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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica Jonathan Alves Ferreira de Sousa A PARTE ETERNA DA MENTE E O CAMINHO PARA A BEATITUDE Rio de Janeiro 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica

Jonathan Alves Ferreira de Sousa

A PARTE ETERNA DA MENTE E O CAMINHO PARA A BEATITUDE

Rio de Janeiro

2019

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Jonathan Alves Ferreira de Sousa

A PARTE ETERNA DA MENTE E O CAMINHO PARA A BEATITUDE

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Ulysses Pinheiro

Rio de Janeiro

2019

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Agradecimentos

À minha amada esposa, Diva Sousa, por seu apoio e força durante o percurso deste

trabalho;

À minha adorada mãe, Maria Luiza, que nunca desistiu de mim e sempre me

apoiou em todos os meus projetos;

Ao Ulysses Pinheiro, por sua excelente e cuidadosa orientação e palavras de

incentivo;

À CAPES, pela bolsa de estudos;

Aos professores Marcos Gleizer e Nastassja Pugliese, por aceitarem participar da

banca de Qualificação e de Defesa, cujos comentários, sugestões e críticas foram

importantíssimos para a melhora substancial deste trabalho;

À querida amiga, Daniele Pacheco, por nossas conversas de incentivo mútuo;

Aos meus filhos, Victor e Ana Clara, por deixar o papai estudar quando preciso.

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Entrem pela porta estreita pois larga é a porta e

amplo o caminho que leva à perdição, e são muitos

os que entram por ela. Como é estreita a porta, e

apertado o caminho que leva à vida! São poucos os

que a encontram.

Mateus 7.13-14

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RESUMO

SOUSA, Jonathan Alves Ferreira de. A PARTE ETERNA DA MENTE E O CAMINHO PARA A BEATITUDE / Jonathan Alves Ferreira de Sousa. Rio de Janeiro, 2019. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

Na segunda seção da parte 5 da Ética, Spinoza, parece abandonar o conceito de

paralelismo entre mente e corpo. A partir da proposição 21, ele irá apresentar o que pode

ser considerado como o caminho principal para que o homem conquiste a beatitude. Ele

deixa de lado as questões relacionadas aos “remédios para as afecções”, para, então, se

deter no que chamarei de um ato racional reflexivo. Nosso caminho irá percorrer uma

breve investigação da ontologia spinozana, que mostra que Deus é uma substância

simples expressa por atributos distintos dos quais derivam os seres singulares, dentre os

quais o homem, como modos destes atributos. Em seguida, trataremos da relação

existente entre mente e corpo no homem. Passaremos, por fim, a tratar da parte eterna da

mente e como ela será fundamental no caminho para a beatitude, liberdade ou salvação.

Palavras-chave: Parte Eterna da Mente, Beatitude, Liberdade, Salvação, Ética

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ABSTRACT

SOUSA, Jonathan Alves Ferreira de. A PARTE ETERNA DA MENTE E O CAMINHO PARA A BEATITUDE / Jonathan Alves Ferreira de Sousa. Rio de Janeiro, 2019. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

In the second section of Part 5 of Ethics, Spinoza seems to abandon the concept of

parallelism between mind and body. From Proposition 21 on, he will present what can be

considered as the main way for man to attain beatitude. He leaves aside the questions

related to "remedies for affections", then dwell on what I shall call a rational reflective

act. Our path will go through a brief investigation of Spinoza’s ontology which shows

that God is a simple substance expressed by distinct attributes from which the singular

beings, or man, derive as modes of these attributes. Then we will deal with the

relationship between mind and body in man. We will, finally, address the eternal part of

the mind and how it will be a fundamental element on the path to beatitude, freedom, or

salvation.

Keywords: Eternal Part of the Mind, Beatitude, Freedom, Salvation, Ethics

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LISTA DE ABREVIATURAS

TCI – Tratado da Correção do Intelecto

E – Ética demonstrada à maneira dos geômetras

D – definição

Daf – definição dos afetos

L – lemas

Post - postulado

ax – axioma

exp – explicação

c – corolário

d – demonstração

s – escólio

p – proposição

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..............................................................................................................11

1 – BREVE ONTOLOGIA SPINOZANA

1.1 Deus, substância que consiste de infinitos atributos......................................15

1.2 Atributos, multiplicidade na unidade..............................................................19

1.3 Modos, coisas singulares e finitas..................................................................22

2 – PARALELISMO

2.1 União mente x corpo.......................................................................................25

2.2 União mente x corpo em Descartes.................................................................27

2.3 O Paralelismo Spinozano................................................................................32

2.4 A Identidade Numérica de Della Rocca..........................................................37

2.5 Deleuze e a Representação.............................................................................44

3 – PARTE ETERNA DA MENTE

3.1 A Parte Eterna da Mente.................................................................................58

3.2 Diferentes Interpretações...............................................................................59

3.3 Eternidade: Atemporalidade x Sempiternidade..............................................65

3.4 A Questão das Essências: Ser x Existir...........................................................69

3.5 As Essências e o Paralelismo..........................................................................74

3.6 As Essências e o Necessitarismo....................................................................76

3.7 As Essências, A Parte Eterna do Corpo e A Parte Eterna da Mente.................78

3.8 Conhecer a Essência é Afirmar a Parte Eterna da Mente.................................82

3.9 Conhecer Adequadamente é Ter a Maior Parte da Mente Eterna....................85

CONCLUSÃO................................................................................................................89

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................93

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INTRODUÇÃO1

A mudança de perspectiva proposta por Spinoza na metade da última parte de sua

obra magna se mostra deveras interessante e suscita uma série de questionamentos. Nosso

ponto aqui é o de mostrar que, nesta última parte da Ética demonstrada à maneira dos

geômetras, Spinoza parece abandonar, ou no mínimo enfraquecer, o conceito de

paralelismo entre mente e corpo, colocando em questão não mais a mente em relação com

corpo, o que foi feito em toda a Ética, mas agora, tomando a parte eterna da mente como

sendo superior à parte temporal, sendo este o caminho principal para o indivíduo alcançar

a beatitude. Na relação da mente consigo mesma é que se encontra o caminho para a

beatitude.

A beatitude para Spinoza, neste ponto, tem menos a ver com a vida presente ou

com os “remédios para as afecções” ou com o que é perecível e mais a ver com a ligação

do indivíduo com o que é eterno, infinito, e, por isso, pode-se dizer que a parte eterna da

mente é superior à parte temporal. Nos parece que Spinoza quer mostrar que esse corte

no pensamento desenvolvido até a proposição 20 da parte 5 da Ética é necessário para

fazer com que o leitor entenda que o homem só é capaz de atingir a verdadeira felicidade

enquanto estiver inserido na universalidade divina, como parte integrante de sua

totalidade, capaz de compreender-se no todo de sua existência a partir de ideias

adequadas.

O ponto de partida deste trabalho será uma breve exposição da ontologia de

Spinoza, perpassando pelo tema da substância, entendida como um ente que contém

infinitos atributos; em seguida, trataremos do atributo e sua capacidade de se exprimir

infinitamente em uma única substância e, finalmente, trataremos dos modos. O tema do

paralelismo surge como consequência do tema anterior e algumas questões logo se

apresentam. Como se dá a relação entre mente e corpo? A sua identidade é do tipo

numérica ou mente e corpo são realmente distintos? A partir das teorias expostas por

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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Della Rocca2 e Deleuze3, entre outros comentadores, buscaremos elucidar qual tese faz

mais sentido à luz dos textos spinozanos e como eles influenciam o posicionamento de

uma relação mente x mente para que o indivíduo alcance a beatitude. O que tentaremos

demonstrar, por fim, é que a assimetria4 assumida entre mente e corpo irá desempenhar

um papel menos relevante na segunda seção da parte 5 da Ética, quando Spinoza assume

que o pensamento racional reflexivo, aquele que está presente na relação mente x mente,

é que passa a ser a chave para a beatitude.

Sobre o paralelismo, sustentaremos nossa abordagem a partir das teses da

identidade e da representação expostas por Della Rocca e Deleuze, respectivamente, e as

objeções ou ratificações propostas por outros comentadores “clássicos” de Spinoza. Mas

por que a parte eterna da mente é superior à temporal, tal qual afirmado na E5p38s, na

E5p39s e na E5p40c,s? Quais são as implicações desta interpretação neste ponto crucial

da Ética? Nossa proposta é sustentar que em toda a segunda seção da parte 5, que se inicia

na proposição 21, Spinoza defenderá a tese de que a ligação do indivíduo5 com as coisas

deste mundo, perecíveis e mutáveis, tem menos valor na busca da felicidade, liberdade,

beatitude, salvação, do que a ligação com o que é eterno e imutável, que é Deus, em sua

eternidade e amor.

Na E5p39, Spinoza, dirá que “quem tem um corpo capaz de muitas coisas tem

uma mente cuja maior parte é eterna”. Na sequência desta proposição, o filósofo holandês

parece demonstrar que há alguma relação entre o aumento das qualidades corporais que

faz com que o corpo seja afetado menos pelos afetos maus com o consequente aumento

de uma maior parte eterna da mente. Como pode haver essa relação? Falamos aqui de

uma parte da mente que é eterna em relação com aumento de qualidades corporais que se

dá no tempo? Tentaremos responder como que aquilo que acontece no corpo, quando

percebido de maneira adequada irá fazer com que a parte eterna da mente se torne maior

e, por isso, aquele que tem um corpo capaz de muitas coisas, quando essas coisas são

percebidas de maneira adequada, tem uma mente cuja maior parte é eterna. Este

posicionamento de Spinoza parece evidenciar a mudança de perspectiva apontada no final

2 Della Rocca irá falar da mente e corpo como sendo numericamente idênticos. Não concordamos com sua abordagem, pois, nos parece que ele confunde a identidade existente entre a substância pensante e a substância extensa com a identidade dos modos. Cf. DELLA ROCCA, 1993, p. 183-213. 3 Deleuze se valerá do conceito de representação, o qual nos parece mais adequado. Cf. E2p13. É evidente que a noção de representação não invalida a de identidade. Cf. DELEUZE, 2017. 4 Esta assimetria é explicada pela capacidade de o Pensamento representar realidades distintas de si mesma. 5 De acordo com E2p21, indivíduo aqui é entendido como a unidade de uma ideia e de seu objeto.

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do escólio da E5p20, onde diz que passará a falar não mais do corpo com relação à mente,

mas somente de uma parte da mente que não tem relação com o corpo, ou seja, a parte

eterna da mente. A partir deste ponto, ou seja, da mudança apontada na E5p20, logo, da

tese da eternidade da mente é que tentaremos sustentar que a beatitude está ligada

fundamentalmente a um posicionamento da mente com relação a si mesma e não com o

corpo.

Esta relação da mente consigo mesma permeia toda a segunda metade da parte 5

da Ética, onde Spinoza constantemente faz referências à parte eterna da mente como

primordial para alcançar um conhecimento adequado de Deus e do mundo. Spinoza ainda

diz claramente que a parte principal da mente é a parte eterna6 e que a parte que permanece

é mais perfeita que a outra que perece.7 Assim, consideramos suficientemente claro que

apesar de não podermos simplesmente ignorar a parte temporal da mente, a parte eterna

da mente nesta atitude racional reflexiva é primordial para alcançar a beatitude, e que

ainda, a parte eterna é superior à temporal, pois é somente a partir dela que o indivíduo

consegue se enxergar participante da eternidade divina, e se enxergar participante nesta

eternidade é perceber-se do ponto de vista da eternidade, ou seja, através de ideias

adequadas. A mente que dura enquanto dura o corpo8 não é capaz de se perceber como

eterna justamente porque tudo o que consegue enxergar são apenas as configurações

passageiras da extensão, das leis de movimento e repouso, que nada mais são do que

dados da imaginação que conduzem à passividade por serem dados através de ideias

inadequadas.

Nosso intento final é mostrar que, apesar de todas as recomendações anteriores,

Spinoza, em seu projeto ético, evidenciará que, na verdade, o que importa realmente para

alcançar a liberdade e a felicidade não é o corpo, e sim a mente, pois, como buscaremos

provar, a parte eterna da mente é mais importante que a parte temporal, e, por isso, a

mudança de perspectiva na passagem das proposições 20 e 21 tratará quase que

exclusivamente9 da necessidade de pensar a relação da mente consigo mesma, pois

somente nessa relação é que o indivíduo alcançará a beatitude.

Por fim, e talvez ainda mais interessante, é perceber que Spinoza retoma o tema

do corpo presente na E5p39, mesmo tendo dito anteriormente que não iria mais falar nada

6 E5p39s. 7 E5p41c. 8 E5p40c. 9 Digo quase, pois Spinoza retornará ao tema do corpo atual nas últimas proposições.

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que tivesse relação com o corpo. A partir disto, tentaremos responder uma questão

importante neste trabalho, a saber, qual a relação de uma vida "segundo o ponto de vista

da eternidade" com a vida prática dos indivíduos e como isso leva o homem a ser livre e

encontrar a verdadeira felicidade ou ser salvo? A consciência de nossa eternidade e seus

desdobramentos traz algum conforto para a vida diária dos indivíduos? A consciência da

relação da mente consigo mesma e da nossa eternidade nos repele ou nos insere ainda

com mais força nas relações mundanas e perecíveis das quais Spinoza busca em toda a

segunda metade da parte 5 nos afastar?

A resposta à primeira e à segunda pergunta nos parece simples. Enxergar a vida

sob o ponto de vista da eternidade, ou seja, sob o ponto de vista de Deus, é enxergar a

vida através da parte eterna da mente, que se mostrará mais importante e fundamental

para que o indivíduo perceba, a partir de uma atitude racional reflexiva, que a beatitude

não está naquilo que é perecível ou passageiro ou nas coisas que são despertadas pelas

paixões. A partir do entendimento da vida através do ponto de vista da eternidade,

percebemos que participamos de algum modo desta mesma eternidade divina. Esta

percepção deve trazer conforto, pois demonstra que o indivíduo conseguiu se afastar ao

máximo das paixões que diminuem seu esforço em perseverar no seu ser e o quanto ele

está mais próximo da beatitude ou da liberdade. A terceira pergunta proposta acima

parece ser a de maior esforço para uma resposta. Ora, se estamos conscientes de nossa

eternidade e vemos a vida através de um ato racional reflexivo e com isso nos

aproximamos mais da beatitude, a resposta aqui se mostrará dúbia e novamente aparecerá

uma assimetria, pois, ao mesmo tempo em que essa consciência nos repele da vida

mundana, pois enxergamos as coisas sob o ponto de vista da eternidade, ela também nos

insere com mais força nas relações cotidianas, afinal, sem a vida prática na duração, em

ato, não poderia haver a possibilidade deste ato racional reflexivo que leva à beatitude.

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1 – BREVE ONTOLOGIA SPINOZANA

1.1 Deus, substância que consiste de infinitos atributos

Uma das teorias spinozanas mais difíceis e questionadas ao longo dos tempos foi

a da coexistência de infinitos atributos realmente distintos em uma única substância10. A

dificuldade real não está em aceitar as provas expostas em si, mas sim em como

compreender o que as verdades estabelecidas a partir destas provas realmente nos dizem.

A E1p5 deixa claro que “não podem existir, na natureza das coisas, duas ou mais

substâncias de mesma natureza ou de mesmo atributo.” Ora, se somarmos a isso a

definição de Deus11 e a definição de sua existência necessária12, veremos que são teses de

pouca rejeição entre os filósofos do seu tempo.

A partir disto, encontramos provas de verdades necessárias a partir de premissas

simples. Spinoza sempre pareceu desafiar o seu leitor ao elaborar teses e conceitos a partir

de premissas triviais. No entanto, uma vez estabelecidas essas verdades, percebemos a

profundidade e o alcance daquilo que foi proposto como verdade fundamental. Se a

substância é única, como todos os demais entes existentes são modificações e subsistem

nesta substância? Se Deus é extenso13, como Ele pode ser simples e expresso por dois

atributos diferentes?

Spinoza nos adverte14, algumas vezes, sobre nossa tendência em confundir a

imaginação com o intelecto. O caminho do conhecimento não pode ser norteado por

aquelas coisas que percebemos mais facilmente, mas antes, pelas verdades acerca da

essência divina e suas consequências. Não é o conhecimento imaginativo, que apenas

confunde nossa percepção da realidade, que nos fará entender a verdadeira essência das

coisas. Nossa imaginação não tem capacidade para alcançar a Deus e nem as essências

10 Apesar de a substância ter infinitos atributos, só podemos conhecer dois, Pensamento e Extensão. Os infinitos atributos existentes não farão parte de nosso estudo. 11 E1D6: “Por Deus compreendo um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita.” 12 E1p7d: “Uma substância não pode ser produzida por outra coisa. Ela será, portanto, causa de si mesma, isto é, a sua essência necessariamente envolve a existência, ou seja, à sua natureza pertence o existir.” 13 E2p2: “A extensão é um atributo de Deus, ou seja, Deus é uma coisa extensa.” A simplicidade dos argumentos para suas teses é mais evidente nesta proposição, onde Spinoza a demonstra pela demonstração da proposição anterior.” 14 E2p49s: “[…] Começo, assim, pelo primeiro ponto, advertindo os leitores para que distingam cuidadosamente entre, por um lado, a ideia ou o conceito da mente e, por outro, as imagens das coisas que imaginamos…”. É evidente a preocupação de Spinoza acerca do uso da imaginação na formulação dos conceitos verdadeiros e falsos acerca das coisas e de Deus. A esse respeito cf. E2p47s.

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das coisas produzidas. É ela, a imaginação, que não consegue aceitar as verdades

estabelecidas de que falamos; que não consegue entender ou aceitar a simplicidade divina,

provada juntamente com a multiplicidade do universo, que deriva, por sua vez, da

produção de modos pela substância, e que faz com que o mundo seja formado pela

substância e pelas modificações da mesma. É a imaginação que enxerga a extensão como

algo divisível, enquanto que o intelecto percebe a extensão como simples e indivisível15.

Pela razão, em contrapartida, entendemos de forma clara a verdade da coexistência dos

atributos Pensamento e Extensão em uma mesma e única substância. Somente pela razão,

pela ordem das razões, pelo conhecimento dos efeitos pelas causas, é que conseguiremos

nos desvencilhar das conclusões equivocadas impostas pela imaginação. Não é por

imaginarmos mais facilmente as coisas que elas devem ser tomadas como verdades.

Somente o intelecto puro, o raciocínio através da ordem das razões, que parte da causa

para o efeito16, de Deus para o mundo, da substância para os modos, pode nos levar às

conclusões spinozanas.

Spinoza define a substância na E1D3: “Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado.”

A substância de Spinoza é diferente daquela apresentada por Descartes. Para este,

a substância é dita ser única no sentido de ser independente de qualquer outra coisa, e

nisto eles concordam. Mas, e agora isso vale somente para Descartes, esta mesma

substância possui um só atributo que exprime sua essência. Em Spinoza, os atributos são

realmente distintos, como vemos afirmado na E1p10s, mas, no entanto, coexistem na

substância única e simples, que é Deus, a qual tem, assim, vários (infinitos) atributos que

expressam sua essência.

Deus é um ser que existe necessariamente, e por essa necessidade é que podemos

falar da coexistência dos atributos na substância. Em Spinoza, não existem várias

substâncias, a existência de múltiplas substâncias se torna contraditória pela prova da

unicidade necessária divina feita na E1p1117. Esta prova, da existência necessária de

15 E1p15s. 16 E1ax4: “O conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e o envolve.” 17 Esta proposição afirma: “Deus, ou seja, uma substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente.” Para Spinoza, pela existência pertencer à essência divina, Deus existe de maneira necessária; se não fosse assim, deveria se conceber Deus tendo uma essência que não envolvesse a existência, o que é um absurdo. Cf. a demonstração desta proposição.

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Deus, é suficiente para a afirmar a possibilidade da existência de todos os atributos em

uma única substância. Acompanhemos o raciocínio abaixo.

Na E1D3, Spinoza, dá uma definição geral do que é a substância, definição esta

que não exprime todas as suas propriedades. Já na E1D6, Spinoza, define de forma

completa a substância, Deus. Ao analisarmos a E1p11, vemos Spinoza afirmar a

existência necessária de Deus apresentada anteriormente na E1D6. Conclui que Deus

existe necessariamente pelo absurdo de pensar Deus como inexistente, uma vez que, “à

natureza da substância pertence o existir”18, e que, se Deus é uma substância, e sua

essência envolve sua existência, pelo contrário da E1ax719, logo, Deus existe

necessariamente. Para Spinoza, negar o absurdo de sua inexistência é suficiente para

afirmar sua existência necessária. Este é um primeiro movimento para provar a existência

de Deus. Um segundo movimento spinozano para provar a existência de Deus é o de

mostrar que tudo precisa de uma causa tanto para ser quanto para não-ser, e que as razões

para sua não-existência, que são impossíveis de ser encontradas, tanto fora quanto dentro

da natureza de Deus, provam a existência necessária do ser absolutamente infinito e

perfeito. Ora, se cada coisa deve ter uma causa para existir, esta causa deve estar contida

na natureza da coisa ou fora dela; uma substância existe exclusivamente por si, pois sua

essência envolve a sua existência pela E1p7; disso se segue que uma coisa existe

necessariamente, se não houver nada que a impeça de existir; como não há nenhuma causa

que impeça que Deus exista, se segue que Deus existe necessariamente; a causa da

existência de Deus deve estar na sua própria natureza ou fora dela; se estiver fora dela,

deve estar em outra substância, de natureza diferente; se estiver em outra substância,

devemos aceitar a existência de Deus, ou seja, que Deus existe; uma outra substância

diferente de Deus não teria nada em comum com Deus e, portanto, não poderia dar ou

tirar a sua existência; assim, a causa da não existência de Deus deve estar em sua própria

natureza; se este fosse o caso, a natureza de Deus envolveria uma contradição, pois

supondo que Deus não existe, sua existência seria dada por algo que não existe; ora, como

é absurdo afirmar isto de Deus, logo, não há, nem em Deus, nem fora dele, qualquer causa

que negue sua existência; conclui-se, finalmente, que Deus existe necessariamente.

Vários são os momentos em que Spinoza demonstra a coerência do conceito de

substância. Desde a E1D3, passando por E1p7, E1p8 e E1p9, para citar alguns exemplos.

A existência infinita da substância implica que existe um ser que tem mais realidade do

18 E1p7. 19 E1ax7 diz: “Se uma coisa pode ser concebida como inexistente, sua essência não envolve a existência.”

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que outros, ou seja, existe um ser que tem uma existência infinita que, por isso,

consequentemente, tem mais realidade do que o ser que tem existência finita. Ora, se

somente a substância é infinita, logo, seu grau de realidade é também infinito. E se pela

E1p9, “quanto mais realidade o ser a coisa tem, tanto mais atributos lhe competem”, logo,

maior será o número de seus atributos. Esta premissa faz com que seja possível, e mais

do que possível, digo, que seja necessário, que uma única substância, que é infinita,

possua também infinitos atributos, afinal, se todos os seres possuíssem o mesmo número

de atributos, todos teriam o mesmo grau de realidade ou ser, o que é absurdo. Outrossim,

o ser que possui infinitos atributos chamamos de Deus.

Vimos, aqui, que Deus é um ser infinitamente infinito que tem sua existência

decorrente exclusivamente de sua essência. Esse Deus nada mais é do que uma substância

(única) que contém infinitos atributos que exprimem a sua essência. Sua existência é

necessária e sua inexistência é um absurdo. Por ser necessário, sua essência envolve a sua

existência e por isso, Deus é um ser absolutamente infinito; ao contrário de um ser finito

e limitado que tem um grau de realidade também finito, a infinitude de Deus lhe garante

um grau de realidade também infinito, e por isso, seus atributos também serão infinitos.

Fica provado, desta maneira, a existência de apenas uma única substância que contém

infinitos atributos.

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1.2 Atributos, multiplicidade na unidade

Ao falarmos dos atributos, não podemos deixar de levar em consideração que há

uma grande variedade de interpretações tanto para o conceito de atributo quanto para o

conceito de substância em Spinoza. A conciliação da existência de infinitos atributos em

uma única substância sempre suscitou abordagens diversas20. Por atributo, Spinoza

entende:

“Por atributo compreendo aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo a sua essência.”21

Por Spinoza definir o atributo como algo que constitui a substância em sua

essência, não podemos de maneira simplista, devido a ele fazer referência ao intelecto em

sua definição, querer dizer que o atributo é simplesmente subjetivo. O intelecto em

questão só pode ser entendido como parte do intelecto infinito de Deus22, isto é, pelo

intelecto que produz necessariamente ideia adequadas. De outra forma, a definição de

atributo poderia ser tomada como subjetiva e relativa ao intelecto finito e, portanto, não

poderia servir de base para a metafísica. Isto porque somente o intelecto pode perceber a

essência da substância adequadamente. Este é um primeiro ponto.

Um atributo exprime, num gênero determinado, uma existência infinita. Neste

sentido, a definição de substância corresponde à existência necessária e infinita dos

atributos23. Ademais, os atributos não estão no entendimento, mas na substância. Eles têm

uma existência real e por isso não podem existir duas substâncias com o mesmo atributo.

É o que está explícito na E1p5 e na sua demonstração. Para Spinoza, não podemos

distinguir duas substâncias com o mesmo atributo, pois se elas tivessem o mesmo atributo,

20 Podemos falar das interpretações subjetivas e das interpretações realistas. Na primeira, onde o atributo é aquilo que o intelecto percebe, remeto a WOLFSON, 1934, p. 120 e 146. Na interpretação subjetiva, distingue-se os atributos apenas segundo aquilo que o intelecto percebe, argumentando à partir da definição de atributo feita por Spinoza na E1D4. Wolfson, desta maneira, afirmará que o conceito de atributo é subjetivo, pois representa aquilo que o entendimento humano consegue perceber da natureza de Deus. O atributo deixa de ser uma parte essencial da substância e passa a ser algo que representa a relação entre o indivíduo e Deus e que, consequentemente, passa a existir somente no intelecto. Na segunda, onde o atributo é identificado com a substância, remeto a GUEROULT, 1969, p. 56. Na interpretação realista, o atributo será tido como parte essencial da substância, sendo distintos relamente entre si, porém, tendo uma distinção de razão entre si e a substância. Isto significa dizer, que nesta intepretação, o atributo é a substância. O que o intelecto percebe é idêntico à coisa percebida. Textos nos quais se apoiam essa tese são, E1p4d, E1p20c, entre outras. Não é nossa intenção, no entanto, retomar toda a problemática que se deriva destas intepretações. 21 E1D4. 22 O intelecto infinito de Deus é tematizado na parte 2 da Ética. Cf. E2p1s, E2p3 juntamente com sua demonstração e E2p4 juntamente com sua demonstração. 23 Cf. E1D3.

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ou seja, se seus atributos fossem idênticos, elas seriam idênticas. Na demonstração desta

mesma proposição ele descarta também que se possa distinguir as substâncias por seus

acidentes, já que elas devem ser pensadas sem os acidentes. Nas primeiras proposições

da parte 2 da Ética, Spinoza nos diz que o pensamento e a extensão são atributos de Deus.

Esses dois atributos pertencem à mesma substância, em virtude tanto da natureza da

substância quanto da natureza do atributo. Todo atributo exprime a substância inteira,

mas os atributos não podem ser partes da substância, pois a substância é simples, sem

partes. O atributo, por outro lado, não pode ser separado da sua causa produtora, como

uma coisa, mesmo que percebido sob um aspecto particular pelo intelecto. Assim, os

atributos são realmente distintos entre si, mas não podem existir de forma separada24.

O atributo passa a ser, em Deleuze, uma expressão25 da substância, mas mantendo

uma referência ao intelecto, pois o atributo é “aquilo que o intelecto percebe”. Pelo fato

de os atributos não terem nada de comum entre si e, ainda assim, serem concebidos por

si, é que um não pode negar o outro. Disto se segue a teoria da existência do múltiplo no

uno. Ora, o que é concebido por si não pode ser contraditório com algo que lhe é

independente. Tomando o pensamento e a extensão, que são atributos de Deus, fica claro

que a sua coexistência em uma única substância é possível. Como o pensamento não pode

ser pensado em conjunto com a extensão, não há nada na extensão que possa ser dito

contrariamente à existência do pensamento e que negue sua existência na substância, e

vice-versa. Colocada esta negação de interação entre o pensamento e a extensão, um não

24 Deleuze irá definir o estatuto dos atributos da seguinte maneira: “1º) Os atributos, em Spinoza, são realmente distintos ou concebidos como realmente distintos. Na verdade, eles têm razões formais irredutíveis; cada atributo exprime uma essência infinita como sendo sua razão formal ou sua quididade. Os atributos se distinguem, portanto, ‘quiditativamente’, formalmente: são certamente substâncias, em um sentido puramente qualitativo; 2º) Cada um atribui sua essência à substância como a uma outra coisa. É uma maneira de dizer que nenhuma divisão no ser corresponde à distinção formal entre atributos. A substância não é um gênero, os atributos não são diferenças específicas: não existem, portanto, substâncias de mesma espécie que os atributos, não há substância que seja a mesma coisa (res) que cada atributo (formalitas); 3º) Essa ‘outra coisa’ é, portanto, a mesma para todos os atributos. Mais do que isso: é a mesma que todos os atributos”. Cf. DELEUZE, 2017, p. 43. O problema implícito aqui é o da identificação entre a substância e o atributos. Na E1p4d, E1p19 e E1p20c2, Spinoza mostra que a substância e o atributo são idênticos. Ora, como podem ser idênticos e isto não implicar a existência de mais de uma substância, uma vez que existem infinitos atributos? Outrossim, não podemos simplesmente identificar o atributo com a substância e dizer que isto implica a existência de variadas substâncias, pois vai contra a unicidade substancial estipulada por Spinoza, cf. E1p12 e E1p13. Para vencer este obstáculo, levaremos em conta que as ideias são proposições que predicam propriedades de algo. Disto, dizemos que uma substância tem sua essência constituída por um certo atributo ‘E’, portanto, a proposição ‘substância é E’, expressa uma característica ontológica primitiva. O que quer dizer que substância e atributos são inextricavelmente unidos, pois ‘E’ é um conceito aplicado tanto ao atributo quanto à substância. É esta proposta complexa que demonstra que os conceitos de atributo e substância podem ser idênticos, enquanto permanecem como dois entes distintos. Sobre este ponto, cf. KOISTINEN, 1991, p. 18-24. 25 O conceito de expressão em Deleuze é explicado mais à frente neste trabalho.

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pode impedir a existência do outro na substância. Aqui, falamos apenas do atributo

pensamento e do atributo extensão, pois estes são os únicos a que temos acesso, contudo,

esta fórmula é aplicável a todos os atributos existentes. Desta forma, fica evidente que a

substância pode e, logo, é necessariamente constituída de infinitos atributos (já que a

possibilidade da existência da substância implica sua necessidade).

Para Spinoza, a distinção existente entre os atributos é do tipo real e significa ser

concebido por si. Por isso, a distinção real implica a distinção numérica no âmbito dos

atributos. Ou seja, conceber dois atributos como realmente distintos implica que existem

dois atributos diferentes. Contudo, o fato de os atributos serem concebidos como

realmente distintos não implica que se possa conceber duas ou mais substâncias distintas.

Conceber o atributo como realmente distinto não é o mesmo que conceber como

substâncias distintas.

Percebemos que os atributos, para Spinoza, devem ser entendidos como formas

de expressão de qualidades divinas. Apesar de o homem só conseguir conhecer dois

desses atributos, pensamento e extensão, pois destes ele é formado, há, ainda assim, uma

infinidade de atributos que compõem a substância. Compor, no entanto, não pode ser

tomado em um sentido forte, querendo dizer que a substância contém partes diferentes

em seu ser. A substância é una e indivisível, não podemos pensá-la como não-existente,

pois seria uma contradição imediata – ora, tudo que tem partes poderia ser pensado como

não-existente. A sua existência está contida na sua definição e sempre que pensamos na

substância de maneira correta (tal qual Spinoza propõe), pensamos na sua definição.

Nesta definição, devem estar contidos os atributos que lhe são próprios. A verdadeira

definição de substância, desta forma, será aquela donde todas as suas propriedades podem

ser deduzidas, tal qual expressado na E1D626.

26 A prova da multiplicidade dos atributos em uma única substância é provada a partir da existência necessária de Deus na E1p11.

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1.3 Modos27, coisas singulares e finitas

A partir da distinção real dos atributos, podemos dizer que:

1) Não é possível estabelecer uma relação de causalidade entre mente e

corpo28.

2) Mente e corpo formam um indivíduo finito e determinado. Um modo

derivado indiretamente de um atributo. Uma coisa singular que não

existe por si, mas precisa de outro para existir.

Spinoza definirá o modo e a coisa singular das seguintes maneiras,

respectivamente:

“Por modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual é também concebido.” (E1D5)

“Por coisas singulares compreendo aquelas coisas que são finitas e que têm uma existência determinada. E se vários indivíduos contribuem para uma única ação, de maneira tal que sejam todos, em conjunto, a causa de um único efeito, considero-os todos, sob este aspecto, como uma única coisa singular.” (E2D7)

Assim, as coisas singulares são modos. Frequentemente Spinoza define os modos

ou coisas singulares como o que existe de maneira finita e determinada, que por sua vez,

são responsáveis por causar outras coisas finitas e determinadas29. No entanto, não são

suas essências que determinam a sua existência. É somente por coisas singulares que

outras coisas singulares são determinadas a existir e agir. Isto porque, quando estão

presentes na cadeia infinita de causas, onde o conjunto de modos finitos forma um

complexo de causas que corresponde à totalidade das coisas que existem na duração, há

uma ordem causal que acontece entre as coisas finitas no tempo gerando cada uma das

inúmeras modificações; se fossem causadas diretamente por Deus, tais modificações

teriam de ser, elas mesmas, eternas e infinitas, como sua causa, pois tudo o que se segue

necessária e diretamente do infinito é infinito. Além disso, essas modificações sempre

ocorrem dentro de um limite causal entre coisas da mesma natureza, ou seja, modificações

27 Os modos podem ser tanto infinitos quanto finitos. Neste ponto, trataremos apenas dos modos finitos. Para uma melhor compreensão da teoria dos modos infinitos, cf. FRAGOSO, 1997, p. 13-16. 28 A mente não pode ser a causa do corpo e nem o corpo ser a causa da mente. Na filosofia de Spinoza, uma coisa só pode ser causa da outra se elas pertencerem ao mesmo atributo. Cf. E2p6d. Uma discussão mais detalhada sobre a relação de causalidade dos modos finitos é apresentada no próximo capítulo. 29 Cf. E1p24c e E1p28.

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causais que ocorrem no pensamento estão limitadas a ocorrerem somente no pensamento,

nunca podendo causar ou ser causadas por modificações da extensão, e vice-versa.

Os modos também são coisas compostas por partes e compositores de outras

coisas. Spinoza afirma:

“Quando corpos quaisquer, de grandeza igual ou diferente, são forçados, por outros corpos, a se justaporem, ou se, numa outra hipótese, eles se movem, seja com o mesmo grau, seja com graus diferentes de velocidade, de maneira a transmitirem seu movimento uns aos outros segundo uma proporção definida, diremos que esses corpos estão unidos entre si, e que, juntos, compõem um só corpo ou indivíduo, que se distingue dos outros por essa união de corpos.” (E2p13L3ax2D)

Logo, podemos dizer que o indivíduo é uma união de corpos. O corpo é um indivíduo,

conforme é um corpo composto por outros corpos que também são compostos e que são,

de igual maneira, indivíduos. Um indivíduo sempre está em modificação, mas o que faz

com que um corpo composto mantenha sua forma é tanto uma reposição de corpos de

mesma natureza, quanto uma conservação e transmissão de movimento e repouso entre

corpos30. Um determinado indivíduo pode, deste modo, ser afetado de muitas maneiras e,

ainda assim, conservar a sua forma. Concluímos daí, juntamente com a E2p12 que remete

em seu escólio à E2p7s, ou seja, à tese do paralelismo, que um corpo sofre diversas

modificações e a mente tem a capacidade de perceber cada modificação31, e que ainda,

apesar dessas diversas modificações, ele continua sendo o mesmo indivíduo.

A mente humana percebe que outros corpos existem através das afecções que eles

produzem no corpo, conforme a E2p16c1. Ocorre que essas afecções são imagens que se

referem às impressões que o corpo sofreu. Apesar de ter ideias dessas afecções, a mente

não as explica, pois são ideias apenas de imagens isoladas e que aparecem como

contingentes. A mente, quando imagina32, não está cometendo nenhum erro, conforme a

E2p17s; contudo, enquanto a mente apenas tem ideias de imagens das coisas, ou enquanto

ela imagina, está privada do conhecimento das causas reais que produzem aquilo que é

imaginado. Imaginar é, portanto, estar privado do conhecimento verdadeiro das causas

que nos afetam. Outrossim, somente quando a mente concebe as coisas de maneira

adequada, ou seja, somente através de um conhecimento adequado das coisas, que se dá

30 Cf. E2p13L 4 à 7.. 31 Cf. E2p14d. 32 Não descartamos o importante papel da imaginação na produção da forma de conhecimento que temos do mundo, contudo, não faz parte de nosso trabalho nos determos especificamente sobre este ponto.

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através da razão e não da imaginação, o indivíduo poder ter um conhecimento das causas

que afetam o seu corpo.

Na parte 5 da Ética, Spinoza irá demonstrar que somente através do conhecimento

racional da mente, ou seja, aqueles conhecimentos que se dão pela razão e pelo intelecto,

é que podemos compreender de maneira adequada como as coisas nos afetam. Quando

concebemos as coisas relacionadas a nós, a Deus e ao mundo de maneira clara e distinta,

ou seja, de maneira adequada, nos distanciamos das afecções que nos enfraquecem e,

consequentemente, nos aproximamos das afecções que nos fortalecem33. Desta maneira,

quando percebemos as coisas de maneira adequada, passamos a enxergar as coisas da

mesma forma como Deus as vê, segundo o ponto de vista da eternidade. Neste tipo de

conhecimento racional, percebemos que somos parte de Deus e que esta é a única via

possível para alcançarmos a verdadeira liberdade.

Os modos, como vimos, são aquilo que os atributos exprimem de maneira definida

e determinada, que não podem existir ou ser por si, mas que dependem sempre de outro

para que sua existência seja dada. Isto implica que, diferentemente do atributo e da

substância, que são eternos, os modos finitos têm uma duração determinada. Dos modos

finitos, são ditos serem coisas singulares. Nesta categoria se encontram os homens.

Composto de mente, uma coisa pensante, e corpo, uma coisa extensa, sem deixar de ser

um indivíduo, ele sofre afecções no corpo que são de alguma maneira captadas pela

mente. Essas afecções podem nos fazer ser mais passivos ou mais ativos. A maneira pela

qual enxergaremos o mundo, Deus e a nós mesmos, procurando entender de forma

adequada com se dão as causas das coisas que nos afetam, será fundamental nesta relação

entre os corpos que se afetam, entre as coisas singulares, entre os modos finitos. Como

entender esta relação existente entre corpo e mente, sua união e interação, é um ponto

crucial em nosso trabalho e um dos temas centrais da filosofia spinozana, e, por isso, é

tema da próxima seção.

33 Na parte 3 da Ética, Spinoza demonstra sua teoria das emoções ou dos afetos. Ele divide em basicamente três tipos: 1) desejo, que no homem será comparado à sua essência, mais conhecido como conatus, que é a capacidade que todo indivíduo tem de perserverar no seu ser (E3Daf1exp); 2) alegria, que “é passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior” (E3Daf2); e 3) tristeza, que “é a passagem do homem de uma perfeição maior para uma menor” (E3Daf3exp).

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2 – PARALELISMO

2.1 União mente x corpo

A relação mente e corpo é um tema recorrente em toda a filosofia. Spinoza,

posicionando-se principalmente contra as teses clássicas de interação e união entre mente

e corpo, contrapõe a elas a ideia radical de que “a ordem e a conexão das ideias é a mesma

que a ordem e a conexão das coisas”34 e que “um modo da extensão e a ideia desse modo

são uma só e mesma coisa, que se exprime, entretanto, de duas maneiras.”35

No prefácio da parte 5 da Ética, Spinoza condena claramente Descartes por suas

formulações acerca das teorias de união e interação entre mente e corpo e afirma: “não

posso certamente surpreender-me o bastante de que um tal filósofo admita uma hipótese

mais oculta que todas as qualidades ocultas. Que compreende ele, afinal, por união da

mente e do corpo?”. Este “tal filósofo” era nada menos que Descartes. O que vemos na

Ética é uma mudança profunda nos conceitos relacionados à ontologia humana com

relação aos conceitos cartesianos e da tradição de maneira geral. Spinoza demonstrará

que o homem é constituído de “corpo e mente, que são uma só e mesma coisa, o qual é

concebido ora sob o atributo pensamento, ora sob o atributo extensão.” Grande será o

debate entre os comentadores de Spinoza acerca das possibilidades de união e relação

entre a mente e corpo e quais as suas implicações no sistema filosófico spinozano.

Wolfson interpreta Spinoza a partir de Aristóteles e afirma que alma é a forma do corpo36.

Jarrett interpreta que mente e corpo denotam uma coisa, embora concebidas de maneira

diferente, em vez de duas coisas que são aspectos ou expressões de outra coisa.37 Bennett

interpreta a relação mente x corpo como uma relação um-um, correlacionando itens

mentais com os físicos.38 Della Rocca interpreta mente e corpo através de uma relação de

identidade numérica.39 Deleuze, por sua vez, interpreta mente e corpo através de uma

relação de representação.40

O que pretendo é analisar mais especificamente como se dá essa união entre mente

e corpo, se através de uma relação de causalidade, tal qual proposta por Descartes ou

34 E2p7. 35 E2p7s 36 WOLFSON, 1983, p. 48. 37 JARRETT, 2007, p. 75. 38 BENNETT, 1984, p. 127. 39 DELLA ROCCA, 1993, p. 183-213. 40 DELEUZE, 2017.

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através do conceito de representação, tal qual exposto por Spinoza; se existe uma

identidade numérica ou se será uma unidade modal funcional a melhor maneira de

explicar a unidade da mente e do corpo. Como o paralelismo spinozano influencia ou é

influenciado por esses conceitos também é parte importante de nosso trabalho.

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2. 2 União mente x corpo em Descartes

Partiremos da teoria clássica do dualismo substancial cartesiano, que afirma, a

grosso modo: duas substâncias distintas e excludentes podem interagir causalmente entre

si41. A maior crítica a essa formulação está na compreensão da afirmação de que duas

coisas que nada têm de comum entre si, a saber, corpo e alma, estão unidas42. A princesa

Elisabete, com quem Descartes tem muitas correspondências, questiona a possibilidade

de o que é imaterial, a alma, ter qualquer tipo de contato com o que é material, o corpo.

Parece senso comum essa afirmação, apesar de percebermos que há algum tipo de relação

entre a mente e o corpo, pois sentimos que coisas que acontecem com o corpo nos afetam

provocando reações e sentimentos na mente e, por outro lado, sentimos que a mente

provoca ações diretas no corpo. Descartes acredita que o indivíduo é composto por alma,

que nada mais é que uma substância pensante, que está unida a um corpo, que nada mais

é que uma substância extensa. Assim, o homem para Descartes é composto por duas

substâncias que nada têm de comum entre si. A relação posta em jogo por Descartes é a

relação de causalidade. A tese da união e interação da alma e do corpo se dará através

desta causalidade.

Na Sexta Meditação, Descartes introduz um conceito de união do corpo com a

alma, que surge após o conhecimento prévio da existência do meu corpo; o argumento

diz:

“A natureza me ensina, também, por esses sentimentos de dor, fome, sede, etc., que não meramente estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas que, além disso, lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que componho com ele um único todo.”43

Este argumento rejeita claramente uma concepção platônica de que a alma é a essência

do homem e o corpo um simples veículo e, por outro lado, não se identifica com o

hilemorfismo aristotélico. Com base nas sensações, Descartes mostrará que o tipo de

relação existente entre corpo e alma é de uma união substancial, ou seja, uma relação

onde, apesar de alma e corpo serem duas substâncias distintas, elas formam um único ser,

o homem, e não uma terceira substância. Ora, os sentimentos confusos de fome, sede,

41 Não pretendemos, sobremaneira, esmiuçar a tese da união e interação entre mente, mais comumente chamado por Descartes de alma, e corpo neste trabalho. Nossa intenção é fazer apenas uma exposição panorâmica das teses cartesianas e contrapô-las às de Spinoza e de outros comentadores de Spinoza. 42 Correspondência entre Descartes e a Princesa Elisabete, 2017, p. 198-199. 43 DESCARTES, Sexta Meditação, §24.

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etc., só podem estar em mim através de uma sensação mental, que é confusa, daquilo que

ocorre em meu corpo. Logo, toda vez que sinto algo em meu corpo, uma comunicação

acontece com o meu espírito, p.ex., quando eu (meu corpo) me firo, eu (espírito) sinto

dor. Da mesma maneira, quando escolho mover alguma parte de meu corpo, ocorre algo

em meu espírito que é de alguma forma comunicado ao meu corpo, e então, eu movo meu

braço.

Na prova da união da alma e do corpo estabelecida por Descartes, é fundamental

percebermos que ele supõe como aceitas duas provas anteriormente dadas, a da distinção

real entre corpo e alma, ou seja, corpo e alma são duas substâncias realmente distintas, e

a prova da existência das coisas materiais. Partindo, assim, das sensações que tenho de

coisas que me afetam, ele prova que o homem é constituído de corpo e alma, uma vez

que, até então, tudo o que ele sabia com certeza era que o homem é apenas uma alma.

Descartes demonstra que conheço que tenho uma alma mais estreitamente unida a um

corpo, pois tenho o conhecimento da existência de outros corpos que me afetam, e que só

é possível que estes outros corpos me afetem porque tenho um corpo. Um problema que

decorre diretamente desta teoria é: como explicar por que uma afecção de um corpo

externo a mim é expressa em um ato da alma ou espírito? A resposta de Descartes será

no sentido de tentar mostrar que esta união entre corpo e alma é um tipo especial de união,

onde a alma sofre certas modificações que a possibilitam de ter atos como sentir, etc. Pelo

fato de que aquilo que sinto ser obscuro e confuso é que sei que a união da minha alma

com meu corpo é especial, ou seja, uma mistura entre duas substâncias diferentes.

Descartes, em suas meditações, especialmente na quinta e sexta, se ocupará com

o problema das premissas pelas quais podemos chegar ao conhecimento da natureza e da

existência dos corpos. Partindo da noção que o conhecimento dos corpos, ao menos o

conhecimento de sua natureza, depende de algum tipo de ideia inata44, ele afirmará que o

conhecimento dos corpos é um conhecimento que não depende da experiência sensível,

rompendo assim, com o modelo tomista-aristotélico mais tradicional e assumindo que

apenas o conhecimento da existência dos corpos acontecerá através das sensações. A

partir das sensações, Descartes mostrará como é possível saber que um certo mundo

externo existe, que um certo corpo seja meu e como a relação do meu corpo com minha

alma é uma relação substancial. Ele parte da ideia de que, porque sei que existe o mundo

44 Não poderia ser diferente, visto que esta é a premissa pela qual o que fora já examinado, a saber, a alma e Deus, pode ser conhecido.

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físico e que as coisas materiais que se apresentam a mim são reais, temos uma percepção

clara e distinta de que esse conhecimento do mundo externo, mesmo que partindo de uma

percepção sensível obscura e confusa, nos mostra que há coisas materiais externas a mim,

ainda que essas coisas não sejam tais como minhas ideias as representam. Desta maneira,

pelo conhecimento da existência do mundo externo, com base nas sensações, Descartes

afirma nos Princípios da Filosofia: “Devemos concluir também que determinado corpo

está mais estreitamente unido à nossa alma do que os outros...”.45

Partindo da ideia clara e distinta, já estabelecida nas meditações anteriores, de que

tudo o que sei até então é que sou pura alma, Descartes mostra, através do conhecimento

da existência do mundo material e das sensações, que eu, que sou pura alma, tenho um

corpo que está ligado à minha alma. Ora, sei que sou pura alma; por outro lado, sei,

também, que existem corpos externos realmente distintos e que eles me afetam; assim, se

eu posso ser e sou realmente afetado por corpos exteriores a mim, então, eu que sinto,

devo concluir que não sou apenas alma, mas sim uma alma unida a um corpo. A partir

desta exposição, portanto, parece correto afirmar que corpos externos possam agir

diretamente sobre minha alma, não por serem diferentes em sua natureza, mas por não

terem, com ela, uma união íntima. Se sou alma, não posso ser afetado por corpos, mas é

fato que corpos me afetam, portanto, não sou apenas alma, mas também um corpo. Se sou

um corpo e uma alma, como explicar que corpos materiais externos possam afetar a minha

alma? Para vencer essa dificuldade, Descartes explicará que essa união entre alma e corpo

é um tipo de ligação íntima, substancial. Essa união substancial é que explicará que o que

me afeta não é um corpo exterior, mas um corpo intimamente ligado à minha alma. Mas

por que o fato de ser afetado por corpos externos gera em mim paixões na minha alma?

Por que, quando o corpo é afetado, a alma é que sente?

A solução proposta por Descartes parece apontar para o fato de que por minhas

percepções serem obscuras e confusas é que sei que existe um tipo especial de união entre

minha alma e meu corpo. Sei que eu, que sou alma e corpo, mas que ainda não sei que

tipo de união é esta, tenho sensações, e que essas sensações são obscuras e confusas. Essas

sensações são consideradas modos do pensamento e, portanto, da alma46. Por outro lado,

só posso dizer que tenho sensações se admitir que tenho um corpo. Desta maneira, as

sensações que determinam a união entre mente e corpo não podem nem ser modos da

45 DESCARTES, 2004, p. 60. 46 DESCARTES, 2011, p. 41-55.

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mente pura nem modos do corpo puro, mas de um eu que é corpo e alma. Doravante,

Descartes sustenta que essa união do corpo e da alma é substancial e que eles formam um

único ser a partir de duas substâncias heterogêneas, não constituindo uma terceira

substância, pois esta união “consiste em mostrar que uma experiência obscura e confusa,

independentemente de seu conteúdo representativo, justifica a crença num determinado

tipo de relação de união. Embora a união não seja o objeto intensional da sensação, a

sensação é evidência da união porque é produto da união.”47

Uma outra maneira que Descartes escolhe para demonstrar a união do corpo e da

alma é através do conceito de noções primitivas, conceito este que está presente em sua

correspondência com a princesa Elisabete.48 Ele afirma que tanto as noções de corpo e

alma, tomadas separadamente, quanto a do corpo e alma unidos49 são noções que estão

em nós e que são como que originais, donde formamos todos os outros conhecimentos.

Isto significa dizer que esta noção não pode ser explicada por nenhuma outra e que deve

ser entendida por si. Ou seja, a noção que temos da união entre alma e corpo é tão imediata

quanto a noção que temos de que o corpo é extenso e de que a alma é pensamento e, esta

noção é tão comum a todos que mesmo – e talvez sobretudo – aqueles que não fazem

filosofia conseguem perceber que corpo e mente estão unidos de alguma maneira50. Para

Descartes, o fato de haver certa confusão no entendimento acerca da união entre corpo e

alma surge da confusão que fazemos ao tentar entender a interação alma x corpo através

da interação corpo x corpo.

Aceitar o posicionamento cartesiano não resolve o problema da relação entre

coisas de naturezas totalmente diferentes. A união é explicada segundo um dado

experiencial, isto é, através das sensações. Por sua vez, a distinção é percebida pela razão.

Cada noção, a da união e a da interação, é considerada como verdade, mas elas são

conhecidas por caminhos diferentes. Apesar disto, as noções de união e interação entre

mente e corpo se dão de maneira incontestável pela experiência. Ora, Descartes não

parece estar preocupado com o problema da relação de coisas de naturezas diferentes51 e,

por isso, não se detém sobre o tema. Seu principal objetivo seria provar a distinção que

47 ROCHA, 2008, p. 223. 48 Correspondência entre Descartes e a Princesa Elisabete, 2017, p. 196. Cf. também Princípios da Filosofia, Parte I, Artigo 48. 49 Correspondência entre Descartes e a Princesa Elisabete, 2017, p. 196. Ele acrescenta, “e enfim, da alma e do corpo juntos, temos a noção da união, da qual depende a força que a alma tem de mover o corpo, e o corpo de agir sobre a alma causando seus sentimentos e paixões.” 50 Cf. Correspondência entre Descartes e a Princesa Elisabete, 2017, p. 200. 51 Ibid, 2017, p. 196.

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há entre a alma e o corpo. Se tomarmos como auto evidente, assim como espera Descartes,

a relação entre substâncias distintas, isto deveria ser aceito e compreendido por todos,

pois seria um axioma sobre o qual não poderia haver dúvidas. Percebemos, porém, ao

percorrer a história da filosofia, que este não é o caso, pois existe uma gama enorme de

discussões sobre o problema da união e interação entre mente e corpo.

Um que foi grande opositor das teses cartesianas, foi Baruch de Spinoza. Mesmo

que aceite que haja uma íntima relação entre as partes que compõem o homem, Spinoza

não poderia jamais aceitar a interação entre duas substâncias distintas e, de certa forma,

excludentes. Assim, ele formula uma tese totalmente diferente para explicar como se dá

essa relação entre mente e corpo. Uma tese que rejeita que haja qualquer tipo de relação

causal entre aquilo que se dá no pensamento e aquilo que se dá na extensão. Esta tese

ficou conhecida como a tese do paralelismo de Spinoza.

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2.3 O Paralelismo Spinozano

A tese do paralelismo é exposta claramente na Ética:

“A ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas”, e, “... a substância pensante e a substância extensa são uma só e mesma substância, compreendida ora sob um atributo, ora sob outro. Assim, também um modo da extensão e a ideia desse modo são uma só e mesma coisa, que se exprime, entretanto, de duas maneiras.” (E2p7s)

Podemos perceber que Spinoza propõe haver uma relação de igualdade lógica

entre a conexão das ideias e a conexão das coisas, ou propriamente, como diz no escólio,

uma relação de igualdade lógica entre a potência de pensar de Deus e sua potência atual

de agir. Como Deus é um ser infinitamente infinito e que conhece todas as coisas, daí se

deriva que tudo o que se segue da potência de Deus é pensado por Deus, justamente por

que tem como causa a sua essência. Isto diz respeito à representação das coisas finitas no

intelecto infinito de Deus, pois elas, uma vez dadas, também deve ser dado o conjunto

causal infinito de sua existência e a ideia infinita que as representa (E2p4). Outro ponto

importante a se destacar é o uso, por Spinoza, da expressão uma e mesma coisa. É

interessante como o filósofo usa esta expressão logo após relacionar a substância pensante

e a substância extensa como uma só e mesma substância. Esta sequência parece

demonstrar que a relação identitária existente entre as substâncias vale de igual maneira

para os modos que dela derivam, sendo, desta maneira, também idênticos entre si.

Partindo da demonstração da proposição explicitada anteriormente, percebemos

que Spinoza retoma o axioma 4 da parte 1 da Ética: “O conhecimento do efeito depende

do conhecimento da causa e o envolve”. Este axioma torna evidente que a relação de

causa e efeito é fundamental no pensamento spinozano. É essa relação, a relação de causa

e efeito, que explica o sentido do paralelismo, na medida em que é ela que permite passar

da ordem do ser (conexão de causas e efeitos) para a ordem do conhecer (conexão do

conhecimento das causas ao conhecimento dos efeitos). Ora, pela E1p15, sabemos que

“tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus, nada pode existir nem ser concebido.”

Portanto, “além de Deus, não pode existir nem ser concebida nenhuma substância”. Se

Deus é causa de todas as coisas, ele também é causa dos modos existentes, mas apenas

quando considerado sob o atributo do qual eles são modos, isto é, enquanto considerado

como substância extensa, ele é causa dos modos da extensão e enquanto considerado

como substância pensante, ele é causa dos modos de pensamento. Vale ressaltar que os

modos finitos, enquanto considerados como tais, só serão causa de outro modo finito de

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mesmo atributo, ou seja, se for um modo da extensão, será causa de um modo finito da

extensão, e se, ao contrário, for um modo do pensamento, ele será causa de um modo

finito do pensamento. Isto porque, pela E2p6d, “... é por isso que os modos de cada

atributo envolvem o conceito de seu próprio atributo e não o de um outro”, não poderá

haver relação causal entre diferentes atributos divinos e consequentemente da mesma

maneira deve ocorrer com as modificações desses atributos. Um esquema poderia ser

demonstrado da seguinte maneira para os modos da extensão (me):

meA à meB à meC à me...

e da mesma maneira para os modos do pensamento (mp):

mp1 à mp2 à mp3 à mp...

Temos aqui que meA é causa de meB que é causa de meC, e assim, ad infinitum.

E da mesma forma acontece com os modos do pensamento, onde, mp1 é causa de mp2

que é causa de mp3 até o infinito. Até este ponto não parece haver complicações ou

debates acerca das relações de causa e efeito entre os modos. É de comum acordo entre

todos os comentadores a afirmação de que os modos não existem por si, mas que existem

em outra coisa, por meio da qual também são concebidos. Na E2p7s, entretanto, Spinoza

adiciona um fator importante e que irá mudar a maneira como se entende essas relações,

que é a conjunção de um modo da extensão a um modo do pensamento pelo paralelismo.

Como pode um modo da extensão e a ideia desse modo ser uma só e mesma coisa e se

relacionar de alguma maneira se, como vimos, não pode haver relações causais entre

diferentes atributos e suas modificações? Como mente e corpo, modificações de atributos

realmente distintos entre si, podem ser um único ser? Uma chave para resolver essa

questão seriam as passagens E1ax6, E2p11 e E2p13. Pela E1ax6, conclui-se que, para

cada ideia verdadeira, deve concordar um ideato ou objeto, e, pelas E2p11 e E2p13,

conclui-se que o que constitui o ser atual da mente é a ideia do corpo existente em ato.

Portanto, podemos, de início, entender que, para cada modo do pensamento, haverá um

modo da extensão com o qual ele concorde, o que se aplica de igual maneira a mente e

corpo e poderia ser representado da seguinte maneira:

meA à meB

mp1 à mp2

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O que o esquema acima demonstra é o que está dito nas proposições e axiomas

expostos anteriormente, a saber, que, para cada elo na cadeia causal, o efeito depende da

sua causa e o envolve e que, para cada modo do pensamento ou para cada ideia, haverá

algo correlato na extensão que os une, pelo paralelismo, e do qual a ideia é a sua

representação em ato. Aqui há um perigo de erroneamente se entender que a causa de

meA seja a mesma de mp1. Isso jamais será possível e não é o que estou defendendo, visto

que, como já exposto, atributos diferentes não podem compartilhar as mesmas causas. O

que há de comum entre eles é o nexo causal que os torna verdadeiros. Explico melhor. Se

meA é a representação de mp1, então, eles têm suas propriedades todas iguais, com

exceção, respectivamente, da propriedade da extensão e da propriedade do pensamento.

Logo, tudo o que estiver contido em mp1 como força capaz de ser causa de mp2, deve

também estar contido em meA, uma vez que, meA é o correlato da representação mp1.

Voltando à passagem da E2p7s, percebemos que, se esta relação é verdadeira para

os atributos divinos, também deveria ser para os modos singulares. Isto parece evidente,

pois, na primeira parte do escólio, o filósofo atribui uma relação de identidade entre a

substância pensante e a substância extensa e em seguida faz uma analogia com o modo

da extensão e o modo do pensamento. Aqui irá residir boa parte dos conflitos entre os

comentadores52. Nos parece claro que, em se tratando da substância pensante e da

substância extensa, que é uma só, mas expressa ora sob um atributo ora sob outro, a qual

vem a ser a tese do monismo ontológico, é o caso de afirmarmos que há sim uma

identidade de tipo numérico. Como lemos, “... são uma só e mesma substância”. Mas, se

a identidade existente aqui pode ser uma identidade numérica para a substância e, se os

modos são modificações dos atributos desta substância, não seria absurdo afirmar que há

identidade numérica entre os modos, uma vez que o próprio escólio da proposição 7

parece demonstrar isto quando faz uma analogia que parte da substância e passa aos

modos. O que irei sustentar é que o que há nos modos não é uma identidade do tipo

numérica, ou seja, substancial, mas sim uma identidade de qualidades53, que exclui

52 Analisaremos mais especificamente as divergências propostas por Della Rocca e Deleuze, onde o primeiro defende a tese da identidade numérica dos modos como base para o paralelismo e o segundo vai defender o caráter modal e expressivo dos atributos divinos, que fundamentam a noção de representação entre mente e corpo. 53 BENNETT, 1981, p. 573-584, fala dos modos como adjetivos em substância subjacente. Assim, mente e corpo são modificações dos atributos como qualidades. O que Bennett tenta esclarecer é que as modalidades das coisas finitas são fundamentais na filosofia spinozana. PINHEIRO, 2010, p. 217-242, fala de uma explicação funcional para a identidade entre as coisas finitas.

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apenas, como apontado anteriormente, a igualdade entre as propriedades de pensamento

e de extensão.

A confusão em afirmar que o mesmo estatuto ontológico dos atributos divinos se

aplica aos modos, pela E2p7s, parece inevitável. Mas um exame mais acurado tornará

evidente que este não é o caso. Modos são nada mais do que afecções dos atributos

divinos, como confirmamos pela E1p25c. Já pela E2p10 e seu corolário:

“À essência do homem não pertence o ser da substância, ou seja, a substância não constitui a forma do homem”; e, “Disso se segue que a essência do homem é constituída por modificações definidas dos atributos de Deus.”

A essência da substância é infinita e não carece de nada além de si para ser. Se os

modos pudessem ter a mesma essência da substância, como indicaria uma leitura

superficial do escólio da proposição 7 da parte 2, existiria mais de uma substância, o que

é absurdo, como demonstrado na E1p5 e E1p14c1,2. Como modos finitos, eles precisam

também de outras coisas finitas para existir, e não é porque, em última análise, os modos

são modificações de Deus, que eles terão o mesmo estatuto ontológico de Deus. O

monismo spinozano, ou seja, a ideia de que só há uma substância, portanto, não fornece

condições suficientes para afirmar que há uma identidade numérica entre os modos

finitos, ou seja, entre mente e corpo. Mas como mente e corpo podem ser um único ser?

Como eles se relacionam?

Como vimos, esta dúvida sobre a relação/união entre mente e corpo se dá, pois

Spinoza usa uma analogia partindo da substância em direção aos modos quando usa a

expressão uma só e mesma coisa. Devemos ressaltar que, Spinoza deixa claro na E2p8, a

sua dificuldade em falar da substância e seus modos, “pois se trata de algo singular” e por

isso, se torna justificado o uso de analogias e figuras de linguagem. Contudo, é claro que

não podemos simplesmente ignorar o uso desta expressão uma só e mesma coisa, mas

querer que ela tenha a mesma força quando aplicada aos modos como quando aplicada à

substância nos parece equivocado. Quando tomamos esta expressão aplicada à substância

ou atributos verificamos que a aplicação ocorre de maneira forte, e que se atributos não

têm nada de comum entre si, ou seja, são realmente distintos, suas modificações não

podem ser causa de outras coisas que estejam sob outro atributo. Neste interim, se

considerarmos a identidade numérica como válida, teremos que:

meA à meB

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mp1 à mp2

Se meA=mp1 e meB=mp2

Então, meA à mp2 e mp1 à meB

Um problema que surge na conclusão do raciocínio acima é que Spinoza não pode

aceitar a conclusão devido à negação das relações causais entre os atributos distintos

mencionada anteriormente e que o filósofo demonstra na E2p6d e E3p2s, mas, no entanto,

ele aceita a sentença de igualdade. Dizer, no entanto, que meA é igual a mp1 não é

suficiente para provar as diferenças modais que determinam igualdades e diferenças de

todas as coisas, pois, se todos têm por causa Deus, como diferenciar mentes e corpos de

si mesmos e de outros seres finitos?

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2.4 A Identidade Numérica de Della Rocca

Della Rocca, irá afirmar que “a dualidade no paralelismo de Spinoza não é uma

entre coisas distintas, mas entre descrições distintas ou formas distintas de se conceber as

coisas. Assim, poderíamos dizer que o paralelismo não tem um caráter ontológico, mas

semântico”54. Ele irá sustentar esta questão apresentando a tese dos contextos causais

opacos e transparentes, imanentes e transitivos, intensionais e extensionais. Contextos

causais opacos são aqueles em que o valor de verdade de uma expressão varia dependendo

da forma como são demonstrados, ou seja, ao referenciarmos um mesmo objeto de

maneiras diferentes, seu valor de verdade muda55. O contexto causal do tipo transparente

é exatamente aquele onde não acontece mudança no valor de verdade de uma sentença ao

referenciar um mesmo objeto de maneiras diferentes. Por exemplo, se dizemos que “z é

causa de w”; ao substituirmos o valor de z e/ou w na sentença, não importa qual seja a

mudança, o resultado será sempre necessariamente igual a “z é causa de w”. Este é um

exemplo de contexto causal de tipo transparente. Três objeções ficam aparentes na relação

das evidências da validade da transparência ou opacidade dos contextos causais, quais

sejam: 1) Parece óbvio que contextos causais transitivos são transparentes, portanto, deve

ser absurdo afirmar que Spinoza nega a transparência nesses casos; 2) Spinoza está

explicitamente comprometido com a ideia de que contextos causais transitivos são

referencialmente transparentes; 3) Se a referência dos contextos causais transitivos for

opaca e a identidade numérica for válida como quer Della Rocca, como compatibilizar

esta tese com a negação do interacionismo entre modos de atributos diferentes?

Della Rocca se compromete a afirmar a identidade numérica entre mente e corpo

a partir principalmente das noções de contextos causais opacos e transparentes. Partindo

da afirmação de Spinoza, na E2p7s, de que a substância pensante e a substância extensa

são uma e mesma coisa, ele irá afirmar que, nos contextos causais de tipo imanente,

Spinoza sustenta que a referência será opaca. Em seguida, ele aplicará a mesma estrutura

argumentativa ao falar dos contextos causais transitivos. Seu erro me parece ser o de

querer aplicar diretamente aos modos a mesma identidade que foi aplicada à substância,

a partir da interpretação de uma analogia feita na E2p7. Ora, dirá ele, se Spinoza nega que

contextos causais imanentes são referencialmente transparentes, então, agora, essa

conclusão pode ser usada para prover a evidência necessária de que Spinoza também

54 DELLA ROCCA, 1996, p. 19 e 122. Cf. também 1991, p. 265-276 e 1993, p. 183-213. 55 DELLA ROCCA, 1983, p. 187.

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mantém que há uma falha de transparência em contextos envolvendo causalidade

transitiva, e isso, portanto, é evidência suficiente para afirmar que a identidade numérica

é compatível com a negação do interacionismo entre modos de atributos distintos. Desta

maneira, o que Della Rocca faz é dizer que as três objeções propostas acima são falsas.

Em primeiro lugar, ele não acredita na afirmação de que contextos causais transitivos são

referencialmente transparentes, embora não dê nenhum exemplo que mostre o contrário.

Em segundo lugar, ele nega que Spinoza se comprometa com a transparência dos

contextos causais transitivos, mas faz isso a partir da analogia de que, se Spinoza afirma

que contextos de tipo imanente são opacos, então, deve se seguir, de igual maneira, que

contextos causais de tipo transitivo também são opacos, o que nos parece ser uma

evidência fraca, que carece de maior fundamentação teórica para ser defendida.

Della Rocca tentará escapar desta armadilha fazendo uma distinção entre relações

causais e relações explicativas, que como ele atesta é uma forte característica da filosofia

contemporânea56. O problema aqui não é como as coisas se relacionam causalmente entre

si, mas como que relações de um modo da extensão podem ser explicados em termos de

um modo do pensamento e vice-versa. Parece razoável a afirmação acima; contudo,

Spinoza é claro, na E3p2d ao dizer que:

“Todos os modos do pensar têm por causa Deus, enquanto ele é uma coisa pensante e não enquanto ele é explicado por um outro atributo (pela prop. 6 da P. 2). Portanto, o que determina a mente a pensar é um modo do pensamento e não da extensão...”

Desta maneira, Della Rocca fica aprisionado em sua teoria da opacidade dos contextos

causais transitivos. Respondendo à objeção de Bennett57, que reforçará que a identidade

numérica não é sustentável, pois se cada modo da extensão fosse numericamente idêntico

a um modo do pensamento, se seguiria que cada modo envolveria cada atributo, e isto é

um absurdo pela afirmação de Spinoza na E2p6d58, Della Rocca sustentará, a partir da

E1p25, onde Spinoza afirma que, se Deus não é causa de uma coisa, então, essa coisa

pode ser concebida sem Deus, que, equivalentemente, uma coisa w deve ser concebida

através de z, somente se w é causado por z. Sua teoria da transmissão da opacidade, dos

56 DELLA ROCCA, 1991, p. 269. 57 DELLA ROCCA, 1991, p. 269-272. 58 A E2p6d afirma: “Cada atributo, com efeito, é concebido por si mesmo, independentemente de qualquer outro (pela prop. 10 da P. 1). E por isso que os modos de cada atributo envolvem o conceito de seu próprio atributo e não o de um outro. Assim (pelo ax. 4 da P. 1), esses modos têm Deus por causa, enquanto ele é considerado exclusivamente sob o atributo do qual eles são modos, e não enquanto considerado sob algum outro atributo. C. Q. D.”

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atributos para os modos não se sustenta, pois, a opacidade, por necessitar da afirmação da

identidade numérica e vice-versa não leva em consideração as propriedades responsáveis

pela individuação das coisas, se fechando em um círculo argumentativo hipotético que

não parece estar em conformidade com as demais teorias da Ética.

Um outro ponto que deve ser levantado é: se a identidade numérica é válida, como

sustentar o paralelismo explicitado na E2p759? Ora, se mente e corpo são uma única coisa

numericamente falando, como a afirmação desta identidade pode sustentar, ou seja, ser a

base para uma relação de ordem e conexão entre mente e corpo? O próprio Della Rocca

admite este problema, ele diz:

“Mas, a afirmação da identidade numérica não é capaz de explicar por que para cada modo da extensão há um modo do pensamento ao qual entra em relação causais entre si e vice-versa.”60

E continua:

“A razão pela qual a identidade numérica não consegue explicar este aspecto do paralelismo decorre diretamente do fato que a interpretação da identidade numérica é forçada a assegurar que Spinoza toma os contextos causais como referencialmente opacos.”61 (Grifo meu).

Na própria afirmação destacada acima, Della Rocca claramente quer atribuir

opacidade aos contextos causais em Spinoza; percebe-se, no entanto, que seu argumento

se deve somente ao fato de ele aceitar a identidade numérica, mostrando o uso única e

exclusivamente com a finalidade de sustentar sua posição, tornando ainda mais nítida a

problemática de seu argumento. Seu argumento se torna circular e problemático; ele

insere a opacidade para afirmar a identidade numérica que só pode ser afirmada pela

opacidade.

Na filosofia spinozana, pela E1ax4, sabemos que o efeito depende da causa e o

envolve, portanto, a demonstração dos efeitos de uma coisa depende diretamente da sua

causa; sendo assim, é condição necessária que haja no efeito algo pertencente à sua causa.

Pensamento e extensão são as duas causas possíveis para as coisas62. A demonstração dos

59 E2p7: A ordem e a conexão das idéias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas. 60 DELLA ROCCA, 1991, p. 273. 61 Ibid, 1991, p.273. 62 É fato que existem coisas que estão além dos atributos pensamento e extensão, uma vez que os atributos de Deus são infinitos. Contudo, como somente podemos conhecer estes dois, nos é suficiente para entendermos a explicação proposta.

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efeitos envolve o ser das causas e um efeito não pode ser explicado de forma parcial,

através da conjunção de um e outro atributo simultaneamente. O contexto para a

demonstração de um efeito deve sempre corresponder ao do atributo que lhe é causa.

As relações causais do tipo imanente são aquelas que ocorrem entre Deus ou

substância e os modos finitos ou infinitos, enquanto que as relações causais do tipo

transitivo são aquelas que ocorrem entre diferentes modos infinitos e entre as coisas

singulares finitas. Para Della Rocca63, a opacidade dos contextos causais se encontra tanto

nas relações de tipo transitivo quanto nas relações de tipo imanente, pois, se a substância

pensante e a substância extensa são uma só e mesma coisa, a saber, Deus, e se a substância

extensa causa o meA e a substância pensante causa mp1 e, se da mesma maneira se segue

com as causas e efeitos dos modos, não havendo relação causal entre modos de outros

atributos, essa opacidade dupla, para Della Rocca, prova a identidade numérica entre

mente e corpo no sistema spinozano, eliminando assim a objeção considerada mais acima.

Percebemos que Della Rocca acredita que contextos causais opacos são aceitos

por Spinoza e que essa opacidade, não podendo ser negada nas relações imanentes, não

pode ser negada nas relações transitivas, por seu Princípio de Transmissão da

Opacidade64. Sejam mente e corpo expressões de atributos divinos, suas propriedades

serão opacas, ou melhor, intensionais e não extensionais.65 Della Rocca entende que toda

propriedade será intensional, ou seja, que dependem da forma pela qual um objeto é

expresso, se essa propriedade estiver inserida dentro de um contexto opaco. Extensionais

são as propriedades do tipo “neutro”, ou seja, que não envolvem atributos. Valendo-se de

uma fórmula modificada da Lei de Leibniz66, Della Rocca irá propor que, para Spinoza,

como mente e corpo compartilham todas as propriedades neutras e as mesmas são

extensionais, logo mente e corpo são idênticos e o paralelismo é que sustenta a relação

entre ambos.

A variação da Lei de Leibniz usada por Della Rocca parte do pressuposto que

propriedades intensionais, ou seja, aquelas em que estão presentes na relação imanente,

63 DELLA ROCCA, 1993, p. 183-213. 64 Ibid, 1993, p. 183-213. 65 Ibid, 1993, p. 183-213. 66 A Lei de Leibniz diz que, a=b, se e somente se, a e b têm todas as propriedades em comum. Della Rocca muda, dizendo que, a=b, se e somente se, a e b têm todas as propriedades extensionais, ou neutras, em comum.

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entre a substância e seus modos, não podem entrar no seu escopo de avaliação. A partir

deste pressuposto, ele afirma:

a = b se a e b têm todas as propriedades extensionais em comum67

Ele usa esta variação para afirmar que é o paralelismo que garante a tese da

identidade e não o contrário. Nos parece, no entanto, que esse uso limitador da Lei de

Leibniz é feito apenas com o único objetivo de legitimar sua tese. Ainda que ele pondere

que Leibniz não leve em consideração algumas propriedades na formulação de sua lei,

suas afirmações não são suficientes para demonstrar que Spinoza defende uma identidade

numérica entre mente e corpo. Mesmo que ele aplique aos modos o que está sendo

exposto sobre a substância e atributos na E1p4, a leitura de uma forma mais abrangente

sobre a Ética não deveria ser desprezada. Esta argumentação hipotética baseada em

poucas evidências textuais não dá o sustento necessário para a afirmação de que mente e

corpo sejam numericamente idênticos.

Em sua explanação, ele afirmará que certas propriedades extensionais, ou o que é

o mesmo, certas propriedades neutras são partilhadas tanto por modos do pensamento

quanto por modos da extensão, devido ao paralelismo estabelecido na E2p7, e que são

essas propriedades que determinam sua igualdade. Mas como enumerar ou classificar

essas propriedades neutras? Em sua argumentação, as propriedades neutras que estão sob

o escopo da sua limitada Lei de Leibniz serão aquelas que não são consideradas por ele

como necessariamente universais, isto porque as propriedades universais neutras não

podem ser cobertas pelo paralelismo. Uma discriminação temporal também não é um

critério de individuação claro o bastante. Ele usa a E2p8c para sua exposição, se apoiando

também na E2p23d. Ele explica que, por essas proposições, podemos afirmar que mente

e corpo, e modos paralelos em geral, duram pelo mesmo período de tempo e, por isso,

compartilham todas as mesmas propriedades neutras temporais. Sua falha neste ponto

está em não levar em consideração a existência de uma parte da mente que é eterna e por

isso não tem relação com a duração. Outro ponto que podemos destacar é que se a mente

e corpo forem idênticos, ou seja, partilharem todas as mesmas propriedades neutras, tal

como quer Della Rocca, eles devem ter uma mesma localização espacial; ora, a

localização espacial não pode ser aplicada aos modos do Pensamento, portanto, este não

é um critério suficientemente claro para explicar como modos paralelos compartilham

67 DELLA ROCCA, 1993, p. 194.

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todas as mesmas propriedades neutras. Além deste ponto, Della Rocca situa outra

propriedade que seria neutra, que é a propriedade de ser um indivíduo complexo. Este

argumento nos parece ir em favor da forma clássica da Lei de Leibniz, afinal, para cada

parte extensa que um indivíduo complexo tem, deve haver uma sua parte pensante que

lhe é idêntica. Outrossim, as causas e efeitos dos modos finitos são infinitos, tornando a

individuação das coisas, a partir da sua complexidade, uma tarefa impossível. Desta

forma, não apenas suas propriedades neutras seriam iguais, e ainda que para ele somente

as propriedades neutras estejam em jogo, a desconsideração das propriedades intensionais

na individuação das coisas se torna um problema. Vemos, desta maneira, que falta clareza

em definir um meio ou critério que demonstre que somente as propriedades neutras seriam

capazes de individuar as coisas e que seu uso da Lei de Leibniz o engendra em uma

circularidade de argumentos.

Mostraremos, no entanto, que corpo e mente são modos de atributos realmente

distintos e que pensar uma unidade numérica, mesmo que de algumas propriedades, ditas

“neutras”, é insustentável. Outrossim, se todas as suas propriedades extensionais são

compartilhadas, como poderia haver uma distinção individualizadora entre mente e

corpo? Como saber, o que é mente e o que é corpo se elas são numericamente idênticas?

A única maneira de conseguir o efeito desejado é introduzir o conceito de opacidade.

Seguido da tese da identidade numérica, apoiada por sua fórmula restritiva da Lei de

Leibniz, formando uma circularidade que não permite distinguir coisas distintas de modo

legítimo, pois a opacidade de Della Rocca não leva em consideração as propriedades

intensionais, que são as propriedades que possuem a capacidade de individuação das

coisas. Mas por que propriedades intensionais não poderiam individuar as coisas? Isto é

o que Della Rocca não consegue provar.

É evidente que Della Rocca não está preocupado com uma teoria que individue

mente e corpo, uma vez que, para ele, mente e corpo são um só e mesmo indivíduo

numericamente falando e que sua distinção é meramente uma distinção descritiva. Se,

como quer Della Rocca, a distinção entre meA e mp1 é meramente descritiva, então sua

resposta à objeção formulada acima a partir do conceito de opacidade também seria, ela

mesma, meramente descritiva. Ademais, a própria Lei de Leibniz, em sua forma clássica,

é suficiente para excluir a possibilidade de identidade numérica entre mente e corpo, e

isto para nós já é suficientemente forte como crítica à teoria da identidade numérica de

Della Rocca. Resta-nos saber como explicar a união da mente com o corpo. Vimos que a

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teoria da identidade numérica proposta por Della Rocca se mostra insuficiente para esta

tarefa.

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2.5 Deleuze e a Representação

Por representação, entendemos aquilo que expressa em ato algo que está contido

na mente. Para Deleuze a representação é “uma demonstração manifestada imediatamente

pela expressão de um objeto68”. O filósofo francês entende que a expressão é o

fundamento da representação. Essa expressão possui ao menos dois níveis ou sentidos: 1)

o primeiro nível é o gnosiológico/epistemológico; 2) o segundo nível é ontológico.

Começaremos nossa explanação a partir do nível ontológico. Para tanto

precisamos entender inicialmente a noção de expressão proposta por Deleuze. É notória

a importância do papel da expressão na filosofia spinozana, logo na E1D6, vemos surgir

a ideia de expressão:

“Por Deus compreendo um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita.”

E na E1p25c:

“As coisas particulares nada mais são do que afecções dos atributos de Deus, ou seja, modos pelos quais os atributos de Deus exprimem-se de uma maneira definida e determinada.”

Tanto atributo como modo são expressivos. Em um primeiro momento, Deus se

exprime nos seus atributos, que por sua vez, se exprimem nos modos, que finalmente,

exprimem eles mesmos novas modificações. Deleuze irá separar esta expressão ao menos

em dois níveis distintos: o primeiro nível diz respeito à expressão como constituição, uma

“quase genealogia da substância”69. Já o segundo nível é o da produção das coisas70. No

primeiro nível, Deus se exprime por si e no segundo nível, o atributo se exprime nos

modos. Deleuze diz de um alcance gnosiológico para a expressão71. Ele coloca também

o conhecimento no nível expressivo. Ora, as ideias, como modos do pensamento, são

modos que exprimem a natureza de Deus. Desta maneira, a relação entre o conhecimento

das coisas com o conhecimento de Deus assume o mesmo status que as coisas em si têm

com relação a Deus, um status que envolve e exprime o conceito de Deus e, portanto,

quanto mais coisas conhecer, mais coisas conhecemos de Deus (já que ele é a causa de

68 DELEUZE, 2017, p. 14; 69 Ibid, 2017, p. 8. 70 Ibid, 2017, p. 8. 71 Ibid, 2017, p. 9.

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tudo o que existe) e, consequentemente, pela ideia de Deus ser causa de todas as nossas

ideias, mais as ideias exprimem a infinidade.

Na expressão, duas outras noções são importantes: 1) a noção de explicar e; 2) a

noção de envolver. Atributos, além de exprimirem a essência da substância, também a

explicam e envolvem72. Explicar no sentido de desenvolver; envolver no sentido de

implicar. A expressão é uma explicação, pois é o desenvolvimento daquilo que se

exprime. Por outro lado, expressão também é permanecer envolvido naquilo que o

exprime. A expressão é, portanto, a junção destas noções, onde Deus pode ser explicado

e envolvido por seus atributos e ele mesmo compreende todos os atributos. Os modos,

por sua vez, tal qual os atributos, envolvem e explicam, não a substância, mas o atributo

do qual são modos, enquanto que o atributo contém todas as essências de modos

correspondentes. Sobre o primeiro ponto, a noção de explicar, Deleuze irá afirmar que “é

a expressão que funda a relação com o entendimento, e não o contrário.”73 Aparecendo

na E1D6, a expressão não define nem demonstra coisa alguma; o que havia para ser

definido, já fora definido na E1D3 e E1D4, substância e atributo, respectivamente. A

expressão não demonstra, pois faz da demonstração a “manifestação imediata da

substância absolutamente infinita.”74 A ideia da expressão, portanto, será a de exprimir

de cada atributo uma determinada essência eterna e infinita. O exprimido não existe sem

as expressões e cada expressão é como se fosse a existência do exprimido.

Deste ponto, Deleuze deriva outro conceito importante que é o da distinção entre

a substância que se exprime, os atributos que são expressões, a essência exprimida.

Sabemos que os atributos exprimem uma essência da substância e que, por isso, eles não

podem ser passivos, mas sim ativos, ou seja, atribuidores. Ser atribuidor é atribuir sua

essência que está diretamente relacionada com um Deus imanente, e que faz parte de uma

substância que existe necessariamente. Desta forma, os atributos são expressivos,

72 E1p19d atesta: “Além disso, por atributos de Deus deve-se compreender aquilo que (pela def. 4) exprime a essência da substância divina, isto é, aquilo que pertence à substância, que é precisamente, afirmo, o que esses atributos devem envolver. Ora, à natureza da substância (como já demonstrei na prop. 7) pertence a eternidade. Logo, cada um dos atributos deve envolver a eternidade e, portanto, são, todos, eternos. C. Q. D. “. Já a E1p20d confirma: “Deus (pela prop. prec.) e todos os seus atributos são eternos, isto é (pela def. 8), cada um de seus atributos exprime a existência. Portanto, os mesmos atributos de Deus que (pela def. 4) explicam a sua essência etema, explicam, ao mesmo tempo, sua existência etema, isto é, aquilo que constitui a essência de Deus constitui, ao mesmo tempo, sua existência. Logo, sua existência e sua essência são uma única e mesma coisa. C. Q. D.” 73 DELEUZE, 2017, p.12. 74 Ibid, 2017, p. 14.

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atribuindo alguma coisa a uma substância única ao invés de serem atribuídos a substâncias

variáveis. O que eles atribuem é uma essência infinita, uma qualidade ilimitada75. Além

disto, os atributos podem ser reconhecidos de duas maneiras, a priori ou a posteriori. A

priori, quando buscamos quais qualidades percebemos como sendo ilimitadas; a

posteriori, quando partimos do que é limitado afim de achar qualidades que possam ser

levadas ao infinito.

Deleuze se detém de forma mais específica sobre o método a posteriori de

conhecimento dos atributos afim de formular uma tese das noções comuns. Esta tese visa

combater a ideia de um antropomorfismo que confunde o finito com o infinito.

Geralmente, de maneira analógica, usamos de certas características dadas às criaturas para

atribuí-las a Deus. É como se uma coisa pudesse dizer o que Deus é, diria que ele é da

forma que lhe é essencial, por exemplo, se uma forma geométrica, tal qual um quadrado

pudesse falar, diria que Deus é quadrangular. O método analógico, portanto, confunde as

essências das coisas singulares com a essência de Deus. Spinoza faz exatamente o

contrário, afirma uma identidade entre as coisas e Deus, através das noções comuns, mas

não confunde, sobremaneira, as suas essências. A afirmação da identidade numérica feita

por Della Rocca usa exatamente deste método analógico criticado por Deleuze. Através

da aplicação da analogia na passagem da E2p7, Della Rocca afirma que, devido a

substância extensa e a substância pensante serem uma e mesma coisa, então, por analogia

direta, mente e corpo também o deverão ser, uma vez que a sequência do texto parece

demonstrar isto. Devemos ter em conta que o uso da analogia sempre envolve a já

apontada confusão entre a essência de Deus e a essência dos modos. E mesmo que se

objete que Della Rocca não faça tal confusão, mas que apenas mantenha uma analogia

entre uma relação presente tanto em Deus quanto nos modos finitos, não podemos afirmar

que esta relação seja a da identidade. Identificar mente e corpo numericamente sem levar

em consideração aspectos importantes de propriedades que os distingue, tal qual as

propriedades intencionais é um passo argumentativo que não pode lograr êxito. A

analogia, portanto, não pode ser verdadeira. Partindo da tese deleuziana das noções

comuns, constatamos que o que há não é uma identidade de essência, mas sim que há uma

forma comum que deriva dos atributos para os modos e desta forma os identifica, mas

75 Deleuze dirá que essas qualidades são qualidades substanciais porque elas qualificam uma mesma substância que tem todos os atributos. Cf. DELEUZE, 2017, p. 29.

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não os confunde essencialmente.76 O método spinozano não segue a analogia, mas sim a

univocidade. Os atributos são formas unívocas que se mantêm constantes em sua essência

mesmo ao mudarem de “sujeito”. Enquanto formas de ser infinitas, são expressões

unívocas que constituem a essência de Deus como formas comuns a Deus; quanto aos

modos, esses mesmos atributos implicam sua própria essência, envolvendo nos limites do

ser finito suas qualidades.

Ao se deter na noção de representação não mais apenas em seu aspecto ontológico,

mas em seu aspecto epistemológico (que é, no entanto, intimamente ligado ao primeiro

aspecto), Deleuze entende que um indivíduo77 é exprimido por um certo modo e sua ideia

correspondente. Para Deleuze, há claro favorecimento ao atributo pensamento, mas, como

sabemos, pelo paralelismo não pode haver nenhum privilégio de um atributo sobre o

outro, pois todos têm como causa Deus, a substância única. Esta é uma diferença

importante da posição spinozana com relação às posições de tradição aristotélica e mesmo

cartesiana, onde há possibilidade de privilégios do pensamento sobre a extensão, entre

outras razões, porque a extensão seria divisível e finita – isto é, mais “imperfeita” do que

o pensamento. Em Spinoza, vemos, na E2p2, que ambos os atributos exprimem

igualmente a perfeição absoluta de Deus e que a extensão, considerada pelo intelecto, sob

o ponto de vista da eternidade, é também indivisível e infinita.

Em Spinoza, no entanto, uma causa só pode ter lugar no mesmo atributo pelo qual

é concebido, sendo impossível haver qualquer causalidade entre ideias e coisas, como

atestam as passagens da E2p5 e E2p6; vejamos:

“O ser formal das ideias reconhece Deus como sua causa, enquanto Deus é considerado apenas como coisa pensante, e não enquanto é explicado por outro atributo. Isto é, as ideias, tanto dos atributos de Deus quanto das coisas singulares, reconhecem como sua causa eficiente não seus ideados, ou seja, as coisas percebidas, mas o próprio Deus, enquanto coisa pensante.”

E:

“Os modos de qualquer atributo têm Deus por causa, enquanto ele é considerado exclusivamente sob o atributo do qual eles são modos e não enquanto é considerado sob algum outro atributo.”

76 Deleuze dirá das formas comuns: “Os atributos são portanto formas comuns a Deus, do qual constituem a essência, e aos modos ou criaturas que os implicam essencialmente.” Cf. DELEUZE, 2017, p. 30. 77 De acordo com E2p21, indivíduo aqui é entendido como a unidade de uma ideia e de seu objeto.

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Ao pensarmos na relação da ideia com seu objeto correspondente, portanto, da mente com

o corpo, em Spinoza, temos que Deus é a causa primeira tanto das ideias (ou seja, a ideia

de Deus é a causa de todas as ideias) quanto Ele mesmo é causa também de todas as

coisas.

Em Deus, há duas potências iguais, a potência de pensar, ligada ao atributo

pensamento, e a potência de existir ou agir, ligada ao atributo extensão, mas também

ligada ao atributo pensamento, pois tudo o que existe deve necessariamente ser pensado

por Deus. Aqui há uma igualdade de princípios em Deus. Não tem nada a ver com

igualdade numérica. Os atributos são iguais quando compreendidos em relação à potência

de existir, e nisso não há contradições no sistema spinozano, pois os privilégios que cada

atributo tem ficam contidos dentro de cada domínio respectivamente, ou seja, o atributo

pensamento tem privilégios sobre sua potência de pensar78 e o atributo extensão tem

privilégios sobre a potência de agir. Fazer uma distinção correta entre as potências e os

atributos é fundamental para a filosofia spinozana, segundo Deleuze.79

Como dissemos, Deus, um ser absolutamente infinito, possui infinitas potências

iguais, que o possibilita ser em si e por si, fundindo-se em uma unidade radical80 ou no

que é o mesmo, no monismo81 ontológico spinozano. Por outro lado, apesar de suas

infinitas potências, seus atributos são infinitos82. Assim, é condição sine qua non que

essas duas potências que nos interessam aqui, o pensamento e a extensão, sejam

elementos da natureza divina, ao mesmo tempo em que a existência de uma infinidade de

atributos constitua também a natureza de Deus.

Deus é constituído de uma infinidade de atributos realmente distintos, ou seja, a

distinção existente entre os atributos não é apenas uma distinção de razão, mas uma

distinção real. No entanto, eles são iguais em sua essência, do ponto de vista de sua

78 Pela E2p7c, em Deus, a potência de pensar é idêntica à potência de agir, o que significa que o atributo pensamento é “maior” do que os outros atributos (na medida em que, para além de sua realidade formal, ele tem também o modo de ser objetivo de todos os atributos, inclusive dele mesmo. Mas esse “tamanho” maior não significa que ele tem uma potência maior. De fato, isso é explicado não por uma maior potência do pensamento, mas antes por sua natureza, que é a de representar (a si mesmo e a todos os atributos e modos de Deus). 79 DELEUZE, 2017, p. 78 80 Ibid, 2017. 81 E1p14d, c1. Cf. também E1p7 e Breve Tratado, cap. 2. A tese do monismo é aquela que diz que só pode existir uma única substância. 82 E1p16d e E2p3d mostram que as duas potências de Deus, tanto a potência de existir quanto a potência de pensar são absolutamente infinitas.

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potência, cada um exprimindo uma essência absoluta da substância, identificando-se nela,

sem haver superioridade ou inferioridade nenhuma entre esses atributos. Deleuze irá

demonstrar que a igualdade entre os atributos só é possível devido à compreensão de que

eles somente são iguais quando considerados em relação à potência de agir, e isto porque,

em cada atributo, essa potência existe como a essência formal de Deus.

Spinoza substitui o argumento das quantidades de realidades exposto por

Descartes83, para provar a existência de Deus a posteriori, pelo argumento das potências

divinas, que dá a forma de um argumento a priori. A prova cartesiana da existência de

Deus, considerada sob quantidades de perfeição ou realidade expressas entre uma ideia e

seu objeto, diz o seguinte: se nós (seres finitos) existimos e temos a ideia (infinita) de

Deus, logo, Deus, que é um ser mais perfeito que nós, também deve existir, pois Ele é a

única causa assinalável para a existência da ideia de Deus. Em suma, uma causa deve ter

tanto ou mais realidade que seu efeito, e um ser finito não pode causar um ser infinito,

ainda que esse último seja apenas um ser objetivo. Spinoza não usa este argumento

cartesiano e adota o argumento das potências. Para o filósofo holandês, passar à existência

de Deus a partir da inferência de sua ideia poderia nos levar ao erro de pensar o infinito a

partir do finito, na medida em que, embora sua realidade objetiva seja infinita, ela é

concebida como sendo uma modificação de uma mente finita. Para uma prova mais

consistente, será preciso passar pelo argumento das potências. É na potência de pensar

que se encontra a “razão da sua realidade objetiva84 contida na ideia de Deus e na potência

de existir, que por sua vez, é a razão da sua realidade formal”85. Portanto, quem tem

potência para se conservar não precisa de causa para existir; Deus é causa de si; logo, tem

potência para se conservar; logo, existe e existe necessariamente86. Outrossim, está

substituído o argumento cartesiano; como vemos em uma de suas cartas, Spinoza é

conclusivo a este respeito:

83 O argumento das quantidades de realidades, que diz que uma causa deve ter tanto ou mais realidade que seu efeito, para provar a existência de Deus a posteriori, é muito criticado por Spinoza, que, por sua vez, irá substituir esta tese pelo argumento das potências. Sobre o argumento das quantidades de realidades, Cf. DESCARTES, 1973, p. 111, 112. 84 Realidade objetiva aqui entendida como o ser da coisa que está na ideia, uma representação. 85 DELEUZE, 2017, p.58 86 Não é nosso objetivo nos determos em detalhes sobre a teoria da existência necessária de Deus; basta, para nosso estudo, neste ponto, sabermos que, se um ser finito existe necessariamente (devido a uma causa exterior), Deus, que é um ser absolutamente infinito, também deve existir necessariamente (devido à sua própria essência), pois, se assim não fosse, seria menos potente que um ser finito, o que é absurdo. Sobre este ponto, cf. E1p11.

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“O poder do pensamento de pensar sobre coisas, ou de concebê-las, não é maior que o poder na natureza de existir e produzir efeitos. Este é um claro e verdadeiro axioma, do qual a existência de Deus se segue muito claramente e validamente”.”87

A potência de pensar e a potência de existir são idênticas à essência de Deus, e

por isso, se segue destes conceitos que Deus existe necessariamente. Ora, dizer que a

essência de Deus é potência implica dizer que Deus produz uma infinidade de coisas, e

que, portanto, ele produz da mesma maneira que existe88. Assim, Deus tem uma potência

infinita de pensar todas as coisas, tanto existentes quanto não existentes, e isto, de maneira

necessária; da mesma maneira, ele tem uma potência de existir absoluta e também

necessária, a qual implica um poder de ser afetado de uma infinidade de maneiras, como

causa ativa dessas afecções. Deleuze destaca que o conceito de igualdade das potências

será fundamental na parte 2 da Ética89, onde Spinoza estabelece a tese do paralelismo.

A potência de Deus é identificada por Spinoza como a sua própria essência90. Esta

identificação entre potência e essência divina trará uma correlação direta aos modos

finitos. Em Deus, temos duas potências, uma absolutamente infinita de existir e agir que

é igual a sua essência formal e outra absolutamente infinita de conhecer e pensar que é

igual a sua essência objetiva. Ora, o ser finito, modo de um atributo divino, modificação

da substância, considerado como sendo parte de um todo, também possui uma potência

de existir igual a sua essência formal, uma vez que essa essência está presente em todos

os atributos. O mesmo ocorre com a potência de conhecer, que será igual a sua essência

objetiva. O ponto aqui nesta correlação que interessa ao nosso estudo é que o ser finito é

totalmente condicionado, enquanto que a substância, ou Deus, do qual o ser finito é

“apenas” uma modificação, é totalmente incondicionado. Apesar de, em ambos, as

potências de pensar e de existir serem iguais, no ser finito, a sua existência é totalmente

condicionada a algo exterior; em contrapartida, em Deus, a sua existência é totalmente

incondicionada, ou seja, ele depende apenas de si para existir91.

A essência de Deus, por fim, será, objetivamente, potência de pensar e,

formalmente, potência de agir. Isto não significa dizer que as potências divinas serão

iguais aos seus atributos. Ao contrário, é a existência de uma infinidade de atributos que

87 Carta 40, para Jelles, março de 1667 (CURLEY, 2016, p. 684) 88 DELEUZE, 2017, p. 63. 89 Ibid, 2017, p.56. 90 E1p34. 91 E4p4d. Aqui, Spinoza, diz que a potência do homem “é uma parte da potência infinita de Deus”, deixando claro que se trata de potências diferentes, a dos seres finitos singulares e a de Deus.

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faz com que Deus tenha uma potência absoluta de existir igual à sua essência, pois o

pensamento e a extensão (que são os atributos que conhecemos, pois deles somos

formados) não são suficientes para preencher uma potência absoluta de existir, ou seja,

somente com a existência de infinitos atributos é que podemos dizer que Deus tem uma

potência absoluta de existir. Diremos, então, que Deus tem uma essência absoluta formal,

constituída de infinitos atributos realmente distintos que o exprimem formalmente, e que

por sua vez, estão contidos em sua infinidade de formas em Deus. Assim, a essência

absoluta formal de Deus é igual a sua potência absoluta de existir. É a partir disto que,

afirmará Deleuze, “devemos compreender o princípio de igualdade dos atributos: todos

os atributos são iguais em relação a essa potência de existir e agir que eles

condicionam”92.

Deus possui, por outro lado, uma potência infinita de pensar, através da qual ele

se exprime objetivamente. Sua essência absoluta objetiva é igual, da mesma maneira, a

essa potência de pensar ou conhecer. Por isso, a ideia de Deus representa todos os

atributos formais, pois esta ideia é representação objetiva necessária de sua natureza.

Temos, então, que Deus possui uma potência absoluta de pensar, que é igual a sua

potência absoluta de agir, pois tudo o que produz é pensado por Ele. Assim, podemos

falar da natureza de Deus ou de sua essência absoluta que, por um lado, é objetivamente

potência infinita de pensar e, por outro lado é, formalmente potência infinita de existir,

como diz Spinoza, em seu Tratado da Correção do Intelecto93:

“[...]investiguemos se existe algum ser (e ao mesmo tempo qual é) que seja a causa de todas as coisas, a fim de que sua essência objetiva seja também a causa de todas as nossas ideias.”

Fica estabelecida, desta maneira, a igualdade das potências de Deus e sua distinção

com os seus atributos. Não devemos confundir o atributo extensão e o atributo

pensamento com a potência de existir e a potência de pensar, respectivamente. Deleuze,

entretanto, afirma a existência de uma relação peculiar entre o atributo pensamento e a

potência de pensar. Enquanto a potência de existir não consegue ser preenchida

suficientemente pelos atributos infinitos de pensamento e extensão, pois coisas podem

existir e agir sem ser extensas nem pensantes, o atributo pensamento é o único pelo qual

se pode conhecer qualquer coisa, desde que não seja contraditória. Outrossim,

diferentemente da incapacidade que qualquer atributo tem de preencher a potência de

92 DELEUZE, 2017, p. 80. 93 TCI, 99.

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existir, a potência de pensar é completamente preenchida, na medida em que representa

a essência objetiva de todos os atributos. Daí que é a igualdade das potências que confere

ao atributo pensamento privilégios; privilégios estes que não se encontram mais em um

domínio da igualdade dos atributos94.

Três consequências são fundamentais na relação entre a potência de pensar e o

atributo pensamento95. Em primeiro lugar, que a essência objetiva de Deus é potência

absoluta de pensar e tudo o que decorre desta essência participa desta potência. Todas as

coisas, por sua vez, são representadas no atributo pensamento e, nesse sentido, a ideia de

Deus é um modo do pensamento, pois aquilo que é modo do atributo pensamento é

sempre a ideia considerada no seu ser formal. Todas as coisas precisam “passar pelo

crivo” do pensamento, inclusive a essência objetiva de Deus, que deverá ter um ser formal

no atributo pensamento. E é aí que todas as coisas são “formadas” e a ideia de Deus não

escapa a essa análise96.

Deleuze irá destacar dois aspectos que lhe parecem fundamentais ao tratarmos da

teoria da ideia de Deus97. Primeiramente, é inerente ao ser de Deus compreender-se

necessariamente, pois pertence-lhe uma potência absoluta de pensar que corresponde à

sua ideia. Ou seja, Deus tem uma potência absoluta de pensar que é igual a sua essência

objetiva ou à sua ideia, o que já demonstramos acima. A ideia de Deus é, assim, um

princípio absoluto de tudo que se sucede objetivamente em si. O segundo aspecto

determinante é pensar a ideia de Deus a partir de sua possiblidade. Segundo sua

possibilidade, a ideia de Deus só pode ser formada no atributo pensamento, onde encontra

o princípio formal do qual depende, pois é no atributo pensamento que afirmamos Deus

como potência absoluta de pensar. Portanto, é somente no pensamento que a ideia de

Deus consegue adquirir sua existência formal.

A segunda consequência a ser retirada sobre a relação entre a potência de pensar

e o atributo pensamento é que, a partir da sua potência de existir, ou seja, de sua natureza,

a ideia de Deus adquire sua necessidade objetiva. A possibilidade formal da ideia de Deus,

94 DELEUZE, 2017, p. 81. Deleuze destaca ainda que este posicionamento, que confere ao atributo pensamento certos privilégios, somente será interpretado de maneira errônea se ao atributo pensamento fosse atribuído poderes contrários à igualdade entre os atributos. Como este não é o caso, não há contradições. 95 Ibid, p. 81. 96 E2p5d; é evidente e vale ressaltar que o ser objetivo não seria nada se não tivesse o ser formal, através do qual ele é um modo do atributo pensamento. Cf. sobre este ponto, DELEUZE, 2017, p. 82. 97 Ibid.

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no que lhe diz respeito, estará contida no atributo pensamento, ao qual, por fim, ela

pertence como modo. Parece possível e não contraditório, portanto, necessário, visto que

tudo o que se encontra na potência infinita de Deus é realizado, dizer que Deus possui

uma ciência de si e de sua própria natureza, pois são as suas potências, tanto de pensar

quanto a de existir, que possibilitam esta compreensão necessária de sua própria natureza.

Este ponto nos habilita a dizer que, da mesma maneira que Deus produz todas as coisas

formalmente, ele se compreende objetivamente, pois até mesmo este compreender-se tem

uma realidade formal. Deleuze destaca98:

“Neste ponto se encontra o primeiro privilégio do atributo pensamento: ele contém formalmente modos que, considerados objetivamente, representam os próprios atributos”

O que Deleuze parece querer demonstrar é que além de Deus produzir da mesma maneira

como se compreende e compreender tudo que produz, Deus também produz a forma sob

a qual se compreende e compreende tudo. Isto significa dizer que seu entendimento

infinito é totalmente necessário. Desta forma, a essência objetiva de Deus é tão necessária

quanto sua essência formal.

A terceira e última consequência nesta relação é que tudo o que existe

formalmente tem uma ideia que lhe é correspondente objetivamente. Em outras palavras,

para cada objeto, há uma ideia que a representa. Além disso, ao falarmos de maneira

destacada do atributo pensamento, percebemos que toda ideia que está contida neste

atributo é, por sua vez, objeto de uma outra ideia que a representa, isso ad infinitum.

Temos um processo que parece evidenciar, no atributo pensamento, uma capacidade da

ideia de se refletir ao infinito. Podemos afirmar que, na relação entre potência de pensar

e o atributo pensamento, toda ideia que participa do primeiro pertence formalmente ao

segundo, e vice-versa.

Diferentemente da relação objeto e ideia, que se referem a dois atributos99, a ideia

e a ideia da ideia se referirão ao mesmo e único atributo pensamento100. Deleuze destaca

a estranheza na passagem101 em que Spinoza diz que a ideia e a ideia da ideia têm a mesma

relação entre si que a ideia tem com seu objeto. Esta estranheza se justifica, pois é

98 DELEUZE, 2017, p. 83. 99 Objeto e ideia irão se referir também às duas potências que expusemos anteriormente, a potência de agir e a potência de pensar. 100 Assim como objeto e ideia, a ideia e a ideia da ideia também se referirão à potência de pensar e à potência de agir. 101 E2p21s.

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intrigante perceber como Spinoza confere o mesmo estatuto à relação entre ideia e ideia

da ideia, em comparação com a relação ideia e objeto, uma vez que ideia e objeto são

uma mesma coisa concebida sob dois atributos diferentes, pensamento e extensão, e a

ideia e a ideia da ideia pertencem somente ao atributo pensamento, como afirmamos

acima. Não podemos nos deixar escapar, no entanto, que a ideia e a ideia da ideia irão se

distinguir de duas maneiras, uma em relação à sua potência de existir e outra em relação

à sua potência de pensar, e que esse movimento é o mesmo que acontece com a ideia e o

objeto, pois os mesmos se referem, também, à potência de pensar e à potência de existir.

Ou seja, a ideia e a ideia da ideia se referem a um único atributo, da mesma maneira que

se referem também a duas potências, pois o atributo pensamento é condição da potência

de pensar, mas, também, uma forma de existência102. Deleuze faz um paralelo entre o

objeto e a ideia, e a ideia e a ideia da ideia. Objeto e ideia se referem a dois atributos e a

duas potências. A ideia e ideia da ideia se referem a um atributo, o pensamento, mas a

duas potências, quando tomamos o atributo pensamento ora sob uma forma de existência,

ora sob uma condição da potência de pensar. Outrossim, devemos perceber que há uma

distinção quando consideramos a teoria da ideia no seu ser formal, em relação à potência

de existir, e quando consideramos esta mesma teoria no seu ser objetivo, em relação a

potência de pensar103.

Esta argumentação das potências divinas e suas implicações no sistema spinozano,

proposta por Deleuze, deixa clara a impossibilidade da existência de uma identidade

numérica entre mente e corpo, uma vez que, como vimos, Spinoza expõe dois argumentos

bem distintos: o da igualdade das potências e o da igualdade dos atributos.

Há uma dificuldade latente na proposição que estabelece o paralelismo. Esta

dificuldade, da passagem do argumento epistemológico para o argumento ontológico,

feito de forma genérica na E2p7 por Spinoza, deve ser compreendida, segundo Deleuze,

somente se considerarmos o “estatuto complexo da ideia de Deus”. Aqui entra toda a

argumentação sobre a necessidade e a possibilidade da ideia de Deus exposta

anteriormente. Segundo sua necessidade objetiva, a ideia de Deus é una tanto quanto a

102 DELEUZE, 2017, p. 84. 103 Não deixamos de evidenciar que há certa dificuldade na teoria da ideia da ideia. Ou consideramos a ideia da ideia como que debaixo de uma unidade, pois, dadas em Deus, se seguem da mesma potência de pensar, ou consideramos a sua distinção, quando pensadas a partir da sua existência formal, em relação à potência de existir ou a partir da sua existência objetiva, em relação à potência de pensar. Adotamos a posição deleuziana que afirma que existe apenas uma distinção de razão entre as duas ideias. Cf. DELEUZE, 2017, p. 84.

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substância infinitamente infinita; do ponto de vista da sua possibilidade formal, a ideia de

Deus é também um modo, ou seja, seu entendimento infinito, que está contido no atributo

pensamento pela sua potência de pensar e que contém ou exprime algo da substância

absolutamente infinita. Assim, a ideia de Deus assume uma capacidade de transferir aos

modos algo da unidade substancial divina. Em Deus, portanto, existem modos de pensar

que assumem um caráter de unidade modal. Quando percebemos que um modo pode se

exprimir de uma infinidade de maneiras na ideia de Deus, concluímos que eles só diferem

pelo atributo pelo qual se exprimem, pois as ideias que eles representam exprimem uma

única e mesma modificação.

A partir deste duplo aspecto da ideia de Deus, passamos da unidade dos atributos

para a multiplicidade dos modos sem que haja contradições que invalidem o sistema

filosófico spinozano. Sabemos que um modo de um atributo qualquer, juntamente com

sua ideia, ou uma ideia, juntamente com o objeto que ela representa, formam um único

indivíduo. Ora, em Deus, há uma multiplicidade de ideias que, juntamente com seus

objetos, produz uma infinidade de indivíduos. Porém, esta infinidade de indivíduos se

corresponde, pois exprime uma mesma modificação. Assim, cada indivíduo é constituído

por um modo e sua respectiva ideia, o que possibilita, por sua vez, pela possibilidade de

uma infinidade de modos, a existência de uma infinidade de indivíduos. Por Deus ter um

entendimento infinito uno, tudo que é sua representação também terá, em certa medida,

tanta unidade quanto ele mesmo. Podemos, a partir de então, compreender a passagem na

E2p7s. A ideia de Deus, ou seu entendimento, donde derivam todos os atributos que

exprimem sua essência, têm uma unidade tão forte, ou seja, ela é tão necessária quanto a

própria substância divina. Desta maneira, é certo que os atributos, que constituem a

substância, ou seja, que têm sua unidade, pois existem por si, mas são realmente distintos,

exprimam modos que, de certa maneira, gozarão de uma unidade que deriva da própria

substância. Afirmamos, deste modo, uma unidade atributo-modal quando pensada a partir

da necessidade objetivo-formal da ideia de Deus, que se expressa através de sua potência

infinita de pensar e conhecer e uma pluralidade atributo-modal quando pensada a partir

da possibilidade real-formal da natureza de Deus, que se expressa através de sua potência

infinita de existir e agir.

Doravante, os argumentos deleuzianos expostos nos parecem suficientes para

invalidar a teoria da identidade numérica proposta por Della Rocca. Como buscamos

compreender o salto proposto por Spinoza na segunda seção da parte 5 da Ética, tentando

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entender qual o caminho necessário para que o indivíduo alcance a verdadeira liberdade,

não podemos perder de vista que o ser humano é um indivíduo dotado de uma mente e

um corpo realmente distintos mas unidos por uma relação de representação (e não de

identidade numérica) e também participante da unidade da substância, que, por sua vez,

é única em si, mas diversa em seus infinitos atributos. Assim, tentaremos elucidar como

a relação que o ser humano tem consigo precisa ser de outra ordem, diferente daquela que

apenas se preocupa com os “remédios para as afecções”. Uma ordem que perceba que as

coisas terrenas são menos importantes para a sua liberdade. Uma ordem que proporcione

o maior esforço possível de conservar o seu ser. O ponto aqui é pensarmos, olhando para

a parte 5 da Ética, que fundamental será a relação reflexivo-racional que o indivíduo tem

consigo, tomando ciência por si de sua eternidade, de sua participação na substância, de

sua integração com Deus, que será a forma derradeira de alcançar a liberdade.

Vimos que a tese do paralelismo é fundamental no sistema spinozano. Através

desta tese percebemos como Spinoza compreende a relação entre mente e corpo, onde,

apesar de serem realmente distintos e de não se relacionarem de maneira causal, a ordem

e a conexão de um é a mesma que a ordem e a conexão do outro, pois eles são uma só e

mesma coisa que se exprime de duas maneiras, ora como um modo da extensão, ora como

um modo do pensamento. Spinoza formula esta tese para contrapô-la diretamente ao

dualismo cartesiano, que afirma a existência de mais de uma substância, sendo mente e

corpo constituintes substanciais do ser humano e que se relacionam de maneira causal.

Spinoza não aceita um tipo de relação causal entre mente e corpo, pois mente e corpo,

por serem modificações de atributos distintos, portanto, também distintos, não podem se

relacionar, uma vez que, “não se pode conhecer uma por meio da outra, coisas que nada

têm de comum entre si ou que o conceito de uma não envolve o conceito da outra”104.

Spinoza também não pode aceitar a tese cartesiana da existência de mais de uma

substância. Para ele Deus é a única substância, pois é a causa de todas as coisas e o único

que a sua existência depende apenas da sua essência, o único que existe por si. Todas as

demais coisas dependem de outra coisa para existir. Fato é que o paralelismo spinozano

gerou e continua gerando debates entre os estudiosos do filósofo.

O conceito que para nós mais se coaduna com a filosofia de Spinoza é o conceito

de representação, tal qual exposto por Deleuze. Partindo da noção das potências de Deus,

Deleuze irá sustentar que os atributos são iguais enquanto compreendidos em relação à

104 E1ax5.

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potência de pensar e à potência de existir de Deus. Em Deus, é a sua potência que

determina a sua existência, uma vez que a sua potência é igual à sua essência. Desta

maneira, Deus se compreende necessariamente, pois tem uma potência absoluta de

pensar, onde todas as coisas são representadas. E é a partir da teoria da ideia de Deus que

Deleuze irá demonstrar de maneira admirável como Spinoza dá um salto da unidade dos

atributos para a multiplicidade dos modos, que só diferem pelo atributo pelo qual se

exprimem. Assim, uma ideia, juntamente com o objeto que ela representa, forma um

único indivíduo, pois há em Deus uma multiplicidade de ideias que, juntamente com seus

objetos, produz uma infinidade de indivíduos.

Entendermos a importância da noção da relação entre mente e corpo como

representação é fundamental para tentar responder em que medida o ser humano pode ou

deve se descolar das relações que envolvem sobretudo o seu corpo em favor das relações

que envolvem sobretudo a sua mente em sua trajetória para alcançar a beatitude. Nossa

exposição mostrou que Deleuze não poderia identificar numericamente mente e corpo,

pois sua teoria das potências de Deus mostra que mente e corpo devem ser entendidos

como a mente sendo uma representação do corpo; ora, mente e corpo quando

considerados como coisas distintas, mas que têm entre si relações causais paralelas é uma

intepretação que está muito mais próxima à Spinoza.

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3 –– A PARTE ETERNA DA MENTE

3.1 A Parte Eterna da Mente

Apresentamos, nos capítulos anteriores, uma análise, a partir de dois

comentadores, Della Rocca e Deleuze, daquilo que se convencionou chamar de “tese do

paralelismo”. Apontamos que a interpretação deleuziana da relação entre mente e corpo,

através da relação de representação, é a que nos parece mais adequada e alinhada com os

textos spinozanos. Além disso, a representação nos parece o tipo de relação mais

adequado para explicar como mente e corpo podem existir em um único ser, sem que seja

preciso identificá-los numericamente. Afinal, “o objeto da ideia que constitui a mente

humana é o corpo”, conforme a E2p13. Com efeito, é essa natureza representativa do

pensamento, capaz de representar coisas distintas de si, que explica a existência de ideias

atuais eternas105. Portanto, todas as coisas estão contidas na ideia infinita de Deus ou nos

seus atributos, o que significa que todas as coisas (essências) que estão contidas na ideia

infinita de Deus só são eternas porque o ser que as contém é eterno.

Verificamos, na afirmação acima, o ponto de partida para falarmos de uma parte

da mente que é eterna e que não tem relação com o corpo. Este é o tópico que Spinoza

anunciará como sendo o principal tema da segunda seção da parte 5 da Ética. Ao final do

escólio da proposição 20, o filósofo holandês afirma: “É, pois, agora, o momento de

passar àquilo que se refere à duração da mente, considerada sem relação com o corpo”.

Spinoza anuncia uma mudança que nos parece radical, pois, durante toda a Ética,

percebemos o quanto ele está disposto a tratar do que pode o corpo e por quais vias este

corpo pode padecer menos e o quanto pode se alegrar mais. Agora, chegando ao final de

seu projeto ético, Spinoza aponta para uma direção que parece oposta a tudo o que já fora

apresentado anteriormente. Ele aponta, portanto, que a culminância de sua Ética, ou seja,

aquilo em que consiste a liberdade humana, não estará focada nas relações entre mente e

corpo, mas sim em entender como a parte eterna da mente é capaz de levar o indivíduo a

alcançar a beatitude. Desta maneira, uma passagem fundamental em que precisamos nos

deter é a da E5p23, que diz:

“A mente humana não pode ser inteiramente destruída com o corpo: dela permanece algo, que é eterno.”

105 A ideia da essência da cadeira existe eternamente, enquanto a cadeira em ato existe na duração (tanto quanto sua ideia).

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3.2 Diferentes interpretações

Muito se tem debatido acerca da dificuldade de harmonia do sistema filosófico

spinozano a partir da leitura da segunda seção da parte 5 da Ética. Grande parte da

dificuldade interpretativa é devida à relação da eternidade da mente com outras teses

capitais apresentadas na Ética. Ora, se “o objeto da ideia que constitui a mente humana é

o corpo”, conforme afirma a E2p13, e se conforme a E2p7s, a mente e o corpo “são uma

só e mesma coisa”, ou como diz a E2p21s, “são um único e mesmo indivíduo, concebido

ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão”, então, como Spinoza pode

afirmar que uma parte da mente é eterna mesmo depois da destruição do corpo, tal qual

descrito na E5p23? Isto não indica uma quebra, ou ao menos um enfraquecimento da tese

do paralelismo? Apresentaremos algumas possiblidades de respostas para o problema

formulado e em seguida faremos a exposição do que acreditamos ser um posicionamento

mais coerente com toda a filosofia spinozana.

Basicamente, as duas grandes linhas interpretativas106 irão na direção de

interpretar a eternidade, (1) ou bem fazendo apenas uma distinção de razão entre a

eternidade que é dita tanto dos modos quanto da substância, ou seja, afirmando que há

apenas um tipo de eternidade, ora aplicado aos modos, ora aplicado à substância (a esta

linha chamarei de epistemológica); (2) ou bem fazendo uma distinção real entre a

eternidade que é dita dos modos e a eternidade que é dita da substância, afirmando,

portanto, que o que existe são duas eternidades distintas, uma que se aplica aos modos,

uma eternidade em um sentido mais fraco, e outra que se aplica à substância, uma outra

eternidade em sentido mais forte (a esta linha interpretativa, chamarei de ontológica).

Kneale, Donagan e Matson107 argumentam em favor do segundo tipo de

interpretação da eternidade da mente exposto acima. Kneale interpreta que Spinoza faz

uma transição de uma visão majoritariamente platônica da eternidade (atemporal), no

começo e desenrolar da Ética, para uma visão mais aristotélica da eternidade

(sempiternidade), já na última parte da Ética. Sua leitura parte da premissa de que Deus

106 Aqui, me diferencio de Parchment, cf. PARCHMENT, 2000, p. 350. Para Parchment, a linha interpretativa epistemológica afirma que a mente é eterna porque conhece coisas eternas. Para nós, mesmo que a mente não conheça nada além do seu corpo, que não é eterno, uma sua parte será eterna. Já sua interpretação ontológica afirmará que a mente é literalmente eterna. Ora, afirmar a literalidade da eternidade da mente implica dizer que ela certamente irá conhecer coisas eternas, ou seja, que de certa forma a abordagem epistemológica está contida na ontológica. Nosso ponto, no entanto, não é afirmar se a mente é eterna epistemologicamente ou ontologicamente, mas sim em elucidar que tipo de eternidade é essa, e como ela é distinguida quando dita, ora da substância e ora dos modos. 107 KNEALE, 1973, p. 227-240; DONAGAN, 1973, p. 241-258; MATSON, 1990, p. 82-95.

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tem um conhecimento completo de todas as coisas no universo. Esse conhecimento inclui

o caso que todo corpo humano tem uma mente que lhe corresponde, ao menos a parte que

lhe é eterna. Ora, se Deus tem o conhecimento de todas as coisas no universo, logo ele

tem o conhecimento da essência de cada corpo humano, o que, por sua vez, é um

conhecimento necessário, ou seja, eterno e, assim sendo, sempiterno. Apesar de parecer

estranho este argumento, Kneale argumenta que a eternidade é igual a sempiternidade,

pois o que implica a sempiternidade é a necessidade e não o contrário.108 Donagan

argumenta de maneira semelhante à de Kneale. Ele propõe interpretar a eternidade como

sempiternidade e afirma que Deus tem um conhecimento de cada essência de cada corpo,

que por sua vez constitui a existência eterna da mente. A diferença substancial entre

Donagan e Kneale é que o primeiro rejeita a possibilidade de Spinoza aceitar uma teoria

da salvação universal. Matson, por sua vez, tal qual Kneale e Donagan, argumenta que o

corpo tem dois tipos de existência. Ele distingue o corpo que existe eternamente como

uma essência da sua existência na duração. Assim também o faz com a mente, que existirá

de duas maneiras, uma na duração e outra de forma eterna. A diferença entre Matson e os

outros dois é que ele acredita que a ideia de uma essência eterna pode crescer, conforme

durante a vida, o indivíduo adquire ideias adequadas. Para ele, a ideia de uma essência

eterna, que ele chamará de “proto-mente”109, apesar de ser eterna, por ser o repositório

das ideias adequadas adquiridas durante a vida, cresce por acréscimo destas ideais. Assim,

para ele por a mente ser composta de muitas ideias, conforme E2p15, não há contradição

em concebê-la também como uma espécie de imã que atrai outras ideias adequadas e a

faz crescer.110

Em favor da primeira linha interpretativa exposta acima, cada qual com suas

nuances particulares, está Allison111, Gleizer112. Em seu artigo em resposta a Matson113,

108 KNEALE, 1973, p. 235. 109 A proto-mente é definida por Matson: “The proto-mind, being the idea corresponding to the eternal essence of the body (the genetic code, or whatever is its eternal pattern), is (to speak in yet another way of it) the core of the mind. It is not "affected by the idea of any other body" and consequently is not passive nor subject to passion. Therefore (IIIP3) the idea that constitutes it is adequate. Th say this is to imply further that whatever it conceives, it does so "under the form of eternity," that is, rationally, and without reference to duration.” Cf. MATSON, 1990, p. 91. 110 Ibid, 1990, p. 92. 111 ALLISON, 1990, p. 96-101. 112 GLEIZER, 2009, p. 37-60. Apesar de incluí-lo nesta linha interpretativa, ressalto que ele não afirma claramente sua posição em seu artigo. Contudo, a sua argumentação vai na direção de afirmar a existência de apenas um tipo de eternidade, que ora é aplicado aos modos e ora aplicado à substância, como fica evidente no resumo do artigo em questão. Desta maneira, considerei coerente a inserção de suas formulações na linha interpretativa a qual chamei de epistemológica. 113 MATSON, 1990, p. 82-95.

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Allison argumenta, a partir das teses de Bennett, que Matson faz confusão entre a

distinção lógica e epistemológica para o sentido do termo ideia usado por Spinoza na

Ética. A mente, enquanto ideia de uma essência de coisa singular atualizada e

determinada na duração, pode apreender o corpo como essência eterna pela razão e

intuição e é esta intuição que constitui a eternidade da mente. A eternidade da mente é,

desta maneira, um estado de conhecimento adequado do corpo como um modo eterno

possível. Assim, a mente não pode existir além da existência do corpo, tendo uma duração

limitada, tal qual o corpo. Por outro lado, ao conhecer adequadamente o corpo, a mente o

conhece de um modo eterno, sob o ponto de vista da eternidade.

Gleizer aponta três pontos pelos quais a interpretação ontológica, a qual irá

nomear de interpretação restritiva da E1D8, parece apontar para uma correta

interpretação. Primeiro, a plausibilidade inicial da leitura restritiva, que é o tipo de leitura

em que a eternidade será aplicada exclusivamente a Deus; segundo, o uso que Spinoza

faz de certas expressões para qualificar a eternidade dos modos; terceiro, o uso de

expressões temporais ao referir-se à eternidade dos modos. Para ele, o uso destes

argumentos ocorre devido a uma desatenção a teses fundamentais do sistema filosófico

spinozano, tais como a exigência da univocidade decorrente do princípio da

inteligibilidade integral do real (que rejeita que há coisas incompreensíveis na realidade)

e a tese da imanência, que determina um vínculo absoluto entre Deus e seus modos. O

caráter unívoco da eternidade aplicada tanto a Deus quanto aos modos decorre

diretamente do entendimento do conceito de imanência, que sustenta a transmissão de

forma necessária de uma propriedade não essencial, tal qual a eternidade, entre a

substância e seus modos, sem que se perca a distinção de essência entre estes. Para uma

correta interpretação da eternidade, é preciso levar em consideração, entre outros pontos,

a relação do que é necessário em virtude de sua essência e o que é necessário em virtude

de sua causa, uma vez que o conceito de eternidade envolve o de existência necessária.

Sua demonstração dará conta de que a eternidade, a partir da compatibilidade entre

univocidade, imanência e distinção de essência, deve ser entendida como atemporalidade

tanto na substância como nos seus modos. Desta maneira, existe apenas um tipo de

eternidade que está presente tanto na substância quanto nos modos. Como os modos têm

como causa Deus e este é eterno, portanto, atemporal, nos modos esta eternidade também

será atemporal. Outrossim, não deve ser ignorado que esta característica da transmissão

da eternidade entre a substância e seus modos não os iguala essencialmente.

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Parchment114 apresenta quatro pontos que ele considera fundamentais para

entender a eternidade da mente humana. São eles: 1) a natureza da mente; 2) o

paralelismo; 3) a causalidade divina; 4) a essência. Sua argumentação irá contra a

interpretação ontológica, pois acredita que esta entra em conflito direto com um ou mais

destes quatro pontos. Parchment argumentará que a mente é equiparada com as ideias no

intelecto infinito de Deus e que, por esta razão, a ideia de um corpo humano constitui a

essência da mente humana. Portanto, a mente unida a um corpo, ou seja, um ser singular,

não pode ser concebida sem a ideia no intelecto infinito deste corpo. Ou seja, a mente de

uma coisa singular, que é uma parte do intelecto de Deus pela E2p11c, e a ideia de Deus

desta coisa são uma e mesma coisa, o que quer dizer que a mente de um dado corpo e a

ideia de Deus deste corpo não pode ser nem ser concebido um sem o outro. Este é o

primeiro ponto115. Sua argumentação culminará na afirmação de que mesmo com as

aparentes contradições entre os pontos propostos, a teoria epistemológica é a que melhor

responde à distinção entre a existência limitada de uma coisa singular que é

adequadamente concebida pelo intelecto e a mesma existência inadequadamente retratada

pela imaginação. Desta maneira, os modos infinitos são eternos, pois têm uma duração

eterna, e as coisas singulares têm uma eternidade consonante com sua duração limitada

e, sendo assim, a diferença entre a eternidade entre os modos finitos e infinitos assume

um caráter distintivo apenas pela razão.

Laerke116, em suas considerações sobre a eternidade da mente em Spinoza,

curiosamente não tomará partido em nenhuma das linhas de interpretação ditas clássicas.

Outrossim, ele irá dizer: “eu irei argumentar que nós não precisamos escolher entre

eternidade [atemporalidade] e sempiternidade da mente, mas as duas teses podem, e vão

coexistir dentro do relato Spinozano na E5.” (tradução livre). Ele irá partir de uma

possível solução para o problema da noção de eternidade como sempiternidade. Ele

assumirá que a distinção entre eternidade e duração não envolve dois níveis ou tipos

diferentes de existência, mas sim dois aspectos realmente distintos e compatíveis de uma

mesma existência. Também manterá que não existe dicotomia entre a essência formal e a

114 PARCHMENT, 2000, p. 349-382. 115 Como não é nosso intuito esmiuçar as teorias propostas por Parchment, nos é suficiente saber que do ponto 2 ao 4 ele irá analisar de maneira detalhada a aplicação do paralelismo, do modos infinitos e finitos como efeitos de Deus e das essências das coisas singulares em ambas as teorias, a ontológica e a epistemológica. Não obstante, não podemos deixar de reafirmar que o que ele chama de teoria ontológica e epistemológica difere do que conceituamos sob estes mesmos nomes. Cf. PARCHMENT, 2000, p. 349-382. 116 LAERKE, 2016, p. 265-286.

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essência atual, que elas não ocupam duas realidades ontológicas distintas ou contêm dois

níveis ontológicos distintos, um onde as essências das coisas podem ser encontradas em

alguma forma possível ideal, e outro nível, onde as coisas existem atualmente. Ele irá

fazer uma diferenciação entre o que chama de eternidade absoluta e eternidade escalar,

sendo, respectivamente, aquela que é comum a todas as mentes e a eternidade que

aumenta conforme aumentam os conhecimentos adequados que a mente adquire. Esta

última tese, ele chamará de aspecto escalar da eternidade. Esta teoria afirma que a

eternidade deve ser entendida a partir da realidade objetiva da mente humana na medida

que ela é uma parte do intelecto divino, ou seja, que a mente humana é uma verdade eterna

acerca do corpo. Por ser uma verdade eterna acerca do corpo, quanto mais o corpo tem

experiências acerca de si e dos outros, tanto mais a mente adquire conhecimento e quanto

mais adquire conhecimento, maior se torna sua parte eterna. Desta maneira, mostrará que

a compreensão da diferença entre eternidade e duração e a diferença entre eternidade

absoluta e eternidade escalar deve ser posta em termos de aspectos assumidos pelo

conceito de eternidade, ao invés de níveis ou tipos.

Martha Kneale é citada por diversos comentadores117, sendo, assim, a mais

proeminente defensora da noção de eternidade como sempiternidade. Em seu famoso

artigo, intitulado “Eternidade e Sempiternidade”, ela demonstra a sua teoria da eternidade

como sempiternidade a partir de um paralelo feito entre a noção de eternidade dos antigos

em comparação com o conceito de eternidade dos modernos118. Gostaria de destacar

alguns pontos de sua tese. Em dado momento, ela afirma que a questão que lhe é

importante é a questão de afirmar que, se um objeto é eterno, ele não deve depender de

nenhuma linguagem temporal para afirmar a sua existência. Apesar de ter certa

plausibilidade, esta questão entra em conflito direto com a E1D8, com a E1p33s, com a

E5p23s e com outras teses fundamentais do sistema filosófico spinozano. Outro ponto

bastante controverso é a da doutrina da salvação universal. Ela afirma que Spinoza está

comprometido com a ideia de que todos devem alcançar a beatitude no final, e em todo o

tempo de duração do universo. Mas como pode ser possível, se para Spinoza, não há um

fim dos tempos? Afirma também que Spinoza teria mostrado que seu naturalismo radical

era o único que podia oferecer a certeza da salvação no lugar da esperança colocada em

117 Apenas para citar alguns, citamos: Donagan (1973), Learke (2016), Nadler (2006), Bennett (1984), dentre muitos outros. 118 KNEALE, 1973, p. 227-235.

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pauta pela religião. Donagan119 critica veladamente a hipótese apresentada por Kneale.

Para ele, apesar de Spinoza rejeitar as doutrinas de punição pós vida, isto não quer dizer

que haverá salvação universal e um dos motivos é que a beatitude não é uma recompensa

da virtude, mas a própria virtude. Desta forma, acreditamos que a noção de eternidade

que mais se aproxima dos textos spinozanos sem gerar conflitos com o restante de seu

sistema filosófico é aquele que interpreta a eternidade como atemporalidade. Primeiro

porque essa noção se coaduna perfeitamente com a única definição de eternidade

encontrada na Ética, onde Spinoza afirma tacitamente que a eternidade “não pode ser

explicada pela duração ou pelo tempo”120 e segundo porque esta definição mantém a

compatibilidade entre as teses do necessitarismo, da distinção de essências entre a

substância e os modos e da imanência. Portanto, consideramos suficientes essas

ponderações acerca da noção de eternidade, passamos agora à próxima seção onde

trataremos das essências da mente e do corpo.

119 DONAGAN, 1973, p. 257. Ele chama a tese proposta por Kneale de “tese hedionda”. 120 E1D8exp.

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3.3 Eternidade: Atemporalidade x Sempiternidade

Percebemos, a partir do exposto anteriormente, que a parte 5 da Ética talvez seja

uma das mais controversas entre os comentadores de Spinoza. Comumente, esta parte é

subdividida em outras duas, as quais chamaremos de seção, afim de evitar confusões. A

primeira seção se inicia no prefácio e vai até a proposição 20 e trata dos “meios pelos

quais a razão pode destruir ou enfraquecer nossas emoções passivas. Spinoza descreve

isso como o caminho que conduz à liberdade.”121 A segunda seção começa na proposição

21 e vai até a 42 e trata da “liberdade humana em si, e como mais forte é o sábio do que

o ignorante.”122 Bennett é um dos maiores críticos das teses apresentadas por Spinoza na

parte 5 da Ética. Ele sustenta que “os mais importantes argumentos são inválidos e que

muito do que ele afirma é falso”123, principalmente as teses da primeira seção, que

também ficou conhecida como a psicoterapia spinozana. Sua crítica mais contumaz reside

sobre a tese apresentada na E5p4 que afirma que podemos formar ideias adequadas a

partir de afecções do corpo ou de emoções passivas. Para Bennett isto é um absurdo, pois

“significa fazer uma mudança no que foi a causa do evento, e uma vez que o evento tenha

ocorrido é tarde demais para isso.”124 Koistinen125, acredita, por sua vez, que há boas

razões para sustentar que afecções passivas surgidas a partir de ideias inadequadas

possam ser sustentadas por ideias adequadas, possibilitando que afecções passivas se

tornem afecções ativas. Wolfson126, concordando com Spinoza, afirma que devemos

estudar nossas emoções e tentar ter um entendimento claro de sua causa. Para Moreau127,

a compreensão mesma da ideia de eternidade exposta na segunda seção reencontra três

dificuldades: 1) O aparente paradoxo de sua definição; 2) os diferentes conteúdos

possíveis que parecem sugerir os textos; 3) a ruptura do paralelismo que a parte 5 parece

implicar.

A teoria da eternidade constitui parte fundamental do projeto ético spinozano.

Nela está fundamentada a concepção de beatitude que será exposta na última parte da

Ética. Nossa intenção, portanto, será explicitar o conceito de eternidade proposto por

Spinoza, como este conceito de eternidade se aplica a uma parte da mente e a sua

121 JARRETT, 2007, p. 155. 122 Ibid. 123 Ibid, p. 171. 124 BENNETT, 1984, p. 335-337. 125 KOISTINEN, 1998, p. 5. 126 WOLFSON, 1969, p. 266-267. 127 MOREAU, 1994, p. 503.

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importância no caminho para a beatitude. Por isso, partimos da noção de apontada por

Deleuze e exposta anteriormente para a relação existente entre mente e corpo. Este

conceito nos possibilita manter excluída uma relação causal entre os modos; ela também

não atribui a mente qualquer espacialidade, já que a mente não é extensa e não nega a

necessidade da existência desta relação entre mente e corpo, que não será uma relação de

identidade numérica, mais sim de representação, pois, “o que, primeiramente, constitui o

ser atual da mente humana não é senão a ideia de uma coisa singular existente em ato” e

“o objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo”. Esta não é uma tarefa simples,

logo não temos a pretensão de esgotar o assunto nem responder a todas as dificuldades

decorrentes do tema. Algumas questões importantes para nós são: 1) além do que é, a

quem se aplica a eternidade? 2) se há uma parte da mente que é eterna, como

compatibilizar esta tese com a tese paralelismo? 3) a parte eterna da mente será maior

quanto maior for a aptidão do corpo? 4) a consciência da nossa eternidade e seus efeitos

nos reconcilia ou afasta da vida prática cotidiana?

Spinoza define a eternidade explicitamente na primeira parte da Ética:

“Por eternidade compreendo a própria existência, enquanto concebida como se seguindo, necessariamente, apenas da definição de uma coisa eterna. Explicação. Com efeito, uma tal existência é, assim como a essência da coisa, concebida como uma verdade eterna e não pode, por isso, ser explicada pela duração ou pelo tempo, mesmo que se conceba um tempo sem princípio nem fim.” (EID8)

O primeiro ponto que podemos destacar é que fica claro que o filósofo está

compreendendo a eternidade como ausência de duração, ou seja, a eternidade é

atemporal128. Por outro lado, ele parece se opor a uma compreensão de eternidade como

sempiternidade. Ora, se, como vemos na definição destacada acima, a eternidade não

pode “ser explicada pela duração ou pelo tempo” ou ainda como é dito na E1p33s2,

“...como na eternidade não há quando, nem antes, nem depois...” e mais, na E5p23s, “...a

eternidade não pode ser definida pelo tempo, nem ter, com este, qualquer relação.”, então,

parece claro e evidente que a eternidade na Ética de Spinoza é compreendida como

atemporalidade. A dificuldade em interpretar precisamente o sentido de eternidade como

atemporalidade se torna evidente devido a seu choque direto com outras passagens da

128 Duração e tempo são duas coisas diferentes para Spinoza. Cf. E2D5 e Pensamentos Metafísicos, Parte I, cap. 1.

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Ética onde Spinoza parece aceitar a compreensão de eternidade como sempiternidade.

Percebemos isto especificamente pelo uso de certas expressões temporais usadas para

referir-se à eternidade dos modos129. Quando, falando de como é eterno tudo aquilo que

resulta da natureza absoluta de Deus, Spinoza, na E1p21, usa a expressão “deve ter

existido sempre” e posteriormente na demonstração da proposição ele afirma que “nada

que se siga necessariamente da natureza absoluta de Deus não pode ter uma “duração

determinada”. Duração determinada ou limitada não exclui duração ilimitada, dando

margem a uma interpretação da eternidade dos modos infinitos como sempiternidade.

Olhando para a E5p23, lemos que “a mente humana não pode ser inteiramente destruída

juntamente com o corpo: dela permanece algo, que é eterno.” O uso do verbo permanecer

aqui é interpretado facilmente como a permanência temporal de uma parte da mente que

resiste à destruição do corpo. Este tipo de formulação foi usado anteriormente na E5p20s:

“é, pois, agora, o momento de passar àquilo que se refere à duração da mente, considerada

sem relação com o corpo.” Trata-se nitidamente de uma expressão temporal se referindo

a um tema atemporal, tornando plausível uma interpretação de eternidade como

sempiternidade130.

No entanto, apesar de parecer plausível uma intepretação da eternidade como

sempiternidade a partir das interpretações propostas acima, a mesma nos parece

equivocada, pois vai de encontro direto com a própria definição de eternidade proposta

por Spinoza na E1D8, além de fornecer duas possibilidades de interpretação do que é

eternidade, uma forte, que é aplicada a Deus, e outra fraca, aplicada aos modos. Este tipo

de interpretação não é o que nos parece estar demonstrado na Ética, nem em relação a

Deus e nem em relação à parte eterna da mente, ou seja, à mente humana. Podemos

destacar com especial atenção a passagem da E5p34s, onde Spinoza deixa claro que o que

existe é uma confusão do conceito de eternidade com o conceito de duração. Ele diz:

“Se prestarmos atenção à opinião comum dos homens, veremos que estão, na realidade, conscientes da eternidade de sua mente,

129 A própria possibilidade em atribuir eternidade aos modos quando na EID8, Spinoza, define a eternidade “como se seguindo, necessariamente, apenas da definição de uma coisa eterna.”, faz com que uma leitura da eternidade como sempiternidade seja possível. Ora, se eterno é apenas aquilo que se segue, necessariamente, da definição de uma coisa eterna, a definição deve aplicar-se propriamente a Deus, pois é o único que tem sua existência decorrendo necessariamente de sua essência. A eternidade dos modos, nesta leitura, deve ser de outro tipo, a saber, o da sempiternidade. Isto nos forçaria a ter duas leituras para a definição de eternidade. Uma, forte, aplicada a Deus e entendida como atemporalidade; e outra fraca, aplicada aos modos e entendida como sempiternidade. 130 Comentadores diversos adotam este tipo de interpretação. Cf. Martha Kneale (1973), Wallace Matson (1990), Martial Gueroult (1969), Alan Donagan (1973).

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mas que eles confundem com a duração e a imputam à imaginação ou à memória, as quais eles acreditam que subsistem após a morte.”

Desta maneira, podemos afirmar que a eternidade é atemporalidade e é aplicada a

Deus e a seus modos. Não como dois tipos de eternidades diferentes, mas como um

mesmo tipo de eternidade aplicada a dois entes distintos. Para entendermos melhor este

ponto, precisamos entender se o conceito de eternidade remete ao que existe eternamente

em virtude de sua própria essência ou ao que existe eternamente em virtude de sua causa

eterna.

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3.4 A Questão das Essências: Ser x Existir

Como vimos, a discussão dos comentadores sobre o conceito de eternidade da

mente paira sobre a noção de eternidade como atemporalidade, isto é, sem relação com a

duração, em contraste com a noção de eternidade como sempiternidade. A definição de

eternidade como atemporalidade estabelecida por Spinoza possibilita entendermos que

uma existência eterna pode ser de duas maneiras, a saber: 1) a partir de sua própria

essência eterna; 2) a partir da sua causa eterna. Desta maneira, temos, a partir da E1D8,

que a existência de uma coisa pode ser eterna em virtude de ser sequência necessária

apenas da definição da própria coisa. Aqui falamos de uma eternidade imediata,

exclusiva de Deus; ao passo que podemos também falar em uma existência eterna mediata

que se aplica aos modos e que é consequência necessária apenas da definição de uma

outra coisa. Assim, respondemos de maneira satisfatória que eternidade é a própria

existência de uma coisa, ora em virtude apenas da definição de si próprio, ora em virtude

apenas da definição de sua causa própria, de tal maneira que essa eternidade é aplicada

de tal forma à substância, ou seja, Deus, e a seus modos tanto infinitos como finitos. A

substância e seus atributos são eternos por si e os modos, por sua vez, têm ao menos algo

de eterno.

Na segunda seção da parte 5, Spinoza apresenta sua teoria da eternidade de uma

parte da mente humana131. Sua centralidade está posta em três pontos cruciais, a saber132:

1. Há em Deus uma ideia da essência formal de cada corpo humano.

2. Uma ideia da essência formal do corpo humano permanece após a destruição

deste mesmo corpo, e por esta razão há uma parte da mente humana que é

eterna.

3. Quanto mais sábio e mais conhecimento tiver das causas, maior é a parte da

mente que é eterna.

Nas proposições que se seguem, da E5p21 até a E5p32, ele irá fornecer uma

complexa teoria da eternidade da mente. Um dos problemas clássicos que se apresentam

nesta parte é o já exposto problema da eternidade sendo confundida com sempiternidade,

131 Curley, falando sobre esta parte diz: “... eu ainda não sinto que entendi esta parte da Ética adequadamente...” Cf. CURLEY, 1988, p. 84. Bennett vai mais longe e indaga: “Por que Spinoza escreve isso?” e mais, “... isso é perigoso: isto é lixo que faz com que os outros escrevam lixo.” Cf. BENNETT, 1984, p. 357 e 374. 132 GARRETT, 2010, p. 284.

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de que já tratamos acima. Outro problema fundamental é o do conceito de essência

formal133 e existência atual do corpo humano, no qual nos deteremos mais

especificamente. Um terceiro ponto derivado desta parte da Ética é o da imortalidade da

alma134.

A distinção entre os conceitos de essência formal e de existência atual do corpo

humano surge já nas primeiras proposições desta segunda seção. Eis os trechos mais

relevantes:

“A mente não pode imaginar nada, nem se recordar das coisas passadas, senão enquanto dura o corpo.” (E5p21)

“A mente não exprime a existência atual do seu corpo, nem tampouco concebe como atuais as afecções do corpo, senão enquanto dura o corpo (pelo corol. da prop. 8 da P. 2) e, consequentemente (pela prop. 26 da P. 2), não concebe nenhum corpo como existente em ato senão enquanto dura seu próprio corpo. Logo, não pode imaginar nada (veja-se a def. de imaginação no esc. da prop. 17 da P. 2), nem se recordar das coisas passadas, senão enquanto dura o corpo (veja-se a def. de memória no esc. da prop. 18 da P. 2). C. Q. D” (E5p21d)

“Em Deus, necessariamente existe, entretanto, uma ideia que exprime a essência deste ou daquele corpo humano sob a perspectiva da eternidade.” (E5p22)

“Deus é causa não apenas da existência deste ou daquele corpo humano, mas também da sua essência (pela prop. 25 da P. 1), a qual deve, por isso, ser necessariamente concebida, em virtude de uma certa necessidade eterna (pela prop. 16 da P. 1), por meio da própria essência de Deus (pelo ax. 4 da P, 1). Este conceito [da essência deste ou daquele corpo humano] deve, portanto,

133 Na E2D2, Spinoza define o que “pertence a essência”. Ele segue Descartes em sua conceituação, mas não no uso dos termos. Descartes opõe os termos ‘formal’ e ‘objetivo’. Uma realidade formal de uma coisa é a sua realidade atual, enquanto que uma realidade objetiva é uma coisa que existe na mente, ou seja a sua ideia. Spinoza, no entanto, ao falar de essência formal, está falando do que existe no atributo, independente de sua existência ou não no tempo. Isto implica dizer que há uma ideia da coisa, no intelecto de Deus, independente de sua existência atual, qual seja, sua essência formal. Spinoza disntingue, desta forma, duas maneiras de existir: 1) contidas e compreendidas nos atributos de Deus (E2p8d,c,s), portanto, de maneira atemporal; 2) no tempo, consequentemente, temporal. Não podemos nos iludir em querer dizer que Spinoza está afirmando que há um tipo de existência em potência para as coisas que estão contidas e compreendidas nos atributos de Deus. Olhando para a E5p29s, Spinoza está nos dizendo não de uma existência potencial, mas de duas maneiras de concebermos as coisas como atuais ou reais. Este ponto é importantíssimo para que, na parte 5, Spinoza possa demonstrar como uma parte da mente é eterna, pois ele constrói esta teoria sobre a afirmação de que a ideia da essência formal do corpo é eterna. 134 Nos deteremos mais especificamente sobre de que maneira é impactado na sua maneira de viver o indivíduo que sabe que é imortal ou que sabe que não é imortal. Para uma compreensão a favor da imortalidade da alma, cf. Donagan, 1973, p. 241-258. Para uma tese contra a imortalidade da alma, cf. Nadler, 2002, p. 224-244.

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necessariamente existir em Deus (pela prop. 3 da P. 2). C. Q. D.” (E5p22d)

Estas proposições são fundamentais para entendermos que o termo “essência” se

refere à essência formal das coisas singulares e que este difere e não pressupõe ou implica

a existência atual das coisas singulares. Na forma geométrica e dedutiva das proposições

da Ética, a demonstração da proposição 21 acima exposta, bem como o da proposição 23,

da qual falaremos mais adiante, aponta para o corolário da E2p8, que é uma proposição

que diz respeito às essências formais das coisas singulares que não existem. Ora, o

corolário desta mesma proposição dá o contraste entre as coisas singulares que não

existem, “a não ser enquanto estão compreendidas nos atributos de Deus”135, e as coisas

singulares que existem, “não apenas enquanto estão compreendidas nos atributos de

Deus, mas também enquanto se diz que duram, as suas ideias envolverão também a

existência, razão pela qual se diz que elas duram.”136 Outrossim, “coisas singulares” são

coisas finitas e têm existência determinada como definido através da E2D7. Não podemos

deixar de salientar, sobremaneira, que toda coisa singular é um modo de Deus, ou seja, a

essência e existência das coisas singulares têm Deus como causa137.

Spinoza aponta diretamente para a E2p8, pois esta proposição irá examinar a

relação entre essência e existência. Como, pelo paralelismo, entendemos que cada corpo

tem um ideia que lhe corresponde e vice-versa, e se um ser singular é um composto entre

uma ideia e um corpo que é sua representação, como falar de ideias de coisas não

existentes em um âmbito que comporta, teoricamente, somente ideias que existem

enquanto o corpo que lhe é correspondente existe? De igual modo, como falar de uma

parte da mente que é eterna e permanece após a destruição do corpo? Nadler, em sua

interpretação da E5p22, irá fazer exatamente um paralelo entre a teoria exposta na E2p8

com a parte eterna da mente.138 Para ele, a parte eterna da mente é a ideia de uma coisa

material não existente, que ele toma como a essência do corpo. Seguindo Laerke139, não

percebemos como igualar a eternidade da mente com o fato de as ideias das coisas

existirem no intelecto de Deus, independentemente de sua existência ou não. A E1p31

deixará evidente que o intelecto só pode existir em função da essência e não o contrário.

135 E2p8c. 136 E2p8c. 137 Cf. E1p25c. 138 NADLER, 2006, p. 264. Aqui ele afirma que a parte eterna da mente é a ideia de uma coisa material não existente. 139 LAERKE, 2016, p. 277-280.

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O que vem primeiro, digo, não de maneira cronológica, mas sim lógica, é a essência e

depois a ideia no intelecto divino. Assim, as essências não estão contidas no intelecto,

apesar de elas serem compreendidas pelo intelecto. Na verdade, as essências estão

contidas nos atributos divinos.

A E2p8 não é uma proposição simples e fácil de se interpretar. O próprio Spinoza

faz um aviso ao seu leitor no início do seu escólio de que o exemplo que ele dará é

inadequado, pois ele falará de algo singular. Este escólio irá comparar as coisas singulares

não existentes, cujas essências estão contidas nos atributos de Deus, a retângulos não

traçados no círculo, mas que existem potencialmente no círculo, enquanto este dura. Desta

maneira, Spinoza faz uma ligação entre a essência formal das coisas singulares à

possiblidade não realizada da existência das coisas singulares. Por outro lado, ele deixa

claro, no corolário desta mesma proposição, que a existência atual das coisas singulares

está também compreendida nos atributos Deus, “mas também enquanto se diz que duram,

as suas ideias envolverão também a existência, razão pela qual se diz que elas duram”140.

Temos um duplo aspecto a ser explorado, o da existência em ato das coisas

singulares e o da existência “em potência” das coisas singulares. A existência “em

potência”141, assim como a existência de seres singulares não existentes, é verdadeira,

pois sua essência está contida e é derivada diretamente dos atributos de Deus. Sendo

diretamente derivada dos atributos de Deus, ela é eterna. A existência em ato, por sua vez,

pode ser de dois tipos142, temporal, que possui relação com a duração e é dada pelo nexo

infinito de coisas singulares existentes, ou eterna, não possuindo relação com a duração

e, consequentemente, não tendo sua causa ou determinação em uma outra coisa singular.

Deus é o único ente ao qual sua essência é suficiente para sua existência, pois tanto sua

essência quanto sua existência são constituídas por seus próprios atributos.143

Retomemos nosso ponto inicial, a saber, a oposição entre o que é eterno por si em

comparação com o que é eterno por sua causa. O que é eterno por si possibilita uma leitura

de dois tipos de eternidade distintas, enquanto que o que é eterno por sua causa trata de

um só tipo de eternidade ditos de maneiras distintas? Sabemos que a eternidade envolve

140 E2p8c. 141 Falo aqui de existência “em potência” apenas para fazer um parelelo com aquelas coisas que não existem, mas que podem existir em algum momento. Sabemos e veremos mais adiante que Spinoza não aceita a tese da contingência ou possibilidade, pois para ele tudo o que é possivel é atual e tudo que é atual é necessário. 142 PINHEIRO, 2010, p. 227. 143 Cf. E1p20.

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uma existência necessária. Conforme a E1p33s1, constatamos que Spinoza afirma que

existem duas razões para uma coisa ser necessária, e não que haja dois tipos de

necessidade. Uma interpretação do necessitarismo estrito de Spinoza que esteja buscando

uma compatibilidade com todo seu sistema filosófico nos autorizará a interpretar que

existe apenas um tipo de necessidade que abrange tanto a substância quanto os modos.144

Assim, embora todas as coisas existam de maneira necessária, a necessidade dos modos

não é derivada de sua própria essência, mas sim da essência de sua causa. Ao

identificarmos que a existência tanto da substância quanto dos modos é necessária,

constatamos também que mesmo que suas causas ou razões para existir sejam diferentes,

elas não possuem necessidades diferentes para tal existência; por outro lado, identificar a

necessidade para que existam não implica identificar as suas essências.

Spinoza distingue diversas propriedades necessárias que constituem uma

essência145. Algumas dessas propriedades mesmo que sejam necessárias não são

essenciais, afinal, nem toda propriedade necessária é essencial. Desta maneira, a

afirmação de que um modo existe necessariamente não implica que sua essência envolva

a existência. Ora, se nossa argumentação sobre a existência necessária estiver correta, não

vemos empecilhos para aplicá-la à eternidade. Se o que existe é só um tipo de necessidade

que está presente na substância e que ecoa nos modos; e se a existência necessária dos

modos é derivada de sua causa e não de sua própria essência; logo, a eternidade que os

modos possuem não é derivada de sua própria essência, mas da sua causa. Definimos,

portanto, o que é eterno por si, a substância, e o que é eterno por sua causa, os modos.

144 Para uma interessante e assertiva exposição do necessitarismo de Spinoza, cf. GLEIZER, 2009, p. 59-87. 145 Citamos as propriedades necessárias que se seguem excluisvamente da essência da coisa sem fazer parte desta essência; as propriedades comuns, que são partilhadas com outras coisas; e as propriedades que uma coisa possui por sua interação com outras coisas. Não iremos nos deter nos proplemas decorrentes do termo propriedade. Fazemos o uso do termo de maneira despretensiosa e apenas como forma de entendermos que aquilo pode ser afirmado de algo é uma sua propriedade.

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3.5 As Essências e o Necessitarismo

Ora, ao inserir o tema da possibilidade, um problema emerge claramente, a saber,

o do necessitarismo estrito de Spinoza146. Em suma, a tese do necessitarismo diz que tudo

o que é possível é atual e tudo o que é atual é necessário147. A questão aqui é como

compatibilizar as teses apresentadas na E5p21, E5p21d, E5p22, Ep22d, com o

necessitarismo ao qual estas mesmas proposições apontam? Para que o necessitarismo

possa ser verdadeiro, não pode haver genuinamente essências formais não atualizadas.

Ora, pela E1p25, Deus é causa eficiente das existências e das essências das coisas, como

já vimos. Uma essência cuja existência é meramente possível não precisa ter uma causa,

pois não é uma realidade em ato. Para responder a este ponto, precisamos entender que

as essências dadas não são independentes da potência causal de Deus, mas sim, que elas

são necessárias por sua causa, ou seja, Deus, no sentido que serão instanciadas

necessariamente em algum momento do tempo. Assim, elas não são apenas possibilidades

lógicas, mas realidades necessárias que necessariamente existiram, existem ou existirão.

Se as essências são mais do que meras possibilidades lógicas, sendo, portanto, uma

realidade que tem a propriedade de necessariamente existir em algum momento, logo elas

devem ter uma causa eficiente, a saber, Deus. Desta maneira, as essências formais das

coisas singulares devem ser modos de Deus.

As essências formais tidas como algum tipo de potencialidade são claramente

contrárias às teses spinozanas, como vemos na E1p29, E1p31s, E1p33s. O filósofo afirma

que a única razão pela qual dizemos que uma coisa é contingente é a deficiência de nosso

conhecimento. A possibilidade de uma coisa existir ou não, ou seja, seu status

contingente, só é possível por uma deficiência do próprio conhecimento do ser humano.

Portanto, não há meio termo, ou seja, as coisas existem ou não existem de maneira

necessária.

Concluímos, deste modo, pela afirmação da E2p8, que as essências formais estão

contidas nos atributos de Deus e, por sua correspondência na E5p22, constatamos que a

ideia da essência do corpo humano existe necessariamente em Deus. Outrossim, se as

146 Pinheiro afirmará que o uso de uma noção de potência ou possibilidade feita por Spinoza “só tem sentido, pois, referindo as coisas temporais às coisas eternas”. PINHEIRO, 2010, p. 229. 147 Cf. E1p16; E1p29; E1p33; E1p35d. Em suas Considerações Sobre o Necessitarismo de Espinosa, Gleizer demonstra de maneira assertiva o caráter radical do necessitarismo spinozano, em contraste a um necessitarismo moderado apresentado por Curley. Cf. GLEIZER, 2003, p. 59-87. Este necessitarismo de aspecto forte é o que adotamos aqui.

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essências formais das coisas singulares são modos de Deus, elas não parecem ser modos

finitos148, pois possuem sua própria existência contida nos atributos de Deus, e tampouco

apenas meras possibilidades lógicas, como já vimos anteriormente. O escólio da E5p23

parece confirmar o status modal infinito ao dizer que “Essa ideia que exprime a essência

do corpo sob a perspectiva da eternidade é, como dissemos, um modo definido do pensar,

que pertence à essência da mente e que é necessariamente eterno.”149

É possível inferir, a partir desta análise, que a essência formal de uma coisa

singular não pode ser idêntica à coisa singular em si, pois uma coisa singular em si é um

modo finito cuja existência é finita e determinada, como atesta a E2D7, e tem sua essência

formal como um modo infinito, que, por sua vez, de alguma maneira, sustenta a atualidade

das próprias coisas singulares em si. A partir deste ponto, podemos afirmar que a essência

formal das coisas singulares deve ser um aspecto de um atributo de Deus que é capaz de

sustentar a existência atual das coisas singulares, independentemente do nexo finito

causal que as determinará a existir em ato150. Apesar de a existência das coisas singulares

se darem em uma duração limitada, elas possuem uma essência formal derivada

diretamente de um aspecto de um atributo divino que torna esta mesma essência eterna e

ilimitada, assim como o seu atributo do qual é causa.

Respondemos de maneira satisfatória à questão da incompatibilidade da tese das

essências formais com a tese do necessitarismo. Vimos que estas duas teses são

perfeitamente compatíveis. Cada essência formal é um modo infinito derivado

necessariamente de um atributo de Deus. Desta maneira, segue-se necessariamente que

cada essência de uma coisa existe de maneira necessária, mesmo aquelas das coisas não

existentes, assim como a ideia desta mesma coisa existe necessariamente e corresponde

à sua essência formal.

148 E1p28d diz: “Tudo que é determinado a existir e a operar é assim determinado por Deus (pela prop. 26 e pelo corol. da prop. 24). Ora, o que é finito e tem existência determinada não pode ter sido produzido pela natureza absoluta de um atributo de Deus, pois tudo o que se segue da natureza absoluta de um atributo de Deus é infinito e eterno (pela prop. 21); […] Deve, portanto, ter se seguido ou de Deus ou de um atributo seu, isto é, deve ter sido determinado a existir e a operar ou por Deus ou por um atributo seu, enquanto modificado por uma modificação que é finita e tem uma existência determinada." 149 Não deixo de assinalar que esta ideia do status modal infinito das essências formais não deve ser apenas confirmado com o apoio da E5p23s. Não é consenso que Spinoza nesta proposição sustente categoricamente que as essências formais sejam modos infinitos de Deus. 150 É a instanciação da essência formal que produz a própria coisa singular existente em ato.

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3.6 As Essências e o Paralelismo

Outra objeção aparente, tal qual a da compatibilidade entre o necessitarismo e a

tese das essências formais, emerge do fato de Spinoza afirmar o paralelismo, que, em

suma, é a tese de que “a ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão

das coisas.”, afirmado pela E2p7 e que já abordamos previamente no capítulo anterior.

Esta tese requer que, onde houver uma coisa que mantém algum tipo de relação causal

com outras coisas, haverá de igual maneira uma ideia desta coisa que mantém

paralelamente uma relação causal com as ideias daquelas outras coisas e vice-versa. Isto

significa dizer que uma coisa e a ideia desta coisa devem compartilhar o mesmo status

com relação à sua existência atual e sua possibilidade ainda não atualizada. Ora, a E5p22d

torna evidente que a ideia que existe necessariamente em Deus e que “exprime a essência

deste ou daquele corpo humano” é tão somente a ideia da essência do corpo humano,

outrossim, esta essência deste corpo humano será, desta maneira, uma possibilidade não

atualizada. Sabemos, contudo, que Spinoza não aceita a tese de haver possíveis não

atualizados em Deus, pois, em Deus, tudo é atual e não há espaço para existência

potencial151.

A existência ou não-existência de uma coisa singular não se segue unicamente da

existência de sua essência formal, o que demonstra, neste caso, que a essência formal de

uma coisa singular existe independentemente de sua existência atual, isto porque cada

essência formal é, como vimos, um modo infinito derivado de um atributo de Deus que

existe necessariamente, e que, portanto, deve existir necessariamente tanto como essência

quanto como a ideia dessa essência formal que lhe é correspondente. Ou seja, para cada

essência formal corresponde uma ideia desta essência. Assim, para cada coisa singular

dada, sua existência ou não-existência será totalmente necessária (pelo nexo infinito de

coisas singulares existentes na duração) e também suas essências formais. Desta maneira,

se uma essência formal de uma coisa singular existe como um modo infinito, a ideia desta

coisa, que expressa a sua essência formal, também será infinita. Por outro lado, uma coisa

singular existe em um tempo determinado na duração, do mesmo modo que as ideias

dessas coisas singulares também existirão em um tempo determinado. Vencemos, deste

modo, a aparente incompatibilidade entre as essências formais e o paralelismo, visto que

151 Cf. E1p31s e E1p33s2

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o status ontológico de cada ente é precisamente paralelo à sua ideia correspondente.

Podemos passar agora a explorar a tese da parte eterna da mente que permanece.

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3.7 As Essências, A Parte Eterna do Corpo e A Parte Eterna da Mente

Voltemos ao início deste capítulo, quando citamos uma passagem fundamental

para nosso trabalho, a E5p23. Ela diz que “a mente humana não pode ser inteiramente

destruída com o corpo: dela permanece algo, que é eterno”. Podemos distinguir a mente

em duas partes. Uma que perece junto com o corpo, a parte temporal; e uma parte que é

eterna, que permanece mesmo após a destruição do corpo. Desta maneira, a mente é uma

ideia de um corpo humano, por um lado, e a essência formal deste corpo, por outro lado.

Disto podemos inferir que a mente é composta por duas partes, a imaginação em sua parte

temporal e o intelecto em sua parte eterna. O intelecto é eterno porque é a ideia da essência

formal do corpo e essa essência, como vimos anteriormente, é eterna. Assim, se o

intelecto é uma parte da mente, logo, uma parte da mente é eterna.

Na demonstração da proposição em questão, este algo eterno que permanece

pertence ao mesmo tempo à essência da mente humana e é uma ideia que exprime a

essência do corpo humano. Ao apontar para E2p13, verificamos que, assim como a mente

humana é a ideia de um corpo humano, do mesmo modo, a ideia da essência formal de

um corpo humano é em si uma ideia da essência formal da mente humana152 e por isso

pode-se afirmar que a parte eterna da mente pertence à essência da mente humana. Dois

problemas irão surgir153: 1) relacionado ao paralelismo: se, pela E2p13, a mente humana

é a ideia de um corpo humano, e se há alguma parte da mente humana que é eterna e que

permanece após a destruição do corpo, então, pelo paralelismo, é necessário que exista

alguma parte do corpo que seja eterna e que permaneça após a destruição da mente154; 2)

relacionado à essência do corpo humano: a ideia da essência do corpo humano deve

constituir um conhecimento sobre a essência do corpo humano. Assim, se a ideia da

essência do corpo humano é a parte eterna da mente, então um conhecimento da essência

do corpo deve ser o conhecimento de alguma parte da mente. Essa essência do corpo

humano, de acordo com E2p13s, parece envolver algum tipo de movimento e repouso

que o define e diferencia de outros corpos. No entanto, o conhecimento humano baseado

152 Pela E2p21s, constatamos que a ideia e a ideia da ideia são a mesma coisa, tal qual a ideia do corpo e o corpo. Portanto, acreditamos também poder fazer este paralelo para a ideia da essência. Logo, a ideia da essência formal do corpo será igual a ideia da essência formal da mente. 153 Cf. GARRETT, 2010, 293. 154 Bennett irá demonstrar três objeções para uma interpretação simétrica da relação paralela entre a parte eterna da mente e o corpo que ele credita a Curley. Isto, no entanto, não significa que ele concorde com a doutrina da eternidade, pois em dado momento ele diz: “eu não o estou defendendo [Spinoza]: em minha interpretação disto, sua [de Spinoza] doutrina da eternidade é certamente falsa.” (tradução livre). Cf. BENNETT, 1984, p. 357-359.

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na sua distinção de movimento e repouso é deveras limitado. Esta limitação, por sua vez,

não permite que a parte eterna da mente possa ser explicada pela ideia da essência formal

do corpo humano. É evidente que, sendo eterna a parte da mente que permanece, o único

meio de conhecê-la é através das ideias adequadas. Ora, como vimos o conhecimento da

essência formal do corpo baseado apenas na sua distinção de movimento e repouso não

pode alcançar esta parte da mente, pois é limitado e confuso, dado que ocorre a partir da

imaginação.

Por outro lado, afim de corroborar nossa teoria de que a ideia da essência formal

do corpo humano pode explicar a existência de uma parte eterna da mente, nós

constataremos como a essência formal do corpo pode constituir uma parte eterna do

corpo, e como esta parte sobrevive à destruição da mente existente em ato. A parte que

permanece, a parte eterna da mente, é o intelecto, pelo qual se diz que nós agimos; a parte

que perece é a imaginação, pela qual se diz que somos passivos. Desta maneira, a

imaginação consiste de ideias inadequadas ou passivas, sendo “a única causa de

falsidade” e ditas como 1º gênero de conhecimento; por outro lado, o intelecto consiste

de ideias ativas ou adequadas, ditas como conhecimento de 2º e 3º gêneros155, pelo qual

se diz que agimos. Portanto, enquanto a mente tem ideias156, podemos dizer que ela é

composta pela imaginação e pelo intelecto.

A imaginação será exposta por Spinoza na E2 como o conhecimento das afecções

sofridas pelo corpo humano enquanto existente em ato. O filósofo expõe: “chamaremos

de imagens das coisas as afecções do corpo humano...”; “E quando a mente considera os

corpos dessa maneira, diremos que ela os imagina.” (E2p17s). Na E2p18d ele afirma: “A

mente imagina um corpo qualquer porque o corpo humano é afetado e arranjado pelos

155 Sobre os conceitos de gêneros do conhecimento, cf. E2p40s2, E2p41d e E2p42d. Spinoza analisa os três modos pelos quais o homem conhece; chama estes de conhecimento do primeiro, do segundo e do terceiro gênero. Como resultado da análise, descarta o primeiro, por avaliá-lo sujeito ao erro e à falsidade, e indica o segundo e o terceiro como os válidos para se distinguir o verdadeiro do falso, ou seja, para conhecer verdadeiramente as coisas. Spinoza também analisa os modos de percepção ou gêneros de conhecimento no Breve Tratado (Parte II), e no Tratado da Correção do Intelecto (TCI § 18-30); Os gêneros do conhecimento serão importantes, pois na parte 5, Spinoza nos mostrará como o sábio, aquele que vive segundo os 2º e 3º gêneros dificilmente tem o ânimo perturbado (cf. E5p42s) em comparação com o ignorante e que por isso a sua capacidade de alcançar a liberdade, beatitude ou salvação (cf. E5p36s) é muito maior. 156 Pela E2p11 constata-se que as ideias são fundamentais na constituição da mente. Podemos ler: “O que, primeiramente, constitui o ser atual da mente humana não é senão a ideia de uma coisa singular existente em ato.” (grifo meu). Ainda na E2ax3, verificamos que os modos do pensar, tais como o amor, etc., não podem existir sem a ideia da coisa amada, etc.; por sua vez, uma ideia, pode existir sem que exista um modo do pensar. Constatamos a partir destas duas proposições que uma mente só pode ser mente enquanto tem ideias.

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traços de um corpo exterior da mesma maneira pela qual ele foi afetado...”. E ainda, na

E2p30 e E2p31, Spinoza irá afirmar que nem do nosso próprio corpo nem dos corpos

exteriores que nos afetam podemos ter um conhecimento senão extremamente

inadequado. Outrossim, o intelecto, sendo responsável pelo conhecimento de 2º e 3º

gêneros, não pode consistir no conhecimento de qualquer modificação do corpo existente

em ato. Na verdade, Spinoza, na E5p29, nos mostra que a mente, quando compreende as

coisas pelo 2º e 3º gêneros do conhecimento, as compreende não por conceber a existência

atual do corpo e suas modificações, “mas por conceber a essência do corpo sob a

perspectiva da eternidade.” O escólio desta proposição aponta para a E2p45 e seu escólio,

que afirmam que a existência em ato de uma coisa singular envolve necessariamente tanto

a essência quanto a existência dessa coisa, enquanto elas existem em Deus, ou seja, a

essência formal do corpo. Podemos perceber que imaginação e intelecto como partes da

mente envolvem também o conhecimento das modificações do corpo humano existente

em ato, obtidos a partir da imaginação, e o conhecimento da essência formal do corpo

humano, que será obtido a partir do intelecto sob uma perspectiva da eternidade.

A mente humana é a ideia de um corpo existente em ato pela E2p13. Um corpo

humano é composto de muitos indivíduos (de natureza diferente) altamente compostos,

pela E2p13Post1 e E2p15d. Assim, um corpo é um composto de muitas partes distintas.

Esta ideia que constitui um corpo altamente composto não é, por sua vez, nem o intelecto

nem a imaginação somente, pois, pela E2p15, essa “ideia que que constitui o ser formal

da mente não é simples, mas composta de muitas ideias.” Desta maneira, parece correto

supor que, se as partes da mente (intelecto e imaginação) não estão limitadas a serem

somente ideias de muitas partes distintas que constituem um corpo, pelo paralelismo, as

partes do corpo também não podem ser limitadas a serem somente partes espaciais

distintas. Deve haver algo que possa ir além desta concepção, e este algo é a essência

formal do corpo. Portanto, o corpo também contém partes para além das partes espaciais

distintas em que é divisível, a saber: uma parte existente no tempo e espaço, limitada por

seu aspecto espacial e temporal; e uma parte existente como um modo infinito, não

limitada e, portanto, eterna. Uma essência formal não está limitada por tempo e espaço,

ela é expressão contínua do atributo extensão e está intimamente ligada como parte do

que é necessário para que o ser humano exista atualmente. E porque é um modo do

atributo extensão, e mais, um modo infinito, esta parte permanecerá depois que corpo e

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mente existentes atualmente perecerem. Acreditamos ser suficiente esta análise para

respondermos ao problema apontado anteriormente com relação ao paralelismo.

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3.8 Conhecer a Essência é Afirmar a Parte Eterna da Mente

Um ser humano existente em ato, como podemos ver, é constituído por duas partes

fundamentais, a parte temporal157 e a parte eterna, a qual é constituída por uma essência

formal do corpo e a ideia dessa essência. Essas duas partes devem compor um ser

existente em um dado tempo e espaço. Na E2p45, Spinoza afirma que a ideia de cada

corpo singular existente em ato, no tempo e espaço, envolve a essência eterna e infinita

de Deus. Na E2p46, o conhecimento dessa essência, nos diz Spinoza, é adequado e

perfeito. Ora, como vimos anteriormente, pela imaginação conhecemos as afecções do

corpo existente em ato e esse conhecimento é totalmente inadequado, mas se o

conhecimento de cada coisa singular envolve o conhecimento da essência eterna e infinita

de Deus, logo, mesmo o conhecimento inadequado de um corpo existente em ato, dado

pela imaginação, demanda algum conhecimento adequado de um atributo divino, uma

vez que o conhecimento de cada coisa singular envolve a essência eterna e infinita de

Deus e esta só pode ser conhecida de maneira adequada e perfeita. Como a mente humana

pode conhecer a essência eterna e infinita de Deus, se esta se dá a conhecer através de um

conhecimento adequado e perfeito, e a mente humana, através da imaginação, percebe as

afecções dos corpos existentes em ato somente de maneira inadequada?

Todo conhecimento adequado, segundo Spinoza, é conhecimento de 2º e 3º

gêneros e se dá pelo intelecto, enquanto que conhecimento inadequado é de 1º gênero e

se dá pela imaginação. Demonstraremos que o conhecimento da essência do corpo

humano se dá necessariamente pela parte da mente humana responsável pelos

conhecimentos de 2º e 3º gêneros, ou seja, o intelecto. Pela E2p40s2, o segundo gênero

do conhecimento se dá quando temos noções comuns e ideias adequadas das propriedades

das coisas, propriedades essas que devem ser comuns a todos os homens e que, quanto

mais propriedades em comum houver entre os corpos, tanto mais será a capacidade da

mente perceber adequadamente, isto pela E2p38c e E2p39c. Assim, podemos ter ideias

adequadas das propriedades das coisas e também daquilo que se segue destas

propriedades. O 3º gênero do conhecimento é o mais alto grau de conhecimento que pode

existir, pois, como vimos anteriormente, Spinoza afirma na E2p45 e E2p46 que a ideia de

um corpo existente em ato envolve a essência eterna e infinita de Deus e que não há

157 Como nos concetramos em elucidar a função da parte eterna no alcance da betatitude, apenas citamos en passant a parte temporal sem obtermos prejuízo explicativo para nosso trabalho.

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possibilidade de esse conhecimento ser inadequado, obtido através da imaginação, mas

ao contrário, este conhecimento é perfeito e adequado e só pode ser obtido através do

intelecto.

Sabemos que todo o conhecimento humano envolve ideias adequadas e

inadequadas. Sabemos também, pelo axioma capital da Ética spinozana, o axioma 4 da

parte 1, que tudo que podemos conhecer ou entender envolve o conhecimento ou

entendimento de sua causa. Desta maneira, conhecer as afecções que modificam um corpo

humano existente em ato significa também conhecer a causa externa que gera tais

modificações. No entanto, não podemos esquecer que o conhecimento do corpo se dá

pelo conhecimento de suas afecções e pelo conhecimento de sua essência formal, a qual

é parte fundamental do corpo humano existente em ato. Assim, a mente, ao conceber as

afecções de um corpo existente em ato e suas causas, deve também conceber algo de sua

essência formal. Conhecer as afecções é conhecer de maneira inadequada e confusa,

enquanto conhecer a essência envolve conhecer de maneira adequada e perfeita. Ao

conceber as coisas deste último modo, através de sua essência, concebe-se de fato algo

dos modos infinitos que lhes são causa e que, por serem causa, envolvem certas

particularidades e por isso são a base para o conhecimento de 2º gênero. Já o

conhecimento de 3º gênero se dá pelo conhecimento da natureza de um atributo divino

em si, ou seja, da ideia adequada da essência formal de um atributo divino.

É evidente, no entanto, que a mente não pode conhecer tudo de si que o distingue

de outros. Desta maneira, o conhecimento da essência formal do corpo humano não deve

ser limitado ao conhecimento de algo particular existente em ato, mas sim ser o

conhecimento de certas particularidades da natureza da sua essência tais como elas se

manifestam na essência formal do corpo humano. Assim, o conhecimento do 1º gênero

constitui o conhecimento das relações entre corpos existentes em ato e o conhecimento

de 2º e 3º gêneros, também comumente chamados de conhecimento intelectual,

constituem o conhecimento a respeito da essência formal do corpo humano. Se, portanto,

agora, podemos ter um conhecimento da essência formal do corpo humano, então

confirmamos a existência de uma parte eterna da mente; afinal, a ideia que exprime a

essência formal do corpo só pode vir do conhecimento intelectual sob o ponto de vista da

eternidade e, portanto, como afirma a E5p23s, essa ideia pertence à essência da mente e

é necessariamente eterna. Acreditamos, desta maneira, responder satisfatoriamente ao

questionamento acerca da essência formal do corpo e a parte eterna da mente. O

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conhecimento da essência formal do corpo só pode ser dado de maneira adequada e

perfeita. Ora, como a imaginação só pode conhecer de maneira inadequada e imperfeita,

mas a mente humana é composta de imaginação e intelecto, logo, o conhecimento da

essência formal do corpo só pode vir da parte da mente responsável pelo conhecimento

adequado e perfeito, e essa parte, como vimos, é a parte responsável pelos conhecimentos

de 2º e 3º gêneros, a parte que permanece, a parte eterna da mente, o intelecto.

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3.9 Conhecer Adequadamente é Ter a Maior Parte da Mente Eterna

Vencidas estas etapas, resta ainda entendermos como a parte eterna da mente está

relacionada à capacidade que os corpos têm de fazer mais coisas. Como uma coisa eterna,

neste caso, uma parte da mente, pode ser maior ou menor dependendo da capacidade de

fazer mais ou menos coisas do corpo que ela representa? Se esta parte da mente é eterna,

como pode ela aumentar ou diminuir? É exatamente isto que Spinoza parece afirmar, ele

diz:

“Quem tem um corpo capaz de muitas coisas tem uma mente cuja maior parte é eterna.” (E5p39)

“Quanto mais cada um se torna forte neste gênero do conhecimento [3º gênero], tanto mais está consciente de si próprio e de Deus, isto é, tanto mais é perfeito e feliz.” (E5p31s)

“O sábio, enquanto considerado como tal, dificilmente tem o ânimo perturbado. Em vez disso, consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, em virtude de uma necessidade eterna, nuca deixa de ser, mas desfruta, sempre, da verdadeira satisfação do ânimo.” (E5p42s)

Spinoza parece deixar claro, portanto, que o nível ou grau de conhecimento ou sabedoria

está diretamente relacionado com ter uma mente cuja maior parte é eterna. Mas se a

essência formal do corpo humano, como vimos, é um modo infinito, portanto, ele é

imutável. Ora, pelo paralelismo, a ideia da essência formal deste corpo humano deve ser

imutável igualmente tal como a essência do corpo humano em si. Como pode a parte da

mente que é eterna crescer ou diminuir à medida que a sabedoria ou conhecimento

aumenta ou diminui?

Respondendo a este ponto, Garrett irá afirmar que a resposta está em distinguir as

ideias como elas são em Deus simplesmente e as ideias como elas são em Deus na medida

que Deus tem ou constitui a mente de uma coisa singular158. Apoiado pela E2p11c, que

afirma que a mente humana é parte do intelecto infinito de Deus e que Deus, enquanto

constitui a essência da mente humana, tem esta ou aquela ideia, podemos dizer que uma

ideia existe em Deus como parte de seu intelecto infinito, que por sua vez, conhece com

perfeição todas as ideias que são seus efeitos. Por outro lado, uma ideia também existe na

mente de uma coisa singular enquanto esta coisa singular existe na duração, e que por sua

vez, também de maneira contrária, tem um poder limitado de conhecer as coisas. A

158 GARRETT, 2010, p. 299.

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essência de uma coisa, tomada como uma ideia de Deus, é representada, portanto, por

cada propriedade desta essência com alto grau de poder de pensamento, uma vez que o

poder de pensamento divino é infinito. Não podemos dizer o mesmo da ideia da essência

formal que uma coisa singular tem de si, pois seu poder de pensamento é finito e limitado

e, portanto, a consciência de sua própria essência formal derivada de seu poder de

pensamento não é totalmente completa.

Todavia, uma coisa singular pode exprimir seu poder sob qualquer atributo,

incluindo o atributo pensamento, apenas na medida em que se aproxima de uma condição

de ter poder de se preservar a si mesma, ou seja, uma condição de autossuficiência causal

similar ao da substância159. Essa similitude nos permite afirmar a variação no poder de

pensamento existente entre as diversas coisas finitas. Variação esta que provém do fato

mesmo de existir diferença de essência entre as diversas coisas finitas. A essência, tomada

como uma perfeição, nos possibilita entendermos que, de fato, coisas singulares como

uma pedra tem muito mais imperfeição (isto é, potência) do que um ser humano. Por

nossa essência ser mais perfeita, ou seja, ter um grau mais elevado de perfeição do que o

de uma pedra ou de um animal irracional, é que podemos falar em autossuficiência causal

similar à da substância. Essa similitude existente em maior grau no ser humano que em

outros seres mais rudimentares está ligada à capacidade que o ser humano tem de ter

consciência de si, ou seja, de ter a capacidade maior de perceber a essência formal de seu

próprio corpo do que um animal irracional. Assim, durante sua existência, um ser humano

pode aumentar ou diminuir seu poder de pensamento e, esse poder de pensamento só pode

ser aumentado pelo intelecto, que é sua parte eterna. Somente o intelecto pode conceber

adequadamente, pois é eterno e concebe pelo 3º gênero do conhecimento, segundo o

ponto de vista da eternidade, concebendo uma ideia eterna da essência formal de seu

próprio corpo.

Desta maneira, uma ideia da essência formal do corpo humano como é em

Deus simplesmente é imutável, e o ser humano vive em um esforço contínuo para que

sua mente possa ter a maior aproximação possível, de maneira consciente, desta ideia

adequada da essência formal de seu próprio corpo e de outras coisas com as quais ele se

relaciona e que estão envolvidas nesta essência. Ora, quanto maior for o poder de

pensamento de um indivíduo, mais ele poderá ter ideias adequadas sobre as circunstâncias

que o afetam. Se um indivíduo é capaz de ter mais ou menos ideias adequadas a depender

159 GARRETT, 2002, p. 139. Cf. também a carta 19 de Spinoza. CURLEY, 1985, p. 278.

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de como ele usa seu poder de pensamento nas circunstâncias cotidianas que o afetam,

então ele tem a capacidade de tornar, ou não, a maior parte de sua mente eterna. Isto é o

que diferencia o sábio do ignorante para Spinoza, ou seja, sua capacidade de ser

consciente de si, de Deus e dos outros.

Podemos perceber o quão importante é o ponto de partida de uma interpretação

do conceito de eternidade em Spinoza. Se a interpretação for no sentido de atribuir a

eternidade somente à substância, então, o caminho a ser percorrido deverá ser um que se

coadune com este passo inicial. Se, por outro lado, a interpretação inicial for em sentido

oposto, qual seja, o de atribuir eternidade não somente à substância, mas também aos

modos, então, deverá ser percorrido um outro caminho que se compatibilize com esta

leitura. E assim se segue sempre que falamos do conceito de eternidade em Spinoza. O

posicionamento entre basicamente dois tipos de intepretação, um ontológico e outro

epistemológico, fez e continua fazendo com que o conceito de eternidade e tudo do que

dele deriva a partir da filosofia spinozana seja até hoje debatido entre os comentadores.

Foi o que percebemos ao analisar as diferentes interpretações do conceito de

eternidade e seus desdobramentos na parte 5 da Ética. A grande dificuldade apresentada

é a compatibilidade da noção de eternidade da mente com o paralelismo; afinal, como

pode uma parte da mente continuar existindo, ou seja, ser eterna, mesmo após a destruição

do corpo? A resposta ontológica vai afirmar que eternidade deve ser interpretada como

sempiternidade e que existem dois tipos de eternidade; uma que se atribui à substância e

outra que se atribui aos modos. A resposta epistemológica, por sua vez, afirmará que a

distinção entre a eternidade aplicada a Deus e a eternidade aplicada aos modos é apenas

uma distinção de razão, pois não existem duas eternidades diferentes, mas apenas uma,

ora aplicada a Deus, ora aplicada ao homem. Nosso posicionamento é em favor desta

segunda interpretação.

Seu fundamento principal foi demonstrado a partir da teoria das essências. A

definição de eternidade nos possibilitou entender que a noção de eternidade está

diretamente ligada ao conceito de existência eterna. Uma existência eterna, por sua vez,

pode ser de 2 tipos: 1) a partir de sua própria essência eterna; 2) a partir da sua causa

eterna. Verificamos que, em Deus, há uma ideia da essência formal de cada corpo humano

e também que a parte da mente que é eterna é uma ideia da essência formal do corpo

humano. Desta maneira, as essências são vistas não como meramente possibilidades

lógicas, mas como realidades necessárias, pois são modos de Deus, ou seja, modos

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infinitos de Deus, pois estão contidas em seus atributos. Estabelecemos que a essência

formal de uma coisa não é a coisa em si, uma vez que a coisa singular em si é um modo

finito e a sua essência um modo infinito, cada qual existindo de maneira necessária. O

paralelismo é mantido, pois tanto a essência formal quanto a ideia desta essência são

modos infinitos.

Ao falar especificamente da parte eterna da mente, constatamos que o paralelismo

nos força a afirmar que, para que haja uma parte da mente que é eterna, seu paralelo deve

ser igualmente verdadeiro, ou seja, deve existir uma parte do corpo que seja eterna. Ora,

a parte do corpo que é eterna é a sua essência formal, pois é um modo infinito. Chegamos

a esta conclusão a partir da ideia de que, se um corpo é um composto de muitas partes

distintas, e se a mente não é composta de uma simples ideia, mas composta de muitas

ideias, logo, pelo paralelismo, já que o corpo não deve ser unicamente composto de partes

espaciais, ele deve conter algo além desta concepção, a saber, a sua essência formal, modo

infinito e, por isso, eterno. Desta forma, se o corpo tem uma essência formal que é eterna,

logo, a mente deve ter também uma parte eterna. Provamos, assim, a existência de uma

parte eterna da mente.

Cabe citar, por fim, que o conhecimento da essência formal do corpo sob

o ponto de vista da eternidade, ou seja, pelo 3º gênero do conhecimento é fundamental

para que o indivíduo possa ter uma efetiva consciência de si e das relações afetivas em

que está envolvido.

Acredito ter falado tudo que considerava importante sobre a questão da essência

em relação com a eternidade. Isto posto, tentaremos elaborar, a seguir, uma base sólida

para afirmar que Spinoza considerava a parte eterna da mente como a melhor parte, a

parte mais importante da mente. Se a mente é composta de intelecto e imaginação e o

intelecto é a sua parte eterna, então, o intelecto deve ser a parte mais importante em

comparação com a imaginação que é a parte que perece juntamente com a destruição do

corpo. Outro ponto de nosso interesse é demonstrar que a beatitude ou a verdadeira

liberdade está diretamente relacionada a um ato mental reflexivo a partir da parte eterna

da mente. Tentaremos sustentar que é através de um relacionamento mente x mente que

o indivíduo se tornará verdadeiramente livre.

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CONCLUSÃO

Spinoza, na finalização de sua Ética afirma que o caminho que conduz a beatitude

é árduo, porém possível.160 Em nosso trabalho constatamos de fato o que Spinoza

afirmou. O caminho que conduz à beatitude, liberdade ou salvação só pode ser conhecido

por aqueles que se preparam verdadeiramente, pois percorrer este caminho é andar por

vias que nos aproximam do conhecimento e amor de Deus. Contudo, o conhecimento e o

amor de Deus só poderão ser alcançados se primeiramente conhecermos plenamente o

que somos e as causas das coisas que nos afetam.

Começamos nosso trabalho com uma breve ontologia spinozana. O filósofo irá na

contramão da tradição filosófica de sua época ao formular sua teoria da substância. Ele

afirmava a unidade e simplicidade da substância ao mesmo tempo em que afirmava a

coexistência de uma multiplicidade de atributos realmente distintos que expressam a sua

essência. A E1p11 irá confirmar que, além da substância ser constituída de infinitos

atributos, ela existe necessariamente. A substância, ou o que é o mesmo, Deus, é um ser

infinitamente infinito que tem sua existência decorrente exclusivamente de sua essência,

pois “à natureza da substância pertence o existir”161. Seus atributos são infinitos e sua

existência é necessária. É a partir desta substância que todas as outras coisas serão

produzidas. Portanto, não há nada que escape a ordem eterna e imutável do mundo, uma

vez que todas as coisas concordam com a substancialidade divina, pois dela derivam.

Desta maneira, devemos ter o homem como parte da substância, ou no linguajar

spinozano, um modo da substância.

A partir da distinção entre os tributos, que mesmo infinitos, são distintos

realmente, Spinoza conclui que não pode haver relação de causalidade entre modos de

atributos diferentes, portanto, não pode haver relação de causalidade entre a mente, um

modo do atributo pensamento, e o corpo, um modo do atributo extensão. Apesar disto,

mente e corpo, como é evidente, formam um único indivíduo. Este indivíduo é uma coisa

singular, que diferentemente de sua causa que é eterna e existe por si, não existe por si,

mas precisa de outro para existir, o que significa dizer que sua existência não decorre de

160 E5p42s diz: “Se o caminho, conforme já demonstrei, que conduz a isso parece muito árduo, ele pode, entretanto, ser encontrado. E deve ser certamente árduo aquilo que tão raramente se encontra. Pois se a salvação estivesse à disposição e pudesse ser encontrada sem maior esforço, como explicar que ela seja negligenciada por quase todos? Mas tudo o que é precioso é tão difícil como raro.” 161 E1p7.

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sua essência. Um indivíduo será, por conseguinte, a união de muitas partes, em especial

de uma mente e de um corpo. O corpo é uma modificação do atributo extensão e a mente

uma modificação do atributo pensamento. O corpo sofre modificações e a mente tem a

capacidade de perceber cada modificação. Esta relação entre a mente e o corpo será

fundamental em todo o projeto filosófico da Ética, pois para Spinoza, a mente não pode

controlar o corpo e vice-versa, e portanto, alcançar a beatitude ou a liberdade ou a

salvação estará diretamente relacionada a um entendimento por parte do indivíduo de que

somente a razão, apoiada em causas adequadas pode libertar o homem de suas paixões.

Assim, a parte 5 da Ética, mais precisamente sua segunda seção, irá demonstrar que

somente através do conhecimento racional da mente, e mais ainda, que através de um ato

de reflexividade racional, onde o indivíduo consegue enxergar todas as coisas sub species

aeternitatis, é que se encontra a verdadeira liberdade, a verdadeira salvação, a beatitude.

Entendermos como funciona esta relação entre mente e corpo, portanto, é passo

fundamental na trajetória de nosso trabalho.

Uma tese que gera grandes discussões é a tese do paralelismo. Ela está instituída

na E2p7. Defendemos a relação de representação, apoiada por Deleuze, como a que

melhor expressa a relação entre mente e corpo e melhor se coaduna com os textos e teses

filosóficas da Ética. Ora, Spinoza é para nós suficientemente claro ao afirmar na E2p13

que “o objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, ou seja, um modo definido

da extensão, existente em ato, e nenhuma outra coisa.”, ou seja, uma sua representação.

A noção de representação é sustentável, pois mantém a unidade dos atributos162 e a

multiplicidade dos modos que diferem pelo atributo pelo qual se exprimem; não confunde

a essência da substância com a essência dos modos a partir de uma leitura precipitada, e

portanto, mal sucedida, da analogia feita por Spinoza na E2p7 ao referir-se à identidade

numérica da substância; e se harmoniza muito mais coerentemente com outras teses

elementares da Ética. Seu contraponto apresentado aqui, qual seja, a tese da identidade

numérica, apoiada por Della Rocca, para nós fica colocado apenas como mais uma leitura

possível para a relação existente entre mente e corpo. Seu modelo não possui base

sustentável para provar que as coisas são da maneira como afirma, portanto, como uma

mera hipótese, nós a descartamos por não possuir a mesma coerência com uma visão mais

global da filosofia de Spinoza.

162 Afirmamos anteriormente que os atributos são infinitos, mas por existirem por si, tal qual a E1p10 atesta, elas têm uma unidade igual a da substância. Cf a nota 24 deste trabalho.

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A tese do paralelismo e a relação existente entre mente e corpo, como sabemos e

já afirmamos, são imprescindíveis na compreensão da filosofia spinozana. Contudo,

Spinoza no final de seu projeto ético, parece romper com essa relação, ao dizer que “é,

pois, agora, o momento de passar àquilo que se refere à duração da mente, considerada

sem relação com o corpo.” Ora, então, há uma parte do indivíduo que tem uma existência

de alguma maneira desvinculada com o corpo e esta parte é a parte eterna da mente. A

E5p23 afirma: “a mente humana não pode ser inteiramente destruída juntamente com o

corpo: dela permanece algo, que é eterno.” Desta maneira passamos a tratar desta parte

da mente que é eterna, primeiro provando sua existência e as implicações com outras teses

de Spinoza. Partimos fundamentalmente da teoria das essências para afirmar que

conhecer a essência é afirmar a parte eterna da mente. Quando compreendemos que o

homem é constituído por uma parte temporal e uma parte eterna e que é a parte eterna, ou

seja, o intelecto, que é responsável pelos conhecimentos adequados, então, o enfoque nas

coisas temporais deve ser suavizado, pois estes, dados pela imaginação, apenas garantem

conhecimentos inadequados e confusos sobre si, sobre Deus e sobre outras coisas que nos

afetam. O conhecimento adequado através da parte eterna da mente ganha outro enfoque

em nosso trabalho. Ele ganha um tom fundamental na busca da beatitude, pois é a parte

eterna que quando reflete sobre si, ou seja, age reflexivamente de maneira racional,

consegue perceber as coisas sob a perspectiva da eternidade, de maneira adequada, de

forma a ser agente ativo nas suas relações. A salvação, beatitude ou liberdade, conforme

a E5p36s, consiste em um ato de amor intelectual da mente para com Deus. Este amor,

atesta a demonstração desta mesma proposição, é uma ação por meio do qual a mente

considera a si própria. Este ato de considerar a si é o ato racional reflexivo a que nos

referimos. Ele vem acompanhado da ideia de si e é chamado de amor intelectual da mente

para com Deus e por ser parte do conhecimento do 3º gênero é superior ao conhecimento

universal.

Sendo assim, concluímos que a parte eterna da mente será mais importante que a

parte temporal. Isto não é sem apoio textual spinozano. Spinoza afirma algumas vezes o

grau mais elevado de importância que a parte eterna da mente, a melhor parte, tem sobre

qualquer outra parte temporal. Vejamos a E5p38s, a E5p39s e E5p40c, respectivamente:

“Por outro lado, como (pela prop. 27), do terceiro gênero de conhecimento provém a maior satisfação que pode existir, segue-se que a mente humana pode ser de uma natureza tal que a sua parte que perece juntamente com o corpo, conforme indicamos

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(veja-se a prop. 21), não tenha nenhuma importância, em comparação com a parte que permanece.”

“Como os corpos humanos são capazes de muitas coisas, não há dúvida de que podem ser de uma natureza tal que estejam referidos a mentes que tenham um grande conhecimento de si mesmas e de Deus, e cuja maior parte, ou seja, cuja parte principal, é eterna, e que, por isso, dificilmente temem a morte[...]; [...] de tal maneira que tudo aquilo que esteja referido à sua memória ou ã sua imaginação não tenha, em comparação com o seu intelecto, quase nenhuma importância, como já disse no esc. da prop. precedente.”

“Com efeito, a parte eterna da mente (pelas prop. 23 e 29) é o intelecto, por meio do qual, exclusivamente, dizemos que agimos (pela prop. 3 da P. 3). Em troca, aquela parte que demonstramos perecer é a própria imaginação (pela prop. 21), por meio da qual, exclusivamente, dizemos que padecemos (pela prop. 3 da P. 3 e pela def. geral dos afetos). Por isso (pela prop. prec.), a primeira, qualquer que seja sua magnitude, é mais perfeita que a segunda. C. Q. D.”

Concluímos que este ato, que chamamos ato racional reflexivo traz enormes

benefícios para aqueles que o buscam e alcançam. Por outro lado, vimos que os caminhos

que devem ser percorridos para alcançar esta meta são árduos. A salvação, beatitude ou

liberdade está no final deste caminho. Ele é o ápice daqueles que conseguiram percorrer

esta via que leva ao conhecimento de si, de Deus e dos outros através da melhor parte, a

parte eterna da mente.

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