universidade federal do rio de janeiro · 2020. 3. 23. · resumo farias, danielle martins de....
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
DANIELLE MARTINS DE FARIAS
TRANSVERSALIDADES E POÉTICAS DA CENA - articulações entre literatura e teatro em
A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro
RIO DE JANEIRO
2019
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Danielle Martins de Farias
TRANSVERSALIDADES E POÉTICAS DA CENA- articulações entre literatura e teatro em A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes da Cena.
Orientação: Prof.ª Dra. Carmem Gadelha
Rio de Janeiro
2019
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CIP - Catalogação na Publicação
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidospelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.
F224tFarias, Danielle Martins de Transversalidades e poéticas da cena:articulações entre literatura e teatro em A lua vemda Ásia e O púcaro búlgaro / Danielle Martins deFarias. -- Rio de Janeiro, 2019. 141 f.
Orientador: Carmem Gadelha. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal doRio de Janeiro, Escola de Comunicação, Programa dePós-Graduação em Artes da Cena, 2019.
1. Sujeito em fluxo. 2. Romance-em-cena. 3.Performatividade. 4. Cena expandida. 5. PósModernidade. I. Gadelha, Carmem, orient. II. Título.
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Danielle Martins de Farias
TRANSVERSALIDADES E POÉTICAS DA CENA- articulações entre literatura e teatro em A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes da Cena.
Aprovada em
_______________________________________________________________________
Prof.ª Dra. Carmem Gadelha, UFRJ (orientadora)
_______________________________________________________________________
Prof. Dr. Daniel Marques da Silva, UFRJ
_______________________________________________________________________
Prof. Dr. Leonardo Ramos Munk Machado, UNIRIO
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A Campos de Carvalho, a quem não conheci, mas com quem compartilhei risadas e assombros.
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AGRADECIMENTOS
Aos membros da banca. Aos companheiros de turma, pelas conversas e pelos encontros. Aos professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da UFRJ, em especial à Alessandra Vannucci, Eleonora Fabião e Marlene Cardoso Bonfim. À Carmem Gadelha, pela generosidade, disponibilidade e acuidade com que conduziu a orientação. À Ana Bulhões, pelas valiosas contribuições no exame de qualificação. A Daniel Marques, pelas valiosas contribuições no exame de qualificação. E pela empatia, afeto e escuta. A Márcio Freitas, pelo auxílio material na pesquisa e pela prosa. À equipe de A Lua Vem da Ásia, em especial ao diretor Moacir Chaves, pelo aprendizado. À equipe de O Púcaro Búlgaro, por essa obra tão instigante, material desta pesquisa. A Gillray Coutinho, também pela disponibilidade em compartilhar seu acervo. Ao diretor Aderbal Freire-Filho, também por compartilhar seu tempo e suas estórias em entrevista. A Renato Bolelli, pela companhia leve e atenciosa. À Wânia Vianna, pelos cuidados. À Fábia Mônica e Ana Rocha pela amizade e apoio. A Rafael Fortes pela amizade, apoio, logística e atenciosa revisão do texto. À minha família, pelo suporte, sempre. A Raphael Vianna, por tudo.
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RESUMO
FARIAS, Danielle Martins de. Transversalidades e poéticas da cena - articulações entre
literatura e teatro em A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro. Rio de Janeiro, 2019. Dissertação
(Mestrado em Artes da Cena) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2019
O presente estudo investiga a cena híbrida construída pela articulação entre literatura e
teatro, com o intuito de perscrutar as condições que tornam possíveis a encenação de um
romance e suas consequências para a narrativa e seus personagens. Parte-se da hipótese de
que o estranhamento causado por um material não-dramático no palco gera deslocamentos de
cânones do teatro e abre espaço para múltiplas significações através da mistura de linguagens.
Para tanto, tem seu objeto estético no estudo de caso de dois espetáculos do teatro
contemporâneo do Rio de Janeiro, A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro, que utilizaram
textos literários - os romances homônimos do autor Campos de Carvalho – sem adaptação
para uma literatura dramática. A partir do conceito de romance-em-cena, criado por Aderbal
Freire-Filho e estudado por Juarez Guimarães Dias (2015) em seu livro Narrativas em Cena, e
do estudo dos procedimentos de direção de atores de Moacir Chaves, abordados na minha
monografia de pós-graduação (FARIAS, 2012), além dos materiais de registro dos ensaios do
espetáculo, serão analisados os procedimentos criativos utilizados pelos encenadores e as
singularidades das obras em questão. A apropriação do romance pelos encenadores dos
espetáculos aqui estudados, por um lado, propõe desafios à encenação, que precisa achar
novas soluções para esta “dramaturgia” que não foi pensada para ser encenada. Por outro
lado, leva para a cena aspectos da Pós-Modernidade, em que a narrativa teatral e seus
personagens se tornam suportes atravessados pelas linguagens híbridas, gerando uma
multiplicidade de “eus”, que se apresentam como pontos de enunciação e não como
individualidades providas de aprofundamento psicológico – um sujeito em fluxo.
Palavras-chave: Sujeito em fluxo. Romance-em-cena. Performatividade. Cena expandida.
Pós-Modernidade.
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ABSTRACT
FARIAS, Danielle Martins de. Transversalidades e poéticas da cena - articulações entre
literatura e teatro em A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro. Rio de Janeiro, 2019. Dissertação
(Mestrado em Artes da Cena) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2019
The present study investigates the hybrid scene built by the articulation between
literature and theater, to examine the conditions that make possible the staging of a novel and
its consequences for the narrative and its characters. It is part of the hypothesis that the
estrangement caused by a non-dramatic material on the stage generates shifts of canons from
the theater and opens up space for multiple meanings through the mixing of languages. To
this end, it has its aesthetic object in the case study of two spectacles of the contemporary
theater of Rio de Janeiro, A lua vem da Ásia and O púcaro búlgaro, those used literary texts-
the namesake novels of the author Campos de Carvalho - without adaptation to dramatic
literature. From the concept of romance-em-cena (novel-on-stage), created by Aderbal Freire-
Filho and studied by Juarez Guimarães Dias (2015) in his book Narratives on stage, and the
study of the directing procedures of actors of Moacir Chaves, approached in my post-
graduation monograph (FARIAS, 2012), in addition to the registration materials of the
spectacle rehearsals, will be analyzed the creative procedures used by the directors and
singularities of the works in question. The appropriation of the novel by the directors of the
shows here studied, on the one hand, proposes challenges to the staging, which needs to find
new solutions for this "dramaturgy" that was not thought to be staged. On the other hand, it
leads to the scene aspects of post-modernity, in which the theatrical narrative and its
characters become brackets traversed by the hybrid languages, generating a multiplicity of
"selves", which present themselves as enunciation points and not as individualities provided
with psychological deepening – a subject in flux.
Keywords: Subject in flux. Novel-on-stage. Performativity. Expanded Field. Postmodernity.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 9
1 O ROMANCE NA CENA TEATRAL .................................................................... 14
1.1 A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro em cena ....................................................... 14
1.2 O devir-romance da cena ......................................................................................... 19
1.3 Os gêneros literários e a cena: dramático, épico, pós-dramático ......................... 25
1.4 Personagem e narratividade na cena ....................................................................... 32
1.5 Texto cênico – dramaturgia como encenação, diretor como autor da cena ........ 36
1.6 Performatividade – intercâmbio entre romance e teatro ...................................... 40
1.7 Personagem em fluxo como sujeito na Pós-Modernidade ..................................... 43
2 O PÚCARO BÚLGARO ............................................................................................. 48
2.1 Considerações sobre o romance ............................................................................... 49
2.2 Pressupostos do romance-em-cena em O púcaro búlgaro ...................................... 53
2.3 Justaposição de escrituras na cena híbrida do espetáculo ..................................... 60
2.4 Performatividade em fluxo ....................................................................................... 66
3 A LUA VEM DA ÁSIA ............................................................................................... 71
3.1 Breves apontamentos sobre a linguagem do romance ........................................... 72
3.2 Estrutura do romance na encenação ....................................................................... 75
3.3 Performatividade e dissonância: estudo das cenas do espetáculo ......................... 78
3.4 Fluxo de vozes ............................................................................................................ 90
4 CONFRONTAÇÕES ................................................................................................ 94
4.1 Personagens em Fluxo .............................................................................................. 94
4.2 Romance como texto teatral: romance-em-cena, romance na cena ................... 101
CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 112
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 116
ANEXOS .............................................................................................................................. 122
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ANEXO A - Entrevista com Aderbal Freire-Filho .......................................................... 122
ANEXO B - Entrevista com Moacir Chaves .................................................................... 138
ANEXO C - Ficha técnica dos espetáculos ....................................................................... 141
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INTRODUÇÃO
Em maio de 2007, no teatro Sesc Anchieta, assisti ao espetáculo carioca O púcaro
búlgaro, do romance homônimo de Campos de Carvalho, encenado por Aderbal Freire-Filho.
Eu morava em São Paulo e estava realizando uma pesquisa prática na Escola Livre de Santo
André, cujo mote por mim escolhido era a transposição de obras literárias para o teatro. O
impacto causado pelo espetáculo me fez retornar ainda mais uma vez àquela curta temporada
para tentar entender melhor aquelas operações cênicas, tão surpreendentes e ao mesmo tempo
tão justas. Em abril de 2010, retornei ao Rio de Janeiro e conheci pessoalmente o diretor
Moacir Chaves, cuja poética de encenação já conhecia por acompanhar seu trabalho. Em
setembro do mesmo ano, ele me convidou para fazer assistência de direção de um monólogo
que contava com a atuação de Chico Diaz. O espetáculo, que estreou em janeiro de 2011 no
CCBB, chamava-se A lua vem da Ásia, e era uma encenação do romance homônimo do
mesmo Campos de Carvalho.
Essas experiências me fizeram perquirir o potencial gerado pelo estranhamento
causado por um material não dramático no palco, que abre espaço para múltiplas significações
através da mistura de linguagens. A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro apresentam muitas
semelhanças, sendo ambos narrados em primeira pessoa, já que escritos em forma de diário
em que os protagonistas registram seus dias. Esses dois romances oferecem um amplo campo
de lacunas ao seu leitor – lacunas de que as encenações dos diretores Moacir Chaves e
Aderbal Freire-Filho tiraram partido de formas muito diversas. Deste modo, o objetivo do
presente estudo é investigar a cena híbrida construída pela articulação entre literatura e teatro,
com o intuito de perscrutar as condições que tornam possíveis a encenação de um romance e
suas consequências para a narrativa teatral e seus personagens.
Assim, esta pesquisa tem seu objeto estético no estudo de caso de A lua vem da Ásia
e O púcaro búlgaro, espetáculos do teatro contemporâneo do Rio de Janeiro, que utilizaram
textos literários – os romances homônimos do autor Campos de Carvalho – sem adaptação
para uma literatura dramática. A partir do conceito de ―romance-em-cena‖1, criado por
Aderbal Freire-Filho e estudado por Juarez Guimarães Dias (2015) em seu livro Narrativas
em Cena, e dos procedimentos de direção de atores de Moacir Chaves, abordados na minha
1 Aderbal Freire-Filho criou uma forma específica de encenação de romances, na qual, segundo seu ponto de
vista, há uma fusão entre o gênero dramático e o narrativo, a qual chamou ―romance-em-cena‖.
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monografia (FARIAS, 2012) de pós-graduação,2 além dos materiais de registro dos ensaios do
espetáculo, serão analisados os procedimentos criativos utilizados pelos encenadores e as
singularidades das obras em questão. Para tanto, no Capítulo 1, traço um painel teórico para
possibilitar compreender um pouco melhor os objetos de estudo e o contexto no qual eles se
inserem.
Um romance na cena teatral cria uma situação paradoxal quanto ao estatuto desta
operação e do próprio romance, que deixa de ser romance e, no entanto, continua a sê-lo. A
estrutura do romance, exposta na cena, torna-se objeto de jogo para os atores-performers.
Partindo do conceito de Deleuze-Guatarri sobre devir e de Sarrazac sobre devir cênico, assim
como da ideia de Florencia Garramuño de ―frutos estranhos‖ gerados no hibridismo da
contemporaneidade, investigo a hipótese de como um romance, com seu inacabamento
inerente e sua ―inadequação‖ ao palco, pode ser um material especialmente potente para
reinventar e romper certos cânones, já bastante cansados mas ainda resistentes, que moldam
noções que delimitam e aprisionam o teatro.
O romance na cena rompe estruturas e, ao mesmo tempo, é um reflexo de rupturas.
Deste modo, perquiro que estruturas são essas que foram rompidas para possibilitar a
encenação de um romance, material não dramático, e, estando ele na cena, que estruturas são
forçadas a se alargarem devido à sua presença. Para tanto, retomo o conceito de drama,
conforme entendido na tradição aristotélico-hegeliana que, em resposta às novas relações do
homem com a sociedade por volta do fim do século XIX, entrou em crise, voltando a abrir
espaço para procedimentos épicos, até nomenclaturas mais recentes, como teatro pós-
dramático. A respeito desta ―epicização‖ do teatro, contraponho ao fenômeno da
―romancização‖, conforme definido por Bakhtin: a renovação dos outros gêneros através do
inacabamento e da transformação do romance e da própria realidade que nele se reflete.
Se, por um lado, a esta pesquisa interessa refletir sobre este fenômeno e o potencial do
romance para a renovação do teatro também por seu caráter plurilíngue, por outro,
concordando com a afirmação de Anatol Rosenfeld de que não existe pureza de gêneros,
observo que, em diversas épocas, o teatro foi composto de elementos dramáticos, líricos e
épicos. Tanto assim que, apesar da maior ou menor presença desses elementos nos diversos
momentos da História, que privilegia alguns elementos em detrimento de outros, refletindo o
2 Em 2012, concluí a Pós-Graduação em Formação de Preparador Corporal nas Artes Cênicas pela Faculdade
Angel Vianna com a monografia Corpo Cênico Distensionado – Estudo comparativo entre a Técnica de
Alexander e o método do diretor Moacir Chaves. Neste estudo sobre a direção de atores de Moacir Chaves,
relato características que percebo em sua condução dos atores que dialogam com a ideia de performance, que
serão melhor explanadas no capítulo dedicado ao espetáculo A lua vem da Ásia.
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pensamento predominante da época que o gerou, eles sempre estão presentes nos mais
variados momentos históricos. Deste modo, investigo como a noção de personagem se dá nos
diferentes gêneros.
Crucial para o desenvolvimento do teatro moderno, o aparecimento da figura do
encenador trouxe novas configurações para a cena teatral nos últimos anos do século XIX. Na
encenação da obra dramática, o encenador contribuiu para o descentramento do texto como
elemento principal do teatro, ao qual o palco deveria ser subserviente, ao atribuir um sentido
ao texto, não mais submetido a um ―sentido único‖ determinado pelo dramaturgo.
Contemporaneamente, com dramaturgias mais abertas pelo rompimento de estruturas textuais
dramáticas e crise da própria ideia de drama, o sentido de ―dramaturgia‖ é ampliado e se abre
espaço para a multiplicação de autorias. Por outro lado, o próprio sentido de ―autoria‖ pode
ser questionado, como desenvolvido a partir do pensamento de Michel Foucault e Roland
Barthes.
Na medida em que o teatro deixa de estar submetido à ascendência dramática, o
sentido de performatividade ganha espaço na cena teatral. Na heterogênea produção
contemporânea, as fronteiras entre obra e processo, ficcional e real, ator e performer se
diluem. Nos espetáculos aqui estudados, a performatividade revela o caráter de jogo e artifício
da encenação, que resiste a uma demanda hermenêutica, e afirma sua característica de evento
a ser experienciado. Como enuncia Josette Féral, a performance escapa à ilusão, à
narratividade contínua, explode a entidade do sujeito, valoriza mais a ação em si que seu valor
de representação, interessa-se por uma ação em trabalho de produção mais do que pelo
produto acabado, é acontecimento.
Para refletir sobre a influência que a dramaturgia sofre por sua época histórica e tentar
perscrutar os caminhos que nos levam até o advento de um romance na cena, será investigada
a multiplicidade de ―eus‖ da chamada Pós-Modernidade. Através do pensamento de Stuart
Hall, Michel Foucault e Giorgio Agamben traço um breve panorama do sujeito a fim de
relacionar como as mudanças no entendimento acerca da noção de identidade causam reflexos
na arte pela mudança na ideia de representação. Na Pós-Modernidade, também a noção de
tempo-espaço é fragmentada pelas relações que se dão à distância pelas novas tecnologias,
reforçando a ideia da presença de uma ausência e de processos de subjetivação em fluxo, que
também terá reflexos na ideia de personagem, como pode ser percebido pelo estudo dos
espetáculos aqui pesquisados.
O segundo capítulo é dedicado ao espetáculo O púcaro búlgaro, que se utiliza dos
princípios do ―romance-em-cena‖, criado por Aderbal Freire-Filho, como mecanismo dessa
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transição do literário para a cena teatral. O romance é o diário de bordo dos preparativos para
uma expedição que verificará a (in)existência da Bulgária. Campos de Carvalho parte do
insólito enredo para explodir a lógica do senso comum e questionar a própria linguagem. A
estrutura do romance é preservada e exposta como tal na encenação, servindo ao jogo dos
atores. O resultado é um teatro de caráter narrativo e performativo, tendo o ator como eixo
principal da comunicação dessa textualidade com o espectador (DIAS, 2015). Deste modo,
ocorre uma justaposição de planos – da escritura cênica e do romance -, gerando uma
multiplicidade de sentidos pelos espaços de ―entre‖. Esta relação entre o romance e a cena
teatral se dá pela performatividade da atuação, que ao jogar com personagens alegóricas
atravessadas por um discurso, evidencia uma pluralidade/desintegração/descentramento de um
―eu‖, fazendo emergir uma performatividade em fluxo.
No terceiro capítulo, trato do espetáculo A lua vem da Ásia, encenado por Moacir
Chaves, que é um diretor que frequentemente realiza espetáculos a partir de materiais não
dramatúrgicos, utilizando, na sua direção de atores, procedimentos que se afastam da noção
de representação de um personagem e flertam com a ideia de performance. O romance de
Campos de Carvalho, que é o diário de um interno, ao que parece, em um manicômio, traz um
personagem bastante plural, que pode ser lido como um esquizofrênico, mas que foi
apropriado pela encenação a partir da ideia de vozes, evidenciando uma
pluralidade/desintegração/descentramento do eu, reforçando, assim, a ideia de um sujeito em
fluxo. O romance também traz uma narrativa fragmentada, aspecto que foi ressaltado pela
encenação, composta a partir da ideia de inacabamento, suspensão/achatamento do tempo-
espaço, multiplicação e justaposição de planos, através de diferentes estratégias que serão
analisadas a partir de um breve roteiro de cenas do espetáculo. A encenação aproveita a
mobilização de recursos de espaço, luz, projeção e da ideia de texto-material em
contraposição a de fala do personagem para a constituição de uma teatralidade performativa e
dissonante, que permite a abertura de sentidos.
Os espetáculos que compõem o objeto de estudo desta pesquisa apresentam a oportuna
característica de terem como ponto de partida materiais literários bastante semelhantes entre si
e bastante diversas em suas escrituras cênicas; daí o interesse em uma análise que confronte
os dois espetáculos – o que será feito no último capítulo. Assim, inicio a primeira das duas
partes do Capítulo 4 confrontando a forma como elementos balizadores do texto teatral -
como personagem, ação, diálogo, tempo-espaço – dão-se na cena dos dois espetáculos e o uso
de procedimentos performativos em ambos na apropriação dos encenadores e atores sobre
esta ―dramaturgia não dramática‖.
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Um dos pilares da investigação deste estudo é a potência do romance na cena, sua
possibilidade de trazer novos desafios à encenação - e, com isso, novas soluções e
possibilidades para a cena teatral. As características heterogêneas do romance, um gênero que
não se submete a cânones, inacabado, sempre aberto ao tempo presente, fazem dele um
material especialmente interessante para uma encenação. Assim, na segunda parte do Capítulo
4, partindo dessa hipótese, investigo o romance como texto teatral, a relação dos diretores
com o romance na cena e como essas relações se deram nos espetáculos objetos desta
pesquisa.
Hoje, passados mais de dez anos que assisti a O púcaro búlgaro, ainda considero o
espetáculo uma das experiências mais marcantes que tive como espectadora. O romance na
cena é um (des)caminho por ser descoberto. Cada romance tem a oferecer à cena suas
próprias possibilidades poéticas - daí sua possibilidade de renovação para o teatro e interesse
para os estudos contemporâneos nesta área. Reencontrar o universo de Campos de Carvalho
nos bastidores de A lua vem da Ásia me proporcionou a grande oportunidade de aprofundar
minha relação com essa poética tão singular e tão necessária nos tempos atuais - sua literatura
é parte de um ―projeto terrorista de renovação da linguagem e de libertação do homem‖
(BATELLA, 2004, p. 58).
Além do prazer da companhia dessas obras, fui movida, nesta investigação, também
por questões que considero pertinentes neste tempo-espaço de tantas (re)configurações.
Partilho aqui um pouco da paixão e curiosidade que me moveram e desejo que elas possam,
quem sabe, alimentar um pouco outras inquietações.
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1 O ROMANCE NA CENA TEATRAL
1.1 A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro em cena
A ideia de Deus me soa completamente absurda.
Mais fácil eu existir do que Deus.
(Campos de Carvalho)
Em junho de 2006, estreou no Teatro Poeira, Rio de Janeiro, o espetáculo O púcaro
búlgaro, com texto do romance homônimo do autor Campos de Carvalho. Com elenco
formado pelos atores Augusto Madeira, Cândido Damm, Gillray Coutinho, Isio Ghelman e
Raquel Iantas3, o espetáculo foi idealizado e dirigido por Aderbal Freire-Filho, encenador
originário de Fortaleza e radicado no Rio de Janeiro desde 1970, onde construiu profícua
carreira no teatro, tendo dirigido mais de 100 espetáculos nas últimas quatro décadas. O
púcaro búlgaro foi a terceira incursão do diretor ao romance-em-cena: termo por ele cunhado
para designar suas encenações cuja base textual foram obras literárias transpostas para a cena
integralmente, sem nenhum tipo de adaptação, da exata forma como escritas. O encenador
concebeu seu primeiro romance-em-cena em 1990, A mulher carioca aos 22 anos, de João de
Minas; o segundo, O que diz Molero, de Dinis Machado, no ano de 2003; e, finalmente, o
terceiro e último, o premiado O púcaro búlgaro.
O texto do romance O púcaro búlgaro não recebeu nenhum tratamento para
transformá-lo em literatura dramática; desta forma, sua estrutura narrativa foi preservada,
apesar de pequenas mudanças no texto que serão analisadas mais adiante. A grande
transformação que salta aos olhos no encontro do romance com a cena teatral é uma
―adaptação‖ cênica, não literária. Como comenta Aderbal Freire-Filho sobre a encenação: "eu
me lembro de um amigo que quando viu O púcaro búlgaro disse ‗esse livro é uma peça. O
que está escrito aí é uma peça'. E não era. Essa adaptação é feita de tal jeito que transforma o
romance numa peça, é uma profunda adaptação." (in DIAS, 2015, p. 118).
Escrito em 1964, o último romance de Campos de Carvalho pode ser tomado como a
síntese de sua obra idiossincrática: no verão de 1958, enquanto visita o Museu Histórico e
Geográfico de Filadélfia, um cidadão avista um púcaro búlgaro. O forte impacto causado pela
3 O espetáculo obteve diversas indicações e prêmios, como o Prêmio Eletrobras (2006) e o Prêmio Qualidade
Brasil (2007) nas categorias Melhor Ator (Gilray Coutinho), Melhor Espetáculo e Melhor Diretor (Aderbal
Freire-Filho) e Prêmio Contigo (2007) de Melhor Espetáculo no gênero comédia. Fonte: DIAS, 2015, p.129.
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peça vista no museu faz com que ele coloque um anúncio no jornal convocando interessados
em tomar parte numa expedição à Bulgária, a fim de comprovar a (in)existência desse país.
O que se convencionou chamar a Bulgária é sobretudo um estado de espírito. Como
Deus, por exemplo. Mesmo que ficasse um dia definitivamente demonstrada a
inexistência da Bulgária, ou das Bulgárias, ainda assim continuariam a existir
búlgaros - do mesmo modo como existem lunáticos que nunca foram e jamais irão à
lua (CARVALHO, 2008b, pp. 55-56).
O romance é escrito como se fora a publicação do ―diário de bordo‖ do personagem
protagonista, que registra o dia-a-dia dos preparativos para sua expedição à Bulgária com toda
a ―cientificidade‖ necessária. Campos de Carvalho satiriza, assim, a atitude cientificista de
busca da verdade. O inusitado da razão da expedição leva o leitor (e o expectador) a especular
sobre a realidade das coisas e das palavras, como elucida Juva Batella:
Ao duvidar de todas as palavras, Campos de Carvalho explicita seu projeto de não-
resignação diante do entorpecimento do pensamento, de que o uso automático da
língua tanto é causa como consequência – ‗A continuar assim, ainda acabaremos
empreendendo uma expedição para descobrir a nós mesmos‘ (2004, p. 238).
Em 2011, o espetáculo de teatro A lua vem da Ásia, com texto do romance homônimo
do mesmo Campos de Carvalho, estreou no CCBB do Rio de Janeiro, com atuação de Chico
Diaz e direção Moacir Chaves4, montagem da qual participei como assistente de direção.
Natural da cidade de Petrópolis, estabelecido no Rio de Janeiro desde 1982, Moacir Chaves é
um encenador que frequentemente realiza espetáculos a partir de materiais não dramatúrgicos,
e, também na encenação de A lua vem da Ásia, não houve qualquer tentativa de transformar o
texto numa literatura dramática.
O romance A lua vem da Ásia (1956) é o relato de um homem que se chama
Astrogildo - mas já teve outros nomes - e se julga hospedado em um hotel de luxo, depois em
um campo de concentração, enquanto aos leitores a descrição do local parece a de um
manicômio. Inicia-se com a confissão de que aos 16 anos matou seu professor de lógica. Por
legítima defesa. E pergunta ―qual defesa seria mais legítima?‖. Astrogildo (ou que nome
tenha) conta sua vida ao mesmo tempo em que registra suas estórias em um diário. Assim, o
4 O espetáculo foi indicado ao Prêmio Contigo (2011) nas categorias Melhor Espetáculo Drama e Melhor Ator e
ao Prêmio APCA (2011) de Melhor Ator, e teve sua diretora de movimento premiada na Categoria Especial do
24° Prêmio Shell de Teatro do Rio de Janeiro (2012).
https://pt.wikipedia.org/wiki/1956https://pt.wikipedia.org/wiki/Campo_de_concentra%C3%A7%C3%A3ohttps://pt.wikipedia.org/wiki/Hospital_psiqui%C3%A1trico
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livro A lua vem da Ásia, de Campos de Carvalho, é o diário de Astrogildo, que é dividido em
duas partes: na primeira, ele se encontra em um "hotel de luxo" (ou manicômio), e descreve
seu dia-a-dia de hóspede (ou interno), além das lembranças de suas aventuras (ou delírios)
pelo mundo; na segunda, descreve sua entrada no mundo dito "normal" após uma bem-
sucedida fuga: ―já tenho fugido muito na minha vida, desde o dia em que ainda criança fugi
do ventre materno‖ (CARVALHO, 2008a, p. 98).
Como discorre Juva Batella (2004, p. 93), em dado momento, o narrador diz que seria
certamente tomado por louco caso se dispusesse a relatar em livro o absurdo de sua
existência; desta forma, adianta e enfraquece o eventual veredito acerca de sua insanidade - e
a eventual ansiedade do leitor (ou da plateia) de se apaziguar com um rótulo. Esse artifício do
escritor permite a denúncia de uma sociedade mergulhada, esta sim, numa loucura
irremediável, e potencializa o olhar do leitor (ou espectador) sobre a comunidade que exclui o
seu ―outro‖. Ou nas palavras de Carlos Felipe Moisés:
Astrogildo é formado de muitas e contraditórias características, que ele não parece
interessado em unificar ou conciliar, preferindo aceitar e viver todas elas, ainda que
seja pela via da imaginação. É a sua forma de manter vivo o fogo da insubmissão e
garantir um mínimo de sanidade (in CARVALHO, 2008a).
A poética de Campos de Carvalho faz proliferar imagens paradoxais e livres
associações no andamento do texto, tendo como característica marcante a presença de um
humor que, levado ao extremo, busca apontar o que há de trágico em acontecimentos tidos
como normais. Como neste trecho abaixo, de A lua vem da Ásia, em que o autor-personagem
afirma os abismos da vida e a fragilidade humana diante da fatalidade da morte, fatalidade
esta que é ignorada por um homem que vive a ilusão da imortalidade ao ocupar o lugar
deixado vago por Deus. Ao mesmo tempo, o autor joga com palavras, imagens e inversão de
sentidos lógicos previsíveis, gerando comicidade:
Se a morte para a qual caminhamos em passos rápidos — e que ainda hoje pode
colher- nos de surpresa [...] se essa morte é, cada dia mais, de minuto a minuto, a
grande verdade contra a qual não prevalece nenhuma filosofia do homem nem
tampouco seu incomensurável orgulho, dizei-me como e sobretudo por que devo eu
ignorá-la com um sorriso nos lábios [...]. Em suma nada mais vos peço senão que
afugenteis a morte de minha vista, já que não podeis afugentá-la de minhas costas, e
que me deis o segredo desse filtro que vos faz tão tranquilos e ao mesmo tempo tão
vivos [...]. Dai-me enfim a arte de mentir para mim mesmo, eu que não sei mentir
nem aos outros, e fazei com que eu pise sobre os mortos como [...] se não me
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dissessem respeito [...], dada a minha alta qualidade de imortal e indiferente aos
abismos (CARVALHO, 2008a, pp. 170-171).
Walter Campos de Carvalho, romancista, ensaísta e cronista, nasceu em Uberaba,
Minas Gerais, em 1916, e faleceu em 1998, em São Paulo. Em 1938, formou-se em Direito,
tendo trabalhado durante toda a vida como advogado e procurador do estado de São Paulo.
Sua vida sempre esteve ligada à literatura, estreando aos vinte e cinco anos, ou seja, em 1941,
com Banda Forra, coletânea de ensaios humorísticos publicada às suas custas, elogiada na
época por Monteiro Lobato. Apesar disso, o livro passou completamente despercebido. Mais
de dez anos depois surgiu seu segundo livro, o romance Tribo (1954).
Por vontade expressa do autor, os dois primeiros trabalhos ficaram de fora da Obra
Reunida, publicada em 1995 pela editora José Olympio, com orelhas de Mário Prata, prefácio
de Jorge Amado e introdução de Carlos Felipe Moisés, três admiradores confessos do autor.
Desse volume fazem parte apenas os quatro romances que se seguiram ao de 54: A lua vem da
Ásia (1956), Vaca de nariz sutil (1961, escrito em quarenta dias), A chuva imóvel (1963) e O
púcaro búlgaro (1964, escrito no tempo recorde de vinte e dois dias), hoje considerados
verdadeiros marcos da literatura brasileira. A lua vem da Ásia e A chuva imóvel chegaram a
ser traduzidos para o francês. Esta publicação dos quatro títulos prediletos do autor em um
único volume, realizada 31 anos depois do seu último livro, fez valer a profecia de Ênio
Silveira, editor de seus primeiros livros: "Campos de Carvalho é um autor que só será
descoberto daqui a trinta anos".
Campos de Carvalho, como ficou conhecido no meio literário, considerava-se
anarquista e surrealista e não reescrevia nada. Ele também colaborou com O Pasquim e
trabalhou no jornal O Estado de S. Paulo, no período de 1968 a 1978. Suas principais obras
permaneceram na obscuridade durante décadas, virando raridades. Em 2006, foi lançado o
livro Cartas de viagens e outras crônicas, composta por cartas que o autor enviava a si
mesmo durante uma viagem à Europa e crônicas (originalmente publicadas n'O Pasquim) que,
de forma sempre original e bem-humorada, falam sobre a condição humana. Campos de
Carvalho também inspirou outros autores a escreverem, como Augusto de Guimaraens
Cavalcanti, que publicou o romance Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho em
2012, inspirado em O púcaro búlgaro, e Juva Batella, que, em 2005, publicou o estudo Quem
tem medo de Campos de Carvalho?, fruto de sua pesquisa de mestrado, onde analisa a obra do
autor:
https://pt.wikipedia.org/wiki/1938https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Lua_vem_da_%C3%81siahttps://pt.wikipedia.org/wiki/A_Chuva_Im%C3%B3velhttps://pt.wikipedia.org/wiki/O_Pasquim
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[...] sua escrita é escorreita e seu vocabulário, invulgar. Esta poética bem falante e
cheia dos aromas da "boa literatura" tem, no entanto, um fundo falso e uma carga
inflamável: a liberdade radical da criação, a crítica constante às verdades
estabelecidas e ao uso mediocrizante da linguagem, o humor como produção e
diluição da mesma e velha angústia de guerra: a boa e absurda condição humana
(BATELLA, 2004, p. 30).
Conforme aponta Guilherme Figueiredo na primeira edição de O púcaro búlgaro, o
autor quer ―desmontar e montar as engrenagens das palavras, das expressões, dos lugares-
comuns‖. Suas narrativas se utilizam de frequente metalinguagem para parodiar todo tipo de
discurso: o do artificialismo literário, o burocrático, o escolar, o científico. Abdicando da
lógica do senso-comum e da linearidade, as narrativas implodem suas próprias formas; o
nonsense procura apontar para a crise da linguagem e, novamente, para a arbitrariedade da
lógica dominante, afinal ―o sentido é uma entidade não existente, ele tem mesmo com o não
senso relações muito particulares‖ (DELEUZE, 1974, p. XV). O estranhamento sugere a
necessidade de se buscarem novas perspectivas. E a inércia irremediável dos personagens
aponta, ainda outra vez, para a inexistência de soluções possíveis. Campos de Carvalho é um
autor que resiste a significações, sua literatura é uma ―máquina de proporcionar experiências‖
(BATELLA, 2004, p. 42).
A originalidade do escritor, que torna difícil a tarefa de encaixá-lo num determinado
gênero, talvez explique a sua quase total ausência nos compêndios sobre a ―História da
Literatura Brasileira‖. Como nos fala Batella, num dos raros em que é citado, o historiador e
crítico de literatura Massaud Moisés nos dá esta pequena e reveladora biografia, onde é
possível perceber algumas questões que serão desenvolvidas neste estudo:
Campos de Carvalho é substancialmente revoltado: o desrespeito à
verossimilhança euclidiana, o truncamento dos planos temporais e espaciais, a
rejeição do sensato e do bem-comportado resultam, na óptica do romancista, dum
desejo palpável de violência, mas de violência edificante. Surrealismo agressivo,
irônico, desmonta os ajustes convencionais da ordem para instalar o caos
gerador dum mundo menos sufocante, menos espartilhado, onde a expansão do
“eu”, por intermédio de múltiplas e livres associações, não se confundisse com a
loucura: a aparência guarda seriedade, a seriedade inerente à sátira do tipo Elogio da
Loucura. De onde o clima surreal, de náusea, à Sartre, ou de disponibilidade dos
heróis gideanos, a irreverência causticante, tudo isso refletido na desconexão dos
capítulos em favor de liames dramáticos obedientes a uma lógica do absurdo; na
ausência ou diminuição da trama; no gosto dos paradoxos; e na linguagem
sincopada, que não se contém ante o palavrão, numa época em que ainda não estava
em moda fazê-lo (MOISÉS, 1996, p. 477, grifo meu).
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Três de seus romances foram levados para os palcos: em 2008, o grupo de teatro
paulistano Parlapatões adaptou Vaca de nariz sutil, e, no Rio de Janeiro, Aderbal Freire-Filho
encenou O púcaro búlgaro, em 2006, e, Moacir Chaves, A lua vem da Ásia, em 2011 - estes
dois últimos objetos de estudo deste trabalho.
Aderbal Freire-Filho trabalha com o conceito, por ele criado, de romance-em-cena,
que designa sua forma específica de encenar romances, que seria, em sua visão, um novo
gênero, uma fusão entre o dramático e o narrativo. Já Moacir Chaves, embora também tenha
encenado um romance sem adaptá-lo para uma literatura dramática, não parte desta
conceituação. Deste modo, embora ambos utilizem romances na cena - romances como texto
de seus espetáculos -, reservarei o termo romance-em-cena para designar as encenações de
Aderbal Freire-Filho.
A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro apresentam muitas semelhanças, sendo ambos
escritos em forma de diário em que os protagonistas registram seus dias. Esses dois romances
oferecem um campo de lacunas ao seu leitor – lacunas de que as encenações dos diretores
Moacir Chaves e Aderbal Freire-Filho tiraram partido de formas muito diversas, conforme
será visto neste estudo.
1.2 Devir-romance da cena
Para o filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista Félix Guatarri, devir é um vir a ser que
não tem termo de chegada, é um fluxo permanente, em contraposição à imitação, à
identificação, à semelhança. Um contágio que se dá por rizoma, uma desterritorialização em
relação ao modelo. Devir não é atingir uma forma, mas escapar dela. Devir é nunca imitar ou
agir, como tampouco é conformar-se a um modelo, ainda que seja o de justiça ou verdade.
Não existe um termo do qual partimos, nem um ao qual chegamos ou devemos chegar
(DELEUZE, 2012).
―O romance, em contraposição à existência em repouso na forma consumada dos
demais gêneros, aparece como um processo‖ (LUKÁCS, 2007, p. 72). O filósofo e historiador
literário húngaro Georg Lukács, em A teoria do romance, enuncia que o romance expressa o
desabrigo transcendental do homem moderno. É a escrita da era do indivíduo, da
desintegração subjetiva entre o eu e o mundo exterior. A completude do romance é imperfeita,
refletindo a fragmentariedade e problemática do mundo que espelha.
Para o filósofo russo e teórico da literatura Mikhail Bakhtin, o romance não possui
cânone; seu estilo é uma combinação de estilos. Sua originalidade estilística está justamente
https://pt.wikipedia.org/wiki/Vaca_de_Nariz_Sutilhttps://pt.wikipedia.org/wiki/O_P%C3%BAcaro_B%C3%BAlgarohttps://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Moacir_Chaves&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Lua_Vem_da_%C3%81sia
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na combinação destas unidades subordinadas, mas relativamente independentes. Sua
linguagem é um sistema de línguas. Para ele, o romance é o único gênero em constante
transformação5 pelo diálogo com o tempo presente: ―O romance é o único gênero por se
constituir, e ainda inacabado [...] O estudo dos outros gêneros é análogo ao estudo das
línguas mortas, o do romance pluriestilístico, plurilíngüe e plurivocal é como o estudo das
línguas vivas‖ (BAKHTIN, 2002, p. 397).
Sobre a escrita da literatura, diz Deleuze: ―Escrever é um caso de devir, sempre
inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É
um processo‖ (DELEUZE, 1997, p. 11). Forma em processo, em devir; fenômeno
pluriestilístico, plurilíngüe e plurivocal, em constante transformação. O romance traz em si
características de inacabamento que revelam sua disposição para incorporar mudanças ao
dialogar com todos os gêneros; desde seus primeiros estudos, o romance já se mostra um
lugar de constante invenção. Gênero aberto por definição, sempre em diálogo com sua época,
absorve seu tempo presente. Para o escritor Luiz Rufatto, através do diálogo com outras artes,
o romance problematiza seu espaço e explora novas formas pelo seu caráter onívoro, que
absorve ―a estrutura do conto, da poesia, do ensaio, da crônica, da oralidade...‖ (2008, p. 20).
Se o romance se renova porque integra outros campos artísticos a sua volta, ele
também possibilita transformações. Sua presença na cena teatral pode oferecer ao encenador a
imprevisibilidade de um texto que não foi escrito para a cena com a abertura de formas que o
caracteriza; para o processo criativo, novos problemas a serem investigados e, com isso, um
novo potencial de criação e originalidade. Corroborando este sentido, a opção de alguns
encenadores por textualidades narrativas está relacionada à libertação da própria dramaturgia
de seus indícios canônicos, pois a opção por encenar um texto não dramático provoca o
enfrentamento de modalidades estruturais e discursivas diversas da dramaturgia concebida
para o palco, promovendo uma revisão de padrões. Sobre este propósito de revitalização dos
conceitos, diz o dramaturgo e encenador espanhol José Sanches Sinisterra:
Eu percebia que não conseguia me libertar se certos cânones inamovíveis: por
exemplo, a noção de ação dramática, a noção de personagem e as noções de tempo e
espaço eram como que redutos inquestionáveis da teatralidade que eu não conseguia
transgredir em minha escritura. Então me propus o projeto de questionar em mim
mesmo essas pautas, esses padrões e essas matrizes - através da teatralização de
textos narrativos (2016, p. 10).
5 Se olharmos para a trajetória da literatura dramática ao longo de nossa história poderíamos também a incluir no
rol de gêneros abertos a mudanças.
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21
O teórico francês Jean Pierre Sarrazac, a partir da ideia de Deleuze-Guatarri, enuncia o
verbete devir cênico (2012, p. 66) para falar das virtualidades cênicas de uma obra a ser
transposta para o teatro, àquilo que, num texto que pode ou não ser dramático, demanda o
palco e, numa certa medida, reinventa-o. Interrogar-se sobre o devir cênico de um texto, sobre
a multiplicidade de suas linhas de fuga, é levar em conta seu grau de abertura: é uma criação
específica sobre o vazio que se inscreve no âmago do texto como um chamado ao palco. E
reforça sua argumentação citando seu mestre, Bernard Dort, para quem
os maiores textos de teatro, os que suscitaram, através das era, o máximo de
interpretações cênicas, e as mais diferentes entre si, são [...] aqueles que, à leitura,
nos parecem os mais problemáticos [...] um texto fechado em si mesmo, que
contém expressamente uma resposta às perguntas nele formuladas, tem poucas
possibilidades de um dia vir a ser montado [...] Em contrapartida, um texto aberto,
que não responde às perguntas senão com novas perguntas e que toma
deliberadamente o partido de seu próprio inacabamento, tem todas as
possibilidades de perdurar (DORT apud SARRAZAC, 2012, p. 68, grifo meu).
No mesmo sentido exposto por Dort, também este estudo aposta e investiga a
capacidade de um texto ―problemático‖ contribuir para renovação da cena teatral através de
sua extrema singularidade, possibilitando, com seus problemas e perguntas originais, também
na mesma medida, respostas e encenações originais. E o romance, aberto e inacabado por
natureza, parece ser no palco este texto problemático que teria em si essa ―multiplicidade de
linhas de fuga‖ de que fala Sarrazac - que também chama à atenção para o fato de que esse
texto que reinventa a cena ―pode ou não ser dramático‖. Entretanto, se por um lado o romance
traz essas virtualidades cênicas com força, por outro, sua encenação, como qualquer outra,
não prescindirá de investigação, ou melhor, até pelo contrário, suas infinitas possibilidades só
se darão no encontro com a cena e com artistas dispostos a investigá-las. Como esclarece o
diretor Aderbal Freire-Filho:
[...] você pode montar um texto de uma forma que seja profundamente teatral,
usando aquela literatura como fonte, e pode montar esse mesmo texto sem passar da
literatura, deixando que aquele texto continue no livro em que ele está, que ele seja
só uma declamação; transformar em oralidade o que é escrito, mas continuar com o
mesmo caráter de literatura, não receber o sopro do palco, da cena, do vivo, do que
está acontecendo naquele momento, que é o teatro (apud FREITAS, 2012, p. 31).
Conforme concebido pelo diretor Aderbal Freire-Filho, o romance-em-cena trabalha
com certos ―princípios‖ ou determinados modus operandi que resultam em uma encenação
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com alto grau de performatividade dos atores. O romance-em-cena é a encenação de
romances colocados integralmente na cena, sem nenhum tipo de tratamento literário,
respeitando a exata forma como escritos. Esse procedimento resulta numa poética singular e
num teatro de caráter narrativo e performativo, tendo o ator como eixo principal da
comunicação dessa textualidade para o espectador, conforme descrito no livro Narrativas em
Cena, por Juarez Guimarães Dias (2015). Também em A lua vem da Ásia não houve qualquer
tentativa de transformar o romance numa literatura dramática; a forma de compreender o
romance como texto teatral teve na performatividade seu elemento determinante - como
costuma ser, aliás, recorrente nos espetáculos dirigidos por Moacir Chaves. Deste modo, a
dramaturgia cênica é resultante de um processo que parece não poder prescindir do jogo da
cena para descobrir e afirmar suas escolhas.
Assim, se em O púcaro búlgaro os textos são, em grande parte, narrados em terceira
pessoa e, em A lua vem da Ásia, eles são narrados em primeira, em ambos não há diálogos -
essa textualidade é passada ao espectador pelo ator, seu principal eixo de comunicação, o que
acentua o caráter performativo da encenação – uma coisa decorrendo e demandando a outra.
Em outras palavras, e este é um dos pontos que tentaremos investigar, a dramaturgia cênica e
a possibilidade de um romance ser bem-sucedido na cena, ao menos nos casos aqui estudados,
parecem estar ligadas ao caráter performativo da cena, ao que o jogo cênico do ator permite
expor daquela linguagem.
Além da performance do ator na cena, a própria linguagem da narrativa traz em si uma
performatividade que demanda um modo de contar que valorize os efeitos da linguagem
literária, que será sobrescrita pela performance do ator. Assim, há já um caráter performativo
evidenciado na oralização do texto literário, como assinala o linguista Paul Zumthor, para
quem toda literatura oralmente transmitida já traz uma performatividade, pois a performance
―designa um ato de comunicação como tal; refere-se a um momento tomado como presente. A
palavra significa a presença concreta de participantes implicados nesse ato da maneira
imediata‖ (ZUMTHOR, 2007, p. 50).
Por outro lado, Campos de Carvalho já reinventa o romance moderno no sentido da
criação de um mundo real imaginado, ou, melhor seria dizer, criando mundos, simplesmente,
já que ―não há mais uma separação radical entre ‗linguagem‘ e ‗mundo‘, porque o que
consideramos a ‗realidade‘ é constituído exatamente pela linguagem que adquirimos e
empregamos‖ (SOUZA FILHO in AUSTIN, 1990, p. 10, prefácio). Sua literatura
idiossincrática já nasceu sobretudo influenciada pela libertação da linguagem operada pelo
modernismo, cuja carga de oralidade, de jogo de palavras, de sonoridades, postam em relevo
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o apelo tridimensional da linguagem escrita. Assim, encontramos diferentes camadas de
performatividade: além do aspecto performativo que pode ser entendido como característico
de toda narrativa oral, a maneira como o romance é levado para a cena, evidenciando a si
próprio como romance, fortalece ainda mais a percepção deste caráter de performance
presente na encenação e na atuação, conforme se verá mais adiante, e, ao mesmo tempo, o
texto de Campos de Carvalho levado à cena da exata forma como escrito permite que se
evidencie suas próprias qualidades sonoras/performativas.
Daí o maior interesse em pensar a presença de um romance na cena teatral a partir
desses dois diferentes espetáculos de teatro, que encenam materiais literários bastante
desafiadores à leitura, e, apesar de partirem de romances de um mesmo autor e semelhantes
entre si, resultaram em criações tão diversas. O encontro da literatura de Campos de Carvalho
com o teatro dos diretores Aderbal Freire-Filho e Moacir Chaves resultou em espetáculos que
causam estranhamento, ao mesmo tempo em que abrem espaços de ―entre‖ que convidam os
espectadores à imaginação ativa - suas transposições ao palco obrigaram a criações
completamente originais. Como diz a pesquisadora argentina especialista em literatura,
Florencia Garramuño, em seu livro Frutos Estranhos, na aposta no entrecruzamento e na
interdisciplinaridade, é possível observar uma expansão das linguagens artísticas que
desborda os muros e barreiras de contenção (2014, p. 15).
A chegada do romance à cena teatral contemporânea só será possível pelo fim das
ontologias que delimitam fronteiras e evidenciam uma cena expandida. O romance, na cena,
deixa de ser romance para ser um elemento do teatro ao mesmo tempo em que,
paradoxalmente, continua sendo romance. No processo em que há a encenação do próprio
romance enquanto tal, e não uma adaptação, há um tensionamento de linguagens pelo qual a
estrutura do romance fica exposta, como objeto. Objeto este que problematiza a si próprio e a
cena em que se encontra com sua presença não convencional (no sentido tradicional do teatro
visto como espaço do texto dialogado, da fábula que expõe e soluciona um conflito etc.). Este
teatro resulta anômalo, no sentido deleuziano:
―a-nomalia‖, substantivo grego que perdeu seu adjetivo, designa o desigual, o
rugoso, a aspereza, a ponta de desterritorialização. O anormal só pode definir-se em
função das características, específicas ou genéricas, mas o anômalo é uma posição
ou um conjunto de posições em relação a uma multiplicidade (DELEUZE-
GUATTARI, 2012, p. 26).
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Deste modo, se podemos entender que, se por um lado são as próprias palavras do
romance que lá estão tal qual escritas, sem qualquer tentativa de dramatização da narrativa,
por outro, estando o romance neste lugar a ele estranho - a cena teatral -, ele deixaria de ser
romance para atuar como ―literatura dramática‖, apesar de, ao mesmo tempo, continuar a sê-
lo sob o ponto de vista da manutenção de suas palavras e estruturas narrativas originais, que
será examinado mais adiante. Assim, a estrutura do romance está mantida, mas ela se encontra
em diálogo com toda uma estrutura teatral – desterritorializada de seu lugar de romance e
colocada na cena teatral, encontrando-se num ―entre‖.
Comentando o hibridismo da cena contemporânea e de um campo expansivo – com
suas explosões internas e ampliações do transbordamento de limites, Garramuño nos fala do
desmantelamento de todo tipo de ideia do próprio, tanto no sentido do idêntico a si mesmo
como no sentido de limpo ou puro, mas também no sentido do próprio como aquela
característica que diferencia uma espécie da outra (2014, p. 85). Assim ela aponta o que
chamou de ―fruto estranho‖ como algo inespecífico, resultado do entrecruzamento de
fronteiras, que não pertence nem pode ser reconhecido na espécie:
Frutos estranhos e inesperados, difíceis de ser categorizados e definidos, que, nas
suas apostas por meios e formas diversas, misturas e combinações inesperadas,
saltos e fragmentos soltos, marcas e desenquadramentos de origem, de gêneros – em
todos os sentidos do termo – e disciplinas, parecem compartilhar um mesmo
desconforto em face de qualquer definição especifica ou categoria de pertencimento
em que instalar-se. Nem num local nem noutro, nem de um lugar nem de outro...
(2014, p. 8).
Essa desapropriação da especificidade, que se caracteriza pela aposta no inespecífico
através de práticas de não pertencimento, propõe novos modos de organizar nossos relatos
(GARRAMUÑO, 2014, p. 29); essas práticas, na articulação entre literatura e teatro,
resultaram nos espetáculos A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro. As apropriações dos
romances de Campos de Carvalho pelos diretores Aderbal Freire-Filho e Moacir Chaves são
radicalmente teatrais e, também, radicalmente literárias, e, paradoxalmente, por isso mesmo,
anti-textocêntricas6, pois tomam o texto na materialidade da sua palavra.
6 O termo textocentrismo ganha um novo sentido com a modernidade. Neste momento histórico, o termo passa a
dizer respeito à operação moderna de se procurar e atribuir um sentido profundo ao texto dramático, sentido esse
que guiará a encenação. Esta, então, será pautada por uma hermenêutica do texto para a revelação de suas
estruturas - operação essa bastante diversa da ideia de devir cênico. A encenação moderna trabalha com o que se
supõe serem as virtualidades do texto dramático, suas múltiplas possibilidades, escolhendo-se entre elas uma
para espinha dorsal e eixo de sentido da cena.
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Assim, o romance na cena teatral abre espaço para um campo vasto de criações e
experimentações cênicas que ampliam as formas do fazer teatral, pois seu caráter de
inacabamento e de fenômeno pluriestilístico, plurilíngüe e plurivocal abre vazios que
convidam às multiplicidades das reinvenções no palco. Reinvenções, essas, em conformidade
com a ideia de devir cênico, de Sarrazac, que se manifesta por um trabalho de interfaces, pelo
deslizamento de uma matéria para outra, de modo que o texto se liga ao seu ―Outro‖ exterior e
estrangeiro: a cena. Deste modo, o romance e a cena acolhem o próprio do outro: a cena é
receptiva ao que lhe é estranho, o romance se torna teatro, devir-teatro.
1.3 Os gêneros literários e a cena – dramático, épico, pós-dramático
Como é possível perceber pelos próprios objetos desta pesquisa, contemporaneamente
a cena teatral recebe textos de diferentes naturezas. Mas se é possível falar da hibridização da
cena, é porque determinadas fronteiras foram borradas. Assim, para situar os gêneros
literários e seus aspectos mais visíveis, recorrerei à clássica explanação do crítico e teórico de
teatro Anatol Rosenfeld (2011) em A Teoria dos Gêneros.
Rosenfeld relembra que a classificação de obras literárias segundo gêneros tem sua
raiz na República, de Platão, que coincide aproximadamente com a Poética, de Aristóteles. Os
três gêneros definidos na Poética são o dramático, épico e um terceiro, que pode ser
aproximado ao lírico. Entretanto, ele salienta, também, que, como qualquer conceituação
científica, essa divisão é artificial e que não existe ―pureza de gêneros‖. Deste modo,
Rosenfeld sugere duas acepções diferentes dos gêneros: uma acepção substantiva e outra
adjetiva. Na substantiva, associada à estrutura, a ―Lírica‖ representa um poema de extensão
menor em que uma voz central – um ―eu‖ e não um personagem – exprime um estado de
alma. Na ―Épica‖ um narrador apresenta personagens envolvidos em situações e na
―Dramática‖ os próprios personagens atuam, numa obra dialogada. A outra acepção, adjetiva,
refere-se a traços estilísticos de uma obra, independentemente do gênero em que se enquadre -
embora a predominância dos traços estilísticos tenda a ser a mesma que caracteriza a estrutura
do gênero, ou seja, um drama normalmente tende ao dramático, um poema lírico ao lírico e a
épica ao épico. Mas, lembra ele, toda obra literária contem também traços típicos dos outros
gêneros (2011).
Assim, se a forma lírica trata de um ―eu‖, a dramática se configura pelo embate de
pelo menos duas vozes, pelo embate entre ―eus‖: diálogo é logos partido, fragmentado.
Entretanto, segundo Bakhtin, o romance, como nenhuma outra literatura, expressa a
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pluralidade de vozes do mundo inacabado de um sujeito fragmentado; o nascimento do
romance se dá na Modernidade, o que se reflete em sua estrutura: ele é em si uma combinação
heterogênea das formas épica, lírica e dramática. Para o linguista russo, portanto, o romance,
mais do que um exemplo do gênero épico, seria um gênero em si, ao contrário de Rosenfeld,
que exemplifica o gênero épico justamente com o romance, embora, conforme já dito, ele
enfatize a não pureza de gêneros. Bakhtin explica o porquê deste seu posicionamento: o
romance pode ser decomposto em unidades estilísticas heterogêneas, que compõem o seu
sistema literário; estando cada unidade submetida à unidade estilística superior do conjunto,
não podendo ser identificado isoladamente com nenhuma das unidades subordinadas a ele.
Por isso, sobre a análise romanesca, ele chama à atenção para o fato de que na maioria dos
casos o estilo do romance é reduzido ao conceito de "estilo épico" e lhe são aplicadas as
categorias correspondentes da estilística tradicional. Com isso, apenas os elementos da
representação épica são destacados – de preferência no discurso direto do autor. Ignora-se,
assim, a profunda distinção entre a representação puramente épica e a representação
romanesca.
Do mesmo modo, continua Bakhtin, também seria inadequado destacar os elementos
puramente dramáticos do romance – os diálogos -, reduzindo-se o elemento narrativo à
simples indicação cênica para os diálogos dos personagens. O sistema de linguagens do drama
original é organizado, em princípio, de maneira diferente e, por isso, tais linguagens ressoam
completamente diferentes dentro do romance. Todos esses tipos de análise são inadequados
para o estilo, não só do conjunto romanesco, mas também daquele elemento que é destacado
como fundamental para o romance, pois, excluído da sua interação recíproca, tal elemento
perde o seu sentido estilístico e deixa de ser o que ele realmente era no romance. Assim, as
partes quase autônomas se articulam a um todo que mostra as partes e os vazios entre elas –
como num mosaico barroco. O intuito do presente estudo não é definir se o romance funda
um novo gênero ou pertence à épica, mas parece fundamental chamar a atenção para a riqueza
estilística do romance, pois, justamente, esta é uma das características que possibilita
experimentações tão ricas quanto as dos espetáculos aqui estudados.
Voltando à classificação explanada por Rosenfeld, o texto dramático, aquele em que
os próprios personagens atuam numa obra dialogada, é o texto escrito especificamente para
ser encenado. Entretanto, no século XVIII, a literatura dramática atinge o ápice da sua
―dramaticidade‖, ela se torna uma leitura radicalizada do drama aristotélico e, por volta do
século XIX, em resposta às novas relações que o homem passa a manter com a sociedade, este
drama clássico entra em crise. Essa crise é a dos elementos que compõem o drama: crise da
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fábula, do diálogo, da personagem. Assim, empurrada pelo marxismo e pela psicanálise, a
forma dramática – na tradição aristotélico-hegeliana de um conflito interpessoal resolvendo-se
com uma catástrofe – começa a ruir (SARRAZAC, 2012, p. 23).
Cabe aqui fazer um parêntesis para observar que, de um ponto de vista histórico, o
aristotelismo mostra seu esgotamento com a crise moderna da mimese, por volta dos séculos
XIX-XX. Porém, toda vez que nos deparamos com exigências de verossimilhança, podemos
perceber que a hegemonia é resistente - o edifício não ruiu completamente, ele convive
conosco das mais variadas formas. A dramaturgia clássica se tornou uma expressão que
designa um tipo de construção dramática e de representação do mundo. Essas regras que
compõem este tipo formal de construção dramática, provenientes do século XVII, entendem o
drama como acontecimento interpessoal no presente, com a ideia de unidade de tempo, lugar
e ação, na busca de uma representação verossímil. A ação deveria estar limitada a um
acontecimento principal para o qual tudo deveria convergir para a resolução do nó do seu
conflito (PAVIS, 2008, p. 115).
Desde seus primórdios, o teatro é composto de elementos épicos e dramáticos, mas, no
século XIX, após a eliminação do coro, prólogo e epílogo, o diálogo se tornou praticamente o
único componente do tecido dramático, reproduzindo linguisticamente as relações inter-
humanas, distinguindo-se, portanto, da tragédia grega, dos mistérios medievais, do teatro
barroco e das peças históricas de Shakespeare. Para analisar este fenômeno, o teórico húngaro
Peter Szondi cunhou o termo ―drama absoluto‖ em seu clássico livro Teoria do Drama
Moderno (2011). Partindo da dicotomia entre forma e conteúdo de Hegel, Szondi revela a
insuficiência do diálogo como único veículo das relações humanas e expõe como a crise deste
modelo resultará no drama moderno, que se abre para procedimentos épicos.
Como parte de um amplo processo de mudança, as velhas identidades que sustentavam
e davam estabilidade ao mundo social e unicidade ao sujeito, entraram em declínio, separando
e fragmentando o indivíduo e questionando sua capacidade de agir, embaralhando, assim, as
noções de sujeito e objeto, sustentáculo do drama clássico. A síntese dialética do objetivo (o
épico) e o subjetivo (o lírico) operada no estilo dramático – interioridade exteriorizada,
exterioridade interiorizada – não é mais possível. Deste modo, aponta Szondi, as obras
produzidas na época moderna (a partir do fim do século XIX), ainda sob a égide da
dramaturgia clássica, possuem uma antinomia interna, ou seja, os enunciados da forma
clássica entram em contradição com o conteúdo de sua época por sua incompatibilidade.
Perdendo seu sustentáculo histórico-social, o drama começa a ver elementos estranhos ao seu
rigor introduzidos em seu tecido dramático – mais especificamente, elementos épicos.
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Apesar da valiosa análise, é importante ressaltar que, ao contrário do que considerava
Szondi naquela época, hoje não parece razoável falar em linha evolutiva. Para ele, este
processo de crise da forma dramática é mesmo inevitável e a forma épica seria uma espécie de
superação do drama, como bem observa Sarrazac, quando diz que ―para Szondi, a crise se
explica por uma espécie de luta histórica em que o Novo, a saber, o épico, deve no fim
triunfar sobre o Antigo, isto é, o dramático‖ (2012, p. 24). Tanto isso parece ser verdadeiro
para Szondi que, em seu livro Teoria do Drama Moderno, ele aborda grandes dramaturgos da
virada do século como se fossem ―meros grandes experimentadores‖, como se traços épicos
numa dramaturgia preponderantemente dramática fosse uma espécie de defeito.
Também é interessante observar que os elementos ―problemáticos‖ das peças que se
situam entre o ―Novo‖ épico e ―Antigo‖ dramático são todos comuns ao romance – e cada vez
mais frequentes na dramaturgia contemporânea. Assim, a crescente epicização dos dramas
modernos pode ser vista em Strindberg, quando se inicia a ―dramaturgia do eu‖, um tipo de
autobiografia que coincide com a teoria do romance psicológico. A dramaturgia de
Hauptmann é construída por uma variedade de situações épicas (revue, exposição, relato,
descrição). Maeterlinck não desenvolve uma ação, mas uma situação. As personagens de
Tchekhov se negam ao presente, vivendo num passado nostálgico e/ou num futuro utópico,
negando-se à ação atual e ao diálogo, proferem grandes monólogos líricos e épicos. E, em
Ibsen, o presente é mera ocasião para evocar o passado – ―o que seria adequado a um
romance”, diz Szondi, mas não à atualidade dramática.
Para Bakhtin, os gêneros ―romancizados‖ colocaram a teoria dos gêneros em xeque.
Ele observa que em todas as épocas clássicas de seu desenvolvimento, os gêneros conservam
sua estabilidade e seu cânone; a teoria dos gêneros acabados não adicionou quase nada de
substancial ao que já fora feito por Aristóteles; não obstante as diferentes interpretações sobre
sua Poética, ela tornou-se o fundamento essencial da teoria dos gêneros – até o advento do
romance. Deste modo, o que Szondi chama crescente epicização, este estudo opta por
nomear como o fenômeno da romancização, conforme já pensado por Bakhtin nos anos 30,
em escritos só publicados em 1975, ano de sua morte:
Certamente, não se pode explicar o fenômeno da ―romancização‖ somente pela
influência direta e espontânea do próprio romance em si [...] Mesmo onde
semelhante influência possa ser constatada e prontamente demonstrada, ela se
entrelaça indissoluvelmente com a ação direta das transformações da própria
realidade, que determinam também o romance [...] O romance é o único gênero em
evolução, por isso ele reflete mais profundamente, mais substancialmente, mais
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sensivelmente e mais rapidamente a evolução da própria realidade. Somente o que
evolui pode compreender a evolução [...] ele contribui para a renovação de todos os
outros gêneros, ele os contaminou e contamina por meio da sua evolução e pelo seu
próprio inacabamento (2002, p. 400).
Claro que Bakhtin escreve como um pesquisador e estudioso da literatura, e exprime
uma opinião que enxerga a arte a partir deste recorte ao dizer que ―o romance é o único
gênero em evolução‖. Embora, também o teórico e crítico de teatro brasileiro Décio de
Almeida Prado (1968), em A personagem de ficção, ao comparar o romance à literatura
dramática, observe nesta última uma tendência a se cristalizar em torno de fórmulas (como as
três unidades, por exemplo), diferentemente da fluidez, liberdade e ausência de regras que
desde sempre vigoraram no romance. Por outro lado, o próprio Bakhtin reconhece que não se
pode explicar o fenômeno da ―romancização‖ somente pela influência direta e espontânea do
próprio romance em si. Desde a antiguidade grega já se encontravam peças de teatro com
elementos épicos, e essas peças, que não se enquadram nesta acepção estreita de drama
absoluto, continuaram e existir em todas as épocas e lugares, nas mais variadas formas (teatro
de feira, teatro de revista, teatro oriental etc.). Entretanto, em consonância com Bakhtin, esta
pesquisa, partindo dos espetáculos que são seu objeto de estudo, também pretende investigar
como o romance pode contribuir para a renovação libertadora de outros gêneros –
especificamente, o teatro.
Em muito semelhante ao romance, é o conceito formulado por Sarrazac de
dramaturgia rapsódica, que gera um texto híbrido, ―mosaico das línguas e discursos‖, um
terceiro caminho que é um
caleidoscópio dos modos dramático, épico, lírico, inversão constante do alto e do
baixo, do trágico e do cômico, colagem de formas teatrais e extrateatrais, formando
o mosaico de uma escrita em montagem dinâmica, investida de uma voz narradora e
questionadora, desdobramento de uma subjetividade alternadamente dramática e
épica (ou visionária) (SARRAZAC, 2012, pp. 152-153).
Partindo da consciência da perda do vínculo entre o homem e o mundo, o dramaturgo-
rapsodo trabalha com o retalhamento dos enunciados formais resultando numa dramaturgia da
fragmentação. O resultado é uma dramaturgia híbrida, ligada ao domínio do épico e a
procedimentos de montagem, colagem e coralidade. A intervenção das demais artes vem
participar do que o autor nomeia pulsão rapsódica, que trabalha a forma dramática
impulsionando-a à permanente renovação e emancipação em relação à norma, à regularidade,
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à homogeneidade, à assimilação de elementos díspares que também concernem aos grandes
modos de expressão como o dramático, o épico, o lírico, o argumentativo e, além disso, a
combinação do cômico, do trágico, do patético ou ainda a inclusão da oralidade na escritura.
Com a noção de rapsódia, Sarrazac tenta dar conta da precipitação das escrituras dramáticas
para uma forma mais livre: ―O teatro, o drama que aspira a tornar-se – para repetir o
qualificativo que Bakhtin atribui ao romance mas recusa, talvez erradamente, à forma
dramática – ‗não canônico por excelência‘‖ (SARRAZAC, 2012, pp. 32-33).
Curioso observar que, apesar de Sarrazac enaltecer uma dramaturgia rapsódica, que
costura elementos líricos e épicos e/ou dramáticos, ele insiste na denominação drama; para
ele, da mesma forma como o teatro se emancipou do drama no seu sentido absoluto, o drama
(no sentido de obra literária escrita para ser encenada) poderia se libertar dos cânones que o
aprisionam à sua clássica noção de gênero. Daí Sarrazac trabalhar com uma noção de não
rompimento entre o drama moderno e o contemporâneo. Em seu livro Léxico do Drama
Moderno e Contemporâneo, Sarrazac fornece uma concepção ampliada de conceitos
elementares do drama clássico, pois acredita que tais termos não devem ser escravos de uma
concepção aristotélica, sugerindo, então, uma mudança de paradigma do drama. Assim, o que
se dá é, segundo ele, uma crise do drama moderno e seus elementos entendidos no horizonte
do drama absoluto, fazendo eclodir novas configurações. Ele decompõe, então, a crise da
forma dramática clássica na crise de seus principais elementos, que, segundo ele, podem ser
reduzidos aos seguintes: crise da fábula, que traz déficit e pulverização da ação, fazendo
eclodir as atuais dramaturgias do fragmento, do material, do discurso. Crise do personagem,
que dá lugar à Figura, à Voz. Crise do diálogo, com conflitos inscritos no próprio âmbito da
linguagem, da fala. E, consequentemente, crise da relação palco-plateia.
Se Sarrazac tenta conservar a ideia de drama, o teórico alemão Hans-Thies Lehmann,
com sua obra O teatro pós-dramático, vem para demoli-la; para ele, há um teatro que não se
baseia de modo algum no drama e nem pode ser compreendido com o vocabulário épico. O
pós-dramático reúne práticas múltiplas cujo ponto em comum é considerar ação, personagem,
colisão dramática ou dialética não são necessárias para produzir teatro. Neste sentido, não
reconhece a tradicional oposição entre dramático e épico, pois vê neste último uma renovação
dentro da forma dramática, já que o épico também traz a representação de um cosmo fictício.
O pós-dramático seria pós-brechtiano, no sentido de que está situado em um espaço aberto
pelas questões brechtianas sobre a presença e a consciência do processo de representação no
que é apresentado e sobre uma nova ―arte de assistir‖, mas, no entanto, deixa para trás o estilo
político, a tendência à dogmatização e a ênfase do racional, posicionando-se em um período
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posterior à validade autoritária do projeto teatral de Brecht. Para ele, o reconhecimento do
teatro pós-dramático tem início com a constatação da emancipação recíproca e a dissociação
entre drama e teatro (2007, p. 51).
O teatro já não aspira à totalidade de uma composição estética feita de palavra,
sentido, som, gesto etc., que se oferece à percepção como construção integral; antes,
assume seu caráter de fragmento e parcialidade. Ele abdica do critério da unidade e
síntese, há tanto tempo inquestionável, e se dispõe à oportunidade (ou ao perigo) de
confiar em estímulos isolados, pedaços e microestruturas de texto para se tornar um
novo tipo de prática. Desse modo, ele descobre uma nova presença do performer a
partir de uma mutação do ator e estabelece a paisagem teatral multiforme, para além
das formas centralizadas do drama (Lehmann, 2007, p. 92).
Apesar da enorme importância da obra de Lehmann, do mesmo modo que foi
observado, no caso de Szondi, a ideia de um ―novo‖ que vem substituir um ―antigo‖, também
ele parece aderir a uma historiografia linear, ao nomear de forma homogênea como pré-
dramático as diferentes manifestações teatrais que antecedem o século XVII, quando teria tido
início o drama; finalmente, a partir do final do século XX, teria surgido o teatro pós-
dramático, como única forma possível de expressar nossa contemporaneidade.
Para Lehmann, o teatro deve abandonar qualquer intenção mimética para ser uma
força de oposição à presença das mídias que se apropriaram e banalizaram a forma dramática.
Já o teórico norte-americano Marvin Carlson considera que não é suficiente dizer que o
―inimigo‖ do pós-dramático é a representação, mas, sim, a estabilidade do mimético
(CARLSON, 2015). Em contraposição à tentação de declarar a morte do drama, Sarrazac
aponta que existe atualmente ―uma tendência em pôr em pane a dialética de um presente
aberto ao passado e ao futuro e, a ele, preferir uma concepção abusiva da contemporaneidade:
erigir esta contemporaneidade como um valor em si, que se substitui pela antiga noção de
‗vanguarda‘‖ (SARRAZAC, 2010, p. 2).
Por outro lado, O teatro pós-dramático enumera alguns aspectos recorrentes de um
determinado fazer teatral, não dramático, que pode ser útil também para o pensamento do
romance na cena, já que com ele guarda semelhanças pelo seu caráter narrativo e que
prescinde dos elementos balizadores do drama, como pode-se observar na fala da
pesquisadora Silvia Fernandes:
A dramaturgia pós-dramática pode ser considerada uma das etapas mais recentes do
texto teatral narrativo. Hans-Thies Lehmann, que cunhou o termo ao analisar as
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peças de Heiner Muller, observa que, no limite, essa dramaturgia prescinde do
conflito, do diálogo, da personagem e da ação. De fato, o leitor ou o espectador de
Muller percebe em seus textos mais radicais um processo de desdramatização levado
ao extremo (2010, p. 155).
Entretanto, se essas características de desdramatização, de fato, tornaram-se mais
frequentes, por outro lado não são exclusividade de nossa atualidade, e algumas podem ser
inferidas, por exemplo, na fala, aqui citada, de Bakhtin, sobre romancização do drama.
Também Sarrazac utiliza o termo cunhado pelo linguista russo para se referir aos dramaturgos
que "desdramatizam a escrita dos diálogos; transformam o tempo em duração, a ação em
estado psicológico, o acontecimento em narrativa, o lugar em paisagem, o protagonista em
ponto de vista sobre o mundo" (SARRAZAC, 2012, p. 168). Porém, ressalta logo em seguida,
apesar do romance ajudar na renovação da forma dramática, esta relação não é unilateral, mas
baseia-se na interação recíproca das escritas.
Assim, parece possível afirmar que não se trata de linha evolutiva; características
dramáticas, épicas ou "pós-dramáticas" (o próprio termo já parece fazer referência a uma
historiografia evolutiva) compõe a dramaturgia do teatro na contemporaneidade, feita de
textos previamente escritos ou não, apesar das variedades de nomes que recebem. O alemão
Heiner Muller, dramaturgo exemplar do pós-dramático para Lehmann, diz "um drama é o que
chamo um drama"7. O texto de teatro se alargou: o drama está misturado ao épico, ao lírico,
ao diálogo filosófico, ao documento, ao testemunho - não se trata de superação, no sentido
hegeliano-marxista, mas de transbordamento para formas mais livres.
1.4 Personagem e narratividade na cena
Com relação ao texto escrito, segundo Anatol Rosenfeld, sua estrutura, quer ele seja
ficcional ou não, de valor estético ou não, compõe-se de uma série de planos, dos quais o
único real, sensivelmente dado, é o dos sinais tipográficos impressos no papel. Esses sinais
constituem as orações e estas, por sua vez, apesar de serem naturalmente descontínuas como
fotogramas de uma fita de cinema, apresentam-se como um contínuo. Esse efeito de
continuidade se dá porque esse aspecto de incompletude solicita o preenchimento
concretizador. Outras camadas que necessitam da atividade concretizadora e atualizadora do
apreciador do texto são os fonemas e as configurações sonoras (orações), ―percebidas‖ apenas
pelo ouvinte interior, quando se lê o texto, mas diretamente dadas quando o texto é recitado; a
7 Esta citação de Heiner Muller está na epígrafe do livro Poética do drama moderno, de Jean-Pierre Sarrazac
(2017).
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das unidades significativas de vários graus, constituídas pelas orações, que sempre
apresentarão vastas regiões indeterminadas, porque o número das orações é finito. O que não
quer dizer, no sentido inverso, que uma atividade atualizadora como a representação teatral
não tenha zonas indeterminadas – sim, elas continuarão a existir. Mas a teatralização traz um
aspecto ―sensível‖ e contínuo, dando extraordinário poder às personagens teatrais (1968).
Zumthor, para quem toda literatura é fundamentalmente teatro, já que todo ato de
leitura tende – é potencialmente – ao teatro, pois a palavra pode ―jogar‖ em cena
(performance) ou no interior de um corpo e de um espírito (leitura), aponta a importância
deste movimento do texto escrito, que tem suas letras fixadas num papel (ou noutro suporte)
em direção à leitura dos atores e diretor (e demais artistas da equipe) até sua chegada ao
palco:
Há séculos, com efeito (a partir, sem dúvida, da Antiguidade helênica), o texto
teatral procede de uma escritura, enquanto sua transmissão requer a voz, o gesto e o
cenário; e sua percepção, escuta, visão e identificação das circunstâncias. Escrito, o
texto é fixado, mas a interpretação permanece entregue à iniciativa do diretor, e mais
ainda, à liberdade controlada dos atores, de sorte que sua variação se manifesta, em
última análise, pela maneira como é levado em conta por um corpo individual
(ZUMTHOR 2007, pp. 61-62).
O advento da imprensa criou esta clivagem entre o ouvinte e o falante, co-presentes na
cultura oral, com intervenções do primeiro, corporeidade e viva voz em ambos. A atualização
do texto se dá por esta corporeidade, que é posta nas entrelinhas e vazios entre palavras, no
texto impresso, seja teatro ou romance. Assim, quando o romance vai para a cena, caberá aos
atores interpretar o