universidade federal do rio de janeiro · 2019. 3. 24. · tci – tratado da correção do...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica
Jonathan Alves Ferreira de Sousa
A PARTE ETERNA DA MENTE E O CAMINHO PARA A BEATITUDE
Rio de Janeiro
2019
Jonathan Alves Ferreira de Sousa
A PARTE ETERNA DA MENTE E O CAMINHO PARA A BEATITUDE
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Ulysses Pinheiro
Rio de Janeiro
2019
Agradecimentos
À minha amada esposa, Diva Sousa, por seu apoio e força durante o percurso deste
trabalho;
À minha adorada mãe, Maria Luiza, que nunca desistiu de mim e sempre me
apoiou em todos os meus projetos;
Ao Ulysses Pinheiro, por sua excelente e cuidadosa orientação e palavras de
incentivo;
À CAPES, pela bolsa de estudos;
Aos professores Marcos Gleizer e Nastassja Pugliese, por aceitarem participar da
banca de Qualificação e de Defesa, cujos comentários, sugestões e críticas foram
importantíssimos para a melhora substancial deste trabalho;
À querida amiga, Daniele Pacheco, por nossas conversas de incentivo mútuo;
Aos meus filhos, Victor e Ana Clara, por deixar o papai estudar quando preciso.
Entrem pela porta estreita pois larga é a porta e
amplo o caminho que leva à perdição, e são muitos
os que entram por ela. Como é estreita a porta, e
apertado o caminho que leva à vida! São poucos os
que a encontram.
Mateus 7.13-14
RESUMO
SOUSA, Jonathan Alves Ferreira de. A PARTE ETERNA DA MENTE E O CAMINHO PARA A BEATITUDE / Jonathan Alves Ferreira de Sousa. Rio de Janeiro, 2019. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
Na segunda seção da parte 5 da Ética, Spinoza, parece abandonar o conceito de
paralelismo entre mente e corpo. A partir da proposição 21, ele irá apresentar o que pode
ser considerado como o caminho principal para que o homem conquiste a beatitude. Ele
deixa de lado as questões relacionadas aos “remédios para as afecções”, para, então, se
deter no que chamarei de um ato racional reflexivo. Nosso caminho irá percorrer uma
breve investigação da ontologia spinozana, que mostra que Deus é uma substância
simples expressa por atributos distintos dos quais derivam os seres singulares, dentre os
quais o homem, como modos destes atributos. Em seguida, trataremos da relação
existente entre mente e corpo no homem. Passaremos, por fim, a tratar da parte eterna da
mente e como ela será fundamental no caminho para a beatitude, liberdade ou salvação.
Palavras-chave: Parte Eterna da Mente, Beatitude, Liberdade, Salvação, Ética
ABSTRACT
SOUSA, Jonathan Alves Ferreira de. A PARTE ETERNA DA MENTE E O CAMINHO PARA A BEATITUDE / Jonathan Alves Ferreira de Sousa. Rio de Janeiro, 2019. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
In the second section of Part 5 of Ethics, Spinoza seems to abandon the concept of
parallelism between mind and body. From Proposition 21 on, he will present what can be
considered as the main way for man to attain beatitude. He leaves aside the questions
related to "remedies for affections", then dwell on what I shall call a rational reflective
act. Our path will go through a brief investigation of Spinoza’s ontology which shows
that God is a simple substance expressed by distinct attributes from which the singular
beings, or man, derive as modes of these attributes. Then we will deal with the
relationship between mind and body in man. We will, finally, address the eternal part of
the mind and how it will be a fundamental element on the path to beatitude, freedom, or
salvation.
Keywords: Eternal Part of the Mind, Beatitude, Freedom, Salvation, Ethics
LISTA DE ABREVIATURAS
TCI – Tratado da Correção do Intelecto
E – Ética demonstrada à maneira dos geômetras
D – definição
Daf – definição dos afetos
L – lemas
Post - postulado
ax – axioma
exp – explicação
c – corolário
d – demonstração
s – escólio
p – proposição
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..............................................................................................................11
1 – BREVE ONTOLOGIA SPINOZANA
1.1 Deus, substância que consiste de infinitos atributos......................................15
1.2 Atributos, multiplicidade na unidade..............................................................19
1.3 Modos, coisas singulares e finitas..................................................................22
2 – PARALELISMO
2.1 União mente x corpo.......................................................................................25
2.2 União mente x corpo em Descartes.................................................................27
2.3 O Paralelismo Spinozano................................................................................32
2.4 A Identidade Numérica de Della Rocca..........................................................37
2.5 Deleuze e a Representação.............................................................................44
3 – PARTE ETERNA DA MENTE
3.1 A Parte Eterna da Mente.................................................................................58
3.2 Diferentes Interpretações...............................................................................59
3.3 Eternidade: Atemporalidade x Sempiternidade..............................................65
3.4 A Questão das Essências: Ser x Existir...........................................................69
3.5 As Essências e o Paralelismo..........................................................................74
3.6 As Essências e o Necessitarismo....................................................................76
3.7 As Essências, A Parte Eterna do Corpo e A Parte Eterna da Mente.................78
3.8 Conhecer a Essência é Afirmar a Parte Eterna da Mente.................................82
3.9 Conhecer Adequadamente é Ter a Maior Parte da Mente Eterna....................85
CONCLUSÃO................................................................................................................89
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................93
11
INTRODUÇÃO1
A mudança de perspectiva proposta por Spinoza na metade da última parte de sua
obra magna se mostra deveras interessante e suscita uma série de questionamentos. Nosso
ponto aqui é o de mostrar que, nesta última parte da Ética demonstrada à maneira dos
geômetras, Spinoza parece abandonar, ou no mínimo enfraquecer, o conceito de
paralelismo entre mente e corpo, colocando em questão não mais a mente em relação com
corpo, o que foi feito em toda a Ética, mas agora, tomando a parte eterna da mente como
sendo superior à parte temporal, sendo este o caminho principal para o indivíduo alcançar
a beatitude. Na relação da mente consigo mesma é que se encontra o caminho para a
beatitude.
A beatitude para Spinoza, neste ponto, tem menos a ver com a vida presente ou
com os “remédios para as afecções” ou com o que é perecível e mais a ver com a ligação
do indivíduo com o que é eterno, infinito, e, por isso, pode-se dizer que a parte eterna da
mente é superior à parte temporal. Nos parece que Spinoza quer mostrar que esse corte
no pensamento desenvolvido até a proposição 20 da parte 5 da Ética é necessário para
fazer com que o leitor entenda que o homem só é capaz de atingir a verdadeira felicidade
enquanto estiver inserido na universalidade divina, como parte integrante de sua
totalidade, capaz de compreender-se no todo de sua existência a partir de ideias
adequadas.
O ponto de partida deste trabalho será uma breve exposição da ontologia de
Spinoza, perpassando pelo tema da substância, entendida como um ente que contém
infinitos atributos; em seguida, trataremos do atributo e sua capacidade de se exprimir
infinitamente em uma única substância e, finalmente, trataremos dos modos. O tema do
paralelismo surge como consequência do tema anterior e algumas questões logo se
apresentam. Como se dá a relação entre mente e corpo? A sua identidade é do tipo
numérica ou mente e corpo são realmente distintos? A partir das teorias expostas por
1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
12
Della Rocca2 e Deleuze3, entre outros comentadores, buscaremos elucidar qual tese faz
mais sentido à luz dos textos spinozanos e como eles influenciam o posicionamento de
uma relação mente x mente para que o indivíduo alcance a beatitude. O que tentaremos
demonstrar, por fim, é que a assimetria4 assumida entre mente e corpo irá desempenhar
um papel menos relevante na segunda seção da parte 5 da Ética, quando Spinoza assume
que o pensamento racional reflexivo, aquele que está presente na relação mente x mente,
é que passa a ser a chave para a beatitude.
Sobre o paralelismo, sustentaremos nossa abordagem a partir das teses da
identidade e da representação expostas por Della Rocca e Deleuze, respectivamente, e as
objeções ou ratificações propostas por outros comentadores “clássicos” de Spinoza. Mas
por que a parte eterna da mente é superior à temporal, tal qual afirmado na E5p38s, na
E5p39s e na E5p40c,s? Quais são as implicações desta interpretação neste ponto crucial
da Ética? Nossa proposta é sustentar que em toda a segunda seção da parte 5, que se inicia
na proposição 21, Spinoza defenderá a tese de que a ligação do indivíduo5 com as coisas
deste mundo, perecíveis e mutáveis, tem menos valor na busca da felicidade, liberdade,
beatitude, salvação, do que a ligação com o que é eterno e imutável, que é Deus, em sua
eternidade e amor.
Na E5p39, Spinoza, dirá que “quem tem um corpo capaz de muitas coisas tem
uma mente cuja maior parte é eterna”. Na sequência desta proposição, o filósofo holandês
parece demonstrar que há alguma relação entre o aumento das qualidades corporais que
faz com que o corpo seja afetado menos pelos afetos maus com o consequente aumento
de uma maior parte eterna da mente. Como pode haver essa relação? Falamos aqui de
uma parte da mente que é eterna em relação com aumento de qualidades corporais que se
dá no tempo? Tentaremos responder como que aquilo que acontece no corpo, quando
percebido de maneira adequada irá fazer com que a parte eterna da mente se torne maior
e, por isso, aquele que tem um corpo capaz de muitas coisas, quando essas coisas são
percebidas de maneira adequada, tem uma mente cuja maior parte é eterna. Este
posicionamento de Spinoza parece evidenciar a mudança de perspectiva apontada no final
2 Della Rocca irá falar da mente e corpo como sendo numericamente idênticos. Não concordamos com sua abordagem, pois, nos parece que ele confunde a identidade existente entre a substância pensante e a substância extensa com a identidade dos modos. Cf. DELLA ROCCA, 1993, p. 183-213. 3 Deleuze se valerá do conceito de representação, o qual nos parece mais adequado. Cf. E2p13. É evidente que a noção de representação não invalida a de identidade. Cf. DELEUZE, 2017. 4 Esta assimetria é explicada pela capacidade de o Pensamento representar realidades distintas de si mesma. 5 De acordo com E2p21, indivíduo aqui é entendido como a unidade de uma ideia e de seu objeto.
13
do escólio da E5p20, onde diz que passará a falar não mais do corpo com relação à mente,
mas somente de uma parte da mente que não tem relação com o corpo, ou seja, a parte
eterna da mente. A partir deste ponto, ou seja, da mudança apontada na E5p20, logo, da
tese da eternidade da mente é que tentaremos sustentar que a beatitude está ligada
fundamentalmente a um posicionamento da mente com relação a si mesma e não com o
corpo.
Esta relação da mente consigo mesma permeia toda a segunda metade da parte 5
da Ética, onde Spinoza constantemente faz referências à parte eterna da mente como
primordial para alcançar um conhecimento adequado de Deus e do mundo. Spinoza ainda
diz claramente que a parte principal da mente é a parte eterna6 e que a parte que permanece
é mais perfeita que a outra que perece.7 Assim, consideramos suficientemente claro que
apesar de não podermos simplesmente ignorar a parte temporal da mente, a parte eterna
da mente nesta atitude racional reflexiva é primordial para alcançar a beatitude, e que
ainda, a parte eterna é superior à temporal, pois é somente a partir dela que o indivíduo
consegue se enxergar participante da eternidade divina, e se enxergar participante nesta
eternidade é perceber-se do ponto de vista da eternidade, ou seja, através de ideias
adequadas. A mente que dura enquanto dura o corpo8 não é capaz de se perceber como
eterna justamente porque tudo o que consegue enxergar são apenas as configurações
passageiras da extensão, das leis de movimento e repouso, que nada mais são do que
dados da imaginação que conduzem à passividade por serem dados através de ideias
inadequadas.
Nosso intento final é mostrar que, apesar de todas as recomendações anteriores,
Spinoza, em seu projeto ético, evidenciará que, na verdade, o que importa realmente para
alcançar a liberdade e a felicidade não é o corpo, e sim a mente, pois, como buscaremos
provar, a parte eterna da mente é mais importante que a parte temporal, e, por isso, a
mudança de perspectiva na passagem das proposições 20 e 21 tratará quase que
exclusivamente9 da necessidade de pensar a relação da mente consigo mesma, pois
somente nessa relação é que o indivíduo alcançará a beatitude.
Por fim, e talvez ainda mais interessante, é perceber que Spinoza retoma o tema
do corpo presente na E5p39, mesmo tendo dito anteriormente que não iria mais falar nada
6 E5p39s. 7 E5p41c. 8 E5p40c. 9 Digo quase, pois Spinoza retornará ao tema do corpo atual nas últimas proposições.
14
que tivesse relação com o corpo. A partir disto, tentaremos responder uma questão
importante neste trabalho, a saber, qual a relação de uma vida "segundo o ponto de vista
da eternidade" com a vida prática dos indivíduos e como isso leva o homem a ser livre e
encontrar a verdadeira felicidade ou ser salvo? A consciência de nossa eternidade e seus
desdobramentos traz algum conforto para a vida diária dos indivíduos? A consciência da
relação da mente consigo mesma e da nossa eternidade nos repele ou nos insere ainda
com mais força nas relações mundanas e perecíveis das quais Spinoza busca em toda a
segunda metade da parte 5 nos afastar?
A resposta à primeira e à segunda pergunta nos parece simples. Enxergar a vida
sob o ponto de vista da eternidade, ou seja, sob o ponto de vista de Deus, é enxergar a
vida através da parte eterna da mente, que se mostrará mais importante e fundamental
para que o indivíduo perceba, a partir de uma atitude racional reflexiva, que a beatitude
não está naquilo que é perecível ou passageiro ou nas coisas que são despertadas pelas
paixões. A partir do entendimento da vida através do ponto de vista da eternidade,
percebemos que participamos de algum modo desta mesma eternidade divina. Esta
percepção deve trazer conforto, pois demonstra que o indivíduo conseguiu se afastar ao
máximo das paixões que diminuem seu esforço em perseverar no seu ser e o quanto ele
está mais próximo da beatitude ou da liberdade. A terceira pergunta proposta acima
parece ser a de maior esforço para uma resposta. Ora, se estamos conscientes de nossa
eternidade e vemos a vida através de um ato racional reflexivo e com isso nos
aproximamos mais da beatitude, a resposta aqui se mostrará dúbia e novamente aparecerá
uma assimetria, pois, ao mesmo tempo em que essa consciência nos repele da vida
mundana, pois enxergamos as coisas sob o ponto de vista da eternidade, ela também nos
insere com mais força nas relações cotidianas, afinal, sem a vida prática na duração, em
ato, não poderia haver a possibilidade deste ato racional reflexivo que leva à beatitude.
15
1 – BREVE ONTOLOGIA SPINOZANA
1.1 Deus, substância que consiste de infinitos atributos
Uma das teorias spinozanas mais difíceis e questionadas ao longo dos tempos foi
a da coexistência de infinitos atributos realmente distintos em uma única substância10. A
dificuldade real não está em aceitar as provas expostas em si, mas sim em como
compreender o que as verdades estabelecidas a partir destas provas realmente nos dizem.
A E1p5 deixa claro que “não podem existir, na natureza das coisas, duas ou mais
substâncias de mesma natureza ou de mesmo atributo.” Ora, se somarmos a isso a
definição de Deus11 e a definição de sua existência necessária12, veremos que são teses de
pouca rejeição entre os filósofos do seu tempo.
A partir disto, encontramos provas de verdades necessárias a partir de premissas
simples. Spinoza sempre pareceu desafiar o seu leitor ao elaborar teses e conceitos a partir
de premissas triviais. No entanto, uma vez estabelecidas essas verdades, percebemos a
profundidade e o alcance daquilo que foi proposto como verdade fundamental. Se a
substância é única, como todos os demais entes existentes são modificações e subsistem
nesta substância? Se Deus é extenso13, como Ele pode ser simples e expresso por dois
atributos diferentes?
Spinoza nos adverte14, algumas vezes, sobre nossa tendência em confundir a
imaginação com o intelecto. O caminho do conhecimento não pode ser norteado por
aquelas coisas que percebemos mais facilmente, mas antes, pelas verdades acerca da
essência divina e suas consequências. Não é o conhecimento imaginativo, que apenas
confunde nossa percepção da realidade, que nos fará entender a verdadeira essência das
coisas. Nossa imaginação não tem capacidade para alcançar a Deus e nem as essências
10 Apesar de a substância ter infinitos atributos, só podemos conhecer dois, Pensamento e Extensão. Os infinitos atributos existentes não farão parte de nosso estudo. 11 E1D6: “Por Deus compreendo um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita.” 12 E1p7d: “Uma substância não pode ser produzida por outra coisa. Ela será, portanto, causa de si mesma, isto é, a sua essência necessariamente envolve a existência, ou seja, à sua natureza pertence o existir.” 13 E2p2: “A extensão é um atributo de Deus, ou seja, Deus é uma coisa extensa.” A simplicidade dos argumentos para suas teses é mais evidente nesta proposição, onde Spinoza a demonstra pela demonstração da proposição anterior.” 14 E2p49s: “[…] Começo, assim, pelo primeiro ponto, advertindo os leitores para que distingam cuidadosamente entre, por um lado, a ideia ou o conceito da mente e, por outro, as imagens das coisas que imaginamos…”. É evidente a preocupação de Spinoza acerca do uso da imaginação na formulação dos conceitos verdadeiros e falsos acerca das coisas e de Deus. A esse respeito cf. E2p47s.
16
das coisas produzidas. É ela, a imaginação, que não consegue aceitar as verdades
estabelecidas de que falamos; que não consegue entender ou aceitar a simplicidade divina,
provada juntamente com a multiplicidade do universo, que deriva, por sua vez, da
produção de modos pela substância, e que faz com que o mundo seja formado pela
substância e pelas modificações da mesma. É a imaginação que enxerga a extensão como
algo divisível, enquanto que o intelecto percebe a extensão como simples e indivisível15.
Pela razão, em contrapartida, entendemos de forma clara a verdade da coexistência dos
atributos Pensamento e Extensão em uma mesma e única substância. Somente pela razão,
pela ordem das razões, pelo conhecimento dos efeitos pelas causas, é que conseguiremos
nos desvencilhar das conclusões equivocadas impostas pela imaginação. Não é por
imaginarmos mais facilmente as coisas que elas devem ser tomadas como verdades.
Somente o intelecto puro, o raciocínio através da ordem das razões, que parte da causa
para o efeito16, de Deus para o mundo, da substância para os modos, pode nos levar às
conclusões spinozanas.
Spinoza define a substância na E1D3: “Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado.”
A substância de Spinoza é diferente daquela apresentada por Descartes. Para este,
a substância é dita ser única no sentido de ser independente de qualquer outra coisa, e
nisto eles concordam. Mas, e agora isso vale somente para Descartes, esta mesma
substância possui um só atributo que exprime sua essência. Em Spinoza, os atributos são
realmente distintos, como vemos afirmado na E1p10s, mas, no entanto, coexistem na
substância única e simples, que é Deus, a qual tem, assim, vários (infinitos) atributos que
expressam sua essência.
Deus é um ser que existe necessariamente, e por essa necessidade é que podemos
falar da coexistência dos atributos na substância. Em Spinoza, não existem várias
substâncias, a existência de múltiplas substâncias se torna contraditória pela prova da
unicidade necessária divina feita na E1p1117. Esta prova, da existência necessária de
15 E1p15s. 16 E1ax4: “O conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e o envolve.” 17 Esta proposição afirma: “Deus, ou seja, uma substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente.” Para Spinoza, pela existência pertencer à essência divina, Deus existe de maneira necessária; se não fosse assim, deveria se conceber Deus tendo uma essência que não envolvesse a existência, o que é um absurdo. Cf. a demonstração desta proposição.
17
Deus, é suficiente para a afirmar a possibilidade da existência de todos os atributos em
uma única substância. Acompanhemos o raciocínio abaixo.
Na E1D3, Spinoza, dá uma definição geral do que é a substância, definição esta
que não exprime todas as suas propriedades. Já na E1D6, Spinoza, define de forma
completa a substância, Deus. Ao analisarmos a E1p11, vemos Spinoza afirmar a
existência necessária de Deus apresentada anteriormente na E1D6. Conclui que Deus
existe necessariamente pelo absurdo de pensar Deus como inexistente, uma vez que, “à
natureza da substância pertence o existir”18, e que, se Deus é uma substância, e sua
essência envolve sua existência, pelo contrário da E1ax719, logo, Deus existe
necessariamente. Para Spinoza, negar o absurdo de sua inexistência é suficiente para
afirmar sua existência necessária. Este é um primeiro movimento para provar a existência
de Deus. Um segundo movimento spinozano para provar a existência de Deus é o de
mostrar que tudo precisa de uma causa tanto para ser quanto para não-ser, e que as razões
para sua não-existência, que são impossíveis de ser encontradas, tanto fora quanto dentro
da natureza de Deus, provam a existência necessária do ser absolutamente infinito e
perfeito. Ora, se cada coisa deve ter uma causa para existir, esta causa deve estar contida
na natureza da coisa ou fora dela; uma substância existe exclusivamente por si, pois sua
essência envolve a sua existência pela E1p7; disso se segue que uma coisa existe
necessariamente, se não houver nada que a impeça de existir; como não há nenhuma causa
que impeça que Deus exista, se segue que Deus existe necessariamente; a causa da
existência de Deus deve estar na sua própria natureza ou fora dela; se estiver fora dela,
deve estar em outra substância, de natureza diferente; se estiver em outra substância,
devemos aceitar a existência de Deus, ou seja, que Deus existe; uma outra substância
diferente de Deus não teria nada em comum com Deus e, portanto, não poderia dar ou
tirar a sua existência; assim, a causa da não existência de Deus deve estar em sua própria
natureza; se este fosse o caso, a natureza de Deus envolveria uma contradição, pois
supondo que Deus não existe, sua existência seria dada por algo que não existe; ora, como
é absurdo afirmar isto de Deus, logo, não há, nem em Deus, nem fora dele, qualquer causa
que negue sua existência; conclui-se, finalmente, que Deus existe necessariamente.
Vários são os momentos em que Spinoza demonstra a coerência do conceito de
substância. Desde a E1D3, passando por E1p7, E1p8 e E1p9, para citar alguns exemplos.
A existência infinita da substância implica que existe um ser que tem mais realidade do
18 E1p7. 19 E1ax7 diz: “Se uma coisa pode ser concebida como inexistente, sua essência não envolve a existência.”
18
que outros, ou seja, existe um ser que tem uma existência infinita que, por isso,
consequentemente, tem mais realidade do que o ser que tem existência finita. Ora, se
somente a substância é infinita, logo, seu grau de realidade é também infinito. E se pela
E1p9, “quanto mais realidade o ser a coisa tem, tanto mais atributos lhe competem”, logo,
maior será o número de seus atributos. Esta premissa faz com que seja possível, e mais
do que possível, digo, que seja necessário, que uma única substância, que é infinita,
possua também infinitos atributos, afinal, se todos os seres possuíssem o mesmo número
de atributos, todos teriam o mesmo grau de realidade ou ser, o que é absurdo. Outrossim,
o ser que possui infinitos atributos chamamos de Deus.
Vimos, aqui, que Deus é um ser infinitamente infinito que tem sua existência
decorrente exclusivamente de sua essência. Esse Deus nada mais é do que uma substância
(única) que contém infinitos atributos que exprimem a sua essência. Sua existência é
necessária e sua inexistência é um absurdo. Por ser necessário, sua essência envolve a sua
existência e por isso, Deus é um ser absolutamente infinito; ao contrário de um ser finito
e limitado que tem um grau de realidade também finito, a infinitude de Deus lhe garante
um grau de realidade também infinito, e por isso, seus atributos também serão infinitos.
Fica provado, desta maneira, a existência de apenas uma única substância que contém
infinitos atributos.
19
1.2 Atributos, multiplicidade na unidade
Ao falarmos dos atributos, não podemos deixar de levar em consideração que há
uma grande variedade de interpretações tanto para o conceito de atributo quanto para o
conceito de substância em Spinoza. A conciliação da existência de infinitos atributos em
uma única substância sempre suscitou abordagens diversas20. Por atributo, Spinoza
entende:
“Por atributo compreendo aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo a sua essência.”21
Por Spinoza definir o atributo como algo que constitui a substância em sua
essência, não podemos de maneira simplista, devido a ele fazer referência ao intelecto em
sua definição, querer dizer que o atributo é simplesmente subjetivo. O intelecto em
questão só pode ser entendido como parte do intelecto infinito de Deus22, isto é, pelo
intelecto que produz necessariamente ideia adequadas. De outra forma, a definição de
atributo poderia ser tomada como subjetiva e relativa ao intelecto finito e, portanto, não
poderia servir de base para a metafísica. Isto porque somente o intelecto pode perceber a
essência da substância adequadamente. Este é um primeiro ponto.
Um atributo exprime, num gênero determinado, uma existência infinita. Neste
sentido, a definição de substância corresponde à existência necessária e infinita dos
atributos23. Ademais, os atributos não estão no entendimento, mas na substância. Eles têm
uma existência real e por isso não podem existir duas substâncias com o mesmo atributo.
É o que está explícito na E1p5 e na sua demonstração. Para Spinoza, não podemos
distinguir duas substâncias com o mesmo atributo, pois se elas tivessem o mesmo atributo,
20 Podemos falar das interpretações subjetivas e das interpretações realistas. Na primeira, onde o atributo é aquilo que o intelecto percebe, remeto a WOLFSON, 1934, p. 120 e 146. Na interpretação subjetiva, distingue-se os atributos apenas segundo aquilo que o intelecto percebe, argumentando à partir da definição de atributo feita por Spinoza na E1D4. Wolfson, desta maneira, afirmará que o conceito de atributo é subjetivo, pois representa aquilo que o entendimento humano consegue perceber da natureza de Deus. O atributo deixa de ser uma parte essencial da substância e passa a ser algo que representa a relação entre o indivíduo e Deus e que, consequentemente, passa a existir somente no intelecto. Na segunda, onde o atributo é identificado com a substância, remeto a GUEROULT, 1969, p. 56. Na interpretação realista, o atributo será tido como parte essencial da substância, sendo distintos relamente entre si, porém, tendo uma distinção de razão entre si e a substância. Isto significa dizer, que nesta intepretação, o atributo é a substância. O que o intelecto percebe é idêntico à coisa percebida. Textos nos quais se apoiam essa tese são, E1p4d, E1p20c, entre outras. Não é nossa intenção, no entanto, retomar toda a problemática que se deriva destas intepretações. 21 E1D4. 22 O intelecto infinito de Deus é tematizado na parte 2 da Ética. Cf. E2p1s, E2p3 juntamente com sua demonstração e E2p4 juntamente com sua demonstração. 23 Cf. E1D3.
20
ou seja, se seus atributos fossem idênticos, elas seriam idênticas. Na demonstração desta
mesma proposição ele descarta também que se possa distinguir as substâncias por seus
acidentes, já que elas devem ser pensadas sem os acidentes. Nas primeiras proposições
da parte 2 da Ética, Spinoza nos diz que o pensamento e a extensão são atributos de Deus.
Esses dois atributos pertencem à mesma substância, em virtude tanto da natureza da
substância quanto da natureza do atributo. Todo atributo exprime a substância inteira,
mas os atributos não podem ser partes da substância, pois a substância é simples, sem
partes. O atributo, por outro lado, não pode ser separado da sua causa produtora, como
uma coisa, mesmo que percebido sob um aspecto particular pelo intelecto. Assim, os
atributos são realmente distintos entre si, mas não podem existir de forma separada24.
O atributo passa a ser, em Deleuze, uma expressão25 da substância, mas mantendo
uma referência ao intelecto, pois o atributo é “aquilo que o intelecto percebe”. Pelo fato
de os atributos não terem nada de comum entre si e, ainda assim, serem concebidos por
si, é que um não pode negar o outro. Disto se segue a teoria da existência do múltiplo no
uno. Ora, o que é concebido por si não pode ser contraditório com algo que lhe é
independente. Tomando o pensamento e a extensão, que são atributos de Deus, fica claro
que a sua coexistência em uma única substância é possível. Como o pensamento não pode
ser pensado em conjunto com a extensão, não há nada na extensão que possa ser dito
contrariamente à existência do pensamento e que negue sua existência na substância, e
vice-versa. Colocada esta negação de interação entre o pensamento e a extensão, um não
24 Deleuze irá definir o estatuto dos atributos da seguinte maneira: “1º) Os atributos, em Spinoza, são realmente distintos ou concebidos como realmente distintos. Na verdade, eles têm razões formais irredutíveis; cada atributo exprime uma essência infinita como sendo sua razão formal ou sua quididade. Os atributos se distinguem, portanto, ‘quiditativamente’, formalmente: são certamente substâncias, em um sentido puramente qualitativo; 2º) Cada um atribui sua essência à substância como a uma outra coisa. É uma maneira de dizer que nenhuma divisão no ser corresponde à distinção formal entre atributos. A substância não é um gênero, os atributos não são diferenças específicas: não existem, portanto, substâncias de mesma espécie que os atributos, não há substância que seja a mesma coisa (res) que cada atributo (formalitas); 3º) Essa ‘outra coisa’ é, portanto, a mesma para todos os atributos. Mais do que isso: é a mesma que todos os atributos”. Cf. DELEUZE, 2017, p. 43. O problema implícito aqui é o da identificação entre a substância e o atributos. Na E1p4d, E1p19 e E1p20c2, Spinoza mostra que a substância e o atributo são idênticos. Ora, como podem ser idênticos e isto não implicar a existência de mais de uma substância, uma vez que existem infinitos atributos? Outrossim, não podemos simplesmente identificar o atributo com a substância e dizer que isto implica a existência de variadas substâncias, pois vai contra a unicidade substancial estipulada por Spinoza, cf. E1p12 e E1p13. Para vencer este obstáculo, levaremos em conta que as ideias são proposições que predicam propriedades de algo. Disto, dizemos que uma substância tem sua essência constituída por um certo atributo ‘E’, portanto, a proposição ‘substância é E’, expressa uma característica ontológica primitiva. O que quer dizer que substância e atributos são inextricavelmente unidos, pois ‘E’ é um conceito aplicado tanto ao atributo quanto à substância. É esta proposta complexa que demonstra que os conceitos de atributo e substância podem ser idênticos, enquanto permanecem como dois entes distintos. Sobre este ponto, cf. KOISTINEN, 1991, p. 18-24. 25 O conceito de expressão em Deleuze é explicado mais à frente neste trabalho.
21
pode impedir a existência do outro na substância. Aqui, falamos apenas do atributo
pensamento e do atributo extensão, pois estes são os únicos a que temos acesso, contudo,
esta fórmula é aplicável a todos os atributos existentes. Desta forma, fica evidente que a
substância pode e, logo, é necessariamente constituída de infinitos atributos (já que a
possibilidade da existência da substância implica sua necessidade).
Para Spinoza, a distinção existente entre os atributos é do tipo real e significa ser
concebido por si. Por isso, a distinção real implica a distinção numérica no âmbito dos
atributos. Ou seja, conceber dois atributos como realmente distintos implica que existem
dois atributos diferentes. Contudo, o fato de os atributos serem concebidos como
realmente distintos não implica que se possa conceber duas ou mais substâncias distintas.
Conceber o atributo como realmente distinto não é o mesmo que conceber como
substâncias distintas.
Percebemos que os atributos, para Spinoza, devem ser entendidos como formas
de expressão de qualidades divinas. Apesar de o homem só conseguir conhecer dois
desses atributos, pensamento e extensão, pois destes ele é formado, há, ainda assim, uma
infinidade de atributos que compõem a substância. Compor, no entanto, não pode ser
tomado em um sentido forte, querendo dizer que a substância contém partes diferentes
em seu ser. A substância é una e indivisível, não podemos pensá-la como não-existente,
pois seria uma contradição imediata – ora, tudo que tem partes poderia ser pensado como
não-existente. A sua existência está contida na sua definição e sempre que pensamos na
substância de maneira correta (tal qual Spinoza propõe), pensamos na sua definição.
Nesta definição, devem estar contidos os atributos que lhe são próprios. A verdadeira
definição de substância, desta forma, será aquela donde todas as suas propriedades podem
ser deduzidas, tal qual expressado na E1D626.
26 A prova da multiplicidade dos atributos em uma única substância é provada a partir da existência necessária de Deus na E1p11.
22
1.3 Modos27, coisas singulares e finitas
A partir da distinção real dos atributos, podemos dizer que:
1) Não é possível estabelecer uma relação de causalidade entre mente e
corpo28.
2) Mente e corpo formam um indivíduo finito e determinado. Um modo
derivado indiretamente de um atributo. Uma coisa singular que não
existe por si, mas precisa de outro para existir.
Spinoza definirá o modo e a coisa singular das seguintes maneiras,
respectivamente:
“Por modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual é também concebido.” (E1D5)
“Por coisas singulares compreendo aquelas coisas que são finitas e que têm uma existência determinada. E se vários indivíduos contribuem para uma única ação, de maneira tal que sejam todos, em conjunto, a causa de um único efeito, considero-os todos, sob este aspecto, como uma única coisa singular.” (E2D7)
Assim, as coisas singulares são modos. Frequentemente Spinoza define os modos
ou coisas singulares como o que existe de maneira finita e determinada, que por sua vez,
são responsáveis por causar outras coisas finitas e determinadas29. No entanto, não são
suas essências que determinam a sua existência. É somente por coisas singulares que
outras coisas singulares são determinadas a existir e agir. Isto porque, quando estão
presentes na cadeia infinita de causas, onde o conjunto de modos finitos forma um
complexo de causas que corresponde à totalidade das coisas que existem na duração, há
uma ordem causal que acontece entre as coisas finitas no tempo gerando cada uma das
inúmeras modificações; se fossem causadas diretamente por Deus, tais modificações
teriam de ser, elas mesmas, eternas e infinitas, como sua causa, pois tudo o que se segue
necessária e diretamente do infinito é infinito. Além disso, essas modificações sempre
ocorrem dentro de um limite causal entre coisas da mesma natureza, ou seja, modificações
27 Os modos podem ser tanto infinitos quanto finitos. Neste ponto, trataremos apenas dos modos finitos. Para uma melhor compreensão da teoria dos modos infinitos, cf. FRAGOSO, 1997, p. 13-16. 28 A mente não pode ser a causa do corpo e nem o corpo ser a causa da mente. Na filosofia de Spinoza, uma coisa só pode ser causa da outra se elas pertencerem ao mesmo atributo. Cf. E2p6d. Uma discussão mais detalhada sobre a relação de causalidade dos modos finitos é apresentada no próximo capítulo. 29 Cf. E1p24c e E1p28.
23
causais que ocorrem no pensamento estão limitadas a ocorrerem somente no pensamento,
nunca podendo causar ou ser causadas por modificações da extensão, e vice-versa.
Os modos também são coisas compostas por partes e compositores de outras
coisas. Spinoza afirma:
“Quando corpos quaisquer, de grandeza igual ou diferente, são forçados, por outros corpos, a se justaporem, ou se, numa outra hipótese, eles se movem, seja com o mesmo grau, seja com graus diferentes de velocidade, de maneira a transmitirem seu movimento uns aos outros segundo uma proporção definida, diremos que esses corpos estão unidos entre si, e que, juntos, compõem um só corpo ou indivíduo, que se distingue dos outros por essa união de corpos.” (E2p13L3ax2D)
Logo, podemos dizer que o indivíduo é uma união de corpos. O corpo é um indivíduo,
conforme é um corpo composto por outros corpos que também são compostos e que são,
de igual maneira, indivíduos. Um indivíduo sempre está em modificação, mas o que faz
com que um corpo composto mantenha sua forma é tanto uma reposição de corpos de
mesma natureza, quanto uma conservação e transmissão de movimento e repouso entre
corpos30. Um determinado indivíduo pode, deste modo, ser afetado de muitas maneiras e,
ainda assim, conservar a sua forma. Concluímos daí, juntamente com a E2p12 que remete
em seu escólio à E2p7s, ou seja, à tese do paralelismo, que um corpo sofre diversas
modificações e a mente tem a capacidade de perceber cada modificação31, e que ainda,
apesar dessas diversas modificações, ele continua sendo o mesmo indivíduo.
A mente humana percebe que outros corpos existem através das afecções que eles
produzem no corpo, conforme a E2p16c1. Ocorre que essas afecções são imagens que se
referem às impressões que o corpo sofreu. Apesar de ter ideias dessas afecções, a mente
não as explica, pois são ideias apenas de imagens isoladas e que aparecem como
contingentes. A mente, quando imagina32, não está cometendo nenhum erro, conforme a
E2p17s; contudo, enquanto a mente apenas tem ideias de imagens das coisas, ou enquanto
ela imagina, está privada do conhecimento das causas reais que produzem aquilo que é
imaginado. Imaginar é, portanto, estar privado do conhecimento verdadeiro das causas
que nos afetam. Outrossim, somente quando a mente concebe as coisas de maneira
adequada, ou seja, somente através de um conhecimento adequado das coisas, que se dá
30 Cf. E2p13L 4 à 7.. 31 Cf. E2p14d. 32 Não descartamos o importante papel da imaginação na produção da forma de conhecimento que temos do mundo, contudo, não faz parte de nosso trabalho nos determos especificamente sobre este ponto.
24
através da razão e não da imaginação, o indivíduo poder ter um conhecimento das causas
que afetam o seu corpo.
Na parte 5 da Ética, Spinoza irá demonstrar que somente através do conhecimento
racional da mente, ou seja, aqueles conhecimentos que se dão pela razão e pelo intelecto,
é que podemos compreender de maneira adequada como as coisas nos afetam. Quando
concebemos as coisas relacionadas a nós, a Deus e ao mundo de maneira clara e distinta,
ou seja, de maneira adequada, nos distanciamos das afecções que nos enfraquecem e,
consequentemente, nos aproximamos das afecções que nos fortalecem33. Desta maneira,
quando percebemos as coisas de maneira adequada, passamos a enxergar as coisas da
mesma forma como Deus as vê, segundo o ponto de vista da eternidade. Neste tipo de
conhecimento racional, percebemos que somos parte de Deus e que esta é a única via
possível para alcançarmos a verdadeira liberdade.
Os modos, como vimos, são aquilo que os atributos exprimem de maneira definida
e determinada, que não podem existir ou ser por si, mas que dependem sempre de outro
para que sua existência seja dada. Isto implica que, diferentemente do atributo e da
substância, que são eternos, os modos finitos têm uma duração determinada. Dos modos
finitos, são ditos serem coisas singulares. Nesta categoria se encontram os homens.
Composto de mente, uma coisa pensante, e corpo, uma coisa extensa, sem deixar de ser
um indivíduo, ele sofre afecções no corpo que são de alguma maneira captadas pela
mente. Essas afecções podem nos fazer ser mais passivos ou mais ativos. A maneira pela
qual enxergaremos o mundo, Deus e a nós mesmos, procurando entender de forma
adequada com se dão as causas das coisas que nos afetam, será fundamental nesta relação
entre os corpos que se afetam, entre as coisas singulares, entre os modos finitos. Como
entender esta relação existente entre corpo e mente, sua união e interação, é um ponto
crucial em nosso trabalho e um dos temas centrais da filosofia spinozana, e, por isso, é
tema da próxima seção.
33 Na parte 3 da Ética, Spinoza demonstra sua teoria das emoções ou dos afetos. Ele divide em basicamente três tipos: 1) desejo, que no homem será comparado à sua essência, mais conhecido como conatus, que é a capacidade que todo indivíduo tem de perserverar no seu ser (E3Daf1exp); 2) alegria, que “é passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior” (E3Daf2); e 3) tristeza, que “é a passagem do homem de uma perfeição maior para uma menor” (E3Daf3exp).
25
2 – PARALELISMO
2.1 União mente x corpo
A relação mente e corpo é um tema recorrente em toda a filosofia. Spinoza,
posicionando-se principalmente contra as teses clássicas de interação e união entre mente
e corpo, contrapõe a elas a ideia radical de que “a ordem e a conexão das ideias é a mesma
que a ordem e a conexão das coisas”34 e que “um modo da extensão e a ideia desse modo
são uma só e mesma coisa, que se exprime, entretanto, de duas maneiras.”35
No prefácio da parte 5 da Ética, Spinoza condena claramente Descartes por suas
formulações acerca das teorias de união e interação entre mente e corpo e afirma: “não
posso certamente surpreender-me o bastante de que um tal filósofo admita uma hipótese
mais oculta que todas as qualidades ocultas. Que compreende ele, afinal, por união da
mente e do corpo?”. Este “tal filósofo” era nada menos que Descartes. O que vemos na
Ética é uma mudança profunda nos conceitos relacionados à ontologia humana com
relação aos conceitos cartesianos e da tradição de maneira geral. Spinoza demonstrará
que o homem é constituído de “corpo e mente, que são uma só e mesma coisa, o qual é
concebido ora sob o atributo pensamento, ora sob o atributo extensão.” Grande será o
debate entre os comentadores de Spinoza acerca das possibilidades de união e relação
entre a mente e corpo e quais as suas implicações no sistema filosófico spinozano.
Wolfson interpreta Spinoza a partir de Aristóteles e afirma que alma é a forma do corpo36.
Jarrett interpreta que mente e corpo denotam uma coisa, embora concebidas de maneira
diferente, em vez de duas coisas que são aspectos ou expressões de outra coisa.37 Bennett
interpreta a relação mente x corpo como uma relação um-um, correlacionando itens
mentais com os físicos.38 Della Rocca interpreta mente e corpo através de uma relação de
identidade numérica.39 Deleuze, por sua vez, interpreta mente e corpo através de uma
relação de representação.40
O que pretendo é analisar mais especificamente como se dá essa união entre mente
e corpo, se através de uma relação de causalidade, tal qual proposta por Descartes ou
34 E2p7. 35 E2p7s 36 WOLFSON, 1983, p. 48. 37 JARRETT, 2007, p. 75. 38 BENNETT, 1984, p. 127. 39 DELLA ROCCA, 1993, p. 183-213. 40 DELEUZE, 2017.
26
através do conceito de representação, tal qual exposto por Spinoza; se existe uma
identidade numérica ou se será uma unidade modal funcional a melhor maneira de
explicar a unidade da mente e do corpo. Como o paralelismo spinozano influencia ou é
influenciado por esses conceitos também é parte importante de nosso trabalho.
27
2. 2 União mente x corpo em Descartes
Partiremos da teoria clássica do dualismo substancial cartesiano, que afirma, a
grosso modo: duas substâncias distintas e excludentes podem interagir causalmente entre
si41. A maior crítica a essa formulação está na compreensão da afirmação de que duas
coisas que nada têm de comum entre si, a saber, corpo e alma, estão unidas42. A princesa
Elisabete, com quem Descartes tem muitas correspondências, questiona a possibilidade
de o que é imaterial, a alma, ter qualquer tipo de contato com o que é material, o corpo.
Parece senso comum essa afirmação, apesar de percebermos que há algum tipo de relação
entre a mente e o corpo, pois sentimos que coisas que acontecem com o corpo nos afetam
provocando reações e sentimentos na mente e, por outro lado, sentimos que a mente
provoca ações diretas no corpo. Descartes acredita que o indivíduo é composto por alma,
que nada mais é que uma substância pensante, que está unida a um corpo, que nada mais
é que uma substância extensa. Assim, o homem para Descartes é composto por duas
substâncias que nada têm de comum entre si. A relação posta em jogo por Descartes é a
relação de causalidade. A tese da união e interação da alma e do corpo se dará através
desta causalidade.
Na Sexta Meditação, Descartes introduz um conceito de união do corpo com a
alma, que surge após o conhecimento prévio da existência do meu corpo; o argumento
diz:
“A natureza me ensina, também, por esses sentimentos de dor, fome, sede, etc., que não meramente estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas que, além disso, lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que componho com ele um único todo.”43
Este argumento rejeita claramente uma concepção platônica de que a alma é a essência
do homem e o corpo um simples veículo e, por outro lado, não se identifica com o
hilemorfismo aristotélico. Com base nas sensações, Descartes mostrará que o tipo de
relação existente entre corpo e alma é de uma união substancial, ou seja, uma relação
onde, apesar de alma e corpo serem duas substâncias distintas, elas formam um único ser,
o homem, e não uma terceira substância. Ora, os sentimentos confusos de fome, sede,
41 Não pretendemos, sobremaneira, esmiuçar a tese da união e interação entre mente, mais comumente chamado por Descartes de alma, e corpo neste trabalho. Nossa intenção é fazer apenas uma exposição panorâmica das teses cartesianas e contrapô-las às de Spinoza e de outros comentadores de Spinoza. 42 Correspondência entre Descartes e a Princesa Elisabete, 2017, p. 198-199. 43 DESCARTES, Sexta Meditação, §24.
28
etc., só podem estar em mim através de uma sensação mental, que é confusa, daquilo que
ocorre em meu corpo. Logo, toda vez que sinto algo em meu corpo, uma comunicação
acontece com o meu espírito, p.ex., quando eu (meu corpo) me firo, eu (espírito) sinto
dor. Da mesma maneira, quando escolho mover alguma parte de meu corpo, ocorre algo
em meu espírito que é de alguma forma comunicado ao meu corpo, e então, eu movo meu
braço.
Na prova da união da alma e do corpo estabelecida por Descartes, é fundamental
percebermos que ele supõe como aceitas duas provas anteriormente dadas, a da distinção
real entre corpo e alma, ou seja, corpo e alma são duas substâncias realmente distintas, e
a prova da existência das coisas materiais. Partindo, assim, das sensações que tenho de
coisas que me afetam, ele prova que o homem é constituído de corpo e alma, uma vez
que, até então, tudo o que ele sabia com certeza era que o homem é apenas uma alma.
Descartes demonstra que conheço que tenho uma alma mais estreitamente unida a um
corpo, pois tenho o conhecimento da existência de outros corpos que me afetam, e que só
é possível que estes outros corpos me afetem porque tenho um corpo. Um problema que
decorre diretamente desta teoria é: como explicar por que uma afecção de um corpo
externo a mim é expressa em um ato da alma ou espírito? A resposta de Descartes será
no sentido de tentar mostrar que esta união entre corpo e alma é um tipo especial de união,
onde a alma sofre certas modificações que a possibilitam de ter atos como sentir, etc. Pelo
fato de que aquilo que sinto ser obscuro e confuso é que sei que a união da minha alma
com meu corpo é especial, ou seja, uma mistura entre duas substâncias diferentes.
Descartes, em suas meditações, especialmente na quinta e sexta, se ocupará com
o problema das premissas pelas quais podemos chegar ao conhecimento da natureza e da
existência dos corpos. Partindo da noção que o conhecimento dos corpos, ao menos o
conhecimento de sua natureza, depende de algum tipo de ideia inata44, ele afirmará que o
conhecimento dos corpos é um conhecimento que não depende da experiência sensível,
rompendo assim, com o modelo tomista-aristotélico mais tradicional e assumindo que
apenas o conhecimento da existência dos corpos acontecerá através das sensações. A
partir das sensações, Descartes mostrará como é possível saber que um certo mundo
externo existe, que um certo corpo seja meu e como a relação do meu corpo com minha
alma é uma relação substancial. Ele parte da ideia de que, porque sei que existe o mundo
44 Não poderia ser diferente, visto que esta é a premissa pela qual o que fora já examinado, a saber, a alma e Deus, pode ser conhecido.
29
físico e que as coisas materiais que se apresentam a mim são reais, temos uma percepção
clara e distinta de que esse conhecimento do mundo externo, mesmo que partindo de uma
percepção sensível obscura e confusa, nos mostra que há coisas materiais externas a mim,
ainda que essas coisas não sejam tais como minhas ideias as representam. Desta maneira,
pelo conhecimento da existência do mundo externo, com base nas sensações, Descartes
afirma nos Princípios da Filosofia: “Devemos concluir também que determinado corpo
está mais estreitamente unido à nossa alma do que os outros...”.45
Partindo da ideia clara e distinta, já estabelecida nas meditações anteriores, de que
tudo o que sei até então é que sou pura alma, Descartes mostra, através do conhecimento
da existência do mundo material e das sensações, que eu, que sou pura alma, tenho um
corpo que está ligado à minha alma. Ora, sei que sou pura alma; por outro lado, sei,
também, que existem corpos externos realmente distintos e que eles me afetam; assim, se
eu posso ser e sou realmente afetado por corpos exteriores a mim, então, eu que sinto,
devo concluir que não sou apenas alma, mas sim uma alma unida a um corpo. A partir
desta exposição, portanto, parece correto afirmar que corpos externos possam agir
diretamente sobre minha alma, não por serem diferentes em sua natureza, mas por não
terem, com ela, uma união íntima. Se sou alma, não posso ser afetado por corpos, mas é
fato que corpos me afetam, portanto, não sou apenas alma, mas também um corpo. Se sou
um corpo e uma alma, como explicar que corpos materiais externos possam afetar a minha
alma? Para vencer essa dificuldade, Descartes explicará que essa união entre alma e corpo
é um tipo de ligação íntima, substancial. Essa união substancial é que explicará que o que
me afeta não é um corpo exterior, mas um corpo intimamente ligado à minha alma. Mas
por que o fato de ser afetado por corpos externos gera em mim paixões na minha alma?
Por que, quando o corpo é afetado, a alma é que sente?
A solução proposta por Descartes parece apontar para o fato de que por minhas
percepções serem obscuras e confusas é que sei que existe um tipo especial de união entre
minha alma e meu corpo. Sei que eu, que sou alma e corpo, mas que ainda não sei que
tipo de união é esta, tenho sensações, e que essas sensações são obscuras e confusas. Essas
sensações são consideradas modos do pensamento e, portanto, da alma46. Por outro lado,
só posso dizer que tenho sensações se admitir que tenho um corpo. Desta maneira, as
sensações que determinam a união entre mente e corpo não podem nem ser modos da
45 DESCARTES, 2004, p. 60. 46 DESCARTES, 2011, p. 41-55.
30
mente pura nem modos do corpo puro, mas de um eu que é corpo e alma. Doravante,
Descartes sustenta que essa união do corpo e da alma é substancial e que eles formam um
único ser a partir de duas substâncias heterogêneas, não constituindo uma terceira
substância, pois esta união “consiste em mostrar que uma experiência obscura e confusa,
independentemente de seu conteúdo representativo, justifica a crença num determinado
tipo de relação de união. Embora a união não seja o objeto intensional da sensação, a
sensação é evidência da união porque é produto da união.”47
Uma outra maneira que Descartes escolhe para demonstrar a união do corpo e da
alma é através do conceito de noções primitivas, conceito este que está presente em sua
correspondência com a princesa Elisabete.48 Ele afirma que tanto as noções de corpo e
alma, tomadas separadamente, quanto a do corpo e alma unidos49 são noções que estão
em nós e que são como que originais, donde formamos todos os outros conhecimentos.
Isto significa dizer que esta noção não pode ser explicada por nenhuma outra e que deve
ser entendida por si. Ou seja, a noção que temos da união entre alma e corpo é tão imediata
quanto a noção que temos de que o corpo é extenso e de que a alma é pensamento e, esta
noção é tão comum a todos que mesmo – e talvez sobretudo – aqueles que não fazem
filosofia conseguem perceber que corpo e mente estão unidos de alguma maneira50. Para
Descartes, o fato de haver certa confusão no entendimento acerca da união entre corpo e
alma surge da confusão que fazemos ao tentar entender a interação alma x corpo através
da interação corpo x corpo.
Aceitar o posicionamento cartesiano não resolve o problema da relação entre
coisas de naturezas totalmente diferentes. A união é explicada segundo um dado
experiencial, isto é, através das sensações. Por sua vez, a distinção é percebida pela razão.
Cada noção, a da união e a da interação, é considerada como verdade, mas elas são
conhecidas por caminhos diferentes. Apesar disto, as noções de união e interação entre
mente e corpo se dão de maneira incontestável pela experiência. Ora, Descartes não
parece estar preocupado com o problema da relação de coisas de naturezas diferentes51 e,
por isso, não se detém sobre o tema. Seu principal objetivo seria provar a distinção que
47 ROCHA, 2008, p. 223. 48 Correspondência entre Descartes e a Princesa Elisabete, 2017, p. 196. Cf. também Princípios da Filosofia, Parte I, Artigo 48. 49 Correspondência entre Descartes e a Princesa Elisabete, 2017, p. 196. Ele acrescenta, “e enfim, da alma e do corpo juntos, temos a noção da união, da qual depende a força que a alma tem de mover o corpo, e o corpo de agir sobre a alma causando seus sentimentos e paixões.” 50 Cf. Correspondência entre Descartes e a Princesa Elisabete, 2017, p. 200. 51 Ibid, 2017, p. 196.
31
há entre a alma e o corpo. Se tomarmos como auto evidente, assim como espera Descartes,
a relação entre substâncias distintas, isto deveria ser aceito e compreendido por todos,
pois seria um axioma sobre o qual não poderia haver dúvidas. Percebemos, porém, ao
percorrer a história da filosofia, que este não é o caso, pois existe uma gama enorme de
discussões sobre o problema da união e interação entre mente e corpo.
Um que foi grande opositor das teses cartesianas, foi Baruch de Spinoza. Mesmo
que aceite que haja uma íntima relação entre as partes que compõem o homem, Spinoza
não poderia jamais aceitar a interação entre duas substâncias distintas e, de certa forma,
excludentes. Assim, ele formula uma tese totalmente diferente para explicar como se dá
essa relação entre mente e corpo. Uma tese que rejeita que haja qualquer tipo de relação
causal entre aquilo que se dá no pensamento e aquilo que se dá na extensão. Esta tese
ficou conhecida como a tese do paralelismo de Spinoza.
32
2.3 O Paralelismo Spinozano
A tese do paralelismo é exposta claramente na Ética:
“A ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas”, e, “... a substância pensante e a substância extensa são uma só e mesma substância, compreendida ora sob um atributo, ora sob outro. Assim, também um modo da extensão e a ideia desse modo são uma só e mesma coisa, que se exprime, entretanto, de duas maneiras.” (E2p7s)
Podemos perceber que Spinoza propõe haver uma relação de igualdade lógica
entre a conexão das ideias e a conexão das coisas, ou propriamente, como diz no escólio,
uma relação de igualdade lógica entre a potência de pensar de Deus e sua potência atual
de agir. Como Deus é um ser infinitamente infinito e que conhece todas as coisas, daí se
deriva que tudo o que se segue da potência de Deus é pensado por Deus, justamente por
que tem como causa a sua essência. Isto diz respeito à representação das coisas finitas no
intelecto infinito de Deus, pois elas, uma vez dadas, também deve ser dado o conjunto
causal infinito de sua existência e a ideia infinita que as representa (E2p4). Outro ponto
importante a se destacar é o uso, por Spinoza, da expressão uma e mesma coisa. É
interessante como o filósofo usa esta expressão logo após relacionar a substância pensante
e a substância extensa como uma só e mesma substância. Esta sequência parece
demonstrar que a relação identitária existente entre as substâncias vale de igual maneira
para os modos que dela derivam, sendo, desta maneira, também idênticos entre si.
Partindo da demonstração da proposição explicitada anteriormente, percebemos
que Spinoza retoma o axioma 4 da parte 1 da Ética: “O conhecimento do efeito depende
do conhecimento da causa e o envolve”. Este axioma torna evidente que a relação de
causa e efeito é fundamental no pensamento spinozano. É essa relação, a relação de causa
e efeito, que explica o sentido do paralelismo, na medida em que é ela que permite passar
da ordem do ser (conexão de causas e efeitos) para a ordem do conhecer (conexão do
conhecimento das causas ao conhecimento dos efeitos). Ora, pela E1p15, sabemos que
“tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus, nada pode existir nem ser concebido.”
Portanto, “além de Deus, não pode existir nem ser concebida nenhuma substância”. Se
Deus é causa de todas as coisas, ele também é causa dos modos existentes, mas apenas
quando considerado sob o atributo do qual eles são modos, isto é, enquanto considerado
como substância extensa, ele é causa dos modos da extensão e enquanto considerado
como substância pensante, ele é causa dos modos de pensamento. Vale ressaltar que os
modos finitos, enquanto considerados como tais, só serão causa de outro modo finito de
33
mesmo atributo, ou seja, se for um modo da extensão, será causa de um modo finito da
extensão, e se, ao contrário, for um modo do pensamento, ele será causa de um modo
finito do pensamento. Isto porque, pela E2p6d, “... é por isso que os modos de cada
atributo envolvem o conceito de seu próprio atributo e não o de um outro”, não poderá
haver relação causal entre diferentes atributos divinos e consequentemente da mesma
maneira deve ocorrer com as modificações desses atributos. Um esquema poderia ser
demonstrado da seguinte maneira para os modos da extensão (me):
meA à meB à meC à me...
e da mesma maneira para os modos do pensamento (mp):
mp1 à mp2 à mp3 à mp...
Temos aqui que meA é causa de meB que é causa de meC, e assim, ad infinitum.
E da mesma forma acontece com os modos do pensamento, onde, mp1 é causa de mp2
que é causa de mp3 até o infinito. Até este ponto não parece haver complicações ou
debates acerca das relações de causa e efeito entre os modos. É de comum acordo entre
todos os comentadores a afirmação de que os modos não existem por si, mas que existem
em outra coisa, por meio da qual também são concebidos. Na E2p7s, entretanto, Spinoza
adiciona um fator importante e que irá mudar a maneira como se entende essas relações,
que é a conjunção de um modo da extensão a um modo do pensamento pelo paralelismo.
Como pode um modo da extensão e a ideia desse modo ser uma só e mesma coisa e se
relacionar de alguma maneira se, como vimos, não pode haver relações causais entre
diferentes atributos e suas modificações? Como mente e corpo, modificações de atributos
realmente distintos entre si, podem ser um único ser? Uma chave para resolver essa
questão seriam as passagens E1ax6, E2p11 e E2p13. Pela E1ax6, conclui-se que, para
cada ideia verdadeira, deve concordar um ideato ou objeto, e, pelas E2p11 e E2p13,
conclui-se que o que constitui o ser atual da mente é a ideia do corpo existente em ato.
Portanto, podemos, de início, entender que, para cada modo do pensamento, haverá um
modo da extensão com o qual ele concorde, o que se aplica de igual maneira a mente e
corpo e poderia ser representado da seguinte maneira:
meA à meB
mp1 à mp2
34
O que o esquema acima demonstra é o que está dito nas proposições e axiomas
expostos anteriormente, a saber, que, para cada elo na cadeia causal, o efeito depende da
sua causa e o envolve e que, para cada modo do pensamento ou para cada ideia, haverá
algo correlato na extensão que os une, pelo paralelismo, e do qual a ideia é a sua
representação em ato. Aqui há um perigo de erroneamente se entender que a causa de
meA seja a mesma de mp1. Isso jamais será possível e não é o que estou defendendo, visto
que, como já exposto, atributos diferentes não podem compartilhar as mesmas causas. O
que há de comum entre eles é o nexo causal que os torna verdadeiros. Explico melhor. Se
meA é a representação de mp1, então, eles têm suas propriedades todas iguais, com
exceção, respectivamente, da propriedade da extensão e da propriedade do pensamento.
Logo, tudo o que estiver contido em mp1 como força capaz de ser causa de mp2, deve
também estar contido em meA, uma vez que, meA é o correlato da representação mp1.
Voltando à passagem da E2p7s, percebemos que, se esta relação é verdadeira para
os atributos divinos, também deveria ser para os modos singulares. Isto parece evidente,
pois, na primeira parte do escólio, o filósofo atribui uma relação de identidade entre a
substância pensante e a substância extensa e em seguida faz uma analogia com o modo
da extensão e o modo do pensamento. Aqui irá residir boa parte dos conflitos entre os
comentadores52. Nos parece claro que, em se tratando da substância pensante e da
substância extensa, que é uma só, mas expressa ora sob um atributo ora sob outro, a qual
vem a ser a tese do monismo ontológico, é o caso de afirmarmos que há sim uma
identidade de tipo numérico. Como lemos, “... são uma só e mesma substância”. Mas, se
a identidade existente aqui pode ser uma identidade numérica para a substância e, se os
modos são modificações dos atributos desta substância, não seria absurdo afirmar que há
identidade numérica entre os modos, uma vez que o próprio escólio da proposição 7
parece demonstrar isto quando faz uma analogia que parte da substância e passa aos
modos. O que irei sustentar é que o que há nos modos não é uma identidade do tipo
numérica, ou seja, substancial, mas sim uma identidade de qualidades53, que exclui
52 Analisaremos mais especificamente as divergências propostas por Della Rocca e Deleuze, onde o primeiro defende a tese da identidade numérica dos modos como base para o paralelismo e o segundo vai defender o caráter modal e expressivo dos atributos divinos, que fundamentam a noção de representação entre mente e corpo. 53 BENNETT, 1981, p. 573-584, fala dos modos como adjetivos em substância subjacente. Assim, mente e corpo são modificações dos atributos como qualidades. O que Bennett tenta esclarecer é que as modalidades das coisas finitas são fundamentais na filosofia spinozana. PINHEIRO, 2010, p. 217-242, fala de uma explicação funcional para a identidade entre as coisas finitas.
35
apenas, como apontado anteriormente, a igualdade entre as propriedades de pensamento
e de extensão.
A confusão em afirmar que o mesmo estatuto ontológico dos atributos divinos se
aplica aos modos, pela E2p7s, parece inevitável. Mas um exame mais acurado tornará
evidente que este não é o caso. Modos são nada mais do que afecções dos atributos
divinos, como confirmamos pela E1p25c. Já pela E2p10 e seu corolário:
“À essência do homem não pertence o ser da substância, ou seja, a substância não constitui a forma do homem”; e, “Disso se segue que a essência do homem é constituída por modificações definidas dos atributos de Deus.”
A essência da substância é infinita e não carece de nada além de si para ser. Se os
modos pudessem ter a mesma essência da substância, como indicaria uma leitura
superficial do escólio da proposição 7 da parte 2, existiria mais de uma substância, o que
é absurdo, como demonstrado na E1p5 e E1p14c1,2. Como modos finitos, eles precisam
também de outras coisas finitas para existir, e não é porque, em última análise, os modos
são modificações de Deus, que eles terão o mesmo estatuto ontológico de Deus. O
monismo spinozano, ou seja, a ideia de que só há uma substância, portanto, não fornece
condições suficientes para afirmar que há uma identidade numérica entre os modos
finitos, ou seja, entre mente e corpo. Mas como mente e corpo podem ser um único ser?
Como eles se relacionam?
Como vimos, esta dúvida sobre a relação/união entre mente e corpo se dá, pois
Spinoza usa uma analogia partindo da substância em direção aos modos quando usa a
expressão uma só e mesma coisa. Devemos ressaltar que, Spinoza deixa claro na E2p8, a
sua dificuldade em falar da substância e seus modos, “pois se trata de algo singular” e por
isso, se torna justificado o uso de analogias e figuras de linguagem. Contudo, é claro que
não podemos simplesmente ignorar o uso desta expressão uma só e mesma coisa, mas
querer que ela tenha a mesma força quando aplicada aos modos como quando aplicada à
substância nos parece equivocado. Quando tomamos esta expressão aplicada à substância
ou atributos verificamos que a aplicação ocorre de maneira forte, e que se atributos não
têm nada de comum entre si, ou seja, são realmente distintos, suas modificações não
podem ser causa de outras coisas que estejam sob outro atributo. Neste interim, se
considerarmos a identidade numérica como válida, teremos que:
meA à meB
36
mp1 à mp2
Se meA=mp1 e meB=mp2
Então, meA à mp2 e mp1 à meB
Um problema que surge na conclusão do raciocínio acima é que Spinoza não pode
aceitar a conclusão devido à negação das relações causais entre os atributos distintos
mencionada anteriormente e que o filósofo demonstra na E2p6d e E3p2s, mas, no entanto,
ele aceita a sentença de igualdade. Dizer, no entanto, que meA é igual a mp1 não é
suficiente para provar as diferenças modais que determinam igualdades e diferenças de
todas as coisas, pois, se todos têm por causa Deus, como diferenciar mentes e corpos de
si mesmos e de outros seres finitos?
37
2.4 A Identidade Numérica de Della Rocca
Della Rocca, irá afirmar que “a dualidade no paralelismo de Spinoza não é uma
entre coisas distintas, mas entre descrições distintas ou formas distintas de se conceber as
coisas. Assim, poderíamos dizer que o paralelismo não tem um caráter ontológico, mas
semântico”54. Ele irá sustentar esta questão apresentando a tese dos contextos causais
opacos e transparentes, imanentes e transitivos, intensionais e extensionais. Contextos
causais opacos são aqueles em que o valor de verdade de uma expressão varia dependendo
da forma como são demonstrados, ou seja, ao referenciarmos um mesmo objeto de
maneiras diferentes, seu valor de verdade muda55. O contexto causal do tipo transparente
é exatamente aquele onde não acontece mudança no valor de verdade de uma sentença ao
referenciar um mesmo objeto de maneiras diferentes. Por exemplo, se dizemos que “z é
causa de w”; ao substituirmos o valor de z e/ou w na sentença, não importa qual seja a
mudança, o resultado será sempre necessariamente igual a “z é causa de w”. Este é um
exemplo de contexto causal de tipo transparente. Três objeções ficam aparentes na relação
das evidências da validade da transparência ou opacidade dos contextos causais, quais
sejam: 1) Parece óbvio que contextos causais transitivos são transparentes, portanto, deve
ser absurdo afirmar que Spinoza nega a transparência nesses casos; 2) Spinoza está
explicitamente comprometido com a ideia de que contextos causais transitivos são
referencialmente transparentes; 3) Se a referência dos contextos causais transitivos for
opaca e a identidade numérica for válida como quer Della Rocca, como compatibilizar
esta tese com a negação do interacionismo entre modos de atributos diferentes?
Della Rocca se compromete a afirmar a identidade numérica entre mente e corpo
a partir principalmente das noções de contextos causais opacos e transparentes. Partindo
da afirmação de Spinoza, na E2p7s, de que a substância pensante e a substância extensa
são uma e mesma coisa, ele irá afirmar que, nos contextos causais de tipo imanente,
Spinoza sustenta que a referência será opaca. Em seguida, ele aplicará a mesma estrutura
argumentativa ao falar dos contextos causais transitivos. Seu erro me parece ser o de
querer aplicar diretamente aos modos a mesma identidade que foi aplicada à substância,
a partir da interpretação de uma analogia feita na E2p7. Ora, dirá ele, se Spinoza nega que
contextos causais imanentes são referencialmente transparentes, então, agora, essa
conclusão pode ser usada para prover a evidência necessária de que Spinoza também
54 DELLA ROCCA, 1996, p. 19 e 122. Cf. também 1991, p. 265-276 e 1993, p. 183-213. 55 DELLA ROCCA, 1983, p. 187.
38
mantém que há uma falha de transparência em contextos envolvendo causalidade
transitiva, e isso, portanto, é evidência suficiente para afirmar que a identidade numérica
é compatível com a negação do interacionismo entre modos de atributos distintos. Desta
maneira, o que Della Rocca faz é dizer que as três objeções propostas acima são falsas.
Em primeiro lugar, ele não acredita na afirmação de que contextos causais transitivos são
referencialmente transparentes, embora não dê nenhum exemplo que mostre o contrário.
Em segundo lugar, ele nega que Spinoza se comprometa com a transparência dos
contextos causais transitivos, mas faz isso a partir da analogia de que, se Spinoza afirma
que contextos de tipo imanente são opacos, então, deve se seguir, de igual maneira, que
contextos causais de tipo transitivo também são opacos, o que nos parece ser uma
evidência fraca, que carece de maior fundamentação teórica para ser defendida.
Della Rocca tentará escapar desta armadilha fazendo uma distinção entre relações
causais e relações explicativas, que como ele atesta é uma forte característica da filosofia
contemporânea56. O problema aqui não é como as coisas se relacionam causalmente entre
si, mas como que relações de um modo da extensão podem ser explicados em termos de
um modo do pensamento e vice-versa. Parece razoável a afirmação acima; contudo,
Spinoza é claro, na E3p2d ao dizer que:
“Todos os modos do pensar têm por causa Deus, enquanto ele é uma coisa pensante e não enquanto ele é explicado por um outro atributo (pela prop. 6 da P. 2). Portanto, o que determina a mente a pensar é um modo do pensamento e não da extensão...”
Desta maneira, Della Rocca fica aprisionado em sua teoria da opacidade dos contextos
causais transitivos. Respondendo à objeção de Bennett57, que reforçará que a identidade
numérica não é sustentável, pois se cada modo da extensão fosse numericamente idêntico
a um modo do pensamento, se seguiria que cada modo envolveria cada atributo, e isto é
um absurdo pela afirmação de Spinoza na E2p6d58, Della Rocca sustentará, a partir da
E1p25, onde Spinoza afirma que, se Deus não é causa de uma coisa, então, essa coisa
pode ser concebida sem Deus, que, equivalentemente, uma coisa w deve ser concebida
através de z, somente se w é causado por z. Sua teoria da transmissão da opacidade, dos
56 DELLA ROCCA, 1991, p. 269. 57 DELLA ROCCA, 1991, p. 269-272. 58 A E2p6d afirma: “Cada atributo, com efeito, é concebido por si mesmo, independentemente de qualquer outro (pela prop. 10 da P. 1). E por isso que os modos de cada atributo envolvem o conceito de seu próprio atributo e não o de um outro. Assim (pelo ax. 4 da P. 1), esses modos têm Deus por causa, enquanto ele é considerado exclusivamente sob o atributo do qual eles são modos, e não enquanto considerado sob algum outro atributo. C. Q. D.”
39
atributos para os modos não se sustenta, pois, a opacidade, por necessitar da afirmação da
identidade numérica e vice-versa não leva em consideração as propriedades responsáveis
pela individuação das coisas, se fechando em um círculo argumentativo hipotético que
não parece estar em conformidade com as demais teorias da Ética.
Um outro ponto que deve ser levantado é: se a identidade numérica é válida, como
sustentar o paralelismo explicitado na E2p759? Ora, se mente e corpo são uma única coisa
numericamente falando, como a afirmação desta identidade pode sustentar, ou seja, ser a
base para uma relação de ordem e conexão entre mente e corpo? O próprio Della Rocca
admite este problema, ele diz:
“Mas, a afirmação da identidade numérica não é capaz de explicar por que para cada modo da extensão há um modo do pensamento ao qual entra em relação causais entre si e vice-versa.”60
E continua:
“A razão pela qual a identidade numérica não consegue explicar este aspecto do paralelismo decorre diretamente do fato que a interpretação da identidade numérica é forçada a assegurar que Spinoza toma os contextos causais como referencialmente opacos.”61 (Grifo meu).
Na própria afirmação destacada acima, Della Rocca claramente quer atribuir
opacidade aos contextos causais em Spinoza; percebe-se, no entanto, que seu argumento
se deve somente ao fato de ele aceitar a identidade numérica, mostrando o uso única e
exclusivamente com a finalidade de sustentar sua posição, tornando ainda mais nítida a
problemática de seu argumento. Seu argumento se torna circular e problemático; ele
insere a opacidade para afirmar a identidade numérica que só pode ser afirmada pela
opacidade.
Na filosofia spinozana, pela E1ax4, sabemos que o efeito depende da causa e o
envolve, portanto, a demonstração dos efeitos de uma coisa depende diretamente da sua
causa; sendo assim, é condição necessária que haja no efeito algo pertencente à sua causa.
Pensamento e extensão são as duas causas possíveis para as coisas62. A demonstração dos
59 E2p7: A ordem e a conexão das idéias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas. 60 DELLA ROCCA, 1991, p. 273. 61 Ibid, 1991, p.273. 62 É fato que existem coisas que estão além dos atributos pensamento e extensão, uma vez que os atributos de Deus são infinitos. Contudo, como somente podemos conhecer estes dois, nos é suficiente para entendermos a explicação proposta.
40
efeitos envolve o ser das causas e um efeito não pode ser explicado de forma parcial,
através da conjunção de um e outro atributo simultaneamente. O contexto para a
demonstração de um efeito deve sempre corresponder ao do atributo que lhe é causa.
As relações causais do tipo imanente são aquelas que ocorrem entre Deus ou
substância e os modos finitos ou infinitos, enquanto que as relações causais do tipo
transitivo são aquelas que ocorrem entre diferentes modos infinitos e entre as coisas
singulares finitas. Para Della Rocca63, a opacidade dos contextos causais se encontra tanto
nas relações de tipo transitivo quanto nas relações de tipo imanente, pois, se a substância
pensante e a substância extensa são uma só e mesma coisa, a saber, Deus, e se a substância
extensa causa o meA e a substância pensante causa mp1 e, se da mesma maneira se segue
com as causas e efeitos dos modos, não havendo relação causal entre modos de outros
atributos, essa opacidade dupla, para Della Rocca, prova a identidade numérica entre
mente e corpo no sistema spinozano, eliminando assim a objeção considerada mais acima.
Percebemos que Della Rocca acredita que contextos causais opacos são aceitos
por Spinoza e que essa opacidade, não podendo ser negada nas relações imanentes, não
pode ser negada nas relações transitivas, por seu Princípio de Transmissão da
Opacidade64. Sejam mente e corpo expressões de atributos divinos, suas propriedades
serão opacas, ou melhor, intensionais e não extensionais.65 Della Rocca entende que toda
propriedade será intensional, ou seja, que dependem da forma pela qual um objeto é
expresso, se essa propriedade estiver inserida dentro de um contexto opaco. Extensionais
são as propriedades do tipo “neutro”, ou seja, que não envolvem atributos. Valendo-se de
uma fórmula modificada da Lei de Leibniz66, Della Rocca irá propor que, para Spinoza,
como mente e corpo compartilham todas as propriedades neutras e as mesmas são
extensionais, logo mente e corpo são idênticos e o paralelismo é que sustenta a relação
entre ambos.
A variação da Lei de Leibniz usada por Della Rocca parte do pressuposto que
propriedades intensionais, ou seja, aquelas em que estão presentes na relação imanente,
63 DELLA ROCCA, 1993, p. 183-213. 64 Ibid, 1993, p. 183-213. 65 Ibid, 1993, p. 183-213. 66 A Lei de Leibniz diz que, a=b, se e somente se, a e b têm todas as propriedades em comum. Della Rocca muda, dizendo que, a=b, se e somente se, a e b têm todas as propriedades extensionais, ou neutras, em comum.
41
entre a substância e seus modos, não podem entrar no seu escopo de avaliação. A partir
deste pressuposto, ele afirma:
a = b se a e b têm todas as propriedades extensionais em comum67
Ele usa esta variação para afirmar que é o paralelismo que garante a tese da
identidade e não o contrário. Nos parece, no entanto, que esse uso limitador da Lei de
Leibniz é feito apenas com o único objetivo de legitimar sua tese. Ainda que ele pondere
que Leibniz não leve em consideração algumas propriedades na formulação de sua lei,
suas afirmações não são suficientes para demonstrar que Spinoza defende uma identidade
numérica entre mente e corpo. Mesmo que ele aplique aos modos o que está sendo
exposto sobre a substância e atributos na E1p4, a leitura de uma forma mais abrangente
sobre a Ética não deveria ser desprezada. Esta argumentação hipotética baseada em
poucas evidências textuais não dá o sustento necessário para a afirmação de que mente e
corpo sejam numericamente idênticos.
Em sua explanação, ele afirmará que certas propriedades extensionais, ou o que é
o mesmo, certas propriedades neutras são partilhadas tanto por modos do pensamento
quanto por modos da extensão, devido ao paralelismo estabelecido na E2p7, e que são
essas propriedades que determinam sua igualdade. Mas como enumerar ou classificar
essas propriedades neutras? Em sua argumentação, as propriedades neutras que estão sob
o escopo da sua limitada Lei de Leibniz serão aquelas que não são consideradas por ele
como necessariamente universais, isto porque as propriedades universais neutras não
podem ser cobertas pelo paralelismo. Uma discriminação temporal também não é um
critério de individuação claro o bastante. Ele usa a E2p8c para sua exposição, se apoiando
também na E2p23d. Ele explica que, por essas proposições, podemos afirmar que mente
e corpo, e modos paralelos em geral, duram pelo mesmo período de tempo e, por isso,
compartilham todas as mesmas propriedades neutras temporais. Sua falha neste ponto
está em não levar em consideração a existência de uma parte da mente que é eterna e por
isso não tem relação com a duração. Outro ponto que podemos destacar é que se a mente
e corpo forem idênticos, ou seja, partilharem todas as mesmas propriedades neutras, tal
como quer Della Rocca, eles devem ter uma mesma localização espacial; ora, a
localização espacial não pode ser aplicada aos modos do Pensamento, portanto, este não
é um critério suficientemente claro para explicar como modos paralelos compartilham
67 DELLA ROCCA, 1993, p. 194.
42
todas as mesmas propriedades neutras. Além deste ponto, Della Rocca situa outra
propriedade que seria neutra, que é a propriedade de ser um indivíduo complexo. Este
argumento nos parece ir em favor da forma clássica da Lei de Leibniz, afinal, para cada
parte extensa que um indivíduo complexo tem, deve haver uma sua parte pensante que
lhe é idêntica. Outrossim, as causas e efeitos dos modos finitos são infinitos, tornando a
individuação das coisas, a partir da sua complexidade, uma tarefa impossível. Desta
forma, não apenas suas propriedades neutras seriam iguais, e ainda que para ele somente
as propriedades neutras estejam em jogo, a desconsideração das propriedades intensionais
na individuação das coisas se torna um problema. Vemos, desta maneira, que falta clareza
em definir um meio ou critério que demonstre que somente as propriedades neutras seriam
capazes de individuar as coisas e que seu uso da Lei de Leibniz o engendra em uma
circularidade de argumentos.
Mostraremos, no entanto, que corpo e mente são modos de atributos realmente
distintos e que pensar uma unidade numérica, mesmo que de algumas propriedades, ditas
“neutras”, é insustentável. Outrossim, se todas as suas propriedades extensionais são
compartilhadas, como poderia haver uma distinção individualizadora entre mente e
corpo? Como saber, o que é mente e o que é corpo se elas são numericamente idênticas?
A única maneira de conseguir o efeito desejado é introduzir o conceito de opacidade.
Seguido da tese da identidade numérica, apoiada por sua fórmula restritiva da Lei de
Leibniz, formando uma circularidade que não permite distinguir coisas distintas de modo
legítimo, pois a opacidade de Della Rocca não leva em consideração as propriedades
intensionais, que são as propriedades que possuem a capacidade de individuação das
coisas. Mas por que propriedades intensionais não poderiam individuar as coisas? Isto é
o que Della Rocca não consegue provar.
É evidente que Della Rocca não está preocupado com uma teoria que individue
mente e corpo, uma vez que, para ele, mente e corpo são um só e mesmo indivíduo
numericamente falando e que sua distinção é meramente uma distinção descritiva. Se,
como quer Della Rocca, a distinção entre meA e mp1 é meramente descritiva, então sua
resposta à objeção formulada acima a partir do conceito de opacidade também seria, ela
mesma, meramente descritiva. Ademais, a própria Lei de Leibniz, em sua forma clássica,
é suficiente para excluir a possibilidade de identidade numérica entre mente e corpo, e
isto para nós já é suficientemente forte como crítica à teoria da identidade numérica de
Della Rocca. Resta-nos saber como explicar a união da mente com o corpo. Vimos que a
43
teoria da identidade numérica proposta por Della Rocca se mostra insuficiente para esta
tarefa.
44
2.5 Deleuze e a Representação
Por representação, entendemos aquilo que expressa em ato algo que está contido
na mente. Para Deleuze a representação é “uma demonstração manifestada imediatamente
pela expressão de um objeto68”. O filósofo francês entende que a expressão é o
fundamento da representação. Essa expressão possui ao menos dois níveis ou sentidos: 1)
o primeiro nível é o gnosiológico/epistemológico; 2) o segundo nível é ontológico.
Começaremos nossa explanação a partir do nível ontológico. Para tanto
precisamos entender inicialmente a noção de expressão proposta por Deleuze. É notória
a importância do papel da expressão na filosofia spinozana, logo na E1D6, vemos surgir
a ideia de expressão:
“Por Deus compreendo um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita.”
E na E1p25c:
“As coisas particulares nada mais são do que afecções dos atributos de Deus, ou seja, modos pelos quais os atributos de Deus exprimem-se de uma maneira definida e determinada.”
Tanto atributo como modo são expressivos. Em um primeiro momento, Deus se
exprime nos seus atributos, que por sua vez, se exprimem nos modos, que finalmente,
exprimem eles mesmos novas modificações. Deleuze irá separar esta expressão ao menos
em dois níveis distintos: o primeiro nível diz respeito à expressão como constituição, uma
“quase genealogia da substância”69. Já o segundo nível é o da produção das coisas70. No
primeiro nível, Deus se exprime por si e no segundo nível, o atributo se exprime nos
modos. Deleuze diz de um alcance gnosiológico para a expressão71. Ele coloca também
o conhecimento no nível expressivo. Ora, as ideias, como modos do pensamento, são
modos que exprimem a natureza de Deus. Desta maneira, a relação entre o conhecimento
das coisas com o conhecimento de Deus assume o mesmo status que as coisas em si têm
com relação a Deus, um status que envolve e exprime o conceito de Deus e, portanto,
quanto mais coisas conhecer, mais coisas conhecemos de Deus (já que ele é a causa de
68 DELEUZE, 2017, p. 14; 69 Ibid, 2017, p. 8. 70 Ibid, 2017, p. 8. 71 Ibid, 2017, p. 9.
45
tudo o que existe) e, consequentemente, pela ideia de Deus ser causa de todas as nossas
ideias, mais as ideias exprimem a infinidade.
Na expressão, duas outras noções são importantes: 1) a noção de explicar e; 2) a
noção de envolver. Atributos, além de exprimirem a essência da substância, também a
explicam e envolvem72. Explicar no sentido de desenvolver; envolver no sentido de
implicar. A expressão é uma explicação, pois é o desenvolvimento daquilo que se
exprime. Por outro lado, expressão também é permanecer envolvido naquilo que o
exprime. A expressão é, portanto, a junção destas noções, onde Deus pode ser explicado
e envolvido por seus atributos e ele mesmo compreende todos os atributos. Os modos,
por sua vez, tal qual os atributos, envolvem e explicam, não a substância, mas o atributo
do qual são modos, enquanto que o atributo contém todas as essências de modos
correspondentes. Sobre o primeiro ponto, a noção de explicar, Deleuze irá afirmar que “é
a expressão que funda a relação com o entendimento, e não o contrário.”73 Aparecendo
na E1D6, a expressão não define nem demonstra coisa alguma; o que havia para ser
definido, já fora definido na E1D3 e E1D4, substância e atributo, respectivamente. A
expressão não demonstra, pois faz da demonstração a “manifestação imediata da
substância absolutamente infinita.”74 A ideia da expressão, portanto, será a de exprimir
de cada atributo uma determinada essência eterna e infinita. O exprimido não existe sem
as expressões e cada expressão é como se fosse a existência do exprimido.
Deste ponto, Deleuze deriva outro conceito importante que é o da distinção entre
a substância que se exprime, os atributos que são expressões, a essência exprimida.
Sabemos que os atributos exprimem uma essência da substância e que, por isso, eles não
podem ser passivos, mas sim ativos, ou seja, atribuidores. Ser atribuidor é atribuir sua
essência que está diretamente relacionada com um Deus imanente, e que faz parte de uma
substância que existe necessariamente. Desta forma, os atributos são expressivos,
72 E1p19d atesta: “Além disso, por atributos de Deus deve-se compreender aquilo que (pela def. 4) exprime a essência da substância divina, isto é, aquilo que pertence à substância, que é precisamente, afirmo, o que esses atributos devem envolver. Ora, à natureza da substância (como já demonstrei na prop. 7) pertence a eternidade. Logo, cada um dos atributos deve envolver a eternidade e, portanto, são, todos, eternos. C. Q. D. “. Já a E1p20d confirma: “Deus (pela prop. prec.) e todos os seus atributos são eternos, isto é (pela def. 8), cada um de seus atributos exprime a existência. Portanto, os mesmos atributos de Deus que (pela def. 4) explicam a sua essência etema, explicam, ao mesmo tempo, sua existência etema, isto é, aquilo que constitui a essência de Deus constitui, ao mesmo tempo, sua existência. Logo, sua existência e sua essência são uma única e mesma coisa. C. Q. D.” 73 DELEUZE, 2017, p.12. 74 Ibid, 2017, p. 14.
46
atribuindo alguma coisa a uma substância única ao invés de serem atribuídos a substâncias
variáveis. O que eles atribuem é uma essência infinita, uma qualidade ilimitada75. Além
disto, os atributos podem ser reconhecidos de duas maneiras, a priori ou a posteriori. A
priori, quando buscamos quais qualidades percebemos como sendo ilimitadas; a
posteriori, quando partimos do que é limitado afim de achar qualidades que possam ser
levadas ao infinito.
Deleuze se detém de forma mais específica sobre o método a posteriori de
conhecimento dos atributos afim de formular uma tese das noções comuns. Esta tese visa
combater a ideia de um antropomorfismo que confunde o finito com o infinito.
Geralmente, de maneira analógica, usamos de certas características dadas às criaturas para
atribuí-las a Deus. É como se uma coisa pudesse dizer o que Deus é, diria que ele é da
forma que lhe é essencial, por exemplo, se uma forma geométrica, tal qual um quadrado
pudesse falar, diria que Deus é quadrangular. O método analógico, portanto, confunde as
essências das coisas singulares com a essência de Deus. Spinoza faz exatamente o
contrário, afirma uma identidade entre as coisas e Deus, através das noções comuns, mas
não confunde, sobremaneira, as suas essências. A afirmação da identidade numérica feita
por Della Rocca usa exatamente deste método analógico criticado por Deleuze. Através
da aplicação da analogia na passagem da E2p7, Della Rocca afirma que, devido a
substância extensa e a substância pensante serem uma e mesma coisa, então, por analogia
direta, mente e corpo também o deverão ser, uma vez que a sequência do texto parece
demonstrar isto. Devemos ter em conta que o uso da analogia sempre envolve a já
apontada confusão entre a essência de Deus e a essência dos modos. E mesmo que se
objete que Della Rocca não faça tal confusão, mas que apenas mantenha uma analogia
entre uma relação presente tanto em Deus quanto nos modos finitos, não podemos afirmar
que esta relação seja a da identidade. Identificar mente e corpo numericamente sem levar
em consideração aspectos importantes de propriedades que os distingue, tal qual as
propriedades intencionais é um passo argumentativo que não pode lograr êxito. A
analogia, portanto, não pode ser verdadeira. Partindo da tese deleuziana das noções
comuns, constatamos que o que há não é uma identidade de essência, mas sim que há uma
forma comum que deriva dos atributos para os modos e desta forma os identifica, mas
75 Deleuze dirá que essas qualidades são qualidades substanciais porque elas qualificam uma mesma substância que tem todos os atributos. Cf. DELEUZE, 2017, p. 29.
47
não os confunde essencialmente.76 O método spinozano não segue a analogia, mas sim a
univocidade. Os atributos são formas unívocas que se mantêm constantes em sua essência
mesmo ao mudarem de “sujeito”. Enquanto formas de ser infinitas, são expressões
unívocas que constituem a essência de Deus como formas comuns a Deus; quanto aos
modos, esses mesmos atributos implicam sua própria essência, envolvendo nos limites do
ser finito suas qualidades.
Ao se deter na noção de representação não mais apenas em seu aspecto ontológico,
mas em seu aspecto epistemológico (que é, no entanto, intimamente ligado ao primeiro
aspecto), Deleuze entende que um indivíduo77 é exprimido por um certo modo e sua ideia
correspondente. Para Deleuze, há claro favorecimento ao atributo pensamento, mas, como
sabemos, pelo paralelismo não pode haver nenhum privilégio de um atributo sobre o
outro, pois todos têm como causa Deus, a substância única. Esta é uma diferença
importante da posição spinozana com relação às posições de tradição aristotélica e mesmo
cartesiana, onde há possibilidade de privilégios do pensamento sobre a extensão, entre
outras razões, porque a extensão seria divisível e finita – isto é, mais “imperfeita” do que
o pensamento. Em Spinoza, vemos, na E2p2, que ambos os atributos exprimem
igualmente a perfeição absoluta de Deus e que a extensão, considerada pelo intelecto, sob
o ponto de vista da eternidade, é também indivisível e infinita.
Em Spinoza, no entanto, uma causa só pode ter lugar no mesmo atributo pelo qual
é concebido, sendo impossível haver qualquer causalidade entre ideias e coisas, como
atestam as passagens da E2p5 e E2p6; vejamos:
“O ser formal das ideias reconhece Deus como sua causa, enquanto Deus é considerado apenas como coisa pensante, e não enquanto é explicado por outro atributo. Isto é, as ideias, tanto dos atributos de Deus quanto das coisas singulares, reconhecem como sua causa eficiente não seus ideados, ou seja, as coisas percebidas, mas o próprio Deus, enquanto coisa pensante.”
E:
“Os modos de qualquer atributo têm Deus por causa, enquanto ele é considerado exclusivamente sob o atributo do qual eles são modos e não enquanto é considerado sob algum outro atributo.”
76 Deleuze dirá das formas comuns: “Os atributos são portanto formas comuns a Deus, do qual constituem a essência, e aos modos ou criaturas que os implicam essencialmente.” Cf. DELEUZE, 2017, p. 30. 77 De acordo com E2p21, indivíduo aqui é entendido como a unidade de uma ideia e de seu objeto.
48
Ao pensarmos na relação da ideia com seu objeto correspondente, portanto, da mente com
o corpo, em Spinoza, temos que Deus é a causa primeira tanto das ideias (ou seja, a ideia
de Deus é a causa de todas as ideias) quanto Ele mesmo é causa também de todas as
coisas.
Em Deus, há duas potências iguais, a potência de pensar, ligada ao atributo
pensamento, e a potência de existir ou agir, ligada ao atributo extensão, mas também
ligada ao atributo pensamento, pois tudo o que existe deve necessariamente ser pensado
por Deus. Aqui há uma igualdade de princípios em Deus. Não tem nada a ver com
igualdade numérica. Os atributos são iguais quando compreendidos em relação à potência
de existir, e nisso não há contradições no sistema spinozano, pois os privilégios que cada
atributo tem ficam contidos dentro de cada domínio respectivamente, ou seja, o atributo
pensamento tem privilégios sobre sua potência de pensar78 e o atributo extensão tem
privilégios sobre a potência de agir. Fazer uma distinção correta entre as potências e os
atributos é fundamental para a filosofia spinozana, segundo Deleuze.79
Como dissemos, Deus, um ser absolutamente infinito, possui infinitas potências
iguais, que o possibilita ser em si e por si, fundindo-se em uma unidade radical80 ou no
que é o mesmo, no monismo81 ontológico spinozano. Por outro lado, apesar de suas
infinitas potências, seus atributos são infinitos82. Assim, é condição sine qua non que
essas duas potências que nos interessam aqui, o pensamento e a extensão, sejam
elementos da natureza divina, ao mesmo tempo em que a existência de uma infinidade de
atributos constitua também a natureza de Deus.
Deus é constituído de uma infinidade de atributos realmente distintos, ou seja, a
distinção existente entre os atributos não é apenas uma distinção de razão, mas uma
distinção real. No entanto, eles são iguais em sua essência, do ponto de vista de sua
78 Pela E2p7c, em Deus, a potência de pensar é idêntica à potência de agir, o que significa que o atributo pensamento é “maior” do que os outros atributos (na medida em que, para além de sua realidade formal, ele tem também o modo de ser objetivo de todos os atributos, inclusive dele mesmo. Mas esse “tamanho” maior não significa que ele tem uma potência maior. De fato, isso é explicado não por uma maior potência do pensamento, mas antes por sua natureza, que é a de representar (a si mesmo e a todos os atributos e modos de Deus). 79 DELEUZE, 2017, p. 78 80 Ibid, 2017. 81 E1p14d, c1. Cf. também E1p7 e Breve Tratado, cap. 2. A tese do monismo é aquela que diz que só pode existir uma única substância. 82 E1p16d e E2p3d mostram que as duas potências de Deus, tanto a potência de existir quanto a potência de pensar são absolutamente infinitas.
49
potência, cada um exprimindo uma essência absoluta da substância, identificando-se nela,
sem haver superioridade ou inferioridade nenhuma entre esses atributos. Deleuze irá
demonstrar que a igualdade entre os atributos só é possível devido à compreensão de que
eles somente são iguais quando considerados em relação à potência de agir, e isto porque,
em cada atributo, essa potência existe como a essência formal de Deus.
Spinoza substitui o argumento das quantidades de realidades exposto por
Descartes83, para provar a existência de Deus a posteriori, pelo argumento das potências
divinas, que dá a forma de um argumento a priori. A prova cartesiana da existência de
Deus, considerada sob quantidades de perfeição ou realidade expressas entre uma ideia e
seu objeto, diz o seguinte: se nós (seres finitos) existimos e temos a ideia (infinita) de
Deus, logo, Deus, que é um ser mais perfeito que nós, também deve existir, pois Ele é a
única causa assinalável para a existência da ideia de Deus. Em suma, uma causa deve ter
tanto ou mais realidade que seu efeito, e um ser finito não pode causar um ser infinito,
ainda que esse último seja apenas um ser objetivo. Spinoza não usa este argumento
cartesiano e adota o argumento das potências. Para o filósofo holandês, passar à existência
de Deus a partir da inferência de sua ideia poderia nos levar ao erro de pensar o infinito a
partir do finito, na medida em que, embora sua realidade objetiva seja infinita, ela é
concebida como sendo uma modificação de uma mente finita. Para uma prova mais
consistente, será preciso passar pelo argumento das potências. É na potência de pensar
que se encontra a “razão da sua realidade objetiva84 contida na ideia de Deus e na potência
de existir, que por sua vez, é a razão da sua realidade formal”85. Portanto, quem tem
potência para se conservar não precisa de causa para existir; Deus é causa de si; logo, tem
potência para se conservar; logo, existe e existe necessariamente86. Outrossim, está
substituído o argumento cartesiano; como vemos em uma de suas cartas, Spinoza é
conclusivo a este respeito:
83 O argumento das quantidades de realidades, que diz que uma causa deve ter tanto ou mais realidade que seu efeito, para provar a existência de Deus a posteriori, é muito criticado por Spinoza, que, por sua vez, irá substituir esta tese pelo argumento das potências. Sobre o argumento das quantidades de realidades, Cf. DESCARTES, 1973, p. 111, 112. 84 Realidade objetiva aqui entendida como o ser da coisa que está na ideia, uma representação. 85 DELEUZE, 2017, p.58 86 Não é nosso objetivo nos determos em detalhes sobre a teoria da existência necessária de Deus; basta, para nosso estudo, neste ponto, sabermos que, se um ser finito existe necessariamente (devido a uma causa exterior), Deus, que é um ser absolutamente infinito, também deve existir necessariamente (devido à sua própria essência), pois, se assim não fosse, seria menos potente que um ser finito, o que é absurdo. Sobre este ponto, cf. E1p11.
50
“O poder do pensamento de pensar sobre coisas, ou de concebê-las, não é maior que o poder na natureza de existir e produzir efeitos. Este é um claro e verdadeiro axioma, do qual a existência de Deus se segue muito claramente e validamente”.”87
A potência de pensar e a potência de existir são idênticas à essência de Deus, e
por isso, se segue destes conceitos que Deus existe necessariamente. Ora, dizer que a
essência de Deus é potência implica dizer que Deus produz uma infinidade de coisas, e
que, portanto, ele produz da mesma maneira que existe88. Assim, Deus tem uma potência
infinita de pensar todas as coisas, tanto existentes quanto não existentes, e isto, de maneira
necessária; da mesma maneira, ele tem uma potência de existir absoluta e também
necessária, a qual implica um poder de ser afetado de uma infinidade de maneiras, como
causa ativa dessas afecções. Deleuze destaca que o conceito de igualdade das potências
será fundamental na parte 2 da Ética89, onde Spinoza estabelece a tese do paralelismo.
A potência de Deus é identificada por Spinoza como a sua própria essência90. Esta
identificação entre potência e essência divina trará uma correlação direta aos modos
finitos. Em Deus, temos duas potências, uma absolutamente infinita de existir e agir que
é igual a sua essência formal e outra absolutamente infinita de conhecer e pensar que é
igual a sua essência objetiva. Ora, o ser finito, modo de um atributo divino, modificação
da substância, considerado como sendo parte de um todo, também possui uma potência
de existir igual a sua essência formal, uma vez que essa essência está presente em todos
os atributos. O mesmo ocorre com a potência de conhecer, que será igual a sua essência
objetiva. O ponto aqui nesta correlação que interessa ao nosso estudo é que o ser finito é
totalmente condicionado, enquanto que a substância, ou Deus, do qual o ser finito é
“apenas” uma modificação, é totalmente incondicionado. Apesar de, em ambos, as
potências de pensar e de existir serem iguais, no ser finito, a sua existência é totalmente
condicionada a algo exterior; em contrapartida, em Deus, a sua existência é totalmente
incondicionada, ou seja, ele depende apenas de si para existir91.
A essência de Deus, por fim, será, objetivamente, potência de pensar e,
formalmente, potência de agir. Isto não significa dizer que as potências divinas serão
iguais aos seus atributos. Ao contrário, é a existência de uma infinidade de atributos que
87 Carta 40, para Jelles, março de 1667 (CURLEY, 2016, p. 684) 88 DELEUZE, 2017, p. 63. 89 Ibid, 2017, p.56. 90 E1p34. 91 E4p4d. Aqui, Spinoza, diz que a potência do homem “é uma parte da potência infinita de Deus”, deixando claro que se trata de potências diferentes, a dos seres finitos singulares e a de Deus.
51
faz com que Deus tenha uma potência absoluta de existir igual à sua essência, pois o
pensamento e a extensão (que são os atributos que conhecemos, pois deles somos
formados) não são suficientes para preencher uma potência absoluta de existir, ou seja,
somente com a existência de infinitos atributos é que podemos dizer que Deus tem uma
potência absoluta de existir. Diremos, então, que Deus tem uma essência absoluta formal,
constituída de infinitos atributos realmente distintos que o exprimem formalmente, e que
por sua vez, estão contidos em sua infinidade de formas em Deus. Assim, a essência
absoluta formal de Deus é igual a sua potência absoluta de existir. É a partir disto que,
afirmará Deleuze, “devemos compreender o princípio de igualdade dos atributos: todos
os atributos são iguais em relação a essa potência de existir e agir que eles
condicionam”92.
Deus possui, por outro lado, uma potência infinita de pensar, através da qual ele
se exprime objetivamente. Sua essência absoluta objetiva é igual, da mesma maneira, a
essa potência de pensar ou conhecer. Por isso, a ideia de Deus representa todos os
atributos formais, pois esta ideia é representação objetiva necessária de sua natureza.
Temos, então, que Deus possui uma potência absoluta de pensar, que é igual a sua
potência absoluta de agir, pois tudo o que produz é pensado por Ele. Assim, podemos
falar da natureza de Deus ou de sua essência absoluta que, por um lado, é objetivamente
potência infinita de pensar e, por outro lado é, formalmente potência infinita de existir,
como diz Spinoza, em seu Tratado da Correção do Intelecto93:
“[...]investiguemos se existe algum ser (e ao mesmo tempo qual é) que seja a causa de todas as coisas, a fim de que sua essência objetiva seja também a causa de todas as nossas ideias.”
Fica estabelecida, desta maneira, a igualdade das potências de Deus e sua distinção
com os seus atributos. Não devemos confundir o atributo extensão e o atributo
pensamento com a potência de existir e a potência de pensar, respectivamente. Deleuze,
entretanto, afirma a existência de uma relação peculiar entre o atributo pensamento e a
potência de pensar. Enquanto a potência de existir não consegue ser preenchida
suficientemente pelos atributos infinitos de pensamento e extensão, pois coisas podem
existir e agir sem ser extensas nem pensantes, o atributo pensamento é o único pelo qual
se pode conhecer qualquer coisa, desde que não seja contraditória. Outrossim,
diferentemente da incapacidade que qualquer atributo tem de preencher a potência de
92 DELEUZE, 2017, p. 80. 93 TCI, 99.
52
existir, a potência de pensar é completamente preenchida, na medida em que representa
a essência objetiva de todos os atributos. Daí que é a igualdade das potências que confere
ao atributo pensamento privilégios; privilégios estes que não se encontram mais em um
domínio da igualdade dos atributos94.
Três consequências são fundamentais na relação entre a potência de pensar e o
atributo pensamento95. Em primeiro lugar, que a essência objetiva de Deus é potência
absoluta de pensar e tudo o que decorre desta essência participa desta potência. Todas as
coisas, por sua vez, são representadas no atributo pensamento e, nesse sentido, a ideia de
Deus é um modo do pensamento, pois aquilo que é modo do atributo pensamento é
sempre a ideia considerada no seu ser formal. Todas as coisas precisam “passar pelo
crivo” do pensamento, inclusive a essência objetiva de Deus, que deverá ter um ser formal
no atributo pensamento. E é aí que todas as coisas são “formadas” e a ideia de Deus não
escapa a essa análise96.
Deleuze irá destacar dois aspectos que lhe parecem fundamentais ao tratarmos da
teoria da ideia de Deus97. Primeiramente, é inerente ao ser de Deus compreender-se
necessariamente, pois pertence-lhe uma potência absoluta de pensar que corresponde à
sua ideia. Ou seja, Deus tem uma potência absoluta de pensar que é igual a sua essência
objetiva ou à sua ideia, o que já demonstramos acima. A ideia de Deus é, assim, um
princípio absoluto de tudo que se sucede objetivamente em si. O segundo aspecto
determinante é pensar a ideia de Deus a partir de sua possiblidade. Segundo sua
possibilidade, a ideia de Deus só pode ser formada no atributo pensamento, onde encontra
o princípio formal do qual depende, pois é no atributo pensamento que afirmamos Deus
como potência absoluta de pensar. Portanto, é somente no pensamento que a ideia de
Deus consegue adquirir sua existência formal.
A segunda consequência a ser retirada sobre a relação entre a potência de pensar
e o atributo pensamento é que, a partir da sua potência de existir, ou seja, de sua natureza,
a ideia de Deus adquire sua necessidade objetiva. A possibilidade formal da ideia de Deus,
94 DELEUZE, 2017, p. 81. Deleuze destaca ainda que este posicionamento, que confere ao atributo pensamento certos privilégios, somente será interpretado de maneira errônea se ao atributo pensamento fosse atribuído poderes contrários à igualdade entre os atributos. Como este não é o caso, não há contradições. 95 Ibid, p. 81. 96 E2p5d; é evidente e vale ressaltar que o ser objetivo não seria nada se não tivesse o ser formal, através do qual ele é um modo do atributo pensamento. Cf. sobre este ponto, DELEUZE, 2017, p. 82. 97 Ibid.
53
no que lhe diz respeito, estará contida no atributo pensamento, ao qual, por fim, ela
pertence como modo. Parece possível e não contraditório, portanto, necessário, visto que
tudo o que se encontra na potência infinita de Deus é realizado, dizer que Deus possui
uma ciência de si e de sua própria natureza, pois são as suas potências, tanto de pensar
quanto a de existir, que possibilitam esta compreensão necessária de sua própria natureza.
Este ponto nos habilita a dizer que, da mesma maneira que Deus produz todas as coisas
formalmente, ele se compreende objetivamente, pois até mesmo este compreender-se tem
uma realidade formal. Deleuze destaca98:
“Neste ponto se encontra o primeiro privilégio do atributo pensamento: ele contém formalmente modos que, considerados objetivamente, representam os próprios atributos”
O que Deleuze parece querer demonstrar é que além de Deus produzir da mesma maneira
como se compreende e compreender tudo que produz, Deus também produz a forma sob
a qual se compreende e compreende tudo. Isto significa dizer que seu entendimento
infinito é totalmente necessário. Desta forma, a essência objetiva de Deus é tão necessária
quanto sua essência formal.
A terceira e última consequência nesta relação é que tudo o que existe
formalmente tem uma ideia que lhe é correspondente objetivamente. Em outras palavras,
para cada objeto, há uma ideia que a representa. Além disso, ao falarmos de maneira
destacada do atributo pensamento, percebemos que toda ideia que está contida neste
atributo é, por sua vez, objeto de uma outra ideia que a representa, isso ad infinitum.
Temos um processo que parece evidenciar, no atributo pensamento, uma capacidade da
ideia de se refletir ao infinito. Podemos afirmar que, na relação entre potência de pensar
e o atributo pensamento, toda ideia que participa do primeiro pertence formalmente ao
segundo, e vice-versa.
Diferentemente da relação objeto e ideia, que se referem a dois atributos99, a ideia
e a ideia da ideia se referirão ao mesmo e único atributo pensamento100. Deleuze destaca
a estranheza na passagem101 em que Spinoza diz que a ideia e a ideia da ideia têm a mesma
relação entre si que a ideia tem com seu objeto. Esta estranheza se justifica, pois é
98 DELEUZE, 2017, p. 83. 99 Objeto e ideia irão se referir também às duas potências que expusemos anteriormente, a potência de agir e a potência de pensar. 100 Assim como objeto e ideia, a ideia e a ideia da ideia também se referirão à potência de pensar e à potência de agir. 101 E2p21s.
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intrigante perceber como Spinoza confere o mesmo estatuto à relação entre ideia e ideia
da ideia, em comparação com a relação ideia e objeto, uma vez que ideia e objeto são
uma mesma coisa concebida sob dois atributos diferentes, pensamento e extensão, e a
ideia e a ideia da ideia pertencem somente ao atributo pensamento, como afirmamos
acima. Não podemos nos deixar escapar, no entanto, que a ideia e a ideia da ideia irão se
distinguir de duas maneiras, uma em relação à sua potência de existir e outra em relação
à sua potência de pensar, e que esse movimento é o mesmo que acontece com a ideia e o
objeto, pois os mesmos se referem, também, à potência de pensar e à potência de existir.
Ou seja, a ideia e a ideia da ideia se referem a um único atributo, da mesma maneira que
se referem também a duas potências, pois o atributo pensamento é condição da potência
de pensar, mas, também, uma forma de existência102. Deleuze faz um paralelo entre o
objeto e a ideia, e a ideia e a ideia da ideia. Objeto e ideia se referem a dois atributos e a
duas potências. A ideia e ideia da ideia se referem a um atributo, o pensamento, mas a
duas potências, quando tomamos o atributo pensamento ora sob uma forma de existência,
ora sob uma condição da potência de pensar. Outrossim, devemos perceber que há uma
distinção quando consideramos a teoria da ideia no seu ser formal, em relação à potência
de existir, e quando consideramos esta mesma teoria no seu ser objetivo, em relação a
potência de pensar103.
Esta argumentação das potências divinas e suas implicações no sistema spinozano,
proposta por Deleuze, deixa clara a impossibilidade da existência de uma identidade
numérica entre mente e corpo, uma vez que, como vimos, Spinoza expõe dois argumentos
bem distintos: o da igualdade das potências e o da igualdade dos atributos.
Há uma dificuldade latente na proposição que estabelece o paralelismo. Esta
dificuldade, da passagem do argumento epistemológico para o argumento ontológico,
feito de forma genérica na E2p7 por Spinoza, deve ser compreendida, segundo Deleuze,
somente se considerarmos o “estatuto complexo da ideia de Deus”. Aqui entra toda a
argumentação sobre a necessidade e a possibilidade da ideia de Deus exposta
anteriormente. Segundo sua necessidade objetiva, a ideia de Deus é una tanto quanto a
102 DELEUZE, 2017, p. 84. 103 Não deixamos de evidenciar que há certa dificuldade na teoria da ideia da ideia. Ou consideramos a ideia da ideia como que debaixo de uma unidade, pois, dadas em Deus, se seguem da mesma potência de pensar, ou consideramos a sua distinção, quando pensadas a partir da sua existência formal, em relação à potência de existir ou a partir da sua existência objetiva, em relação à potência de pensar. Adotamos a posição deleuziana que afirma que existe apenas uma distinção de razão entre as duas ideias. Cf. DELEUZE, 2017, p. 84.
55
substância infinitamente infinita; do ponto de vista da sua possibilidade formal, a ideia de
Deus é também um modo, ou seja, seu entendimento infinito, que está contido no atributo
pensamento pela sua potência de pensar e que contém ou exprime algo da substância
absolutamente infinita. Assim, a ideia de Deus assume uma capacidade de transferir aos
modos algo da unidade substancial divina. Em Deus, portanto, existem modos de pensar
que assumem um caráter de unidade modal. Quando percebemos que um modo pode se
exprimir de uma infinidade de maneiras na ideia de Deus, concluímos que eles só diferem
pelo atributo pelo qual se exprimem, pois as ideias que eles representam exprimem uma
única e mesma modificação.
A partir deste duplo aspecto da ideia de Deus, passamos da unidade dos atributos
para a multiplicidade dos modos sem que haja contradições que invalidem o sistema
filosófico spinozano. Sabemos que um modo de um atributo qualquer, juntamente com
sua ideia, ou uma ideia, juntamente com o objeto que ela representa, formam um único
indivíduo. Ora, em Deus, há uma multiplicidade de ideias que, juntamente com seus
objetos, produz uma infinidade de indivíduos. Porém, esta infinidade de indivíduos se
corresponde, pois exprime uma mesma modificação. Assim, cada indivíduo é constituído
por um modo e sua respectiva ideia, o que possibilita, por sua vez, pela possibilidade de
uma infinidade de modos, a existência de uma infinidade de indivíduos. Por Deus ter um
entendimento infinito uno, tudo que é sua representação também terá, em certa medida,
tanta unidade quanto ele mesmo. Podemos, a partir de então, compreender a passagem na
E2p7s. A ideia de Deus, ou seu entendimento, donde derivam todos os atributos que
exprimem sua essência, têm uma unidade tão forte, ou seja, ela é tão necessária quanto a
própria substância divina. Desta maneira, é certo que os atributos, que constituem a
substância, ou seja, que têm sua unidade, pois existem por si, mas são realmente distintos,
exprimam modos que, de certa maneira, gozarão de uma unidade que deriva da própria
substância. Afirmamos, deste modo, uma unidade atributo-modal quando pensada a partir
da necessidade objetivo-formal da ideia de Deus, que se expressa através de sua potência
infinita de pensar e conhecer e uma pluralidade atributo-modal quando pensada a partir
da possibilidade real-formal da natureza de Deus, que se expressa através de sua potência
infinita de existir e agir.
Doravante, os argumentos deleuzianos expostos nos parecem suficientes para
invalidar a teoria da identidade numérica proposta por Della Rocca. Como buscamos
compreender o salto proposto por Spinoza na segunda seção da parte 5 da Ética, tentando
56
entender qual o caminho necessário para que o indivíduo alcance a verdadeira liberdade,
não podemos perder de vista que o ser humano é um indivíduo dotado de uma mente e
um corpo realmente distintos mas unidos por uma relação de representação (e não de
identidade numérica) e também participante da unidade da substância, que, por sua vez,
é única em si, mas diversa em seus infinitos atributos. Assim, tentaremos elucidar como
a relação que o ser humano tem consigo precisa ser de outra ordem, diferente daquela que
apenas se preocupa com os “remédios para as afecções”. Uma ordem que perceba que as
coisas terrenas são menos importantes para a sua liberdade. Uma ordem que proporcione
o maior esforço possível de conservar o seu ser. O ponto aqui é pensarmos, olhando para
a parte 5 da Ética, que fundamental será a relação reflexivo-racional que o indivíduo tem
consigo, tomando ciência por si de sua eternidade, de sua participação na substância, de
sua integração com Deus, que será a forma derradeira de alcançar a liberdade.
Vimos que a tese do paralelismo é fundamental no sistema spinozano. Através
desta tese percebemos como Spinoza compreende a relação entre mente e corpo, onde,
apesar de serem realmente distintos e de não se relacionarem de maneira causal, a ordem
e a conexão de um é a mesma que a ordem e a conexão do outro, pois eles são uma só e
mesma coisa que se exprime de duas maneiras, ora como um modo da extensão, ora como
um modo do pensamento. Spinoza formula esta tese para contrapô-la diretamente ao
dualismo cartesiano, que afirma a existência de mais de uma substância, sendo mente e
corpo constituintes substanciais do ser humano e que se relacionam de maneira causal.
Spinoza não aceita um tipo de relação causal entre mente e corpo, pois mente e corpo,
por serem modificações de atributos distintos, portanto, também distintos, não podem se
relacionar, uma vez que, “não se pode conhecer uma por meio da outra, coisas que nada
têm de comum entre si ou que o conceito de uma não envolve o conceito da outra”104.
Spinoza também não pode aceitar a tese cartesiana da existência de mais de uma
substância. Para ele Deus é a única substância, pois é a causa de todas as coisas e o único
que a sua existência depende apenas da sua essência, o único que existe por si. Todas as
demais coisas dependem de outra coisa para existir. Fato é que o paralelismo spinozano
gerou e continua gerando debates entre os estudiosos do filósofo.
O conceito que para nós mais se coaduna com a filosofia de Spinoza é o conceito
de representação, tal qual exposto por Deleuze. Partindo da noção das potências de Deus,
Deleuze irá sustentar que os atributos são iguais enquanto compreendidos em relação à
104 E1ax5.
57
potência de pensar e à potência de existir de Deus. Em Deus, é a sua potência que
determina a sua existência, uma vez que a sua potência é igual à sua essência. Desta
maneira, Deus se compreende necessariamente, pois tem uma potência absoluta de
pensar, onde todas as coisas são representadas. E é a partir da teoria da ideia de Deus que
Deleuze irá demonstrar de maneira admirável como Spinoza dá um salto da unidade dos
atributos para a multiplicidade dos modos, que só diferem pelo atributo pelo qual se
exprimem. Assim, uma ideia, juntamente com o objeto que ela representa, forma um
único indivíduo, pois há em Deus uma multiplicidade de ideias que, juntamente com seus
objetos, produz uma infinidade de indivíduos.
Entendermos a importância da noção da relação entre mente e corpo como
representação é fundamental para tentar responder em que medida o ser humano pode ou
deve se descolar das relações que envolvem sobretudo o seu corpo em favor das relações
que envolvem sobretudo a sua mente em sua trajetória para alcançar a beatitude. Nossa
exposição mostrou que Deleuze não poderia identificar numericamente mente e corpo,
pois sua teoria das potências de Deus mostra que mente e corpo devem ser entendidos
como a mente sendo uma representação do corpo; ora, mente e corpo quando
considerados como coisas distintas, mas que têm entre si relações causais paralelas é uma
intepretação que está muito mais próxima à Spinoza.
58
3 –– A PARTE ETERNA DA MENTE
3.1 A Parte Eterna da Mente
Apresentamos, nos capítulos anteriores, uma análise, a partir de dois
comentadores, Della Rocca e Deleuze, daquilo que se convencionou chamar de “tese do
paralelismo”. Apontamos que a interpretação deleuziana da relação entre mente e corpo,
através da relação de representação, é a que nos parece mais adequada e alinhada com os
textos spinozanos. Além disso, a representação nos parece o tipo de relação mais
adequado para explicar como mente e corpo podem existir em um único ser, sem que seja
preciso identificá-los numericamente. Afinal, “o objeto da ideia que constitui a mente
humana é o corpo”, conforme a E2p13. Com efeito, é essa natureza representativa do
pensamento, capaz de representar coisas distintas de si, que explica a existência de ideias
atuais eternas105. Portanto, todas as coisas estão contidas na ideia infinita de Deus ou nos
seus atributos, o que significa que todas as coisas (essências) que estão contidas na ideia
infinita de Deus só são eternas porque o ser que as contém é eterno.
Verificamos, na afirmação acima, o ponto de partida para falarmos de uma parte
da mente que é eterna e que não tem relação com o corpo. Este é o tópico que Spinoza
anunciará como sendo o principal tema da segunda seção da parte 5 da Ética. Ao final do
escólio da proposição 20, o filósofo holandês afirma: “É, pois, agora, o momento de
passar àquilo que se refere à duração da mente, considerada sem relação com o corpo”.
Spinoza anuncia uma mudança que nos parece radical, pois, durante toda a Ética,
percebemos o quanto ele está disposto a tratar do que pode o corpo e por quais vias este
corpo pode padecer menos e o quanto pode se alegrar mais. Agora, chegando ao final de
seu projeto ético, Spinoza aponta para uma direção que parece oposta a tudo o que já fora
apresentado anteriormente. Ele aponta, portanto, que a culminância de sua Ética, ou seja,
aquilo em que consiste a liberdade humana, não estará focada nas relações entre mente e
corpo, mas sim em entender como a parte eterna da mente é capaz de levar o indivíduo a
alcançar a beatitude. Desta maneira, uma passagem fundamental em que precisamos nos
deter é a da E5p23, que diz:
“A mente humana não pode ser inteiramente destruída com o corpo: dela permanece algo, que é eterno.”
105 A ideia da essência da cadeira existe eternamente, enquanto a cadeira em ato existe na duração (tanto quanto sua ideia).
59
3.2 Diferentes interpretações
Muito se tem debatido acerca da dificuldade de harmonia do sistema filosófico
spinozano a partir da leitura da segunda seção da parte 5 da Ética. Grande parte da
dificuldade interpretativa é devida à relação da eternidade da mente com outras teses
capitais apresentadas na Ética. Ora, se “o objeto da ideia que constitui a mente humana é
o corpo”, conforme afirma a E2p13, e se conforme a E2p7s, a mente e o corpo “são uma
só e mesma coisa”, ou como diz a E2p21s, “são um único e mesmo indivíduo, concebido
ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão”, então, como Spinoza pode
afirmar que uma parte da mente é eterna mesmo depois da destruição do corpo, tal qual
descrito na E5p23? Isto não indica uma quebra, ou ao menos um enfraquecimento da tese
do paralelismo? Apresentaremos algumas possiblidades de respostas para o problema
formulado e em seguida faremos a exposição do que acreditamos ser um posicionamento
mais coerente com toda a filosofia spinozana.
Basicamente, as duas grandes linhas interpretativas106 irão na direção de
interpretar a eternidade, (1) ou bem fazendo apenas uma distinção de razão entre a
eternidade que é dita tanto dos modos quanto da substância, ou seja, afirmando que há
apenas um tipo de eternidade, ora aplicado aos modos, ora aplicado à substância (a esta
linha chamarei de epistemológica); (2) ou bem fazendo uma distinção real entre a
eternidade que é dita dos modos e a eternidade que é dita da substância, afirmando,
portanto, que o que existe são duas eternidades distintas, uma que se aplica aos modos,
uma eternidade em um sentido mais fraco, e outra que se aplica à substância, uma outra
eternidade em sentido mais forte (a esta linha interpretativa, chamarei de ontológica).
Kneale, Donagan e Matson107 argumentam em favor do segundo tipo de
interpretação da eternidade da mente exposto acima. Kneale interpreta que Spinoza faz
uma transição de uma visão majoritariamente platônica da eternidade (atemporal), no
começo e desenrolar da Ética, para uma visão mais aristotélica da eternidade
(sempiternidade), já na última parte da Ética. Sua leitura parte da premissa de que Deus
106 Aqui, me diferencio de Parchment, cf. PARCHMENT, 2000, p. 350. Para Parchment, a linha interpretativa epistemológica afirma que a mente é eterna porque conhece coisas eternas. Para nós, mesmo que a mente não conheça nada além do seu corpo, que não é eterno, uma sua parte será eterna. Já sua interpretação ontológica afirmará que a mente é literalmente eterna. Ora, afirmar a literalidade da eternidade da mente implica dizer que ela certamente irá conhecer coisas eternas, ou seja, que de certa forma a abordagem epistemológica está contida na ontológica. Nosso ponto, no entanto, não é afirmar se a mente é eterna epistemologicamente ou ontologicamente, mas sim em elucidar que tipo de eternidade é essa, e como ela é distinguida quando dita, ora da substância e ora dos modos. 107 KNEALE, 1973, p. 227-240; DONAGAN, 1973, p. 241-258; MATSON, 1990, p. 82-95.
60
tem um conhecimento completo de todas as coisas no universo. Esse conhecimento inclui
o caso que todo corpo humano tem uma mente que lhe corresponde, ao menos a parte que
lhe é eterna. Ora, se Deus tem o conhecimento de todas as coisas no universo, logo ele
tem o conhecimento da essência de cada corpo humano, o que, por sua vez, é um
conhecimento necessário, ou seja, eterno e, assim sendo, sempiterno. Apesar de parecer
estranho este argumento, Kneale argumenta que a eternidade é igual a sempiternidade,
pois o que implica a sempiternidade é a necessidade e não o contrário.108 Donagan
argumenta de maneira semelhante à de Kneale. Ele propõe interpretar a eternidade como
sempiternidade e afirma que Deus tem um conhecimento de cada essência de cada corpo,
que por sua vez constitui a existência eterna da mente. A diferença substancial entre
Donagan e Kneale é que o primeiro rejeita a possibilidade de Spinoza aceitar uma teoria
da salvação universal. Matson, por sua vez, tal qual Kneale e Donagan, argumenta que o
corpo tem dois tipos de existência. Ele distingue o corpo que existe eternamente como
uma essência da sua existência na duração. Assim também o faz com a mente, que existirá
de duas maneiras, uma na duração e outra de forma eterna. A diferença entre Matson e os
outros dois é que ele acredita que a ideia de uma essência eterna pode crescer, conforme
durante a vida, o indivíduo adquire ideias adequadas. Para ele, a ideia de uma essência
eterna, que ele chamará de “proto-mente”109, apesar de ser eterna, por ser o repositório
das ideias adequadas adquiridas durante a vida, cresce por acréscimo destas ideais. Assim,
para ele por a mente ser composta de muitas ideias, conforme E2p15, não há contradição
em concebê-la também como uma espécie de imã que atrai outras ideias adequadas e a
faz crescer.110
Em favor da primeira linha interpretativa exposta acima, cada qual com suas
nuances particulares, está Allison111, Gleizer112. Em seu artigo em resposta a Matson113,
108 KNEALE, 1973, p. 235. 109 A proto-mente é definida por Matson: “The proto-mind, being the idea corresponding to the eternal essence of the body (the genetic code, or whatever is its eternal pattern), is (to speak in yet another way of it) the core of the mind. It is not "affected by the idea of any other body" and consequently is not passive nor subject to passion. Therefore (IIIP3) the idea that constitutes it is adequate. Th say this is to imply further that whatever it conceives, it does so "under the form of eternity," that is, rationally, and without reference to duration.” Cf. MATSON, 1990, p. 91. 110 Ibid, 1990, p. 92. 111 ALLISON, 1990, p. 96-101. 112 GLEIZER, 2009, p. 37-60. Apesar de incluí-lo nesta linha interpretativa, ressalto que ele não afirma claramente sua posição em seu artigo. Contudo, a sua argumentação vai na direção de afirmar a existência de apenas um tipo de eternidade, que ora é aplicado aos modos e ora aplicado à substância, como fica evidente no resumo do artigo em questão. Desta maneira, considerei coerente a inserção de suas formulações na linha interpretativa a qual chamei de epistemológica. 113 MATSON, 1990, p. 82-95.
61
Allison argumenta, a partir das teses de Bennett, que Matson faz confusão entre a
distinção lógica e epistemológica para o sentido do termo ideia usado por Spinoza na
Ética. A mente, enquanto ideia de uma essência de coisa singular atualizada e
determinada na duração, pode apreender o corpo como essência eterna pela razão e
intuição e é esta intuição que constitui a eternidade da mente. A eternidade da mente é,
desta maneira, um estado de conhecimento adequado do corpo como um modo eterno
possível. Assim, a mente não pode existir além da existência do corpo, tendo uma duração
limitada, tal qual o corpo. Por outro lado, ao conhecer adequadamente o corpo, a mente o
conhece de um modo eterno, sob o ponto de vista da eternidade.
Gleizer aponta três pontos pelos quais a interpretação ontológica, a qual irá
nomear de interpretação restritiva da E1D8, parece apontar para uma correta
interpretação. Primeiro, a plausibilidade inicial da leitura restritiva, que é o tipo de leitura
em que a eternidade será aplicada exclusivamente a Deus; segundo, o uso que Spinoza
faz de certas expressões para qualificar a eternidade dos modos; terceiro, o uso de
expressões temporais ao referir-se à eternidade dos modos. Para ele, o uso destes
argumentos ocorre devido a uma desatenção a teses fundamentais do sistema filosófico
spinozano, tais como a exigência da univocidade decorrente do princípio da
inteligibilidade integral do real (que rejeita que há coisas incompreensíveis na realidade)
e a tese da imanência, que determina um vínculo absoluto entre Deus e seus modos. O
caráter unívoco da eternidade aplicada tanto a Deus quanto aos modos decorre
diretamente do entendimento do conceito de imanência, que sustenta a transmissão de
forma necessária de uma propriedade não essencial, tal qual a eternidade, entre a
substância e seus modos, sem que se perca a distinção de essência entre estes. Para uma
correta interpretação da eternidade, é preciso levar em consideração, entre outros pontos,
a relação do que é necessário em virtude de sua essência e o que é necessário em virtude
de sua causa, uma vez que o conceito de eternidade envolve o de existência necessária.
Sua demonstração dará conta de que a eternidade, a partir da compatibilidade entre
univocidade, imanência e distinção de essência, deve ser entendida como atemporalidade
tanto na substância como nos seus modos. Desta maneira, existe apenas um tipo de
eternidade que está presente tanto na substância quanto nos modos. Como os modos têm
como causa Deus e este é eterno, portanto, atemporal, nos modos esta eternidade também
será atemporal. Outrossim, não deve ser ignorado que esta característica da transmissão
da eternidade entre a substância e seus modos não os iguala essencialmente.
62
Parchment114 apresenta quatro pontos que ele considera fundamentais para
entender a eternidade da mente humana. São eles: 1) a natureza da mente; 2) o
paralelismo; 3) a causalidade divina; 4) a essência. Sua argumentação irá contra a
interpretação ontológica, pois acredita que esta entra em conflito direto com um ou mais
destes quatro pontos. Parchment argumentará que a mente é equiparada com as ideias no
intelecto infinito de Deus e que, por esta razão, a ideia de um corpo humano constitui a
essência da mente humana. Portanto, a mente unida a um corpo, ou seja, um ser singular,
não pode ser concebida sem a ideia no intelecto infinito deste corpo. Ou seja, a mente de
uma coisa singular, que é uma parte do intelecto de Deus pela E2p11c, e a ideia de Deus
desta coisa são uma e mesma coisa, o que quer dizer que a mente de um dado corpo e a
ideia de Deus deste corpo não pode ser nem ser concebido um sem o outro. Este é o
primeiro ponto115. Sua argumentação culminará na afirmação de que mesmo com as
aparentes contradições entre os pontos propostos, a teoria epistemológica é a que melhor
responde à distinção entre a existência limitada de uma coisa singular que é
adequadamente concebida pelo intelecto e a mesma existência inadequadamente retratada
pela imaginação. Desta maneira, os modos infinitos são eternos, pois têm uma duração
eterna, e as coisas singulares têm uma eternidade consonante com sua duração limitada
e, sendo assim, a diferença entre a eternidade entre os modos finitos e infinitos assume
um caráter distintivo apenas pela razão.
Laerke116, em suas considerações sobre a eternidade da mente em Spinoza,
curiosamente não tomará partido em nenhuma das linhas de interpretação ditas clássicas.
Outrossim, ele irá dizer: “eu irei argumentar que nós não precisamos escolher entre
eternidade [atemporalidade] e sempiternidade da mente, mas as duas teses podem, e vão
coexistir dentro do relato Spinozano na E5.” (tradução livre). Ele irá partir de uma
possível solução para o problema da noção de eternidade como sempiternidade. Ele
assumirá que a distinção entre eternidade e duração não envolve dois níveis ou tipos
diferentes de existência, mas sim dois aspectos realmente distintos e compatíveis de uma
mesma existência. Também manterá que não existe dicotomia entre a essência formal e a
114 PARCHMENT, 2000, p. 349-382. 115 Como não é nosso intuito esmiuçar as teorias propostas por Parchment, nos é suficiente saber que do ponto 2 ao 4 ele irá analisar de maneira detalhada a aplicação do paralelismo, do modos infinitos e finitos como efeitos de Deus e das essências das coisas singulares em ambas as teorias, a ontológica e a epistemológica. Não obstante, não podemos deixar de reafirmar que o que ele chama de teoria ontológica e epistemológica difere do que conceituamos sob estes mesmos nomes. Cf. PARCHMENT, 2000, p. 349-382. 116 LAERKE, 2016, p. 265-286.
63
essência atual, que elas não ocupam duas realidades ontológicas distintas ou contêm dois
níveis ontológicos distintos, um onde as essências das coisas podem ser encontradas em
alguma forma possível ideal, e outro nível, onde as coisas existem atualmente. Ele irá
fazer uma diferenciação entre o que chama de eternidade absoluta e eternidade escalar,
sendo, respectivamente, aquela que é comum a todas as mentes e a eternidade que
aumenta conforme aumentam os conhecimentos adequados que a mente adquire. Esta
última tese, ele chamará de aspecto escalar da eternidade. Esta teoria afirma que a
eternidade deve ser entendida a partir da realidade objetiva da mente humana na medida
que ela é uma parte do intelecto divino, ou seja, que a mente humana é uma verdade eterna
acerca do corpo. Por ser uma verdade eterna acerca do corpo, quanto mais o corpo tem
experiências acerca de si e dos outros, tanto mais a mente adquire conhecimento e quanto
mais adquire conhecimento, maior se torna sua parte eterna. Desta maneira, mostrará que
a compreensão da diferença entre eternidade e duração e a diferença entre eternidade
absoluta e eternidade escalar deve ser posta em termos de aspectos assumidos pelo
conceito de eternidade, ao invés de níveis ou tipos.
Martha Kneale é citada por diversos comentadores117, sendo, assim, a mais
proeminente defensora da noção de eternidade como sempiternidade. Em seu famoso
artigo, intitulado “Eternidade e Sempiternidade”, ela demonstra a sua teoria da eternidade
como sempiternidade a partir de um paralelo feito entre a noção de eternidade dos antigos
em comparação com o conceito de eternidade dos modernos118. Gostaria de destacar
alguns pontos de sua tese. Em dado momento, ela afirma que a questão que lhe é
importante é a questão de afirmar que, se um objeto é eterno, ele não deve depender de
nenhuma linguagem temporal para afirmar a sua existência. Apesar de ter certa
plausibilidade, esta questão entra em conflito direto com a E1D8, com a E1p33s, com a
E5p23s e com outras teses fundamentais do sistema filosófico spinozano. Outro ponto
bastante controverso é a da doutrina da salvação universal. Ela afirma que Spinoza está
comprometido com a ideia de que todos devem alcançar a beatitude no final, e em todo o
tempo de duração do universo. Mas como pode ser possível, se para Spinoza, não há um
fim dos tempos? Afirma também que Spinoza teria mostrado que seu naturalismo radical
era o único que podia oferecer a certeza da salvação no lugar da esperança colocada em
117 Apenas para citar alguns, citamos: Donagan (1973), Learke (2016), Nadler (2006), Bennett (1984), dentre muitos outros. 118 KNEALE, 1973, p. 227-235.
64
pauta pela religião. Donagan119 critica veladamente a hipótese apresentada por Kneale.
Para ele, apesar de Spinoza rejeitar as doutrinas de punição pós vida, isto não quer dizer
que haverá salvação universal e um dos motivos é que a beatitude não é uma recompensa
da virtude, mas a própria virtude. Desta forma, acreditamos que a noção de eternidade
que mais se aproxima dos textos spinozanos sem gerar conflitos com o restante de seu
sistema filosófico é aquele que interpreta a eternidade como atemporalidade. Primeiro
porque essa noção se coaduna perfeitamente com a única definição de eternidade
encontrada na Ética, onde Spinoza afirma tacitamente que a eternidade “não pode ser
explicada pela duração ou pelo tempo”120 e segundo porque esta definição mantém a
compatibilidade entre as teses do necessitarismo, da distinção de essências entre a
substância e os modos e da imanência. Portanto, consideramos suficientes essas
ponderações acerca da noção de eternidade, passamos agora à próxima seção onde
trataremos das essências da mente e do corpo.
119 DONAGAN, 1973, p. 257. Ele chama a tese proposta por Kneale de “tese hedionda”. 120 E1D8exp.
65
3.3 Eternidade: Atemporalidade x Sempiternidade
Percebemos, a partir do exposto anteriormente, que a parte 5 da Ética talvez seja
uma das mais controversas entre os comentadores de Spinoza. Comumente, esta parte é
subdividida em outras duas, as quais chamaremos de seção, afim de evitar confusões. A
primeira seção se inicia no prefácio e vai até a proposição 20 e trata dos “meios pelos
quais a razão pode destruir ou enfraquecer nossas emoções passivas. Spinoza descreve
isso como o caminho que conduz à liberdade.”121 A segunda seção começa na proposição
21 e vai até a 42 e trata da “liberdade humana em si, e como mais forte é o sábio do que
o ignorante.”122 Bennett é um dos maiores críticos das teses apresentadas por Spinoza na
parte 5 da Ética. Ele sustenta que “os mais importantes argumentos são inválidos e que
muito do que ele afirma é falso”123, principalmente as teses da primeira seção, que
também ficou conhecida como a psicoterapia spinozana. Sua crítica mais contumaz reside
sobre a tese apresentada na E5p4 que afirma que podemos formar ideias adequadas a
partir de afecções do corpo ou de emoções passivas. Para Bennett isto é um absurdo, pois
“significa fazer uma mudança no que foi a causa do evento, e uma vez que o evento tenha
ocorrido é tarde demais para isso.”124 Koistinen125, acredita, por sua vez, que há boas
razões para sustentar que afecções passivas surgidas a partir de ideias inadequadas
possam ser sustentadas por ideias adequadas, possibilitando que afecções passivas se
tornem afecções ativas. Wolfson126, concordando com Spinoza, afirma que devemos
estudar nossas emoções e tentar ter um entendimento claro de sua causa. Para Moreau127,
a compreensão mesma da ideia de eternidade exposta na segunda seção reencontra três
dificuldades: 1) O aparente paradoxo de sua definição; 2) os diferentes conteúdos
possíveis que parecem sugerir os textos; 3) a ruptura do paralelismo que a parte 5 parece
implicar.
A teoria da eternidade constitui parte fundamental do projeto ético spinozano.
Nela está fundamentada a concepção de beatitude que será exposta na última parte da
Ética. Nossa intenção, portanto, será explicitar o conceito de eternidade proposto por
Spinoza, como este conceito de eternidade se aplica a uma parte da mente e a sua
121 JARRETT, 2007, p. 155. 122 Ibid. 123 Ibid, p. 171. 124 BENNETT, 1984, p. 335-337. 125 KOISTINEN, 1998, p. 5. 126 WOLFSON, 1969, p. 266-267. 127 MOREAU, 1994, p. 503.
66
importância no caminho para a beatitude. Por isso, partimos da noção de apontada por
Deleuze e exposta anteriormente para a relação existente entre mente e corpo. Este
conceito nos possibilita manter excluída uma relação causal entre os modos; ela também
não atribui a mente qualquer espacialidade, já que a mente não é extensa e não nega a
necessidade da existência desta relação entre mente e corpo, que não será uma relação de
identidade numérica, mais sim de representação, pois, “o que, primeiramente, constitui o
ser atual da mente humana não é senão a ideia de uma coisa singular existente em ato” e
“o objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo”. Esta não é uma tarefa simples,
logo não temos a pretensão de esgotar o assunto nem responder a todas as dificuldades
decorrentes do tema. Algumas questões importantes para nós são: 1) além do que é, a
quem se aplica a eternidade? 2) se há uma parte da mente que é eterna, como
compatibilizar esta tese com a tese paralelismo? 3) a parte eterna da mente será maior
quanto maior for a aptidão do corpo? 4) a consciência da nossa eternidade e seus efeitos
nos reconcilia ou afasta da vida prática cotidiana?
Spinoza define a eternidade explicitamente na primeira parte da Ética:
“Por eternidade compreendo a própria existência, enquanto concebida como se seguindo, necessariamente, apenas da definição de uma coisa eterna. Explicação. Com efeito, uma tal existência é, assim como a essência da coisa, concebida como uma verdade eterna e não pode, por isso, ser explicada pela duração ou pelo tempo, mesmo que se conceba um tempo sem princípio nem fim.” (EID8)
O primeiro ponto que podemos destacar é que fica claro que o filósofo está
compreendendo a eternidade como ausência de duração, ou seja, a eternidade é
atemporal128. Por outro lado, ele parece se opor a uma compreensão de eternidade como
sempiternidade. Ora, se, como vemos na definição destacada acima, a eternidade não
pode “ser explicada pela duração ou pelo tempo” ou ainda como é dito na E1p33s2,
“...como na eternidade não há quando, nem antes, nem depois...” e mais, na E5p23s, “...a
eternidade não pode ser definida pelo tempo, nem ter, com este, qualquer relação.”, então,
parece claro e evidente que a eternidade na Ética de Spinoza é compreendida como
atemporalidade. A dificuldade em interpretar precisamente o sentido de eternidade como
atemporalidade se torna evidente devido a seu choque direto com outras passagens da
128 Duração e tempo são duas coisas diferentes para Spinoza. Cf. E2D5 e Pensamentos Metafísicos, Parte I, cap. 1.
67
Ética onde Spinoza parece aceitar a compreensão de eternidade como sempiternidade.
Percebemos isto especificamente pelo uso de certas expressões temporais usadas para
referir-se à eternidade dos modos129. Quando, falando de como é eterno tudo aquilo que
resulta da natureza absoluta de Deus, Spinoza, na E1p21, usa a expressão “deve ter
existido sempre” e posteriormente na demonstração da proposição ele afirma que “nada
que se siga necessariamente da natureza absoluta de Deus não pode ter uma “duração
determinada”. Duração determinada ou limitada não exclui duração ilimitada, dando
margem a uma interpretação da eternidade dos modos infinitos como sempiternidade.
Olhando para a E5p23, lemos que “a mente humana não pode ser inteiramente destruída
juntamente com o corpo: dela permanece algo, que é eterno.” O uso do verbo permanecer
aqui é interpretado facilmente como a permanência temporal de uma parte da mente que
resiste à destruição do corpo. Este tipo de formulação foi usado anteriormente na E5p20s:
“é, pois, agora, o momento de passar àquilo que se refere à duração da mente, considerada
sem relação com o corpo.” Trata-se nitidamente de uma expressão temporal se referindo
a um tema atemporal, tornando plausível uma interpretação de eternidade como
sempiternidade130.
No entanto, apesar de parecer plausível uma intepretação da eternidade como
sempiternidade a partir das interpretações propostas acima, a mesma nos parece
equivocada, pois vai de encontro direto com a própria definição de eternidade proposta
por Spinoza na E1D8, além de fornecer duas possibilidades de interpretação do que é
eternidade, uma forte, que é aplicada a Deus, e outra fraca, aplicada aos modos. Este tipo
de interpretação não é o que nos parece estar demonstrado na Ética, nem em relação a
Deus e nem em relação à parte eterna da mente, ou seja, à mente humana. Podemos
destacar com especial atenção a passagem da E5p34s, onde Spinoza deixa claro que o que
existe é uma confusão do conceito de eternidade com o conceito de duração. Ele diz:
“Se prestarmos atenção à opinião comum dos homens, veremos que estão, na realidade, conscientes da eternidade de sua mente,
129 A própria possibilidade em atribuir eternidade aos modos quando na EID8, Spinoza, define a eternidade “como se seguindo, necessariamente, apenas da definição de uma coisa eterna.”, faz com que uma leitura da eternidade como sempiternidade seja possível. Ora, se eterno é apenas aquilo que se segue, necessariamente, da definição de uma coisa eterna, a definição deve aplicar-se propriamente a Deus, pois é o único que tem sua existência decorrendo necessariamente de sua essência. A eternidade dos modos, nesta leitura, deve ser de outro tipo, a saber, o da sempiternidade. Isto nos forçaria a ter duas leituras para a definição de eternidade. Uma, forte, aplicada a Deus e entendida como atemporalidade; e outra fraca, aplicada aos modos e entendida como sempiternidade. 130 Comentadores diversos adotam este tipo de interpretação. Cf. Martha Kneale (1973), Wallace Matson (1990), Martial Gueroult (1969), Alan Donagan (1973).
68
mas que eles confundem com a duração e a imputam à imaginação ou à memória, as quais eles acreditam que subsistem após a morte.”
Desta maneira, podemos afirmar que a eternidade é atemporalidade e é aplicada a
Deus e a seus modos. Não como dois tipos de eternidades diferentes, mas como um
mesmo tipo de eternidade aplicada a dois entes distintos. Para entendermos melhor este
ponto, precisamos entender se o conceito de eternidade remete ao que existe eternamente
em virtude de sua própria essência ou ao que existe eternamente em virtude de sua causa
eterna.
69
3.4 A Questão das Essências: Ser x Existir
Como vimos, a discussão dos comentadores sobre o conceito de eternidade da
mente paira sobre a noção de eternidade como atemporalidade, isto é, sem relação com a
duração, em contraste com a noção de eternidade como sempiternidade. A definição de
eternidade como atemporalidade estabelecida por Spinoza possibilita entendermos que
uma existência eterna pode ser de duas maneiras, a saber: 1) a partir de sua própria
essência eterna; 2) a partir da sua causa eterna. Desta maneira, temos, a partir da E1D8,
que a existência de uma coisa pode ser eterna em virtude de ser sequência necessária
apenas da definição da própria coisa. Aqui falamos de uma eternidade imediata,
exclusiva de Deus; ao passo que podemos também falar em uma existência eterna mediata
que se aplica aos modos e que é consequência necessária apenas da definição de uma
outra coisa. Assim, respondemos de maneira satisfatória que eternidade é a própria
existência de uma coisa, ora em virtude apenas da definição de si próprio, ora em virtude
apenas da definição de sua causa própria, de tal maneira que essa eternidade é aplicada
de tal forma à substância, ou seja, Deus, e a seus modos tanto infinitos como finitos. A
substância e seus atributos são eternos por si e os modos, por sua vez, têm ao menos algo
de eterno.
Na segunda seção da parte 5, Spinoza apresenta sua teoria da eternidade de uma
parte da mente humana131. Sua centralidade está posta em três pontos cruciais, a saber132:
1. Há em Deus uma ideia da essência formal de cada corpo humano.
2. Uma ideia da essência formal do corpo humano permanece após a destruição
deste mesmo corpo, e por esta razão há uma parte da mente humana que é
eterna.
3. Quanto mais sábio e mais conhecimento tiver das causas, maior é a parte da
mente que é eterna.
Nas proposições que se seguem, da E5p21 até a E5p32, ele irá fornecer uma
complexa teoria da eternidade da mente. Um dos problemas clássicos que se apresentam
nesta parte é o já exposto problema da eternidade sendo confundida com sempiternidade,
131 Curley, falando sobre esta parte diz: “... eu ainda não sinto que entendi esta parte da Ética adequadamente...” Cf. CURLEY, 1988, p. 84. Bennett vai mais longe e indaga: “Por que Spinoza escreve isso?” e mais, “... isso é perigoso: isto é lixo que faz com que os outros escrevam lixo.” Cf. BENNETT, 1984, p. 357 e 374. 132 GARRETT, 2010, p. 284.
70
de que já tratamos acima. Outro problema fundamental é o do conceito de essência
formal133 e existência atual do corpo humano, no qual nos deteremos mais
especificamente. Um terceiro ponto derivado desta parte da Ética é o da imortalidade da
alma134.
A distinção entre os conceitos de essência formal e de existência atual do corpo
humano surge já nas primeiras proposições desta segunda seção. Eis os trechos mais
relevantes:
“A mente não pode imaginar nada, nem se recordar das coisas passadas, senão enquanto dura o corpo.” (E5p21)
“A mente não exprime a existência atual do seu corpo, nem tampouco concebe como atuais as afecções do corpo, senão enquanto dura o corpo (pelo corol. da prop. 8 da P. 2) e, consequentemente (pela prop. 26 da P. 2), não concebe nenhum corpo como existente em ato senão enquanto dura seu próprio corpo. Logo, não pode imaginar nada (veja-se a def. de imaginação no esc. da prop. 17 da P. 2), nem se recordar das coisas passadas, senão enquanto dura o corpo (veja-se a def. de memória no esc. da prop. 18 da P. 2). C. Q. D” (E5p21d)
“Em Deus, necessariamente existe, entretanto, uma ideia que exprime a essência deste ou daquele corpo humano sob a perspectiva da eternidade.” (E5p22)
“Deus é causa não apenas da existência deste ou daquele corpo humano, mas também da sua essência (pela prop. 25 da P. 1), a qual deve, por isso, ser necessariamente concebida, em virtude de uma certa necessidade eterna (pela prop. 16 da P. 1), por meio da própria essência de Deus (pelo ax. 4 da P, 1). Este conceito [da essência deste ou daquele corpo humano] deve, portanto,
133 Na E2D2, Spinoza define o que “pertence a essência”. Ele segue Descartes em sua conceituação, mas não no uso dos termos. Descartes opõe os termos ‘formal’ e ‘objetivo’. Uma realidade formal de uma coisa é a sua realidade atual, enquanto que uma realidade objetiva é uma coisa que existe na mente, ou seja a sua ideia. Spinoza, no entanto, ao falar de essência formal, está falando do que existe no atributo, independente de sua existência ou não no tempo. Isto implica dizer que há uma ideia da coisa, no intelecto de Deus, independente de sua existência atual, qual seja, sua essência formal. Spinoza disntingue, desta forma, duas maneiras de existir: 1) contidas e compreendidas nos atributos de Deus (E2p8d,c,s), portanto, de maneira atemporal; 2) no tempo, consequentemente, temporal. Não podemos nos iludir em querer dizer que Spinoza está afirmando que há um tipo de existência em potência para as coisas que estão contidas e compreendidas nos atributos de Deus. Olhando para a E5p29s, Spinoza está nos dizendo não de uma existência potencial, mas de duas maneiras de concebermos as coisas como atuais ou reais. Este ponto é importantíssimo para que, na parte 5, Spinoza possa demonstrar como uma parte da mente é eterna, pois ele constrói esta teoria sobre a afirmação de que a ideia da essência formal do corpo é eterna. 134 Nos deteremos mais especificamente sobre de que maneira é impactado na sua maneira de viver o indivíduo que sabe que é imortal ou que sabe que não é imortal. Para uma compreensão a favor da imortalidade da alma, cf. Donagan, 1973, p. 241-258. Para uma tese contra a imortalidade da alma, cf. Nadler, 2002, p. 224-244.
71
necessariamente existir em Deus (pela prop. 3 da P. 2). C. Q. D.” (E5p22d)
Estas proposições são fundamentais para entendermos que o termo “essência” se
refere à essência formal das coisas singulares e que este difere e não pressupõe ou implica
a existência atual das coisas singulares. Na forma geométrica e dedutiva das proposições
da Ética, a demonstração da proposição 21 acima exposta, bem como o da proposição 23,
da qual falaremos mais adiante, aponta para o corolário da E2p8, que é uma proposição
que diz respeito às essências formais das coisas singulares que não existem. Ora, o
corolário desta mesma proposição dá o contraste entre as coisas singulares que não
existem, “a não ser enquanto estão compreendidas nos atributos de Deus”135, e as coisas
singulares que existem, “não apenas enquanto estão compreendidas nos atributos de
Deus, mas também enquanto se diz que duram, as suas ideias envolverão também a
existência, razão pela qual se diz que elas duram.”136 Outrossim, “coisas singulares” são
coisas finitas e têm existência determinada como definido através da E2D7. Não podemos
deixar de salientar, sobremaneira, que toda coisa singular é um modo de Deus, ou seja, a
essência e existência das coisas singulares têm Deus como causa137.
Spinoza aponta diretamente para a E2p8, pois esta proposição irá examinar a
relação entre essência e existência. Como, pelo paralelismo, entendemos que cada corpo
tem um ideia que lhe corresponde e vice-versa, e se um ser singular é um composto entre
uma ideia e um corpo que é sua representação, como falar de ideias de coisas não
existentes em um âmbito que comporta, teoricamente, somente ideias que existem
enquanto o corpo que lhe é correspondente existe? De igual modo, como falar de uma
parte da mente que é eterna e permanece após a destruição do corpo? Nadler, em sua
interpretação da E5p22, irá fazer exatamente um paralelo entre a teoria exposta na E2p8
com a parte eterna da mente.138 Para ele, a parte eterna da mente é a ideia de uma coisa
material não existente, que ele toma como a essência do corpo. Seguindo Laerke139, não
percebemos como igualar a eternidade da mente com o fato de as ideias das coisas
existirem no intelecto de Deus, independentemente de sua existência ou não. A E1p31
deixará evidente que o intelecto só pode existir em função da essência e não o contrário.
135 E2p8c. 136 E2p8c. 137 Cf. E1p25c. 138 NADLER, 2006, p. 264. Aqui ele afirma que a parte eterna da mente é a ideia de uma coisa material não existente. 139 LAERKE, 2016, p. 277-280.
72
O que vem primeiro, digo, não de maneira cronológica, mas sim lógica, é a essência e
depois a ideia no intelecto divino. Assim, as essências não estão contidas no intelecto,
apesar de elas serem compreendidas pelo intelecto. Na verdade, as essências estão
contidas nos atributos divinos.
A E2p8 não é uma proposição simples e fácil de se interpretar. O próprio Spinoza
faz um aviso ao seu leitor no início do seu escólio de que o exemplo que ele dará é
inadequado, pois ele falará de algo singular. Este escólio irá comparar as coisas singulares
não existentes, cujas essências estão contidas nos atributos de Deus, a retângulos não
traçados no círculo, mas que existem potencialmente no círculo, enquanto este dura. Desta
maneira, Spinoza faz uma ligação entre a essência formal das coisas singulares à
possiblidade não realizada da existência das coisas singulares. Por outro lado, ele deixa
claro, no corolário desta mesma proposição, que a existência atual das coisas singulares
está também compreendida nos atributos Deus, “mas também enquanto se diz que duram,
as suas ideias envolverão também a existência, razão pela qual se diz que elas duram”140.
Temos um duplo aspecto a ser explorado, o da existência em ato das coisas
singulares e o da existência “em potência” das coisas singulares. A existência “em
potência”141, assim como a existência de seres singulares não existentes, é verdadeira,
pois sua essência está contida e é derivada diretamente dos atributos de Deus. Sendo
diretamente derivada dos atributos de Deus, ela é eterna. A existência em ato, por sua vez,
pode ser de dois tipos142, temporal, que possui relação com a duração e é dada pelo nexo
infinito de coisas singulares existentes, ou eterna, não possuindo relação com a duração
e, consequentemente, não tendo sua causa ou determinação em uma outra coisa singular.
Deus é o único ente ao qual sua essência é suficiente para sua existência, pois tanto sua
essência quanto sua existência são constituídas por seus próprios atributos.143
Retomemos nosso ponto inicial, a saber, a oposição entre o que é eterno por si em
comparação com o que é eterno por sua causa. O que é eterno por si possibilita uma leitura
de dois tipos de eternidade distintas, enquanto que o que é eterno por sua causa trata de
um só tipo de eternidade ditos de maneiras distintas? Sabemos que a eternidade envolve
140 E2p8c. 141 Falo aqui de existência “em potência” apenas para fazer um parelelo com aquelas coisas que não existem, mas que podem existir em algum momento. Sabemos e veremos mais adiante que Spinoza não aceita a tese da contingência ou possibilidade, pois para ele tudo o que é possivel é atual e tudo que é atual é necessário. 142 PINHEIRO, 2010, p. 227. 143 Cf. E1p20.
73
uma existência necessária. Conforme a E1p33s1, constatamos que Spinoza afirma que
existem duas razões para uma coisa ser necessária, e não que haja dois tipos de
necessidade. Uma interpretação do necessitarismo estrito de Spinoza que esteja buscando
uma compatibilidade com todo seu sistema filosófico nos autorizará a interpretar que
existe apenas um tipo de necessidade que abrange tanto a substância quanto os modos.144
Assim, embora todas as coisas existam de maneira necessária, a necessidade dos modos
não é derivada de sua própria essência, mas sim da essência de sua causa. Ao
identificarmos que a existência tanto da substância quanto dos modos é necessária,
constatamos também que mesmo que suas causas ou razões para existir sejam diferentes,
elas não possuem necessidades diferentes para tal existência; por outro lado, identificar a
necessidade para que existam não implica identificar as suas essências.
Spinoza distingue diversas propriedades necessárias que constituem uma
essência145. Algumas dessas propriedades mesmo que sejam necessárias não são
essenciais, afinal, nem toda propriedade necessária é essencial. Desta maneira, a
afirmação de que um modo existe necessariamente não implica que sua essência envolva
a existência. Ora, se nossa argumentação sobre a existência necessária estiver correta, não
vemos empecilhos para aplicá-la à eternidade. Se o que existe é só um tipo de necessidade
que está presente na substância e que ecoa nos modos; e se a existência necessária dos
modos é derivada de sua causa e não de sua própria essência; logo, a eternidade que os
modos possuem não é derivada de sua própria essência, mas da sua causa. Definimos,
portanto, o que é eterno por si, a substância, e o que é eterno por sua causa, os modos.
144 Para uma interessante e assertiva exposição do necessitarismo de Spinoza, cf. GLEIZER, 2009, p. 59-87. 145 Citamos as propriedades necessárias que se seguem excluisvamente da essência da coisa sem fazer parte desta essência; as propriedades comuns, que são partilhadas com outras coisas; e as propriedades que uma coisa possui por sua interação com outras coisas. Não iremos nos deter nos proplemas decorrentes do termo propriedade. Fazemos o uso do termo de maneira despretensiosa e apenas como forma de entendermos que aquilo pode ser afirmado de algo é uma sua propriedade.
74
3.5 As Essências e o Necessitarismo
Ora, ao inserir o tema da possibilidade, um problema emerge claramente, a saber,
o do necessitarismo estrito de Spinoza146. Em suma, a tese do necessitarismo diz que tudo
o que é possível é atual e tudo o que é atual é necessário147. A questão aqui é como
compatibilizar as teses apresentadas na E5p21, E5p21d, E5p22, Ep22d, com o
necessitarismo ao qual estas mesmas proposições apontam? Para que o necessitarismo
possa ser verdadeiro, não pode haver genuinamente essências formais não atualizadas.
Ora, pela E1p25, Deus é causa eficiente das existências e das essências das coisas, como
já vimos. Uma essência cuja existência é meramente possível não precisa ter uma causa,
pois não é uma realidade em ato. Para responder a este ponto, precisamos entender que
as essências dadas não são independentes da potência causal de Deus, mas sim, que elas
são necessárias por sua causa, ou seja, Deus, no sentido que serão instanciadas
necessariamente em algum momento do tempo. Assim, elas não são apenas possibilidades
lógicas, mas realidades necessárias que necessariamente existiram, existem ou existirão.
Se as essências são mais do que meras possibilidades lógicas, sendo, portanto, uma
realidade que tem a propriedade de necessariamente existir em algum momento, logo elas
devem ter uma causa eficiente, a saber, Deus. Desta maneira, as essências formais das
coisas singulares devem ser modos de Deus.
As essências formais tidas como algum tipo de potencialidade são claramente
contrárias às teses spinozanas, como vemos na E1p29, E1p31s, E1p33s. O filósofo afirma
que a única razão pela qual dizemos que uma coisa é contingente é a deficiência de nosso
conhecimento. A possibilidade de uma coisa existir ou não, ou seja, seu status
contingente, só é possível por uma deficiência do próprio conhecimento do ser humano.
Portanto, não há meio termo, ou seja, as coisas existem ou não existem de maneira
necessária.
Concluímos, deste modo, pela afirmação da E2p8, que as essências formais estão
contidas nos atributos de Deus e, por sua correspondência na E5p22, constatamos que a
ideia da essência do corpo humano existe necessariamente em Deus. Outrossim, se as
146 Pinheiro afirmará que o uso de uma noção de potência ou possibilidade feita por Spinoza “só tem sentido, pois, referindo as coisas temporais às coisas eternas”. PINHEIRO, 2010, p. 229. 147 Cf. E1p16; E1p29; E1p33; E1p35d. Em suas Considerações Sobre o Necessitarismo de Espinosa, Gleizer demonstra de maneira assertiva o caráter radical do necessitarismo spinozano, em contraste a um necessitarismo moderado apresentado por Curley. Cf. GLEIZER, 2003, p. 59-87. Este necessitarismo de aspecto forte é o que adotamos aqui.
75
essências formais das coisas singulares são modos de Deus, elas não parecem ser modos
finitos148, pois possuem sua própria existência contida nos atributos de Deus, e tampouco
apenas meras possibilidades lógicas, como já vimos anteriormente. O escólio da E5p23
parece confirmar o status modal infinito ao dizer que “Essa ideia que exprime a essência
do corpo sob a perspectiva da eternidade é, como dissemos, um modo definido do pensar,
que pertence à essência da mente e que é necessariamente eterno.”149
É possível inferir, a partir desta análise, que a essência formal de uma coisa
singular não pode ser idêntica à coisa singular em si, pois uma coisa singular em si é um
modo finito cuja existência é finita e determinada, como atesta a E2D7, e tem sua essência
formal como um modo infinito, que, por sua vez, de alguma maneira, sustenta a atualidade
das próprias coisas singulares em si. A partir deste ponto, podemos afirmar que a essência
formal das coisas singulares deve ser um aspecto de um atributo de Deus que é capaz de
sustentar a existência atual das coisas singulares, independentemente do nexo finito
causal que as determinará a existir em ato150. Apesar de a existência das coisas singulares
se darem em uma duração limitada, elas possuem uma essência formal derivada
diretamente de um aspecto de um atributo divino que torna esta mesma essência eterna e
ilimitada, assim como o seu atributo do qual é causa.
Respondemos de maneira satisfatória à questão da incompatibilidade da tese das
essências formais com a tese do necessitarismo. Vimos que estas duas teses são
perfeitamente compatíveis. Cada essência formal é um modo infinito derivado
necessariamente de um atributo de Deus. Desta maneira, segue-se necessariamente que
cada essência de uma coisa existe de maneira necessária, mesmo aquelas das coisas não
existentes, assim como a ideia desta mesma coisa existe necessariamente e corresponde
à sua essência formal.
148 E1p28d diz: “Tudo que é determinado a existir e a operar é assim determinado por Deus (pela prop. 26 e pelo corol. da prop. 24). Ora, o que é finito e tem existência determinada não pode ter sido produzido pela natureza absoluta de um atributo de Deus, pois tudo o que se segue da natureza absoluta de um atributo de Deus é infinito e eterno (pela prop. 21); […] Deve, portanto, ter se seguido ou de Deus ou de um atributo seu, isto é, deve ter sido determinado a existir e a operar ou por Deus ou por um atributo seu, enquanto modificado por uma modificação que é finita e tem uma existência determinada." 149 Não deixo de assinalar que esta ideia do status modal infinito das essências formais não deve ser apenas confirmado com o apoio da E5p23s. Não é consenso que Spinoza nesta proposição sustente categoricamente que as essências formais sejam modos infinitos de Deus. 150 É a instanciação da essência formal que produz a própria coisa singular existente em ato.
76
3.6 As Essências e o Paralelismo
Outra objeção aparente, tal qual a da compatibilidade entre o necessitarismo e a
tese das essências formais, emerge do fato de Spinoza afirmar o paralelismo, que, em
suma, é a tese de que “a ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão
das coisas.”, afirmado pela E2p7 e que já abordamos previamente no capítulo anterior.
Esta tese requer que, onde houver uma coisa que mantém algum tipo de relação causal
com outras coisas, haverá de igual maneira uma ideia desta coisa que mantém
paralelamente uma relação causal com as ideias daquelas outras coisas e vice-versa. Isto
significa dizer que uma coisa e a ideia desta coisa devem compartilhar o mesmo status
com relação à sua existência atual e sua possibilidade ainda não atualizada. Ora, a E5p22d
torna evidente que a ideia que existe necessariamente em Deus e que “exprime a essência
deste ou daquele corpo humano” é tão somente a ideia da essência do corpo humano,
outrossim, esta essência deste corpo humano será, desta maneira, uma possibilidade não
atualizada. Sabemos, contudo, que Spinoza não aceita a tese de haver possíveis não
atualizados em Deus, pois, em Deus, tudo é atual e não há espaço para existência
potencial151.
A existência ou não-existência de uma coisa singular não se segue unicamente da
existência de sua essência formal, o que demonstra, neste caso, que a essência formal de
uma coisa singular existe independentemente de sua existência atual, isto porque cada
essência formal é, como vimos, um modo infinito derivado de um atributo de Deus que
existe necessariamente, e que, portanto, deve existir necessariamente tanto como essência
quanto como a ideia dessa essência formal que lhe é correspondente. Ou seja, para cada
essência formal corresponde uma ideia desta essência. Assim, para cada coisa singular
dada, sua existência ou não-existência será totalmente necessária (pelo nexo infinito de
coisas singulares existentes na duração) e também suas essências formais. Desta maneira,
se uma essência formal de uma coisa singular existe como um modo infinito, a ideia desta
coisa, que expressa a sua essência formal, também será infinita. Por outro lado, uma coisa
singular existe em um tempo determinado na duração, do mesmo modo que as ideias
dessas coisas singulares também existirão em um tempo determinado. Vencemos, deste
modo, a aparente incompatibilidade entre as essências formais e o paralelismo, visto que
151 Cf. E1p31s e E1p33s2
77
o status ontológico de cada ente é precisamente paralelo à sua ideia correspondente.
Podemos passar agora a explorar a tese da parte eterna da mente que permanece.
78
3.7 As Essências, A Parte Eterna do Corpo e A Parte Eterna da Mente
Voltemos ao início deste capítulo, quando citamos uma passagem fundamental
para nosso trabalho, a E5p23. Ela diz que “a mente humana não pode ser inteiramente
destruída com o corpo: dela permanece algo, que é eterno”. Podemos distinguir a mente
em duas partes. Uma que perece junto com o corpo, a parte temporal; e uma parte que é
eterna, que permanece mesmo após a destruição do corpo. Desta maneira, a mente é uma
ideia de um corpo humano, por um lado, e a essência formal deste corpo, por outro lado.
Disto podemos inferir que a mente é composta por duas partes, a imaginação em sua parte
temporal e o intelecto em sua parte eterna. O intelecto é eterno porque é a ideia da essência
formal do corpo e essa essência, como vimos anteriormente, é eterna. Assim, se o
intelecto é uma parte da mente, logo, uma parte da mente é eterna.
Na demonstração da proposição em questão, este algo eterno que permanece
pertence ao mesmo tempo à essência da mente humana e é uma ideia que exprime a
essência do corpo humano. Ao apontar para E2p13, verificamos que, assim como a mente
humana é a ideia de um corpo humano, do mesmo modo, a ideia da essência formal de
um corpo humano é em si uma ideia da essência formal da mente humana152 e por isso
pode-se afirmar que a parte eterna da mente pertence à essência da mente humana. Dois
problemas irão surgir153: 1) relacionado ao paralelismo: se, pela E2p13, a mente humana
é a ideia de um corpo humano, e se há alguma parte da mente humana que é eterna e que
permanece após a destruição do corpo, então, pelo paralelismo, é necessário que exista
alguma parte do corpo que seja eterna e que permaneça após a destruição da mente154; 2)
relacionado à essência do corpo humano: a ideia da essência do corpo humano deve
constituir um conhecimento sobre a essência do corpo humano. Assim, se a ideia da
essência do corpo humano é a parte eterna da mente, então um conhecimento da essência
do corpo deve ser o conhecimento de alguma parte da mente. Essa essência do corpo
humano, de acordo com E2p13s, parece envolver algum tipo de movimento e repouso
que o define e diferencia de outros corpos. No entanto, o conhecimento humano baseado
152 Pela E2p21s, constatamos que a ideia e a ideia da ideia são a mesma coisa, tal qual a ideia do corpo e o corpo. Portanto, acreditamos também poder fazer este paralelo para a ideia da essência. Logo, a ideia da essência formal do corpo será igual a ideia da essência formal da mente. 153 Cf. GARRETT, 2010, 293. 154 Bennett irá demonstrar três objeções para uma interpretação simétrica da relação paralela entre a parte eterna da mente e o corpo que ele credita a Curley. Isto, no entanto, não significa que ele concorde com a doutrina da eternidade, pois em dado momento ele diz: “eu não o estou defendendo [Spinoza]: em minha interpretação disto, sua [de Spinoza] doutrina da eternidade é certamente falsa.” (tradução livre). Cf. BENNETT, 1984, p. 357-359.
79
na sua distinção de movimento e repouso é deveras limitado. Esta limitação, por sua vez,
não permite que a parte eterna da mente possa ser explicada pela ideia da essência formal
do corpo humano. É evidente que, sendo eterna a parte da mente que permanece, o único
meio de conhecê-la é através das ideias adequadas. Ora, como vimos o conhecimento da
essência formal do corpo baseado apenas na sua distinção de movimento e repouso não
pode alcançar esta parte da mente, pois é limitado e confuso, dado que ocorre a partir da
imaginação.
Por outro lado, afim de corroborar nossa teoria de que a ideia da essência formal
do corpo humano pode explicar a existência de uma parte eterna da mente, nós
constataremos como a essência formal do corpo pode constituir uma parte eterna do
corpo, e como esta parte sobrevive à destruição da mente existente em ato. A parte que
permanece, a parte eterna da mente, é o intelecto, pelo qual se diz que nós agimos; a parte
que perece é a imaginação, pela qual se diz que somos passivos. Desta maneira, a
imaginação consiste de ideias inadequadas ou passivas, sendo “a única causa de
falsidade” e ditas como 1º gênero de conhecimento; por outro lado, o intelecto consiste
de ideias ativas ou adequadas, ditas como conhecimento de 2º e 3º gêneros155, pelo qual
se diz que agimos. Portanto, enquanto a mente tem ideias156, podemos dizer que ela é
composta pela imaginação e pelo intelecto.
A imaginação será exposta por Spinoza na E2 como o conhecimento das afecções
sofridas pelo corpo humano enquanto existente em ato. O filósofo expõe: “chamaremos
de imagens das coisas as afecções do corpo humano...”; “E quando a mente considera os
corpos dessa maneira, diremos que ela os imagina.” (E2p17s). Na E2p18d ele afirma: “A
mente imagina um corpo qualquer porque o corpo humano é afetado e arranjado pelos
155 Sobre os conceitos de gêneros do conhecimento, cf. E2p40s2, E2p41d e E2p42d. Spinoza analisa os três modos pelos quais o homem conhece; chama estes de conhecimento do primeiro, do segundo e do terceiro gênero. Como resultado da análise, descarta o primeiro, por avaliá-lo sujeito ao erro e à falsidade, e indica o segundo e o terceiro como os válidos para se distinguir o verdadeiro do falso, ou seja, para conhecer verdadeiramente as coisas. Spinoza também analisa os modos de percepção ou gêneros de conhecimento no Breve Tratado (Parte II), e no Tratado da Correção do Intelecto (TCI § 18-30); Os gêneros do conhecimento serão importantes, pois na parte 5, Spinoza nos mostrará como o sábio, aquele que vive segundo os 2º e 3º gêneros dificilmente tem o ânimo perturbado (cf. E5p42s) em comparação com o ignorante e que por isso a sua capacidade de alcançar a liberdade, beatitude ou salvação (cf. E5p36s) é muito maior. 156 Pela E2p11 constata-se que as ideias são fundamentais na constituição da mente. Podemos ler: “O que, primeiramente, constitui o ser atual da mente humana não é senão a ideia de uma coisa singular existente em ato.” (grifo meu). Ainda na E2ax3, verificamos que os modos do pensar, tais como o amor, etc., não podem existir sem a ideia da coisa amada, etc.; por sua vez, uma ideia, pode existir sem que exista um modo do pensar. Constatamos a partir destas duas proposições que uma mente só pode ser mente enquanto tem ideias.
80
traços de um corpo exterior da mesma maneira pela qual ele foi afetado...”. E ainda, na
E2p30 e E2p31, Spinoza irá afirmar que nem do nosso próprio corpo nem dos corpos
exteriores que nos afetam podemos ter um conhecimento senão extremamente
inadequado. Outrossim, o intelecto, sendo responsável pelo conhecimento de 2º e 3º
gêneros, não pode consistir no conhecimento de qualquer modificação do corpo existente
em ato. Na verdade, Spinoza, na E5p29, nos mostra que a mente, quando compreende as
coisas pelo 2º e 3º gêneros do conhecimento, as compreende não por conceber a existência
atual do corpo e suas modificações, “mas por conceber a essência do corpo sob a
perspectiva da eternidade.” O escólio desta proposição aponta para a E2p45 e seu escólio,
que afirmam que a existência em ato de uma coisa singular envolve necessariamente tanto
a essência quanto a existência dessa coisa, enquanto elas existem em Deus, ou seja, a
essência formal do corpo. Podemos perceber que imaginação e intelecto como partes da
mente envolvem também o conhecimento das modificações do corpo humano existente
em ato, obtidos a partir da imaginação, e o conhecimento da essência formal do corpo
humano, que será obtido a partir do intelecto sob uma perspectiva da eternidade.
A mente humana é a ideia de um corpo existente em ato pela E2p13. Um corpo
humano é composto de muitos indivíduos (de natureza diferente) altamente compostos,
pela E2p13Post1 e E2p15d. Assim, um corpo é um composto de muitas partes distintas.
Esta ideia que constitui um corpo altamente composto não é, por sua vez, nem o intelecto
nem a imaginação somente, pois, pela E2p15, essa “ideia que que constitui o ser formal
da mente não é simples, mas composta de muitas ideias.” Desta maneira, parece correto
supor que, se as partes da mente (intelecto e imaginação) não estão limitadas a serem
somente ideias de muitas partes distintas que constituem um corpo, pelo paralelismo, as
partes do corpo também não podem ser limitadas a serem somente partes espaciais
distintas. Deve haver algo que possa ir além desta concepção, e este algo é a essência
formal do corpo. Portanto, o corpo também contém partes para além das partes espaciais
distintas em que é divisível, a saber: uma parte existente no tempo e espaço, limitada por
seu aspecto espacial e temporal; e uma parte existente como um modo infinito, não
limitada e, portanto, eterna. Uma essência formal não está limitada por tempo e espaço,
ela é expressão contínua do atributo extensão e está intimamente ligada como parte do
que é necessário para que o ser humano exista atualmente. E porque é um modo do
atributo extensão, e mais, um modo infinito, esta parte permanecerá depois que corpo e
81
mente existentes atualmente perecerem. Acreditamos ser suficiente esta análise para
respondermos ao problema apontado anteriormente com relação ao paralelismo.
82
3.8 Conhecer a Essência é Afirmar a Parte Eterna da Mente
Um ser humano existente em ato, como podemos ver, é constituído por duas partes
fundamentais, a parte temporal157 e a parte eterna, a qual é constituída por uma essência
formal do corpo e a ideia dessa essência. Essas duas partes devem compor um ser
existente em um dado tempo e espaço. Na E2p45, Spinoza afirma que a ideia de cada
corpo singular existente em ato, no tempo e espaço, envolve a essência eterna e infinita
de Deus. Na E2p46, o conhecimento dessa essência, nos diz Spinoza, é adequado e
perfeito. Ora, como vimos anteriormente, pela imaginação conhecemos as afecções do
corpo existente em ato e esse conhecimento é totalmente inadequado, mas se o
conhecimento de cada coisa singular envolve o conhecimento da essência eterna e infinita
de Deus, logo, mesmo o conhecimento inadequado de um corpo existente em ato, dado
pela imaginação, demanda algum conhecimento adequado de um atributo divino, uma
vez que o conhecimento de cada coisa singular envolve a essência eterna e infinita de
Deus e esta só pode ser conhecida de maneira adequada e perfeita. Como a mente humana
pode conhecer a essência eterna e infinita de Deus, se esta se dá a conhecer através de um
conhecimento adequado e perfeito, e a mente humana, através da imaginação, percebe as
afecções dos corpos existentes em ato somente de maneira inadequada?
Todo conhecimento adequado, segundo Spinoza, é conhecimento de 2º e 3º
gêneros e se dá pelo intelecto, enquanto que conhecimento inadequado é de 1º gênero e
se dá pela imaginação. Demonstraremos que o conhecimento da essência do corpo
humano se dá necessariamente pela parte da mente humana responsável pelos
conhecimentos de 2º e 3º gêneros, ou seja, o intelecto. Pela E2p40s2, o segundo gênero
do conhecimento se dá quando temos noções comuns e ideias adequadas das propriedades
das coisas, propriedades essas que devem ser comuns a todos os homens e que, quanto
mais propriedades em comum houver entre os corpos, tanto mais será a capacidade da
mente perceber adequadamente, isto pela E2p38c e E2p39c. Assim, podemos ter ideias
adequadas das propriedades das coisas e também daquilo que se segue destas
propriedades. O 3º gênero do conhecimento é o mais alto grau de conhecimento que pode
existir, pois, como vimos anteriormente, Spinoza afirma na E2p45 e E2p46 que a ideia de
um corpo existente em ato envolve a essência eterna e infinita de Deus e que não há
157 Como nos concetramos em elucidar a função da parte eterna no alcance da betatitude, apenas citamos en passant a parte temporal sem obtermos prejuízo explicativo para nosso trabalho.
83
possibilidade de esse conhecimento ser inadequado, obtido através da imaginação, mas
ao contrário, este conhecimento é perfeito e adequado e só pode ser obtido através do
intelecto.
Sabemos que todo o conhecimento humano envolve ideias adequadas e
inadequadas. Sabemos também, pelo axioma capital da Ética spinozana, o axioma 4 da
parte 1, que tudo que podemos conhecer ou entender envolve o conhecimento ou
entendimento de sua causa. Desta maneira, conhecer as afecções que modificam um corpo
humano existente em ato significa também conhecer a causa externa que gera tais
modificações. No entanto, não podemos esquecer que o conhecimento do corpo se dá
pelo conhecimento de suas afecções e pelo conhecimento de sua essência formal, a qual
é parte fundamental do corpo humano existente em ato. Assim, a mente, ao conceber as
afecções de um corpo existente em ato e suas causas, deve também conceber algo de sua
essência formal. Conhecer as afecções é conhecer de maneira inadequada e confusa,
enquanto conhecer a essência envolve conhecer de maneira adequada e perfeita. Ao
conceber as coisas deste último modo, através de sua essência, concebe-se de fato algo
dos modos infinitos que lhes são causa e que, por serem causa, envolvem certas
particularidades e por isso são a base para o conhecimento de 2º gênero. Já o
conhecimento de 3º gênero se dá pelo conhecimento da natureza de um atributo divino
em si, ou seja, da ideia adequada da essência formal de um atributo divino.
É evidente, no entanto, que a mente não pode conhecer tudo de si que o distingue
de outros. Desta maneira, o conhecimento da essência formal do corpo humano não deve
ser limitado ao conhecimento de algo particular existente em ato, mas sim ser o
conhecimento de certas particularidades da natureza da sua essência tais como elas se
manifestam na essência formal do corpo humano. Assim, o conhecimento do 1º gênero
constitui o conhecimento das relações entre corpos existentes em ato e o conhecimento
de 2º e 3º gêneros, também comumente chamados de conhecimento intelectual,
constituem o conhecimento a respeito da essência formal do corpo humano. Se, portanto,
agora, podemos ter um conhecimento da essência formal do corpo humano, então
confirmamos a existência de uma parte eterna da mente; afinal, a ideia que exprime a
essência formal do corpo só pode vir do conhecimento intelectual sob o ponto de vista da
eternidade e, portanto, como afirma a E5p23s, essa ideia pertence à essência da mente e
é necessariamente eterna. Acreditamos, desta maneira, responder satisfatoriamente ao
questionamento acerca da essência formal do corpo e a parte eterna da mente. O
84
conhecimento da essência formal do corpo só pode ser dado de maneira adequada e
perfeita. Ora, como a imaginação só pode conhecer de maneira inadequada e imperfeita,
mas a mente humana é composta de imaginação e intelecto, logo, o conhecimento da
essência formal do corpo só pode vir da parte da mente responsável pelo conhecimento
adequado e perfeito, e essa parte, como vimos, é a parte responsável pelos conhecimentos
de 2º e 3º gêneros, a parte que permanece, a parte eterna da mente, o intelecto.
85
3.9 Conhecer Adequadamente é Ter a Maior Parte da Mente Eterna
Vencidas estas etapas, resta ainda entendermos como a parte eterna da mente está
relacionada à capacidade que os corpos têm de fazer mais coisas. Como uma coisa eterna,
neste caso, uma parte da mente, pode ser maior ou menor dependendo da capacidade de
fazer mais ou menos coisas do corpo que ela representa? Se esta parte da mente é eterna,
como pode ela aumentar ou diminuir? É exatamente isto que Spinoza parece afirmar, ele
diz:
“Quem tem um corpo capaz de muitas coisas tem uma mente cuja maior parte é eterna.” (E5p39)
“Quanto mais cada um se torna forte neste gênero do conhecimento [3º gênero], tanto mais está consciente de si próprio e de Deus, isto é, tanto mais é perfeito e feliz.” (E5p31s)
“O sábio, enquanto considerado como tal, dificilmente tem o ânimo perturbado. Em vez disso, consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, em virtude de uma necessidade eterna, nuca deixa de ser, mas desfruta, sempre, da verdadeira satisfação do ânimo.” (E5p42s)
Spinoza parece deixar claro, portanto, que o nível ou grau de conhecimento ou sabedoria
está diretamente relacionado com ter uma mente cuja maior parte é eterna. Mas se a
essência formal do corpo humano, como vimos, é um modo infinito, portanto, ele é
imutável. Ora, pelo paralelismo, a ideia da essência formal deste corpo humano deve ser
imutável igualmente tal como a essência do corpo humano em si. Como pode a parte da
mente que é eterna crescer ou diminuir à medida que a sabedoria ou conhecimento
aumenta ou diminui?
Respondendo a este ponto, Garrett irá afirmar que a resposta está em distinguir as
ideias como elas são em Deus simplesmente e as ideias como elas são em Deus na medida
que Deus tem ou constitui a mente de uma coisa singular158. Apoiado pela E2p11c, que
afirma que a mente humana é parte do intelecto infinito de Deus e que Deus, enquanto
constitui a essência da mente humana, tem esta ou aquela ideia, podemos dizer que uma
ideia existe em Deus como parte de seu intelecto infinito, que por sua vez, conhece com
perfeição todas as ideias que são seus efeitos. Por outro lado, uma ideia também existe na
mente de uma coisa singular enquanto esta coisa singular existe na duração, e que por sua
vez, também de maneira contrária, tem um poder limitado de conhecer as coisas. A
158 GARRETT, 2010, p. 299.
86
essência de uma coisa, tomada como uma ideia de Deus, é representada, portanto, por
cada propriedade desta essência com alto grau de poder de pensamento, uma vez que o
poder de pensamento divino é infinito. Não podemos dizer o mesmo da ideia da essência
formal que uma coisa singular tem de si, pois seu poder de pensamento é finito e limitado
e, portanto, a consciência de sua própria essência formal derivada de seu poder de
pensamento não é totalmente completa.
Todavia, uma coisa singular pode exprimir seu poder sob qualquer atributo,
incluindo o atributo pensamento, apenas na medida em que se aproxima de uma condição
de ter poder de se preservar a si mesma, ou seja, uma condição de autossuficiência causal
similar ao da substância159. Essa similitude nos permite afirmar a variação no poder de
pensamento existente entre as diversas coisas finitas. Variação esta que provém do fato
mesmo de existir diferença de essência entre as diversas coisas finitas. A essência, tomada
como uma perfeição, nos possibilita entendermos que, de fato, coisas singulares como
uma pedra tem muito mais imperfeição (isto é, potência) do que um ser humano. Por
nossa essência ser mais perfeita, ou seja, ter um grau mais elevado de perfeição do que o
de uma pedra ou de um animal irracional, é que podemos falar em autossuficiência causal
similar à da substância. Essa similitude existente em maior grau no ser humano que em
outros seres mais rudimentares está ligada à capacidade que o ser humano tem de ter
consciência de si, ou seja, de ter a capacidade maior de perceber a essência formal de seu
próprio corpo do que um animal irracional. Assim, durante sua existência, um ser humano
pode aumentar ou diminuir seu poder de pensamento e, esse poder de pensamento só pode
ser aumentado pelo intelecto, que é sua parte eterna. Somente o intelecto pode conceber
adequadamente, pois é eterno e concebe pelo 3º gênero do conhecimento, segundo o
ponto de vista da eternidade, concebendo uma ideia eterna da essência formal de seu
próprio corpo.
Desta maneira, uma ideia da essência formal do corpo humano como é em
Deus simplesmente é imutável, e o ser humano vive em um esforço contínuo para que
sua mente possa ter a maior aproximação possível, de maneira consciente, desta ideia
adequada da essência formal de seu próprio corpo e de outras coisas com as quais ele se
relaciona e que estão envolvidas nesta essência. Ora, quanto maior for o poder de
pensamento de um indivíduo, mais ele poderá ter ideias adequadas sobre as circunstâncias
que o afetam. Se um indivíduo é capaz de ter mais ou menos ideias adequadas a depender
159 GARRETT, 2002, p. 139. Cf. também a carta 19 de Spinoza. CURLEY, 1985, p. 278.
87
de como ele usa seu poder de pensamento nas circunstâncias cotidianas que o afetam,
então ele tem a capacidade de tornar, ou não, a maior parte de sua mente eterna. Isto é o
que diferencia o sábio do ignorante para Spinoza, ou seja, sua capacidade de ser
consciente de si, de Deus e dos outros.
Podemos perceber o quão importante é o ponto de partida de uma interpretação
do conceito de eternidade em Spinoza. Se a interpretação for no sentido de atribuir a
eternidade somente à substância, então, o caminho a ser percorrido deverá ser um que se
coadune com este passo inicial. Se, por outro lado, a interpretação inicial for em sentido
oposto, qual seja, o de atribuir eternidade não somente à substância, mas também aos
modos, então, deverá ser percorrido um outro caminho que se compatibilize com esta
leitura. E assim se segue sempre que falamos do conceito de eternidade em Spinoza. O
posicionamento entre basicamente dois tipos de intepretação, um ontológico e outro
epistemológico, fez e continua fazendo com que o conceito de eternidade e tudo do que
dele deriva a partir da filosofia spinozana seja até hoje debatido entre os comentadores.
Foi o que percebemos ao analisar as diferentes interpretações do conceito de
eternidade e seus desdobramentos na parte 5 da Ética. A grande dificuldade apresentada
é a compatibilidade da noção de eternidade da mente com o paralelismo; afinal, como
pode uma parte da mente continuar existindo, ou seja, ser eterna, mesmo após a destruição
do corpo? A resposta ontológica vai afirmar que eternidade deve ser interpretada como
sempiternidade e que existem dois tipos de eternidade; uma que se atribui à substância e
outra que se atribui aos modos. A resposta epistemológica, por sua vez, afirmará que a
distinção entre a eternidade aplicada a Deus e a eternidade aplicada aos modos é apenas
uma distinção de razão, pois não existem duas eternidades diferentes, mas apenas uma,
ora aplicada a Deus, ora aplicada ao homem. Nosso posicionamento é em favor desta
segunda interpretação.
Seu fundamento principal foi demonstrado a partir da teoria das essências. A
definição de eternidade nos possibilitou entender que a noção de eternidade está
diretamente ligada ao conceito de existência eterna. Uma existência eterna, por sua vez,
pode ser de 2 tipos: 1) a partir de sua própria essência eterna; 2) a partir da sua causa
eterna. Verificamos que, em Deus, há uma ideia da essência formal de cada corpo humano
e também que a parte da mente que é eterna é uma ideia da essência formal do corpo
humano. Desta maneira, as essências são vistas não como meramente possibilidades
lógicas, mas como realidades necessárias, pois são modos de Deus, ou seja, modos
88
infinitos de Deus, pois estão contidas em seus atributos. Estabelecemos que a essência
formal de uma coisa não é a coisa em si, uma vez que a coisa singular em si é um modo
finito e a sua essência um modo infinito, cada qual existindo de maneira necessária. O
paralelismo é mantido, pois tanto a essência formal quanto a ideia desta essência são
modos infinitos.
Ao falar especificamente da parte eterna da mente, constatamos que o paralelismo
nos força a afirmar que, para que haja uma parte da mente que é eterna, seu paralelo deve
ser igualmente verdadeiro, ou seja, deve existir uma parte do corpo que seja eterna. Ora,
a parte do corpo que é eterna é a sua essência formal, pois é um modo infinito. Chegamos
a esta conclusão a partir da ideia de que, se um corpo é um composto de muitas partes
distintas, e se a mente não é composta de uma simples ideia, mas composta de muitas
ideias, logo, pelo paralelismo, já que o corpo não deve ser unicamente composto de partes
espaciais, ele deve conter algo além desta concepção, a saber, a sua essência formal, modo
infinito e, por isso, eterno. Desta forma, se o corpo tem uma essência formal que é eterna,
logo, a mente deve ter também uma parte eterna. Provamos, assim, a existência de uma
parte eterna da mente.
Cabe citar, por fim, que o conhecimento da essência formal do corpo sob
o ponto de vista da eternidade, ou seja, pelo 3º gênero do conhecimento é fundamental
para que o indivíduo possa ter uma efetiva consciência de si e das relações afetivas em
que está envolvido.
Acredito ter falado tudo que considerava importante sobre a questão da essência
em relação com a eternidade. Isto posto, tentaremos elaborar, a seguir, uma base sólida
para afirmar que Spinoza considerava a parte eterna da mente como a melhor parte, a
parte mais importante da mente. Se a mente é composta de intelecto e imaginação e o
intelecto é a sua parte eterna, então, o intelecto deve ser a parte mais importante em
comparação com a imaginação que é a parte que perece juntamente com a destruição do
corpo. Outro ponto de nosso interesse é demonstrar que a beatitude ou a verdadeira
liberdade está diretamente relacionada a um ato mental reflexivo a partir da parte eterna
da mente. Tentaremos sustentar que é através de um relacionamento mente x mente que
o indivíduo se tornará verdadeiramente livre.
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CONCLUSÃO
Spinoza, na finalização de sua Ética afirma que o caminho que conduz a beatitude
é árduo, porém possível.160 Em nosso trabalho constatamos de fato o que Spinoza
afirmou. O caminho que conduz à beatitude, liberdade ou salvação só pode ser conhecido
por aqueles que se preparam verdadeiramente, pois percorrer este caminho é andar por
vias que nos aproximam do conhecimento e amor de Deus. Contudo, o conhecimento e o
amor de Deus só poderão ser alcançados se primeiramente conhecermos plenamente o
que somos e as causas das coisas que nos afetam.
Começamos nosso trabalho com uma breve ontologia spinozana. O filósofo irá na
contramão da tradição filosófica de sua época ao formular sua teoria da substância. Ele
afirmava a unidade e simplicidade da substância ao mesmo tempo em que afirmava a
coexistência de uma multiplicidade de atributos realmente distintos que expressam a sua
essência. A E1p11 irá confirmar que, além da substância ser constituída de infinitos
atributos, ela existe necessariamente. A substância, ou o que é o mesmo, Deus, é um ser
infinitamente infinito que tem sua existência decorrente exclusivamente de sua essência,
pois “à natureza da substância pertence o existir”161. Seus atributos são infinitos e sua
existência é necessária. É a partir desta substância que todas as outras coisas serão
produzidas. Portanto, não há nada que escape a ordem eterna e imutável do mundo, uma
vez que todas as coisas concordam com a substancialidade divina, pois dela derivam.
Desta maneira, devemos ter o homem como parte da substância, ou no linguajar
spinozano, um modo da substância.
A partir da distinção entre os tributos, que mesmo infinitos, são distintos
realmente, Spinoza conclui que não pode haver relação de causalidade entre modos de
atributos diferentes, portanto, não pode haver relação de causalidade entre a mente, um
modo do atributo pensamento, e o corpo, um modo do atributo extensão. Apesar disto,
mente e corpo, como é evidente, formam um único indivíduo. Este indivíduo é uma coisa
singular, que diferentemente de sua causa que é eterna e existe por si, não existe por si,
mas precisa de outro para existir, o que significa dizer que sua existência não decorre de
160 E5p42s diz: “Se o caminho, conforme já demonstrei, que conduz a isso parece muito árduo, ele pode, entretanto, ser encontrado. E deve ser certamente árduo aquilo que tão raramente se encontra. Pois se a salvação estivesse à disposição e pudesse ser encontrada sem maior esforço, como explicar que ela seja negligenciada por quase todos? Mas tudo o que é precioso é tão difícil como raro.” 161 E1p7.
90
sua essência. Um indivíduo será, por conseguinte, a união de muitas partes, em especial
de uma mente e de um corpo. O corpo é uma modificação do atributo extensão e a mente
uma modificação do atributo pensamento. O corpo sofre modificações e a mente tem a
capacidade de perceber cada modificação. Esta relação entre a mente e o corpo será
fundamental em todo o projeto filosófico da Ética, pois para Spinoza, a mente não pode
controlar o corpo e vice-versa, e portanto, alcançar a beatitude ou a liberdade ou a
salvação estará diretamente relacionada a um entendimento por parte do indivíduo de que
somente a razão, apoiada em causas adequadas pode libertar o homem de suas paixões.
Assim, a parte 5 da Ética, mais precisamente sua segunda seção, irá demonstrar que
somente através do conhecimento racional da mente, e mais ainda, que através de um ato
de reflexividade racional, onde o indivíduo consegue enxergar todas as coisas sub species
aeternitatis, é que se encontra a verdadeira liberdade, a verdadeira salvação, a beatitude.
Entendermos como funciona esta relação entre mente e corpo, portanto, é passo
fundamental na trajetória de nosso trabalho.
Uma tese que gera grandes discussões é a tese do paralelismo. Ela está instituída
na E2p7. Defendemos a relação de representação, apoiada por Deleuze, como a que
melhor expressa a relação entre mente e corpo e melhor se coaduna com os textos e teses
filosóficas da Ética. Ora, Spinoza é para nós suficientemente claro ao afirmar na E2p13
que “o objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, ou seja, um modo definido
da extensão, existente em ato, e nenhuma outra coisa.”, ou seja, uma sua representação.
A noção de representação é sustentável, pois mantém a unidade dos atributos162 e a
multiplicidade dos modos que diferem pelo atributo pelo qual se exprimem; não confunde
a essência da substância com a essência dos modos a partir de uma leitura precipitada, e
portanto, mal sucedida, da analogia feita por Spinoza na E2p7 ao referir-se à identidade
numérica da substância; e se harmoniza muito mais coerentemente com outras teses
elementares da Ética. Seu contraponto apresentado aqui, qual seja, a tese da identidade
numérica, apoiada por Della Rocca, para nós fica colocado apenas como mais uma leitura
possível para a relação existente entre mente e corpo. Seu modelo não possui base
sustentável para provar que as coisas são da maneira como afirma, portanto, como uma
mera hipótese, nós a descartamos por não possuir a mesma coerência com uma visão mais
global da filosofia de Spinoza.
162 Afirmamos anteriormente que os atributos são infinitos, mas por existirem por si, tal qual a E1p10 atesta, elas têm uma unidade igual a da substância. Cf a nota 24 deste trabalho.
91
A tese do paralelismo e a relação existente entre mente e corpo, como sabemos e
já afirmamos, são imprescindíveis na compreensão da filosofia spinozana. Contudo,
Spinoza no final de seu projeto ético, parece romper com essa relação, ao dizer que “é,
pois, agora, o momento de passar àquilo que se refere à duração da mente, considerada
sem relação com o corpo.” Ora, então, há uma parte do indivíduo que tem uma existência
de alguma maneira desvinculada com o corpo e esta parte é a parte eterna da mente. A
E5p23 afirma: “a mente humana não pode ser inteiramente destruída juntamente com o
corpo: dela permanece algo, que é eterno.” Desta maneira passamos a tratar desta parte
da mente que é eterna, primeiro provando sua existência e as implicações com outras teses
de Spinoza. Partimos fundamentalmente da teoria das essências para afirmar que
conhecer a essência é afirmar a parte eterna da mente. Quando compreendemos que o
homem é constituído por uma parte temporal e uma parte eterna e que é a parte eterna, ou
seja, o intelecto, que é responsável pelos conhecimentos adequados, então, o enfoque nas
coisas temporais deve ser suavizado, pois estes, dados pela imaginação, apenas garantem
conhecimentos inadequados e confusos sobre si, sobre Deus e sobre outras coisas que nos
afetam. O conhecimento adequado através da parte eterna da mente ganha outro enfoque
em nosso trabalho. Ele ganha um tom fundamental na busca da beatitude, pois é a parte
eterna que quando reflete sobre si, ou seja, age reflexivamente de maneira racional,
consegue perceber as coisas sob a perspectiva da eternidade, de maneira adequada, de
forma a ser agente ativo nas suas relações. A salvação, beatitude ou liberdade, conforme
a E5p36s, consiste em um ato de amor intelectual da mente para com Deus. Este amor,
atesta a demonstração desta mesma proposição, é uma ação por meio do qual a mente
considera a si própria. Este ato de considerar a si é o ato racional reflexivo a que nos
referimos. Ele vem acompanhado da ideia de si e é chamado de amor intelectual da mente
para com Deus e por ser parte do conhecimento do 3º gênero é superior ao conhecimento
universal.
Sendo assim, concluímos que a parte eterna da mente será mais importante que a
parte temporal. Isto não é sem apoio textual spinozano. Spinoza afirma algumas vezes o
grau mais elevado de importância que a parte eterna da mente, a melhor parte, tem sobre
qualquer outra parte temporal. Vejamos a E5p38s, a E5p39s e E5p40c, respectivamente:
“Por outro lado, como (pela prop. 27), do terceiro gênero de conhecimento provém a maior satisfação que pode existir, segue-se que a mente humana pode ser de uma natureza tal que a sua parte que perece juntamente com o corpo, conforme indicamos
92
(veja-se a prop. 21), não tenha nenhuma importância, em comparação com a parte que permanece.”
“Como os corpos humanos são capazes de muitas coisas, não há dúvida de que podem ser de uma natureza tal que estejam referidos a mentes que tenham um grande conhecimento de si mesmas e de Deus, e cuja maior parte, ou seja, cuja parte principal, é eterna, e que, por isso, dificilmente temem a morte[...]; [...] de tal maneira que tudo aquilo que esteja referido à sua memória ou ã sua imaginação não tenha, em comparação com o seu intelecto, quase nenhuma importância, como já disse no esc. da prop. precedente.”
“Com efeito, a parte eterna da mente (pelas prop. 23 e 29) é o intelecto, por meio do qual, exclusivamente, dizemos que agimos (pela prop. 3 da P. 3). Em troca, aquela parte que demonstramos perecer é a própria imaginação (pela prop. 21), por meio da qual, exclusivamente, dizemos que padecemos (pela prop. 3 da P. 3 e pela def. geral dos afetos). Por isso (pela prop. prec.), a primeira, qualquer que seja sua magnitude, é mais perfeita que a segunda. C. Q. D.”
Concluímos que este ato, que chamamos ato racional reflexivo traz enormes
benefícios para aqueles que o buscam e alcançam. Por outro lado, vimos que os caminhos
que devem ser percorridos para alcançar esta meta são árduos. A salvação, beatitude ou
liberdade está no final deste caminho. Ele é o ápice daqueles que conseguiram percorrer
esta via que leva ao conhecimento de si, de Deus e dos outros através da melhor parte, a
parte eterna da mente.
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