado, me apoiando, me socorrendo

nos momentos mais difíceis, sempre pronto a me ouvir, a me dizer palavras de incentivo e conforto

nos momentos em que eu quase sucumbi ao desespero. A você, meu porto seguro, meu muito obrigada

com todo o meu amor.

Para meu orientador Peter Henry Fry, porque se não fosse por ele, pela sua tranqüilidade e

paciência, essa dissertação jamais seria o que é.

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VIII

Agradecimentos

Primeiramente devo agradecer ao Real Gabinete Português de Leitura. Essa dissertação só

pôde ser escrita porque há nessa instituição um numeroso acervo de fontes que engloba o colonialismo

português em suas antigas colônias africanas. Desse acervo, fazem parte importantes documentos

produzidos pelas autoridades coloniais, inclusive as que atuaram em Moçambique no final do século

XIX.

Há pessoas muito importantes que contribuíram para que essa dissertação se tornasse uma

realidade. Todas elas, cada uma a seu modo, me ajudaram a ser o que eu sou e estar onde eu estou.

Assim sendo, agradeço imensamente a tudo o que fizeram e fazem por mim.

À minha mãe, Maria Zilma de Souza Lima, por ter sempre torcido por mim, me apoiado nas

minhas escolhas, por ter me passado o sentimento de perseverança para nunca desistir dos meus

objetivos agradeço com todo o meu amor, carinho e gratidão. Não posso deixar também de agradecer

ao companheiro dela, Frederico, por sempre torcer por mim e me ajudar sempre que eu precisei.

Ao meu tio, Antonio Carlos de Souza Lima, antropólogo, que é para mim como um

paradigma, uma das pessoas mais importantes em todo o processo que culminou nessa dissertação, e

por quem tenho uma grande admiração. Não há palavras para expressar o quanto eu o agradeço.

Ao meu chefe na Multirio, Empresa Municipal de Multimeios, Rogério, também antropólogo,

por ter me apoiado, me dado todo o suporte necessário para que eu pudesse cursar as disciplinas e

começar a escrever essa dissertação.

Ao José Eduardo, meu psicanalista, que se tornou uma das pessoas mais importantes da minha

vida, que me ajudou a me encontrar comigo mesma, a aceitar quem eu sou, a encontrar o caminho pelo

qual eu deveria seguir, enfim, a ser a pessoa que eu sou hoje. Sem a ajuda dele não sei onde eu estaria.

Ao meu orientador Peter Fry de quem eu jamais vou esquecer. Uma das pessoas mais

fantásticas que eu já conheci, por tudo. Por aceitar ser meu orientador, por ter me deixado sempre

muito à vontade, o que fez com que eu deixasse de lado o formalismo que usualmente caracteriza

minha relação com meus professores e pudesse ser eu mesma. Por ter me compreendido e acreditado

em mim quando poucos meses depois do ingresso no mestrado eu comecei a trabalhar, pela orientação

impecável sempre lendo e comentando exaustivamente todos os meus escritos, pelas nossas reuniões

férteis de idéias e que me deram uma direção a seguir.

Aos meus avós Clarice, Zilma e Augusto Carlos, com quem doces lembranças encontram–se

cristalizadas no tempo.

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IX

Sumário

Capa I

Folha de Rosto II

Folha de Aprovação III

Ficha Catalográfica IV

Resumo V

Abstract VI

Dedicatória VII

Agradecimentos VIII

Sumário IX

Introdução–a pesquisa, fontes citadas e consultadas e quadro teórico 01

Capítulo 1-A batalha de Chaimite: prisão e exílio de Ngungunhana 12

1.1– Introdução 12

1.2- As relações entre o Império de Gaza e os europeus durante o governo de Ngungunhana 16

1.3-Os colonizadores: disputas entre a Grã–Bretanha e Portugal: as décadas de 1860 e 1870 19

1.4 - A batalha de Chaimite: a captura e o exílio de Ngungunhana 24

1.5-Na seqüência de Chaimite: a despedida de Moçambique e a vida no exílio 46

1.6-Análise iconográfica: a representação imagética da conquista 51

Capitulo 2-Mouzinho de Albuquerque em três tempos 58

2.1-Considerações teóricas sobre biografias 58

2.2-As celebrações oficiais pelo centenário do nascimento de Mouzinho de Albuquerque (1955-1958):

reelaborando um herói nacional 62

2.3–O significado do império para o Estado português na primeira metade do século XX 69

2.4-Entre os modelos clássico e vitoriano: a construção da representação de um herói nas biografias de

Joaquim Mouzinho de Albuquerque 74

2.5– Mouzinho de Albuquerque pós–colonial: a representação do oficial após as guerras de

independência das colônias africanas 87

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X

Capítulo 3- Ngungunhana: construção de um herói nacional 104

3.1 - As biografias de Ngungunhana: a construção do herói 104

por uma portuguesa e pela Frelimo

3.2 - A construção do herói nacional Ngungunhana por uma representante 104

da antiga metrópole

3.3 - O retorno dos restos mortais de Ngungunhana e o folheto da FRELIMO 109

Conclusão 140

Bibliografia e fontes 141

Anexo 1 - Livro do Centenário de Mouzinho de Albuquerque 145

Anexo 2 - Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário de 176

Mouzinho de Albuquerque

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Introdução – a pesquisa, fontes citadas e consultadas e quadro teórico

Esta dissertação tem como tema a conquista do sul de Moçambique por Portugal no

ano de 1895 a partir da prisão do rei do estado de Gaza, Ngungunhana, pelo oficial português

Joaquim Mouzinho de Albuquerque. Ambos podem ser entendidos como dois dos

personagens centrais para a compreensão do colonialismo português moderno.

O estudo das sociedades africanas tem se intensificado no Brasil nos últimos anos. No

que se refere ao campo da antropologia os trabalhos de Omar Ribeiro Thomaz, Lorenzo

Macagno, Cristiano Matsinhe (este moçambicano, mas que cursou o ensino superior em nível

de graduação e pós-graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Peter Fry entre

outros sobre Moçambique são alguns exemplos. Este Estado africano tem sido um campo

privilegiado de estudos.

Esta dissertação procura dar uma contribuição à reflexão antropológica que pensa o

colonialismo, sobretudo às suas análises das estruturas de dominação e seus desdobramentos.

Tendo lido os autores citados e outros autores que se dedicam ao tema do colonialismo

português como Valentim Alexandre (1998 e 2000), Francisco Bethencourt (1998), Malin

Newitt (1995), René Pélissier (2000) me decidi como recorte temático pela conquista do sul

do atual Estado de Moçambique, mais precisamente do Estado de Gaza em 1895. Como

demonstra Macagno (1996) foi em Moçambique que atuaram os criadores da legislação do

colonialismo português moderno que inspirou a legislação posta em prática pelo regime

salazarista a partir de 1930.

O trabalho de campo foi dividido em três fases. A primeira delas foi um levantamento

de fontes. A realização de pesquisas sobre essa temática no Brasil é difícil. As dificuldades

começam com o número limitado de fontes. Este fator, por si só limita muito as possibilidades

de pesquisa. Outra dificuldade diz respeito às instituições onde este tipo de pesquisa pode ser

feita. Na cidade do Rio de Janeiro, das instituições de referência onde são feitas pesquisas

antropológicas e/ou históricas, apenas duas contam com fontes acerca do colonialismo

português, cuja temática são as antigas colônias africanas: a Biblioteca do Centro de Estudos

Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes (de agora em diante CEAA) e o Real

Gabinete Português de Leitura (de agora em diante RGPL), onde se encontra um rico acervo

referente ao colonialismo português na África. Nele encontram–se obras de administradores

coloniais do século XIX, membros da chamada “Geração de 1895”, Antonio Enes,

Comissário Régio em Moçambique de 1893 a 1895, e de Joaquim Augusto Mouzinho de

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Albuquerque, entre outros. Sobre este último foi encontrada uma vasta produção biográfica.

Elegi, então esta instituição como campo privilegiado de pesquisa.

No acervo da Biblioteca do CEAA também há fontes, embora o acervo seja menor do

que o do RGPL, que se referem a Moçambique e a história do colonialismo português.

Entretanto, devido ao tema da pesquisa, e ao recorte dado, o foco maior foi dado às fontes

disponíveis no RGPL.

Dentre as dezesseis obras que selecionei, há cinco fontes que tratam especificamente

do oficial português. Um último fator, ligado ao anterior, é meu interesse em mostrar

diferentes visões sobre Mouzinho de Albuquerque. Privilegiei então a escolha de três

biografias de autores diferentes. Além dessas foram selecionadas também duas obras

publicadas por ocasião das comemorações do centenário de nascimento de Joaquim

Mouzinho de Albuquerque. Passarei agora a uma breve apresentação das obras pesquisadas.

1. Capitão Gomes da Costa, Gaza 1897-1898, Lisboa, (1898) – O autor, que participou

da conquista de Gaza, reconstitui nesta obra a partir do relato de informantes e de

observação direta os costumes das populações locais, sobretudo dos nguni. Descreve a

história do reino de Gaza desde a chegada de um grupo deste povo, que fazia parte da

diáspora zulu, liderados por Sochangana, que mais tarde viria adotar o nome

Manicuse, as suas instituições, a visão que tinham de outras populações locais e a

forma como conquistou as mesmas. O autor, que foi Governador do Distrito de

Lourenço Marques, relata ainda, as relações difíceis de Sochangana com as

autoridades portuguesas. São descritas também as relações não menos difíceis entre

aquelas e os descendentes de Sochangana1, seus filhos Mawewe e Muzila e seu neto

Ngungunhana, que acabaram levando a prisão do último na aldeia de Chaimite por

Mouzinho de Albuquerque em 28 de dezembro de 1895. São relatadas também as

disputas de poder entre estes dois de seus filhos e a forma como seu neto chegou ao

poder, mandando matar um de seus irmãos.

2. Antonio Enes, Moçambique, 1893, Lisboa, (1946) – Único membro não militar entre

os portugueses que tiveram parte na conquista do estado de Gaza. Era jornalista de

1 Alguns nomes de descendentes de Sochangana, principalmente de seus filhos, devem ser aqui listados,

pois, irão aparecer recorrentemente ao longo do capítulo 2. Além de Muzila e Mawewe, são filhos do primeiro

rei de Gaza Cuio, Quêto, Piçane, Bucáio, Inguiuza, Duia, Ventangue, Mabinguana, Monomo, Mossuto, Ganga-

Ganga, Mutanice, Séono, Conzó, Majoebane, Tacuana, Messaca. São filhos de Muzila, além de Ngungunhana e

Mafemane Impicaniço, Connon-Connon, Mofambane, Pungo, Metataxia, Cafaquezo, Schope-Schope,

Muvembêa, Manjobo e Umbeto.

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formação. Foi nomeado Comissário Régio em Moçambique em 1891, escreve este

relatório onde expõe suas idéias sobre a montagem de uma administração colonial

eficiente que possibilitasse a Portugal sair da dificuldade econômica na qual se

encontrava. Neste relatório, Enes expõe suas idéias acerca do trabalho como meio para

civilizar as populações locais. Além disso, escreve sobre a implantação de um sistema

educacional, que seria implantado com a fundação de missões religiosas, que deveriam

ensinar–lhes os valores cristãos para que as populações locais fossem adotando

progressivamente o estilo de vida ocidental. As missões deveriam ainda, na opinião do

autor, ensinar as populações locais a adorar a bandeira portuguesa. Segundo René

Pélissier, é o primeiro clássico da administração portuguesa na África, “pedra angular

do colonialismo português” (Pélissier, 2000: 522). É essa obra que irá influenciar as

ações tomadas pelos administradores coloniais daí em diante e que levou o grupo que

atuou em Moçambique entre no período da conquista como “Geração de 1895”

(Duffy, 1963) ou “Escola de Enes” (Manuela Lucas apud Thomaz, 2002).

3. Antonio Enes, As guerras de África em 1895, Lisboa, (1945) – Livro no qual Antonio

Enes relata suas impressões das guerras de 1895, que culminaram com a prisão e o

exílio de Ngungunhana para Portugal. O relato do ex Comissário Régio mostra a

situação das autoridades portuguesas e suas dificuldades de gestão, numa colônia onde

tinham o controle formal apenas sobre uma fração litorânea, as dificuldades para

ganhar a confiança das populações locais vassalas de Ngungunhana, bem como da

lenta deteriorização das suas relações com o rei, até a batalha de Marracuene (2 de

Fevereiro de 1895). Esta foi a primeira das quatro batalhas que culminaram com a

prisão do rei em Chaimite.

4. Livro do Centenário de Mouzinho de Albuquerque 1855–1955, Lisboa, 1955 – Trata-

se de uma coletânea de depoimentos divididos em duas partes: a primeira consta de

depoimentos de época de pessoas próximas a Joaquim Mouzinho de Albuquerque,

entre elas pessoas que estiveram com ele em Moçambique, como Antonio Enes, e

oficiais do exército português. Há também depoimento do próprio rei de Portugal, D.

Carlos I. Uma segunda parte contém depoimentos de autoridades do governo

português da década de 1950. Visa recuperar a memória de Mouzinho de Albuquerque

num contexto de exaltação do Império Português visto ter sido a prisão de

Ngungunhana o evento que possibilitou a montagem da administração colonial

aperfeiçoada durante a ditadura salazarista.

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5. Amadeu Cunha, Mouzinho o pensamento, a ação, a época, Agência Geral das

Colônias, Lisboa, 1956 – Autor de outras três biografias do oficial português2. Embora

tenha todos essa obras publicadas sobre o oficial, não foi possível durante a consulta

do material e até mesmo da internet conseguir informações sobre o autor. Biografia de

Mouzinho de Albuquerque. Escrita em meio às comemorações de seu centenário.

Período que também é o ápice do colonialismo português durante o século XX. De

tom exaltador da figura de seu biografado retrata, sobretudo, a sua vida pública dando

destaque ao seu papel nas “guerras de pacificação” das populações locais,

principalmente à prisão de Ngungunhana em Chaimite, em 1895. Na passagem da

biografia que conta a prisão do rei de Gaza, o autor reproduz a passagem do relatório

escrito por Mouzinho de Albuquerque sobre a prisão, que se encontra publicado no

Livro das Campanhas publicado em 1935. Ao reproduzir esse trecho Amadeu Cunha

insere comentários de tom exaltador. Além do período em que o oficial serviu em

Moçambique são abordados brevemente a história da família Mouzinho de

Albuquerque e período em que serviu na Índia. A obra se detém ainda na relação

conturbada de Mouzinho de Albuquerque enquanto era Governador Geral com as

autoridades da metrópole, o que levou ao seu pedido de demissão e ao período em que

serviu como tutor do Príncipe Luís Felipe, período no qual, precisou lidar com a classe

política. O autor termina a biografia com uma análise das razões que teriam levado ao

seu suicídio em 1902.

6. Mouzinho de Albuquerque. Livro das Campanhas, Moçambique 1896-1898, Agência

Geral das Colônias, Lisboa, 1935, 2 v. – Essa obra de dois volumes reúne relatórios

diversos escritos por Mouzinho de Albuquerque no período em que exerceu o cargo de

Governador Geral de Moçambique. No livro I estão os relatórios sobre a prisão de

Ngungunhana em Chaimite, da campanha contra os Namarrais entre 22 de Outubro de

1896 a 1897 e a campanha contra o Maguiguana, em Gaza em 1897. O livro II é

dividido em quatro grandes temas: a província de Moçambique, exploração e

colonização, administração e riqueza pública.

7. Comissão Nacional Para as Comemorações do Nascimento de Mouzinho de

Albuquerque, Ecos do Centenário de Mouzinho, Lisboa, 1958 – Este livro é uma

2 As demais biografias de Joaquim Mouzinho de Albuquerque escritas por Amadeu Cunha intitulam–se:

Mouzinho (1935), Mouzinho: a sua obra e a sua época (1944), Mouzinho: grande capitão de África (1935), além

de um volume da Coleção intitulada Pelo Império (s/d) que se chama Mouzinho.

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coletânea de discursos feitos por autoridades e oficiais portugueses em Portugal e nas

colônias, inclusive em Moçambique, durante o ano de encerramento das

comemorações do nascimento de Mouzinho de Albuquerque. Esse livro tem como

objetivo mais do que enaltecer a personalidade de Mouzinho de Albuquerque enaltecer

o próprio império português numa época em que se iniciam em diversas partes da

África os movimentos de contestação ao colonialismo, que levariam às guerras de

independência. Sendo a década de 1950 o período em que as medidas administrativas

defendidas pelo oficial foram postas em prática, as comemorações pelo centenário

possibilitaram essa dupla celebração. O Presidente da comissão para a inauguração de

seu centenário relembra a admiração pela figura do oficial que foi para os portugueses

exemplo de valor, lealdade e mérito, nobreza e valentia. No livro encontra-se além dos

discursos, uma reprodução da carta escrita por Mouzinho de Albuquerque ao Príncipe

Luís Felipe em 1900 ou 1901, na qual expõe suas principais idéias. Além da carta

conta com uma introdução intitulada “O patriótico significado das comemorações. Os

discursos recuperam a figura do oficial recolocando–o numa posição de herói

nacional. Como do livro constam diversos discursos, selecionei além da carta e da

introdução já citadas os discursos do Presidente da comissão e pelo Subchefe do

Estado Maior em Moçambique.

8. Henri Junod. Usos e costumes dos bantos, Lourenço Marques: Imprensa Nacional de

Moçambique, 1974/75, vol. I – Neste livro, O primeiro de dois volumes, o missionário

suíço Henri Junod relata a cultura dos povos da região sul de Moçambique. Tendo

vivido alguns anos entre eles, este missionário descreve aqui a organização das tribos

tsonga, a vida dos homens e mulheres do nascimento até a morte, a vida em família e a

instituição da chefia. Esta última em especial tem um caráter importante, pois, mostra

o valor simbólico desta instituição para os tsonga do sul de Moçambique, mas fazendo

observações quanto aos costumes que a cercam entre os nguni.

9. Partido Frelimo. Ngungunhane herói da resistência colonial, Maputo, 1983 – Panfleto

produzido em 1983 por ocasião da volta dos ossos de Ngungunhana para solo

moçambicano em meio às comemorações pelo aniversário da independência. A década

de 1980 em si foi um período difícil para Moçambique, visto que após a

independência em 1975, o país esteve durante toda essa década numa guerra civil que

se estenderia até 1992. Este panfleto exalta a figura do rei que tem a sua memória

recuperada como um herói nacional. Para tanto contém um resumo da biografia do rei

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e reconstitui a organização militar do reino de Gaza no fim do século XIX. Contém

fotos de Ngungunhana, no exílio; de sua família, da capital Mandhlakazi, de seus

guerreiros e do momento de sua exibição como prisioneiro a oficiais portugueses e

representantes estrangeiros que se encontravam em Lourenço Marques.

10. Departamento de História da Universidade Eduardo Mondlane, História de

Moçambique, Maputo, vol. II, 1988 – Livro didático de autoria de professores

simpáticos ao projeto de governo socialista da Frelimo. A passagem que se refere à

conquista do reino de Gaza é pequena. Há referências apenas a prisão de

Ngungunhana em Chaimite.

11. Miguel Sanches de Baêna. Mouzinho de Albuquerque a última batalha, Lisboa, 1990 –

Outra biografia de Mouzinho de Albuquerque escrita num contexto pós-colonial. É

composta de duas partes: na primeira o autor pretende mostrar aspectos pouco

explorados da personalidade de Mouzinho, sobretudo seu pensamento e ação diante de

uma situação inédita, o exercício do cargo de Governador Geral de Moçambique de

1896 a 1898. Na segunda parte, o autor reúne uma antologia de notícias publicadas na

imprensa da época sobre Mouzinho de Albuquerque, a prisão de Ngungunhana, a

viagem e a chegada deste a Portugal.

12. Malin Newitt. História de Moçambique, Lisboa, 1995 – Neste livro o historiador

inglês estudioso do colonialismo português na África faz uma análise da presença

portuguesa em Moçambique do século XVI até a independência. Ao analisar o século

XIX, mostra como a presença portuguesa passa de uma tênue ocupação litorânea

caracterizada pela exploração econômica feita por companhias comerciais

caracterizadas pelo capital privado a uma ação mais efetiva de autoridades

governamentais portuguesas de origem militar. Demonstra para isso as disputas

políticas entre Portugal e a Inglaterra pela posse do território moçambicano, em meio a

isso as disputas entre representantes de ambos os países para ganharem a confiança e

exercerem influência sobre o Ngungunhana.

13. Ungulane Ba Ka Khosa. Ualalapi, Lisboa, 1998 – Segundo informação do próprio

livro, o autor nascido em 1957 em Inhaminga, Sofala. Ungulane Ba Ka Khosa é seu

nome tsonga, sendo seu nome assimilado Francisco Esaú Cossa. Freqüentou faculdade

de Educação, tendo como área de concentração História e Geografia. Foi co-fundador

de uma revista chamada Charrua. Com Ualalapi recebeu o Grande Prêmio da Ficção

Narrativa de Moçambique em 1990. Além desse livro é autor de outras obras de

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ficção. Neste livro de contos, o autor Procura mostrar a face tirânica de Ngungunhana,

fazendo assim o caminho oposto dos escritos de inspiração marxista e nacionalista do

partido Frelimo. Cada um de seus contos procura mostrar uma personalidade cruel e

apegada ao poder. O livro é, assim uma desconstrução de Ngungunhana e de Samora

Machel, o primeiro presidente moçambicano. No conto que dá nome ao livro, o autor

retrata como teria sido a trama cujo desfecho foi o assassinato do irmão de

Ngungunhana, Mafemane, para que este não pudesse usurpar–lhe futuramente o posto

de rei. Em outro conto, o autor reconstitui como teria sido o último discurso de do rei,

já capturado e embarcando para o exílio, diante dos nguni e de populações por ele

submetidas.

14. Maria da Conceição Vilhena. Gungunhana Grandeza e Decadência de um Império

Africano, Lisboa, 1999 – Segundo informação contida no próprio livro, a autora é

licenciada em filologia românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, defendeu tese de

doutorado na Sorbonne em 1975 sobre os trovadores galego–portugueses e provençais.

Foi professora catedrática tendo lecionado na Universidade de Aix-em-Provence,

França, na Universidade dos Açores, na Universidade Aberta de Lisboa e na

Universidade da Ásia Oriental em Macau, China. É autora de uma vasta obra entre

livros e artigos sobre literatura, lingüística, história e etnografia. Esta biografia de

Ngungunhana é um estudo que apresenta duas partes: uma que reconstitui a relação do

rei africano com autoridades portuguesas e a forma como lida com o assédio de

ingleses que objetivavam ter livre trânsito por suas terras e cujo desfecho é a captura

por Mouzinho de Albuquerque. A segunda parte reconstitui a sua vida no exílio nos

Açores. Inicia–se com a sua chegada em Portugal e sua exibição como prisioneiro

pelas ruas de Lisboa. Reconstitui como teria sido a sua vida na Ilha Terceira no

Arquipélago dos Açores aonde veio a morrer em 1906. Nesta parte a autora relata a

lenta agonia de Ngungunhana e dos demais prisioneiros, seu filho Godide, seu tio

Molungo e um de seus antigos régulos, Zixaxa. Mostra como a separação de suas

esposas que os acompanharam até Lisboa e depois foram deportadas para Cabo Verde,

pelo fato de a sociedade portuguesa não aceitar a poligamia e a frustração de nunca

mais voltar a Gaza têm um efeito avassalador sobre o antigo rei. Nesta parte a autora

relata também a inserção forçada dos prisioneiros no universo dos usos e costumes

ocidentais inclusive através do batismo. Esta biografia conta com uma abundância de

documentos entre eles correspondências, ofícios e trechos de relatórios oficiais. É a

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única biografia de Ngungunhana que consta do acervo do Real Gabinete Português de

Leitura.

15. René Pélissier. História de Moçambique, Lisboa, vol. II, 2000 - O historiador francês

analisa neste segundo volume os eventos envolvendo o colonizador português e as

populações locais moçambicanas no período de 1854 a 1918. Sua visão dos eventos

que culminaram na prisão de Ngungunhana é de que estes não passam de um drama,

de um teatro. Reconstitui pormenorizadamente os acontecimentos que culminaram na

prisão de Ngungunhana em Chaimite, a qual chama de “cena final do drama” que

fundamenta todo um mito de que Portugal seria ainda uma importante nação

imperialista. Este autor compara a figura de Mouzinho de Albuquerque a Pizarro,

conquistador do México, figura ausente na história do colonialismo português.

16. Antonio Pires Nunes, Mouzinho de Albuquerque, Lisboa, 2003 – O autor pelo que foi

averiguado é Coronel de Artilharia reformado, tendo servido na África, não se pôde

saber em que país enquanto estava na ativa. É licenciado em História com

especialização em arqueologia clássica pela Universidade de Coimbra. Dedica–se às

disciplinas de história militar, patrimônio cultural e antropologia cultural. Nesta

biografia de Mouzinho de Albuquerque, o autor analisa a trajetória do oficial na África

dando maior destaque ao seu papel na conquista de Moçambique. Analisa, além disso,

duas características da personalidade de Mouzinho de Albuquerque, a sua atração pela

morte e o seu repúdio pela política. O oficial acreditava, segundo o autor, que a morte

em batalha era a melhor que poderia ocorrer a um militar, por conta disso estaria

desiludido com a vida por ter sido designado para um posto palaciano após a demissão

do cargo de Governador Geral de Moçambique em 1898.

A segunda fase do trabalho de campo foi a leitura e seleção das fontes. Verifiquei que

em todas as fontes selecionadas, se fazia referência a Joaquim Augusto Mouzinho de

Albuquerque à batalha de Chaimite, na qual foi preso o rei do Estado de Gaza, Ngungunhana,

chamado pelos portugueses de Gungunhana. Este evento é tido como capital para a

implantação de uma estrutura colonialista de ocupação e exploração efetiva, que atingirá seu

auge durante a primeira metade do século XX, sobretudo nas décadas de 1940 e 1950. Na

terceira e última fase da pesquisa, as fontes selecionadas foram analisadas quanto ao discurso

de seus autores e a representação coletiva de Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque

tanto em Portugal quanto em Moçambique. Na sua grande maioria, são biografias de ambos

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os personagens. O critério de seleção dessas fontes foi o de não escolher mais de uma

biografia escrita pelo mesmo autor. A finalidade era a de oferecer um panorama das mudanças

ou continuidades das representações construídas a respeito de ambos. Durante a pesquisa

verificou–se uma discrepância significativa quanto ao número de fontes disponíveis sobre

Mouzinho de Albuquerque e Ngungunhana. Enquanto há mais de dez fontes sobre o primeiro,

foram encontradas apenas três acerca do segundo.

A partir deles é possível é possível enxergar o nascimento do colonialismo português

moderno (segunda metade da década de 1895 a década de 1960). Argumento que é possível

verificar até que ponto as trajetórias individuais podem auxiliar na compreensão de

conjunturas vividas por uma dada sociedade e do imaginário coletivo criado em volta de

certos símbolos alçados à categoria de símbolos nacionais.

Há uma vasta produção bibliográfica sobre o tema. Foram selecionadas para o quadro

teórico obras reconhecidamente importantes devido à originalidade de suas contribuições

entre outras produzidas no Brasil. As obras de referência são o artigo de Pierre Bourdieu “A

ilusão biográfica” (1996) e a obra de Norbert Elias “Mozart sociologia de um gênio” (1995).

Além desses, dentre os estudos sobre Moçambique no Brasil, a dissertação de mestrado de

Cristiano Matsinhe “Biografia de heróis no imaginário nacional moçambicano” (1997). Por

fim há a biografia de Gilberto Freyre escrita por Maria Lucia Pallares–Burke “Gilberto Freyre

um vitoriano nos trópicos” (2005).

Do artigo de Bourdieu utilizo sua tese de que as biografias são ilusões ou construções

feitas à partir da seleção de eventos tidos como significativos pelos seus autores. Da obra de

Norbert Elias, me baseio na tese de que a vida de um indivíduo não pode ser compreendida

sem que se tenha uma clara visão da relação existente entre o indivíduo e a sociedade onde

nasceu. Quanto a Matsinhe me baseei na sua visão da construção de heróis nacionais como

sendo aqueles a quem este adjetivo é atribuído à posteriori em reconhecimento de uma

carreira e de seus méritos que atingem um ápice com a morte a partir da qual a vida é lida e

relida a partir de seus aspectos considerados importantes por aqueles que recuperam suas

memórias. Quanto a Pallares–Burke, utilizo a visão da autora, que esta constrói a partir da

reflexão de Freyre sobre biografias das biografias como divididas entre clássicas e românticas.

As primeiras sendo aquelas construídas a partir de uma premissa de exaltar o biografado,

enquanto as últimas apresentam um enfoque menos exaltador e procuram mostrar os conflitos

pelos quais passam os indivíduos por elas retratados.

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A exaltação de Mouzinho de Albuquerque e sua eleição como herói nacional embasam

a escolha das fontes aqui analisadas. Os três biógrafos escolhidos Amadeu Cunha, Antonio

Pires Nunes e Miguel Sanches de Baêna e as obras comemorativas por ocasião de seu

centenário, exaltam sua figura pública, o tratam como um exemplo de conduta a ser seguido.

As obras escolhidas que tratam de Ngungunhana, também o retratam como um herói.

Escritas por Maria da Conceição Vilhena, autora portuguesa, e pelo Partido Frelimo, cada

uma a seu modo constrói sua visão de herói. Para sua biógrafa lusitana, Ngungunhana torna-

se um herói durante o processo que culminou com a volta de seus ossos para Moçambique,

em 1985, conduzida pelo Partido Frelimo. A outra obra, produzida pelo próprio partido,

retrata-o como um herói ainda em vida, por conta da resistência que opôs às autoridades

portuguesas.

A representação de ambos como heróis nacionais me remete a reflexão a respeito dos

Estados Nacionais. Não sendo este o foco principal da minha análise, embora pudesse me

basear na reflexão de um número maior de autores, restringi–me a apenas a Benedict

Anderson (2005) e Eric Hobsbawn (1990). Dentre ambos a tese de Anderson é

particularmente útil. O autor entende os Estados Nacionais como sendo comunidades

imaginadas, construídas a partir de um dado projeto. No caso português o Estado Nação não é

apenas o território geográfico e o conjunto de tradições de suas diferentes regiões, mas

abrangia também todas as suas antigas colônias e seus povos, que deveriam através do

processo de assimilação cultural se tornar portugueses a medida que abandonavam seus

costumes tradicionais. Mouzinho de Albuquerque foi aquele que através da prisão e do exílio

de Ngununhana ao qual se seguiu a desarticulação do Estado de Gaza permitiu que esse

projeto pudesse começar a ser esboçado. Sendo assim, teve na década de 1950 sua memória

propositalmente recuperada pelo governo sendo reconduzido à categoria de herói nacional, a

qual foi conduzido pela primeira vez ainda em vida por conta da prisão de Ngugunhana. A

década de 1950 foi o período em que as idéias administrativas da “Geração de 1895” foram

postas em prática, sendo o ápice do projeto colonial português. A recuperação dos feitos de

Mouzinho de Albuquerque tem uma função bem determinada, a de celebrar o Estado

português e a sua empresa colonial, visto que a identidade portuguesa esteve por séculos

pautada na identificação com um império colonial.

Já no caso moçambicano, o governo do Estado que se formava a partir de 1975,

herdou a estrutura administrativa deixada pelo governo colonial. Como toda a nação em

formação, deu–se em Moçambique o processo de eleição de símbolos que exerceriam uma

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função determinada: a de unificar o imaginário coletivo criando assim uma identificação entre

ele e o povo tendo como base uma idéia de resistência. No caso de Ngungunhana, a Frelimo

organizando um Estado recém saído de uma guerra de independência, e sendo liderada por um

grupo originário da região sul do país, o elege como símbolo nacional devido a resistência que

demonstrava a ser submetido pelos portugueses, o que acabou ocorrendo, dando origem a

efetiva dominação do território da qual o Frelimo os libertava. Com isso buscava-se criar uma

identidade entre as populações locais, de tradições culturais bastantes distintas. Era necessário

encontrar algo que unificasse todos os moçambicanos independentemente de origens etno–

lingüísticas, para que fosse despertado um sentimento de pertencimento a uma mesma nação.

Este sentimento seria despertado pela luta em comum pela independência e pela identificação

com aquele que se tornou um ícone da resistência. O material que disponho sobre

Ngungunhana produzido pela Frelimo foi produzido para a celebração do retorno dos restos

mortais de Ngungunhana que estavam na Ilha dos Açores para Moçambique. Este momento

foi o ápice da transformação de Ngungunhana em herói nacional e a materialização do projeto

frelimista.

A dissertação foi dividida em três capítulos. No capítulo um analiso a prisão e o exílio

de Ngungunhana. Procuro mostrar à luz do conceito de cerimônia de degradação (Garfinkel,

1956) que a prisão e o exílio de Ngungunhana são partes de um processo de degradação, de

humilhação imposta pelos portugueses, que se julgando superiores culturalmente pretendiam

conquistar, colonizar e com isso impor seus valores culturais aos povos africanos, assim como

as maiores potências políticas e econômicas da Europa no período, que justificavam a

conquista e a colonização dos territórios africanos baseadas na teoria do darwinismo social,

em voga na Europa do século XIX. Utilizando diretamente ou através de outros autores lidos

fontes de época escritas por membros do exército e da marinha de Portugal e da burocracia

estatal que fizeram parte da conquista do Estado de Gaza foi possível confrontar duas visões

opostas quanto à forma como se deu a prisão de Ngungunhana. A primeira sendo aquela que

se tornou oficial, veiculada pelos membros do exército que formavam a “Geração de 1895”,

notadamente Antonio Enes e Mouzinho de Albuquerque. A outra dá conta da forma nada

heróica em que se deu a prisão do rei de Gaza.

No capítulo dois são analisadas três biografias de Mouzinho de Albuquerque e duas

obras produzidas em caráter oficial como parte das comemorações pelo seu centenário de

nascimento (1855–1955). O terceiro capítulo concentra-se no retorno dos ossos de

Ngungunhana que saíram dos Açores em 1983, chegando com grande pompa em Maputo,

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Moçambique, em 1985. É neste momento que o antigo rei de Gaza é elevado ao status de

herói nacional moçambicano.

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Capítulo 1 - A batalha de Chaimite: prisão e exílio de Ngungunhana

1.1 – Introdução

Antes de entrar na análise da queda de Ngungunhana e seus significados para

portugueses e para as populações locais de Moçambique, faz–se necessário entender quem são

os nguni, quais os motivos que os levaram a migrar para a região sul de Moçambique. Assim

é possível entender a fundação do Estado de Gaza por Sochangana, avô de Ngungunhana,

bem como ao reinado do pai deste, Muzila. Para tanto, as fontes que embasarão minha análise

são os livros de Malyn Newitt (1995) e Maria da Conceição Vilhena.

Segundo o historiador inglês Malyn Newitt a chegada dos nguni ao sul de

Moçambique causou um impacto e mudanças políticas muito profundas. Os nguni

originalmente, segundo o autor, eram um grupo de agricultores baseado em relações

patriarcais, que complementavam a atividade agrícola com artesanato e comércio. Viviam

organizados em pequenas chefias e suas linhagens principais dependiam do tamanho de suas

manadas e do gado, utilizado em suas transações comerciais (Newitt, 1996: 237-238).

Duas teriam sido as razões para a chegada de Sochangana ao sul de Moçambique: o

período prolongado de secas que assolavam a região que é hoje a África do Sul, que se iniciou

em 1790 e perdurou até a década de 1830 e guerras decorrentes dessas secas entre três

importantes grupos de origem nguni, os suazi, os ndwandwe e os zulu1, que lutavam pela

posse das terras melhor irrigadas. As secas levaram a um aumento do comércio de escravos

com os europeus, que também tinham uma grande demanda por marfim e gado. Os nguni

então teriam iniciado ataques a outros povos para reabastecer suas manadas.

Segundo Newitt, Sochangana era membro do Estado Ndwandwe, que enfraquecido

pela seca não havia conseguido resistir à incursão zulu. A razão pela qual fugiram para o norte

teria sido a recusa de sua assimilação pelos zulus. Maria da Conceição Vilhena, entretanto,

defende a tese de que Sochangana era chefe guerreiro de Tchaca e um desentendimento cuja

natureza a autora não esclarece levou o avô de Ngungunhana a fugir com os guerreiros que

estavam sob seu comando.

O historiador inglês argumenta que ao chegarem ao sul de Moçambique encontraram

uma região também atingida fortemente pela seca e onde não havia nenhuma chefia

organizada, o que facilitou sua conquista da região. Os povos nativos como os tsonga lhe

1 Estes três grupos surgiram a partir de choques entre as diversas chefias nguni, que criaram grupos cujo

critério de inclusão era a idade. Os bandos de caçadores teriam se transformado em regimentos de guerra, que

permitiram a seus chefes fundirem suas linhagens descentralizadas. Esta fusão deu origem aos três estados acima

citados.

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pagavam tributo. Com o fim da seca e o progressivo aumento do território de Gaza, que

chegou a zona ocidental do Zimbábue, ao Transvaal e ao norte rio Zambeze e que por isso

teve um caráter único, foi cobrado tributo de outros povos conquistados. Nesta região a coleta

dos tributos era responsabilidade de um dos filhos de Sochangana, o Umzila ou Muzila.

Já para Vilhena as primeiras povoações que sofreram ataques dos guerreiros de

Sochangana foram as localizadas junto ao rio Tembe, de onde seguiram para as proximidades

de Lourenço Marques. Dali teriam viajado pelo Vale do Rio Limpopo em direção ao país de

Venda, do qual a autora não dá maiores esclarecimentos. Dali chegou à região da Cossine. O

grupo teria assim passado pelas regiões de Sena, Manica, Barué e Luambo. Ao final da

conquista, em que camponeses foram chacinados e suas mulheres foram raptadas, as redes

comerciais do sertão haviam sido destruídas. O Estado de Gaza teria se expandido para cerca

de 56 mil km2 e 200 chefes locais teriam sido avassalados.

Os ataques às populações locais se tornaram constantes. Era uma prática corrente dos

nguni furar as orelhas das populações conquistadas para marcar não só o seu domínio, mas

também a incorporação dessas populações aos seus usos e costumes. Isso fez com que na

década de 1850 muitos régulos se apresentassem às autoridades portuguesas oferecendo

vassalagem em busca de proteção. O objetivo desses chefes era obter apoio nas lutas que

travavam entre si e resistir aos nguni. O governo dos nguni em Gaza era baseado na

autoridade e no uso da força. A autoridade, para Aidan Southall (1972), que por sua vez

baseia–se em Max Weber, é o legítimo exercício do poder imperativo, que por sua vez é a

probabilidade de que um comando será obedecido. A ação política está, portanto, intimamente

ligada ao exercício da autoridade (Southall, 1972: 120). Já o uso da força é garantido por

diversos regimentos militares criados pelos três soberanos de Gaza Sochangana, Muzila e

Ngungunhana. Como demonstra Pélissier:

―Os regimentos dividiam–se em batalhões da mesma idade, sendo o

recrutamento, aparentemente, regional. Os efetivos máximos de um

regimento deviam ser de 1300 a 1600 homens [...] Os governadores,

isto é, chefes do clã real, eram em princípio, mas não de modo

exclusivo, chefes (indunas) dos regimentos [...] podemos afirmar que

os angune de origem constituíam uma pequena minoria e que os

quadros dirigentes eram formados, em grande parte por não angune,

visto que – caso interessante, mas inquietante a prazo para o futuro da

dinastia reinante – a ascensão na hierarquia militar dependia menos da

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origem racial do que do valor em combate. E o último general de

Ngungunhana seria um não angune, Maguiguana, que era da etnia

tsonga. Politicamente o papel deste exército consistia em: a)

conquistar os vizinhos (em particular os regulados do sul, tsonga e,

principalmente chopes que eram o ―inimigo hereditário‖, mas também

o osso duro de roer; b) alimentar o Estado, o monarca e os angunes

por meio de devastações, captura de escravos e cobrança de tributos

no interior do ―império‖ [...]‖ (Pélissier, 2000b: 192-193).

Mas o que define poder e autoridade para os nguni? Quais eram as atribuições do

ocupante do cargo maior da chefia para esse grupo? Disponho de poucas fontes que me

permitam responder a tais perguntas, apenas duas. Ambas são fontes escritas à época do

evento que estou analisando. Uma é o livro do Capitão Gomes da Costa, intitulado Gaza

1897-1898 datado de 1899. A outra é o segundo livro de uma obra de dois volumes escrita

pelo missionário suíço Henri Junod, que conheceu de perto os costumes das populações

locais, intitulado Usos e Costumes dos Bantu. (Junod, 1996)

Segundo o capitão Gomes da Costa, em primeiro lugar, a distribuição do poder político

era feita da seguinte maneira: a terra era propriedade exclusiva do rei que para melhor

administrá-la delegava partes dela a diferentes régulos, ou para usar o termo africano ossanas.

Estes dividiam as terras que recebiam entre diferentes chefes, os indunas, ou aiiditna na

língua local. Era papel do chefe distribuir parte de terra que recebia pela população, cada

família formando uma povoação que em português antigo, segundo Gomes da Costa se

chamava curral donde deriva a palavra kraal, o que os indígenas chamavam emuti (Gomes da

Costa, 1899).

Já Henri Junod (1996) relata a importância da instituição da chefia desde o nascimento

daquele designado para o cargo até a sua morte. Entre os tsonga, explica o autor, quando a

mãe do futuro herdeiro percebe que está grávida, muda-se se para uma província distante da

capital onde tem a criança, que cresce longe da mãe. As outras crianças que com ele

convivem aprendem a respeitá-lo, via de regra se tornando seus conselheiros quando assume a

chefia.

Entre os tsonga, quando chega a hora de voltar para a capital, o herdeiro é criado pelo pai.

A idade de escolher suas mulheres vai de 25 a 30 anos. Tem relações com várias mulheres as

quais lhe dão vários filhos, entretanto, o casamento com a mulher oficial e mãe do futuro

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herdeiro se dá somente após a morte do pai. Em um trecho, Junod fala especificamente dos

nguni. Segundo o autor:

―Os Ngonis do Ngungunhana (em Gaza) seguiam o mesmo

princípio. Mas entre eles as coisas passavam–se se modo diferente. O

filho mais velho da mulher principal do chefe, chegando a idade de

casar, tomava mulher e perdia direito a sucessão, era o filho segundo

ainda jovem quando da morte do pai, que herdava o trono, porque

ainda não tinha filhos. Daí as guerras, lutas, ciúmes entre irmãos, os

quais causavam desgraças sem fim a família real de Gaza e que foram

umas das causas da queda do Ngungunhana2‖ (Junod, 1996: 337-338).

Segundo a ―lei cafreal‖, continua o relato de Gomes da Costa, o herdeiro legítimo de

Sochangana era o Muzila. Mas em Chaimite, junto ao pai vivia também um outro filho de

Sochangana, que Gomes da Costa chama Mauheva e que Newitt e Maria da Conceição

Vilhena chamam de Mawewe. Este ocupou o lugar do pai ao invés do irmão. O autor

justifica a subida de Mawewe ao trono pela escolha dos indunas (chefes) devido às suas

inclinações guerreiras. René Pélissier (2000) mostra que a vitória de Mawewe na disputa se

deve a um conflito entre direitos de sucessão. Segundo o historiador francês, Muzila era

filho de Sochangana com a sua primeira esposa, uma tsonga, cujo dote foi pago pelo próprio

Muzila. Mawewe, por sua vez, muito mais novo, tinha como mãe uma nguni da Zuazilândia,

pertencente à dinastia dos Dlaminis, cujo dote foi pago com as contribuições do povo, razão

pela qual, era vista como esposa do país. Ainda segundo Pélissier, segundo o direito

consuetudinário dos tsonga era Muzila quem deveria suceder ao pai. Pelo direito nguni,

entretanto, o herdeiro deveria ser seu irmão.

Muzila seguido de guerreiros fiéis foge para o Transvaal fixando-se junto à povoação de

um negociante portugues chamado João Albazini, a que Vilhena se refere como vice–consul

português na Africa do Sul. Enquanto isso Mawewe se via como único soberano daquelas terras

cobrando tributos dos representantes portugueses em Lourenço Marques. Caso não houvesse o

pagamento haveria guerra. Enquanto isso, segundo Vilhena no dia 2 de Novembro de 1862,

Maxaquene, um dos régulos das terras da coroa, acompanhado de três emissários de Muzila,

procurou os portugueses em busca de apoio para derrotar o irmão. Com este apoio, materialisado

2 Georg Simmel em Web of group affiliations (1964) faz uma análise de diferentes situações geradoras

de conflito, entre elas as referidas por Junod. Segundo Simmel os conflitos têm como causas fatores que seriam

dissociativos, tais como ódio, inveja, ciúmes, desejos, entre outros. O conflito teria a função de resolver as

tensões sociais geradas por estes sentimentos.

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em 2 mil espingardas, 50 mil cartuchos e 1.200 pederneiras, apesar de ter 4 mil guerreiros contra

12 mil guerreiros de Mawewe, Muzila venceu o irmão em 16 de dezembro de 1861. No dia 1 de

dezembro de 1862 Muzila procurou os portugueses para prometer vassalagem. Apesar deste apoio,

os guerreiros de Muzila atacaram várias vezes os distritos de Sofala e Inhambane. A vassalagem só

foi oficializada em 27 de janeiro de 1882. Muzila morre em 1884, sendo substituído por seu filho

Mundungaz, que se intitulou Ngungunhana.

O herdeiro de Muzila era por direito Mafemane, mas Ngungunhana que ambicionava chegar

ao poder mandou matar seu irmão e o tio Cuio, partidário deste. Segundo o Capitão Gomes da

Costa enquanto Mafemane foi morto, seu tio conseguiu sobreviver porque demonstrou respeito ao

sobrinho.

1.2-As relações entre o Império de Gaza e os europeus durante o governo de

Ngungunhana

Em 1885, Ngungunhana prestou vassalagem ao governo português, para isso mandando

uma embaixada a Lisboa, onde se firmou um ato de vassalagem. Em 1886 o ato de vassalagem foi

ratificado em Moçambique com autoridades portuguesas na colônia. Apesar disso, grupos de

guerreiros de Ngungunhana periodicamente atacavam as terras da coroa.

Segundo Vilhena, em 1885 o Governador de Moçambique se chamava Agostinho Coelho.

Ao estabelecer relações com o novo rei de Gaza envia para sua corte um representante, José

Casaleiro de Alegria Rodrigues, que foi nomeado Residente Chefe3 responsável pelo tratado de

amizade, que de fato era de vassalagem, com Portugal. Tratado este que foi ―assinado‖ no dia 12

de outubro de 1885 em Lisboa por dois embaixadores do novo rei de Gaza. Estes não seriam de

origem nguni, mas angunizados, um deles segundo Vilhena (1999) se chamava Matanda–Encoce,

que tinha por volta de 60 anos e falava português, pois, aprendeu o idioma com o capitão–mor das

terras de Sofala, a quem serviu por muito tempo. O outro chamava–se Mapinda e era um homem

da confiança do Ngungunhana e teria entre 40 e 48 anos (Vilhena, 1999: 38). O tratado estabelecia

entre outras coisas, que deveriam ser fundadas missões religiosas em Gaza além de escolas. Estas

últimas foram de fato implementadas, onde os filhos e filhas de Ngungunhana aprenderam a ler e

escrever em português (Vilhena,op.cit.: 265).

3 Residente Chefe é um cargo preenchido por um português que deveria residir na corte do rei de Gaza

com a função de influenciá–lo de acordo com os interesses portugueses. As primeiras tentativas portuguesas

foram feitas ainda no reinado de Muzila, porém, só foi posto realmente em prática durante o governo de

Ngungunhana.

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A autora continua a narrativa explicitando que existiam dois tratados. O acima referido e um

redigido pelos representantes de Portugal em Moçambique. Sobre a reação do rei a instauração da

figura do Residente–Chefe Malyn Newitt (1995) mostra que Ngungunhana a aceitou, mas teria

deixado claro que não abriria mão da soberania sobre as chefias das regiões de Inhambane e do

delta do rio Zambeze. Em setembro de 1886, guerreiros de Gaza atacaram os chefes de Inhambane,

sendo derrotados pelos portugueses. Em 1887, o rei ainda mantinha soberania na costa e no baixo

Zambeze (Newitt, op. Cit.: 314). A posse de José de Almeida no dia 16 de março de 1886, foi

marcada com a entrega de uma patente de coronel de segunda linha e sua respectiva farda.

Em abril de 1887, é enviada nova embaixada a Lisboa. Dessa vez, os escolhidos foram dois

nguni que se chamavam N´ Tonga e Udaca. A razão da ida dessa nova embaixada à Europa é os

constantes ataques dos nguni que obedeciam a Ngungunhana contra os régulos das terras de

Inhambane, uma violação do tratado de vassalagem firmado dois anos antes. Segundo o rei de

Gaza, essas incursões eram uma resposta às agressões dos régulos inimigos. Outra justificativa era

que não queria ceder nenhuma parte das terras que pertenceram a seu pai.

Em 1889, Ngungunhana deixou a região de Mossurisse, hoje em dia denominada Mossorize,

onde havia vivido seu pai e se dirigiu para as terras dos chope onde fundou a aldeia de Mandlakase

ou Manjacase (grafia portuguesa). Gomes da Costa relata que no caminho entre Mossurisse e

Manjacase os guerreiros de Ngungunhana devastaram as terras atravessadas. Embora o rei,

segundo o autor, sempre confirmava sua vassalagem a Portugal, isso não o impedia de desrespeitar

as autoridades portuguesas ou os limites entre seu reino e as terras da coroa. As relações entre

Ngungunhana e os portugueses eram delicadas, visto que Ngungunhana apesar de se dizer vassalo

de Portugal, continuava a governar suas terras de acordo com seus interesses apesar da presença do

residente chefe.

Os constantes ataques de Ngungunhana às populações locais que ainda não haviam sido

submetidas levam Antonio Enes em seu relatório Moçambique de 1893 a dizer que os nguni,

denominados de vátuas pelos portugueses, devem ser tratados como inimigos, visto que ―esterilisa

o chão que pisa‖. E isso porque as populações nativas ― não cultivam porque seriam para os vátuas

as colheitas...vivem miseráveis para que a miséria os defenda da cobiça brutal da raça

conquistadora‖, Gaza seria ainda um lugar perdido para o trabalho, pois, esse seria devorado por

Ngungunhana e aqueles que lhes eram fiéis (Enes, 1893: 23-24).

A partir de 1890, por razões que serão vistas com mais detalhes a seguir, passariam a

residir por ano até 20 europeus em Gaza, a maioria anglo-americanos que haviam sido enviados

por Cecil Rhodes. A partir daí, suas relações com os ingleses vão agudizar as preocupações

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portuguesas. A oficialização dessas relações se manifestou no envio de uma embaixada a Londres

no inicio de 1890. Em maio do mesmo ano, procura o vice–consul britânico desejando um

protetorado, ao mesmo tempo confirma a vassalagem de Gaza a Portugal aceitando que um posto

português na foz do Limpopo. A tática da BSAC era conquistar a confiança de Ngungunhana

vendendo-lhe armas. Estas chegavam às mãos do soberano, como mostram René Pélissier

(2000 b) e Malyn Newitt (1995), através de ingleses representantes da British South African

Company (de agora em diante designada pela sigla BSAC), dirigida por Cecil Rhodes. Tal

artifício visava o domínio sobre a região que ingleses e portugueses disputavam intensamente.

Ao saber da aproximação com os ingleses, José de Almeida foi a Gaza se encontrar com o

Ngungunhana para dissuadí–lo de fazer negócios com ingleses e boeres visto que o território de

Gaza era de Portugal desde o reinado de seu pai. Apesar dos esforços de José de Almeida, no dia 4

de outubro de 1890, Ngungunhana firma um acordo com a BSAC. Com o pagamento de

quinhentas libras por ano, mil espingardas e vinte mil cartuchos, Ngungunhana cedeu o território à

exploração mineira além do acesso ao mar (Pélissier, op. Cit.: 243).

A partir de então tornou-se cada vez mais forte entre os portugueses o desejo de derrotar o

Ngungunhana, pois ele havia se tornado um entrave aos objetivos lusos. O primeiro a planejar uma

ofensiva contra o rei de Gaza foi o Comissário–Régio Antonio Enes, que com relação a isso, diz

em seu livro As guerras de África de 1895, que

―Este ataque era uma aspiração, mas não um compromisso

tomado sequer comigo mesmo. Tinha estudado um plano de operações

com dois objetivos, um dos quais seria como que a continuação do

outro, mas dos quais só um era essencial: o primeiro consistia em

organizar as defesas das terras da coroa de Inhambane a Lourenço

Marques; o segundo em aniquilar o império Vátua. Nada faria que

obstasse a realização desse último desideratum, antes o prepararia

cuidadosamente, mas só o tentaria se fosse possível‖ (Enes, 1947:

145).

A ruptura definitiva entre o Ngungunhana e Portugal se deu no ano de 1895. Desde o início

desse ano, as relações entre ambos se deterioraram paulatinamente. O primeiro incidente foi o

incêndio das mil espingardas dadas pelos ingleses a Ngungunhana, que a julgar pela leitura de uma

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carta do Residente da região do Bilene, José Teixeira de Azevedo a José de Almeida foi obra de

portugueses (Vilhena, op. Cit.: 120).

1.3–Os colonizadores: disputas entre a Grã–Bretanha e Portugal: as décadas de

1860 e 1870

Essas duas décadas foram marcadas por uma nova euforia em Portugal no que diz

respeito ao mito do ―Eldorado‖4. A razão disto é a descoberta de minas de ouro e pedras

preciosas no Transvaal e a abertura do Canal de Suez. Esta nova conjuntura chamou a atenção

do governo português para Moçambique, colônia até então periférica no contexto africano.

Neste momento acirram–se ainda mais as disputas entre as nações européias por

aumento de mercados produtores de matéria–prima e consumidores de suas manufaturas. O

mundo passava então pelo período que Eric Hobsbawn (2000) denominou de Era dos

Impérios. Neste momento, a ação colonial portuguesa ganha um novo impulso e um novo

rítmo (Valentim Alexandre, 1998a: 112-114). Para Malyn Newitt, o marco inicial dessa

disputa é o ano de 1853, quando Portugal assina um acordo comercial com a França para

desenvolver o comércio colonial. Segundo este autor, a França foi o primeiro país europeu a

investir capital privado em Moçambique (Newitt, op. Cit.: 293). A tentativa portuguesa data

do século XVIII, os Prazos da Zambézia (região ao norte do território atual de Moçambique)

5.

4 Mito segundo o qual as colônias são fontes de riquezas que impulsionariam a economia portuguesa.

5 Esta tentativa malogrou, pois não houve maior apoio metropolitano aos imigrantes que obtiveram estas

terras e, como conseqüência, esses imigrantes, conhecidos como senhores dos prazos da Zambézia, se ligaram a

linhagens importantes das populações locais, ou a famílias indianas, há muito estabelecidas na região, obtendo

posições de prestígio. Passam a estar assim, diretamente envolvidos na dinâmica da economia local, tendo se

tornado exportadores de marfim, de ouro e também de escravos. Devido ao fato de terem se tornado parte da

dinâmica local, com interesses opostos aos interesses da metrópole, o governo de Lisboa tentará por muitas

vezes pôr fim aos prazos. A última tentativa, foi na década de 1890, quando Antonio Enes, no seu famoso

Relatório de 1893, traça uma proposta para submeter os senhores dos prazos à autoridade do governo português.

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A descoberta de ouro no Transvaal na década de 1870 afeta diretamente as populações

nativas moçambicanas, sobretudo do sul, que passam a produzir alimentos para suprir a

demanda do território vizinho. Neste momento, o Ministro da Marinha e do Ultramar,

responsável pelas colônias, era João de Andrade Corvo. Vendo nisto uma oportunidade do

desenvolvimento econômico do território que hoje forma Moçambique, o Ministro, em 1877,

reduz os impostos sobre a exportação de alimentos e declara a região do Zambeze aberta ao

comércio estrangeiro (Newitt, op. Cit.: 294-295). Interessado mais do que nunca em efetivar a

posse dos seus territórios, Portugal cria em 1875 a Sociedade de Geografia de Lisboa. Essa

instituição foi criada tardiamente6 para reverter o quadro da ausência de relatos portugueses

sobre as suas seculares possessões e para ser ―uma resposta institucional a uma conjuntura

internacional (que exigia maior conhecimento dos territórios ultramarinos para assim

legitimar seu projeto de dominação)‖ (Thomas, 2002: 97).

No período em que Ngungunhana governava Gaza, o poder estava consolidado em

suas mãos. Sua autoridade não era contestada. O que se vê neste período, é uma competição

entre dois países europeus, a Grã-Bretanha e Portugal, pela posse do território governado por

Ngungunhana. Do ponto de vista dos ingleses, o que eles desejavam era uma saída direta para

o oceano índico, através do porto da província portuguesa de Lourenço Marques, mais ao

norte de Gaza7. Já Portugal, tinha muito interesse em conquistar aquele território, porque

conquistá-lo era mostrar às demais nações européias, sobretudo sua maior rival, a Grã-

Bretanha, que Portugal não era uma nação fraca, como aquela julgava. Além da questão

política estava em jogo também a economia portuguesa. Nas décadas de 1870 e 1880, o

comércio em Moçambique crescia, sobretudo com capital francês, holandês e inglês. Portugal

deixou de ter uma participação de 3% para passar a responder a apenas 1% do comércio

moçambicano. A disputa luso–britânica, contou com a arbitragem da França. A arbitragem

francesa, personificada pelo presidente francês da época, o Marechal Mac Mahon, foi

favorável aos portugueses, e em 1875, concedeu-lhes pleno controle da região de Gaza. Tal

resultado minou as pretensões britânicas para a África meridional (Newitt, op. Cit.: 299-300;

Valentim Alexandre, 1998a: 123).

6 Antes que Portugal tivesse criado a Sociedade de Geografia de Lisboa, as grandes potências européias

já haviam há muito criado as suas. A França criou a sua em 1821, em 1828 foi criada uma na Alemanha, em

Berlim, e a Grã–Bretanha criou a sua em 1830, em Londres (Thomas, 2002: 97). 7 A antiga província de Lourenço Marques, atual Maputo, mesmo nome da capital moçambicana, hoje

está ao sul de Gaza, que atualmente não tem as mesmas dimensões do final do século XIX.

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A decisão de Mac Mahon, não foi, entretanto, o fim das disputas pela região. Seguiu-se

um longo período de disputas entre os diversos Estados europeus que cobiçavam territórios

africanos e disputas anglo-portuguesas centradas na figura de Ngungunhana.

As disputas entre diversos Estados europeus culminou com a Conferência de Berlim de

1885. Segundo Wesseling (1998) a conferência foi um desdobramento da oposição franco–

prussiana ao tratado anglo–português. França e Alemanha desejavam a internacionalização da

bacia do Congo. A iniciativa de internacionalizar o debate, entretanto, foi portuguesa. Com a

internacionalização, Portugal poderia romper o vínculo com a Grã–Bretanha e conseguir

apoio para a manutenção da posse de seus territórios. A conferência de Berlim destinava–se

assim a discutir normas de ocupação dos territórios africanos. Portugal obteve a promessa de

apoio para as suas pretensões de controle da faixa de terra que ligava os seus territórios do

Oceano Atlântico ao Oceano Índico, o conhecido Mapa Cor–de-Rosa (Newitt, op. Cit.: 308 e

Valentim Alexandre, op. Cit.: 126-132).

Para Eric Hobsbawn, embora não houvesse ameaça ao poderio militar e econômico das

potências européias, não houvera nenhuma tentativa sistemática de traduzi-la em conquista

formal, anexação e administração entre o final do século XVIII e o último quartel do XIX. Tal

se deu entre 1880 e 1914 devido à procura por mercados da parte de um pequeno grupo de

estados; Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Holanda, Bélgica, EUA e Japão. Ao

Portugal só ficou garantida a posse de seus territórios coloniais de Angola e Moçambique

devido ―à incapacidade de seus rivais modernos chegarem a um acordo quanto à maneira

exata de dividi-los entre si‖ (Hobsbawn; 2000: 88-89).

Em território africano, por outro lado, as disputas entre a BSAC dirigida por Cecil

Rhodes e as autoridades portuguesas persistia. A tática da BSAC era conquistar a confiança

de Ngungunhana vendendo-lhe armas ilegalmente. Esta situação foi adiante, pelo fato de que

a soberania portuguesa sobre Gaza se confrontava com a insistência de Ngungunhana em

manter-se senhor absoluto de seus domínios.

Após o pronunciamento de Mac Mahon favorável aos portugueses, Ngungunhana

despachou uma comitiva para Lisboa para jurar vassalagem. As relações entre portugueses e

Ngungunhana de início eram amistosas. Entretanto, este não deixou de negociar com os

ingleses. Essas negociações foram concluídas por manobras de Ngungunhana, que ora

reafirmava sua vassalagem aos portugueses, ora jurava fidelidade a Rainha Vitória, chegando

a mandar uma segunda comitiva a Londres. Foi devido a essa política dupla, que os

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representantes do governo português em Lourenço Marques, na década de 1890, julgavam

que a melhor maneira de submeter de fato a região ao controle português e delimitar as

fronteiras entre os domínios britânicos e portugueses era uma guerra para derrotar

Ngungunhana e tirá-lo do palco político da África meridional. Esta idéia foi levada a cabo

pela ―Geração de 1895‖ 8. A importância desse grupo para o colonialismo português moderno

é significativa, pois, esses oficiais transformaram em realidade o plano traçado no princípio

do século pelo então Ministro da Marinha e Ultramar Marquês de Sá da Bandeira.

A experiência africana rendeu a estes homens honrarias e uma sucessão de cargos na

administração colonial, como Atestam Macagno (1996), Matsinhe (1997), Alexandre (2000) e

Pélissier (2000 a, 2000 b) 9.

Macagno e o historiador português Valentim Alexandre retratam que os membros do

grupo devido à sua ação na conquista do estado de Gaza foram elevados a heróis nacionais

em Portugal:

―(...) as guerras de ocupação também tiveram seus heróis, e a

―Geração de 95‖ alcançou homogeneidade a partir de uma série de

batalhas e ocupações militares, cujo objetivo consistiu em incorporar o

sul (neutralizando o poder do reino de Gaza, poderoso estado

multiétnico) e o centro de Moçambique derrotando a nação barué‖

(Macagno, 1996:61).

Nas palavras do historiador português:

―(...) Transformados em heróis nacionais, os homens da

geração de 1895 (Antonio Enes, Mouzinho de Albuquerque, Paiva

Couceiro, Aires de Ornelas, Freire de Andrade, Eduardo da Costa e

Caldas Xavier, entre outros de menor expressão) vão marcar a

produção de ideologia em matérias coloniais nos anos seguintes,

8 Compunham a ―Geração de 1895 juntamente com Mouzinho de Albuquerque os seguintes oficiais:

Aires de Ornelas, Freire de Andrade, Henrique de Paiva Couceiro, Eduardo Ferreira da Costa e Pedro Francisco

de Amorim. 9 Mouzinho de Albuquerque sucedeu Antonio Enes como Comissário Régio em Moçambique, Aires de

Ornellas, foi Governador do Distrito de Lourenço Marques em 1900 e Ministro do Ultramar entre 1906-1907,

Freire de Andrade foi Governador Geral de Moçambique no período 1906-1910, Henrique de Paiva Couceiro foi

Governador Geral de Angola, Eduardo Ferreira da Costa foi Governador do Distrito de Moçambique em 1896,

Governador de Bengela em 1903 e Governador – Geral de Angola em 1906 e Pedro Francisco de Amorim,

Governador – Geral de Angola em 1910 e de Moçambique em 1918 (Duffy, 1963: 120-121).

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justificando a utilização da força para submeter às raças ―atrasadas‖

ou ―inferiores‖ no âmbito das teses do darwinismo social introduzido

em Portugal na década de oitenta‖ (Valentim Alexandre, 2000: 182).

Outro autor que analisa a importância desta geração para o colonialismo português é

James Duffy. Dentre todos os que compõem a geração, Antonio Enes ocupa um papel chave

como o formulador de uma doutrina. Em 1893, após um ano em Moçambique, este jornalista

que por um breve período de tempo foi Ministro da Marinha e Ultramar escreveu seu famoso

relatório ―Moçambique‖, no qual propõe reformas administrativas. A importância deste

relatório é tamanha que é considerado a pedra angular do colonialismo português moderno.

Suas formulações seriam seguidas pelos futuros administradores coloniais. Para Enes, a

colonização de Moçambique deveria ser feita tendo em mente quatro pontos: a) descentralizar

a administração, b) não incentivar mais a colonização de Moçambique por brancos pobres, c)

atrair capitais estrangeiros para desenvolver a colônia; d) fornecer mediante uma legislação

coerciva mão–de-obra local para o capital estrangeiro que lá se implantasse (Pélissier, 2000 a:

171).

Mas o que faz com que este grupo de oficiais seja reunido sob a categoria de geração?

Para tanto se faz necessário compreender-se o que o termo significa enquanto uma categoria

sociológica. Karl Mannheim (1982) encontra soluções satisfatórias para a questão. Uma

geração, para este autor, implica em um grupo que compartilha uma dada experiência, de

forma que seus membros desenvolvam um vínculo concreto e dessa forma tenham

―participação no destino comum de uma unidade histórica e social‖ (Mannheim, 1982: 85-

86). O que é a África para este grupo de oficiais, com exceção de Antonio Enes, que era

jornalista, senão uma experiência comum, compartilhada? Todos esses oficiais, tiveram

naquele continente uma parte bastante significativa de suas experiências colonialistas.

A década de 1890 foi de grande importância para as pretensões imperiais portuguesas

garantidas pela ação dessa geração de oficiais. Para começar, no dia 11 de janeiro de 1890 foi

entregue o ultimato inglês, que minou as esperanças portuguesas de ver realizado o Mapa

Cor-de-Rosa, faixa contínua de terra ligando Angola a Moçambique, marcada de Rosa no

mapa levado pelos portugueses à reunião secreta com franceses e alemães durante a

Conferência de Berlim. Segundo Valentim Alexandre o ultimato era uma tentativa de forçar a

retirada da expedição portuguesa comandada por Serpa Pinto da região do rio Chire, a

intenção dos portugueses era subir este rio até o lago Niassa. Esta zona era reivindicada por

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Portugal, entretanto, lá havia várias missões escocesas, que não desejavam ver a região sob

soberania portuguesa. O objetivo da Grã-Bretanha era paralisar várias expedições portuguesas

de reconhecimento do interior daquela região do continente (Valentim Alexandre, op. Cit.:

147).

De Setembro de 1891 a Janeiro de 1892, Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque

foi governador de Lourenço Marques e a guerra de submissão de Ngungunhana deu-se em

1895, sendo que a derrota definitiva dos nguni deu-se apenas em 1897.

Quanto ao ultimato, ao minar os planos portugueses de unir as possessões portuguesas,

praticamente definiu as fronteiras entre os territórios portugueses e ingleses na África

meridional. Segundo Malyn Newitt, o ultimato foi um erro diplomático dos ingleses. Segundo

este autor:

―[...] não é muito clara a razão de as divergências entre Londres e

Lisboa não poderem ser resolvidas por via da negociação, dado as

decisões aceitáveis em face das reivindicações de ambas as partes

terem por duas vezes sido organizadas por diplomatas mais jovens.

Grande parte da culpa deverá ser imputada a Lorde Salisbury, cujo

bom senso diplomático o abandonou temporariamente em Dezembro

de 1889 e Janeiro de 1890. Apresentar um ultimato que poderia ter

redundado numa guerra com Portugal sobre disputas no interior da

África deverá qualificar-se como um dos erros mais crassos da

política britânica no século XIX‖ (Newitt, op. Cit.: 313).

Meses após o ultimato, em 20 de Agosto de 1890, Grã-Bretanha e Portugal firmam um

tratado que é abortado, mas tem seu conteúdo repetido em um tratado seguinte, de 11 de

Junho de 1891, que dividiu o território de Gaza em três regiões, uma pertencente a Portugal,

outra pertencente ao Transvaal e a última pertencente à Grã-Bretanha (Pélissier, op. Cit.:

242).

Em Novembro de 1890, Antonio Enes, tendo tomado posse do cargo de Secretário de

Estado para a Marinha e para as Colônias, publica uma lei que reestrutura os prazos da

Zambézia e conseqüentemente toda a administração colonial na região central de

Moçambique. A idéia era pacificar as populações locais e desenvolver a economia

zambeziana. As regiões não pacificadas seriam dadas a arrendatários particulares por dez

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anos. Na prática, esses prazos foram dominados por três Companhias de Comércio, a de

Moçambique, a do Niassa e a da Zambézia.

1.4 - A batalha de Chaimite: a captura e o exílio de Ngungunhana

No dia 28 de Dezembro de 1895 o rei do Estado de Gaza (mapas 1 e 2), na região sul

de Moçambique, Mundungaz, mais conhecido como Ngungunhane, ou Ngungunhana, como o

chamam os próprios moçambicanos10

, que em sua língua natal significa o invencível, foi

aprisionado por oficiais do exército português em Chaimite, uma aldeia localizada na região

central de Gaza (Mapa 3), onde seu avô, Manicusse, fundador deste reino, estava enterrado.

Os créditos por sua prisão foram dados a Joaquim Mouzinho de Albuquerque, oficial de

cavalaria, que traçou a estratégia para sua captura.

Do lado português Chaimite significou a possibilidade de recuperação de um Estado

nacional combalido que via na exploração colonial a possibilidade de recuperação da

economia e de prestígio político. O valor simbólico da batalha para os moçambicanos,

entretanto, é mais complexo de ser entendido. Em um primeiro momento, como pretendo

mostrar, a batalha de Chaimite tem um grande significado para as populações locais do estado

de Gaza, que viviam sob o governo de Ngungunhana. Como será mostrado mais adiante, num

primeiro momento, a prisão do rei significou para as populações locais submetidas a sua

libertação de um governo despótico. Em um segundo momento, porém, a euforia inicial pela

libertação foi substituída por um outro tipo de domínio. A captura de Ngungunhana permitiu

aos portugueses iniciar a montagem de uma administração colonial pautada na exploração do

trabalho nativo (Macagno, 1996; Thomas, 2002). Chaimite marcou dessa segunda

perspectiva, o início da desagregação sócio-cultural das populações locais submetidas a um

regime de trabalhos forçados que tinham como justificativa levá-las ao ingresso na

―civilização‖ (Macagno, op. Cit.) tal como o conceito foi entendido pelos europeus.

Os portugueses que atuaram em Moçambique neste período chamaram a batalha de Chaimite

bem como duas batalhas anteriores, os combates de Magul e Coolela de ―guerras de

pacificação‖. O que oficiais portugueses comprometidos com um projeto de Estado

denominaram de ―pacificação‖, foi de fato uma conquista11

, um evento repleto de

significações que serão dados pelos diversos atores.

10

Ao longo desta dissertação vou adotar uma desas duas grafias moçambicanas. 11

Os dois vocábulos têm significados bem diferentes. Segundo o dicionário Houaiss, as definições de

―pacificação‖ são as seguintes: ação ou efeito de pacificar–se, restabelecimento da Paz, enquanto que ―conquista

é entendida como: 1) ato ou efeito de conquistar; 2) Processo de conquistar; 3) a coisa conquistada, território

conquistado freqüentemente pelas armas. O verbo conquistar tem entre outras as seguintes definições: apossar–

se ou dominar pelas armas, submeter, subjugar, tomar.

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Mapa 1 – Mapa de Moçambique Vê–se Gaza ao sul fazendo fronteira ao norte com o

Zimbábue, a noroeste com a África do Sul e ao sul com o Oceano Índico. Fonte: FRY, Peter.

Moçambique: ensaios, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2001.

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Mapa 2 – Mapa do Estado de Gaza. Fonte: Capitão Gomes da Costa, Gaza 1897-1898,

Lisboa, 1898.

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Mapa 3 – Mapa das batalhas entre portugueses e os guerreiros de Ngungunhana.

Pode–se ver bem destacada a capital de Gaza, Mandlakazi e a aldeia de Chaimite. Fonte:

Frelimo. Ngungunhane, Herói da resistência colonial, Maputo, 1983.

O primeiro relato da conquista é do vencedor da batalha um relatório escrito duas

semanas após a prisão e deportação do rei africano, apresentado ao Governador Geral de

Moçambique, o Conselheiro Corrêa e Lança, e que mais tarde, em 1935, seria publicado

juntamente com outros relatórios do oficial escritos entre 1896 e 1898 sob o título de Livro

das Campanhas de Mouzinho de Albuquerque, obra em dois volumes, cujo primeiro deles

inclui o relatório ao qual me refiro. Eis os trechos mais importantes de como os

acontecimentos se deram nas suas próprias palavras.

"Ainda os exemplos de outras guerras de África aumentavam o meu

desalento. O Katchivayo, num país muito menor que o de Gaza,

escapara durante um mês à perseguição do 3º regimento de dragões e da

cavalaria irregular. Lo-Bengula escapara ao major Forbes depois de

haver aniquilado os trinta cavaleiros de Wilson; como poderia eu

agarrar o Gungunhana com umas cinquenta praças a pé, únicas válidas de

que podia dispor? ‖ (Mouzinho de Albuquerque, 1935: 16)

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30

É possível perceber com a evocação do exemplo dado por Mouzinho de Albuquerque,

de um evento ocorrido dois anos antes da captura de Ngungunhana, o aniquilamento dos vinte

soldados da Shangaan Patrol comandados por Allan Wilson por 30 000 guerreiros ndebele

liderados pelo seu rei Lobengula no território do atual Zimbábue, que devido ao número

reduzido de soldados portugueses mal equipados, o próprio Mouzinho de Albuquerque tinha

dúvidas quanto à possibilidade de derrotar o rei de Gaza.

No trecho seguinte, o oficial revela que os chefes de populações locais atormentadas

com as tentativas expansionistas de Ngungunhana, buscavam a proteção das forças

portuguesas. O que elas buscavam de fato era a transferência de vassalagem de um rei

tirânico a outro que lhes desse segurança ao invés de puní-las, o que esperavam do rei D.

Carlos representado então por suas tropas [posso escrever isso nestas palavras???].

Situação semelhante ocorreu quando da fundação do Estado de Gaza por Sochangana, como

foi mostrado acima. Numa das passagens mais importantes do seu relato, Mouzinho faz

referência a uma explosão de tensões sociais. Segundo ele os chefes de populações

governadas pelos nguni pediam que os portugueses prendessem o Ngungunhana para que

tivessem sossego, pois freqüentemente comandava roubos e assassinatos. Ainda segundo

Mouzinho sob a mesma alegação muitos chefes locais teriam buscado a proteção dos

portugueses contra o primeiro rei de Gaza. Com o apoio destes chefes o oficial via uma

possibilidade de poder organizar uma ofensiva contra o ―leão de Gaza‖, um ―ato de audácia‖,

nas palavras do oficial para que Ngungunhana perdesse a força simbólica que tinha.

―Entretanto todos os chefes que vinham pegar pé12

me pediam que

prendesse o régulo vátua13

porque, enquanto ele estivesse livre, eles não

teriam um momento de sossego; todos os dias vinham queixas de roubos

e assassinatos que o régulo mandava perpetrar em volta de

Manguanhana. Por outro lado eu tinha e tenho a convicção de que, com

pretos, um acto de audácia, embora temerário, e quase sempre bem

sucedido, porque lhes produz uma grande impressão e fazê-los perder de

todo a força moral.‖ (Mouzinho de Albuquerque,op. Cit.: 17).

(...)

12

Pegar pé–Expressão de época cujo sentido era de prestar vassalagem. 13

Vátua é a denominação que os portugueses dão aos povos da região do sul de Moçambique. A

denominação correta daqueles povos é nguni.

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Em outro trecho, Mouzinho escreve que pretende prender ou matar Ngungunhana, caso

contrário o rei poderia recuperar forças e a autoridade que estava perdendo devido aos

combates vencidos pelos portugueses em Marracuene, Magul e Coolela. Se os planos de

Mouzinho de Albuquerque não fossem bem sucedidos, as chances portuguesas de conquistar

a tão almejada soberania sobre aquela região estaria ameaçada e com ela as chances de

estabelecer seu poder na África.

―Como V. Exª. vê, tinha-se enraizado no meu espírito a idéia que eu

havia de prender ou matar o Gungunhana dentro de poucos dias, ou a

pouco e pouco todo o prestígio que resultou para as nossas armas dos

combates de Marracuene (2 de fevereiro), Magul (7 de setembro), do

bombardeamento das povoações marginais do Límpopo (19 de novem-

bro), e principalmente do combate de Coolela (7 de novembro) e incêndio

de Manjacaze ( 2 de novembro), se iria obliterando no ânimo destes

povos, e o régulo iria reunindo gente de guerra, recuperando forças e

fazendo voltar à obediência muitos dos que, movidos pelo terror, o

tinham abandonado. Bastaria para isso ele fazer pequenas correrias por

todo o vastíssimo território de Gaza. Daí proveio eu tomar a resolução

inabalável de acabar por uma vez com o régulo vátua, fossem quais

fossem os recursos com que podia contar, os perigos a correr e as

probabilidades de êxito da empresa. E, seja-me lícito neste ponto

afirmar que esta resolução, calando fundo no ânimo dos oficiais e

praças que me acompanhavam, e evidenciando-se aos indígenas que

muito se espantavam da exiguidade das forças de que eu dispunha para

uma empresa que se lhes afigurava tanto mais perigosa quanto era

grande o medo que o régulo ainda inspirava, foi o principal factor do

aprisionamento deste potentado, porque incutiu nas praças um

entusiasmo que os fez vencer fadigas e arrostar perigos com uma alegria

e boa vontade deveras surpreendentes, atendendo para mais ao mau

estado de saúde da maior parte‖. (Mouzinho de Albuquerque,op. Cit.: 17-

18)

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Os dois trechos a seguir mostram o cansaço dos soldados portugueses devido ao clima

muito quente e a pressa do oficial em encontrar o Ngungunhana. Mostra também, o que é

mais importante, que Ngungunhana procurava ganhar tempo e retardar um novo confronto

com as forças portuguesas. Para isso, enviou dois representantes com dinheiro e marfim na

esperança de que o oficial e seus soldados parassem de avançar. Ele pretendia vir

pessoalmente negociar a paz com os portugueses. Mais tarde um dos enviados voltava com o

filho mais velho de Ngungunhana, trazendo além de dinheiro e marfim cabeças de gado e

todas as mulheres do Matibejana14

. A isso Mouzinho de Albuquerque respondeu que pararia a

marcha, mas que se o rei não aparecesse, mataria ambos Godide e Sucanáca.

―(...) Durante a marcha fortes pancadas de água alternavam com um

sol abrasador, de forma que, oficiais e praças, marchando todos a pé,

acompanhando os pretos com uma velocidade não inferior a 10 ou 12

minutos por kilómetro, ora íamos encharcados em água, ora escorrendo

em suor. Como não queria perder tempo, continuei marchando sem

descanso até às onze horas (a. m.). Apareceram-me então dois enviados

do Gungunhana, os indunas Zaba e Sucanáca, trazendo de presente 560

libras (das quais 30 para o Mumbaxéca e 30 para o secretário) e

algumas pontas de marfim. Diziam que o régulo me pedia muito que

não avançasse mais, que ele viria à tarde pegar pé e falar de paz com o

rei seu pai‖. (Mouzinho de Albuquerque,op. Cit.: 23)

―(...) Eram cinco horas (p. m.) quando voltou o Sucanáca acompa-

nhando o Godide, filho do régulo, que trazia sessenta e três cabeças de

gado bovino, 510 libras, duas grandes pontas de marfim e as dez

mulheres do Matíbejana. Trazia um pedido do régulo para que eu não

avançasse mais, novos protestos que ele mesmo viria nessa noite ou

na manhã seguinte. Respondi que eu ficava ali toda a noite e todo o dia

seguinte à espera do régulo, que, se ele não viesse, o Godide e o Zaba

seriam fuzilados e que eu não avançaria mais porque os brancos já não

podiam marchar de cançados que estavam‖. (Mouzinho de

Albuquerque,op. Cit.: 23)

14

Ex–régulo de Zichacha.

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―(...) O tempo melhorara, e a gente de guerra, logo que ouviu

movimento no nosso bivaque, levantou-se para nos acompanhar. O

terreno continuava a ser descoberto e plano, o chão duro. Apressei a

marcha por forma que várias vezes fomos em acelerado‖. (Mouzinho de

Albuquerque,op. Cit.: 24)

―Apareceram pela nossa frente umas três mangas de guerra15

, gente

que evidentemente estava com o Gungunhana, mas cujos chefes vieram a

correr declarar que pegavam pé e pediam para nos seguir. Essa gente

disse que o Gungunhana estava no Chaimite, para onde fora, a fim de

fazer sobre a sepultura de seu avô, Manicusse16

, diversas cerimónias

para arranjar feitiço que impedisse de descobrir onde ele estava‖.

(Mouzinho de Albuquerque,op. Cit.: 24)

A seguir Mouzinho de Albuquerque narra como se desenrolaram os acontecimentos

imediatamente antes da prisão. Relata o cansaço de dois de seus oficiais e que estes se

recuperaram na povoação de Cuio, tio de Ngungunhana. Entretanto, não dá nenhuma informação

acerca de como isso foi possível. Essa passagem mostra como tinha pressa de prender o rei de

Gaza e que tendo isso em mente não dá ordem para que a marcha parasse. O oficial ordenou aos

guerreiros africanos que o acompanhavam que cercassem a aldeia. Mouzinho de Albuquerque

entrou em Chaimite junto com os seus soldados. Enquanto os africanos continuavam cercando a

aldeia.

―Pelas seis horas e trinta minutos (a. m.) avistávamos Chaimíte no

meio de um terreno arenoso, cheio de marçala e morros de muchem,

portanto muito facilmente defensável. Então apressei a marcha ainda mais

apesar de as guerras indígenas começarem a deixar–se para a retaguarda,

ou por terem medo que o régulo se defendesse ou influenciados pelo

prestígio que ele ainda tinha, conseguindo só a força de distribuir

espadeiras, fazer avançar alguma gente conosco. Nessa ocasião duas

praças (soldados) brancas caíram exaustas, mas eu não podia demorar–me

15

Mangas de Guerra–regimentos. 16

Aqui Mouzinho de Albuquerque se refere a Sochangana.

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um momento que fosse, e por isso a marcha continuou sem haver a

mínima interrupção. Essas praças foram levadas pela gente de guerra preta

para a retaguarda, e passaram o resto do dia e da noite na povoação do

Cuio reunindo a força no dia seguinte. A uns dez minutos da povoação dei

ordem para que as guerras formassem um cordão em volta dela. Os

pretos assim fizeram ficando a cerca de 100 metros da paliçada que

cercava as palhotas‖.

(...) A uns dez minutos da povoação dei ordem para que as guerras

formassem um cordão em volta dela, e que só entraria dentro a força

branca. Os pretos assim fizeram, ficando a uns 100 metros da palissada

que cercava as palhotas. (...) Dava ingresso na povoação uma única

entrada de não mais de 40 centímetros de largura‖. (Mouzinho de

Albuquerque,op. Cit.: 24-25)

O oficial dá a sua impressão do significado da aldeia de Chaimite no imaginário dos nguni.

Relata também que a julgar por crânios e corpos abandonados na redondeza as proximidades

de Chaimite deveriam ter sido palco de combates recentes.

― A povoação de Chaimite (...) era uma espécie de cidade santa dos

vátuas, e deviam ter ali passado cenas de grande carnificina, tanto

antigas como muito recentes, porque ao aproximarmo-nos da

povoação encontramos algumas caveiras humanas já brancas, ao

mesmo tempo em que se sentia um cheiro muito intenso de carne

podre e os pretos disseram depois que no mato estavam vários

cadáveres‖. (Mouzinho de Albuquerque,op. Cit.: 25)

A seguir Mouzinho relata seu ―ato de audácia‖. Vendo os guerreiros de Ngungunhana

armados correu sobre eles. Esperava uma reação, que não houve. Pelo contrário, os guerreiros

correram. Esta ação que Mouzinho de Albuquerque chama de ―ato de covardia‖, foi a única coisa

que o impediu de ser morto, pois, reconhece que dada a inferioridade numérica e bélica não só

ele poderia morrer, mas todo o seu regimento.

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―Corri para ali à frente dos brancos, ao passo que o círculo dos

pretos se ia apertando a pouco e pouco. Entrei na frente seguido pelo

tenente graduado Couto, dr. Amaral, primeiro tenente Miranda e

intérprete. Julguei, logo que entrei, que o régulo se defenderia, porque

vi encostados à palissada do lado interior alguns pretos com

espingardas, parecendo preparar-se para fazer fogo. Como trazia a

espada na mão, corri logo sobre eles e, ou fosse porque já tivessem de

todo perdida a força moral, ou por verem logo atrás de nós a testa da

coluna que derrubara as estacas laterais da entrada, é certo que nenhum

fez fogo, deitando todos a fugir e sumindo-se nas palhotas. Este acto de

cobardia dos pretos foi providencial, pois fuzilando-me a 10 metros de

distância (que maior não era a que me separava deles), teriam

provavelmente morto todos os oficiais, os auxiliares teriam fugido

logo, e as praças brancas, sem ter quem as dirigisse, teriam

provavelmente sido trucidadas pêlos 250 ou 300 pretos que depois vi

que calavam dentro da povoação‖. (Mouzinho de Albuquerque,op. Cit.:

25-26)

Aqui o oficial narra à primeira vez que viu o Ngungunhana. Tendo descoberto onde o rei

estava chamou-o e como não ouviu nenhuma reação ameaçou pôr fogo.

―Vendo, logo que os pretos fugiram, sair de uma palhota próxima

um homem de coroa, perguntei-lhe pelo Gungunhana, e ele apontou-me

para a mesma palhota de onde saíra. Chamei-o muito de alto no meio

de um silêncio absoluto, preparando-me para lançar fogo à palhota,

caso ele se demorasse, quando vi sair de lá o régulo vátua, que os

tenentes Miranda e Couto reconheceram logo, por o terem visto mais de

uma vez em Manjacaze‖ (Mouzinho de Albuquerque,op. Cit.: 26)

A seguir, Mouzinho de Albuquerque se refere à Ngungunhana como arrogante. A

narrativa do soberano tendo as mãos atadas e sendo atirado no chão é demonstração máxima

da humilhação ou da cerimônia de degradação (Garfinkel, 1956) sofrida pela África

metaforizada em Ngungunhana pela Europa, personificada em Mouzinho de Albuquerque.

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Segundo Garfinkel uma cerimônia de degradação é ―Any communicative work between

persons whereby the public identity of an actor is transformed into something looked on as

lower in the local scheme of social types.‖ (Garfinkel apud Antonio, 1972: 287). Essa

transformação em algo inferior implica uma transformação de identidades (Garfinkel, 1956:

420). Um primeiro exemplo dessa transformação ocorre quando o rei é obrigado a sentar–se

no chão, algo que alguém em sua posição nunca fazia e em seguida ouve de Mouzinho de

Albuquerque que a partir daquele momento já não era mais rei, mas sim uma pessoa

desprezível. A legitimidade de Ngungunhana havia se esfacelado. O soberano antes temido

havia sido levado ao chão. E a covardia referida é sintoma da perda de legitimidade do rei,

visto que chegou a Chaimite fugindo dos portugueses contra quem havia perdido dois

combates anteriormente.

―Não se pode fazer idéia da arrogância com que ele se apresentou e

do tom desdenhoso com que respondeu às primeiras perguntas que lhe fiz.

Mandei-lhe prender as mãos atrás das costas por um dos dois soldados

pretos e disse-lhe que se sentasse. Perguntou-me onde, e como eu lhe

apontasse para o chão, respondeu-me muito altivo que estava sujo. Obri-

guei-o então à força a sentar-se no chão (cousa que ele nunca fazia)

dizendo-lhe que ele já não era régulo dos anguni, mas um matonga17

como qualquer outro. Quando o viram sentar, a guerra preta que a esse

tempo já se tinha vindo encostar ao lado exterior da palissada, além dos

que tinham trepado às árvores e ao tecto de algumas palhotas isoladas

que havia no exterior mesmo próximo à palissada, levantaram grande

alarido, batendo com as zagaias nas rodelas em sinal de aplauso e

espanto‖. (Mouzinho de Albuquerque,op. Cit.: 26)

O oficial em seguida narra o fuzilamento dos tios de Ngungunhana.

Um de seus tios, Manhune reconhece que deveria morrer por ter agido

contra os portugueses. Ao narrar como este tio de Ngungunhana

morreu, Mouzinho de Albuquerque demonstra uma certa admiração,

visto considerá–lo altivo mesmo na hora da morte. Seguiu–se a morte

17

Matonga – Pessoa desprezível.

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de Quêto, único tio de Ngungunhana que não havia prestado

vassalagem a Portugal razão pela qual deveria morrer.

―Perguntei ao régulo por Quêto, Manhune, Molungo e Maguiguana.

Mostrou-me o Quêto, Manhune, que estavam ao pé dele, e disse que os

outros dois não estavam.

Exprobei a Manhune (que era a alma danada do Gungunhana) o ter

sido sempre inimigo dos portugueses, ao que ele só respondeu que sabia

que devia morrer.

Mandei-o então amarrar a uma estaca da palissada e foi fuzilado por

três brancos. Não é possível morrer com mais sangue frio, altivez, e verda-

deira heroicidade; apenas disse, sorrindo, que era melhor desamarrá-lo

para poder cair quando lhe dessem os tiros.

Depois foi Quêto. Ele fora o único irmão do Muzila que quisera a

guerra contra nós, e o único que fora ao combate de Coolela. Não tinha

vindo pegar pé como tinham feito Inguiusa e Cuio, seus irmãos.

Dizendo-lhe eu isto, respondeu que não podia abandonar o Gungu-

nhana, a quem tinha criado como se fora pai; retorquindo-lhe eu, que a

quem desobedecia e fazia guerra ao Rei de Portugal deviam pai, mãe e

irmãos abandoná-lo. Mandei-o amarrar também e fuzilar‖. (Mouzinho de

Albuquerque,op. Cit.: 26–27)

A reação dos guerreiros africanos, teria sido de euforia a julgar pelo

narrado pelo oficial. A seguir narra a reação de Ngungunhana à morte de seu

tio. Teria entregado tudo o que possuia esperando ter a vida poupada.

―Estas duas execuções produziram na guerra preta um entusiasmo

indescritível, que manifestaram com ruidosos e repetidos bayetes, o que

mostra bem que eles confundem perfeitamente a força e coragem com a

crueldade, e que é absolutamente necessário destes exemplos para os

dominar e fazermo-nos respeitar‖.

(...) O régulo perdera toda a arrogância depois da morte do Quêto.

Disse que dava tudo o que tinha, e entregou l.000 libras e 8 diamantes.

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Mandou recado ao filho Ipsota para trazer todo o gado que levara mais

para longe, e mandou igualmente procurar mais marfim a Manjacaze,

onde ficara enterrado, dizendo que assim esperava que o Rei lhe perdoas-

se a morte. O portador destas ordens foi o Zaba, que eu mandara soltar.‖

(Vilhena,op. Cit.: 142, 145-146)

Este trecho, embora extenso, é valioso, pois, demonstra bem a humilhação sofrida por

Ngungunhana, bem como as idéias de Mouzinho de Albuquerque quanto aos africanos, a

conquista e a situação precária na qual se encontravam os portugueses. As palavras do oficial

realçam a crença de superioridade do conquistador frente ao dominado, considerado

racialmente inferior.

Segundo Pélissier, a prisão de Ngungunhana por Mouzinho de Albuquerque foi ―uma

simples ação de comandos‖ como outras praticadas por outros europeus a serviço das

metrópoles imperialistas na África. Segundo Vilhena, Mouzinho de Albuquerque vencera o

rei de Gaza não pela força, mas pela astúcia. Utilizando estratégias como segredo, diplomacia,

prudência, boatos, jogo de aparência, rapidez e o elemento surpresa (Vilhena, 1999: 140).

Através dessas táticas, Mouzinho de Albuquerque consegue compensar a grande inferioridade

numérica. Embora tenha dito ao filho de Ngungunhana que ficaria ali até que ele aparecesse,

continuou a caminhada até a aldeia. Ao longo do caminho, guerreiros de populações locais,

inclusive das que seguiam Ngungunhana acompanhados de seus chefes se juntaram aos

portugueses. Foram esses chefes que entregaram a localização de Ngungunhana em Chaimite.

O rei havia ido à aldeia fundada por seu avô, porque acreditava que este poderia impedir os

portugueses de encontrá–lo.

A euforia que causaria nos portugueses tem como motivação segundo Pélissier (2000

b) apenas o fato de que Ngungunhana foi preso no meio daqueles que lhe serviam. O ocorrido

em Chaimite foi para o historiador francês um episódio que revestido de romantismo devido

―a morbidez dos tempos‖. E mais, para o autor, a prisão de Ngungunhana foi ―a bóia de

salvação para uma sociedade e um governo afogados na delinqüência‖, ou ―um golpe de mão‖

de um oficial, chamado pelo historiador francês de centurião e templário (em alusão ao

comandante da centúria, unidade básica das legiões do exército romano que deveria ter suas

ordens prontamente atendidas e aos monges cavaleiros cristãos da idade média, que tinham

como função inicialmente proteger locais sagrados do cristianismo tendo depois se

transformado em propagadores da fé cristã em combate aberto aqueles que professavam ritos

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diferentes, sobretudo muçulmanos) que alcançou o posto de Governador Geral (Pélissier,

2000 a: 176 e 2000 b: 300-302). Esta nomeação havia causado enorme desgosto ao oficial,

como mostra uma carta escrita ao seu amigo Conde de Arnoso (Mouzinho de Albuquerque,

1957:06)

Governo de Lourenço Marques Gabinete do Governador

21-3-96

Meu caro Bernardo

Muito obrigado pela tua carta. Só hoje lhe respondo porque a recebi no Maputo.

Meteram-me a Governador Geral! Estou desolado. Adeus mato, adeus correrias aos

pretos. Agora é despachar papéis numa secretária. Paciência.

Mando-te o relatório da prisão do Gungunhana, pedindo-te o mostres a El-Rei. Por aí verás

que a façanha foi tanto de militar como de bandido e bem preparadinha à preto.

0 Maputo como guerra não deu nada. Como razias, assaltadas, etc., esplêndido e que

pitoresco! Nem vocês todos imaginam o que é divertida uma coisa destas.

Mas agora Governador Geral! Que maçada! Adieu ce qu'il me restait de jeunesse. Oh ma

belle jeunesse! — Que tristeza isto faz!

Não te esqueças do pai e irmãs do Caldas Xavier, perde essa querença de pôr nas mãos

dos filhos as cartas que te escrevem e recebe o mais amigável e apertado dos abraços do teu

amigo sincero

J. MOUZINHO DE ALBUQUERQUE

Essa carta é valiosa, pois mostra como o oficial encarava a nova função, de forma bem

negativa porque faria um trabalho burocrático, e como ele encarava sua ação na prisão do

Ngungunhana, um misto de ação de militar e de bandido.

Já o historiador inglês Malyn Newitt, não tece considerações acerca do que foi ou não

a prisão de Ngungunhana. O autor apenas narra o desenrolar dos acontecimentos, o lento

desgaste das relações do rei de Gaza com os portugueses. Limitou-se a dizer que o rei havia

sido preso no dia 28 de dezembro de 1895.

Devido a todos os fatos supracitados, a prisão de Ngungunhana em Chaimite é

revestida de uma grande importância simbólica para Portugal. Representou uma vitória dupla:

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sobre o rei africano e sobre as pretensões inglesas. O ato de Mouzinho de Albuquerque, só foi

possível devido a longos planejamentos para tornar mais efetiva a presença portuguesa na

região, que tinham como base as idéias do Marquês de Sá da Bandeira. Tais planejamentos

que foram formulados pelo Comissário Régio Antonio Enes foram postos em prática por

alguns oficiais, entre eles o próprio Mouzinho de Albuquerque.

Uma outra fonte, um relatório do Comandante Álvaro Soares de Andréa, comandante

da canhoneira Capelo que estava ancorada à foz do rio Chengane onde Ngungunhana

embarcou no dia 30 de dezembro com destino a Lourenço Marques18

e intitulado A Marinha

de Guerra na campanha de Lourenço Marques e Contra o Gungunhana e publicado nos

Anais do Clube Militar Naval entre 1897 e 1898, mostra a revolta do oficial com a conduta de

Mouzinho de Albuquerque, tanto com as mortes dos dois tios de Ngungunhana, Manhune e

Quêto quanto com a forma como os prisioneiros foram tratados, deixando transparecer o

caráter frio, violento e arrogante do oficial. Segundo Vilhena (1999), Alvares de Andrea escreveu

um outro relatório em que conta detalhes omitidos por Joaquim Mouzinho de Albuquerque no seu

relatório, cujos trechos reproduzi. Detalhes esses que esclarecem passagens pouco explicadas e

contradizem outras.

A autora escreve que em seu relatório o Comandante, conta pormenorizadamente como se

deu a participação da marinha nos acontecimentos que culminaram na prisão de Ngungunhana. As

terras de Ngungunhana eram cortadas por três rios, o Incomati, o Limpopo e o Inharrime. Assim sendo,

as forças do exército contavam com divisões da marinha como apoio. Havia cinco unidades

canhoneiras a disposição, três no porto de Moçambique e duas no porto de Lourenço Marques. Após a

explosão de uma rebelião em Lourenço Marque, a Marinha enviou reforços, mais precisamente

canhoneiras fluviais para patrulhar os rios. Soares de Andrea era comandante de uma delas, a Capelo.

Os planos de Antonio Enes para derrotar Ngungunhana, contavam com três tropas que penetrariam por

Gaza através desses rios.

Após suas derrotas em Marracuene e Magul, Ngungunhana ainda controlava as populações das

margens do Limpopo e do Bilene.

Soares de Andrea, relata Vilhena começa então a contactar os régulos dessas regiões e lhes informa

que se Ngungunhana não entregasse seus régulos Matibejana e Mahazul, suas povoações seriam

bombardeadas. A resposta do lado africano foi ríspida. Não só o rei se recusou a entregar os régulos,

como as populações locais ameaçavam a tripulação. No dia 5 de outubro, os oficiais desembarcaram e

18

A primeira parte do caminho de Ngungunhana em direção ao exílio realizou–se da seguinte maneira: a

pé de Chaimite a Zimacaze, onde estava a capelo, que seguiu pelo rio Chengane até a foz do Rio Limpopo onde

embarcou a bordo do Vapor Neves Ferreira, que levou os prisioneiros a Lourenço Marques onde se inicia a

segunda parte da viagem a caminho da Europa a bordo do navio África.

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reunindo–se com os indunas, tentaram convencê–los do mal que a canhoneira poderia fazer. Para

demonstração ordenaram que se dessem alguns tiros. Assustados prometeram se comunicar com o rei.

Ngungunhana teria ordenado as prisões de seus dois régulos, mas como estes não se apresentaram até a

data estipulada, no dia 16 de outubro a Capelo atacou as povoações.Com medo dos bombardeios,

destruições e incêndios, os régulos da região prestaram vassalagem aos portugueses no dia 23 de

outubro. No dia 27 Ngungunhana mandou seu filho mais velho Godide avisar que iria prender e

entregar os dois régulos rebeldes. Entretanto, segundo a autora chegou à localidade de Chai–Chai, onde

estava localisada a Canhoneira Capelo junto com um regimento para aprisionar a embarcação. O que

não ocorreu. A julgar pelo que diz a autora, pode ter havido um combate, pois, Godide teria relatado ao

pai que contra a embarcação nada poderia ser feito, já que ― punha tantas balas no ar que pareciam

moscas‖ (Vilhena, op. Cit.: 151). Entretanto, a autora não revela qual a fonte dessa informação.

Para conseguir a submissão das povoações da região de Chai-Chai o comandante Soares de Andrea

no dia 27 de outubro obriga-os a entoar o Incuaia, canto de guerra de Ngungunhana. Após uma

resistência inicial os indunas cantam. Naquele momento a obediência ao Ngungunhana havia

terminado. Estava aberto o caminho para a submissão do rei como mostra essa passagem do relatório:

― Estava conseguido o maior passo que se podia dar no caminho da submissão do Limpopo: o Incuaia

seria de ali em diante o hino da revolução contra o Gungunhana‖ (Soares de Andrea apud Vilhena, op.

Cit.: 151).

Em seguida Munhi, um régulo da região acompanhado de um induna, Deven–Deven sobe a bordo

da Capelo para estabelecer segundo a autora uma relação de amizade e confiança. A partir daí as

populações da região que haviam fugido para o interior retornam. Entra em cena um africano chamado

Sigogo, que segundo Vilhena era dedicado ao comandante da Capelo e vai ser um emissário entre ele e

Ngungunhana, exercendo um papel importante na rendição do rei.

No dia 7 de Novembro, o exército de Ngungunhana sofre nova derrota em Coolela. No dia 11

Mandlakazi é incendiada. O rei foge se sentindo traído pelos tios, uma vez que a autoa não diz quando

ao certo, mas três dos tios de Ngungunhana Cuio, Inguiusa e Jambul no dia 14 de Novembro tinham

ido a bordo da Capelo, jurado Vassalagem e prometido que entregariam o sobrinho. Quatro dias depois,

Soares de Costa intimou Ngungunhana a ir a bordo da Capelo para prestar vassalagem. No dia 22 de

Novembro, três indunas do rei de Gaza se apresentam ao comandante para combinarem como tudo

deveria se passar. O rei estava, segundo Vilhena com medo que lhe cortassem a cabeça.

Assim sendo, o comandante Soares de Andrea acreditava que o Ngungunhana estava próximo a se

entregar a ele. Entretanto, no dia 10 de dezembro é criado o distrito militar de Gaza e Joaquim

Mouzinho de Albuquerque é nomeado Governador deste distrito. A partir daí Soares de Andrea teria

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que parar com as negociações que estavam quase levando o rei de Gaza a se entregar. Sabia então, que

outro e não ele levaria o reconhecimento pela prisão do Ngungunhana, que seria feita de uma forma

arbitrária e que violava o código de conduta militar. A partir deste momento, o comandante da Capelo

sabia que deveria obedecer as ordens de Mouzinho de Albuquerque. É ele quem conduz o oficial, o

tenente Sanches de Miranda e 50 soldados no dia 25 de dezembro pelo rio Limpopo até a foz do rio

Chengane, local conhecido como Vau do Gungunhana onde chegou no dia seguinte. No dia 27 de

madrugada seguiram à pé até Chaimite.

As últimas notícias que Soares de Andrea tinha sobre a movimentação do Ngungunhana, segundo

Vilhena, era de que ele estava em Manguanhana, mas o comandante acreditava que ele estava em

marcha na direção de onde a canhoneira Capelo estava ancorada para se entregar. Dois enviados do rei

chegaram a Capelo para dizer onde ele estava. Encontrava–se em Ungongo, uma povoação entre

Manguanhana e Chaimite. Seguia para a antiga capital de seu avô de onde deveria seguir para se

entregar a Soares de Andrea. Segundo o comandante, a parada em Chaimite foi feita para que

Ngungunhana pudesse oferecer sacrifícios junto ao túmulo do avô para que os portugueses não

cortassem a sua cabeça ao se entregar e não para impedir que os portugueses o encontrassem como faz

crer o relatório de Mouzinho de Albuquerque. Não era necessário, pois, que Mouzinho de Albuquerque

e seus homens fossem a chaimite, visto que o Ngungunhana iria se entregar. Esta seria a razão pela qual

ao verem Mouzinho de Albuquerque avançar de espada na mão os guerreiros de Ngungunhana

fugiram.

No dia 28 de dezembro recebe um bilhete de Mouzinho de Albuquerque comunicando a prisão de

Ngungunhana e que este deveria chegar lá no dia seguinte. A autora reproduz trechos do relatório de

Soares de Andrea que são omitidos no relatório de Mouzinho de Albuquerque, sobretudo com relação à

conduta do tenente Sanches de Miranda. Este tendo na preça do desembarque esquecido a sua espada

pediu a de Soares de Andrea empretada. Está voltou suja de sangue até o meio. Logo depois de entregar

a espada ao verdadeiro dono, o tenente pede–lhe que grave a seguinte inscrição que é a razão da espada

ter voltado como estava: ― Empunhada por Sanches de Miranda, atravessou os corações de Quêto e

Manhune, no Chaimite, em 28-12-1895‖ (Soares de Andrea, apud Vilhena, op. Cit.: 155). Ao matarem

os dois, os oficiais portugueses quebraram uma promessa de Soares de Andrea a Ngungunhana, a de

que nada seria feito contra os seus familiares.

A prisão de Ngungunhana segundo o comandante da Capelo não teve nada de heróico. Foi uma

arbitrariedade cometida por homens sedentos por sangue. As irregularidades cometidas foram motivo

de um pedido de abertura de sindicancia contra Joaquim Mouzinho de Albuquerque e Sanches de

Miranda, que além de não ter a publicidade devida foi engavetada. Após sua exoneração em 1907,

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começa a escrever cartas publicadas pelo jornal O Liberal, em que conta a sua versão dos fatos e acusa

Mouzinho de Albuquerque de ter alterado a verdade dos fatos.

Nenhum dos demais autores aqui trabalhados demonstra preocupação com a visão do

lado derrotado. O maior medo de Ngungunhana e de seu filho Godide ao subirem na Capelo,

é que fossem fuzilados. Como demonstra a passagem abaixo:

―Parvo, estonteado, o Gungunhana andava à roda sem mesmo se poder

orientar com o local em que se achava, fazendo para todos um único gesto

expressivo, passando com a mão no pescoço, como quem corta a cabeça.

Mudo, repetia sem cessar o mesmo movimento, até que o encaminharam

para ré, como havíamos determinado antes dele entrar a bordo.

Após ele entrou o Godide, que, novo e ligeiro, seguiu logo o pai e,

reconhecendo-nos, bateu-lhe nas costas dizendo: comandante, ao mesmo

tempo que nos apresentava mostrando-nos com a mão ao pai.

Dito isto, avançam logo os dois e atiram-se-nos aos pés agarrando-se às

nossas canelas; por entre um confuso arranzel em vátua misturado com

português, o Gungunhana beijava a nossa bota do pé esquerdo enquanto

que o Godide fazia o mesmo à outra.(...) As palavras comandante...

estimela...filho de rei...corta cabeça, feriam-nos os ouvidos a todo o

instante; o Godide, que melhor se fazia perceber em português, pedia-

nos, em resumo, que lhe não mandássemos cortar a cabeça nem ao

Gungunhana, pois que pediam perdão ao Rei de Portugal do que haviam

feito e que o pai dava tudo para que os não mandassem matar". ( Soares de

Andrea apud Vilhena, op. Cit.: 203).

Essa fonte mostra diferenças de visão entre os próprios membros das forças armadas

portuguesas, pois deixa claro que o capitão desaprova as ações de Mouzinho de Albuquerque.

Maria da Conceição Vilhena, por intermédio de quem tive acesso a essa fonte, demonstra o

tratamento dispensado por Mouzinho de Albuquerque aos prisioneiros. O relatório de Soares

de Andréa nos mostra a reação de Ngungunhana aos acontecimentos e como ele se sentia ao

ver aqueles que antes o serviam ou temiam caçoando de sua derrota. Eis aqui uma nova

demonstração da cerimônia de degradação sofrida por Ngungunhana com a sua prisão em

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Chaimite. Segundo Garfinkel, a transformação de uma identidade social em algo inferior, não

é a simples substituição de uma identidade por outra, mas sim, a pessoa degradada se torna

aos olhos de seus algozes e daqueles que a conheciam uma nova pessoa. A identidade da

pessoa degradada se reconstitui e a identidade anterior se transforma em mera aparência

(Garfinkel, 1956: 421-422). A identidade de Ngungunhana estava agora transformada:

daquele rei temido não restava nada. Moralmente arrasado, o rei implacável agora chorava

pedindo clemência e dizendo que ele nunca quis a guerra, mas que foi impelido por outros a

fazê–la.

―Magoado com a tão grande falta de respeito dos indígenas que

lá fora vociferavam e riam, o ex-régulo de Gaza pede para falar com

o comandante da Capelo:

"O déspota chorava então; as lágrimas jorravam em fio pelas negras

faces, como nunca julgámos um negro chorar.

Puxando para perto de si todos os seus parentes e mulheres, disse por

intermédio do filho:

«Comandante, vê estes homens que ali me insultam agora? São os

mesmos que me levaram à guerra, que eles queriam e eu nunca quis.»

E com os olhos fitos para nós ficou chorando, como que desconsolado

de não lhe darmos logo uma resposta qualquer que parecia desejar para

mitigar o seu desgosto‖. ( Soares de Andrea apud Vilhena, op. Cit.: 204)

O comandante também compara europeus e africanos no que se refere à deposição de

reis. Com isso, é possível perceber um grau de semelhança entre as duas culturas. A alteridade

aqui não implica, portanto, apenas em diferenças, mas também em semelhanças. Tendo ambas

as sociedades monarquias como forma de governo, os dilemas, as disputas por poder são

semelhantes. Vale aqui relembrar as disputas entre Muzila e Mawewe e a execução de

Mafemane a mando de Ngungunhana porque este desejava o poder, a traição de seus tios

prometendo entregar o rei aos portugueses.

―Ficámos pensativos e nesse exemplo víamos nós a cópia fiel do que

sucede a cada passo entre os povos civilizados; a traição e a deslealdade

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são frutos que medram tão bem nos sertões africanos como nos salões

europeus!

E, relembrando factos, uma só resposta nos afluiu aos lábios:

«Diga-lhe lá que tenha paciência, que se console, porque isso mesmo

sucede com os brancos uns com os outros.» ( Soares de Andrea apud

Vilhena, op. Cit.: 204)

O relato continua mostrando o grau de amedrontamento do rei

diante da dúvida sobre seu futuro, principalmente se o deixariam vivo

ou o matariam:

―No mesmo instante rompia a salva (de 21 tiros) comandada pelo ofi-

cial imediato da Capelo.

O Gungunhana ergue-se aterrorizado ao primeiro tiro, de novo se

lança aos nossos pés, acenando se o iam matar; custou a tranquilizá-lo,

parecia louco. Só dizendo-se-lhe que dali em diante só EI-Rei de Portugal

dispunha da sua vida, é que serenou um pouco". ( Soares de Andrea apud

Vilhena, op. Cit.: 204)

(...)

Em seguida Soares de Andrea relata a reação dos negros que haviam servido ao Ngungunhana e

daqueles que eram seus inimigos ao verem o rei preso. Esta é outra demonstração da cerimônia de

degradação sofrida pelo rei. Entoaram trechos do Incuaia, cântigo de guerra que exaltava o poder do

régulo. Esta entoação porém, longe de exaltar a figura de Ngungunhana era cantada em tom de ironia

(Vilhena, op. Cit.: 147). A transformação de sua identidade em algo menor aqui é bem evidente. Agora

vendo–o preso pelos portugueses aqueles que antes viviam sob a sombra do medo, vendo–se livres

entoavam o incuaia de uma forma desrespeitosa vendo que aquele que se considerava invensível na

situação em que se encontrava, não pudia puní–los, apenas recentir–se. A reação do rei deposto diante do

que via despertou a pena do comandante.

―Pobre Gungunhana! Que provação imensa não terá sido para ele este dia de

infortúnio; choviam trechos do Incuaia, insultos, cuspiam-lhe das margens,

ameaçavam-no de lá com as zagaias...e ele tudo observava com os olhos

arrazados de lágrimas, mordendo os lábios e abafando em soluços toda a

mágoa que lhe ia na alma. Coitado!

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E, assim nos expressamos, porque supomos que os negrófilos nos

permitirão admitir que os negros tenham alma, senão igual, pelo menos

parecida, com as dos homens de outra raça.‖ (Soares de Andrea, apud Vilhena,

op. Cit.: 205)

Esses trechos são de grande importância porque testemunham a reação de Gungunhana ao que estava

acontecendo ao seu redor: o seu choro pela perda de seu poder, o leão que julgava que só as morte o tiraria

de seu lugar social agora via–se a caminho de uma terra desconhecida onde seu futuro era incerto, a reação

das populações até então submetidas ao verem o tirano derrotado.

Uma outra fonte que demonstra como essa perda de legitimidade foi progressiva sendo

diretamente proporcional ao ganho de respeitabilidade dos portugueses é o relato de Antonio

Enes das ―guerras de pacificação‖. Em ―As guerras de África de 1895‖ (1947), o antigo

comissário régio português, dá sua versão dos fatos, mostrando a amplitude do poder de

Ngungunhana e como as autoridades portuguesas inicialmente confinadas no litoral e vistas

pelas populações locais como também submetidas ao poder do rei nguni, foram conquistando

a vassalagem dessas progressivamente. Tudo passa pela demonstração da superioridade no

uso da força. Enes procurou assim, engrandecer a ação dos portugueses. Para melhor ilustrar

o que pretendo dizer reproduzo um trecho da obra:

―O Gungunhana além das forças materiais tinha também a

serviço da sua defesa a força moral do terror que inspirava‖. Só quem

esteve na África Oriental sabe avaliar bem o que essa força era. Criava

uma atmosfera a cujos influxos não se furtavam os próprios brancos

do ânimo mais viril. Do Zambeze para o sul falava–se do Gungunhana

como um deus. O Gungunhana era a omnipotência, a omniciência, a

vista que perscrutava pensamentos, o castigo a que nenhuma culpa se

esquivava, a majestade a que todas as majestades se deviam, a

soberania a qual não se isentava independência alguma. Quem viu em

Lisboa esse negro boçal, de ar tímido e bonacheirão, que o África

trouxe cativo, não imagina, não acredita que poder quase sobre–

humano ele exerceu sobre as multidões humanas. Eu mesmo o

observei. Sucedendo–me em 1891, dizer a um mísero régulo das

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margens do punge que se o Gungunhana o perseguisse sabe-lo–iam

defender as tropas, que estavam na Beira, o ingênuo negro olha–me

com espanto, a ver se eu estava louco; quando lhe repeti a promessa

desatou a rir com uma entonação de zombaria que me desesperou.

Freire de Andrade perguntou uma vez a um certo vátua, que o servia e

se demonstrava sempre corajoso, o que faria se o Gungunhana lhe

desse a ordem para matar a própria mãe – matava-a ! – respondeu o

obcecado sem hesitação. Assim era temido e obedecido o monstro que

o senhor capitão Mouzinho de Albuquerque fez sair de Chaimite a

ponta pés. (Enes, 1947: 398)

Na passagem acima Antonio Enes relata o medo que a figura de Ngungunhana

inspirava tanto em negros quanto em brancos. Para os primeiros, da região do Zambeze ao sul

era visto como um deus impiedoso. Entretanto, a esse mesmo deus, após a chegada a Lisboa,

o ex-comissário régio chama de ―negro boçal, de ar tímido e bonacheirão‖. Aqui a

degradação, a transformação em algo inferior é evidente.

―Na campanha de 1895, não custou tanto vencer os vátuas

quanto vencer o terror que os vátuas inspiravam (...). O terror,

justificado ou não, era a verdadeira trincheira impenetrável que cobria

o Manjacase. Para rompê-la tornou–se necessário criar outras forças

morais, e essas foram para as tropas a consciência da sua

superioridade militar, adquirida moralmente em Magul; contra os

negros, o novo terror que lhes causavam o armamento e a intrepidez

das tropas (...)‖ (Enes, op. Cit.: 398).

Em seguida, Enes relata que o terror inspirado por Ngungunhana nas populações da

região de Mandlakazi era o verdadeiro obstáculo para vencer o rei. Esse só foi vencido com a

vitória na batalha de Magul, onde as populações locais e as tropas portuguesas tomaram

consciência da superioridade bélica de que dispunham. O medo seria suplantado pela

confiança nas armas. Entretanto, como foi mostrado, essa superioridade de pouco valeu para a

sua derrota, visto que quando da sua prisão em Chaimite já havia se conformado a entregar-se

aos portugueses.

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1.5-Na seqüência de Chaimite: a despedida de Moçambique e a vida no exílio

Após a comparação da visão dos autores sobre a prisão de Ngungunhana, passo agora

para a análise da forma como Vilhena retrata os acontecimentos que sucederam à prisão e a

chegada no exílio em Lisboa. Nenhum dos outros três autores dedica capítulos de suas obras

ao que ocorreu com Ngungunhana após ser capturado. A explicação para isso é creio o fato de

que a obra de Vilhena é uma biografia de Ngungunhana, sendo as demais uma biografia de

Mouzinho de Albuquerque e estudos sobre o colonialismo português tendo a África como o

palco de suas análises.

Após serem exibidos publicamente às autoridades portuguesas em Lourenço Marques

Ngungunhana, sete de suas esposas, seu filho mais velho Godide, Molungo, um dos conselheiros do rei

deposto, o régulo Zichacha e três de suas esposas foram embarcados no navio África que os levou a

Lisboa. Durante as paradas deste navio em Luanda e em Cabo Verde foram presos com grilhões aos

beliches para que não fugissem. Quanto a dieta alimentar, mantinham a de costume, pois, junto com os

prisioneiros estava o cozinheiro de Ngungunhana, Gó. Além disso, os portugueses serviam a

Ngungunhana garrafas de vinho branco, bebida com a qual se acostumou após anos de convivência com

autoridades portuguesas.

Na chegada em Lisboa, no dia 13 de março de 1896 segundo Vilhena, os prisioneiros causaram

alvoroço. Todos queriam ver de perto o rei deposto e os outros prisioneiros. Um dos primeiros a ver

Ngungunhana, o ex-Comissário Régio Antonio Enes, interrogou–o sobre as intrigas e guerras contra os

portugueses. O rei deposto por intermédio de intérprete, seu lusófono filho mais velho Godide, acusou

Zichacha, que também fora exilado de ter fomentado as intrigas. Ambos, segundo Vilhena, se acusavam

mutuamente. Segundo a mesma autora, após desembarcar, Ngungunhana pedira perdão e implorava para

que voltasse às suas terras. Seu pedido foi negado. Disseram–no que só El rei de Portugal podia dispor de

seu futuro. Dali foram em carros separados para a prisão de Monsanto, mas não houve uma exibição

humilhante. Na prisão de Monçanto passaram seus primeiros dias em Portugal. Inicialmente instalados em

casamatas frias humidas e escuras, os africanos sofreram com o frio da capital portuguesa. Devido aos

protestos de desaprovação da imprensa com relação a esse tratamento, o governador do forte, General

Sepúlvida transfere-os das casamatas, que ficavam seis metros abaixo da superfície para aposentos no

primeiro piso onde havia luz e ar. A partir daí, o tratamento teve uma significativa melhora: com relação a

comida, como demonstraram não gostar da comida servida aos sargentos, foi dada permisão para que

comessem alimentos preparados segundo seus gostos. Gó fica então encarregado de cozinhar para seus

senhores. Após uma semana em Monsanto, foram construídas casas de banho e foram designados alfaiates

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e costureiras para fazer–lhes roupas. Dali foram transferidos para compartimentos com mais infra–

estrutura e lhes foram dados cobertores.

A presença de Gungunhana em Lisboa levou a um verdadeiro fenômeno em Portugal: a grande

imprensa publicava a toda hora notícias sobre os prisioneiros, Ngungunhana se transformou numa

mania nacional. Não eram fabricados apenas cartões postais com o nome do rei deposto, mas também

viraria nome de restaurante e de biscoitos, além disso foram fabricadas bengalas com seu busto.

Ngungunhana virou segundo a autora um fenômeno comercial e publicitário (Vilhena, op. Cit.: 234-236).

No dia 22 de junho a Direção Geral do Ultramar encaminhou um ofício urgente para o Diretor Geral da

Secretaria de Guerra solicitando a autorização para a transferência dos prisioneiros para a Ilha dos Açores,

mais especificamente para a Ilha Terceira na canhoneira Zambeze. A autorização foi dada e no mesmo dia

à noite os prisioneiros embarcaram. Suas reações foram de medo. Ngungunhana convenciado de que

iriam lhe cortar a cabeça rolava no chão recusando-se a se vestir. As mulheres por sua vez choravam e

gritavam diante da possibilidade de se separarem dos seus maridos. Godide estava mais calmo, pois, por

falar português, sabia que não se tratava de execução (Vilhena, op. Cit.: 244).

A transferência deveria ser feita em sigilo. Entretanto, a informação vaza e a imprensa fica

sabendo. Os jornais Diários de Notícias, Diário Ilustrado, Vanguarda, Popular e Século noticiaram a

transferência. Entretanto, só embarcaram os quatro homens. Todos estavam segundo a autora relata, ―no

limiar do aniquilamento‖. Ngungunhana teve que ser levado para a canhoneira carregado, estava ansioso a

ponto de não conseguir andar direito. Estava com medo que o matassem. Eis aqui mais um exemplo da

cerimônia de degradação, que começou em Chaimite e só continuou no exílio até a sua morte. Vilhena

descreve assim o estado do rei deposto de Gaza ― (...) Gungunhana cambaleante a gemer que não o

matassem. Alguns, talvez, insensíveis à sua desgraça ; e ele a tremer descontroladamente apavorado.

Soluça, implora, geme, humilha–se, pede perdão. Os últimos vestígios de sua dignidade decadente. Mas

ninguém quer a sua cabeça, afirmam–lhe‖ (Vilhena, op. Cit.: 245). A degradação de Ngungunhana é bem

nítida nessa passagem. Era impensável antes da sua captura vê–lo implorando, gemendo, se humilhando e

pedindo perdão por ter feito o que estava ao seu alcance para fazer o possível para manter o controle sobre

o estado que governava. Agora tudo o que lhe importava era concervar a própria vida. As dez mulheres que

os acompanhavam, sete de Ngungunhana e três de Zichacha, juntamente com o cozinheiro Gó, foram

deportados para a Ilha de São Tomé. Partiram do Forte de Monsanto no dia 06 de julho.

A razão da separação ao que tudo indica segundo a autora, seria uma campanha de moralização

devido à repercussão negativa da poligamia dos prisioneiros. Segundo a imprensa da época, teria-se

tentado convencer Ngungunhana e o Zichacha a escolher apenas uma de suas esposas. Como estes se

recusaram a escolher só uma, pois, Ngungunhana especialmente teria declarado que gostava de todas do

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mesmo modo, decidiu–se pela separação. A ausência de suas esposas teria sido uma das razões de seu

lento definhamento.

Quanto às mulheres, tendo chegado a São Tomé , a autora contrasta três fontes com informações

acerca do seu destino. A primeira delas, o jornal A folha do povo de 13 de novembro de 1896, informava

que oito das dez mulheres estavam colocadas no hospital civil e militar (não há esclarecimentos quanto ao

que isso significa), enquanto que as outras duas estariam no palácio do governo onde pouco ou quase nada

faziam. O jornal lamenta ainda que não tenham sido empregadas em algum trabalho pelo qual poderiam

receber uma remuneração. Uma outra fonte, o livro de J.F. Pereira intutulado No tempo de Gungunhana

publicado em 1899 informa que as mulheres ao chegarem em São Tomé foram ―servir de mancebas, em

amiganços baratos , e para acarretar pedras.‖ Por sua vez, Antonio Pedro de Vasconcelos num filme

intitulado ―Aqui d ́El Rei ‖ que a autora não informa o ano em que foi feito, faz uma personagem dizer

que as mulheres foram levadas para ―um bordel do exército‖. A autora, no entanto, esclarece que não

encontrou documentos que confirmassem qualquer uma dessas informações. A autora procegue dizendo

que as mulheres apenas interessavam enquanto eram rainhas de um estado cobiçado por europeus, tendo

sido esquecidas pelas autoridades após a prisão do soberano, visto que não representariam perigo algum.

(Vilhena, op. Cit.: 255--257).

Ao chegarem a Ilha Terceira, foram encaminhados para o Castelo de São João Batista, no Monte

Brasil. Ali ações foram tomadas no sentido de convertê-los ao catolicismo, ensinar-lhes hábitos da cultura

portuguesa da época, como vestir-se à européia e aprender a ler e escrever a língua portuguesa.

A introdução dos prisioneiros ao catolicismo, não foi efetuada pelo Monsenhor, mas sim por dois

padres jesuítas. A cerimônia de batismo, acontece em 16/04/1899 quando já estão na Ilha Terceira, nos

Açores. A partir desse dia, os quatro prisioneiros passam a se chamar Reinaldo Frederico Gungunhana,

Antonio da Silva Pratas Godide, Roberto Frederico Zichacha, e José Frederico Molungo. Vilhena

especula sobre a escolha destes nomes:

―Quanto aos novos nomes dados aos neófitos, só para o de Godide foi

dada uma explicação: a da gratidão a Monsenhor Pratas. Relativamente aos

outros tres, como receberam todos o prenome de Frederico podemos supor que

terá sido por homenagem ao então governador do castelo, general Frederico

Augusto de Almeida Pinheiro. Roberto, prenome do Zichacha, poderá ter sido

por sugestão deste, numa homenagem secreta do padre Roberto Mashaba, o

grande amigo que o incitara a lutar contra os portugueses, e que estava

deportado em Cabo Verde. Quanto ao José de Molungo e Reinaldo de

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Gungunhana, pensamos tratar de uma escolha puramente arbitrária.‖ (Vilhena,

op. cit., p. 261)

A assimilação cultural era o objetivo do projeto colonial português. Os habitantes das colônias

deveriam ser transformados em portugueses d´além mar. Lourenço Macagno (2001) em sua análise do

papel da Geração de 1895, sobretudo de Antonio Enes como formuladores da forma como deveria se dar a

assimilação, mostra que no que se refere a religião, a conversão ao catolicismo deveria ficar a cargo das

missões religiosas. As missões para Antonio Enes deveriam ensinar aos nativos a adorar a cruz,

mais também a bandeira portuguesa. Deveriam ocupar em todos os sentidos o papel de

educadores no império. Tanto para Antonio Enes quanto para Mouzinho de Albuquerque, as

missões deveriam ter como função a criação de uma ―nacionalidade portuguesa‖ nas

populações locais. A educação, entretanto, não foi privilégio dos jesuítas. Nas décadas de

1870 e de 1880, começaram a ser fundadas em Moçambique missões protestantes, em

especial metodistas (Macagno, 2001: 83-84). Como foi visto acima, estas já haviam sido

previstas no Tratado de 1885, que resultou na fundação da escola onde os filhos de

Ngungunhana foram alfabetizados em português.

Dos quatro prisioneiros, Molungo é o que se mostra mais refratário a aprender a ler e escrever em

Português. A educação dada pelos padres jesuítas, buscava apresentar aos prisioneiros a moral européia

buscando para isso apresentar-lhes os feitos de homens da antigüidade. As tradições africanas deveriam ser

suplantadas. A autora, entretanto, se questiona se no cotidiano os quatro aderiram de fato ao cristianismo

quando não estavam sendo catequisados. Para Vilhena, nos momentos em que estavam a sós cultivavam a

lembrança de seus costumes (Vilhena, op. Cit.: 267).

Até 1901, aos prisioneiros era permitido apenas andar nas dependências do castelo. A partir desse

ano, foi dada permissão para que saíssem e fossem onde desejassem. Entretanto, a medida que o exílio se

estendia e a esperança de voltar a terra natal, que eles sempre mantiveram não se concretizava, a vida foi se

transformando em monotonia. O dia-a-dia se resumia a comer, beber e passear. Aos poucos o interesse dos

portugueses pelos prisioneiros esvaiu-se. Tendo perdido as esperanças de um dia voltar a Gaza, segundo

Vilhena Ngungunhana não vivia, mas sim vegetava, a vida se transformou em melancolia. O que se via era

―um imperador em decomposição‖ (Vilhena, op. Cit.: 270 e 279). Nutria um ódio silencioso por Mouzinho

de Albuquerque e por D. Carlos.

Neste momento Ngungunhana encontrava-se no final de sua cerimônia de degradação. Aquele rei de

quem todos tinham medo, que um dia fora ―a omnipotência, a omniciência, a vista que perscrutava

pensamentos‖ era agora ―envelhecido pelo seu orgulho desiludido e fatigado de humilhação‖.

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Segundo Vilhena no final de sua vida Ngungunhana havia se tornado manso e dócil. A autora

então se pergunta ―a que preço reprimira, hora a hora o grito de raiva que o oprimia?‖. Sua

grandeza africana havia se tornado miséria européia (Vilhena, op. Cit.: 280-281).

Ngungunhana morre em 23 de dezembro de 1906. A causa da morte teria sido hemorragia

cerebral. Seu filho Godide morreu de tuberculose em 31 de julho de 1911 aos 35 anos de

idade. Molungo é o próximo a morrer. Aos 80 anos de idade e já cego morre em 05 de

outubro de 1912. Zichacha morre em janeiro de 1928, sendo o único a deixar descendentes na

ilha, visto que viveu seus últimos anos com uma companheira açoriana. Finalmente, a autora

mostra qual foi o impacto da conquista de Gaza sobre os outros membros da família de

Ngungunhana. Segundo ela, houve um processo de dispersão geográfica. No Transvaal

passaram a viver algumas das esposas de Ngungunhana que ficaram em Moçambique, como

Sonie e Patihina, assim como alguns dos seus tios.

Quanto aos filhos de Ngungunhana, que eram ao todo cerca de vinte, segundo a autora,

muitos simplesmente desapareceram. Não há registros do destino de muitos deles após a

queda do reino de Gaza. Tornaram–se personagens anônimas. Alguns deles, valendo-se do

anonimato, teriam ingressado no exército português como soldados e ido para o Timor Leste.

Além da dispersão da família, houve, segundo Vilhena, uma diáspora nguni por territórios

vizinhos após a queda de Ngungunhana19

, pois muitos fugiram da exploração portuguesa

considerada mais cruel do que a praticada até 1895.

1.6–Análise iconográfica: a representação imagética da conquista

A iconografia que será aqui analisada foi encontrada em duas fontes: a biografia de

Ngungunhana escrita por Maria da Conceição Vilhena e o folheto comemorativo da

independência de Moçambique produzido pela Frelimo. A maior dificuldade em trabalhar

estas fotos diz respeito a autoria delas. Com exceção da figura 1 nenhuma possui crédito. Não

é possível averiguar quando e onde foram pela primeira vez publicadas. Entretanto, se

tomadas em conjunto, podem ser vistas como uma narrativa visual em que se vê claramente o

processo que passaram da cerimônia de degradação à assimilação cultural. A primeira figura

mostra o momento de sua prisão e o fuzilamento de dois de seus tios, Manhune e Quêto. A

19

A maioria deles se dirigiu para a região de Mabulanine, na região de Sepoken sob o comando de um tio

de Ngungunhana chamado Mepissane. Outros chefiados por um homem chamado Guijá foram se fixar numa

região chamada Devesha. Em 1933 esses dois grupos contariam com respectivamente 30.000 e 15.000 imigrados

que estariam sendo liderados por Tulimahanche, filho de Ngungunhana.

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identidade do autor dessa gravura é desconhecida foi, porém, publicada na revista portuguesa

O Ocidente (Cunha, 1944), sendo reproduzida num documento da Frelimo sem o devido

crédito. Um fator chama de imediato à atenção, a aparente superioridade numérica dos oficiais

portugueses que estão em primeiro plano sobre as populações locais, com o que parece ser os

corpos de Manhune e Quêto fuzilados ao fundo.

Sabe-se, entretanto, pelo relato de Joaquim Mouzinho de Albuquerque acima referido

que a proporção numérica era inversa. Vale a pena aqui fazer referência a reflexão de Roland

Barthes sobre a mensagem fotográfica.

A mensagem fotográfica segundo Roland Barthes (1961) é formada por duas partes:

uma sem código, o análogo fotográfico e uma outra que é conseqüência desse conjunto de

signos, uma retórica, uma escritura. As interpretações desta dependem do saber do leitor.

Passo a palavra agora a Roland Barthes:

―Qual é o conteúdo da mensagem fotográfica? Que é que a

fotografia transmite? Por definição, a própria cena, o real literal. Do

objeto à sua imagem, há decerto uma redução: de proporção, de

perspectiva e de cor. Mas esta redução não é em nenhum momento

uma transformação (no sentido matemático do termo); para passar

do real à sua fotografia, não é de nenhum modo necessário

fragmentar o real em unidades e constituir essas unidades em signos

substancialmente diferentes do objeto que oferecem à leitura; entre

este objeto e sua imagem não é de modo algum necessário interpor

um relê, isto é, um código; decerto, a imagem não é o real; mas ela é

pelo menos seu perfeito analogon, e é precisamente esta perfeição

analógica que, para o senso comum, define a fotografia. Surge assim

o estatuto particular da imagem fotográfica: é uma mensagem sem

código; proposição de que é necessário extrair imediatamente um

corolário importante; a mensagem fotográfica é uma mensagem

contínua.‖ (Barthes, 1978 (1961): 304-305).

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Imagem. 1 Fonte: Frelimo. Ngungunhana herói da resistência colonial, Maputo, 1983.;

CUNHA, Amadeu. Mouzinho. A sua obra a sua época, Divisão de Publicações e Biblioteca,

Agência Geral das Colônias, 1944.

A mensagem não é o real. É sua representação. E como tal, aquele que a fabricou pode

dar a ela o conteúdo que desejar de acordo com um objetivo que tenha em mente. Uma

possibilidade de interpretação desta gravura por ter sido publicada inicialmente em um

periódico português é a glorificação da ação dos oficiais subordinados a Mouzinho de

Albuquerque. Com a publicação desta mesma gravura no folheto da Frelimo ela ganha um

novo contexto. Passa a representar a subjugação dos nguni e a tirania do conquistador

europeu.

A imagem 2 que aparece sem atribuição de fonte no livro de Vilhena mostra Ngungunhana e duas

de suas esposas já a bordo do África a caminho do exílio sendo observados atentamente pelos demais

passageiros. É nítida a expressão de desalento e desespero por parte do rei deposto. Não há como saber se é

uma representação de Ngungunhana a caminho do exílio feita a posteriori ou se foi tirada de fato após o

seu embarque.

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Imagem 2: Ngungunhana a bordo do África sendo observado por passageiros. In: Maria da

Conceição Vilhena. Gungunhana grandeza e decadência de um império africano, Lisboa,

Edições Colibri, 1999.; Frelimo. Ngungunhane herói da resistência colonial, Maputo, 1983.

A imagem a seguir (imagem 3) retrata os prisioneiros após a chegada a Lisboa. A forma como a

fotografia retrata os prisioneiros, bem como a representação que passa ao seu público receptor

toca num ponto importante quando se busca compreender a relação entre imagens e suas

múltiplas interpretações possíveis, o olhar. A imagem nos mostra os prisioneiros vestidos com

roupas pesadas dadas a eles ao longo da viagem para Portugal. As mulheres vestem por cima

de suas roupas cobertores, que segundo Vilhena foram dados a elas durante a parada do

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África em Cabo verde. Quanto ao olhar, que é o mais importante para a minha discussão, percebe-se

claramente que algumas das mulheres se recusam a olhar para a câmera. Pelo menos três delas olham para

o chão. Ngungunhana, sentado ao centro, ao contrário, olha diretamente para a câmera. Com exceção de

uma das mulheres, a que está sentada à esquerda, que visivelmente olha para uma direção que transpassa a

câmera, as demais olham para uma direção que não é possível identificar devido a qualidade da foto.

De um ponto de vista antropológico, o olhar pode ser analisado como um campo onde é possível

verificar as tensões entre um eu e seu outro que se encontram em situação de estranhamento e conflito.

Segundo Lutz e Collins (1993) em suas considerações sobre a interseção de múltiplos olhares

sobre as imagens publicadas na revista National Geografic, há quatro tipos de olhares que se

interligam: os olhares do fotógrafo, do leitor, do fotografado, usualmente povos não

ocidentais e da própria revista ou de qualquer outra mídia impressa. Para o que me interessa

aqui os olhares mais importantes são o do fotógrafo e o do fotografado. A interseção desses

olhares sintetiza a relação que há entre os dois lados.

Assim sendo, o olhar do fotógrafo e a representação que pretende passar para o leitor

do evento que está testemunhando, definem as suas escolhas técnicas que vão transformar

suas fotos num analogon do real como coloca Barthes (1961).

Já o olhar do fotografado segundo as autoras é o tipo mais importante de todos. Sua

direção pode dar margens às mais diversas interpretações de sua visão diante do fato de estar

sendo fotografado, o que em última instância mostra–nos o grau das relações interculturais

entre os povos envolvidos. Um olhar direto pode ter vários significados: indica um

reconhecimento de que há um fotógrafo e um leitor; uma confrontação com o olhar do

fotógrafo e do leitor ou a aceitação por parte do fotografado de que ele está sendo observado.

Outros tipos de olhares que é possível se encontrar são muito diferentes. Entre eles há olhares

distantes, amigáveis, hostis, indiferentes ou então curiosos. Há situações em que os olhares

podem representar o extremo aborrecimento e descontentamento com o fato de serem

fotografados. Creio ser este o caso no qual se encaixam os olhares de Ngungunhana e suas

esposas. Afinal, estavam distantes de sua terra natal, sendo expostos a observação pública

como troféus.

Creio estar diante aqui do mesmo fenômeno analisado por Aloulla em seu ensaio fotográfico analisado

por J.W.T.Mitchell (2002). Malek Aloulla assim como o que tento fazer aqui, analisa

fotografias tiradas por outras pessoas. Seu material de pesquisa são postais de prostitutas

argelinas comercializados na França. A primeira coisa para a qual J.W.T. Mitchell chama

atenção é o ―fantasma da degradação‖ imposta aos povos colonizados pela imaginação do

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colonizador. O que Aloulla propõe é a desconstrução de um olhar colonial. As imagens que

aqui analiso documentam visualmente a cerimônia de degradação (Garfinkel,1956) que foi

demonstrada ao longo do presente capítulo.

Imagem 3–Foto de Gungunhana tirada com suas mulheres no Forte de Monsanto em

Lisboa. Observa–se algumas de olhar baixo e no centro Ngungunhana em atitude oposta

olhando para a câmera. Fonte: Maria da Conceição Vilhena. Gungunhana grandeza e

decadência de um império africano, Lisboa, Edições Colibri, 1999; Frelimo. Ngungunhane

herói da resistência colonial, Maputo, 1983.

A imagem 4, abaixo, mostra o ápice do processo de assimilação sofrido pelos

prisioneiros. Aqui já sem as mulheres, deportadas para Cabo Verde, os quatro prisioneiros

posam após o batismo. Essa foto contrasta visivelmente com as demais. Aquelas demonstram

prisioneiros amedrontados diante da incerteza do futuro. Esta é o retrato do sucesso, naquele

momento do projeto assimilacionista. Os africanos, de costumes bárbaros tinham sido

convertidos ao cristianismo passando também a adotar os usos e costumes portugueses.

Havia, como foi mostrado acima, resistência aberta de um dos prisioneiros, Molungo, o que

não impediu que a conversão ao catolicismo fosse levada a diante, pois, como prisioneiros

pouco efeito tinha qualquer tentativa de resistência. O que ocorreu com os prisioneiros é um

exemplo de sucesso dos planos da Geração de 1895, tal como foi visto. Esta assimilação se

deu, entretanto, pela via religiosa, e não pela via do trabalho como preferiam Antonio Enes e

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Joaquim Mouzinho de Albuquerque, que naquele contexto detinham o monopólio da

violência simbólica, ou ―poder de nomeação‖ que submeteu um grupo heterogêneo de povos à

categoria uniformizante de indígenas contra a categoria de um outro que se pretendia superior

(Macagno, 2001:86-87).

Segundo este autor, colonizar para os portugueses do final do século XIX era sinônimo

de civilizar. O que deveria ser o resultado de um processo de submissão das populações locais através do

aproveitamento da mão–de–obra. No que se refere à administração colonial, cuja montagem é analisada

pelo autor, na prática o que estava em jogo era a tutela das populações nativas (Macagno, op. Cit.: 78). O

que se vê no caso dos quatro prisioneiros é uma introdução à civilização européia pelo viés da moral. A

foto tirada no dia do batismo, mostra os quatro de trajes europeus. Aquele momento marcava a

possibilidade de sucesso da politica assimilacionista portuguesa, que seria implantada progressivamente ao

longo do século XX, sobretudo no período salazarista, quando as idéias administrativas da geração de

1895, principalmente as de Mouzinho de Albuquerque foram retomadas.

(Imagem .4 -. Fotografia dos quatro prisioneios após o batismo em 16/04/1899 na Ilha Terceira nos Açores

Ngungunhana e Molungo encontram–se sentados.Godide e Zichacha estão de pé à esquerda e à direita

respectivamente. Fonte: Maria da Conceição Vilhena. Gungunhana grandeza e decadência de

um império africano, Lisboa, Edições Colibri, 1990.

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Capitulo 2-Mouzinho de Albuquerque em três tempos

2.1-Considerações teóricas sobre biografias

Tratarei, neste capítulo, da análise do discurso produzido por alguns biógrafos de

Joaquim Mouzinho de Albuquerque. Seguindo o mesmo método serão examinadas, no

capítulo seguinte, as biografias de Ngungunhana, o rei africano deposto.

Buscarei mostrar que as biografias analisadas não foram aleatórias. Escritas em

momentos históricos bem demarcados, elas desempenharam uma certa função social que,

como mostrarei no item a seguir, está ligada ao momento vivido pela sociedade portuguesa e

à relação entre o Estado Nacional e o Império Colonial.

Ambos os personagens foram e talvez ainda sejam vistos como heróis nacionais.

Minha reflexão encontra respaldo em Matsinhe (1997), na medida em que este mapeia o

caminho seguido pelos autores das biografias de Samora Machel e Eduardo Mondlane,

também vistos como heróis nacionais. Tal representação converte-se em ponto de partida para

a reflexão sobre a construção de um projeto de Estado Nação.

Seguindo, ainda, Matsinhe (1997), busco analisar os processos empregados na

formulação de discursos biográficos sobre Joaquim Mouzinho de Albuquerque e

Ngungunhana, além de inferir como as trajetórias de ambos contribuíram para que

transcendessem à condição de heróis nacionais, símbolos em volta dos quais se construiu, no

contexto das nações modernas, uma idéia de nacionalidade. Para este autor, “herói” é uma

definição a posteriori de uma pessoa pelos seus méritos e virtudes que, em certos casos,

levam ao auto-sacrifício. A partir disso, o autor aponta a importância da morte para a

construção de figuras heróicas.

“Sem pretender estabelecer critérios objetivos de definição de

herói, pois na definição e no reconhecimento de uma pessoa como

herói existem vários critérios não muito claros e nem sempre

inteligíveis, podemos arriscar afirmar que, a categoria de herói é

geralmente atribuída a posterior, como reconhecimento da “carreira”,

dos méritos e das virtudes de alguém, tido como muito abnegado, e

essa abnegação atinge o ponto máximo com o sacrifício da própria

vida, com a morte, na luta por determinados ideais, em torno dos quais

os interessados em reconhecer atos heróicos se identificam.

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Nesta linha de raciocínio, o procedimento da consagração

heróica passa pela idéia de sofrimento e atinge o clímax com a morte

pela causa. E a idéia de luta e resistência pela pátria é freqüentemente

usada como fonte de legitimação de aspirações nacionalistas.

É geralmente a partir da morte, que a vida e a obra do

personagem é apropriada, lida e relida com ênfase nos aspectos

considerados positivos e/ou favoráveis à causa das pessoas e dos

grupos engajados” (Matsinhe, op. Cit.: 128).

Dadas suas implicações e desdobramentos, tal linha de reflexão converte-se em

ferramenta utilíssima para empreender a análise proposta.

Em seu ensaio “A ilusão biográfica” (1996), Pierre Bourdieu defende a tese de que as

biografias são uma construção da vida de um indivíduo a partir das preocupações daquele que

a escreve. A biografia é uma narrativa seletiva escrita a partir da eleição de determinados

eventos. Há escolhas de determinados acontecimentos significativos em detrimento de outros

da vida do biografado.

Pensar sobre biografias leva Bourdieu a pensar no que vem a ser a vida do ponto de vista

social. A vida, diz ele é usualmente vista como um conjunto de fatos que são ligados entre si

como uma história, que na visão do senso comum é uma trajetória com início, meio e fim,

sendo que este último tem um duplo significado, de fim e de finalidade. Devido a isso,

usualmente quando se produz uma história de vida esta é vista como um conjunto de fatos

orientados numa dada direção que ganha a partir daí um certo significado. Bourdieu chama a

atenção para o fato de que ao agir assim, aquele que se dedica a escrever uma biografia está

na verdade produzindo uma ilusão retórica.

“(...) o fato de que a vida constitui um todo, um conjunto coerente

e orientado, que pode e deve ser apreendido como expressão unitária

de uma “intenção” subjetiva e objetiva, de um projeto (...) essa vida

organizada como uma história transcorre segundo uma ordem

cronológica que também é uma ordem lógica (...).

O relato, seja ele biográfico ou autobiográfico, como o do

investigado que “se entrega” a um investigador propõe

acontecimentos que, sem terem se desenrolado sempre em sua estrita

sucessão cronológica (quem já coligiu histórias de vida sabe que os

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entrevistados perdem constantemente o fio da estrita sucessão do

calendário), tendem ou pretendem organizar–se em seqüências

ordenadas segundo relações inteligíveis.

Essa propensão a tornar–se o ideólogo da sua própria vida,

selecionando, em função de uma intenção global, certos

acontecimentos significativos e estabelecendo entre eles conexões

para lhes dar coerência, como as que implica a sua instituição como

causas ou, com mais freqüência, como fins, conta com a cumplicidade

natural do biógrafo, que a começar pelas suas disposições de

profissional da interpretação, só pode ser levado a aceitar essa criação

artificial de sentido.

(...) Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história,

isto é como um relato coerente de uma seqüência de acontecimentos

como significado e direção, talvez seja conformar–se com uma ilusão

retórica, uma representação comum da existência que toda uma

tradição literária não deixou e não deixa de reforçar”. (Bourdieu,

1996: 193-195)

Maria Lucia Pallares–Burke vê a história de vida como uma seleção de fatos que

dependendo da inclinação de seus autores podem ser divididas em clássicas ou românticas.

Tomando essa classificação emprestada de seu biografado, Gilberto Freire, de quem procura

traçar a trajetória intelectual em Um vitoriano nos Trópicos (2005), a autora explicita que

clássicas seriam as biografias escritas com um tom exaltador, como uma apologia. Para os

autores deste tipo de obra, vale a pena retratar apenas os sucessos, os triunfos da vida do

biografado. As biografias românticas ou vitorianas, ao contrário, privilegiam as imperfeições,

as hesitações, as frustrações de suas personagens. Buscam, em uma única palavra, mostrar o

seu lado humano.

“Os que insistem em retratar os homens em seus traços olímpicos,

sem imperfeições ou incoerências, como que sacrificam a dimensão

humana das personalidades estudadas e correm o risco de imobilizá-

las em “figuras de mármore”, transformando-as em ficção monótona e

fria. Esse é o tipo de biógrafo a quem Freyre chama de “clássico”.

Contentando-se em revelar os triunfos, os sucessos e os traços

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harmoniosos do seu objeto de estudo, o biógrafo clássico esconde e

abafa “os fracassos ou os insucessos; os despeitos; os ressentimentos;

as ambições; os amores ou os interesses contrariados; as invejas; os

complexos; as fraquezas.

(...) Freyre argumenta que diferentemente do “clássico”, o

biógrafo “romântico” ou “à inglesa” é aquele a quem não repugna o

inacabado, o incorreto, o imperfeito”, pois sabe que a complexidade e

a contradição são marcas da humanidade, e que convém não acreditar

nunca na existência de homens em que a vida não tenha deixado

cicatrizes, deformações, marcas repugnantes ou apenas lamentáveis.

Pois nenhum homem, grande ou medíocre, mas principalmente grande

é até o fim da vida um só homem ou uma só pessoa, mas “vários

homens, várias pessoas”. Uma vida analisada sob o “aspecto único da

respeitabilidade ou do sucesso, da coerência ou da lógica” atraiçoa

definitivamente a verdade (...)” 1. (Pallares-Burke, 2005: 49-50)

A resignificação de vidas a partir da morte é o caminho mais proveitoso para se analisar

os discursos dos autores de biografias. Sobretudo quando se leva em conta o momento em que

foram escritas. No caso do oficial português, são muitas as biografias escritas ao longo do

século XX, sobretudo, a partir da década de 1930, tendo sido a produção intensificada na

década de 1950, mais precisamente em sua segunda metade, visto que em 1955 comemorou–

se seu centenário. Esta produção, entretanto, continua até o presente. A biografia mais recente

que encontrei no Real Gabinete Português de Leitura tendo sido lançada em 2003. Já no caso

de Ngungunhana, a produção de suas biografias é bem menos intensa. Tive acesso a apenas

três obras sobre o rei deposto, sendo que uma das obras é um folheto comemorativo

produzido pela Frelimo de 1985 e uma biografia outra de 1999 da autoria de Maria da

Conceição Vilhena, apresentada no capítulo anterior e que será retomado no capítulo seguinte.

2.2-As celebrações oficiais pelo centenário do nascimento de Mouzinho de Albuquerque

(1955-1958): reelaborando um herói nacional

Entre os anos de 1935 e 1936, Amadeu Cunha iniciou a recuperação da memória de

Mouzinho de Albuquerque, ao publicar uma biografia do oficial em cinco fascículos. Estes

1 Gilberto Freyre define a biografia romântica numa linha semelhante à defendida por John Ruskin em

livro intitulado “The Nature of the Gothic”.

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faziam parte da coleção de caráter essencialmente didático, intitulada “Pelo Império” 2, a qual

dedicava boa parte de seu escopo a render graças a personalidades vistas como marcantes na

história do colonialismo português. Outros membros da geração de 1895 foram lembrados

nessa coleção, porém, apenas o oficial, que ficou conhecido como “o herói de Chaimite” foi

transformado no “maior mito contemporâneo da história portuguesa para o salazarismo (apud,

Leonard, 1998: 26)

“Mouzinho, cuja celebração do centenário de seu nascimento

em 1955 deveria marcar o apogeu desse culto voltado à sua memória,

encarnava idealmente “o modelo de grande homem do Estado-Novo:

nacionalista, corajoso, temerário, incorrupto, rejeitando a instabilidade

política, defensor de uma autoridade forte, verdadeiro chefe”. (Seabra,

apud Leonard, op. Cit.:26)

Pelo decreto lei nº40.329 de 8 de Outubro de 1955, instalou-se a Comissão Nacional

para as Comemorações do Centenário de Mouzinho de Albuquerque, a quem chamaram de “o

português de ouro”. De uma considerável variedade de títulos organizados por essa comissão,

cuja função era reforçar a representação acima citada, escolhi dois, bastante representativos e

exemplares daqueles organizados pela “Comissão”: Ecos do centenário de Mouzinho e Livro

do Primeiro Centenário de Mouzinho de Albuquerque, ambos de 1958. Os volumes foram

escolhidos por serem obras que permitem a clara verificação dos discursos oficiais de culto a

personalidade que recolocaram Mouzinho de Albuquerque na categoria de herói nacional.

A obra Ecos do centenário de Mouzinho, uma coletânea de depoimentos sobre o

mesmo, conta com um texto introdutório da autoria do General Francisco Higino Craveiro

Lopes, então Presidente da República portuguesa, na qual revela que as comemorações se

iniciaram em Lisboa em 1955, terminando em Moçambique no ano de 1958. Segundo o

Presidente português, o encerramento ocorreu em Moçambique pela então colônia africana ter

sido o cenário onde Mouzinho de Albuquerque “melhor serviu a Portugal” (Lopes, 1958:05)

2 Esta coleção, idealizada pela Agência Geral das Colônias, cujos autores eram em sua maioria oficiais de

carreira, era destinada a um público vasto. Tinha como finalidade despertar interesse da população portuguesa,

sobretudo dos jovens, com relação às colônias, enaltecendo as personalidades que marcaram a história da

colonização portuguesa, visto que havia um total desconhecimento da realidade colonial pela população da

metrópole. Ao publicar essa coleção, a Agência Geral das Colônias tinha como finalidade “produzir uma

imagem e um discurso positivos sobre esse império” (Leonard, 1998:24). Era, portanto, uma estratégia de

propaganda do regime salazarista, que utilizava como ferramenta de convencimento, uma frase de Armindo

Monteiro, Ministro das Colônias de 1931-1935 “As colônias são desde já a nossa pátria, corpo e alma de

Portugal”. Em finais de 1940, já havia setenta dos cento e trinta e um volumes previstos publicados. (Leonard,

1998:26).

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onde se manifestaram “as suas extraordinárias virtudes de militar que resplandeceram no

fulgor de seus atos heróicos, mas se não revelam com menos brilho quando assumiu as

responsabilidades de chefe”. (Lopes, op. Cit.:05)

A obra reúne centenas de depoimentos de contemporâneos de Mouzinho de

Albuquerque e de autoridades do governo português das décadas de 1930-50, que exultam ora

sua personalidade, ora suas ações durante seu período de serviço em Moçambique.

Inicio com o depoimento de Antonio Enes sobre a prisão de Ngungunhana, colhido do

livro do ex Comissário-Régio “As guerras de África de 1895” pelos organizadores do volume.

Esse trecho mostra a reação de Antonio Enes à notícia da prisão de Ngugunhana. A exultação

e a surpresa do ex Comissário-Régio com os detalhes da captura do régulo são quase

palpáveis.

“Outros narravam o feito preclaro de Chaimite. Como eu exultei!

Quarenta e seis homens só, só quarenta e seis portugueses, tinham

posto a ferros o potentado que, meses antes, aterrava toda a África do

Sul! O edifício da vitória, que deixara incompleto tinha já a sua

cúpula, e nunca eu a sonhara tão alterosa e arrojada! As gratidões do

meu espírito julgaram vê–la encimada por uma cruz radiosa” (Enes,

apud Eça, 1958: 33)

Vale à pena reproduzir aqui dois outros depoimentos da época. Ambos são de amigos

de Mouzinho de Albuquerque, também membros da chamada “Geração de 1895”: Henrique

Paiva Couceiro e Ayres de Ornelas. O primeiro depoimento, de Paiva Couceiro, oficial de

artilharia e ex Governador-Geral de Angola, retrata a reação da sociedade portuguesa à notícia

da prisão de Ngungunhana e da fama que o oficial alcançou em nível nacional devido a esse

feito.

“Nesses casos esteve Mouzinho quando voltou de

Moçambique, e a fama do seu nome glorioso ecoava retumbante, de

lar em lar, até as mais apartadas aldeias do reino, até aos mais

longínquos confins do mundo, onde vibrasse um coração português.

Era o símbolo vivo. Era o mineiro apetrechado com a incomparável

ferramenta de prestígios notórios e radiantes. Era a bandeira sugestiva

chamando gerações novas ao ressurgimento das antigas tradições

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ilustres. Quis a bandeira abater-se. Mas a memória ficou. Prestemo-

lhes nosso culto permanente, que ela é troféu da Pátria” (Couceiro,

apud Eça, op. Cit.: 35).

Já o depoimento seguinte, de Ayres de Ornelas, antigo Ministro da Marinha e do

Ultramar, companheiro do oficial e seu chefe de Estado–Maior, exalta a figura de Mouzinho

de Albuquerque enquanto militar, sobretudo a capacidade para o comando.

“Nascido para chefe, Mouzinho revelou-se condutor de

homens a primeira vez que comandou. A certeza tranqüila na

execução do golpe de Chaimite, tão logicamente concebido, afirmou o

homem que as multidões aclamaram com o instinto seguro que as faz

descobrir o vencedor, aquele sob cujas ordens grandes coisas se

fazem” (Ornelas, apud Eça, op. Cit.: 35).

Os depoimentos seguintes foram proferidos por Marcelo Caetano, ex-ministro das

Colônias do governo português (1944-1947) e por periódicos publicados em Moçambique. O

depoimento que se segue, de Marcelo Caetano, evidencia a representação salazarista sobre

Mouzinho de Albuquerque como administrador colonial, construtor e agente que abriu

caminho para que o estado pudesse exercer a “missão sagrada de evangelizadores e de

civilizadores”. (Caetano, apud Eça, op. Cit.:111)

“O homem de acção não é o que se agita; é o que constrói. Vê,

ausculta, tacteia, discorre e sonha nas horas fecundas da concepção,

para mais depressa dar depois a voz de comando e lançar mão à obra.

Não pára então enquanto não vê o terreno desbravado cavados os

caboucos, firmados os alicerces, erguidas às paredes mestras, colocada

à última trave. Agir é construir. Construir casa, construir homens,

construir pátrias, construir idéias. Único império sólido, pacífico e

fecundo - este que nasce do espírito e se sustenta pela acção”.

Mouzinho era um grande construtor imperial. Olhando

desdenhoso e desgostoso a mesquinhez da nossa vida pública de há

cinqüenta anos, procurou o lugar onde pudesse viver o Portugal que

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vivia dentro de sua alma, talhado segundo dimensões da epopéia,

iluminado pelos clarões da história: e ei–lo a caminho de África,

dessas terras de magia aliciante, aonde o destino nos chama a exercer

a missão sagrada de evangelizadores e civilizadores-, onde todo o

português encontra “a amiga sedução do solo pátrio” (Caetano, apud

Eça, op. Cit.:111)

Ambos os depoimentos abaixo foram transcritos para a obra Ecos do Centenário de

Mouzinho, a partir do periódico Brado Africano, de 12-XI-1955 e do Documentário

Trimestral Moçambique, ambos publicados em Lourenço Marques. O primeiro, destaca a ação

do oficial como administrador colonial, enquanto o segundo, mostra a representação que se

tinha dele como um herói de Moçambique, mais especificamente da população branca

imigrada da metrópole e da própria administração colonial.

“Não foi só pela força das armas que a acção governativa de

Mouzinho se fez sentir em Moçambique. Uma série de providências

no sentido da nacionalização da propriedade e do comércio, seguida

de uma orientação, em bases seguras, da administração financeira e

regularização da situação econômica da província revelaram em

Mouzinho de Albuquerque notáveis qualidades de administrador, que

aliadas às de soldado e homem de letras, contribuíram para que o

consideremos um dos portugueses mais representativos do século

XIX” (Brado Africano (12-XI-1955), apud Eça, op. Cit.:173).

“Mouzinho é o herói de Moçambique–não um herói no sentido

corrente, mas sim um herói no sentido das gestas e dos mitos-,

símbolo das virtudes de uma raça, pulsação viva das aspirações, dos

sonhos, dos anseios e dos desesperos de um povo.”

“E foi como herói de Moçambique que as comemorações de

agora decisivamente o consagraram na memória e no amor da gente

de Moçambique” (Moçambique3, apud Eça, op. Cit.: 186).

3 Documentário Trimestral, Lourenço Marques, n. 84, 1955).

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O Livro do Primeiro Centenário de Mouzinho de Albuquerque, uma coletânea de

discursos proferidos por autoridades governamentais e militares sobre a vida do oficial, conta

em sua abertura com uma reprodução da carta de Mouzinho de Albuquerque para o Príncipe

Luís Felipe4, onde claramente se nota sua visão de mundo. Segue-se a tal missiva, texto

introdutório intitulado “O patriótico significado das comemorações”, que explica a razão

destas terem durado três anos (1955-1958) e o motivo de terem terminado em Lourenço

Marques. Em seguida, são reproduzidos vários discursos de autoridades da metrópole e da

colônia. Destes, como foi dito acima, escolhi os dois que julguei serem mais significativos.

Levando-se em consideração a divisão de Pallares–Burke, a fonte de que tratamos

pode ser considerada uma “obra clássica”5. Todos os elementos que caracterizam este tipo de

visão estão reunidos neste livro.

Na carta ao Príncipe Luís Felipe, o então major expressa sua visão sobre as

características necessárias a um bom governante. Acreditava que, na função de tutor do

Príncipe, deveria torná-lo um soldado, ou tornar-se-ia, decerto, um governante fraco. Cita

proezas e qualidades marciais de vários reis portugueses e exorta seu jovem pupilo a estudar

as vidas desses antigos monarcas para aprender-lhes o exemplo, a começar por D. Afonso

Henriques6. Segundo Mouzinho de Albuquerque, D. Luís deveria “lê–las, relê-las, meditar

sobre elas" (Mouzinho de Albuquerque in: Livro do Centenário de Mouzinho 1855-1955,

1958: 15). Em contrapartida, não esquece outros governantes europeus que, por não terem

agido como soldados foram depostos, sendo exilados ou sendo mortos.

Ao longo da carta, devido ao seu apoio incondicional à monarquia, pondera sobre a

situação de dificuldades pelas quais passava o reino. Isso reforçaria a sua tese de que, em

épocas de dificuldades se deve provar a força de caráter. Dentro de uma visão absolutista de

governo, prega a D. Luis Felipe que, enquanto príncipe e futuro Chefe de Estado, não tem

biografia, sua história de vida sendo a história do povo português.

Na introdução ao livro, Mouzinho de Albuquerque é tratado como o herói que renovou

os grandes feitos portugueses do passado na época moderna. Sua memória foi celebrada como

continuidade do “gênio lusíada da expansão” (Livro do Centenário de Mouzinho 1855-1955,

op. Cit.: 23),“Gênio de fé civilizadora, de coragem temerária, de tenacidade bandeirante”

4 Esta carta, assim como os dois discursos selecionados são reproduzidos na íntegra no anexo 1.

5 Para saber o que a autora entende como uma “obra clássica” retornar à citação à autora nas páginas 53-

54. 6 O rei responsável pela independência definitiva da Espanha tendo se proclamado Rei português após a

vitória na batalha de Ourique, contra um forte contingente de mouros em 1139. Segue dando exemplos de D.

Manuel I, que subiu ao trono em 1495 alavancando a expansão marítima, D. Sebastião, morto na batalha de

Alcácer–Quibir em 1578, D. Pedro IV, ou D. Pedro I do Brasil.

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(idem). A comemoração de seu centenário se deu num momento em que “o engrandecimento

da nação é concebido sob o signo da unidade e indivisibilidade do território que a constitui”.

(idem) Tudo isso fez de Mouzinho de Albuquerque, para o Estado português, na década de

1950, “o mais representativo soldado das gestas africanas”. (Livro do Centenário de

Mouzinho 1855-1955: op. Cit.: p. 24)

Em relação à análise da categoria de “herói‟, adoto como base teórica a proposição de

Cristiano Matsinhe (1997) conforme demonstrado no início desse capítulo. Com exceção da

concepção de morte por uma causa que envolve luta e resistência em prol da construção de

uma nação, aspecto específico das vidas dos dois heróis nacionais moçambicanos estudados

por Cristiano Matsinhe, Eduardo Mondlane e Samora Machel, sua concepção me permite

analisar as obras que buscam reconstituir a vida de Mouzinho de Albuquerque, ainda que a

morte deste tenha advindo de um suicídio e do oficial português ter sido aclamado pela

primeira vez ainda em vida, como será visto adiante. É notável, porém, que apenas a partir da

sua morte iniciou-se o processo de lançamentos de textos biográficos a seu respeito, como já

foi mostrado. A preocupação dos autores era narrar a sua vida pública.

A Comissão Nacional para as comemorações oficiais do centenário de Mouzinho de

Albuquerque procurou mostrar aos portugueses da década de 1950 tudo o que considerava ser

relevante sobre o oficial. As comemorações não envolveram apenas o exército, mas também

diferentes meios de comunicação: imprensa e rádio uniram-se num verdadeiro esforço de

propaganda do império colonial. Além disso, personalidades acadêmicas, do jornalismo e da

vida política portuguesa produziram artigos, conferências, palestras e depoimentos. A

Emissora Nacional de rádio, em colaboração com a Comissão, emitiu folhetim radiofônico

sobre a vida de Mouzinho de Albuquerque em cadeia nacional7. A função desse livro

especificamente é:

“ser um testemunho da gratidão e uma prova de fé: da gratidão

de uma pátria que sabe recompensar condignamente os seus mais

lídimos heróis, da fé nos altos destinos da nação que foi a força

inspiradora da vida e da obra de Mouzinho, onde as gerações do

presente e do futuro muito poderão aprender através do seu exemplo”

(Livro do Centenário de Mouzinho 1855-1955, op. Cit.:25).

7 Ainda devido às comemorações, no programa “A voz do império” organizado pela Agência Geral do

Ultramar foram veiculadas entrevistas com o Presidente da Comissão, General Luis Antonio de Carvalho

Viegas, com o secretário–geral da mesma, Felipe Gastão de Moura Coutinho de Almeida de Eça e com

representantes do exército e da Agência Geral do Ultramar. Foi escrita ainda uma grande quantidade de

biografias e encenada uma peça teatral, intitulada O ato e o destino de Antonio Manuel Couto Viana.

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O presidente da Comissão, citando os relatórios escritos por Mouzinho de

Albuquerque, um deles publicado em 1899, intitulado Moçambique 1896 a 1898, reunidos no

“Livro das Campanhas”, lançado em 1935, afirmou que o autor de tais textos privava de uma

“alta personalidade como dirigente, daqueles dos quais se exige honra, saber e energia, a par

das grandes virtudes militares como sejam o caráter, a justiça, abnegada confiança e elevado

espírito”8.

Ao final do discurso, classifica a vida do “herói” como bela, exemplo de “elevado e

esclarecido nacionalismo”. Por isso “enobrece com retumbante esplendor as páginas da

História de Portugal, reeditando nela os mandamentos da vida da honra que são timbre do

orgulho português”. Desta feita, o reconhecimento a Mouzinho de Albuquerque deveria ser

sempre mantido.

Em outro discurso, também retirado do Livro do Centenário de Mouzinho, desta vez

cunhado pelo “Sub–Chefe do Estado Maior da Província de Moçambique”, Major Ramalho

Correia e proferido em Maputo, Mouzinho de Albuquerque é defendido de certas acusações,

como por exemplo: passar os anos do seu governo explorando e maltratando as populações

locais e de que era um aventureiro que tinha gosto pela guerra. O Major busca valer-se das

palavras que o próprio Mouzinho de Albuquerque teria dito em sua defesa: “o que tenho feito

como militar em África não é por espírito de aventuras, mas para adquirir vantagens reais e

econômicas para o meu País”9. (Ramalho Correia,op. Cit.: 136)

8 Ao agir como chefe, Mouzinho de Albuquerque escolhia para colaboradores aqueles que mostravam

capacidade para acompanhá-lo na execução dos seus planos. A estes, segundo o presidente da Comissão,

premiava na ocasião mais oportuna. Dessa forma, através do uso judicioso e calculado das condecorações,

conseguia manter elevada a moral de seus subordinados. Quanto à prisão de Ngungunhana em Chaimite, esta

“retrata o homem audacioso e sagaz que queria completar–e completou esta série de fatos gloriosos, pela

destruição do poderoso régulo Vátua, desfazendo seu poderio militar e o seu império, para assim rematar o áureo

ciclo começado em Marracuene.”

9 Ao prosseguir em sua defesa de Mouzinho, afirmou que este, quando possível, abreviava a guerra. Teria

sido assim em Chaimite, depois em Maputo, e depois contra o Maguiguana, em Mapulanguene. As guerras de

Mouzinho de Albuquerque eram, segundo o orador, feitas por necessidade. Sempre rápidas. No discurso, ainda

são feitas referências às oposições que Mouzinho sofria dentro do próprio ministério, dificultando-lhe colocar em

prática seus planos quanto à administração colonial. Aos seus opositores, Mouzinho de Albuquerque respondia

que, para satisfazer-lhes, teria que devolver o poder a um herdeiro de Ngungunhana e abandonar os territórios

que tinha tomado dos Namarrais (Namarrais–Povo que por volta de 1865 protagonizou uma migração maciça,

cerca de 10 mil, dos montes Namuli para a região de Macuana. Praticaram em larga escala a pilhagem de

caravanas e o tráfico de escravos. Faziam intensa oposição à presença portuguesa no território do atual estado de

Moçambique. Os portugueses só os conseguiram vencer por volta de 1913.)No discurso, o Major Ramalho

Correia diz que, mais do que ninguém, Mouzinho de Albuquerque defendia a paz para poder governar

Moçambique e fomentar o desenvolvimento da colônia.

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O orador refere–se a Mouzinho de Albuquerque como tendo nascido para ser um

chefe, revelando-se, da primeira vez que comandou, um condutor de homens. Outra

característica apontada era a força de vontade. Sabia muito bem o que queria e era dotado de

grande senso de responsabilidade. O discurso envereda pelas campanhas de Magul, Coolela,

Chaimite e Maputo, esta já empreendida depois de entregue Ngungunhana ao Governador-

Geral interino. Seguem–se menções à nomeação para Governador Geral, a campanha contra

os na marrais e os planos para a ocupação dos territórios ainda não submetidos. Por fim, o

Major Ramalho Correia defende a tese de que os três anos passados em Moçambique foram

cruciais para que Mouzinho de Albuquerque adentrasse, ao lado de outros nomes célebres, a

história portuguesa.

2.3–O significado do império para o Estado português na primeira metade do

século XX

Como apontado no capítulo anterior, era impossível para os portugueses separar os

conceitos de “pátria”, que o governo português entendia ser uma grande nação que

transcendia suas fronteiras e “império”. Para os governantes de Portugal da primeira metade

do século passado, Portugal, suas colônias e províncias ultramarinas conjugavam-se em uma

verdadeira comunidade imaginada no sentido de Benedict Anderson (2005).

“num espírito antropológico, proponho a seguinte definição de

nação: é uma comunidade política imaginada – e que é imaginada ao

mesmo tempo como intrinsecamente limitada e soberana.

(...)

A nação é imaginada como limitada porque até a maior das

nações, englobando possivelmente mil milhões de seres humanos

vivos, tem fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais

se situam outras nações.

(...)

É imaginada como soberana porque o conceito nasceu numa

época em que o Iluminismo e a Revolução destruíam a legitimidade

do reino dinástico hierárquico e de ordem divina. Tendo atingido a

maturidade numa fase da história humana em que até os mais devotos

crentes de uma qualquer religião universal se viam inevitavelmente

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confrontados com o pluralismo vivo dessas religiões e com o fato de

as pretenções ontológicas e o âmbito territorial de cada fé serem

alomórficos, as nações anseiam por ser livres e, ainda que sujeitas a

Deus, por ser directamente livres. O Estado soberano é o que garante o

emblema dessa liberdade.

(...)

Por fim, a nação é imaginada como uma comunidade porque

independentemente da desigualdade e da exploração real que possam

prevalecer em cada uma das nações, é sempre concebida como uma

agremiação horizontal e profunda. Em última análise, é uma

fraternidade que torna possível que, nos últimos dois séculos, tantos

milhões de pessoas, não tanto matassem, mas quisessem morrer por

imaginários tão limitados.” (Anderson, 2005: 25-27)

Embora os Estados Nacionais contemporâneos sejam de uma maneira geral

enquadrados neste conceito, Portugal pode ser assim chamado devido à extensão da nação

para fora de seu território geográfico como mostra Thomaz (2002):

“É curioso o fato de que a comparação era feita entre a

totalidade do império português e as metrópoles de outros impérios,

excluindo, pois, da medida as extensões dos territórios francês,

britânico, belga ou holandês. Ora, no caso dos territórios sob domínio

francês e britânico, a extensão superava, em muito, a extensão dos

domínios portugueses do ultramar. Essa aparente falta de realismo na

comparação, que se fazia com medidas tão desiguais, não deve ser

tomada como um “truque” para aumentar a importância de Portugal.

Essa singular “cartografia” revelava em sua própria operação, que

Portugal concebia sua unidade territorial como distinta, em sua própria

natureza, das demais nações imperiais. Ao contrário das outras

metrópoles que viam suas colônias como territórios estrangeiros

subjugados–atitude evidente, pelo menos no caso britânico-, a nação

portuguesa se estendia pelo mundo. Era essa particularidade que a

tornava uma grande nação” (Thomaz, 2002: 229).

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Na primeira Exposição Colonial Portuguesa, em 1934, um painel (ver mapa 4)

intitulado “Portugal não é um país pequeno”, mostrava os territórios de Portugal e de suas

colônias sobrepostos ao mapa da Europa. Com esse lema, o governo português buscava fazer

uma comparação da extensão territorial do seu império com a das demais metrópoles

européias.

Essa visão era posta em prática pela política colonial assimilacionista e pelas idéias de

administração jurídico-econômica das colônias. Era considerado assimilado aquele habitante

das colônias que a partir de uma educação ocidental ministrada em missões religiosas

católicas ou protestantes, aderisse aos usos e costumes portugueses (Castro Henriques (1998),

Macagno (1996), Fry (2005)). Como os territórios coloniais eram vistos como extensão do

território português, deveriam ficar sujeitos às mesmas leis e políticas econômicas aplicadas

na metrópole. A partir desses dois Fatores, Armindo Monteiro, ao assumir o cargo de

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Mapa 4 - Painel exposto na primeira Exposição Colonial Portuguesa (1934). Fonte: Thomaz,

Omar Ribeiro. Ecos do Atlântico Sul, Rio de Janeiro, Editora UFRJ/Fapesp, 2002.

Ministro das Colônias (1931-1935), declarou em jantar na Escola Superior Colonial que

faltava ao império uma doutrina colonial. Para ele, a administração colonial deveria ser

baseada em quatro princípios: subordinação política ao governo metropolitano, a

possibilidade de revogação da legislação publicada nas colônias, o equilíbrio do orçamento

das mesmas e a coordenação das atividades econômicas metropolitanas e coloniais (Leonard,

op. Cit.: 20). Além disso, defendia sua crença na missão civilizadora dos portugueses

“Julgo que a seleção está operando os seus efeitos e que, dentro de

poucas dezenas de anos, da face da terra terão desaparecido as raças

negras que não conseguirem escalar as ásperas sendas da civilização.

Mas as outras salvar-se-ão–raças de nobres combatentes, aptas para

enfrentarem todas as lutas e sacrifícios; raças com forte sentimento de

honra e dignidade coletiva capazes de compreenderem a beleza da

disciplina e de a ela se sujeitarem; raças que no império saberão ser

portuguesas e que, como tal, desde já irredutivelmente se consideram.

A maioria dos povos negros ficará, para povoar a selva, dando a pátria

os trabalhadores agrícolas e soldados que em África lhe serão

preciosos–soldados da admirável tropa negra, que à História de

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Portugal já estão ligados por páginas de mais pura glória” (Armindo

Monteiro apud Leonard, op. Cit.: 20-21).

Esta visão do governo português remonta ao século XII, período da fundação de

Portugal e do “milagre de Ourique” 10

. Evidentemente, tal doutrina recebeu novo alento

através da prisão de Ngungunhana. A crença de Portugal como verdadeiro centro de um

império ultramarino recrudesceu entre as camadas urbanas da população. Visando à

recuperação do combalido erário estatal português, foi lançado o Acto Colonial de 193011

.

Este, no seu título II, referente aos Indígenas, tinha suas raízes no ideário da Geração de 1895,

notadamente inspirado pelas idéias de Antonio Enes, Eduardo Costa e Mouzinho de

Albuquerque. Suas idéias impregnadas de darwinismo social fundavam na colônia uma

sociedade fortemente hierarquizada, dividida entre “civilizados” (brancos, mestiços e negros

assimilados) e “indígenas”. Tal regime se manteve intacto até 1954, quando no dia 24 de

Maio entrou em vigor um novo estatuto que, entretanto, não apresentava grandes diferenças

com relação ao anterior, sendo revogado em Setembro de 1961 por Adriano Moreira, o novo

Ministro do Ultramar.

Devido a esta atmosfera, na cidade do Porto fazendo parte do mesmo esforço

pedagógico que a publicação da coleção “Pelo Império” de seis de Junho a trinta de Setembro

de 1934, realizou-se a I Exposição Colonial que atraiu cerca de um milhão de visitantes. Seis

anos depois, em meio a Segunda Guerra Mundial, conflito no qual Portugal permaneceu

neutro, o país cedia uma segunda exposição colonial, a Exposição do Mundo Português de

194012

. O cenário internacional começou a tornar-se pouco favorável a Portugal quando após

a Conferência de São Francisco, que antecedeu a fundação da Organização das Nações

Unidas, no título XI da carta dela resultante e que versava sobre territórios não autônomos

estabelecia-se que todos os povos teriam direito ao autogoverno, no qual deveriam ser

assistidos para o desenvolvimento de suas instituições políticas. Entretanto, o regime

10

Lenda da fundação do estado português, segundo a qual o fundador de Portugal D. Afonso Henriques

teria recebido uma visão de Jesus Cristo que lhe conferiu a vitória sobre os cinco reis mouros da dinastia dos

Almorávidas, o que abriu caminho para e expulsão dos muçulmanos do território luso no dia 25 de Julho de

1139, o que estabeleceu as condições para a centralização política do estado português e para a expansão

ultramarina. Esta teria como motivação inicial o cumprimento da missão dada naquele mesmo momento por

Cristo, levar a sua palavra ao mundo àqueles que ainda não a conheciam. 11

Além disso, havia o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas, as relações de direito privado

entre indígenas e não indígenas e o regimento do Conselho do Império Colonial como mostra Omar Ribeiro

Thomaz (2001).

12

Uma análise detalhada dessa Exposição é feita por Omar Ribeiro Thomaz em seu livro Ecos do

Atlântico Sul (2002) publicado a partir de sua tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em

Antropologia Social da Universidade de São Paulo em 1997.

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salazarista ciente da extrema dependência econômica que tinha com relação às suas colônias

ignorou até onde pôde a mudança da conjuntura internacional continuando a alimentar a

mítica da singularidade portuguesa.

2.4-Entre os modelos clássico e vitoriano: a construção da representação de um

herói nas biografias de Joaquim Mouzinho de Albuquerque

As três biografias de Mouzinho de Albuquerque que analiso, são focadas na sua

trajetória pública. A vida em família é narrada rapidamente ou não é citada. A biografia

escrita por Amadeu Cunha, Mouzinho: acção, pensamento, época (1956) é deste tipo como

também a escrita por Miguel Sanches de Baêna, Mouzinho de Albuquerque a última batalha

(1990). A última escrita por Antonio Pires Nunes, Mouzinho de Albuquerque (2003), quanto

a isso, é uma exceção, pois, analisa sua vida pública e privada, procurando mostrar como era

o homem por trás do oficial do exército português, sobretudo a visão que este tinha da morte.

Todas as três obras que selecionei retratam Mouzinho de Albuquerque como um herói

nacional e exaltam seus feitos, podendo assim, ser classificadas como “clássicas” segundo os

critérios apresentados por Pallares-Burke (2005) como foi mostrado no início deste capítulo.

Amadeu Cunha pelo que pude averiguar é um dos principais biógrafos do oficial. Foram

encontradas no RGPL, quatro biografias de sua autoria13

das quais, por uma questão

metodológica e de tempo de pesquisa, escolhi uma, juntamente com outras duas escritas por

autores diferentes para que pudesse analisar diferentes visões e com isso tornar meu trabalho

mais rico.

As três biografias, embora em linhas gerais tratem dos mesmos eventos, dão a eles

diferentes enfoques. Há um conjunto de fontes importantes com as quais os autores lidam de

formas distintas. As cartas ao Conde de Arnoso, Bernardo Pindela, sendo o principal. Amadeu

Cunha nem sequer as cita. Antonio Pires Nunes também quase não lhes faz referência. Miguel

Sanches de Baêna, ao contrário, as analisa largamente, tecendo assim um quadro

pormenorizado do conflito que marcava a relação entre Mouzinho de Albuquerque e a classe

política da sua época.

Amadeu Cunha: um biógrafo clássico de Mouzinho de Albuquerque

13

As demais biografias de Joaquim Mouzinho de Albuquerque escritas por Amadeu Cunha intitulam–se:

Mouzinho (1935), Mouzinho: a sua obra e a sua época (1944), Mouzinho: grande capitão de África (1935), além

de um volume da Coleção intitulada Pelo Império (s/d) que se chama Mouzinho.

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Após os cinco fascículos publicados pela coleção “Pelo Império”, Amadeu Cunha

dedicou-se a publicações de outras biografias de Mouzinho de Albuquerque. A que selecionei

para analisar, foi escrita no ano de 1956, em meio, portanto, às comemorações do centenário

de nascimento de Mouzinho de Albuquerque. Pode ser dividida em três partes: a primeira, que

se inicia com um pequeno capítulo sobre a família do oficial, se concentra mais na análise da

política externa portuguesa da segunda metade do século XIX, em que a figura de Mouzinho

de Albuquerque quase não aparece, o que evidencia que o oficial teve pouca importância até a

prisão de Ngungunhana.

A partir desse feito, o foco da biografia muda. O autor continua fazendo uma análise

da política externa de Portugal e do equilíbrio instável de forças entre o país e a Grã–

Bretanha, mas o foco central passa a ser Mouzinho de Albuquerque. Nesta segunda parte do

livro, o autor se propõe a narrar como foi o seu governo em Moçambique, até o momento do

seu pedido de demissão. Na terceira e última parte da biografia o autor aborda o período em

que Mouzinho de Albuquerque atuou como tutor do príncipe Luís Felipe, cargo dado pelo Rei

como compensação pela demissão. Durante o exercício dessa função o autor mostra (sem se

aprofundar muito no tema) como o oficial foi vítima de intrigas e ataques de políticos e da

imprensa, levando-o ao suicídio.

Da família, do início da carreira militar e a primeira experiência no ultramar

A biografia escrita por Amadeu Cunha começa com um breve relato sobre a família do

seu biografado, sua criação, seus estudos e o início da carreira militar. Joaquim Augusto

Mouzinho de Albuquerque nasceu na Quinta da Várzea na região da Leiria. Era filho de José

Diogo Mouzinho de Albuquerque, oficial de engenharia e sua prima, Maria Emília Pereira da

Silva. Os Mouzinho de Albuquerque eram uma família tradicional, de longa tradição militar14

,

o que levou Joaquim Mouzinho de Albuquerque a receber uma educação severa da avó e da

mãe. Esta se baseava em três princípios: o Rei, a pátria e Deus.

Em 1879, deixou a função de alferes de cavalaria para estudar matemática e filosofia

na Universidade de Coimbra. Nesse mesmo ano casou–se com sua prima Maria José de

Albuquerque de Mendonça Gaivão. Por motivo de doença, que o autor não esclarece qual era,

14

Para o oficial, segundo Cunha, fazer parte do exército era “uma honra superior a todas”. A função dos

militares tendo sido comparada por Mouzinho de Albuquerque ao sacerdócio “Nas duas carreiras, mais do que

em qualquer outra, se exige a obrigação de servir à coletividade até mesmo com o próprio sacrifício, o

esquecimento, a renúncia aos mais caros interesses”. (Mouzinho de Albuquerque, apud Cunha, 1956: 10).

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não terminou os estudos. Retomou então a carreira militar. Em 1889, recém promovido a

tenente, ocupava uma função burocrática, a de regente de estudos do Colégio Militar.

Amadeu Cunha descreve Mouzinho de Albuquerque como “alto, desempenado,

moreno, de bigode aparado aos cantos da boca e ficava escultórico a cavalo. Efigiáva–se em

linhas de indivíduo seleto” como mostra a figura 5 abaixo. (Cunha, 1956:13).

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Imagem 5 – Mouzinho de Albuquerque. Fonte: CUNHA, Amadeu. Mouzinho. Acção,

pensamento, a época, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1956.

Após essas breves páginas, Amadeu Cunha se detém na trajetória pública de

Mouzinho de Albuquerque, sobretudo, o período que passou na África. Rapidamente se detém

na primeira experiência de seu protagonista no ultramar, a Índia, no ano de 1886. Tal fato se

explica por ter o oficial português exercido naquele país uma função meramente burocrática, a

fiscalização do caminho de ferro que estava sendo construído por Portugal perto de

Mormugão. Segundo Cunha, Mouzinho de Albuquerque considerava sua vida inútil, antes de

servir na África, o que consegue após conhecer Caldas Xavier em 1887.

A chegada de Mouzinho de Albuquerque a Moçambique e o início de sua atuação

Em 1887 Caldas Xavier estava em vias de deixar a Índia para retornar a Moçambique,

onde havia servido por sete anos, de 1877 a 1884. Indicou para Julio de Vilhena, Ministro

da Marinha e Ultramar na época, o nome de Joaquim Mouzinho de Albuquerque para

governar o distrito de Lourenço Marques. Seu nome foi assim aprovado pelo conselho de

ministros.

A partir desse ponto começa a narração da carreira de Mouzinho de Albuquerque em

Moçambique, sempre buscando mostrar como estava o equilíbrio de forças entre portugueses

e ingleses e entre os primeiros e as populações locais. Quando Mouzinho de Albuquerque

tomou posse no cargo de governador do distrito de Lourenço Marques, o Governador-Geral

era o Tenente Coronel de Engenharia Joaquim José Machado (07-1890 / 07 – 1891).

No dia 18 de Junho de 1891, Antonio Enes foi nomeado Comissário-Régio em

Moçambique. No tempo da sua nomeação havia rumores de que Ngungunhana planejava uma

insurreição15

. Os jornais das colônias inglesas desse período anunciavam o fim da soberania

portuguesa na região. Essas notícias chegaram a Enes quando este ainda se encontrava em

Lisboa.

Enquanto isso em Lourenço Marques, Joaquim Mouzinho de Albuquerque encabeçava

uma campanha a favor do emprego da cavalaria na África16

, que não era bem vista pela

15

Antes de embarcar para Moçambique participou de uma reunião do Conselho de Ministros para a

elaboração de um plano de ação contra Ngungunhana.

16

Joaquim Mouzinho de Albuquerque defende sua tese dando como exemplo, os ingleses, que

empregavam a cavalaria em larga escala. Desses, Cunha cita a ação dos pelotões de Barrow e Weasley contra os

zulus. Mouzinho de Albuquerque pôs suas idéias por escrito e entregou o documento a outro militar da cavalaria,

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Secretaria do Ultramar em Lisboa nem pelo próprio Antonio Enes. O novo Comissário Régio

era favorável apenas ao emprego da infantaria, da engenharia e da artilharia. O papel que seria

desempenhado pela cavalaria, as funções de vigilância e exploração, poderiam ser feitas no

entender de Enes, pelas populações locais.

A segunda parte do capítulo 4 e o capítulo 5 são as partes mais importantes da

biografia. É aqui que o autor trata dos eventos que antecedem a prisão do Ngungunhana bem

como da própria prisão do rei em Chaimite e a reação ao fato em Portugal. São esses os

capítulos, portanto, que demonstram como o autor constrói a sua representação de herói. É

principalmente nesses dois capítulos, que transparecem as características apontadas por

Pallares–Burke (2005) que fazem desta uma biografia clássica.

Em Abril três vapores, o Portugal, o Zaire, o Ambaca e o paquete (navio veloz e a

vapor para transporte rápido de passageiros) alemão General chegaram a Moçambique

levando efetivos militares. Todos pararam em Lourenço Marques. Do primeiro

desembarcaram o Coronel Galhardo e contingentes de artilharia e engenharia. Do segundo

desembarcou a artilharia. No paquete alemão General, chegou à cavalaria tão esperada por

Mouzinho de Albuquerque que ele viria a transformar em infantaria montada17

.

Poucos dias depois, Ngungunhana chega à residência do Intendente Chefe, José de

Almeida com três mil guerreiros desarmados. No dia seguinte, o tenente Aires de Ornelas e

José de Almeida assistem à reunião da banja18

. Ambos tentam convencer o rei de que a

submissão a Portugal o pouparia de uma guerra. Ngungunhana, entretanto, vendo o grande

número de tropas portuguesas que ali se concentravam, teria dito em resposta, no dia 10 de

Pimentel Pinto, por intermédio de quem o documento chegou às mãos do Ministro da Guerra. Este por sua vez, o

entregou a Enes.

17

A chegada dessas novas tropas segundo Cunha, fez com que Ngungunhana oferecesse fazer as pazes

com os portugueses. A partir da iniciativa do Rei de Gaza, Antonio Enes começava a crer que seria possível o

planejamento de uma campanha para a queda do soberano. Ainda segundo o autor, as negociações para os

portugueses só deveriam começar quando eles chegassem a Chicomo, um estado vizinho e aliado de Gaza

levando um ultimato para Ngungunhana. Este documento, segundo o autor continha algumas condições: a

entrega do Mahazulo e do Matibejana, a sujeição ao imposto de palhota, a obrigatoriedade de cada família pagar

um imposto em dinheiro no valor de 1$500 réis recolhidos por régulos ou comandantes locais; como a população

nativa não estava habituada às trocas por dinheiro (para além de produzir para a própria sobrevivência), eram

obrigados a trabalhar sob prisão – o trabalho forçado, chamado em Moçambique "chibalo", por vezes na

construção de estradas, outras vezes na agricultura.(fonte: http://www.sergiosakall.com.br/africano/nyassa.html),

a abertura das estradas e abertura de postos militares. Ngungunhana envia um induna a Chicomo com a sua

resposta. Segundo o enviado, o Rei de Gaza só ouviria a palavra do rei de Portugal quando soubesse ao certo o

que ele queria (Cunha, 1956: 55).

18

O conselho de estado composto pelo rei, por sua família, pelos grandes senhores de terras e outros

indunas.

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Agosto de 1895, não crer que as intenções portuguesas não fossem de travar uma guerra

contra Gaza.

No dia 15 do mesmo mês, data final do ultimato, Ngungunhana não modificou sua

atitude e pretendia impor condições, o que foi feito com o envio de um telegrama a Antonio

Enes.19

.

Enquanto esses eventos se desenvolviam, Mouzinho de Albuquerque se mostrava

comedido apesar de sua obsessão em prender o régulo, porque as tropas portuguesas não

tinham condições materiais de empreender a perseguição ao Rei de Gaza. Naquela altura,

segundo o autor, Mouzinho de Albuquerque era bastante respeitado por todos e sua decisão

era seguida à risca pelas tropas. “Aonde ele não fosse, ninguém iria” (Cunha, op. Cit.: 60).

Nesta altura Antonio Enes recebe por telegrama a notícia do ataque de Ngungunhana a

Magul. As tropas portuguesas no local derrotam os guerreiros de Gaza. Enes escreve ao

coronel Galhardo dando ordens para que este e suas tropas fossem a Mandlakazi ou até onde

pudessem atacando e destruindo as povoações. No mês de outubro com os boatos de que

havia resistência no Bilene a Canhoneira Neves Ferreira, comandada por Diogo de Sá e a

Canhoneira Capelo, comandada pelo Primeiro–Tenente Soares de Andréa submetiam as

populações da margem do Limpopo.

Em 3 de Outubro, é ordenado o deslocamento da infantaria e da cavalaria para

Mandlakazi. Mouzinho de Albuquerque estava entre os oficiais. Ngungunhana manda seu

gado para uma localidade chamada Sienburrina a dois quilômetros da capital de Gaza.

Começava então a marcha para a prisão de Ngungunhana. No caminho para Mandlakazi as

tropas avistaram Coolela, onde houve outro combate e os guerreiros de Ngungunhana foram

novamente derrotados.

A essa altura da biografia, no capítulo 5, Amadeu Cunha começa a falar mais

detalhadamente da ação de Mouzinho de Albuquerque. Segundo ele, o oficial não encarava a

fuga de Ngungunhana como um abandono do combate. Para que o Rei fosse submetido

bastariam algumas incursões no território de Gaza. Enquanto isso, o Ngungunhana em fuga

queimava e matava em algumas povoações. Mouzinho de Albuquerque manifestou ao

governador de Gaza o desejo de que os homens que comandava prendessem o Ngungunhana.

Devido às péssimas condições materiais da cavalaria, Mouzinho de Albuquerque decide

19

Nesta correspondência constava que o Rei de Gaza oferecia reféns, prometia vassalagem, 1000 Libras

em ouro e três dentes de marfim em troca da retirada das tropas. Antonio Enes recusou a proposta. Segundo

Cunha, na visão de Ngungunhana, a recusa de Enes significava que o Rei de Portugal não o queria como vassalo.

Esta teria sido a razão pela qual buscou se aproximar dos ingleses da Chartered Company e jurar vassalagem à

Rainha Vitória. Esse ato do soberano de Gaza despertou o belicismo de Antonio Enes.

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seguir para Chaimite a pé. Segundo Cunha, Comunicou ao Governador–Geral interino que

resolveu capturar Ngungunhana ou então morrer em Chaimite. Levou consigo um pequeno

destacamento.

O Governador-Geral interino comunica a decisão de Mouzinho de Albuquerque a

Antonio Enes por telegrama. Enes, então, pediu que Mouzinho de Albuquerque fosse

advertido de que tinha sido mandado ao Limpopo com o objetivo de organizar a perseguição,

não devendo praticar aventuras temerosas. É possível perceber, que o alto escalão português

desaprovava as ações de Mouzinho de Albuquerque, que ignorou as oposições às suas idéias e

as levou adiante.

Mouzinho de Albuquerque marcou para o dia 27 de dezembro a concentração de seus

auxiliares. Apresentaram-se inclusive soldados doentes. Doze destes foram recusados pelo

médico do exército, que fazia parte da expedição. Mouzinho seguiu por terra acompanhado do

tenente Couto, de um comensal e do intérprete João Massablano, moçambicano de origem, os

auxiliares de Languene, Chaichai, Rofegaze e 36 carregadores com arroz e vinho. Enquanto

isso, Ngungunhana, quando chegou a Zimacaze pediu que Mouzinho de Albuquerque o

esperasse, pois, preparava a sua apresentação para prestar vassalagem. A essa altura os

portugueses estavam em Manganhana a seis quilômetros de Chaimite. De lá o oficial levou ao

encontro de Ngungunhana quarenta e cinco soldados brancos e três negros.

A (re)construção do herói nacional Mouzinho de Albuquerque

Mouzinho de Albuquerque foi retratado como um personagem épico, sem defeitos. O

autor reproduz o trecho do relatório de Mouzinho de Albuquerque sobre a captura de

Ngungunhana publicado no Livro das Campanhas, que foi citado no capítulo dois. Entre as

passagens do relatório Cunha inclui comentários exaltadores que mostram o

comprometimento com a visão oficial de recuperar a memória de Mouzinho de Albuquerque e

(re)elaborar sua representação como a de um herói a ser celebrado num momento em que suas

idéias administrativas se tornavam política oficial de estado para as colônias.

Mouzinho de Albuquerque como Governador Geral de Moçambique: um estilo de

administração colonial

A narrativa de Cunha continua com o autor mostrando as medidas administrativas de

Mouzinho após receber o cargo de Governador-Geral de Moçambique como recompensa pela

prisão do rei de Gaza, que, entretanto, não significou a submissão de todas as populações

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locais da região. A nomeação e a promoção a Major vieram após seu retorno da campanha do

Maputo. Sua posse não se deu imediatamente. Antes, Mouzinho de Albuquerque fez uma

série de exigências. As principais segundo Cunha eram: uma maior amplitude de atribuições e

o compromisso do governo central de aprovar sem demora as propostas que ele apresentasse.

A resposta positiva de governo português chegou após dois meses. O novo Governador-Geral

começou então a requisitar colaboradores. Fizeram parte da administração colonial Aires de

Ornelas e Pereira de Eça, que receberam a incumbência de elaborar regulamentos

fundamentais.

Um telegrama de 27 de Novembro fazia dele Comissário-Régio além de Governador-

Geral. A partir daí Joaquim Mouzinho de Albuquerque poderia começar a governar de acordo

com a sua concepção de administração colonial. Ele teria plenos poderes de decisão, além de

autonomia para legislar e contrair empréstimos necessários para dinamizar a economia da

colônia.

Cedo, entretanto, começou a entrar em choque com a burocracia colonial e a

legislação vigente. O pivô foi o orçamento do ano de 1896-1897.20

Este orçamento é enviado a Lisboa, mas o próprio Mouzinho de Albuquerque redige

outro dando idéia da realidade da província.

Devido às suas medidas administrativas, pode-se dizer que Mouzinho de Albuquerque

é o fundador do Moçambique moderno. Seu primeiro ato como Comissário Régio é a

descentralização administrativa. Para o desenvolvimento da província Mouzinho de

Albuquerque dá incentivo à agricultura, que estava mais desenvolvida na Zambézia, onde

havia cultura de caju. A indústria, por sua vez era incipiente (álcool em Lourenço Marques,

Tijolo na Zambézia, açúcar e álcool na Maganja). A forma como era feita a emigração

também era criticada por Mouzinho de Albuquerque,para quem as colônias eram o destino do

que havia de pior da população portuguesa21

.

Enquanto isso em Lisboa, como mostra o autor, havia descontentamento com a sua

ação como Governador-Geral. Para isso contribuíam a questão orçamentária, a necessidade de

20

Este fora escrito de acordo com a legislação vigente, aprovada no ano de 1888. Segundo Cunha, o

documento estava totalmente em desacordo com a realidade da colônia. Mouzinho de Albuquerque ao tentar

argumentar por mudanças no documento recebeu como resposta a invocação do artigo 166º da legislação. “As

autoridades que ordenarem a percepção de quaisquer contribuições directas ou indirectas, seja de que natureza

forem não autorizadas por lei, e os empregados que por ato próprio ou em cumprimento de ordens superiores,

precederem a cobrança de impostos não autorizados estão sujeitos a estão sujeitos a pena de consuetudinários”

(op. Cit.: 149). 21

Para reverter essa situação, pretendia construir um albergue, em que o imigrante ao chegar receberia

abrigo por uma semana. Desejava ainda fundar um “depósito” para que o imigrante aprendesse uma ocupação e

depois pudesse ter condições de se sustentar. O Governador–Geral pensou ainda em nacionalizar o comércio.

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obter empréstimos para a reforma do porto de Lourenço Marques e a construção de uma

ferrovia entre Inhambane e Inharrime.

A chegada apoteótica em Lisboa

Dois anos depois da prisão de Ngungunhana, Mouzinho de Albuquerque vai a Lisboa

para defender as três questões apontadas acima. Segundo Cunha, Mouzinho de Albuquerque

foi recebido por uma capital em estado apoteótico em 1897, que revivia o clima festivo da

repercussão da prisão de Ngungunhana. Ao chegar foi recebido ainda no porto por toda a

família real. Dali seguiu para casa acompanhado pelo Infante D. Henrique e um cortejo de

militares. As comemorações pela sua presença na cidade foram marcadas por bailes,

recepções e banquetes. Em caráter oficial houve comemorações na Real Academia de

Ciências e também na Sociedade de Geografia de Lisboa, onde foi condecorado com a

Medalha de Valor Militar. Viaja à cidade do Porto, onde também é muito homenageado.

Ocorrem eventos oficiais na recepção da Câmara Municipal e no Palácio da Bolsa. De volta a

Lisboa é mandado em viajem diplomática a Paris, Londres e Berlim22

.

Retornando a Lisboa foi posto a par das razões de política externa que impediam a

aprovação das suas propostas pelo ministério. Passou a assistir reuniões do Conselho de

Ministros onde fez grandes esforços pela aprovação de um empréstimo de 100.000 Libras

para solucionar a questão cambial em Moçambique e para construir o caminho de ferro de

Inharrime a Inhambane.

Aí começam os desentendimentos com os políticos. Mouzinho de Albuquerque se

desentende com Barros Gomes, Ministro da Fazenda e com Dias Costa, Ministro da Marinha

e Ultramar, que comandava toda a política colonial portuguesa. Daí em diante seu

relacionamento com os políticos só se agravaria.

Do retorno a Moçambique ao pedido de exoneração

No dia 7 de Julho, quando já se encontra de volta em Moçambique, Mouzinho de

Albuquerque recebe dois telegramas23

. O segundo e mais importante deles põe por terra todos

os seus planos e é fundamental para se compreender os anos finais da vida de Mouzinho de

22

Em Londres e Berlim, o tema central das suas visitas foi à questão do Catembe, assunto valorizado

pelos dois países. Já em Paris, recebeu a Medalha da Legião da honra do Presidente Felix Faure. Visitou ainda os

ministérios dos Negócios estrangeiros e das Colônias.

23

O primeiro deles noticia que o seu pedido de aprovação do empréstimo para a construção do caminho

de ferro de Inhambane a Inharrime foi aprovado pelo Conselho de Ministros graças a Dantas Baracho, um

general que compartilhando as idéias do Comissário-Régio, consegue apoio suficiente para aprovar a proposta.

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Albuquerque. Esta correspondência comunicava a Mouzinho da aprovação de um decreto que

limitava a ação dos Comissários-Régios, ou seja, limitava suas ações, já que era o único a

ocupar o cargo em todas as colônias portuguesas naquele momento. Ao tomar conhecimento

do decreto, pasmo, o oficial telegrafa para o Presidente do Conselho de Ministros pedindo sua

exoneração “visto El–Rei sancionar confiança atual gabinete e desaprovação atos meus”

(Mouzinho de Albuquerque, apud Cunha, op. Cit.: 207).

Em Lisboa ao ficar sabendo do pedido de Mouzinho de Albuquerque o Rei D. Carlos

ordena ao Sr. José Luciano, Presidente do Conselho de Ministros, que comunique a Mouzinho

de Albuquerque a recusa de sua exoneração. O Presidente do conselho tentou fazer com que

permanecesse no cargo, mas Mouzinho de Albuquerque garantia que só permanecia se o

decreto fosse revogado, pois, para ele “Confiança são atos e não palavras” (Mouzinho de

Albuquerque, apud Cunha, op. Cit.: 209). O Presidente do conselho tentou convencê–lo a

continuar no cargo, entretanto, o Governador-Geral por sua vez, responde que “Muito

desejava continuar no governo da província, mas tal só será possível sendo revogado o

decreto.” (Mouzinho de Albuquerque, apud Cunha, op. Cit.: 209)

Enquanto sua exoneração não era aprovada se dedicou a escrever um relatório sobre a

situação geral da colônia para o seu substituto o Capitão de Mar e Guerra conselheiro Álvaro

Ferreira24

.

O retorno a Portugal: O trabalho junto à corte, as intrigas e o suicídio

No intervalo de tempo entre a aprovação da exoneração e da sua chegada a Lisboa,

houve no governo uma reforma ministerial25

. Quando Joaquim Mouzinho de Albuquerque

retorna para Portugal, chegando a Lisboa recebe do rei a notícia de que fora nomeado tutor do

Príncipe Luiz Felipe. Ao aceitar o cargo, Mouzinho de Albuquerque escreve a carta já citada

ao seu aluno em que compara a função de um príncipe a de um soldado.26

24

Nele expôs a situação financeira da colônia: como se encontrava a arrecadação de impostos, como

estava o processo de ocupação e colonização. Quanto a isso, se queixava dizendo que nada havia sido feito, visto

que faltavam pessoas e condições materiais para campanhas que visavam submeter as populações locais ainda

não dominadas. Quando Mouzinho de Albuquerque iniciou seu governo, só havia populações submetidas e

colonização efetiva em Mossuril, Natule, Infuse, Moginquale e Matibane. Ao deixar o governo também estavam

sob domínio português as regiões da Malibana ao Itaculo e do Mossuril ao Ibraímo além das regiões de

Naguema e da Muchélia. Da região do Mongiquale ao Angoche nunca houve ocupação efetiva (op. Cit.: 215). 25

Barros Gomes, Ministro da Fazenda foi substituído por Matias de Carvalho e Dias Costa, Ministro da

Marinha e do Ultramar foi substituído no cargo por Eduardo Vilaça. 26

Nela Mouzinho de Albuquerque expõe a situação difícil em que se encontrava o país, que para poder se

recuperar deveria ser governado por alguém que tivesse vontade para mandar. A carta ainda exprime a idéia de

Mouzinho de Albuquerque sobre a realeza. Esta não se separava da tradição e tinha um fundamento divino (op.

Cit.: 226).

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Enquanto exercia o cargo de tutor do Príncipe herdeiro, Mouzinho de Albuquerque

tramou juntamente com outros oficiais que serviram com ele em Moçambique um golpe

militar para tirar do poder os políticos. Golpe esse que segundo Cunha, foi impedido por D.

Carlos para quem um governo não podia ser levado adiante sem o apoio de uma organização

política.

A polarização entre o major de um lado e os políticos e a imprensa de outro crescia a

cada dia. A imprensa o atacou duramente pela forma como conduzia a educação do príncipe.

Como exemplo, Cunha cita os artigos que criticavam a viagem feita com o príncipe pela

região do Minho. Estes reprovavam principalmente o distanciamento que o oficial incutia no

príncipe em relação aos súditos. Como justificativa para essa maneira de educar seu aluno

Cunha diz que

“Sobrevivente era–o Mouzinho por um erro histórico de

nascimento, duma época, de uma sociedade que já tinham passado, e

que deveram ser as suas, aquelas de que teria gostado de ser coevo

personagem. Seu meio natural não era aquele em que se encontrava. O

rei não era o rei que ele sonhava a nobreza também não era a nobreza

do seu tempo moral” (Cunha, op. Cit.: 261).

Essa passagem demonstra que Mouzinho de Albuquerque era na sociedade do seu

tempo, não apenas junto à classe política, um outsider no sentido em que Norbert Elias

(2000) entende esta categoria social. Para o autor:

“Quer se trate de quadros sociais, como os senhores

feudais com relação aos vilões,os “brancos” com relação aos

“negros”,os gentios em relação aos judeus, os protestantes em

relação aos católicos e vice-versa, os homensem relação às

mulheres (antigamente),os Estados Nacionais grandes em

relação aos seus homólogos pequenos e relativamente

impotentes, quer, como no caso de Winston Parva de uma

povoação de classe trabalhadora, estabelecida desde longa

data, em relação a uma nova povoação de trabalhadores em

sua vizinhança, os grupos mais poderosos, na totalidade

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desses casos vêem-se como pessoas “melhores” dotadas de

uma espécie de carisma grupal, de uma virtude específica que

é compartilhada por todos os seus membros e que falta aos

outros. Mais ainda, em todos esses casos, os indivíduos

superiores podem fazer com que os próprios indivíduos

inferiores se sintam, eles mesmos, carentes de virtudes-

julgando-se humanamente inferiores.

(...)

Um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando

está bem instalado em posições de poder das quais o grupo

estigmatizado é excluído. Enquanto isso acontece, o estigma

da desonra coletiva imputado aos outsiders pode fazer-se

prevalecer. O desprezo absoluto e a estigmatização unilateral

e irremediável dos outsiders tal como a estigmatização dos

intocáveis pelas castas superiores da Índia ou a dos escravos

africanos e seus descendentes na América apontam para um

equilíbrio de poder muito instável (...).” (Elias,2000: 19-23)

Outsider é portanto, aquele que é excluído da convivência de um grupo há

muito estabelecido em posições de poder por não compartilhar dos mesmos

códigos grupais que garantem ao grupo de estabelecidos um alto grau de coesão.

A biografia escrita por Amadeu Cunha põe em evidência a figura de Joaquim

Mouzinho de Albuquerque mostrando como era a sua relação com a sociedade portuguesa da

sua época. Essa relação de antagonismo faz de Joaquim Mouzinho de Albuquerque uma

personalidade anacrônica. A sociedade moral a qual o autor se refere é a sociedade do antigo

regime, em que o Rei exercia um governo absoluto. Essa época já não existia mais, o que

tornava a vida insuportável para o oficial. Pela tese de Cunha, foi esse anacronismo que o

levou ao suicídio. Isso evidencia como mostra Norbert Elias ao analisar o caso de Mozart

(1995) como os códigos sociais podem levar um indivíduo a um conflito com a sociedade em

que vive:

“O destino individual de Mozart, sua sina como ser humano

único e, portanto, como artista único, foi muito influenciado por sua

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situação social, pela dependência do músico da sua época com relação

a aristocracia da corte. Aqui podemos ver como, a não ser que se

domine o ofício de sociólogo, é difícil elucidar os problemas que os

indivíduos encontram em suas vidas, não importa quão incomparáveis

sejam a personalidade ou as realizações individuais - como os

biógrafos, por exemplo, tentam fazer. É preciso ser capaz de traçar um

quadro claro das pressões sociais que agem sobre o indivíduo (...)”.

(Elias, 1995: 18-19)

Quanto ao dia da morte de Mouzinho de Albuquerque, 8 de Janeiro de 1902, Cunha

limita–se a narrar os fatos que ocorreram reconstituindo os seus passos. O dia teria

transcorrido da seguinte maneira: depois do almoço no Palácio Real, saiu juntamente com

Ramalho Ortigão e seguiram juntos até o Largo do Chiado. Revelou ao companheiro que

planejava escrever uma biografia do avô, Luis Mouzinho. De lá havia seguido para o Turf,

onde escreveu algumas cartas. Uma delas diz o autor teria sido para a esposa D. Maria José.

Dali entrou no coupé em direção a Benfica, onde minutos depois o cocheiro ouviu um tiro. Ao

abrir a porta, o cocheiro encontrou o revólver caído ao chão, o corpo de Mouzinho de

Albuquerque caído para o lado com olhos cerrados e com um filete de sangue escorrendo.

Esta biografia heróica é assim escrita por ser um produto direto da conjuntura vivida

em Portugal no momento da sua produção. Publicada pela Agência Geral das Colônias, é mais

uma entre tantas outras escritas para enaltecer aquele que foi selecionado como sendo detentor

de qualidades que o Estado Português considerava como devendo ser as de todos os

portugueses. Como já foi mencionado havia um esforço de caráter pedagógico do governo

que deveria envolver o país inteiro e despertá-lo para o conhecimento da história recente da

colonização.

A obra é construída a partir da narração de eventos. Sendo um produto da década de

1950, não houve da parte do autor interesse em analisar os fatos. Esta obra foi escrita como

uma história de vida cuja preocupação era possivelmente mostrar ao leitor a sucessão desses

eventos e como seu desenvolvimento ocasionou lentamente o desfecho trágico da vida de

Mouzinho de Albuquerque. Ao realçar a heroicidade de seu personagem, o autor o põe acima

das contendas políticas do seu tempo, que entre outros fatores pôs em lados opostos

republicanos e monarquistas. Suas qualidades seriam superiores a essas diferenças, que, no

entanto, o deixaram sem perspectivas diante das intrigas que o vitimaram.

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2.5– Mouzinho de Albuquerque pós–colonial: a representação do oficial após as

guerras de independência das colônias africanas

Miguel Sanchez de Baêna: Mouzinho de Albuquerque no fim do século XX

A obra de Miguel Sanches de Baêna27

é dividida em duas partes. Começa com a morte

de Mouzinho de Albuquerque. Em seguida, são analisados os acontecimentos que

progressivamente levaram-no ao suicídio: a oposição e as intrigas dos políticos e da imprensa

contra a sua pessoa e a sua visão de administração colonial. A segunda parte do livro contém

relatos de ex-soldados participantes da batalha de Chaimite, e de testemunhas da chegada do

Ngungunhana a Portugal.

Minha análise se centralizará na primeira parte da obra. Para reconstituir os fatos e

mostrar claramente a visão de mundo de Mouzinho de Albuquerque bem como as

divergências entre ele e a burocracia estatal, o autor cita trechos de diversas cartas enviadas

por Mouzinho de Albuquerque a um grande amigo seu, o Conde de Arnoso, Bernardo

Pindela28

e a Aires d‟Ornelas. Essa correspondência é fundamental para que se possa entender

os pormenores da política portuguesa da época. Através dela fica–se sabendo, por exemplo,

da antipatia de Mouzinho de Albuquerque cultivada contra figuras da administração colonial.

Os dois casos mais eminentes são o do ex Comissário-Régio Antonio Enes, a quem chamava

de Chungo29

e do Governador-Geral interino de Moçambique na época da prisão de

Ngungunhana, Joaquim da Graça Correia Lança, a quem chamava de “menino virtuoso de

Antonio Enes”. O desprezo por Antonio Enes tinha origem no fato de que ao deixar Lourenço

Marques ao retornar para Lisboa este levou documentos oficiais muito importantes para a

administração da colônia, sem os quais Moçambique era ingovernável.

Devido a essas dificuldades, não havia por parte de Mouzinho de Albuquerque,

segundo Baêna, um plano definido de administração colonial. Esta devia ser concebida

progressivamente. Outra questão importante que colocava um abismo entre Mouzinho de

Albuquerque e o governo português era o fato de que para o oficial, cada colônia deveria ter

27

O autor é descendente indireto de Mouzinho de Albuquerque, foi diplomata, atualmente é professor de

Sociologia e de Ciência Política da Universidade Técnica, membro do Observatório de Segurança Criminalidade

Organizada e Terrorismo, especialista em antiterrorismo e contra terrorismo. (Fontes:

http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/files/gungunhana_magazine.pdf;

http://www.fl.ul.pt/agenda/pdf/Terrorismo_e_Terrorismos.pdf); http://www.joseanes.com/bibliografia. php . 28

Essas cartas ao Conde de Arnoso são ignoradas por Amadeu Cunha como vimos. 29

Chungo é a denominação depreciativa. Chungo Kongolo é uma expressão do dialeto quitonga, que

segundo o autor significa europeu grande (.Baêna, 1990: 19).

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sua própria legislação, assim como era feito nas colônias inglesas. Já para a classe política,

guiada pelo ideal de assimilação a legislação deveria ser uma só para todas as colônias.

Um outro fator de forte desavença com o governo de Lisboa, era o fato de que todas as

decisões governativas eram tomadas pelo Ministro da Marinha e Ultramar, a quem os próprios

Governadores-Gerais eram subordinados. Em total desacordo com essa visão, Mouzinho de

Albuquerque manda um Ofício (de 2 de Julho de 1896) para o Ministro da Marinha e

Ultramar em que expressa seu descontentamento por ocupar um cargo burocrático e a sua

visão de que a administração deve ficar a cargo dele como pode ser visto abaixo:

“Ex.mo Senhor. O governo de Sua Majestade, quando me

nomeou para o cargo de Governador Geral de Moçambique, ignorava,

por certo (o que não admira), que eu tinha um defeito capital que me

torna de todo impróprio para governar colônias portuguesas e vem a

ser ele o conhecer, embora pela rama, alguma coisa de administração

das colônias estrangeiras (...) Asseguro a V. Ex.ª que em país nenhum

se faz tão pouco caso do que pensam e dizem os governadores e tanto

do que informam os empregados da Secretaria e, entretanto, as

opiniões particulares e oficiais impressas na imprensa periódica em

relatórios etc., são unânimes em condenar e a demasiada e

demasiadamente refletida intervenção do poder central na

administração colonial (...) Não há papel nem tempo que chegue para

apontar os fatos que mostram quanto é inútil e quase sempre nociva a

sua intervenção na administração central das colônias (...) Aí tem V.

Ex. ª o resultado prático de se ocupar a Secretaria de Estado do

Ultramar em detalhes mínimos da administração local. As coisas

sérias e difíceis ficam para se resolver e remediar sem elementos, sem

força, sem os meios precisos e sob a minha inteira responsabilidade

(...) Ora Ex.mo Senhor, eu não pedi este governo, e não tenho

empenho algum de aqui me conservar, mas enquanto aqui esteja

desejo fazer alguma coisa por essa província. Por isso preciso

governar aqui eu e só eu. Peço, pois, a V. Exª. que dê as suas ordens

necessárias para que a Secretaria Geral do Ultramar me deixe

governar esta província e me ajude a tentar salvá–la do esfacelamento

a que a arriscaram muitas das providências para ela decretadas em

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tempo pelo governo da metrópole.” (Mouzinho de Albuquerque, apud

Baêna, 1990: 24- 25).

Mouzinho de Albuquerque verá esse seu pedido atendido apenas em 1897, quando vai

a Lisboa pela primeira vez desde a prisão de Ngungunhana. Apesar da resistência do

ministério, D. Carlos lhe concede os plenos poderes que ele reivindicara ao Ministro da

Marinha e do Ultramar acumulando os cargos de Governador-Geral e de Comissário-Régio.

Ao regressar de Lisboa para Moçambique convicto de que finalmente poderia fazer o

que julgava correto no que se refere à administração colonial recebe, como foi mostrado por

Amadeu Cunha um telegrama de Lisboa que o levaria a pedir exoneração do cargo, a cassação

dos seus plenos poderes pelo Rei através do decreto de 7 de Julho de 1898.

Após recusa inicial do Rei de aceitar o seu pedido a exoneração lhe foi concedida

como demonstrou Cunha. Em uma carta de 15 de Julho de 1898 a Bernardo Pindela, expressa

toda a sua desilusão, sobretudo com o rei:

“Eu bem que te dizia que a bomba bacoca30

ardia de mijarete e

cheirava mal. Vai ardendo e eu ainda a espera da exoneração. Tem

custado. Dizer-te que não me faz pena largar isto seria mentir. Faz

pena, porque considero isto perdido e já o disse ao Bacoco.

Governado de Lisboa pelo Dias Costa31

, Costa e Silva, Tito, etc., vai–

se tudo as malvas. Paciência! Albarde–se o burro a vontade do dono.

Se El–Rei não quisesse que isso fosse à glória, pensava menos e

governava mais (...) Quanto aos Bacocos percebo–lhes o jogo muito

bem. Cuidavam que as bichas pegavam. Sempre a querença de

enganar, de sofismar! Os telegramas de José Luciano são de uma

bacoquice ignóbil. Dá e tira. Corta os fios da alma lembrar que isso

são os nossos estadistas” (Mouzinho de Albuquerque, apud Baêna,

1990: 70).

30

Referência a bacoco, apelido depreciativo, que significa “apoucado de inteligência, idiota” com que

Mouzinho de Albuquerque chamava José Luciano de Castro Pereira da Silva Corte Real, presidente do governo e

ministro, político muito respeitado e que era um grande desafeto do oficial. 31

Dias Costa, Ministro da Marinha e do Ultramar.

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Em outra carta para o Conde de Arnoso do dia 26 de Julho de 1898, quando já estava

exonerado do cargo, destila toda a sua raiva contra os políticos “Agora, meu amigo, entre eu e

os políticos é guerra „hasta la navaja‟. Ou eles ou eu, vai a pique” (Mouzinho de

Albuquerque, apud Baêna, op. Cit.: 70).

A repercussão da exoneração na imprensa de Portugal é imediata. Os jornais diários se

dividiam entre o apoio a Mouzinho de Albuquerque a crítica ao governo, sobretudo ao rei.

Inicia–se a fase mais difícil da vida de Mouzinho de Albuquerque. Ao colocá-lo no cargo de

tutor do príncipe herdeiro, o Rei o pôs em contato constante, com a classe social que ele tanto

detestava: os políticos. Se antes a convivência com os políticos era ruim, como mostra a

correspondência com o Conde de Arnoso, neste momento há um agravamento das

hostilidades.

Como conseqüência do choque de visões de mundo, houve ofensivas dos dois lados.

De um lado Mouzinho de Albuquerque tentando obter apoio para um golpe de Estado que

daria origem a um governo apoiado no exército, projeto esse para o qual tinha o apoio dos

oficiais que formavam o seu gabinete de governo em Moçambique e que coletivamente

deixaram os cargos em solidariedade ao chefe demissionário. Do outro lado, estavam os

políticos, que vendo nas ações do major uma ameaça começaram uma campanha difamatória

da pessoa de Mouzinho de Albuquerque, que teve ecos na imprensa da época.

Não suportando essa situação em que via o seu nome sendo manchado publicamente,

toma a decisão de suicidar-se no dia 08 de Janeiro de 1902. Neste ponto, tal como Amadeu

Cunha, Baêna narra como transcorreu aquele dia.

Quanto às cartas mencionadas por Cunha e Baêna, atualmente conhece–se os

destinatários de três delas. Uma foi para a sua mulher. Outra teria sido endereçada ao Conde

de Tarouca (personagem só citado por Baêna, que nada esclarece sobre a ligação deste com

Mouzinho de Albuquerque). Ambas, segundo o autor foram provavelmente destruídas. A

terceira e última carta foi enviada à Rainha, D. Amélia. Esta foi encontrada décadas depois no

Arquivo da Torre do Tombo. Diz a carta:

Minha senhora,

Perdoe–me Vossa Majestade e não me ache cobarde pelo que fiz. Mas ser tido em

mau conceito, ser desprezado é mais do que posso. Não creio que o suicídio nessas

circunstâncias não seja um direito. Minha Senhora! Vossa Majestade nada perde senão um

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homem que no seu serviço fazia tudo e de tudo era capaz. Mas não pôde ser. Paciência.

Perdoe-me Vossa Majestade e reze por mim, se acredita que existe alma. Eu não acredito.

Beijo as mãos de Vossa Majestade cheio como sempre de reconhecimento e

dedicação.

Seu maior criado,

Mouzinho de Albuquerque

O documento mostra a desilusão total de Mouzinho de Albuquerque com o mundo.

Segundo o autor, é visivelmente o retrato de alguém que estava “num estado de espírito que

se encontrava alterado” (Mouzinho de Albuquerque, apud Baêna, op. Cit.: 96). A carta

elucida as possíveis razões do seu suicídio. Na visão do autor “Através dela apercebemo–nos

da profundidade do impacte do choque que o mundo exterior ao seu universo produziu no

espírito do herói. Eram realidades distintas e totalmente incompatíveis” (Baêna, op. Cit.: 96).

As querelas entre ele e a classe política, juntamente com a oposição que sofria da imprensa

estavam tornando a vida um fardo insuportável. O que mais o apavorava era a possibilidade

de voltar a ser o que era antes da prisão de Ngungunhana, um homem vulgar, comum. Antes

que isso ocorresse, ele deveria morrer para segundo a sua visão de mundo conservar no

imaginário popular a imagem de herói e para manter a honra que ainda lhe restava.

Tendo sido escrita na última década do século XX, a biografia escrita por Miguel

Sanches de Baêna parte de uma premissa diferente da anterior. Ao invés da simples narração

da evolução de eventos, aqui se abre espaço para a visão de mundo do biografado. É

Mouzinho de Albuquerque quem fala através de sua correspondência. O autor constrói seu

argumento a partir do discurso do próprio oficial. Ao contrário de Amadeu Cunha, Baêna

analisa as correspondências mostrando a lenta progressão do que se transformou em agonia,

causada pela difamação do seu nome e da sua honra, aos quais ele tinha um grande apreço e

culminou com seu suicídio.

A última batalha a qual se refere o autor é justamente a da defesa do seu nome e da sua

honra. A morte configurou-se como uma saída desesperada feita em sua defesa. Ao desistir da

vida resguardava o que ainda não havia sido totalmente destruído. Ainda segundo o autor

houve comoção e choque da sociedade diante da sua morte, da qual inicialmente Dom Carlos

I foi responsabilizado pela imprensa. Para Bernardo Pindela, citado pelo autor, entretanto,

Mouzinho de Albuquerque teria morrido de mouzinhice. Assim designava sua visão de

mundo, apegada a valores sociais de um passado já não tão próximo. A última batalha é dessa

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forma perdida para uma conjuntura social que não comportava mais os valores por ele

prezados.

Mouzinho de Albuquerque por Antonio Pires Nunes: uma biografia heróica no limiar do

século XXI

Antonio Pires Nunes procura dar ênfase à carreira de Mouzinho de Albuquerque

explorando a face humana do oficial. Os fatos da sua carreira são narrados através da análise

da sua visão de mundo e de suas convicções morais. O autor recupera o indivíduo. Pires

Nunes dessa forma revela um conflito entre o homem e a sociedade em transformação na qual

vivia. Essa foi a razão, na visão do autor que o levou ao suicídio em 1902.

No prólogo de seu livro sobre Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque, Antonio

Pires Nunes, traça um perfil de seu biografado. Demonstra que este não era uma unanimidade.

Enquanto uns o admiravam, outros estavam longe disso. O próprio autor admite que a

personalidade de seu personagem fosse complexa. Ao mesmo tempo em que era visto como

autoritário e intransigente por uns era visto como carismático por outros. Além disso, era

monarquista e colonialista convicto.

Chama a atenção entretanto, a visão do autor de que Mouzinho de Albuquerque era

um homem “deslocado no seu tempo”. Esta posição do autor vai de encontro a visão dos

dois outros autores.

Antonio Pires Nunes não só busca mostrar as dificuldades enfrentadas pelo seu

personagem. O autor também reforça a visão de Mouzinho de Albuquerque como um

herói nacional ao dizer que seu personagem transformou–se com seu suicídio em

“uma das figuras da História de Portugal de que os portugueses se podem orgulhar”.

(Nunes, 2003:16). A biografia de Nunes dessa forma, torna–se um hibrido dos dois estilos

de biografias diferenciadas por Pallares–Burke (2005), ou seja, apresenta elementos das

biografias clássicas e românticas.

Servir o exército: uma antiga tradição da família Mouzinho de Albuquerque

Nunes inicia sua biografia com uma breve incursão à história familiar de Joaquim Augusto

Mouzinho de Albuquerque. Dentre seus ancestrais, aquele por quem mais se interessava

era seu avô, Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, que uniu–se a D. Pedro IV (D.

Pedro I como o conhecemos no Brasil) durante as guerras liberais ou guerra civil

portuguesa (1828-1834).

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A convivência com a avó, levou-o ao culto da personalidade do avô. Uma outra pessoa

com um papel importante na vida pessoal e na carreira de Mouzinho de Albuquerque foi sua

prima em primeiro grau e esposa D. Maria José32

. O autor chega a dedicar–lhe um pequeno

capítulo.

O início da carreira militar e serviço no ultramar: a criação de um herói nacional

Já foi visto que a carreira militar de Mouzinho de Albuquerque inicia–se em 1884 e que em

1886, é nomeado para servir na Índia, onde desempenha funções meramente

burocráticas e conhece Caldas Xavier.

Em Moçambique a verdadeira função administrativa de Mouzinho de Albuquerque,

enquanto Governador de Lourenço Marques era impedir os ingleses de tomar terras sob

domínio português, impôr a autoridade portuguesa sobre o Ngungunhana e criar medidas

para equilibrar as finanças do distrito33

.

Do ponto de vista estritamente militar, a atuação de Mouzinho de Albuquerque foi

marcada por dois fatores principais: conseguiu frear a expanção da influência de

Ngungunhana ao sul do rio Limpopo e impôs efetivamente a autoridade portuguesa nos

territórios do Maputo, do Bilene e da Cossine34

.

Sua relação com autoridades metropolitanas é tensa desde esse período. Após ser

acusado de atividades irregulares na sua gestão pede demissão do cargo em 21 de abril

de 1892, regressando então à Metrópole. Com sua volta, perde a possibilidade de ser

promovido a major. É colocado no Regimento de Cavalaria 8, de onde foi transferido

para o Regimento de Cavalaria 4 (Lanceiros). Esses fatos não são mensionados por

nenhum dos dois biografos anteriores. É nesse regimento, que Mouzinho de

Albuquerque retornaria a Moçambique, fazendo parte do grupo de oficiais que seguiu

32

Durante o período que o Marido foi governante de Moçambique partiu com ele nas muitas campanhas

que liderou inclusive na segunda campanha de Gaza, como será mostrado mais adiante.

33

Com relação a essa questão administrativa, Mouzinho conseguiu realizar seu objetivo atualizando

a cobrança de impostos e estendendo essa cobrança para outros territórios, como o Bilene, a Cossine e o

Maputo. Promoveu também a instalação da indústria do álcool, aumentando consideravelmente a cultura

da cana sacarina como foimostrado por Amadeu Cunha.

34

Com relação a esse último fator, duas ações desempenharam um papel fundamental para aumentar

ainda mais a reputação de Mouzinho de Albuquerque: a apreenção do navio Countess of Carnarvon e a

expedição ao território de Manica, ambas contra os ingleses. No primeiro evento ocorre a apreensão do

novo carregamento de armas enviado de presente ao Ngungunhana, após a destruição da primeira remessa

de mil espingardas dadas de presente ao rei de Gaza pela Chartered Company de Cecil Rhodes, após a

assinatura do tratado de 4 de Stembro de 1890. Quanto ao segundo episódio, em 10 de Dezembro de 1890,

chegou ao seu conhecimento a prisão do coronel Paiva de Andrade, ao tempo administrador da

Companhia de Moçambique, e outros oficiais pela BSAC.

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para a colônia chefiados por Antonio Enes e que iria fazer a campanha de 1895 contra

Ngungunhana, muitos deles sendo posteriormente englobados na Geração de 1895.

Por esta altura, Nunes dedica um capítulo de seu livro a Ngungunhana, coisa que os

outros dois autores não fizeram35

.

Nunes se detém brevemente na geopolitica européia no século XIX, focando sua

atenção na Conferência de Berlim (1884-1885) e nas disputas entre portugueses e

ingleses com relação à África setentrional, sobretudo com a BSAC, cujos membros o

aliciavam com presentes, dinheiro e armas.

Segundo Nunes, as autoridades portuguesas e Ngungunhana viviam num conflito

latente. Nunes revela um fato novo não narrado por nenhum dos outros dois autores,

que fez com que eclodisse o conflito: a autoridade militar portuguesa de Angoane

feriu um chefe de guerra tsonga para impor a sua autoridade. As populações de

Lourenço Marques de origem tsonga, revoltaram–se contra as autoridades

portuguesas, motivando assim a nomeação de Antonio Enes como Comissário-

Régio para pôr fim à revolta. A partir desse ponto Nunes narra a campanha de

Gaza de 1895.

O início da campanha se dá com o combate de Marracuene, na madrugada de 2 de

Fevereiro de 1895. Nessa batalha 900 soldados portugueses foram quase derrotados por

3 mil guerreiros nguni. A vitória portuguesa segundo o autor, fez com que os militares

portugueses ganhassem moral dando-os a credibilidade necessária para ações

posteriores.

Além dos 900 soldados que venceram em Marracuene, chegaram reforços

metropolitanos comandados pelo Coronel Eduardo Galhardo. Essas tropas juntamente

com outras tropas portuguesas que já atuavam em Moçambique e tropas da província de

Lourenço Marques, atuariam juntas para a invasão de Mandhlakasi. Tendo isso em

mente, as tropas portuguesas foram divididas em duas colunas, uma denominada de

coluna norte, que tinha Mouzinho de Albuquerque como capitão da cavalaria e que

patrulhava o distrito de Lourenço Marques e outra denominada de coluna sul, que tinha

sob sua responsabilidade o distrito de Inhambane36

. Em 8 de Setembro de 1895 travou

35

O autor inicia o capítulo com a fundação do império de Gaza por Manicuse. Descreve

brevemente a migração dos nguni para Gaza, a expanção territorial do império finalizada somente em

1893 com a submissão dos tsonga e chope já no reinado de Ngungunhana. Narra também o reinado de

Muzila, falando muito brevemente do acordo feito com as autoridades portuguesas de juramento de

vassalagem ao rei de Portugal, D. Luís I não cumprido por ele, em troca de apoio na disputa de sucessão

com seu meio irmão Mawewe. 36

No capítulo 2 foi feita uma exposição mais detalhada de como cada uma agiu.

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se o combate de Magul. No dia 7 de Novembro pela manhã ocorreu o combate de

Coolela, que os portugueses em significativa inferioridade numérica, eram 600

soldados portugueses contra cerca de 1200 guerreiros de Ngungunhana, conseguiram

vencer devido ao poder de fogo da artilharia.

Segundo o autor, naquela altura de 1895, o cansaço das forças portuguesas era

geral. A única excessão parecia ser Mouzinho de Albuquerque. No que diz respeito a

ele e a cavalaria, reconhecendo que apenas o capitão da cavalaria estava em condição

de agir efetivamente, o próprio Antonio Enes pede a Lisboa que envie reforços dessa

arma. O pedido foi recusado pela metrópole, onde as autoridades viam a aplicação da

cavalaria como uma “pantomina militar”, nas palavras do autor. Enes sabia nesta

altura que a única coisa capaz de mudar as opiniões em Portugal era a prisão de

Ngungunhana. Reconhecendo que apenas Mouzinho de Albuquerque estava em

condições de prendê-lo Antonio Enes nomeia–o governador do distrito de Gaza que

foi transformado em território autonomo de Lourenço Marques e de Inhambane.

Sua nomeação foi feita no dia 7 de Dezembro de 1895. No dia 28 de do mesmo

mês Mouzinho de Albuquerque prendia Ngungunhana. O autor chama o momento da

prisão, de “página brilhante da nossa história militar”. O evento é para ele “algo

necessário, muito ponderado e extenuante”, que concluia com sucesso, uma

perseguição que devido as péssimas condições materiais, poderia não ter sido bem

sucedida.

Nunes revela que após a prisão de Ngungunhana, houve ainda perseguição a dois

régulos, Zichacha e Magaia, Mouzinho de Albuquerque chega a distribuir dinheiro aos

soldados para que estes seguissem na tentativa de prendê–los. Quanto a isso, o oficial

teria assegurado ao Governador-Geral interino que ressarceria o tesouro português por

meio de desconto no seu próprio pagamento. Segundo o autor, esse gesto era uma

mostra de uma caracteristica marcante de Mouzinho, o desprezo pelo dinheiro.

Com o fim da campanha de Gaza de 1895 foi escalado para outra missão, a

campanha do Maputo. Nunes e Cunha divergem quanto a reação de Mouzinho de

Albuquerque a essa convocação. Nunes informa que o oficial teria aceitado de

imediato a missão de acabar com a revolta do Maputo. Após pôr fim à revolta naquela

região, retorna a Lourenço Marques onde fica sabendo da sua promoção a Major e

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nomeação para o cargo de Governador-Geral, no qual tomou posse em 21 de maio de

1896. Já no cargo, atua chefia a campanha dos namarrais, que na fronteira da

província de Moçambique ainda estavam fora da esfera de domínio português e se

dedicavam constantemente ao saque de populações vizinhas. Essa campanha foi

interrompida devido a escassez de condições materiais e da prolongada ausência de

Mouzinho de Albuquerque de Lourenço Marques, sendo retomada apenas em fins de

fevereiro de 1897. A derrota definitiva dos namarrais dá–se no combate de Macuto

Muno.

Quanto a reação de Mouzinho de Albuquerque à sua nomeação como Governador-

Geral, para Nunes o oficial o aceitou “com entusiasmo”. Ao contrário, como já foi

mostrado com a carta de Mouzinho de Albuquerque ao Conde de Arnoso, o agora

major, havia detestado a idéia. É nesse cargo que em 1897, após a derrota dos

namarrais lidera uma segunda campanha em Gaza, contra a insubmissão do

Maguiguana, que havia sido chefe guerreiro do Ngungunhana, e que liderava uma

insurreição contrária ao domínio português. Com os mesmos soldados que venceram

os namarrais, cinquenta cavaleiros ao todo, Mouzinho de Albuquerque chega ao forte

de Chibuto no dia 15 de Julho após um percurso de duzentos quilômetros que durou

32 horas e ao qual o autor se refere como tendo ficado “notável”.

Seis dias depois, no dia 21 de Julho, foi travado o combate de Macontene onde, ao

contrário do que aconteceu en Chaimite quase um ano e meio antes, a cavalaria teve

um papel importante. Se na prisão de Ngungunhana em Chimite, não houve

participação da arma aqui as condições materiais fizeram com que ela de fato atuasse.

A prisão e morte do Maguiguana só se deram dia 10 de Agosto. Entre o dia 21 de

Julho e o dia 10 de Agosto, os soldados que acompanharam Mouzinho de

Albuquerque construiram em Macontene o posto de Guijá. Desse posto, saiu no dia 8

de Agosto acompanhado de 30 soldados à cavalo e mais 30 cipaios em direção a

Mapulanguene, onde soube que o Maguiguana estava acampado. Segundo Nunes

embora menos conhecida do que a campanha de Chaimite, que o autor chama de

“espectacular golpe” esta segunda campanha de Gaza possibilitou a Mouzinho de

Albuquerque revelar qualidades de chefe que, somadas às já publicamente

reconhecidas, o transformaram numa das personalidades mais respeitadas pelos

portugueses. As ditas qualidades são apontadas pelo autor:

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“Em cada um dos factos da campanha se reconhecem as

qualidades militares de quem a dirigiu: perfeita concepção

estratégica; cuidado na preparação; rapidez na concentração;

energia na perseguição regular, força de carácter para tomar a

responsabilidade na perseguição irregular, e conjunto das qua-

lidades anteriores que é indispensável para bem executar estas

operações. É por isto que a Campanha de Gaza define as qua-

lidades de Mouzinho e mostra que ele possuía todas as que

constituem o bom general. É ainda por isso que a Campanha de

Gaza é a página mais brilhante da história de Mouzinho e deve

ser considerada acima do feito de Chaimite, embora este seja

mais conhecido”. (Sebastião Teles apud Nunes, op. Cit.: 53)

Esta passagem é interessante, pois, mostra, que Pires Nunes não dá à prisão de

Ngungunhana a importância simbólica que as obras tratadas até aqui dão. A prisão de

Maguiguana tem mais valor, porque naquele momento Mouzinho de Albuquerque ocupava

um cargo de liderança. Agora ele era uma autoridade colonial, podia portanto, impôr a sua

visão, marcada pela audácia, às operações que comandava. A o prender Ngungunhana, ao

contrário era apenas um oficial subordinado.

A viagem a Lisboa de 1897

Após ter o que Nunes chama de “apoteótica recepção” quando regressa a Lourenço Marques

em 3 de Setembro de 1897, Mouzinho de Albuquerque resolve voltar a Portugal. Juntamente

com ele, volaria o que restou das tropas que o acompanharam durante esses dois anos, que

foram substituídas por outras. O Major Mouzinho de Albuquerque e sua esposa D. Maria José

chegam a Lisboa em 14 de Dezembro de 1897. A recepção havia sido calorosa:

“A recepção feita a Mouzinho foi digna do herói e em tudo

correspondente ao triunfo dos generais romanos vitoriosos que,

depois dos seus feitos em campanha, regressavam a Roma, onde se

integravam num cortejo que desfilava perante o imperador que o

saudava.

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D. Carlos esperava-o e abraçou-o no Arsenal da Marinha e foi

saudado pêlos lisboetas que enchiam as janelas engalanadas do

recinto do Arsenal.” (Nunes, op. Cit.: 63)

Na noite do dia da sua chegada houve uma festa em sua homenagem no

Coliseu dos Recreios, promovida pela Tuna Académica de Lisboa, festa que

segundo o autor, foi um “acontecimento deslumbrante que mostrou a Mouzinho

como o povo o amava e o comoveu muito”(Nunes, 2003: 64). Nessa mesma noite,

foram publicados decretos da conceção de duas medalhas, a Medalha de Ouro de

Valor Militar e a Medalha de Ouro de Serviços Distintos no Ultramar com a

legenda "Operações de Guerra no Distrito de Gaza–1897 em retribuição pelos

serviços prestados entre 1895 e 1897.

No dia 18 de Dezembro, participou de uma sessão solene na Sociedade de

Geografia de Lisboa. As medalhas foram entregues pelo próprio rei D. Carlos, que

antes, porém em seu discurso se referiu da seguinte maneira a Mouzinho de

Albuquerque e a prisão de Ngungunhana:

"( . . .) Já vão passados dois anos que um frémito de alegria

percorreu Portugal, de norte a sul: foi quando chegou a notícia

das nossas primeiras vitórias alcançadas em África por um

punhado de valentes. Esse frémito, porém, cresceu e

transformou-se num verdadeiro entusiasmo com o feito de

Chaimite e aprisionamento do Gungunhana. Foi esse heróico

feito praticado por Mouzinho de Albuquerque, o qual tendo

partido para África como simples capitão de cavalaria, apenas

conhecido pêlos que, como eu, se honravam com a sua amizade,

voltou dali um herói coberto de aplausos por todos, merecedor

do espanto geral pelas qualidades de soldado, que o tornaram

digno de condecoração que traz ao peito: Valor, Lealdade e

Mérito. Pátria e Rei: A família Mouzinho teve sempre por divisa: a

Pátria e o Rei. Foi pela Pátria e pelo Rei que Mouzinho de

Albuquerque trabalhou e venceu; e, por isso, e por bem servir

tenho o infinito prazer de lhe entregar as medalhas que

gloriosamente ganhou”. (D. Carlos, apud Nunes, op. Cit.: 65)

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Personalidade, condução do governo e demissão

Segundo o autor, como chefe militar e como autoridade colonial, Mouzinho de

Albuquerque era centralizador e personalista. As decisões que tomava tomava–as

sozinho, embora antes ouvisse os oficiais que faziam parte do seu gabinete de

governo. Como militar a sua personalidade audaciosa para o autor, revelou–se no

enfrentamento dos preconceitos das autoridades metropolitanas contra o emprego

da cavalaria nas colônias africanas. A audácia era assim estratégica e operacional.

Mouzinho de Albuquerque conciderava segundo Nunes, que para as operações

militares contra as populações locais insubmissas serem bem sucedidas, o

comando militar e colonial tinham que ser concentrados nas mãos de uma só

pessoa. O caos das operações que culminaram com a prisão de Ngungunhana

ocorreu porque a liderança estava dispersa entre várias autoridades militares e

coloniais. Essa idéis são expostas claramente pelo Comissário-Régio no relatório

ja citado escrito para o seu sucessor no governo de Moçambique, o Capitão de

mar e guerra Álvaro Ferreira37

, que por ser da marinha não tinha a experiência

militar dos membros do exército e que por isso poderia vir a delegar a condução

de operações militares a terceiros.

Nunes acredita que dessa maneira Mouzinho de Albuquerque expunha a sua

divergência em relação ao coronel Galhardo, comandante da coluna norte na

campanha de Gaza de 1895 e do próprio Antonio Enes, o único a atuar naquele

momento que não tinha experiência militar e que segundo o autor, tinha

dificuldade em acompanhar o desenrolar das operações.

A demissão de Mouzinho de Albuquerque dos cargos de Governador-Geral e

de Comissário-Régio, teve uma motivação política. Segundo Nunes, se antes o

governo de Lisboa parecia apoiar as suas operações, com o tempo foi se opondo

as guerras de pacificação que pareciam constantes e os seus planos

administrativos por falta de condições econômicas e fragilidade política. A

Lisboa, na visão do autor, interessavam mais “os pequenos êxitos militares que

37

Militar com experiência governamental. Já havia sido Governador-Geral de Angola. Uma

possível explicação dada pelo autor é que as autoridades metropolitanas desejavam nomear para

seu substituto alguém que não fosse mais entrar em guerra com as populações locais a não ser que

essas fossem extritamente necessárias.

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iam alimentando as necessidades anímicas de um povo culturalmente atrasado que

fora ultrajado com o Ultimato inglês de 1890” (Nunes, 2003: 58).

Na visão de Nunes, muitas campanhas de ocupação tinham a finalidade de tornar

possível a atração futura de colonos assim como cada guerra travada contra as

populações locais que conduziria à pacificação da colônia. A partir da atração dos

colonos, poderiam ser instaladas pequenas indústrias, que por sua vez, explorariam as

riquezas locais. Havia também a possibilidade de cobrança de impostos sobre as

pupulações nativas. O fato da classe política portuguesa não estar voltada para essas

questões motivou o pedido de demissão de Mouzinho de Albuquerque e seu retorno a

Portugal.

A atração pela morte

A convivência com a corte nos anos seguintes o abalou tanto, que na visão do autor,

refinou um certo gosto pela morte que era característico de Mouzinho de Albuquerque. Para

ele, a melhor morte de um soldado era a morte em batalha. Segundo o autor, chegaria a ter

inveja daqueles que serviram com ele e morreram nas campanhas de Gaza (Nunes, op.

Cit.:91).

Para Nunes o anacronismo de Mouzinho de Albuquerque foi o matando aos

poucos. Para obter a morte no campo de batalha, que era onde ele realmente desejava

morrer, tentou através de conversas com o Rei, ser mandado em missões como

delegado militar. Uma das suas tentativas foi a de ser mandado de volta à África para

assistir de perto a guerra anglo–boer (1900-1902).

Em ocasiões familiares relatadas por seu cunhado em escritos relatados por

Nunes, transparesse também a sua obsessão pela morte. Fazendo referência a dois

momentos do período em que serviu na África, o combate de Macontene e a morte de

Maguiguana em Mapulanguene respectivamente, disse ao cunhado e a sua mulher

“Que linda ocasião eu perdi de morrer" e "A minha pena é que a bala que foi para o

Rocha não me tivesse acertado na cabeça". Segundo o autor, a idéia de morrer se

tornou uma obsessão para Mouzinho de Albuquerque quando ainda criança, ao ouvir

da avó que não deveria chorar pela morte do avô, pois, esse havia morrido quando

deveria.

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Por fim, Nunes expõe sua tese sobre as razões que teriam levado Mouzinho de

Albuquerque a suicidar-se no dia 8 de Janeiro. Neste dia, seis anos antes, em 1896,

morreu um de seus melhores amigos o também militar Caldas Xavier38

. Para o autor,

o momento em que vivia, sua decepção com a vida, favorecia em Mouzinho de

Albuquerque a lembrança do amigo morto na África e que era para ele o verdadeiro

herói das campanhas que levaram à captura de Ngungunhana. Expressou sua visão no

discurso que proferiu em Lourenço Marques após entregar Ngungunhana ao

Governador-Geral interino. Ao lembrar a morte de Caldas Xavier, lembrava

provavelmente da prisão de Ngungunhana. Esta lembrança “poderá ter sido a última

gota do cálice de amargura que Mouzinho foi enchendo a ponto de não suportar

mais a vida” (Nunes, op. Cit.: 94). A prisão de Ngungunhana era sobrevalorizada

por Mouzinho de Albuquerque, que a considerava a única coisa que havia feito

de útil na vida.

A manutenção da representação heróica no século XXI

A questão que se coloca diante desta biografia é por qual razão em pleno início do

século XXI, mais de meio século após a recuperação de sua memória pelo

salazarismo, ainda escreve-se uma biografia heróica. Uma das razões para isso, é o

fato de que Antonio Pires Nunes é um general de carreira reformado. Outra que está

diretamente ligada a essa é a manutenção da representação de Mouzinho de Albuquerque

como uma figura icônica, pois, ainda hoje “(...) é tomado como modelo de virtudes” (Nunes,

op. Cit.: 15) pelo exército português, que o elegeu patrono da cavalaria

O autor enaltece características de Mouzinho de Albuquerque que são valorizadas

pelos militares como senso de dever, respeito à hierarquia, disciplina, concentração e visão

estratégica. Todas, características indispensáveis àqueles que seguem a carreira militar.

Sintomática é a dedicatória escrita no início do livro “Aos militares que ofertaram a vida,

derramaram sangue, enxugaram suor e verteram lágrimas para que Moçambique fosse como

Mouzinho sonhava. Ao meu neto, José Maria na esperança de que seu encontro com Joaquim

Mouzinho de Albuquerque o ajude a ser Homem”. O culto à sua personalidade que entre as

décadas de 1930 e 1950 o Estado colonialista transformou em nacional, hoje se resume ao

exército.

38

Foi o estrategista da campanha de 1895, que inspirou o plano de campanha de António

Enes, o então comissário régio de Moçambique e comandante-chefe, a quem ambos eram

subordinados. Inspirara também o plano que Mouzinho concebera para combater o Gungunhana e

que chegou às mãos de Antonio Enes.

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103

Uma questão chama a atenção com relação às três biografias: todas demonstram que

Mouzinho de Albuquerque era um indivíduo anacrônico. Mas ao darem atenção demasiada à

sua trajetória pública e ao embate com a classe política, relegam a páginas iniciais muito

breves o que poderia e deveria ser de fato o foco central da análise, a sua infância e a

influência recebida sobretudo de sua avó.Esse período é essencial para se compreender o

indivíduo por trás do ícone. A sua criação nacionalista, monarquista e cristã que tem a figura

do avô como centro de partida, cultivam nele uma moral severa. A reação dele diante dos

fatos que se sucedem em sua vida pública são daí decorrentes.

A conclusão que tiro da análise dos discursos dos autores é de que, embora Mouzinho

de Albuquerque tenha morrido num momento de desgaste da sua figura pública, aqueles

valores advindos da criação recebida, o nacionalismo e a disciplina, mais do que qualquer

outro foram os fatores determinantes para a recuperação da sua memória. Enquanto o

salazarismo necessitava de figuras, cuja conduta nacionalista pudesse despertar o interesse de

todas as camadas sociais para o império, seu senso de patriotismo, disciplina e hierarquia

fazem dele um paradigma de conduta daqueles que tem na defesa do Estado sua função.

A degradação do herói Nacional

À guiza de conclusão deste capítulo, não posso me furtar a uma conclusão que a

confrontação das fontes deixa patente, a de que Mouzinho de Albuquerque também sofreu

cerimônias de degradação no sentido aqui empregado. Assim como Ngungunhana, o oficial

português foi alvo de um rebaixamento quanto ao papel que ocupava na sociedade portuguesa

da transição do século XIX para o XX.

Tendo alcançado após a prisão de Ngungunhana, como demonstrado, a categoria de

herói nacional, foi paulatinamente perdendo esse status social. Determinante para tanto, foi a

sua relação tempestuosa com a classe política, de quem era um tenaz opositor. Tal oposição

deveu-se como mostrado, a certas características de Mouzinho de Albuquerque, como a

personalidade centralizadora e uma visão de mundo, que há muito, não correspondia a

realidade da sociedade portuguesa, e européia como um todo, o absolutismo monárquico. Para

tanto, como já foi dito, foi determinante a criação recebida através de sua avó.

Esse choque fez com que o “herói de chaimite”, progressivamente sofresse com as

intrigas da política palaciana. Estas, estrapolaram os limites da corte, chegando à imprensa, e

através dela ao grande público. Mouzinho de Albuquerque via a glória alcançada, que ele

tanto perseguira, se esvair. Por conta disso, não suportando o que para ele era uma sucessão

de humilhações, não vê outra saída diante de si a não ser o suicídio.

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Capítulo 3-Ngungunhana: construção de um herói nacional

3.1-As biografias de Ngungunhana: a construção do herói por uma

portuguesa e pela Frelimo

É interessante notar, em contrapartida à relativa abundância de biografias sobre Mouzinho

de Albuquerque, que pudemos coligir apenas uma sobre Ngungunhana, além de um livro de

contos e um folheto sobre o império de Gaza, com uma biografia muito breve de seu último

rei. Assim, de Maria da Conceição Vilhena há ―Ngungunhana: grandeza e decadência de um

Império Africano‖, o e o folheto da Frelimo de 1983, ―Ngungunhana herói da resistência

colonial‖. Todos os três, como se há de ver, foram escritos a partir de premissas distintas.

Maria da Conceição Vilhena (1999) o vê, de certa forma, como uma vítima da empresa

colonialista e constrói a sua própria visão heróica de Ngungunhana, mostrando que este se

encontrava entre dois mundos (as tradições africanas e as disputas entre europeus), fazendo o

que estava ao seu alcance para manter-se no poder. A Frelimo tinha no acima-referido folheto

de 1983, uma perspectiva diametralmente oposta: a Frente para a Libertação de Moçambique

constrói sua representação de um herói que resistiu à conquista imperialista. A grande maioria

dos monarcas escusa-se dizer, procederia da mesma forma, uma vez ameaçado por forças

exógenas interessadas em tomar suas terras. Na contramão das duas obras anteriores, tal texto

enquadra–se, claramente, no modelo das biografias clássicas. Ngungunhana é retratado como

um rei corajoso, que resistiu às incursões portuguesas para conquistar Gaza. Abundam em

suas paginas termos elogiosos dirigidos aos nguni bem como ao império de Gaza, sobretudo

no que concerne à sua organização militar.

Aqui foram traçadas apenas linhas gerais com relação a cada uma das biografias. Estas

serão analisadas de fato a seguir.

3.2-A construção do herói nacional Ngungunhana por uma representante da antiga

metrópole

Maria da Conceição Vilhena escreveu duas biografias de Mundungaz, ou Ngungunhana.

―Ngungunhana: Grandeza e decadência de um Império Africano‖ e ―Ngungunhana no seu

reino‖. Não tive acesso a esta última biografia. Tanto o acervo da Biblioteca do Centro de

Estudos Afro–Asiáticos da Universidade Cândido Mendes quanto o Acervo do Real Gabinete

Português de Leitura só contam com a primeira.

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No capítulo dois, ―Gungunhana grandeza e decadência de um império africano‖ foi

largamente analisado, visto que recorri a ele para comparar as diferentes visões sobre a prisão

de Ngungunhana em Chaimite (retratando os atos dos membros do exército português como

arbitrários e nada heróicos, inclusive os de Mouzinho de Albuquerque), e para mostrar como

foi sua vida durante os anos de exílio nos Açores. Assim, tratarei aqui da parte final da

biografia e mostrarei como Vilhena vê a construção do herói nacional pelas lideranças do

Partido Frelimo, empreendendo a sua própria (embora distinta) representação de

Ngungunhana como uma figura heróica.

Em 1983 o Presidente de Moçambique Samora Machel visitou Portugal com dois

objetivos em mente: em primeiro lugar, levar de volta para solo Moçambicano os restos

mortais de Ngungunhana, enterrados no cemitério de Angra do heroísmo, nos Açores. Em

segundo lugar, objetivava estabelecer os contatos na Europa para o estabelecimento de uma

cooperação entre ambos os países, visto que ―A mentalidade colonialista havia sido

praticamente enterrada; e Samora Machel quer não só fazer ressaltar o que nos pode unir,

como afastar ou esquecer o que é suceptível de nos separar.‖(Vilhena, op. Cit.: 299).

Abordando a questão por esse prisma, a autora não trata de outro fator altamente delicado e

que teria sido o real motivo da viagem: conseguir recursos para solucionar o problema da falta

de alimentos que se abateu entre 1982-1983, no cenário da guerra civil, além de renegociar a

dívida externa moçambicana com seus países credores1.

A visita era a ocasião esperada para requisitar às autoridades portuguesas a entrega dos

restos mortais do antigo rei de Gaza falecido há 77 anos como mostra a autora

―Samora Machel já havia manifestado às autoridades portuguesas

o desejo de que os restos mortais de Gungunhana regressassem à

pátria. Ao decidir-se da suas visita a Portugal, pensou-se que seria o

momento adequado para lhe fazer a entrega oficial das cinzas; e

imediatamente se desencadeia o processo, fazendo diligências junto

do Presidente do Governo Regional dos Açores , João Bosco Mota

Amaral, através do Ministro da República, que era então o Ministro da

1 Segundo José Jaime Macuene (2001: 252), professor da Universidade Eduardo Mondlane, o governo

Moçambicano lançou entre 1982 e 1983 um apelo internacional para solucionar o problema da fome.

Paralelamente, para enfrentar a crise econômica e amenizar a dívida externa, iniciou negociações com seus

principais credores, os países da Europa Ocidental. Estes, por sua vez, condicionaram a ajuda à revisão da

adoção do sistema socialista de governo. Moçambique deveria abandonar a economia planificada e adotar a

economia de mercado, passar a ter uma relação harmoniosa com a África do Sul, deixando de apoiar o ANC. O

país vizinho em troca deixaria de apoiar a Renamo, na guerra civil.

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República , que era então o General Tomás George Conceição e Silva.

A autorização da exumação e transladação de Gungunhana , dada por

Mota Amaral, tem data de 4-X-1983.‖ (Vilhena, op. Cit.: 299-300)

Não seria no ano de 1983, entretanto, que Ngungunhana retornaria a Moçambique. Isso só

ocorreria em 1985. A explicação dada na época segundo a autora era o fato de que Samora

Machel, antes de voltar para o seu país, visitaria outros países europeus, não podendo levar

consigo a urna funerária. As razões, porém, como esclarece Vilhena, eram outras:

Ngungunhana, falecido em 1906, foi enterrado em cova rasa no cemitério de Angra do

Heroísmo. Evidencia–se assim, uma vez mais, a degradação pela qual passou o rei africano.

Nem na hora da morte lhe foi dado um enterro digno, com uma sepultura propriamente dita e

como teria direito ao converter-se ao catolicismo. Devido a isso, era impossível encontrar

algum vestígio de seus ossos. A saída para esse fato foi meramente simbólica: um punhado de

terra do local do cemitério de Angra do Heroísmo, onde se acreditava que Ngungunhana havia

sido enterrado, foi depositado numa urna funerária.

Outra razão para a demora na transladação dos ossos é que estava sendo organizada em

Maputo uma comissão que se encarregaria de organizar as cerimônias para a recepção dos

―restos mortais‖ do antigo rei exilado. Como parte dos preparativos, construía-se uma urna

funerária em tamanho natural, onde seria depositada a terra recolhida para simbolizar as

cinzas de Ngungunhana. Enquanto isso, os ―restos mortais‖ ficariam guardados no Palácio das

Necessidades até Junho de 1985.

Esta urna, segundo a autora, era feita de jambirre e chanfuta, árvores típicas de

Moçambique. Ela media 2,03 m de comprimento e 0,73 de altura, pesava 225 kg. Seu exterior

ostentava esculpidos motivos da vida política, militar e social de Ngungunhana.

A entrega dos restos mortais simbólicos ocorreu no dia 14 de Junho de 1985. Antes, como

parte das solenidades, foi realizada uma missa, assistida por autoridades de ambos os países.

No mesmo dia 14 de junho, a polícia de segurança pública expediu a autorização de ―livre-

trânsito mortuário‖. No dia seguinte às 7: 30 da manhã a delegação chegou a Maputo com a

Urna.

Vilhena procura narrar como se teria dado tal recepção. Segundo a autora, havia centenas

de pessoas no aeroporto, esperando pelo desembarque dos restos mortais do Ngungunhana. O

último rei de Gaza ―partira humilhado, vaiado e apupado; regressava com honras de herói. A

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reaparição devida àquele que lutara pela independência de suas terras‖. (Vilhena, op. Cit.:

301)

A autora narra a saída da urna do avião (Imagem 6)

―O avião imobiliza–se na pista e imediatamente suspendem–se os

cantares de alegria. Envolta num silêncio de respeito e emoção, a urna

é colocada nos ombros de doze militares e depositada em frente ao

Chefe de Estado‖. (Vilhena, op. Cit.: 301)

Imagem 6 - Cortejo da urna funerária na saída do avião no aeroporto de Maputo. Fonte:

VILHENA, Maria da Conceição. Gungunhana grandeza e decadência de um império africano,

Lisboa, Edições Colibri, 1999.

Seguem–se momentos da celebração dignas do enterro de um Chefe de Estado.

―Toca–se o hino nacional e o ar é abalado por uma sucessão de

salvas de artilharia. De novo se ergue a urna, para seguir agora numa

viatura militar. O cortejo segue então pela Avenida de Angola e

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Avenida Eduardo Mondlane, rumo ao Salão Nobre do Conselho

Executivo, por entre centenas de milhares de pessoas, vindas de todo o

lado para render homenagem ao ―Leão de Gaza‖. São 10 h da manhã

do dia 15–VI–1985. Um dia histórico inesquecível, a que o discurso

de Samora Machel dera a devida ênfase‖. (Vilhena, op. Cit.: 301)

A seguir a autora descreve a reação das pessoas ao longo do trajeto, ao presenciarem a

passagem da grande urna.

―Era magnificente aquela urna enorme. Exalava grandeza e o

desejo de domínio. Um convite ao heroísmo. Era a negação da história

de um pouco mais de um século; e um elo de ligação com o espírito de

Gaza até 1894‖.

―De lágrimas nos olhos o povo via passar a urna; e esquecia

querelas antigas, fome, lixo, decrepitude, desconforto, guerra. A urna

de Gungunhana parecia ser portadora de uma mensagem de paz e

bem–estar‖ (Vilhena, op. Cit.: 301-302).

Esse trecho final é muito importante. É possível perceber os princípios norteadores da

construção da nação que estava em processo de gestação desde a independência, dez anos

antes. O interessante dessas passagens são as palavras enaltecedoras escolhidas pela autora ao

tecer sua narrativa do evento. O que se vê aqui é uma autora portuguesa construindo a sua

própria visão de um herói moçambicano.

A visão heróica de Vilhena sobre o Ngungunhana pode ser ainda constatada na frase final

da sua biografia: ―cativo na partida, Gungunhana regressa como herói‖.

Na primeira e na segunda partes de sua biografia, Maria da Conceição Vilhena

demonstrara, como visto no capítulo dois, que Ngungunhana, ao principiar seu reinado,

encontrava-se na intercessão entre dois mundos: os costumes tradicionais africanos e uma

disputa de poder exógena entre ingleses e portugueses. Durante os anos de exílio, caiu

progressivamente no esquecimento, sofrendo o ciclo final de um processo de degradação que

se iniciara antes mesmo de Chaimite. Na parte final, o que se pode ver é o oposto. Embora ao

longo da obra a autora tenha demonstrado que Ngungunhana foi uma vítima da empresa

colonial e que os portugueses estavam muito longe de ser os heróis retratados usualmente por

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autores patrícios, como se pôde ver no capítulo dois, na parte final de seu livro, que acabo de

resumir brevemente, sua análise faz uma guinada em outra direção—a de interpretar a

organização do retorno dos ossos como também uma reconciliação entre portugueses e

moçambicanos. Há a pretensão de mostrar que, após anos de uma guerra traumatizante para

ambos os lados, devia-se buscar uma cooperação baseada no fato de que ―o que os

portugueses fizeram e desfizeram, o que construíram ou alteraram, faz parte da vida atual em

Moçambique; há laços muito fortes a ligarem os dois países. E todos os portugueses que lá

viveram, ou lá nasceram, não conseguem facilmente esquecer o seu país de adoção‖ (Vilhena,

op. Cit.: 299). Em seguida parece haver um aval algo benevolente ao colonialismo português,

ao acrescentar que, se Ngungunhana tivesse retornado vivo ao país, ―se depararia com um

país muito diferente onde a pequena cidade que o vira partir para o exílio transformou-se

numa grande metrópole e fora da cidade, pelo país afora, tudo era diferente, com nomes

mudados, novas cidades e mais estradas, tudo invadido pela civilização do branco. Restos e

marcas da presença portuguesa‖ (Vilhena, op. Cit.: 299).

A obra, por conseguinte, é marcada não por uma condenação do processo de conquista

em si, mas sim da forma como ela foi conseguida, com o uso de métodos violentos, pelo

exército. Ao confrontar as fontes escritas por alguns dos membros da Geração de 1895, entre

eles Mouzinho de Albuquerque, com aquelas escritas pelo Capitão Soares de Andréa,

comandante da Canhoneira Capelo, percebe-se que este último quase conseguiu a rendição do

rei de Gaza. Como mostrei no capítulo dois, devido à decisão de prender Ngungunhana a

qualquer custo e a diferenças entre o exército e a marinha de Portugal, Mouzinho de

Albuquerque levou todo o mérito pela prisão.

Vilhena, na última parte da biografia, critica a forma como trataram o rei deposto,

levando-o a um processo crescente de degradação. No final, entretanto, elogia a

transformação do rei deposto em herói, capaz de efetuar a conciliação entre colonizador e

colonizado.

3.3. O retorno dos restos mortais de Ngungunhana e o folheto da FRELIMO

A Frelimo, em sua formação era um movimento nacionalista. Ao longo da luta pela

independência devido à dicotomia capitalismo x socialismo que dividia a geopolítica mundial,

o país tornou-se marxista, visto que sua antiga metrópole era apoiada pelos Estados Unidos da

América. Logo, após a independência em 1975, a Frelimo transformou Moçambique em um

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estado socialista de partido único. Palavras de ordem como ―abaixo o feudalismo‖, ―abaixo o

tribalismo‖, ―abaixo o capitalismo‖, ―abaixo o obscurantismo‖, ―a luta continua‖, refletiam o

rompimento com o passado colonial.

Houve a nacionalização de alguns setores da economia considerados estratégicos pelo

Estado; a economia era planificada e centralizada, o Estado exercia um controle sobre

movimento das pessoas, expressão e associação. O partido controlou de fato todas as formas

associativas. Uma campanha acirrada foi feita pelas lideranças do governo em oposição ao

colonialismo e a tradição, sobretudo contra os chefes ―tribais‖ e a religião tradicional,

redefinidos como ―feudalismo‖ e ―obscurantismo‖. Uma campanha foi feita com o objetivo

de eliminar a significação das diferenças étnicas e culturais. Na visão de Samora Machel era

necessário ―matar a tribo para construir a nação.‖ O português, língua do colonizador, foi

adotado como língua nacional já que a escolha de uma das mais ou menos 24 línguas

nacionais poderia acarretar e exacerbar as diferenças culturais entre as diversas etnias. A

Frelimo buscava assim, segundo Geffray:

―inventar um país imaginário, de ficção, onde uma aliança de

operários e camponeses delegou sua autoridade ao partido Frelimo

para que pudesse exercer a sua ditadura em seu nome contra os seus

inimigos, os inimigos do povo. A ideologia ―marxista-leninista‖ se

tornou um corpo dogmático, o instrumento conceitual da invenção do

país imaginário e o fiador da coerência interna da ficção na qual se

sustentava o projeto do poder nacionalista.‖ (Geffray, apud Fry,

2001:15)

A África do Sul, país vizinho de Moçambique, de economia de mercado, onde

vigorava a política do apartheid promoveu diversas tentativas de desestablização. Outro país

vizinho descontente com a escolha política feita pela Frelimo foi a Rodésia do Sul, país

também capitalista e governado por supremacistas brancos, quando a Frelimo apóia a Zanu

(Zimbabwe African National Union), organização também adepta do marxismo que lutava

contra o domínio da minoria branca naquele país. Ambos encaram a Frelimo como uma

ameaça ao capitalismo na África Austral. Por iniciativa da Rodésia do Sul, foram feitos

ataques à zonas fronteiriças, em Manica e Gaza, principalmente, até 1980. Foi encorajada

pelos dois países capitalistas a formação da Renamo (Resistência Nacional Moçambicana),

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cujos membros eram opositores do governo. Por conta disso, eclode a guerra civil total.

Moçambique mergulha no caos e é assolado por uma grande fome, que matou centenas de

milhares de pessoas. Até o final da década de 1980, dezenas de milhares de pessoas foram

mortas. Segundo Fry ―Cerca de 4 milhões de indivíduos de uma população total de 15

milhões estavam refugiadas nos países vizinhos (...).‖ (Fry, 2001: 15-16) Em meio a esse

quadro, a Renamo conseguiu angariar grande apoio da população, porque defendia a

manutenção das tradições. As cidades incham, estradas, clinicas, escolas, entre outras

instituições estatais são destruídas. Impossibilidade de andar no meio rural.

Em meio a esse quadro caótico e de crescimento do apoio a Renamo, deu-se o

processo do retorno dos ossos de Ngungunhana, que durou dois anos, de 1983 (ano do

quinquagésimo aniversário de Samora Machel) a 1985, como foi mostrado por Vilhena no

início deste capítulo. O folheto da Frelimo NGUNGUNHANE herói da resistência à ocupação

colonial foi escrito no ano de 1985, para celebrar uma década de independência. A

recuparação da memória do último rei de Gaza, se deve ao fato deste ser visto como um anti-

Mouzinho. Na capa (Imagem 7) aparece o Rei de Gaza numa fotografia que deve ter sido

tirada antes da sua captura, pois retrata o líder no mais tradicional traje de chefe. Em pé, com

ar altivo, de torso nu com um saiote de peles de animais selvagens, se apóia num bastão, tão

comum apetrecho da chefia nas sociedades da África austral. Usa na sua cabeça uma coroa de

cera que, segundo Junod, era utilizada por todos os homens maduros entre os Zulu e os

membros da sua diáspora.2 Na sua totalidade a foto se aproxima ao estereótipo do chefe

africano.

2 Diz Junod:―Este costume parece ser de origem zulu. Os Suthu não o conhecem e os tsonga que o

praticam, recolheram-no da tribo conquistadora de que o famoso Chaka fez a fortuna. Espalhou-se da região de

Maputo até os confins de Gaza, na segunda metade do século passado. Esta coroa de cera negra chama-se

mguiyana ou xidlodlo.‖ (Junod, op. Cit. p. 131)

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Imagem 7 - Capa do folheto da Frelimo. Ngungunhana em trajes tradicionais de chefe. Fonte:

Partido Frelimo, Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa

Moderna, 1985.

O retorno dos ossos pode ser interpretado, portanto como uma tentativa de estimular

um espírito nacionalista neste momento tão difícil. Nungunhana, rei de Gaza, seria

apresentado como herói não apenas de Gaza, mas de Moçambique como um todo. Vilhena

descreve o júbilo em Maputo. Não sabemos se o mesmo aconteceu em outras regiões do país.

Frelimo viu a Renamo como um fantoche da África do Sul. Não podia reconhecer

quaisquer razões que justificassem uma oposição ao seu regime considerado perfeito. Só

mais tarde, sobretudo após o relatório de Christian Geffray, é que se começou a perceber que

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a guerra era uma guerra de irmãos, fratricida. Mas grande a liderança da Renamo era de

origem da província de Manica que teria sido conquistada um século antes pelos guerreiros de

Ngungunhana. Na conjuntura entre os anos 1985-7, a Frelimo e a opinião majoritária na

comunidade internacional interpretou a guerra como sendo resultado apenas da ira da áfrica

do sul. No ano de 1987 foi assinado o primeiro acordo com o Banco Mundial, dando início a

uma mudança de regime político. O socialismo começava a dar lugar progressivamente a uma

ordem política e econômica mais liberal.

O folheto consiste em 38 páginas, 18 de texto e 20 de fotografias. O folheto conta com

uma introdução, uma genealogia, uma biografia muito breve, procura descrever a organização

da capital Mandlakazi e a organização do exército. Apresenta também reproduções de

documentos de época, como por exemplo, a certidão de óbito de Ngungunhana. As fotos

retratam aspectos da vida cotidiana da família do rei, do seu exército, a diferença entre as

armas usadas pelos seus guerreiros e pelas tropas portuguesas, a humilhação do momento da

prisão e a sua aculturação, já no exílio nos Açores. Algumas dessas (as imagens 1,2,3 e 4)

foram analisadas no capitulo 1.

Na introdução do folheto estampada nas primeiras duas páginas do panfleto, a Frelimo

associa o retorno dos ossos à comemoração da independência.

―Ao comemorar o 10º aniversário da independência nacional,

Moçambique recebe os restos mortais de Ngungunhana, um dos

grandes heróis da resistência à ocupação colonial.‖ Em seguida,

anuncia que ―o regresso dos seus restos mortais representa para cada

moçambicano um motivo de orgulho e de patriotismo‖ e atribui ao

Ngungunhana parte da responsabilidade pela vitória da Frelimo sobre

as tropas portuguesas na guerra pela independência. ―A homenagem

que queremos prestar-lhe e que só a independência nacional tornou

possível fundamenta-se no exemplo que nos deixou de sua

heroicidade e valentia, ao fazer frente a um inimigo, que não sendo

mais numeroso, possuía armas de fogo poderosas e desconhecidas dos

nossos guerreiros dessa época. Mas, a sua luta não foi travada em vão.

Algumas décadas mais tarde, a Frelimo, sabendo o quanto é

importante unir todo um Povo num mesmo ideal, consegue vencer,

fazendo frente à superioridade da máquina de guerra que é igualmente

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montada contra nós‖. Ngunhunana é apresentado, então, não como o

Rei de Gaza, mas como um herói nacional. ―Nessa pátria hoje

libertada, ao prestarmos homenagem ao Ngungunhana, queremos

lembrar também os muitos milhares de moçambicanos que, de norte a

sul do país, nos deixam como herança o exemplo das suas vidas e o

seu amor pela liberdade da terra e dos homens.‖ (Frelimo, 1983)

Termina com palavras própria do socialismo da época:

―É essa pátria que queremos construir, onde não exista exploração e a

opressão e os nossos filhos possam crescer em paz e na prosperidade, que tem

consigo a alegria e a felicidade.‖

―Deportado há 90 anos, o regresso de seus restos mortais,

representa para cada moçambicano um motivo de orgulho e

patriotismo‖. (Frelimo, op. Cit.)

Ngungunhana é apresentado como um herói valente por ter se oposto a inimigos

detentores de esmagadora superioridade militar. Tal poderio, o folheto não se escusa de

apontar, fora recentemente derrotado pela Frelimo, décadas depois da morte do ―Leão de

Gaza‖. O que uniria Ngungunhana aos moçambicanos daquele momento seriam os sacrifícios

da própria vida em prol da liberdade.

Genealogia e biografia

A biografia do último rei dos nguni é contada de uma maneira muito breve, resumida em

apenas uma página, que é precedida pela sua genealogia.

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Imagem 8-Genealogia de Ngungunhana. Fonte: Partido Frelimo, Ngungunhane herói da

resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna, 1985.

O texto biográfico começa com a apresentação de seus pais. Fixa seu nascimento em 1845

em Gaza. Era filho de Muzila e de Yosyo, que era nguni. Revela que durante sua infância,

além de exercícios militares, fazia serviços de pastor. Acompanhou seu pai em diversas

migrações de 1845 a 1859 em Gaza, de 1859 a 1861 no Transvaal e, a partir de 1862 em

Mossurize (atual estado de Manica). Seu reinado começou em 1884 no mês de agosto.

Através desse folheto fica–se sabendo que houve duas povoações chamadas Mandlakazi

fundadas por ele: a primeira, logo no princípio de seu reinado. Permaneceu lá de 1884 a 1889.

Em 1889 iniciou uma expansão do seu reino para o sul. Fundou nesse mesmo ano o segundo

povoado, onde viveu até 1895.

Durante o seu reinado, manteve o sistema de governo tradicional: um conselho de

governo no qual participam seus filhos, a sua mãe (substituída por uma representante depois

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da sua morte) 3 e os indunas (chefes) mais importantes de origem nguni. Durante o tempo em

que viveu na segunda Mandlakazi, travou guerras contra populações autônomas e combateu a

tentativa de alistamento de seus súditos pelos portugueses nos distritos de Lourenço Marques,

Inhambane, Sofala e Manica.

No que se refere à política externa, seu governo foi caracterizado por alianças com os

swazi e ndebele através de uma política de casamentos. Além disso, travou intenso contato

com ingleses, com a República Sul Africana e com os portugueses a partir de 1885. Em 1894,

os conflitos com Portugal se tornaram mais intensos dando origem às batalhas de Magul (8 de

Setembro de 1895), Coolela (7 de Novembro) e, a 11 do mesmo mês, a destruição da sua

capital. A única menção da prisão de Ngungunhana é: ―Ngungunhana é preso em Chaimite a

28 de Dezembro de 1895 pelo novo governador militar de Gaza, Mouzinho de Albuquerque‖.

(Frelimo, 1983). A passagem final, que se refere ao caminho para o exílio, diz apenas ―Foi

levado a Lourenço Marques, daí para Lisboa e em Julho de 1896 exilado nos Açores até a sua

morte–23 de Dezembro de 1906‖.

Retomada das questões teóricas sobre fotografias

Para analisar as fotos, retomo aqui os pontos mais importantes das considerações

feitas acima4. A questão apontada por Frederic Barthes (1978, (1961)), sobre a mensagem

fotográfica e a sua representação do real, a questão do olhar analisada por Lutz e Collins

(1993) e a análise de J.W.T.Mitchell do trabalho realizado por Mallek Aloulla, que chama a

atenção para a imagem como ―fantasma da degradação‖ produzida pela imaginação do

colonizador, levantam relevantes questões como mostrado na análise das imagens 1,2,3 e 4.

Como o volume de fotos é consideravelmente maior do que o anterior analisarei as imagens

como um conjunto a partir da divisão temática do próprio folheto, que têm além da função de

identificar os moçambicanos com Ngungunhana, a função de informar às novas gerações

como vivia a população de Gaza antes da desestruturação causada pela derrota de

Ngungunhana.

.

As imagens 9 a 12, que ilustram o texto acerca da organização da capital, procuram

mostrar aos leitores europeus, provável público às quais se dirigiram quando foram tiradas,

3 Essa representante era Impicanzamo, que como vimos no primeiro capítulo suplicou a Mouzinho de

Albuquerque que poupasse a vida de Ngungunhana e que é apontada por Maria da Conceição Vilhena como

sendo uma das pessoas próximas ao rei que haviam lhe traído. 4 Retornar às páginas 52 a 56 onde faço uma discussão teórica mais detalhada destas mesmas questões.

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procuram retratar como era a vida política no reino de Gaza, como funcionavam as suas

instituições que deveriam ser progressivamente suplantadas pelas européias com o avanço da

colonização. Elas retratam a organização espacial da povoação do rei, a forma como era

reunido o Conselho real e ainda os executores da justiça. Salta aos olhos nas fotos 10 e 11 a

forma como estão vestidos os conselheiros. É possível ver nelas uma aculturação em

processo, visto que com as tradicionais coroas de cera e seus saiotes de peles de animais da

fauna local, usam camisas de manga comprida ou coletes, que são trajes europeus. Na

imagem 10 é sugestiva a presença de um homem branco. Com relação ao olhar, nas imagens

9, 10 e 11, as pessoas retratadas não olham para a câmera. Tomando por base os possíveis

tipos de relação listados por Lutz e Collins, tal atitude pode significar uma indiferença quanto

à presença da câmera. Quanto aos Executores da Justiça, imagem 12 foram retratados com

seus trajes típicos. Ao fazê-lo é possível que a intenção do fotógrafo tenha sido a de mostrar

aos europeus a diferença de costumes e reforçar a representação que se tinha dos africanos no

velho continente como não civilizados. No que se refere ao olhar, ao contrário das fotos

anteriores, todos olham para a câmera e demonstram reações diversas. A feição do Executor à

esquerda, dá margens à interpretação de que para ele aquele momento não representava um

incômodo, tão pouco um estranhamento. Ao invés disso, é possível que sua relação com a

câmera seja marcada pela curiosidade. O executor ao centro, pelo que se vê com nitidez, sorri,

podendo haver, portanto, uma cumplicidade. O oposto ocorre com o Executor à direita. Este,

sério demonstra o seu estranhamento e o seu incômodo no momento.

Na parte relativa ao exército, as imagens 13 a 17, buscam retratar o cotidiano das

tropas de Gaza. Destas, as imagens 14,15 e 16 retratam as tropas reunidas e suponho prontas

para combate, por estarem em seus trajes de batalha. Com exceção da imagem 13, em que são

retratados jovens recentemente egressos entre os guerreiros numa ocasião que parece ser um

evento (não há como saber qual a sua natureza, pois no folheto não há nada sobre isso) em

que todos foram fotografados de costas, logo não há como saber qual é a percepção deles da

presença da câmera, em todas as outras imagens há uma confrontação direta entre os dois

lados da relação colonial, nas imagens 14, 15 e 16, a confrontação parece não ter uma

conotação hostil. Os guerreiros nelas retratados, não parecem se incomodar com a presença da

câmera entre eles. Uma outra possibilidade de interpretação é que haja um incômodo, mas que

este seja guardado silenciosamente. O guerreiro retratado na imagem 14, inclusive ao que

parece está simplesmente caminhando quando fita a câmera. No caso desta imagem, a relação

travada parece ser de aceitação ou então, há um incômodo não expresso. Na imagem 15, que

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retrata um grupo numeroso de guerreiros reunidos, um deles passa à esquerda do fotógrafo e

percebe a sua presença, mas não parece se incomodar. Na imagem 16, dois deles demonstram-

se expressamente conscientes da presença do fotógrafo não demonstrando hostilidade, mas

também, nenhuma atitude que permita uma interpretação da relação fotógrafo/fotografado

como sendo algo sem reservas da parte destes últimos. Nesta imagem, porém, é possível ver

que alguns guerreiros não estão de trajes de batalha, mas usando camisas e coletes da mesma

forma que os chefes de Ngungunhana nas imagens 10 e a 11. O que reforça a indicação de

aculturação em processo. Esse fato salta aos olhos ainda mais na imagem 17, onde são

retratados guerreiros do exército de Gaza num abrigo improvisado em momento de descanso.

Aqui todos estão vestidos com camisas. Olham fixamente para a câmera e a mensagem dos

olhares é clara: há um desconforto. A hostilidade salta aos olhos dos guerreiros. Não

desejavam que o homem por trás daquela câmera lá estivesse.

As imagens 18 e 19 são uma imagem da destruição de Mandlakazi e das armas dos

dois exércitos numa perspectiva comparativa. Suas mensagens são claras: a primeira delas, ao

retratar as tropas portuguesas observando o incêndio das cubatas da capital munidas inclusive

de canhões enquanto os habitantes encontram-se dispersos, reforça o triunfo português, que

precisou recorrer às armas para se impor, sobre o africano e assim evitar que outros Estados

europeus conquistassem as terras em que desejavam ver seu domínio concretizado. Ao fazê-

lo, retrata a derrota da resistência de Gaza, sua humilhação. Na imagem 19 são expostas lado

a lado as armas de ambos os exércitos para demonstrar a impossibilidade da vitória do

exército de Ngungunhana frente a um poderio bélico luso.

No que se refere à vida cotidiana, as imagens 20 a 27 e 29, que a retratam de uma

forma geral contém os mesmos elementos que as demais, a questão da aculturação e os

olhares, aparentemente incomodados (salvo poucas exceções) com a presença da câmera ou

claramente hostis, raivosos. O processo de aculturação em andamento, apontado pela maneira

de se vestir ou pela presença de europeus nas fotos como é o caso das imagens 21, 22, 27 e

29. Estas, respectivamente retratam uma escrava acompanhada de uma parente de

Ngungunhana e do dr. Liengne (médico e missionário da corte de Ngungunhana), um tio de

Ngungunhana acompanhado de uma mulher, os filhos do soberano, já adultos, vestindo o

tradicional saiote de peles de animais da fauna local com as camisas ou coletes brancos e um

homem vestido a moda européia consultando-se com um curandeiro.

O outro elemento é o olhar marcado pelo incômodo que em alguns casos esconde uma

raiva latente por parte daquele que está sendo retratado. Exemplos disso são os olhares

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captado nas imagens 20 e 23 a 25 e 27 e 29. A primeira delas sendo a da mãe nominal do rei.

Não é possível saber em qual ocasião essa imagem foi registrada, o que se percebe é que há

pessoas a observarem-na que fitam a câmera com desconfiança, e que a própria aparenta estar

irritada. Na imagem 22, o tio de Ngungunhana olha para o chão e a mulher que o acompanha

está com a atenção detida em algo que está fora do campo de visão da câmera. As imagens 23

a 25 retratam as rainhas e escravas. Chamam a atenção, sobretudo pelas expressões dos

olhares. Todos expressam claramente algum grau de incômodo por estarem fazendo algo

indesejado. Todas as mulheres retratadas estão sérias. Nas imagens 23 e 25, todas estão

fitando diretamente a câmera. Na imagem 24, uma das mulheres olha para algo que está além

da câmera, o que pode ser interpretado como uma forma de demonstrar desinteresse, que a

câmera para ela nada significa. Ao seu lado, ao contrário, está possivelmente uma das rainhas

que transmite pelo olhar toda a sua raiva. A expressão do rosto reforça isso. Com essa atitude,

fica patente todo o estranhamento e a não aceitação da presença de um outro que é estranho,

invasor. As imagens 26 e 27 mostram os filhos de Ngungunhana em dois tempos: quando

crianças e adultos respectivamente. Na primeira delas, apenas um deles sorri para a câmera,

estabelecendo uma relação de afinidade. Os demais a encaram com o que parece ser uma

desconfiança, um estranhamento. Essa postura se mantém na imagem 27. A imagem 28

apresenta uma cadeira, de estilo europeu, que segundo informações do folheto pode ter sido

usada por Ngungunhana. Esta imagem evidencia o contato de trocas existentes entre os dois

lados da relação colonial. Na última imagem aparentemente, o curandeiro está alheio a

presença do estranho enquanto que não é possível verificar a direção do olhar daquele que

está a sua frente.

É bastante provável que ao captarem essas imagens os europeus quisessem mostrar

aos seus compatriotas nas metrópoles, sobretudo os portugueses, a veracidade do estereótipo

de não civilizados que justificava suas campanhas na África e a manutenção de um império no

ultramar. (não há como saber se todas são de autoria portuguesa, pois, não há créditos nas

fotos, não há nenhum tipo de informação que esclareça a nacionalidade de quem as registrou).

Uma vez que ingleses, suíços e franceses também estiveram em Gaza é possível que algumas

tenham sido por eles registradas.

A imagem 30 tal como a imagem 04, retrata Ngungunhana, seu primogênito,

seu tio Molungo e o ex-régulo Zichacha exilados, nos Açores, vestidos à européia após o

batismo. Esta como aquela retrata o ápice do processo de assimilação sofrido pelos

prisioneiros. Ambas são o retrato do ápice naquele momento do projeto assimilacionista. Os

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africanos, de costumes bárbaros tinham sido convertidos ao cristianismo passando também a

adotar os usos e costumes portugueses. Ambas evocam o que Aloulla segundo J.W.T.Mitchell

chama de ―fantasma da degradação‖. Todos estão sentados em bancos, e curiosamente,

nenhum olha diretamente para a câmera. Godide e o pai olham para à direita além da imagem

e Molungo e Zichacha na direção oposta.

A imagem 31 encerra o folheto transmitindo a mensagem desejada pela Frelimo. O

retorno dos ossos a Moçambique e o sucesso da luta pela libertação nacional, a derrota do

colonialismo. Ela retrata a cerimônia de devolução dos restos mortais de Ngungunhana a

Samora Machel, na viagem de 1983 feita pelo presidente a Portugal e a outros países da

Europa, como mostrou Vilhena (1990). Neste momento solene, nenhum dos homens na

imagem parece notar a câmera. Ela parece invisível. Todos parecem estar concentrados em

ouvir as palavras do discurso que está sendo feito.

O folheto apresenta ao expor as fotos nesta seqüência uma narrativa que me parece

bem clara: o início com as fotos da capital e da vida cotidiana e do exército de Gaza, o meio

com as imagens da destruição da capital, a prisão do rei, sua ida para o exílio e o ápice da sua

humilhação, o batismo, no fim o retorno dos ossos. As imagens narram a sucessão dos

eventos, as tensões latentes que explodem na prisão e exílio do rei que levam à conquista.

Esta é por fim derrotada na guerra de independência, que tem na cerimônia de devolução dos

ossos um momento marcante.

Organização da capital

Mandlakazi, a capital, era composta por 500 a 600 palhotas, que eram organizadas em

círculo. No centro deste havia uma grande área vazia, chamado “Chibandla” onde eram

realizadas danças e reuniões. As povoações e a praça eram cercadas por estacas. Oposta a

entrada da capital situava-se a povoação do rei, conhecida como ―Chigodlo‖ (imagem 9). Nela

são vistas as residências reais, sendo que uma delas parece ser mais alta do que as demais,

podendo ser assim a “Ndhlandhla”, que seria reservada para recepções. Podem ser vistos

também alguns animais domésticos e uma mulher sentada numa esteira. Não é possível,

entretanto, identificar se esta é uma das esposas de Ngungunhana ou de alguma escrava. Junto

a povoação do rei ficavam a de seu primogênito, Godide, a da rainha-mãe e a de seus indunas,

ou chefes mais importantes.

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Imagem 9 - A povoação do rei em Mandlakazi. Fonte: Partido Frelimo, Ngungunhane

herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna, 1985.

O chefe mais importante era o administrador da capital. Todos os indunas compunham o

conselho do rei (imagens 10, 11 e 12). Esses indunas eram os generais do exército, os

administradores de terras e do gado e a quem se dirigiam os súditos quando tinham queixas.

Dessas, aquelas que não fossem por eles selecionadas eram resolvidas por Ngungunhana. Na

imagem 10 pode-se ver Ngungunhana sentado à sua cadeira exercendo suas funções judiciais

com o seu traje real. Sentados em esteiras, em volta dele na grama, pode-se ver os diversos

chefes. A grande maioria com a coroa de cera na cabeça. Ao lado do rei, também sentado

numa cadeira e observando o encontro está um homem branco, vestido de calça comprida,

jaqueta, camisa branca e segurando um chapéu na mão esquerda. Não há como saber a

identidade do homem branco, pois, o folheto nada esclarece a esse respeito. Diz apenas,

―Ngungunhane no exercício de suas funções judiciais.‖

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Imagem 10 - Ngungunhana exerce suas funções judiciais ao se reunir com seus chefes.

Fonte: Partido Frelimo, Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo,

Empresa Moderna, 1985.

A imagem 11 apresenta os ministros do rei, em fila indiana, trajados com saiotes de peles

de animais, as coroas de cera, alguns usavam camisas de mangas compridas, enquanto outros

usavam coletes.

Imagem 11 - Ministros dirigindo-se ao conselho real. Fonte: Partido Frelimo,

Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna, 1985.

Na imagem 12 se vê três executores da justiça do rei. Os três estão vestidos em seus trajes

tradicionais. Todos os três usam saiotes de peles de animais selvagens e estão descalços. Da

esquerda para a direita, o primeiro deles está vestido somente com seu saiote de peles de

animais selvagens. Tem um colar no pescoço e o que parece ser uma tira de couro de animal

prendendo os cabelos, pois cai da cabeça em direção aos ombros. Na mão esquerda, carrega

um instrumento que não consegui identificar. O do meio está segurando o que parece ser um

cajado. Na cabeça, usa um barrete. Pendendo do pescoço há um par de presas de hipopótamo.

Cobrindo o torso ele usa o que parece ser um cachecol. O último usa os cabelos soltos, presas

de elefantes que ao que parece são brincos. Cobrindo o torso estão o que parecem ser suas

camisas, sendo que, a última está amarrada no pescoço. Pendendo de sua mão direita, pode-se

ver uma lamparina.

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Imagem 12 - Executores da Justiça em seus trajes típicos. Fonte: Partido Frelimo,

Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna, 1985.

Exército

Seguindo-se à descrição da capital, há informações sobre a organização do exército de

Gaza. A primeira informação dada pelo folheto é a de que todos os rapazes entre 13 e 15 anos

como pode ser visto na imagem 13, onde há um grupo de jovens de costas para a câmera,

todos de saiotes de peles de animais (que também são usados pelos guerreiros nas demais

fotos a seguir) e estão de torços nus. Um deles está com as costas cobertas por um tecido,

outro tem trapos que parecem ser também de tecidos atravessando as costas. Estes eram

incorporados a regimentos do exército, chamados Buthos. Até os 18 anos, exerciam a função

de carregadores. Somente quando chegavam a essa idade eram admitidos nos combates. Cada

um dos regimentos recebia um nome e os homens serviam nele até por volta dos quarenta ou

cinqüenta anos. Uma exceção era feita para aqueles que exerciam postos de comando.

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Imagem 13 - Jovens guerreiros. Fonte: Partido Frelimo, Ngungunhane herói da

resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna, 1985.

As Imagens 14, 15 e 16 apresentam guerreiros do exército de Ngungunhana em trajes

de combate. A imagem 17 mostra esses guerreiros sem esses trajes reunidos em um de seus

abrigos temporários. Seus cabelos são adornados com penas de animais selvagens, cobrindo o

torço há um pedaço de pano enfeitado com várias presas de elefantes. Em uma das mãos

carrega seu escudo e sua lança. À distância encontra-se um grupo de guerreiros reunidos.

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Imagem 14 - Guerreiro do exército de Ngungunhana com trajes típicos de combate.

Fonte: Partido Frelimo, Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo,

Empresa Moderna, 1985.

Na imagem 15, pode-se ver um outro grupo de guerreiros. Alguns se encontram

usando além dos saiotes, coletes, mas a maioria está de torso nu. Seus cabelos estão

enfeitados com um ramo de folhas. Pode-se ver que no pescoço o guerreiro usa dois cordões,

um deles é comprido e é enfeitado com peles. No braço em que segura o que parece ser uma

lança, há uma faixa amarrada, que parece ser do mesmo material de do mais longo dos

cordões.

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Imagem 15 - Grupo de guerreiros do exército de Ngungunhana. Fonte: Partido

Frelimo, Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna,

1985.

Na imagem 16, é mostrado um outro numeroso grupo de guerreiros. Dois deles fitam a

câmera. Estes estão de pé. O da esquerda apresenta-se coberto de peles de animais selvagens.

Na mão esquerda, embora seja difícil discernir, vê-se que ele carrega uma arma comprida,

provavelmente uma lança. O outro que está de pé a seu lado tem o cabelo em forma de crista

usa um casaco de manga comprida. Numa das mãos ele também carrega uma lança. A outra

dupla que está próxima da câmera está de costas para a mesma. Um deles tem uma faixa

amarrada à cabeça e veste uma camisa branca. Ao seu lado está um guerreiro que usa penas

de animais nos cabelos e uma camisa também branca. Há algo cruzado em suas costas, que

parece ser uma tira de couro.

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Imagem 16 - Outro grupo de guerreiros do exército de Gaza. Fonte: Partido Frelimo,

Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna, 1985.

Por fim, a imagem 17 apresenta os guerreiros de Ngungunhana sem seus trajes de

combate e sem suas armas. Estão descalços. Pode-se ver que algumas das suas roupas secam

ao sol penduradas num varal.

Imagem 17 - Guerreiros do exército de Gaza em momento de descanso. Fonte: Partido

Frelimo, Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna,

1985.

A imagem 18 representa a destruição de Mandlakazi pelas tropas portuguesas antes da

prisão de Ngungunhana em Chaimite. À esquerda, vê-se um regimento de soldados

portugueses armados com baionetas e com um canhão. À direita, é possível ver um oficial

português montado a cavalo trocando palavras com um africano, vestido com o tradicional

saiote, que segura uma baioneta. Ao fundo, são retratadas as cubatas incendiadas.

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Imagem 18 - destruição de Mandlakazi por tropas portuguesas. Fonte: Partido

Frelimo, Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna,

1985.

A imagem 19 é uma comparação entre as armas utilizadas pelos guerreiros de

Ngungunhana e o exército português. Reforça a imagem que quer passar, de Ngungunhana e

seu exército como heróis da resistência colonial. A imagem retrata a diferença de

desenvolvimento tecnológico entre os dois exércitos, que para a Frelimo foi a única razão da

derrota ―O Estado de Gaza é um dos muitos exemplos de que só a FORÇA DA

DESIGUALDADE DAS ARMAS, impediu o seu triunfo‖. (Frelimo, op. Cit.). Ao fundo estão

dispostos lado a lado arcos, flechas, lanças, machados, um escudo feito com peles de animais

selvagens e mais duas armas pequenas que não consigo identificar. Em contra partida, em

primeiro plano, um tipo de arma usada pelos portugueses que parece ser um suporte com

rodas para metralhadoras. O texto que acompanha essa imagem informa que após a

Conferência de Berlim Portugal se vê na obrigação de se impor através das armas, que foram

muitas as demonstrações de resistência de norte ao sul de Moçambique e que foi só pela

desigualdade tecnológica que os portugueses saíram vitoriosos. Nessa parte do folheto, a

Frelimo reconhece que havia falta de coesão entre os diversos grupos vassalos de

Ngungunhana e revela que esta é explorada pelos documentos da época escritos pelo

colonizador, que por isso buscam enaltecer sua ação e desqualificar a resistência à ocupação.

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Imagem 19 - Armas do exército de Gaza e do exército português. Fonte: Partido Frelimo,

Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna, 1985.

A vida cotidiana

Embora o folheto da Frelimo não trate da organização da vida cotidiana quando

aborda a organização da capital, há imagens que mostram um pouco do dia-a-dia da família

real. Estas, que identificarei como 20 a 27, mostram a mãe nominal do rei, dr. Liengne,

acompanhado de duas escravas, um dos tios de Ngungunhana, rainhas acompanhadas de

escravas e os filhos de Ngungunhana, em dois momentos: na infância e na idade adulta.

A imagem 20 retrata a mãe nominal do rei. Esta teve por função, substituir Yosiyo,

mãe do soberano, morta em 1887 no Conselho deste. Há em volta dela algumas pessoas,

adultos e jovens, que a observam. Na cabeça ela ostenta apenas uma pena. Seu corpo, da

cintura para cima, está coberto pelo que parece ser um manto. Atrás dela à sua esquerda,

pode-se ver um jovem trajado com o que parece ser um colete. Atrás deste há outro jovem,

cuja face é a única parte do corpo visível. Atrás da mãe nominal do rei, estão três adultos.

Dentre eles é possível ver que dois ostentam coroas de cera. Do terceiro pode-se ver apenas

uma parte do rosto.

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Imagem 20 - Mãe nominal do rei. Fonte: Partido Frelimo, Ngungunhane herói da resistência à

ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna, 1985.

A imagem 21, mostra o dr. Liengne acompanhado de duas nativas. Uma delas (o

folheto não especifica qual) é parente de Ngungunhana. A outra é uma escrava. Tendo como

pano de fundo a paisagem local, a imagem mostra o missionário suíço de cavanhaque, camisa

branca, uma jaqueta, e calça comprida. Na sua mão direita, ele segura um chapéu. Das duas

mulheres, a que está em primeiro plano, leva na cabeça uma faixa branca. Da cintura para

cima, sua nudez é coberta com pano longo amarrado por um laço na altura dos seios. Suas

pernas estão cobertas pelo que parece ser uma saia de tecido amarrada na cintura. A outra

mulher usa um vestido que cobre seu corpo até acima dos joelhos. Há uma pulseira no seu

pulso esquerdo e um colar grosso em seu pescoço.

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Imagem 21 - Dr. Liengne acompanhado de uma escrava e de uma parente do rei. Fonte:

Partido Frelimo, Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa

Moderna, 1985.

A imagem 22 mostra um dos tios de Ngungunhana e uma mulher, sobre quem não há

nenhum tipo de informação. Ele se encontra vestido com um colete e algo que não é possível

discernir se é um saiote ou uma calça comprida. Ambas as peças são de tecido. Em sua cabeça

ele ostenta a coroa de cera. Tem uma barba meio grisalha. Já a mulher, veste um colete

branco, uma blusa de manga comprida. Ambos feitos de tecido. Como adornos ela usa

algumas pulseiras. Ela usa também um saiote, que parece conter tecido e peles de animais

selvagens.

Imagem 22 - Um tio de Ngungunhana acompanhado de uma mulher. Fonte: Partido

Frelimo, Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna,

1985.

A figura 23 retrata a rainha preferida ladeada de duas mulheres em primeiro plano. Em

segundo plano há uma dupla de jovens que assim como as três mulheres olham para a câmera

e que estão vestidas com tecidos que envolvem o corpo até os joelhos. Ao fundo é possível

ver três cubatas, e perto delas há um grupo de pessoas. Utiliza como adornos um colar e,

assim como a mulher à sua esquerda, o que parece ser dois grandes braceletes, um em cada

braço. Como vestimenta ambas trajam tecidos que envolvem todo o corpo. Além disso,

encontram-se descalças sentadas sob uma esteira. A terceira mulher, que está de pé, utiliza

como adornos, uma gargantilha, braceletes semelhantes aos das outras duas e tornozeleiras.

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Está com os seios à mostra. Na altura do ventre, ela usa uma faixa. Seu saiote parece ser feito

de tecidos.

Imagem 23 - Rainha preferida na companhia de escravas. Fonte: Partido Frelimo,

Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna, 1985.

As imagens 24 e 25 mostram outras rainhas acompanhadas de escravas. A primeira

fotografia parece ter sido tirada no mesmo lugar que a anterior, porém de um outro ângulo.

Retrata também três mulheres, sentadas sob esteiras, observadas por pessoas ao fundo. Todas

as três se vestem com tecidos que cobrem todo o corpo como na imagem anterior. Duas

utilizam os mesmos braceletes, sendo que apenas uma, à direita, usa um colar. A do meio

utiliza uma tornozeleira.

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Imagem 24 - Outras rainhas e escrava. Fonte: Partido Frelimo, Ngungunhane herói da

resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna, 1985.

A imagem 25, que tem ao fundo o que parece ser uma tela branca, como as demais,

retrata três mulheres sentadas sob uma esteira. A que está à esquerda, um colar com dentes do

que parece ser dentes de um animal selvagem, está vestida com uma faixa de tecidos cobrindo

os seios. Está sentada sobre as pernas, de modo que, o que se vê parece ser um saiote de

tecidos. A mulher que está no centro, não usa praticamente nenhum adorno, a não ser, uma

tornozeleira branca. Está com os seios a mostra, tendo uma faixa posta transversalmente do

ombro esquerdo à cintura. Usa uma faixa grossa no abdômen um saiote de tecido. A última

das mulheres, como a da esquerda, usa um colar e os braceletes. Veste-se com tecidos de

estampas diferentes que cobrem todo o corpo.

Imagem 25 - Escrava ladeada por duas rainhas. Fonte: Partido Frelimo, Ngungunhane herói

da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna, 1985.

As imagens seguintes, 26 e 27, retratam cenas do cotidiano dos filhos de

Ngungunhana. A primeira delas, tirada quando eram crianças, mostra cinco dos filhos do

soberano, tendo ao fundo uma cubata e um homem que os observa. Aparecem na imagem

cinco de seus filhos. Com exceção de um deles, que está ao fundo à esquerda, vestido com

tecidos que cobrem todo o seu corpo até os joelhos, quatro estão vestidos apenas com saiotes.

O que está sorrindo, usa ainda o que parece ser um cinto. Um dos mais velhos que está ao

fundo à direita usa um cordão que aparenta ser feito de miçangas.

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Imagem 26 - Filhos de Ngungunhana ainda crianças. Fonte: Partido Frelimo, Ngungunhane

herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna, 1985.

Na imagem seguinte, os filhos de Ngungunhana, com o primogênito, Godide à frente,

estão em fila indiana. Este, que usa uma pena na cabeça veste-se apenas com um saiote feito

de peles de animais selvagens e segura um cabo com a mão direita. Atrás dele, apenas um de

seus irmãos está de torso nu. Este utiliza um saiote que parece ser de tecido adornado com

peles de um tipo de animal selvagem. Os demais apresentam saiotes semelhantes a este,

porém estão vestidos da cintura para cima o terceiro da fila está com uma camisa branca por

baixo de um casaco. Os dois últimos, também vestem camisas brancas, sendo que o da frente

usa um colete por cima da camisa. Todos estão descalços.

Imagem 27 - Filhos de Ngungunhana jovens adultos. Fonte: Partido Frelimo,

Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna, 1985.

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As duas últimas imagens que reproduzo que se referem a vida cotidiana, são de um

curandeiro juntamente com um homem vestido à européia, imagem 28, e de uma cadeira que

a Frelimo presume que tenha sido utilizada por Ngungunhana, imagem 29. Na imagem que

retrata um curandeiro de trajes típicos que se veste por completo com peles de animais

selvagens. Como adornos ostenta, pelo que é possível ver algumas tornozeleiras em ambas as

pernas. Na mão esquerda está segurando o que parece ser uma vara. Já o outro homem

retratado, usa um chapéu e está vestindo o que parece ser um blazer por cima de uma camisa

branca e calças compridas.

Imagem 28 - Consulta a um curandeiro do reino. Fonte: Partido Frelimo,

Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna, 1985.

A cadeira que a Frelimo presume que tenha sido usada pelo último rei de Gaza, é uma

cadeira simples, feita de ferro trabalhado, cujo assento é trançado e feito de um material que

não é possível identificar.

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Imagem 29 - Cadeira que pode ter sido usada por Ngungunhana. Fonte: Partido

Frelimo, Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna,

1985.

A seguir são reproduzidas duas fotografias do período compreendido entre o

embarque para o exílio e a cerimônia de devolução dos ossos em Lisboa a Samora Machel.

Deste grupo, duas foram analisadas no primeiro capítulo, sendo respectivamente as imagens 2

e 3. A imagem 30, tirada já nos Açores é de 16 de abril de 1899, o dia em que foram

batizados. Nela pode-se ver tal como a imagem 4, tirada no mesmo dia, os quatro com trajes

europeus típicos, cartolas, ternos, gravatas borboleta e sapatos. A figura de Ngungunhana se

destaca por estar segurando uma espécie de vara.

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Imagem 30 - da esquerda para a direita: Godide, Ngungunhana, seu tio Molungo e Zichacha

em trajes europeus no dia do batismo. Fonte: Partido Frelimo, Ngungunhane herói da

resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna, 1985.

Por fim tem-se a imagem 31, antecedida pelo documento que registra a morte do

antigo monarca em 1906, registra a cerimônia da entrega simbólica dos ossos para Samora

Machel em outubro de 1983. O documento consta do seguinte:

Nº50

Reynaldo Frederico

Gungunhana

Aos vinte e três de mês de Dezembro do ano de mil novecentos e seis,

pelas nove horas da noite, no hospital militar, sito nesta freguesia da Sagrada Fé Catedral, Conselho e

Diocese de Angra do Heroísmo, faleceu, não tendo recebido os sacramentos da Santa Madre Igreja,

um indivíduo de sexo masculino, de nome Reynaldo Frederico Gungunhana, de sessenta e sete anos de

idade, ex-Rei de Gaza na África Portugal donde era natural e baptizado nesta Sé de Angra, Filho de

Muzila e Dudé, ambos naturais de Gaza, o qual não fez testamento, deixou filhos e foi sepultado do

Cemitério público da Conceição. E para constar lavrei em duplicado este assento que assino.

Era ut Supra

O Beneficiado Pároco

Eduardo de Souza Marques

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A imagem mostra Samora Machel, de barba, terno cinza e gravata, ladeado por

autoridades portuguesas de costas para um grande painel. À sua frente há uma mesa ricamente

trabalhada em madeira. À esquerda desta encontra-se uma autoridade portuguesa discursando

durante a solenidade. Não há nenhuma indicação sobre a sua identidade no folheto. Pelas

informações dadas por Vilhena (op. Cit.: 299-300), suponho que seja ou o Presidente do

Governo regional dos Açores, João Bosco Mota Amaral, ou o Ministro da República, General

Tomás Jorge Conceição e Silva.

Imagem 31 - Cerimônia de entrega dos restos mortais de Ngungunhana ao Presidente da

República de Moçambique, Samora Machel, Lisboa, 1983. Fonte: Partido Frelimo,

Ngungunhane herói da resistência à ocupação colonial, Maputo, Empresa Moderna, 1985.

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As palavras finais do folheto ressaltam que Ngungunhana lutou em duas frentes para

manter a autonomia de suas terras, usando de diplomacia num momento e seus exércitos em

outro. Não conseguiu evitar a derrota, o que levou seus territórios a serem entregues a

exploração da Companhia de Moçambique e a administração colonial a se instalar de forma

sistemática. Em 1895 Ngungunhana fora derrotado, preso, humilhado e, por fim, exilado. A

Frelimo conseguiu, naquele ano de 1975, o que Ngungunhana não logrou realizar: derrotar os

portugueses. Esta, entretanto, não é a única razão para que Samora Machel evoque

Ngungunhana como herói nacional. O Presidente moçambicano, segundo Cristiano Matsinhe,

era descendente de uma família da aristocracia rural, que se tornou rica através do trabalho

migratório para as minas da África do Sul. Além disso, há ancestrais seus identificados com a

resistência nativa contra o colonizador português. Assim como Eduardo Mondlane, Samora

Machel nasceu em Gaza, em 1933, na província de Chokwé. Em uma das biografias de

Samora Machel analisadas por Matsinhe (1997), escrita por Ian Christie, o primeiro

presidente moçambicano é descrito como ―herdeiro direto de uma tradição de resistência

contra a dominação colonial, pois seu avô paterno havia sido um guerreiro do exército de

Ngungunhana‖ (Matsinhe, op. Cit.: 55). Essa informação teria sido passada a ele oralmente,

pelos mais velhos. A narrativa de Christie sobre a infância de Machel, segundo Matsinhe, o

associa de tal forma ao Império de Gaza que traça ―continuidades entre as guerras de

resistência pré-coloniais e o posterior desenvolvimento de suas idéias políticas‖ (Matsinhe,

op. Cit.: 55). A eleição de Ngungunhana como herói nacional, apesar da Frelimo em seu

panfleto apresentá-lo como um herói de todos os moçambicanos, poderia ser interpretada

como uma espécie de identificação entre duas lideranças de Gaza: Ngungunhana, domado

pelas tropas de Mouzinho de Albuquerque, e o presidente Samora Machel que liderou a

Frelimo na sua bem sucedida guerra contra os portugueses, liderados pelos generais Kaúlza de

Arriaga e Basto Machado.

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Conclusão

Espero que nessa dissertação tenha conseguido demonstrar que o estudo das biografias de

Mouzinho de Albuquerque e Ngungunhana pode contribuir para a compreensão do processo

de colonização e descolonização de Moçambique.

No ensaio intitulado “A biografia como problema”, a historiadora italiana Sabina Loriga

(1996) reflete sobre as discussões acerca da validade do estudo das biografias como forma de

compreensão das relações sociais. A autora acompanha passo a passo a evolução da discussão

teórica, datando seu início na antigüidade com Políbio chegando à discussão atual, sem deixar

de levar em consideração autores como David Hume, Voltaire, Leopold Von Ranke, Michelet

e Hegel. Com isso, demonstra que no passado a biografia era valorizada como a forma de

narrativa por excelência da produção histórica, uma vez que seu objeto era a vida de grandes

líderes políticos e militares. Este modelo de produção de conhecimento foi considerado até

princípios do século XX a forma correta do fazer historiográfico, visto que desta forma eram

narradas e celebradas as conquistas dos Estados Nacionais.

Pode-se dizer que das biografias analisadas, as escritas por Antonio Pires Nunes e

Amadeu Cunha sobre Mouzinho de Albuquerque e o folheto biográfico de Ngungunhana

produzido pela Frelimo, são originários dessa tradição. Após um período renegado ao

esquecimento, entre as décadas de 1970 e 1980 o indivíduo volta ao centro da discussão. Sua

reflexão acerca do lugar do indivíduo como objeto da produção de conhecimento e como

ponto de partida para a compreensão das relações sociais permite compreender as dimensões

chave da importância desses dois personagens para a reflexão acerca da herança deixada pelo

colonialismo em cada um dos dois países. Figuras icônicas dos dois lados da questão podem

fornecer subsídios para a compreensão do papel do colonialismo e de suas seqüelas. Enquanto

para os portugueses, as biografias de cunho heróico são uma lembrança de um passado

glorioso de sua nação, que tenta encontrar o seu lugar e a sua função numa Europa em que o

país ocupa uma posição periférica, para uma elite regional moçambicana é uma tentativa de

buscar no passado a legitimação para suas ações no contexto de meados dos anos 1980.

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Anexo 1

Livro do Centenário de Mouzinho de Albuquerque

P. 15-20

Meu Senhor:

Quando Vossa Alteza chegou à idade em que a superintendência da sua educação

tinha que ser entregue a um homem Houve por bem El-Rei nomear-me Aio do Príncipe Real.

Foi Sua Majestade buscar-me às fileiras do Exército. Não escolheu por certo o militar de mais

valor, mas simplesmente aquele a quem uma série de acasos felizes mais ensejo dera de

provar que sabia, custasse o que custasse, obedecer ao que lhe era ordenado e que também

sabia, doesse a quem doesse fazer cumprir as ordens que dava.

Não por certo a Vossa Alteza como filho e como sú bdito e menos a mim como

soldado compete apreciar e criticar as determinações d’El-Rei. A Vossa Alteza como a mim

bem lhe obedecer não basta ver-lhe a letra, é necessário estudá-la, entende-la, descortinar-lhe

o espírito. Escolhendo um soldado para vosso Aio que fez El-Rei? Subordinou a educação de

Vossa Alteza ao estado em que se acha o país. Nesta época de dissolução, em que tão

afrouxados estão os laços da disciplina, entendeu Sua Majestade que Portugal precisava mais

que de tudo de quem tivesse vontade firme para mandar, força para se fazer obedecer. E como

ninguém pode ensinar o que não sabe o que não tem praticado, foi El-Rei procurar o Vosso

Aio à classe única em que se encontra quem obedeça sem reticências e mande sem hesitações.

Por esse motivo o primeiro dos meus deveres è fazer de Vossa Alteza um soldado. É

Vossa Alteza Príncipe, há-de ser Rei; ora Príncipe e Rei que não comece por ser soldado é

menos que nada, é um ente híbrido cuja existência se não justifica. Há poucos anos andava

pela Europa, num exílio vagabundo de judeu errante, um Imperador que num momento de

crise esqueceu que o seu título vinha do latim Imperator, epíteto com que se saudavam os

vencedores, e que se não vence sem desembainhar a espada – sine sanguine victoria non est. –

Por um erro igual já subiu um Rei ao cadafalso e outros foram despedidos do trono par o

exílio sempre doloroso e humilhante. Príncipe que não for soldado de coração, fraco Rei pode

vir a ser.

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O que foram na verdade os Reis primitivos? Guerreiros audaciosos que os

companheiros de armas levantaram nos escudos acima das suas cabeças. E o que foi maior

dentre os Reis, aquele cujo nome ribomba como um trovão na história deste século? Um

militar ambicioso que, elevado ao Império pelos seus soldados, não se deu por contente

enquanto não pôs o pavês que o levantara em cima das costas dos outros Reis da Europa que

lhe serviram de pés ao trono. E, entretanto, a despeito da sua incomparável grandeza de

ânimo, a despeito das qualidades únicas de mando com que a Previdência o dotara, talvez para

castigo de muitos, por certo para exemplo de todos, caiu esse colosso e o grande Imperador

foi derrubado por esses mesmos que tanta vez vencera. Faltava-lhe a tradição da Monarquia,

da linhagem Real, que cimenta e consagra a autoridade dos Reis legítimos.

Mas nessas mesmas linhagens Reais só foram grandes os que souberam lançar mão da

espada sempre que lhes foi necessário. Por isso, repito, primeiro que tudo tem Vossa Alteza

que ser soldado.

Aprenderá a sê-lo na história de seus avós. Este Reino é obra de soldados. Destacou-o

da Espanha, conquistou-o palmo a palmo um príncipe aventureiro, que passou a vida com a

espada segura entre os dentes, escalando muralhas pela calada da noite, expondo-se à morte a

cada momento, tão queimado do sol, tão curtido dos vendavais como o ínfimo dos peões que

o seguia. Firmou-lhe a independência o Rei de boa memória, que tantas noites dormiu com as

armas vestidas e a espada à cabeceira, bem distante dos regalos dos Paços Reais. E, para a

formação da Vossa Casa, concorreu com ele o mais bravo dos seus guerreiros, que simbolizou

e resumiu em si quanto havia de nobre e puro na história Medieval, um herói e um santo.

Mais tarde o Príncipe Perfeito, depois de haver mostrado que sabia terçar lanças em combate

com o melhor dos cavaleiros, depois de haver abatido de vez todas as cabeças que se erguiam

por demais altivas perante a Coroa Real, deu pela força da sua vontade de ferro um impulso

de tal ordem às nossas naus que foram ter ao Cabo da Boa Esperança, abrindo a Portugal o

caminho por aonde chegou ao apogeu da glória. Soldados se lhes pode bem chamar a estes

porque tiveram o desapego da vida, a força do mando, a obediência cega àquilo que acima de

tudo deve imperar nos Reis – a idéia fixa e pertinaz da glorificação do seu nome e da

grandeza do Reino onde Deus os fez os primeiros de entre os homens.

Para não ser injusto nem ingrato não deve Vossa Alteza lembrar-se somente dos

felizes porque nem só eles foram soldados. Houve um Rei de Portugal, que, não podendo ser

vencedor, soube morrer herói. Não tendo alcançado a vitória ambicionada, procurou a morte

gloriosa. “A liberdade Real só se perde com a vida”, foram às últimas palavras que se lhe

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ouviram e do cativeiro infamante salvou-o a morte, única libertadora invencível porque não

há algemas que prendam um morto. Errou, é certo, mas a morte de valente, expiatória e

heróica, redime os maiores erros. Bem merece ele o nome de soldado, bem estudada e

meditada deve ser a sua História, porque pelo estudo e pela meditação se formam as almas e a

alma dum Príncipe para tudo deve estar temperada, até para as maiores desgraças.

Soldado também e como poucos foi D. Pedro IV. Trabalhou e combateu como soldado

e teve a audácia precisa nos lances decisivos, a resignação estóica nas mais dolorosas crises, a

presença de espírito nas situações mais difíceis, a decisão rápida e pronta para aproveitar as

vitórias. E tanto se lhe enraizaram na alma os brios de soldado que, quando se viu insultado,

apupado sem poder desembainhar a espada que tão bem o houvera servido, estalou de dor. As

chufas com que o populacho cobarde e ingrato lhe pretendeu enlamear a farda foram-lhe

diretas ao coração, mataram-no.

Estude Vossa Alteza a história desses seus avós. Leia-a, releia-a, medite-a, estude-a,

meta-a bem na cabeça e no coração. Na convivência deles aprenderá Vossa Alteza a ser como

eles forte, justo, simples e verdadeiro. E bem compenetrado do que eles fizeram, conhecendo-

lhes a vida dia a dia, sentirá

Vossa Alteza que d’Eles vem, que é um d’Eles. Assim sonhará com futuros de glória que se

assemelhem a esse passado de grandeza e sonhar assim é uma felicidade e uma força. Triste

do homem que só cuida do presente, que só preza a intimidade dos vivos; pobre daquele que

precisa adormecer para sonhar com o futuro. No olhar saudoso para o que já passou, no

imaginar o que há-de vir se vai formando a alma, se lhe vão apurando as qualidades,

desenvolvendo a força. E chegada à ocasião de as aproveitar, de as por em ação, cai-se-lhe em

cima como o milhafre sobre a presa e não se deixa escapar. A ciência da vida assemelha-se à

arte da guerra em que numa e noutra é mais preciso que tudo aproveitar as ocasiões e para o

fazer é necessário o exercício constante, a trenagem; ora o estudo e a meditação constituem a

trenagem do espírito.

Nasceu Vossa Alteza numa época bem desgraçada para este país. Foi talvez um favor

de Deus porque mais na desventura que na felicidade se prova a força do caráter; em todo o

caso é bem certo, meu Senhor, que a Vossa história tem sido muito triste porque, convença-se

bem Vossa Alteza de que os Príncipes não têm biografia, a sua história é, tem que ser a do seu

povo. Nessa história, entretanto, há algumas páginas que Vossa Alteza pode ler sem que lhe

corem as faces de vergonha, sem que lhe subam aos olhos lágrimas espremidas do coração

triturado de humilhações. Essas poucas páginas brilhantes e consoladoras que há na história

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do Portugal contemporâneo escrevêmo-las nós, os soldados, lá pelos sertões da África, com as

pontas das baionetas e das lanças a escorrer em sangue. Alguma coisa sofremos, é certo;

corremos perigos, passamos fomes e sedes e anão poucos prostraram em terra para sempre as

fadigas e as doenças. Tudo suportamos de boa mente porque servíamos a El-Rei e a Pátria, e

para outra coisa não anda neste mundo quem tem a honra de vestir uma farda. Por isso nós

também merecemos o nome de soldados; é esse o nosso maior orgulho.

Tudo é pequeno neste nosso Portugal de hoje! O mar já não é “curral das nossas

naus”, mas sim pastagem de couraçados estranhos; foram-se-nos mais de três partes do

Império de além-mar e Deus sabe que dolorosas surpresas nos reserva o futuro. Não tiveram,

portanto, as guerras em que agora temos andado o brilho épico dos feitos dos nossos maiores.

Mas no campo restrito em que operamos com os poucos s recursos de que dispúnhamos, não

fizemos menos nem pior do que outros bem mais ricos e poderosos.

A que devemos este resultado? A que no homem do povo em Portugal ainda se

encontram as qualidades de soldado: a resignação, a coragem fria e disciplinada, a confiança

nos superiores e, mais que tudo, a subordinação. E é preciso que Vossa Alteza, soldado por

dever e direito de nascimento, se possua bem da idéia de que a subordinação é a primeira de

entre as virtudes militares.

Já a tenho ouvido alcunhar de renúncia da vontade. Ora ninguém como o soldado

carece de força de vontade porque mais que em coisa alguma se demonstra ela na prática da

obediência. Renunciar ao capricho, ao egoísmo, à indolência, a tudo quanto o vulgar dos

nomes mais aprecia e estima ter por único fim servir bem, por único enlevo a glória, por único

móvel a honra e a dignidade não é renúncia da vontade. E se nós, que somos soldados

somente desde o dia em que nos alistamos e podemos voltar à classe civil de onde saímos,

precisamos para tudo de muito querer e saber querer, quanto mais um Príncipe para quem

nascer foi assentar praça e que só pode ter baixa para a sepultura!

De vontade e vontade de ferro precisará Vossa Alteza no duro mester para que Deus o

destinou. Houve Reis, meu Senhor, que para desgraça dos seus povos adormeceram no trono

em cujos degraus haviam nascido e nesse dormir esqueceram a missão que lhes cumpria

desempenhar. No fim do século passado o povo francês sacudiu-os de forma tal que os

deveria ter acordado para sempre, e, desde então, Príncipe que dormitasse no trono acordava

no exílio. Assim deve ser. Castiga-se a sentinela que se deixa vencer pelo sono e o Rei é uma

sentinela permanente que não tem folga porque, nomeado por Deus, só ele o pode mandar

render e então envia-lhe a morte a chamá-lo ao descanso. Enquanto vive tem o rei de

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conservar os olhos sempre bem abertos, vendo tudo, olhando por todos. Se nele reside o

amparo dos desprotegidos, o descanso dos velhos, a esperança dos novos; se dele fiam os

ricos a sua fazenda, os pobres o seu pão, e todos nós a honra do país em que nascemos que é a

honra de todos nós!

Para semelhante posto só pode ir quem tenha alma de soldado. Porque ser soldado não

é arrastar a espada, passar revistas, comandar exercícios, deslumbrar as multidões com os

doirados da farda. Ser soldado é dedicar-se por completo à causa pública, trabalhar sempre

para os outros. E para se convencer, olhe Vossa Alteza para o soldado em campanha.

Porventura o vê só a marchar e a combater? Cava trincheiras, levanta parapeitos, barracas e

quartéis, atrela-se às viaturas, remenda a farda, cozinha o rancho e o que tem de seu trá-lo às

costas, na mochila. Desde os mesteres mais humildes até ao mais sublime, avançar de cara

alegre direito à morte, tudo faz porque todo o trabalho despido de interesse pessoal entra nos

deveres da profissão. Trabalho gratuito sempre, porque o vencimento do militar, seja pré,

soldado ou lista civil, nunca é a remuneração do serviço, por não haver dinheiro que pague o

sacrifício da vida.

É assim que, por mais que espíritos desorientados tenham querido obliterar as

tradições de honra do Exército, a profissão entre todas nobre, foi, é e há-de ser sempre a

militar porque nela se envolve tudo que exige a anulação do interesse individual perante o da

colectividade. E por isso que ninguém como o rei tem de se esquecer de si para pensar em

todos, por isso que ninguém como Ele tem de levar a abnegação ao maior extremo, ninguém

como Ele precisa de ser soldado na acepção mais lata e sublime desta palavra, soldado pronto

da recruta em todas as armas, instruído em todos os serviços, desde o de cavalaria que, numa

galopada desenfreada, através de uma saraivada de balas, vai completar com a carga a derrota

do inimigo, até ao do maqueiro que vai buscar os feridos à linha de fogo, ao enfermeiro que

deles cuida na ambulância. Tão bom Rei, tão bom soldado foi D. Pedro V nos hospitais como

outros nos campos de batalha, porque a coragem e abnegação são sempre grandes e nobres,

seja onde for que se exerçam e tudo que é grande e nobre é próprio de Rei e de soldado.

Não faltará ensejo a Vossa Alteza de revelar aquelas qualidades. Não lhe escassearão

por certo provações e cuidados, revezes que trazem o desconforto ao espírito, lances

dolorosos que desconsolam da vida. Para todos eles carece Vossa Alteza de estar preparado,

temperado pela educação, pelo estudo dos bons exemplos, pela firme vontade de vira ser um

Príncipe digno desse nome e do da sua Casa. E para ser Príncipe é preciso primeiro que tudo

ser homem.

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Se para descanso do seu espírito vaticinasse a Vossa Alteza um futuro risonho de

despreocupações e gozos, faltaria por completo ao meu dever. Ao escolher-me para vosso Aio

disse-me El-Rei: - “Faze dele um homem e lembra-te que há-de ser Rei”. Proporcionando a

Vossa Alteza o conhecimento do que fizeram em África os seus mais leais servidores,

apontando-lhe com seu exemplo, procurando temperar-lhe a alma para as mais duras provas

por que pode vir a passar, não faço mais que cumprir as ordens de El-Rei e procurar, como o

tenho sempre feito, corresponder à confiança de Sua Majestade. A Vossa Alteza cumpre

realizar as esperanças de Seu Augusto Pai e nosso Rei, as de todos os Portugueses. Que Deus

o guie e proteja nesse difícil e glorioso caminho é o mais ardente voto.

do Seu Aio muito dedicado

(Rascunho de uma carta-dedicatória endereçada por Mouzinho de Albuquerque ao

Príncipe Real D. Luís Filipe de Bragança – 1900 ou 1901).

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P. 23 – 25

O PATRIÓTICO SIGNIFICADO DAS COMEMORAÇÕES

As comemorações nacionais do 1º Centenário do nascimento de Joaquim Mouzinho de

Albuquerque, herói inolvidável que renovou na época moderna as grandes gestas portuguesas

de outrora, fizeram vibrar de emoção e de fervor patriótico a alma da Grei.

Em todas as parcelas dispersas da Nação, desde o cerne ancestral da mãe-pátria até aos

territórios dos confins da Ásia, a memória de Mouzinho foi evocada como símbolo de

continuidade do gênio lusíada na Expansão – gênio de fé civilizadora e de coragem temerária,

de tenacidade bandeirante e de entendimento construtivo perante as diversidades das terras e

das gentes exóticas; e em torno do nome do Herói, como dos fastos da sua mensagem vivida

em ação e esperança, condensaram-se as recordações do esforço português desdobrado em

paragens longínquas, desde a epopéia do Oriente à pacificação das Províncias africanas.

Numa época em que o engrandecimento da Nação é concebido sob o signo da unidade

e indivisibilidade do território que a constitui, a lição de Mouzinho de Albuquerque avultou

em toda a amplitude do seu perene significado. A energia que se exprimiu no feito de

Chaimite e as qualidades varonis do chefe militar; a coragem indômita que vibrou na carga de

Macontene e as virtudes de devoção e sacrifício do cidadão; a fé que transparece nos

relatórios e correspondências de África e as aptidões do administrador ultramarino de larga

visão – foram igualmente apontadas como exemplo que para sempre ficou esmaltado em

letras de ouro na nossa história.

Sob múltiplas formas e nos mais diversos lugares e circunstâncias lembraram-se os

passos da sua biografia, desde as velhas raízes familiares, e da infância e juventude

irrequietas, até ao tiro que prostrou enigmaticamente o vencedor glorioso de tantos combates.

Não descurou a Comissão Nacional do Centenário tudo o que pudesse revelar aos portugueses

de hoje a figura consagrada, estimular a iniciativa evocadora, despertar um eco e valorizar

qualquer colaboração nos mais diversos recantos do País e das suas parcelas ultramarinas.

A Imprensa e a Rádio fizeram extensos relatos das Comemorações; muitas

individualidades de relevo nas letras, no jornalismo e na vida política e social do País,

trouxeram o seu contributo aos actos públicos de homenagem em artigos, entrevistas,

conferências, palestras e depoimentos do mais vário estilo. A Emissora Nacional, em

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colaboração estreita com a Comissão, emitiu um folhetim radiofônico em que fez ressurgir a

vida e a personalidade admiráveis de Mouzinho. Através da “Voz do Império”, programa

organizado pela Agência Geral do Ultramar, foram difundidas entrevistas alusivas com o

presidente da Comissão, General Luís António de Carvalho Viegas, com o secretário-geral da

mesma, Filipe Gastão de Moura Coutinho de Almeida de Eça, com representantes do Exército

e da Agência geral do Ultramar, general Abílio Pais de Ramos e dr. António Alberto de

Andrade. Trabalhos biográficos representativos vieram a público durante o período das

comemorações, tais como “À Mocidade Portuguesa- O Monumento a Mouzinho de

Albuquerque”, conferência de D. Fernanda Mouzinho de Albuquerque; “Nas vésperas de um

centenário – A Grandeza de Mouzinho”, conferência de Manuel Dias Belchior; “Deux

Constructeurs d’Empire – Mouzinho et Lyautey”, ensaio de Octávio Rodrigues de Campos,

vertido em francês por Robert Filliatre; “Consciência de cumprir apenas um dever” pelo

escritor e jornalista Luís Teixeira; “No Centenário de Mouzinho de Albuquerque”, pelo

brigadeiro Luís Nunes da Ponte; “Mouzinho e Robert Clive”, pelo coronel Alberto Faria de

Morais; “Presença de Mouzinho”, por Octávio Rodrigues de Campos; “Mouzinho de

Albuquerque, Herói de África”, achegas para uma biografia completa, pelo coronel J. Lúcio

Nunes; “Mouzinho – Sua acção militar e política e Moçambique”, pelo tenente-coronel

Fernando Dias Pires Monteiro; “Mouzinho – Bibliografia – Iconografia – Catálogo”, editado

pelo Museu de Angola; “Mouzinho – A sua Vida e a sua Morte”, estudo por Luís Filipe de

Oliveira e Castro, e possivelmente ainda outros de que a Comissão Nacional não teve

conhecimento, merecendo também destacada referência o magnífico número especial da

“Revista da Cavalaria”, inteiramente dedicado a Mouzinho e inserindo excelente colaboração

do doutor Júlio Dantas, generais Botelho Moniz, Afonso de Souza Botelho, Carvalho Viegas,

Alfredo Narciso de Sousa, Pais de Ramos e Buceta Martins, brigadeiro Meira e Cruz, coronel

tirocinado Carlos Chaby, tenentes-coronéis Pires Monteiro e Gomes Júnior e major Serpa

Soares. Poetas glorificaram a figura já lendária do Herói e uma peça dramática de António

Manuel Couto Viana, “O Acto e o Destino”, levada à cena no Teatro Nacional, exaltou em

forma e simbolismo eloqüentes a sua trajectória emocionante na nossa história recente. E para

que se traduzisse mais expressivamente o próprio cenário das façanhas épicas de Mouzinho,

vieram à Metrópole contingentes de tropas de Angola e Moçambique e uma deputação da

Mocidade Portuguesa desta última Província, esmaltando com a sua participação alguns dos

actos mais significativos das homenagens nacionais que o consagraram.

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Não cabe nesta breve nota de abertura a menção minuciosa e integral de todos os actos

e realizações que ficaram a assinalar o 1º Centenário do nascimento de Mouzinho de

Albuquerque. Nem isso verdadeiramente importa para os tempos vindouros, ante os quais este

volume ficará a lembrar uma nobre jornada da consciência nacional, em testemunho de

gratidão a quem tão generosamente serviu a grandeza e o prestígio de Portugal.

Importa, sim, e até se impõe pela eminência do seu significado e como reflexo do

carácter unânime e genuinamente nacional das homenagens a Mouzinho, mencionar e

destacar a honrosa comparência de Sua Excelência o Presidente da República às cerimônias

de abertura e de encerramento das comemorações na Capital, notável circunstância que muito

expressivamente traduz a comunhão espiritual de todos os portugueses na consagração da

egrégia memória do seu mais representativo Soldado das gestas africanas.

A Comissão do Centenário tem a convicção de haver feito valer todos os recursos ao

seu alcance para que as comemorações tivessem o mais alto luzimento e repercussão pública,

para que a todos os lugares da Nação Portuguesa chegasse um eco da mensagem imortal do

Homem e do Soldado que lhe cumpria celebrar. É ainda na fidelidade a esse intuito que se

publica este volume – também organizado com as limitações de tempo e de espaço

inevitáveis, mas visando na intenção aquele mesmo objectivo de ampla projeção nacional.

Nas páginas que a seguir se desdobram ficam arquivados ou salientados os

acontecimentos, cerimônias, escritos e testemunhos de maior relevo ou que mais perenemente

importa conservar. Em todas está patente, sem dúvida, a emoção patriótica inspiradora dos

actos comemorativos e a admiração profunda que no espírito dos portugueses de hoje

continua a envolver a grande figura histórica que se homenageou. O “Livro do 1º Centenário

do nascimento de Mouzinho de Albuquerque” ficará a constituir para os portugueses de

amanhã, não um documentário friamente descritivo, mas, acima de tudo, um testemunho de

gratidão e uma prova de fé: da gratidão de uma Pátria que sabe recompensar condignamente

os seus mais lídimos heróis; da fé nos altos destinos da Nação que foi a força inspiradora da

vida e da obra de Mouzinho, onde as gerações do presente e do futuro muito poderão aprender

através do seu exemplo.

As inevitáveis omissões serão desculpadas, decerto, pelo reconhecimento dos limites a

que tem de cingir-se um livro desta índole; e os seus objectivos serão tanto mais amplamente

realizados quanto mais íntegra e fiel se mantiver a veneração nacional pela personalidade de

superior estatura moral e cívica que o determinou, fazendo germinar, no tempo que tudo

consome e esmorece os frutos da sua lição exemplar.

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Último acto perdurável das Comemorações do Centenário do Nascimento de Joaquim

Augusto Mouzinho de Albuquerque, este livro constitui, também, o derradeiro preito de

homenagem que, no termo das suas funções, é tributado àquele glorioso Português pela

Comissão que recebeu e procurou cumprir o grato e honroso encargo que lhe foi confiado em

nome da Nação.

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P. 35 – 38

(Discurso proferido pelo General Carvalho Viegas, presidente da Comissão para a

celebração do Centenário de Mouzinho de Albuquerque)

Excelentíssimo Senhor Presidente da República,

Excelência:

É com o maior prazer que tenho a honra de dirigir a Vossa Excelência as minhas

primeiras palavras, saudando-o calorosamente, o que faço com a mais viva emoção não só

pelo seu aprimorado acto de cortesia honrando esta sessão com a sua presença, como pelo alto

significado que esta propriamente tem.

Não é o amigo e camarada, não é o colega do curso nas provas para o generalato em

que Vossa Excelência vincou mais uma vez a sua bela camaradagem, inteligência e saber,

quem fala, mas sim o bom português que se orgulha de tê-lo como Chefe da Nação. Ainda há

bem pouco tempo, Vossa Excelência, pelo seu prestígio pessoal de grande português, como

espelho da Honra e grandeza moral de Portugal, prestou um relevante serviço, do maior

alcance político, com a sua visita triunfal a Inglaterra.

Vossa Excelência com a sua larga folha de serviços militares, serviços gloriosos como

os atestam as veneras que esmaltam o seu honrado peito, com as invulgares qualidades de

carácter e excepcionais virtudes que exortam a sua personalidade, tem sido sempre um

exemplo vivo de devoção patriótica, o que, de resto, o País reconheceu, honrando-o com a

eleição para seu Presidente. Assim Vossa Excelência com a sua presença dá grandioso brilho

às homenagens que queremos prestar ao, já consagrado pela Nação, Herói nacional, o tenente-

coronel Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque, símbolo da glória militar e um dos

grandes construtores do nosso Império Ultramarino.

O nosso grato reconhecimento é, pois, devido a Vossa Excelência.

A Sua Ex.ª o senhor Ministro do Ultramar e ao seu antecessor o ilustre Comandante

Sarmento Rodrigues, que tiveram a iniciativa de promover as Comemorações Centenárias do

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nascimento de Mouzinho de Albuquerque, e bem assim aos ilustres membros do Governo que

os acompanharam, ofereço as minhas mais rendidas homenagens pelo seu gesto fazendo

vibrar a alma nacional, a qual se deve sempre revigorar pela beleza augusta da tradição

heróica na Nação, pois sem ela os povos vivem como desenraizados da Pátria e acabam por

perder a sua personalidade, prestígio, liberdade e, finalmente, a independência.

Para VV. Ex.as., minhas Senhoras e meus Senhores, pela tão impressionante

concorrência a esta sessão solene, mostrando assim um índice bem expressivo do vosso

elevado culto patriótico, a imperecível gratidão de quem em boa hora tem o prazer de

patentear o seu amor pátrio enaltecendo a figura gloriosa de Mouzinho, símbolo do dever para

com a Pátria e exemplo vivo de heroísmo.

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(Discurso proferido pelo Sr. General Carvalho Viegas presidente da Comissão para

as Comemorações do Centenário de Mouzinho)

Excelências,

Minhas Senhoras e meus senhores:

Na qualidade de Presidente da Comissão Nacional para as Comemorações Centenárias

de Mouzinho de Albuquerque, tenho o dever moral – que de honra é – de proferir algumas

palavras alusivas à elevação espiritual que aqui nos reúne neste dia, há cem dias no seu

nascimento, proclamando bem alto a nossa admiração por este ínclito herói nosso conterrâneo

espelho inigualável de valor, lealdade e mérito, e quanto aos seus exemplos de nobreza e

valentia, que, aliás, consubstanciam as virtudes da Raça Portuguesa, são para nós um

magnífico influxo encorajador de quanto podem o amor pátrio e a fé.

Com prazer e orgulho aceitei o honroso convite, cujo encargo tomei como dever

patriótico. Se recusasse, poderia ser–lhe dada uma errônea significação, a de desvalimento das

gestas de Mouzinho e das daqueles seus companheiros em que perdura a lembrança do chefe,

certamente a mais culminante de toda a sua carreira militar, aos quais alguns ainda vivos

felizmente, tenho o prazer de prestar homenagem do meu respeito e admiração.

É já bastante vasta e conhecida a bibliografia dedicada à memória de Mouzinho.

Ele próprio nos deixou o relatório “Moçambique – 1896 a 1898”, publicado em 1899,

inspirado com ardência, e escrito num estilo vivo e de forma varonil.

Nessa obra se evidencia a sua alta personalidade como dirigente, daqueles dos quais se

exige honra, saber e energia, a par das grandes virtudes militares como sejam o caráter,

justiça, abnegada confiança e elevado espírito.

São bem nítidos os atributos em Mouzinho como se constata desse relatório, do “Livro

das Campanhas”, que reúne outros relatórios seus, da genial “Carta a Sua Alteza o Príncipe

Real D. Luís de Bragança” e da dirigida ao presidente do conselho de ministros, José Luciano

de Castro. Reconhece–se a sua grande estatura moral como militar e homem de governo, o

seu aprumo e inteireza de caráter num conjunto de talento e virtudes, virtudes estas bem

fundadas numa elevada concepção de idéias e logros horizontes, à que a sua máscula energia

incutia sempre o cunho dinâmico da necessidade de execução.

[...]

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158

Mas não só as virtudes guerreiras tornam Mouzinho uma figura quase lendária da

nossa patriótica imaginação.

Organizador consciente e administrador inteligente e activo, sabia escolher para seus

colaboradores aqueles que por suas aptidões o podiam acompanhar no seu perigoso esforço,

apoiando – os, estimulando – os, e fazendo – os compartilhar da sua glória, jamais os

esquecendo, quer premiando – os na ocasião própria, quer acompanhando–os através da vida.

Assim conseguia ter os seus subordinados num perfeito estado moral, dirigindo e

coordenando a sua acção, condições indispensáveis para se alcançar a vitória. Por isso quem

serviu sob as suas ordens, conservou sempre o orgulho de tê-lo tido como seu grande chefe.

[...]

Se a dura acção de Marracuene, Magul e Coolela formam uma racionada cadeia

seguida com lógica e segura finalidade – em que, proeminentemente aparece o talentoso

político de grandes virtudes cívicas, admirável escritor e esclarecido administrador

ultramarino António Enes, rodeado das marcantes figuras coloniais: o corajoso e de fina

têmpora Caldas Xavier, Eduardo Costa, Aires de Ornelas, Paiva Couceiro, Freire de Andrade

e o Coronel Galhardo – em Mouzinho, o brilhante feito de Chaimite retrata o homem

audacioso e sagaz que queria completar – e completou – esta série de fatos gloriosos, pela

destituição do poderoso régulo Vátua, desfazendo o seu poderio militar e o seu império, para

assim rematar o áureo ciclo começado em Marracuene.

Mas nós, nós também não esqueçamos os seus companheiros – “homens da Escola de

Mouzinho” legada que passou já às páginas da hitória militar - entre os quais brilharam

Azevedo Coutinho, Gomes da Costa, Batista Coelho, João Galvão, Andrade Vélez, Sanches

de Miranda, Costa e Couto e os seus ajudantes de campo, Conde da Ponte, e Vieira da Rocha

e muitos outros, esforçados obreiros da ocupação portuguesa de Moçambique no período

difícil de 1890- 1897 plêiade de grandes soldados e administradores [...]

[...]

Os seus conhecimentos sobre problemas coloniais eram profundos, destacando–se a

sua clarividência das realidades e soluções apropriadas e firmeza do seu querer, nunca

abdicado das responsabilidades - nem medo de as tomar, nem receio físico de as executar

diminui a angústia no meio dos maiores sofrimentos. A vida de Mouzinho, tão meritória e

digna como exemplo do elevado e esclarecido nacionalismo é tão bela que enobrece com

retumbante esplendor as páginas da História de Portugal, reeditando nela os mandamentos da

vida da honra que são timbre do orgulho português. Conservemos assim sempre vivo o

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reconhecimento daquela brilhante figurada nossa epopéia ultramarina e glorifiquemos

eternamente na fidelidade inquebrantável dos nossos corações o nome sem mácula de

Joaquim Mouzinho de Albuquerque.

_______________________________________________

Comemorações do Centenário de Mouzinho de Albuquerque no Além Mar

(Moçambique)

P. 136

(Discurso proferido pelo Sr. Major Ramalho Correia, Subchefe do Estado-Maior da

Província de Moçambique)

“Pensam muitos que passei os meus dois anos de governo à cutilada aos pretos: puro

engano” – diz Mouzinho.

Sessenta anos passados ainda muitos pensam assim. E pensam que Mouzinho fazia a

guerra pela guerra, por gosto da aventura. E pensam que nele só a audácia contava, e que os

sucessos alcançados se deviam à sorte, à sua boa estrela.

Mouzinho audacioso, aventureiro, fazendo a guerra por gosto...

E afinal!...

Fazer a guerra por gosto... Ele responde à acusação: “o que tenho feito como militar

em África não é por espírito de aventuras, mas para adquirir vantagens reais e econômicas

para o meu País”.

E, sempre que pôde, abreviava a guerra, atacando diretamente o chefe da revolta. É a

prisão do Gugunhana em Chaimite; é a tentativa de aprisionamento do N’Guanase, régulo do

Maputo, que foge para território inglês; é a perseguição ao Maguiguana, que termina com a

sua morte ao resistir em Mapulanguene.

Não, Mouzinho não fazia a guerra por gosto. Fazia-a por necessidade, procurando

torná-la o mais breve possível.

E na realidade as campanhas de Mouzinho são curtas, rápidas.

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Fazia a guerra, sim, mas só quando tinha de a escolher como o menor dos males.

Pensavam que ao governar só desejava alcançar glórias militares.

O próprio Ministro da Marinha e Ultramar tinha essa opinião. Num Conselho de

Ministros a que Mouzinho assistiu, quando da sua viagem a Lisboa, o Ministro insinuava:

“anteriormente nenhum governador pensava em glórias militares e todos se aplicavam

exclusivamente à administração pacífica”.

E o Ministro dizia-se partidário da política de paz a todo o transe.

Mas que paz?

Ironicamente Mouzinho oficiava-lhe de Moçambique, já demissionário, que para isso

se conseguir conviria abandonar grande parte dos postos militares e restringir a esfera de ação

dos que restassem ocupados: conviria evacuar os territórios que ele tomara aos namarrais, e

chamando o régulo ao palácio do governo dar-lhe o que ele pedisse; conviria que em Gaza se

restabelecesse o poder do Gugunhana num seu sucessor; e terminava: “não menos concorrerá

para o mesmo fim o deixar de se cobrar o imposto de palhota”.

Sim, se voltássemos ao estado de ocupação fictícia, à ocupação só no papel, teríamos a

tal paz a todo o transe, a paz como se obtinha anteriormente quando, por meio de presentes e

humilhações, se mantinham calmos os potentados negros.

Seria bom sistema para outros, não para Mouzinho.

Se governava Moçambique, era Moçambique, na totalidade do seu território, que

devia governar.

E sujeitar Portugal ao vexame de comprar a paz aos régulos a troco de oferendas e de

concessões não o compreendia, não o podia compreender Mouzinho.

Ele, mais do que ninguém, desejava a paz. Só assim poderia Moçambique

desenvolver-se e progredir. Mas a paz com a ocupação real, a paz em que todo o território

estivesse sujeito igualmente à lei.

Ele faz a guerra, mas só “quando necessária e conveniente”. E para mostrar como os

resultados das suas guerras são benéficos, mesmo sob o ponto de vista financeiro, compara o

orçamento de 1894-1895, que acusava déficit, com o seu de 1898-1899, em que o saldo é

notório.

A guerra necessária e conveniente, a guerra como o menor dos males, a guerra quando

não resta outra solução.

Mas se tinha de fazer a guerra, nela empenhava toda a sua alma de soldado e de chefe.

Soldado o era por nascimento e vocação.

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“O simples facto de pertencer ao Exército representa para mim uma honra superior a

todas” – escrevia, já depois de regressar de África.

E o orgulho que sentia em ser soldado bem o traduziu na carta escrita ao Príncipe, de

quem era aio: “Essas poucas páginas brilhantes e consoladoras que há na História de Portugal

contemporâneo escrevemo-las nós os soldados, lá pelos sertões de África, com as pontas das

baionetas e das lanças a escorrer em sangue. Alguma coisa sofremos, é certo; corremos

perigos, passamos fomes e sedes e a não poucos prostraram em terra para sempre as fadigas e

as doenças. Tudo suportamos de boa mente porque servíamos El-Rei e a Pátria, e para outra

coisa não anda neste mundo quem tem a honra de vestir uma farda. Por isso nós também

merecemos o nome de soldados; é esse o nosso maior orgulho”.

“Ser soldado – diz ainda Mouzinho dirigindo-se ao Príncipe – é dedicar-se por

completo à causa pública, trabalhar sempre para os outros... a profissão entre todas nobre, foi,

é e há-de ser sempre a militar porque nela se envolve tudo que exige a anulação do interesse

pessoal perante o da coletividade.”

E servir a Pátria, dedicar-se por completo à causa pública, anular o interesse pessoal

perante o da coletividade, Mouzinho nos mostra como fazê-lo ao longo da sua vida.

E foram as suas qualidades de soldado que o tornaram grande chefe. São de Aires de

Ornelas, o seu chefe de estado-maior, as seguintes palavras:

“Se na frase soberba de Pedro, o Grande, soldado é um título honorífico, se tão

soldado é o general como o tambor, há alguns que a natureza dotou como condutores de

homens, a quem sagrou chefes. À sua vontade as dos outros se subordinam e lealmente se

entregam, achando nisso o seu bem. E entre as diversas chefaturas de homens essa é a mais

alta. É pela força da sua vontade que o chefe de guerra pode ter a sua gente na mão: é a

educação militar que ensina a todos a obedecer a um só. Mas essa obediência não é senão o

reconhecimento da superioridade intelectual e moral do chefe, e esse conhecimento inspira a

confiança, produzindo a camaradagem e aquela tão elevada fraternidade militar.

“Nascido para chefe, Mouzinho revelou-se condutor de homens a primeira vez que

comandou. A certeza tranqüila na execução do golpe de Chaimite, tão logicamente concebido,

afirmou o homem que as multidões aclamaram com o instinto seguro que as faz descobrir o

vencedor, aquele sob cujas ordens grandes coisas se fazem”.

Nas qualidades de chefe sobressai à força de vontade. Um verdadeiro chefe sabe o que

quer. Tomada uma decisão, será firme. Mas um chefe não decide sem que pese bem todos os

fatores que podem influir nos acontecimentos. Assim decidia Mouzinho.

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E as suas decisões eram rápidas, quase instantâneas. Tão rápidas que o acusavam de

audacioso. Como resultavam, diziam que tinha sorte. Não sabiam, não queriam ver que os

resultados positivos provinham de decisões perfeitas e que essa rapidez a decidir era

conseqüência de longo estudo, longa meditação.

Já Napoleão dizia: “Não é um gênio que me revela de repente e em segredo o que eu

tenho a dizer ou a fazer numa circunstância inesperada para os outros, é a reflexão, a

meditação”.

Não alcançavam, não compreendiam as razões em que ele baseava as suas

concepções.

Por vezes apelidavam-no de louco, de utópico.

“Em 1891, aniquilar o poderio do Gugunhana era uma utopia privativa de dois doidos:

o major Caldas Xavier e eu” – escreve Mouzinho ao Ministro. E continua: “Em Setembro de

1895 ainda o Sr. Comissário Régio, António Enes, considerava uma utopia temerária bater o

mesmo régulo, e, entretanto em Novembro do mesmo ano as forças vátuas foram esmagadas e

aniquiladas em Coolela.

Em dezembro o Sr. Comissário Régio quando soube que eu ia partir para prender o

régulo, considerou a empresa uma loucura tão rematada que mandou logo ordens terminantes

em contrário.

Utopia era para a maioria dos meus camaradas o emprego da cavalaria em África,

mesmo depois da campanha do Sul, e ela aqui tem feito razias, fez o serviço de segurança em

marcha debaixo de fogo, deu cargas, enfim, fez tudo quanto àquela arma compete fazer.

Em Janeiro de 1896 todos em Lourenço Marques eram de opinião que era uma utopia

querer pacificar e dominar o Maputo com 17 cavalos e 200 auxiliares pretos... E o Maputo lá

foi pacificado e deveras submetido sem perda de uma só vida.

“Não pense V. Ex. ª que cito estes fatos com o fim de me enaltecer, de me apresentar

como mais perspicaz que a maioria, mas creio se não pode negar que tenho ao menos bons

palpites” – termina Mouzinho.

Bons palpites!... Mas nem isso, nem tão pouco reconheceriam. Continuariam a

apelidá-lo de louco, de utópico, sem quererem ver a verdade, a realidade.

Amor pela ação é característica dos grandes chefes. O verso de Shelley “A ação é o

prazer da alma”, que Liautey mandou gravar no anel que usava, bem podia ter sido escolhido

por Mouzinho para sua divisa.

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Só na ação ele sentia a alegria de viver. Só na ação ele se sentia feliz. Por isso amou a

vida em Moçambique.

“Teve um período de felicidade – diz Pedro Gaivão -, um período de equilíbrio entre a

sua alma e o meio. Foi o tempo de Moçambique. Primeiramente na guerra, que era a ação, a

vida por excelência para o seu temperamento, depois no governo dum mundo novo, a que ele

imprimia o seu feitio com plena liberdade na escolha dos homens, no uso dos processos, no

exercício do supremo prazer do mando.”

É a coragem moral, qualidade sem a qual não há verdadeiro chefe. Mouzinho a par e

passo demonstrou possuí-la. Arrostar com a opinião pública, ferir interesses, saber que vidas

poderão ser sacrificadas e, apesar de tudo, tomar a decisão, é sinal de muita coragem moral. E

muitas foram às vezes em que ele teve de tomar decisões assim.

E coragem física provou bem que a tinha. É em Coolela, expondo-se no meio do

quadrado às balas inimigas, que lhe matam o cavalo; é em Chaimite; é em Mujenga, onde é

ferido duas vezes; é no Maputo, nas razias que aí levou a efeito e onde “o serviço era penoso,

fatigante e arriscado para os soldados, no dizer de Mouzinho; é em Macontene, onde comanda

a carga de cavalaria, a espada embainhada, tendo por arma o stick.

O gosto pela responsabilidade é característica do verdadeiro chefe. E Mouzinho tantas

vezes o provou! No feito de Chaimite, mais do que em nenhum outro, isso se pode ver.

Responder pela vida dos homens que o acompanham; tomar a responsabilidade de, no caso

fosse mal sucedido, se perder todo o prestígio adquirido pelas nossas forças na campanha

desse ano de 1895 e com a perda do prestígio ter de se recomeçar a luta, tudo mostra como

nele essa qualidade era grande.

Mouzinho era um Soldado. Mouzinho foi um Chefe.

E como Soldado e Chefe sempre nele imperou o espírito da sua arma: o espírito da

cavalaria.

Mas esse espírito de cavaleiro não o impedia de atuar como infante quando a ocasião

se apresentava e não permitia delongas. É que ao espírito da arma sobrepunha-se o do

soldado. E para aprisionar o Gugunhana é a pé que marcha de Languene a Chaimite. Podemos

calcular a mágoa do cavaleiro – e ele a isso se referiu -, mas o fato só realça o feito.

Contrariado por não poder ter os cavalos que julgava necessários, nem por isso desiste do

empreendimento. Resigna-se, que a resignação é qualidade de soldado, diz ele na carta ao

Príncipe.

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E é como soldado, como chefe e como cavaleiro que Mouzinho militar vive em

Moçambique esses três anos maravilhosos de 1895 a 1898, que afinal foram a sua vida, toda a

sua esplêndida vida.

__________________________

1895. Mouzinho está na Metrópole. Oficial de lanceiros advoga nos jornais a vinda de

tropas de cavalaria para Moçambique na expedição que em Lisboa se prepara.

O estudo que fizera das campanhas inglesas e francesas em África e o conhecimento

que adquirira das coisas moçambicanas, quando, como governador de Lourenço Marques,

aqui estivera anteriormente, davam-lhe a certeza da conveniência do emprego de tropas da sua

arma nas operações contra indígenas. Já em 1891, ao escrever um estudo sobre a

reorganização do exército das colônias orientais, e especialmente em Moçambique, dizia:

“Para acudir de pronto a qualquer movimento no interior também muito conviria que

houvesse uma força de cavalaria”.

Raros eram os que entre nós aceitavam então como útil o emprego de cavalaria em

África. O próprio comandante da expedição, coronel Galhardo, escrevendo ao capitão

Eduardo Costa, seu chefe de estado-maior, acerca do esquadrão que Mouzinho trazia da

Metrópole, dizia: “A tal cavalaria de emprego – para mim muito duvidoso – nos matos

africanos...”

Mas Mouzinho não duvidava. Pela insistência consegue que da expedição faça parte

um esquadrão de lanceiros sob o seu comando.

O cuidado posto na instrução dos seus homens faz com que, ao desembarcar em

Lourenço Marques, se destaquem entre todos. Diz António Enes: “Apesar de ir apeada a

força, o seu aspecto marcial impressionou a multidão que se reunira na Praça 7 de Março,

para a ver desfilar. O capitão Mouzinho tinha sabido, em pouco tempo, comunicar o garbo da

sua altivez, o desempeno da sua energia, a correção do seu porte militar, aos soldados que

comandava. A marcha pelas ruas, clarins à frente, e a continência ao Comissário Régio,

arrancaram aos espectadores uma exclamação uníssona: Bela tropa! Por pouco não

estrondearam aplausos”.

O esquadrão seguiu para o Chicomo integrado na coluna que, de norte para sul, iria

atacar o Gungunhana.

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Aí estaciona. E, quando em Novembro as operações têm início, a longa demora

reduzira o esquadrão a pouco mais de 30 homens. Era o que restava dos 166 iniciais.

Em 7 é o combate de Coolela. A cavalaria recolhe ao interior do quadrado que se

forma e fica em reserva, a pé firme. Mouzinho, a cavalo, assiste ao combate e aí recebe o

batismo de fogo: “confesso que isso me foi agradável, porque sendo o combate o ofício

militar, como o negócio é o ofício do negociante, é natural que o militar aspire a conhecer

praticamente para que lhe serve a espada”.

Vence-se o combate. À cavalaria não é dada ordem para perseguir o inimigo.

Quando, em 11, a coluna entra em Manjacaze, depois de o bombardear, o Gungunhana

já aí se não encontra. O régulo tinha fugido a pé, quase só, momentos antes da nossa chegada.

O kraal é incendiado e as chamas que durante a noite iluminaram o bivaque das nossas tropas

mostravam que o reinado do Gungunhana estava prestes a desaparecer.

Pode calcular-se o quanto custaria a Mouzinho não ter a cavalaria tido ação

preponderante na luta. Mais tarde dirá: “Em 7 de Novembro de 1895, se o estado de fraqueza

e o pequeno número de cavalos do Esquadrão de Lanceiros nº. 1 não tivesse inibido o

comandante da coluna de ordenar a perseguição (suponho que foram estes os únicos motivos

por que se não fez), o aprisionamento do Gungunhana teria tido lugar poucas horas depois do

combate, e o mesmo teria sucedido no dia 11, depois da entrada em Manjacaze.

“Nesses dias, para nós sempre memoráveis, não desempenhou a cavalaria o papel que

lhe competia”.

Coolela decidira da queda do Império Vátua. O ciclo de vitórias começara em

Fevereiro daquele ano de 1895 quando, em Marracuene, salvando-se Lourenço Marques, se

mostrara que ainda sabíamos combater. Depois Magul confirmara-o. E agora Coolela marcava

a queda do poderio militar do Gugunhana.

Mas a esses três quadros gloriosos da campanha – Marracuene, Magul, Coolela –

faltava a apoteose. Essa só podia ser a prisão, morte ou, na pior das hipóteses, a fuga forçada

do Gungunhana para terras estranhas. Sem isso, todos os resultados da campanha se poderiam

perder.

As tropas estão esgotadas. O clima arrasara-as e não se pode pretender continuar as

operações durante a época das chuvas.

Os que vieram na expedição são na maior parte repatriados. Alguns ficam entre eles

Mouzinho.

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A desagregação do Império Vátua começa. Os povos submetidos ao Gungunhana pela

força e pelo terror vêm-nos prestar vassalagem. Mas se o poder do régulo já nada era

comparado com o que possuía meses atrás, nem por isso deixava de ser grande ainda.

Déssemos-lhe tempo e o prestígio que conservava chegaria para refazer o poderio anterior.

Em princípios de Dezembro, Enes cria o Distrito Militar de Gaza e nomeia Mouzinho

seu governador.

Mouzinho segue para Languene. Não tem ainda definido o seu plano de ação futura.

Ele o diz: “Não podia, sem saber o paradeiro do régulo, resolver marchar a capturá-lo... Por

outro lado nunca pensei em limitar a minha ação em preparar as coisas para uma nova

campanha. Contava com o que restava do esquadrão de lanceiros e com a breve organização

da Polícia de Gaza (que seria formada por cavaleiros) e pensava em incomodar por tal forma,

com razias consecutivas, todos os que se não declarassem adversos ao régulo que, dentro em

pouco tempo, este se veria abandonado. Se me deparasse ocasião num desses raids prendê-lo-

ia, o que era o meu desiderato desde que pela primeira vez viera à África”.

E explica ter aceitado com contentamento esta comissão, preferindo-a a outras que o

Comissário Régio lhe oferecera, “porque antevia uma série de expedições um tanto

aventurosas, nas quais tinha fundadas esperanças de poder demonstrar praticamente que, mais

do que nenhuma outra, a arma de cavalaria pode e deve prestar grandes serviços em África, o

que, por muitos e variados motivos alheios à minha vontade, não pudera fazer na campanha

que terminara”.

A sua esperança será iludida. Ainda não é desta vez que a cavalaria demonstrará a sua

utilidade em África.

Em Languene sabe que o régulo está perto de Chaimite. Mouzinho toma então a

decisão de o prender. Pede, para isso, que lhe enviem cavalaria: 25 ou 30 cavalos, pelo

menos. A resposta desanima-o. Os cavalos não estão em condições de marchar. “Com gente a

cavalo parecia-me possível, embora arriscado e de êxito duvidoso o persegui-lo; com gente a

pé afigurava-se-me impossível capturá-lo”, diz Mouzinho no seu relatório sobre a prisão do

régulo. E acrescenta: “Confesso que ainda outra razão, menos ponderosa por certo, concorria

para me desanimar. Oficial de cavalaria há vinte anos e quase o único que durante algum

tempo insistia pelo emprego desta arma em África, tinha visto o esquadrão do meu comando

tão mal tratado pela sorte e reduzido a um papel tão insignificante na coluna do Norte, por

motivo que não sei nem me caberia apreciar, que desejava muito ao menos que a uma força

desse esquadrão coubesse a honra de levar a efeito um cometimento que rematasse

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condignamente a campanha tão brilhantemente encetada com o combate de Marracuene”. A

resposta de que os cavalos não estavam em condições destruía completamente toda esta

esperança.

Entretanto continuavam os atos de vassalagem. E todos os chefes pediam que se

prendesse o Gungunhana, pois enquanto ele estivesse livre não teriam sossego.

Estamos a 24 de Dezembro.

Mouzinho analisa a situação. Verifica que a evolução dada nos últimos dias indica ser

este o momento de atuar.

Então toma a resolução definitiva: já que não tem cavalos, irá com tropas apeadas.

Tomada a decisão, a execução segue-se rápida.

Em 25 as tropas embarcam e seguem Limpopo acima até perto do Chibuto. Mouzinho

segue em 26, a pé, com os auxiliares. Nesse dia marcha 25 km Perto do Chibuto as tropas

brancas desembarcam, e a marcha dos restantes 25 km, por terrenos pantanosos e em

condições de tempo péssimas, será feita em 27 e 28. Na manhã deste dia mouzinho entra no

kraal do régulo, em Chaimite, e aprisiona-o.

Ao entrar no kraal do Gungunhana, Mouzinho transpunha os umbrais da História.

Deixa de ser o capitão Mouzinho de Albuquerque. Passa a ser simplesmente “Mouzinho”.

E até na sua linguagem oficial isto acontece. Enquanto que os telegramas em que o

governador informa a Metrópole sobre a prisão do Gungunhana se referem ao capitão

Mouzinho, no telegrama em que daí a pouco comunicava o findar das operações no Maputo o

posto desapareceu – é só Mouzinho.

Que o acontecimento transcendia os atos comuns compreendeu-o bem o vulgo

imediatamente, aclamando-o, e mais do que isso sentindo renascer a fé nas qualidades da raça.

Só estudando bem a época, vendo-se o abatimento anímico em que Portugal se encontrava, se

pode bem compreender o que Chaimite representou na mudança do sentir nacional.

Mas o que Mouzinho acabara de fazer não seria uma loucura que por felicidade

resultara? Se nesse dia entrara na História também ganhara para muitos a convicção de que

era um aventureiro.

Mas seria uma audácia louca o que Mouzinho acabara de fazer? “Houve quem

chamasse a isto loucura rematada (heróica, mas o sentido era o mesmo) – escreve ele -.

Realmente se tenho marchado sobre Chaimite logo que cheguei ao Languene, talvez tivesse

sido loucura, não sei se heróica se não, mas provavelmente mal sucedida. Em dez dias, porém,

tive tempo para preparar o ânimo dos indígenas... Sem sair dos processos a que me cingia a

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minha qualidade de homem civilizado, fiz o possível por inspirar um temor igual ao que

espalhava em torno de si o régulo vátua. E quando me pareceu havê-lo conseguido, marchei

sobre ele”.

Não é ato de loucura uma decisão que foi meditada, raciocinada.

E Chaimite foi o resultado de um processo mental que demorou anos.

“Logo que fui para África – diz Mouzinho – e vi o estado de coisas no distrito de

Lourenço Marques, de que era governador, convenci-me da imprescindível necessidade de

bater os vátuas. O major Caldas Xavier, que, no seu reconhecimento do Limpopo em 1890,

tivera ocasião de atravessar as terras do Gungunhana, apoiava muito esta opinião e afirmava

que a empresa não era tão difícil nem tão arriscada como a muitos se afigurava. Rara era,

entretanto a pessoa que, ouvindo falar em tal, não nos taxasse de visionários”.

António Enes refere-se no prefácio de A Guerra em África a um plano elaborado por

Mouzinho para vencer o Gungunhana e que lhe fora mostrado em Lisboa, antes de embarcar,

pelo Ministro da Guerra.

O Sr. Tenente Caetano Montês deu publicidade, há anos, a dois ofícios de Mouzinho,

quando governador de Lourenço Marques, em 1891, em que ele se propunha raptar (a palavra

é de Mouzinho) um régulo, utilizando uma pequena coluna de cavalaria. O processo a seguir

seria o que cinco anos mais tarde planeou para se apoderar do Gungunhana. O governador-

geral de então, receando complicações, não permitiu que ele levasse a efeito o seu plano.

Quer dizer: o esquema do processo a seguir em Chaimite já há muito estava estudado

e sabido por Mouzinho.

“Chaimite não foi – diz Aires de Ornelas – uma mania, um prurido egoísta de alcançar

renome: foi uma operação raciocinada, necessária e lógica.”

O feito de Chaimite não foi, pois, resultante de improvisação de momento, de impulso

sem bases.

Mouzinho conhecia o adversário: sabia as suas qualidades, os seus defeitos.

A preparação psicológica feita durante os dias que precederam o feito, o conhecimento

do prestígio que no momento possuíamos sobre o inimigo, com o ânimo abatido desde

Coolela e Manjacaze, justificavam, davam quase a certeza de ser bem sucedido no

empreendimento.

E não será prova desse ascendente psicológico a inércia do adversário, não só no

momento em que Mouzinho entra no kraal, mas durante toda a marcha de Languene a

Chaimite? Gungunhana estava perfeitamente informado sobre a força que Mouzinho

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comandava; três vezes enviou mensageiros à coluna em marcha, tentando detê-la, com

promessas de que viria prestar vassalagem. E sabendo a resposta de Mouzinho, que se não

deteria, que marcharia sobre Chaimite, o régulo nada faz para se defender, nem ao menos

repete a fuga de Manjacaze. Porquê?

“Mal avisado andou o Gungunhana em não tentar um derradeiro esforço para se

defender, escreveu Mouzinho. Disparasse a arma um dos 250 ou 300 vátuas que se achavam

dentro do kraal e naturalmente estava tudo perdido, porque os milhares de pretos que

cercavam a povoação cair-nos-iam em cima. Haviam de morrer muitos, é certo, primeiro que

chegassem ao corpo a corpo, mas bastaria o fogo de 46 espingardas para suster o seu ímpeto?

Porque não tentaram defender-se? – pergunta Mouzinho. Na Idade Média ou no

período áureo da nossa história ultramarina, tempos em que a uma ousadia nunca mais

imitada se aliava a fé mais viva e ingênua, atribuir-se-ia, decerto, a inércia cobarde do inimigo

à milagrosa intervenção de Deus.

E realmente parece-me coisa difícil de explicar. Talvez por terem posto grande

confiança nos sortilégios feitos sobre a cova de Manicusse, que os mezinheiros afirmavam

não permitiria que os brancos descobrissem o refúgio do régulo e verem esse sonho desfeito;

talvez por se ter espalhado entre eles, desde Coolela, a crença de que tínhamos um feitiço que

nos tornava invulneráveis às balas, os mesmos que com tanta coragem tinham arremetido

contra nós em 7 de Novembro se portaram como se fossem os mais tímidos matongos. “Fosse

como fosse, entregaram-se sem resistência” – concluiu Mouzinho.

A perfeita escolha do momento para tomar a decisão de marchar sobre o adversário,

que o prestígio por nós adquirido tornara estático, só é comparável à forma como a decisão se

traduz na execução.

Houve audácia na execução? Sim, houve, mas não audácia louca.

“Eu tinha e tenho a convicção – escreve Mouzinho no relatório sobre a prisão do

Gungunhana – de que com pretos um acto de audácia, embora temerário, é quase sempre bem

sucedido, porque lhes produz uma grande impressão e fá-los perder de todo a força moral”.

“Esse predomínio torna-se espantoso entre selvagens e isso explica a tempo o atrevido

sossego daquela marcha, a pasmosa audácia com que 46 brancos deitaram a mão ao

Gungunhana no meio de centenas dos seus guerreiros armados” – diz Aires de Ornelas.

E se no feito de Chaimite a forma como é realizada a marcha desde Languene e o

modo como decorre o aprisionamento do Gungunhana nos fazem pasmar de admiração

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perante o Herói, não menos devemos considerar a perfeita mestria com que foi tomada a

decisão que os determinou.

_________________

Mouzinho vem a Lourenço Marques entregar o régulo. Poucos dias depois o

Governador-Geral, interino, pede-lhe para pacificar o Maputo.

O seu régulo, N’Guanase, não se considerando completamente sujeito ao nosso

domínio, tomava atitudes de rebeldia. Já anteriormente assim sucedera.

A presença das forças expedicionárias tinham-no conservado em sossego durante

1895. Mas o regresso das tropas à Metrópole cria-lhe alentos para se rebelar.

“Custou-me muito aceitar esta nova comissão – diz Mouzinho -; estava doente com

febres constantes e não queria demorar a minha ida para Gaza”. Mas o governador insta e ele

aceita. Para o soldado não está o interesse público sempre acima do próprio?

Durante um mês, com uma força de 17 cavaleiros, umas vezes acompanhados de

alguns soldados angolanos, outras de auxiliares da Catembe, percorre o Maputo de lês a lês

em razias noturnas e pacifica toda a região.

O régulo não é aprisionado porque, avisado a tempo, fugira da sua povoação e, por

fim, refugia-se em território inglês.

Finalmente conseguira Mouzinho demonstrar que tinha razão quando pugnava pela

existência de cavalaria em África. E o seu orgulho de cavaleiro transparece ao dizer: “Estes

17 cavalos tinham feito mais serviço do que poderia fazer uma força decupla de infantaria. A

pacificação do Maputo teria levado meses, talvez anos, se empreendida só com forças

apeadas”.

Ao regressar a Lourenço Marques encontra a sua nomeação de Governador-Geral.

Outro campo de ação se abre agora na sua frente. Outros problemas irão prender a sua

atenção, os seus cuidados.

Porém, não pode embainhar a espada. O seu governo será assinalado em grande parte

por operações militares em que toma ação direta. Por gosto? Não! Mouzinho não faz a guerra

pela guerra, fá-la por necessidade. Como poderia haver agricultura, comércio, indústria, onde

não houvesse segurança, ordem, domínio efetivo?

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À data da sua nomeação para governador a ocupação da Província é, na sua maior

parte, fictícia. Urge torná-la real. Para isso, se necessário for, combater-se-á.

O território frente à ilha de Moçambique estava por ocupar.

“Basta dizer que das janelas do palácio do Governo de Moçambique avistavam-se

terrenos onde era impossível passar sem se ser vítima de roubos e violências”. Esta frase de

Mouzinho mostra bem como era hipotética a ocupação de Moçambique.

Mouzinho resolve-se a ocupar o território frente à ilha. E a campanha contra os

namarrais principia.

As primeiras operações, o reconhecimento de Mujenga, em Outubro de 1896, foram

quase um desastre. Não se conhecia o terreno. “Não havia outro remédio senão marchar as

aventura fiado nos guias” – diz Mouzinho.

Infelizmente os guias atraiçoam-nos. É que havia gente na ilha de Moçambique

interessada em que a situação em que se encontrava o continente continuasse sem alteração.

Negócios escuros... Os guias, comprados, conduzem a coluna por caminhos errados. Cai-se

numa emboscada. Em terreno fechado, sem campos de tiro capazes, a coluna mal se pode

defender dos ataques do inimigo, escondido entre a vegetação. No local não há água. E

perante a situação insustentável, Mouzinho, depois de combater durante vinte horas, vê-se

obrigado a retirar.

A operação, feita debaixo de fogo, é conduzida em boa ordem, sem deixar uma arma,

um cartucho, nas mãos do inimigo.

A forma como foi realizada é com efeito brilhante.

Apesar da dificuldade do terreno, foi utilizada a cavalaria. Durante o combate

Mouzinho deu ordem para que os cavaleiros carregassem. É o seu chefe de estado-maior,

Ornelas, que os comanda. Mas o mato densíssimo não permite que a perseguição seja levada

até longe. Mouzinho, falando da atuação da cavalaria na Mujenga, diz: “Como arma de

combate propriamente dita vi bem patente a sua eficácia contra indígenas, a despeito de o

terreno lhe ser muito desfavorável”.

É neste combate que Mouzinho é ferido por duas vezes.

Em Fevereiro recomeçam as operações. Dão-se os combates de Naguema, Ibraímo e

Macuto Muno.

O inimigo é vencido e o território fica ocupado de fato. Em plena campanha, quando

prosseguia a marcha para o interior, recebe Mouzinho um telegrama do Ministro da Marinha e

Ultramar, anunciando grave tensão de relações entre a Inglaterra e o Transvaal e ordenando-

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lhe que termine quanto antes à campanha dos namarrais, concentrando em Lourenço Marques

todas as forças de que pudesse dispor, sem prejuízo do resto da Província. Chegam-lhe

também notícias da revolta em Gaza.

As últimas operações são comandadas pelo governador do distrito, Eduardo Costa.

Calaputi e Monapo são as últimas resistências do inimigo. E os chefes dos namarrais pedem

paz e perdão.

Mouzinho vem para Lourenço Marques.

Em Gaza a alma da revolta era Maguiguana, que tinha sido o grande chefe de guerra

do Gungunhana.

Em princípios de Julho, Mouzinho concentra no Chibuto a coluna com que irá atuar.

Em 8 segue de Lourenço Marques com a cavalaria até ao local de concentração. Anda

210 Km. Em trinta e seis horas. “Creio ser a maior marcha feita pela cavalaria em África” –

diz Mouzinho -, e na observação advinha-se o orgulho de cavaleiro.

E em 21, Mouzinho, já com os cavalos descansados da longa caminhada, sai do

Chibuto ao encontro do inimigo.

Encontra-o em Macontene.

“Mouzinho, ao centro do quadrado, ereto sobre o seu cavalo como um cavaleiro da

Idade Média, a aba do chapéu carregada sobre o lado, o pescoço estendido, a Bandeira

Nacional flutuando-lhe por cima da cabeça, domina o quadrado como um deus da guerra

contendo todos aqueles nervos, todas aquelas energias, todas aquelas forças prestes a

desencadear-se e, naturalmente, goza esse momento único, em que a vontade de um homem

domina a vontade de centos de outros homens, esse momento em que está absolutamente

senhor das vidas de milhares, desse momento único que representa o mais absoluto poder

humano – o de matar”, escreve Gomes da Costa.

O inimigo lança-se ao ataque.

Chega o momento que Mouzinho esperava havia anos.

O terreno aberto presta-se perfeitamente à utilização da cavalaria.

E ainda com o inimigo avançando e fazendo fogo lança-se com os seus 50 cavaleiros,

numa carga impressionante, sobre os 5000 indígenas atacantes.

Sucede o que Mouzinho previra: os indígenas não resistem e fogem.

A um quilômetro do quadrado Mouzinho entrega o resto da perseguição a um dos seus

oficiais.

A perseguição dura três quartos de hora.

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“Se em lugar de 50 cavalos – escrevia depois Mouzinho – tivesse um esquadrão

completo, a perseguição não teria parado senão à noite”.

“Haverá quem estranhe, decerto, que, sendo eu o comandante da coluna, tivesse saído

com a cavalaria, e se sirva deste fato para me alcunhar de temerário e não sei que mais.

Saí com a cavalaria porque, tendo esta carga por fim acabar o combate quando ainda

se não tinha pronunciado a retirada do inimigo, era esta a operação mais importante da ação

toda e sendo a primeira carga que se dava em campo descoberto em África, é bem natural que

quisesse dirigi-la em pessoa, já para moderar o ímpeto das praças, que podia comprometer

tudo, já que do seu êxito e direção dependia o resultado final da ação.

Quem supuser que saí com a cavalaria no intuito de alardear bravura ou fazer proezas

pessoais, convencer-se-á do contrário sabendo que nunca desembainhei a espada nem peguei

no revólver, e que logo que vi tudo bem encaminhado, confiei a direção da perseguição com a

cavalaria ao alferes Reis e voltei ao quadrado.”

Macontene foi um combate completo e decisivo. A escolha do momento próprio para

a carga da cavalaria, com que findou, foi magistral. Finalmente conseguia Mouzinho

demonstrar que tinha razão quando defendia o uso da cavalaria em África, nos combates

contra os indígenas.

Mas o chefe inimigo escapara-se. Era necessário apanhá-lo, vivo ou morto. E em 1 de

Agosto principia a caçada ao Maguiguana. A coluna com 30 cavalos e 30 sipais lança-se pelo

mato à procura do chefe inimigo. Em 10 alcança-o em Mapulanguene, junto aos Libombos.

Ao ser surpreendido, Maguiguana resiste e é morto na luta heróica, que sozinho sustenta, pois

os seus tinham-no abandonado.

Mouzinho volta ao chibuto. Percorrera com a sua cavalaria em trinta dias de marcha

1200 Km.

“A surpresa e morte de Maguiguana – dizia Aires de Ornelas – foram possíveis devido

à cavalaria e ao seu judicioso emprego durante toda a campanha; guiado sempre pelo

verdadeiro espírito da arma, deveu Mouzinho de Albuquerque o resultado da mais brilhante

campanha de que rezam crônicas na África Austral”.

E o general Sebastião Teles, crítico militar brilhante, comentando a campanha de

Gaza, escrevia:

“Em cada um destes fatos da campanha se reconhecem as qualidades de quem a

dirigiu: Perfeita concepção estratégica; cuidado na preparação; rapidez de concentração;

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grande aptidão tática na direção do combate; energia na perseguição regular; força de caráter

para tomar a responsabilidade da perseguição irregular e conjunto das qualidades anteriores

que é indispensável para bem executar estas operações. É por isso que a campanha de Gaza

define as qualidades de Mouzinho e mostra que ele possuía todas as que constituem o bom

general. É ainda por isto que a campanha de Gaza é a página mais brilhante da História de

Mouzinho e deve ser considerada acima do feito de Chaimite, embora este seja mais

conhecido”.

E foi esta a sua última campanha.

___________________

Não se limitou a ação militar de Mouzinho em Moçambique às operações que levou a

efeito ou em que tomou parte. O estudo da organização militar da Província, em todos os seus

pormenores, mereceu-lhe a mais cuidada atenção.

Em 1891, quando governador de Lourenço Marques, escreveu um trabalho sobre a

organização do Exército nas províncias orientais, tratando em especial de Moçambique, que

veio a ser publicado na Revista do Exército e da Armada, em 1893. Em artigos de jornais

advogou em 1895 a vinda da cavalaria para Moçambique e em ofícios dirigidos ao Ministério,

nos relatórios das suas campanhas, nos diplomas que pôs em execução quando governava a

Província e em especial no livro Moçambique, deixou-nos inúmeros ensinamentos, que ainda

hoje, anos passados, se mostram de grande utilidade e interesse para quem tem de estudar as

questões militares da Província.

___________________

E foi a glória dos três anos de Moçambique que fizeram Mouzinho entrar na História

Pátria ao lado dos nossos maiores dos séculos passados.

E se foi grande, se o seu nome basta para nos fazer lembrar toda uma época de

heroicidade, se o seu nome consubstancia a epopéia da ocupação, é porque Mouzinho foi

sempre e essencialmente soldado.

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Soldado no sentir, soldado no agir, sempre as qualidades que ele apregoou como

apanágio dos que vestem uma farda, sempre ele as demonstrou.

E porque assim foi Mouzinho podia gritar bem alto o seu orgulho – o orgulho de ser

soldado, que mais não é que o orgulho de servir a Pátria.

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Anexo 2

COMISSÃO NACIONAL PARA AS COMEMORAÇÕES

DO

CENTENÁRIO DE MOUZINHO DE ALBUQUERQUE

ECOS

DO

CENTENÁRIO DE MOUZINHO

Recolhidos por

Filipe Gastão de Almeida de Eça

Secretário-Geral da Comissão Nacional

LISBOA

MCMLVIII

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COMISSÃO NACIONAL PARA AS COMEMORAÇÕES

DO

CENTENÁRIO DE MOUZINHO DE ALBUQUERQUE

(DECRETO-LEI N.40.329 DE 8-10-1955)

Com a concordância de sua Excelência o Ministro do Ultramar – Senhor Professor

Doutor Raúl Jorge Rodrigues Ventura -, que assim, e mais uma vez, quis patentear o extreme

carinho que lhe inspira a veneranda memória do Português de Ouro que se chamou Joaquim

Augusto Mouzinho de Albuquerque, a comissão nacional a que tenho a honra de presidir

encerra definitivamente as suas actividades com a publicação do presente volume.

[...]

Pretende-se assim prestar outra perdurável homenagem à memória do glorioso herói

de Chaimite, e, simultânea e indiretamente, patentear o elevado apreço desta Comissão

Nacional à inumerável legião de admiradores de Mouzinho, que, com os primores da sua

oratória ou com os fulgores da sua pena, muito contribuíram para o insólito brilhantismo e

elevação das comemorações do primeiro centenário natalício do Grande Soldado e

Administrador.

É homenagem a Mouzinho, porque recolhe, reúne e arquiva cerca de três centenas de

sintéticas, mas muito expressivas frases ou conceitos de exaltação; e também testemunho de

apreço e de reconhecimento aos que espontaneamente deram o seu valioso concurso às

comemorações, porque, em representação de todos ficam averbados nestas páginas os nomes

de alguns deles - e apenas de alguns dada à impossibilidade de a todos mencionar, como se

desejava.

[...]

Ao convidar o senhor Filipe Gastão de Moura Coutinho de Almeida e Eça - dedicado e

muito prestante Secretário-Geral desta Comissão Nacional – para a laboriosa tarefa de

compilar os elementos necessários à preparação deste volume, estava de antemão persuadido

de que poderia contar com a sua pronta e incondicional aquiescência, apesar de se tratar dum

trabalho com tanto de inglório como de exaustivo, tanto de ingrato como de fastidioso.

Contava com a sua anuência, disse, por conhecer a sua profunda admiração pela

egrégia personalidade do tenente-coronel de Cavalaria Joaquim Augusto Mouzinho de

Albuquerque, natural reflexo do seu entranhado amor à nossa portentosa província de

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Moçambique onde devotamente serviu durante longos trinta anos. E não errei, porque, com a

boa vontade de sempre, com a modelar isenção que lhe é peculiar, sem olhar à modéstia do

encargo e abstendo-se de medir trabalhos ou de avaliar sacrifícios, imediatamente aceitou o

convite sem qualquer reservas, objecções ou condições, para, apenas duas semanas depois, me

apresentar o seu acurado trabalho.

[...]

Lisboa, 9 de Abril de 1958

O Presidente da Comissão Nacional,

Luís António de Carvalho Viegas

General

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ECOS DA

CONSAGRAÇÃO SUPREMA

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ENCERRAM-SE NESTE MOMENTO OS ACTOS OFICIAIS DE

COMEMORAÇÃO DO PRIMEIRO CENTENÁRIO DE JOAQUIM AUGUSTO

MOUZINHO DE ALBUQUERQUE.

INICIADA EM LISBOA, CELEBRADA COM IGUAL SENTIMENTO DE

RESPEITO E VENERAÇÃO POR TODO O TERRITÓRIO PORTUGUÊS, VÊM ESSA

COMEMORAÇÃO TERMINAR NA PROVÍNCIA EM QUE MOUZINHO

IMORTALIZOU O SEU NOME E Á BEIRA DO MONUMENTO QUE PERPETUA A SUA

MEMÓRIA NA CIDADE CUJO FUTURO ELE TÃO LUCIDAMENTE ADIVINHOU.

SOLDADO PORTUGUÊS ACIMA DE TUDO FOI EM MOÇAMBIQUE QUE

ENVCOUNTROU O ENSEJO DE MELHOR SERVIR PORTUGAL. AQUI PÔDE

MANIFESTAR AS SUAS EXTRAORDINÁRIAS VIRTUDES DE MILITAR, QUE

RESPLANDECERAM NO FULGOR DOS SEUS ACTOS HERÓICOS, MAS QUE SE

NÃO REVELARAM COM MENOS BRILHO QUANDO ASSUMIU AS

RESPONSABILIDADES DE CHEFE. E AQUI EVIDENVCIOU QUALIDADES DE

ESTADISTA QUE FIZERAM COM QUE O SEU NOME FIGURE ENTRE OS MAIS

ILUSTRES DA LONGA TEORIA DOS GOVERNADORES DA PROVÍNCIA, ONDE NÃO

FALTAM PERSONALIDADES EMINENTES E DESTINOS GLORIOSOS.

E ESTA DUPLA NOTORIEDADE, COMO HERÓI E COMO ADMINISTRADOR,

CONQUISTOU-A MOUZINHO DE ALBUQUERQUE NUMA ÉPOCA

SINGULARMENTE FECUNDA EM VALORES MILITARES E EM PERITOS NA

ADMINISTRAÇÃO ULTRAMARINA. NÃO FOI CERTAMENTE FÁCIL SER O

PRIMEIRO DE UMA PLÉIADE QUE, FORMADA AO REDOR DA FIGURA DE

ANTÓNIO ENES, PODE ESCREVER NA HISTÓRIA OS NOMES DE CALDAS XAVIER,

EDUARDO COSTA, AIRES DE ORNELAS, PAIVA COUCEIRO, FREIRE DE

ANDRADE, EDUARDO GALHARDO E JOÃO DE AZEVEDO COUTINHO.

HOMENS PARA QUEM O HROÍSMO ERA UMA COMPETIÇÃO EM QUE

CADA QUAL SE ESFORÇAVA POR MOSTRAR MAIS ARROJO NO PERIGO E

DESPREENDIMENTO DA VIDA, MAS QUE TAMBÉM SABIAM-SE CONSAGRAR-SE

AO ESTUDO E PROCURAR NA OBSERVAÇÃO PRÓPRIA E NA EXPERIÊNCIA

ALHEIA AS SOLUÇÕES MAIS ADEQUADAS PARA OS PROBLEMAS DO

DESBRAVAMENTO E DA CIVILIZAÇÃO DA ÁFRICA.

E FOI ESSE OMÉRITO DA ACÇÃO DE MOUZINHO DE ALBUQUERQUE EM

MOÇAMBIQUE: O DE TER SIDO EXPOENTE DE TODA UMA GERAÇÃO E, MAIS DO

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QUE ISSO, DE TODA UMA DOUTRINA COLONIZADORA. COM ELA, A ESPADA

ABRE O CAMINHO DA CIVILIZAÇÃO. OS MESMOS QUE INTERVÊM NA GUERRA

PARA PÔR TERMO AOS ESTADOS DE BARBÁRIE - IMPEDITIVOS DO PROGRESSO

DA CULTURA QUE NO CONTINENTE EUROPEU ESTAVA AVANÇADA MAIS DE

UM MILÊNIO SOBRE OS ESTAGNADOS SERTÕES AFRICANOS - DEBRUÇAM-SE

ASSEGUIR CARINHOSAMENTE SOBRE AS POPULAÇÕES NATIVAS PARA AS

SALVAR DAS DOENÇAS QUE AS DDESTRÓEM, PARA AS TIRAR DA IGNORÂNCIA

EM QUE SE ABISMAM E PARA AS TRAZER AO TRABALHO VALORIZADOR DA

NATUREZA.

[...]

General

FRANCISCO HIGINO CRAVEIRO LOPES

Presidente da República portuguesa

Combatente da Grande Guerra de Moçambique

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ECOS SEM FIM

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MOUZINHO DE ALBUQUERQUE ESCREVEU:

Meu caro Bernardo,

Não te escrevo para te contar a história da prisão de Gungunhana, com a qual já deves

ter sido maçado, nem para que agradeças a El – Rei o telegrama que para aqui mandou a tal

respeito. Apenas te vou seringar com um pedido, mas este é o maior favor que me podes

fazer. Morreu o Caldas Xavier. Podes crer que de todos os oficiais, nossos camaradas,

nenhum havia mais dedicado, mais valente e com mais serviços. Ainda nesta expedição ele os

prestou e bem árduos e valiosos. Pode-se dizer bem que morreu à força de cansaço do muito

que tinha trabalhado em África.

Deixa viúva, cinco filhos, pai, mãe e duas irmãs, e de tudo isso era ele o amparo único.

El – Rei, caso entenda que eu mereço qualquer recompensa por ter apanhado o Gungunhana,

que tome esta gente sob Sua protecção. Nada me pode fazer que eu mais agradeça. Vê tu se

dizes isso a El – Rei e arranja tudo. Crê que praticas, além de uma boa acção, um ato de boa

camaradagem e um ato de favor ao teu

Amigo muito grato

J. Mouzinho de Albuquerque

(Carta endereçada ao 1. Conde de Arnoso, Bernardo Pinheiro Correia de Melo)

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ECOS DO ALÉM

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Já vão passados dois anos que um frêmito de alegria percorreu Portugal de norte a sul,

com a notícia de nossas primeiras vitórias em África por um punhado de valentes. Este

frêmito, porém, cresceu a ponto de transformar-se em verdadeiro entusiasmo com o feito de

Chaimite... com o aprisionamento do Gungunhana.

Foi esse o heróico feito praticado por Mouzinho de Albuquerque, - que partindo para a

África simples capitão de Cavalaria e apenas conhecido de um pequeno número, entre os

quais figuro eu, que já então me honrava com a sua amizade, voltou dali coberto de aplausos e

merecedor de glorificação pelas levantadas qualidades de sua alma e de Soldado, que o

tornaram indiscutivelmente digno da legenda decorativa que lhe adorna o peito: Pela Pátria e

pelo Rei.

A família de Mouzinho teve sempre por divisa: A Pátria e o Rei. Foi pela Pátria e pelo

Rei que Mouzinho de Albuquerque trabalhou e venceu; e por isso, por bem os servir, sinto

hoje o infinito prazer de lhe entregar eu mesmo as medalhas que tão gloriosamente ganhou.

D.Carlos I

Rei de Portugal

(Palavras pronunciadas na Sociedade de Geografia de Lisboa em Dezembro de 1897, quando

El – Rei condecorou Mouzinho com as medalhas de ouro de Valor Militar e de Relevantes

Serviços no Ultramar)

***

Outros narravam o feito preclaro de Chaimite. Como eu exultei! Quarenta e seis homens só,

só quarenta e seis portugueses, tinham posto a ferros o potentado que, meses antes, aterrava

toda a África do Sul! O edifício da vitória, que deixara incompleto tinha já a sua cúpula, e

nunca eu a sonhara tão alterosa e arrojada! As gratidões do meu espírito julgaram vê–la

encimada por uma cruz radiosa.

Conselheiro António Enes

Grã-Cruz da Torre e Espada. Antigo comissário Régio em Moçambique. Jornalista e

dramaturgo.

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***

Nesses casos esteve Mouzinho quando voltou de Moçambique, e a fama do seu nome glorioso

ecoava retumbante, de lar em lar, até as mais apartadas aldeias do reino, até aos mais

longínquos confins do mundo, onde vibrasse um coração português. Era o símbolo vivo. Era o

mineiro apetrechado com a incomparável ferramenta de prestígios notórios e radiantes. Era a

bandeira sugestiva chamando gerações novas ao ressurgimento das antigas tradições ilustres.

Quis a bandeira abater-se. Mas a memória ficou. Prestemo-lhes nosso culto permanente, que

ela é troféu da Pátria.

Henrique Paiva Couceiro

Oficial de Artilharia. Antigo Governador-Geral de Angola.

Herói Nacional. Companheiro de Mouzinho

***

Nascido para chefe, Mouzinho revelou-se condutor de homens a primeira vez que comandou.

A certeza tranqüila na execução do golpe de Chaimite, tão logicamente concebido, afirmou o

homem que as multidões aclamaram com o instinto seguro que as faz descobrir o vencedor,

aquele sob cujas ordens grandes coisas se fazem.

Ayres de Ornelas

Antigo Ministro da Marinha e do Ultramar. Companheiro de Mouzinho e seu chefe de

Estado-Maior

***

“De Mouzinho ficará a memória do homem que prestou ao País e ao Rei os maiores e mais

relevantes serviços” 1. Estas justas palavras – digno epitáfio de um tão grande morto – terá um

dia a Pátria agradecida de as escrever em caráter de bronze sobre o frio mármore do seu

túmulo.

Conde de Arnoso (1902)

1 De uma carta de El-Rei D.Carlos ao Conde de Arnoso.

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Oficial de Engenharia. Secretario Particular de El – Rei D.Carlos. Escritor. Grande amigo de

Mouzinho

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ECOS DO CENTENÁRIO

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O homem de acção não é o que se agita; é o que constrói. Vê, ausculta, tacteia,

discorre e sonha nas horas fecundas da concepção, para mais depressa dar depois a voz de

comando e lançar mão à obra. Não pára então enquanto não vê o terreno desbravado, cavados

os caboucos, firmados os alicerces, erguidas as paredes mestras, colocada a última trave. Agir

é construir. Construir casa, construir homens, construir pátrias, construir idéias. Único

império sólido, pacífico e fecundo – este que nasce do espírito e se sustenta pela acção.

Mouzinho era um grande construtor imperial. Olhando desdenhoso e desgostoso a

mesquinhez da nossa vida pública de há cinqüenta anos, procurou o lugar onde pudesse viver

o Portugal que estava dentro de sua alma, talhado, segundo dimensões da epopéia, iluminado

pelos clarões da História: e ei-lo a caminho da África, dessas terras de magia aliciante, aonde

o destino nos chama a exercer a missão sagrada de evangelizadores e civilizadores -, onde

todo o português encontra “a amiga sedução do solo pátrio”.

Professor Doutor Marcelo Caetano

Ministro da Presidência e antigo Ministro das Colônias

Acadêmico

***

De Chaimite em diante, Mouzinho tomou um lugar ÚNICO, que durante mais de meio

século nunca ninguém lhe contestou. Mouzinho foi o herói nacional, o ídolo do país, o nome

prestigioso mais respeitado ainda em Portugal, do que o nome de Napoleão o foi em França,

porque se há muito quem ponha em dúvida se a gloriosa era napoleônica foi útil ou ruinosa

para a França, não pode haver duas opiniões sobre a mudança radical que, depois do feito de

chaimite, se operou na província de Moçambique.

D. Fernanda Mouzinho de Albuquerque

***

Nos fatos da História Portuguesa contemporânea, Joaquim Augusto Mouzinho de

Albuquerque criou com as suas concepções administrativas um ciclo definido e

inconfundível, que marca vincadamente a linha que separa dois métodos de administração

ultramarina.

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Esse ciclo evolutivo das normas de administração, que serve de base a toda a mecânica

que hoje comanda a economia financeira nas Províncias Portuguesas do Ultramar, pode com

propriedade denominar-se “ciclo Mouziniano”. Infelizmente tem sido até hoje uma das

facetas menos discutidas do grande gênio de Mouzinho.

Tenente Manuel Simões Alberto

Escritor, Antropologista e historiógrafo

Lourenço Marques

***

Não foi só pela força das armas que a acção governativa de Mouzinho se fez sentir em

Moçambique. Uma série de providencias no sentido da nacionalização da propriedade e do

comércio, seguida de uma orientação, em bases seguras, da administração financeira e

regularização da situação econômica da Província revelaram em Mouzinho de Albuquerque

notáveis qualidades de administrador, que aliadas às de soldado e homem de letras,

contribuíram para que o consideremos um dos portugueses mais representativos do século

XIX.

In “Brado Africano”, Lourenço Marques, 12-XI-1955

***

Mouzinho é o herói de Moçambique – não um herói no sentido corrente, mas sim o

herói no sentido das gestas e dos mitos -, símbolo das virtudes de uma raça, pulsação viva das

aspirações, dos sonhos, dos anseios e dos desesperos de um povo.

E foi como herói de Moçambique que as comemorações de agora decisivamente o

consagraram na memória e no amor da gente de Moçambique.

In “Moçambique” Documentário trimestral, Lourenço Marques, n. 84, 1955

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