sobre o tratado da emenda do intelecto em relação à educação das crianças

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Sobre Espinosa.

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  • dossi 52

    A gnese textual da doutrina da educao das crianas no Tratado da Emenda do Intelecto de Espinosa

    Cristiano Novaes de RezendeProfessor doutor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Gois (UFG)

    ResumoMeu objetivo no presente artigo analisar o movimento argumentativo pelo

    qual Espinosa introduz, no promio do Tratado da Emenda do Intelecto, a

    expresso Doctrina de puerorum Educatione. Embora no se trate de um

    conceito direta e detidamente desenvolvido por Espinosa, estimo ser possvel

    reconstruir, com base na referida anlise, a funo de tal doutrina no interior

    do programa filosfico que a se delineia. Atravs dessa reconstruo, pretendo

    defender que uma doutrina espinosana da educao das crianas deve

    necessariamente pautar-se pelo princpio do acompanhamento do erro, de

    modo a exprimir, tambm no mbito da pedagogia, o carter radicalmente

    imanentista do sistema de Espinosa.

    Palavras chave: educao; imanncia; Emenda do Intelecto; acompanhamento do erro.

    AbstractMy goal in this article is to analyze the argumentative steps by which Spinoza

    introduces, in the Tratise on the Emendation of the Intellect, the expression

    "Doctrina de puerorum Educatione". Although this is not a concept directly

    and carefully developed by Espinosa, it is possible, upon that analysis, to

    reconstruct its function in the Tratises prologue. By means of this

    reconstruction, I defend that such doctrine must necessarily be guided by the

    pedagogical principle of to follow the error, consistent with the radically

    immanentist Espinosas system.

    Keywords: education; immanence; Emendation of the Intellect; to follow the error.

    Filosofia e Educao ISSN 1984-9605 Volume 5, Nmero 1Abril Setembro de 2013

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    Para Marta V. Alencar, Angel Pino

    e Carmelita Felcio, trs de meus bons encontros

    entre filosofia e educao

    Os afazeres da felicidade: a ocorrncia da expresso Doctrina de puerorum Educatione nos 14 e 15 do Tratado da Emenda do IntelectoI

    no dcimo quinto pargrafo do Tratado da Emenda1 que Espinosa se

    refere, de forma vaga e meramente alusiva, a uma Doutrina da Educao

    das crianas. No meu objetivo aqui tentar reconstituir qual poderia ser o

    contedo preciso de tal doutrina, mas to somente determinar sua funo na

    economia conceitual dos pargrafos que compem o chamado prlogo ou

    promio dessa obra de Espinosa ( 1 a 18). apenas com base nessa

    anlise preliminar do texto que, finalmente, procurarei determinar tambm

    algumas caractersticas do que se poderia chamar, grosso modo, de esprito

    ou carter da doutrina.

    necessrio, portanto, que, antes de mais nada, seja posta em

    considerao a unidade textual cuja reconstruo argumentativa ser o caso

    de empreender2. Mantendo grande proximidade com o texto latino, uma

    1 Para fins de conciso, doravante usarei, como equivalente do ttulo completo do tratado espinosano, a forma Tratado da Emenda ou simplesmente a sigla para o ttulo latino: TIE (Tractatus de Intellectus Emendatione). Quanto s razes que sustentam a preferncia por emenda, ao invs das alternativas mais usuais, correo ou reforma, isto ser comentado mais adiante, atravs do prprio desenvolvimento do assunto no corpo do texto. A numerao dos pargrafos do TIE seguir sempre aquela introduzida por Bruder, em 1843, e indicada em atuais edies de referncia, tais como a de Bernard Rousset (ESPINOSA, 1992) aqui preferencialmente consultada. Ao longo deste artigo, empregarei a primeira pessoa do singular de preferncia s formas do impessoal ou do plural majesttico. O uso do plural majesttico criaria confuso com as formulaes em que desejo intencionalmente implicar o leitor (e.g. podemos compreender que, j vimos que, etc.). Consideraes filosficas contra o uso impensado e burocrtico do impessoal podem ser hauridas do conhecido 27 de Ser e Tempo, de Heidegger (1988, pp. 178-183).

    O uso da primeira pessoa do singular explicita que tais ou quais asseres so feitas por conta e risco de quem as enuncia, sendo, pois, um ndice de responsabilidade intelectual. Isso, naturalmente, no significa uma recusa de todo e qualquer uso do impessoal, mas apenas de seu uso de forma automtica e impensada.2 Em tempo: recomendo, desde j, que o leitor, antes de prosseguir neste artigo, realize

    Filosofia e Educao ISSN 1984-9605 Volume 5, Nmero 1Abril Setembro de 2013

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    traduo razovel para o mencionado pargrafo 15 do Tratado da Emenda

    poderia ser a seguinte:

    Ademais (Porro), preciso dedicar trabalho (danda est opera) filosofia moral (morali philosophiae), como tambm (ut et) doutrina da educao das crianas (Doctrinae de puerorum Educatione); e porque (et quia) a sade (valetudo) no um meio pequeno (non parvum est medium) para que tal fim (ad hunc finem) seja conseguido (assequendum), deve ser organizada (concinnanda est) a medicina inteira (integra medicina); e porque (et quia) pela arte (arte) muitas coisas que so difceis (multa, quae difficilia sunt) so tornadas fceis (facilia redduntur), e por meio dela (ea) podemos lucrar na vida (in vita lucrari possumus) tambm muito de tempo e de comodidade (multumque temporis et commoditatis), por isso (ideo), a mecnica (mechanica) de nenhum modo deve ser desprezada (nullo modo est contemnenda)

    Em primeiro lugar, deve-se notar que a palavra inicial do pargrafo, o

    advrbio ademais (porro), j indica o tipo de articulao do excerto com

    seu contexto englobante. Trata-se de uma articulao que qualifica como

    suplementares os dados por ela introduzidos. Algo que acabara de ser

    estabelecido nas linhas precedentes possuindo, portanto, uma

    caracterizao mnima j constituda passa agora a receber um novo

    conjunto de atribuies, agrupadas entre si e diferentes das primeiras, mas

    dependentes de que estas j houvessem sido apresentadas.

    Isso digno de nota porque, no pargrafo imediatamente anterior

    (14), Espinosa estabelecera nada menos que o fim a que se dedica todo o

    uma primeira leitura dos pargrafos 1 a 18 do TIE, para que possa acompanhar os movimentos no lineares da anlise que ser aqui realizada. Duas boas tradues brasileiras desse texto so as de Lvio Teixeira (ESPINOSA, 1966) e Carlos Lopes Matos (ESPINOSA, 1979). No obstante a boa qualidade de tais publicaes, todas as tradues dos excertos de Espinosa aqui citados so de minha autoria, salvo quando houver indicaes em contrrio. O uso de colchetes indica incises ou alteraes mais significativas exigidas por nosso idioma. O texto latino consultado para a traduo dos excertos do TIE foi o estabelecido por Rousset (ESPINOSA, 1992), e para os excertos de outras obras foi usada a edio Gebhardt (ESPINOSA, 1972). Ciente de que a insero, depois de cada seguimento traduzido, de seu equivalente latino entre parntesis, torna incmoda a leitura, mantenho, porm, este recurso, no s porque j dispomos dessas outras tradues mais elegantes e fluentes do mesmo texto, mas, principalmente, porque o tipo de reconstruo aqui pretendida supe estrita observncia s exigncias lexicais e sintticas das formulaes originais de nosso filsofo, que devem, portanto, ser disponibilizadas.

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    Tratado da Emenda e, em ltima anlise, a inteira filosofia espinosana, qual

    seja: a suprema felicidade (summa felicitas ou summa ac continua laetitia,

    nos termos dos pargrafos iniciais do texto3). O que, porm, desejo destacar

    no passo em foco que depois de um intrincado percurso o pargrafo

    14 retoma essa ideia de felicidade, mas desta vez em termos de fruio de

    certa natureza humana. isso que j se encontra estabelecido para que se

    possa, em seguida, falar, entre outras atividades, de uma doutrina da

    educao das crianas. Embora o termo natureza denote aproximadamente o

    mesmo que o termo essncia, ele conota, tanto na tradio escolstica

    quanto no sistema espinosano, a essncia entendida mais precisamente

    como operao ou atividade prpria da coisa. E particularmente na filosofia

    espinosana, ter certa natureza ser uma essncia actuosa, que resulta de

    atividades constitutivas de ordem mais elementar e que, ao mesmo tempo,

    origina ou toma parte da constituio de atividades de ordem superior (Cf.

    tica I prop. 36). A felicidade uma atividade essencial, ou, o que o

    mesmo, uma forma de ser4. E Espinosa acrescenta: uma forma de ser que s

    se perfaz coletivamente. Em suas palavras:

    aqui est (Hic est), ento (itaque), o fim ao qual tendo (finis, ad quem tendo), a saber (scilicet): (a) adquirir tal natureza (talem naturam acquirere), e (et) (b) me esforar (conari) para que muitos a adquiram comigo (ut multi

    mecum eam acquirant).5

    3 Suprema felicidade ou suprema e contnua alegria. H, certamente, diferenas entre alegria (laetitia) e felicidade (felicitas) que podem ser exploradas no restante do sistema espinosano, mas, ao menos no presente contexto, cumpre observar que Espinosa parece aceitar algum grau de equivalncia entre esses vocbulos, uma vez que, nos 1 e 2, os emprega de modo indistinto.4 O uso de forma, na acepo aqui pretendida, encontra amparo na ideia de forma do indivduo, tal como esta trabalhada na chamada pequena fsica da tica (os axiomas, lemas e definies que se seguem ao esclio da prop. 13 de tica II). No mbito humano, a autoconservao dinmica da forma individual a implicadas as relaes de inteirao com outros indivduos pode ser dita uma forma de vida, que compe o significado do conceito de institutum empregado nos 3 e 6 TIE. Sobre o termo institutum, confira-se a nota 14 infra.

    5 TIE 14. minha a introduo das letras que explicitam as duas partes do fim, bem como a rediagramao do excerto. Usarei esse recurso, ao longo da presente seo, para enumerar as partes dos 14 e 15.

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    No seria incorreto admitir, por exemplo, que esse esforo (conari)

    coletivizante (ut multi mecum) est no s verbal mas tambm

    conceitualmente ligado conhecida noo espinosana de conatus (a prpria

    essncia de uma coisa, entendida como o esforo pelo qual ela se esfora

    por perseverar em seu ser6). O que, ento, Espinosa estaria sugerindo, j no

    Tratado da Emenda, que faz parte desse esforo essencial o esforo para a

    aquisio conjunta de uma mesma natureza pela maior quantidade possvel

    de outros seres congneres (outros homens, no caso). E uma vez que o que

    adquirido uma natureza, no h nada que a impea de ser adquirida e

    fruda por muitos ao mesmo tempo, o que no apenas permite mas at

    mesmo exige uma tendncia ontolgica para que cada coisa se esforce por

    formar e integrar sistemas dinmicos cada vez mais amplos, complexos e ao

    mesmo tempo estveis. Toda coisa trabalha por um mundo em que mais e

    mais elementos lhe sejam consistentes e confirmem, nessa mesma medida, a

    necessidade de sua essncia e de sua existncia no sistema da realidade. O

    conatus, portanto, no pode ser tomado como esforo conservador

    fechado, mas sim como um perseverar em expanso, pois o conservar-se

    de algo em seu ser j seria, por si s, articular-se com outros e ampliar-se

    (em ltima instncia, tomando parte ativa na estruturao do real, com ele

    co-laborando). Isso se verifica na seguinte explicitao, ainda no pargrafo

    14, da interdependncia entre as supracitadas partes (a) e (b) do fim

    proposto:

    tambm (etiam) de minha felicidade (de mea felicitate est) dedicar trabalho (operam dare) para que muitos outros (ut alii multi) entendam o mesmo que eu (intelligant idem atque ego), para que (ut) seus intelectos e desejos (eorum intellectus et cupiditas) convenham inteiramente (prorsus conveniant) com meu intelecto e desejo (cum meo intellectu et cupiditate).

    6 O pleonasmo esforo pelo qual se esfora do prprio Espinosa: O esforo pelo qual (Conatus quo) cada coisa (unaquaeque res) se esfora (conatur) a perseverar em seu ser (in suo esse perseverare),nada alm da prpria (nihil est praeter ipsius) essncia atual da coisa (rei actualem essentiam) tica. III prop. 7.

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    Ora, precisamente ento que nosso filsofo passa a apresentar dois

    grupos de tarefas7 derivadas, que so necessrias (necesse est) para que se

    faa (utque fiat) a fruio coletiva e concordante de certa natureza humana8.

    O primeiro grupo contm duas tarefas:

    (c) entender da natureza (de natura intelligere) apenas o quanto baste (tantum quantum sufficit) para que seja adquirida (ad acquirendam) tal natureza (talem naturam); (d) formar tal sociedade (formare talem societatem), a qual deve ser desejada (qualis est desideranda), para que (ut) tanto muitos (quamplurimi) quanto segura e facilimamente (quam facillime, et secure) cheguem a isso (eo perveniant) [sc. ao fim proposto: adquirir aquela natureza].

    E o segundo grupo, subordinado a este primeiro, precisamente aquele

    apresentado pelo nosso pargrafo 15 e contm as quatro tarefas j citadas:

    (e) dedicar trabalho filosofia moral;(f) dedicar trabalho doutrina da educao das crianas;(g) organizar a medicina;(h) dar ateno arte mecnica.

    Porque o fim almejado uma natureza, uma forma ativa de ser, os

    meios que condicionam sua obteno tambm so atividades. Dentre elas, o

    cuidado com doutrina da educao das crianas alinhado estreitamente

    ao cuidado com a filosofia moral pela prpria sintaxe do texto de Espinosa

    constitui tarefa particularmente estratgica na harmonizao coletiva dos

    intelectos e dos desejos. A medicina e a mecnica, por seu turno, parecem

    ser trabalhos de harmonizao no mbito corporal, lidando com os corpos

    humanos individuais e coletivos9 e suas interaes com os demais corpos do

    mundo fsico. Alis, estas duas ltimas cincias atendem perfeitamente

    exigncia expressa no ponto (c) de um conhecimento da natureza 7 O termo tarefa encontra apoio na expresso operam dare, que traduzi, de modo

    bastante literal e intencionalmente forado, como dedicar trabalho a. A doutrina da educao das crianas tem, pois, esse estatuto de uma tarefa, um afazer.

    8 Tal natureza ainda no foi aqui caracterizada, em virtude da ordem reversa da reconstruo, mas ser comentada com maiores detalhes logo mais.

    9 perfeitamente possvel identificar no sistema espinosano um lugar para a sade coletiva e at mesmo para a sade pblica (Cf. REZENDE 2010).

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    guiado pela aplicao (o que fica especialmente claro no caso da mecnica,

    cujo estatuto de tcnica (ars) explicitado pelo narrador).

    Entretanto, na nota d do pargrafo 14, Espinosa afirma no estar

    preocupado, nesse momento, em ordenar e encadear as cincias necessrias

    ao nosso escopo, mas apenas em enumer-las10. Cabe, destarte, perguntar:

    para alm do fato de que cada uma dessas tarefas derivadas (e-h) vem

    cumprir a misso expressa no ponto (d) de garantir a quantidade, a

    facilidade e a segurana da chegada e manuteno dos homens na vida

    social almejada, em que consistiria seu agrupamento no interior do

    movimento argumentativo do promio? Bernard Rousset (ESPINOSA, 1992,

    p 170) corretamente observa que essa nota vem esclarecer que no se trata

    aqui do encadeamento lgico das cincias apresentadas no pargrafo 15

    (diversamente, por exemplo, do famoso modelo da rvore cartesiana para a

    unidade do conhecimento). Todavia, indo mais longe, o comentador

    acrescenta, no mesmo passo, que na lista oferecida, no h efetivamente

    qualquer ordem gentica, qualquer liame dedutivo, qualquer transio

    construtiva encadeando as disciplinas umas s outras. Ora, a meu ver

    Rousset exagera na ideia de falta de unidade nessa enumerao. certo que

    Espinosa no pretende aqui formar um sistema de todas as cincias, em

    estilo ps-kantiano; mas isso no exclui ao contrrio, refora nosso

    direito de perguntar: de onde provm, ento, a escolha precisa dessas

    atividades, dentre as quais a doutrina da educao das crianas? Qual o

    sentido de seu agrupamento? Como ele se gera?

    Bem, a resposta que eu gostaria de defender que esse agrupamento

    corresponde a uma recuperao e ressignificao, num plano conceitual

    mais elaborado, dos mesmssimos objetos de desejo que, num primeiro

    momento da narrativa, eram apresentados como impedimentos para a

    aquisio da felicidade. E se isso verdade, ser possvel atribuir doutrina 10 TIE 14, nota d: Note que aqui (Nota, quod hic) cuido somente (tantum curo) de

    enumerar as cincias (enumerare scientias) necessrias ao nosso escopo (ad nostrum scopum necessarias), sendo lcito (licet) que eu no venha a atentar sua srie (ad earum seriem non attendam).

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    espinosana da educao das crianas um carter ou esprito marcado por

    essa no eliminao de elementos eventualmente perniciosos. Mais ainda:

    essa no eliminao, que recupera e ressignifica o aparentemente deletrio,

    estaria no cerne da prpria noo de emendatio, conferindo-lhe, no plano

    epistemolgico do Tratado que ela intitula, no o carter de uma pura

    correo ou reforma, mas sim de um acompanhamento do erro, necessrio

    plena integrao da mente com a verdade.

    Para defender tal posio, ser preciso rearticular os pargrafos 14 e

    15 com o restante do promio do Tratado da Emenda, ligando-os tanto ao

    que os antecede ( 1-13) quanto ao que os sucede ( 16-18).

    II Bens ordinrios, bens verdadeiros e bem supremo ( 1-13)

    II.1) O pargrafo 1 Desde seu comeo, essa obra de Espinosa se configura como uma busca,

    uma inquirio, como podemos ler j no pargrafo 1:

    decidi finalmente inquirir (constitui tandem inquirere) se haveria (an daretur) algo (aliquid) que fosse um verdadeiro bem (quod esset verum bonum) e comunicvel de si (et sui communicabile), e pelo qual apenas (et a quo solo), rejeitados todos os demais (reiectis ceteris omnibus), o nimo fosse afetado (animus afficeretur); mais ainda (imo), se haveria algo (an aliquid daretur), que uma vez descoberto e adquirido (quo invento et acquisito), eu frusse uma alegria (fruerer laetitia) contnua e suprema (continua ac summa) eternamente (in aeternum).

    esse algo procurado, ainda abstrato um mero aliquid, nesse

    incio da narrativa espinosana , que vai, desde ento, passo a passo

    ganhando determinaes e, com isso, construindo o promio.

    Diferentemente do que j estar disponvel nos pargrafos 14 e 15, tudo que

    se sabe sobre o fim nesse momento inicial que ele pode ser chamado de

    verdadeiro bem e que possui as seguintes especificaes mnimas:

    (i) comunicvel; (ii) somente ele deve afetar o nimo, ao passo que os demais bens devem ser rejeitados;

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    (iii) sua descoberta, somada sua aquisio, ser a fruio de uma alegria contnua, suprema e eterna.

    Estas so as caractersticas do buscado enquanto buscado, ou seja,

    aquilo que necessrio saber a seu respeito para que se possa, pelo menos,

    procur-lo e reconhec-lo caso ele seja encontrado. Mas se, por um lado,

    quem procura algo j deve saber o que procura, por outro, no deve sab-lo

    sob pena de v redundncia como quem j o houvesse encontrado. O

    que preciso que se possua do fim no comeo no pode ser o mesmo que se

    h de possuir do fim no fim. Nesse incio, o verdadeiro bem apenas um

    vazio delimitado por essas trs caractersticas, as quais, portanto, tambm

    permanecem insuficientemente compreendidas11. Porque no se sabe o

    contedo do verdadeiro bem, tampouco possvel saber o que seria (i) sua

    referida comunicabilidade, ou (ii) sua exclusividade em detrimento dos

    demais, e muito menos (iii) como se relacionam sua descoberta e sua

    aquisio.

    Isso relevante porque, ao longo da narrativa do promio, a superao

    das dificuldades que vo sendo encontradas depende, em grande medida, de

    uma mudana progressiva nesta compreenso do que que estava sendo

    procurado (uma mutao conceitual, uma reviso dessas trs especificaes

    preliminares, luz do desenvolvimento da inquirio). Quer dizer, as

    aporias na aquisio (acquisitio) do verdadeiro bem vo se resolvendo em

    funo do bom andamento de sua descoberta (inventio), o que j

    corresponde justamente a um aprimoramento na compreenso do ponto (iii):

    dependendo de como se conceba o verdadeiro bem, ele poder ser ou no

    ser adquirido.

    II.2) Os pargrafos 2 a 5Quanto s insuficincias iniciais no entendimento do ponto (ii), isto , na

    11 Cf. TIE 95: as propriedades das coisas (proprietates rerum) no so inteligidas (non intelliguntur) enquanto suas essncias so ignoradas (quamdiu earum essentiae ignorantur)

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    compreenso ainda abstrata da exclusividade do verdadeiro bem, elas

    esto no centro dessas dificuldades enfrentadas ao longo do promio. Com

    efeito, se o narrador, no pargrafo 2, sente necessidade de dizer

    enfaticamente que foi apenas ao final (tandem) de um processo que ele se

    ps a buscar o verdadeiro bem, isso se deu precisamente porque,

    primeira vista (primo intuitu), lhe pareceu precipitado ou inconsulto

    (videbatur inconsultum) rejeitar em nome de um verdadeiro bem que

    ainda no fora sequer descoberto os demais bens j disponveis e as

    vantagens e comodidades (commoda) que eles j propiciavam dentro do

    modo de vida em que o filsofo j se encontrava12. Antes de partir em busca

    do verdadeiro bem, foi necessrio refletir muito e ponderar a fundo sobre

    como somente (solum) ele haveria de afetar o nimo e sobre como todos os

    demais bens haveriam de ser rejeitados (rejectis). Em verdade veremos

    , o desenlace decisivo consistir justamente em compreender que no h

    como rejeitar de forma absoluta qualquer um desses bens ordinrios, mas

    apenas como modificar nosso modo de relao com eles, rejeitando o mal

    que nos faziam mas no eles prprios como partes internas dinmica da

    12 importante observar que, se os bens ordinrios so certos em sua disponibilidade ou consecuo (sua consecutione), isto no significa que os possumos ou obtemos com segurana ou facilidade, isto , como se os dominssemos. Examinando o modo espontneo com que os homens, segundo o TIE, fruem da vida comum, Pierre-Franois Moreau (1994, p 78-79) caracteriza muito bem em que consiste a certeza dos bens ordinrios: eles esto ao alcance da mo e eles fornecem vantagens [commoda]. sua acessibilidade e sua visvel eficcia, no sua posse imediata que constitui sua certeza. Tal certeza prpria ao que dj l, ou seja, uma prerrogativa do primeiro ocupante, do familiar, do disponvel, do que est comigo antes que eu comece a refletir. No interior do sistema da vida comum que Moreau chama de mundo do que est dado despende-se, porm, muito esforo para aquisio e conservao de seus bens prprios, e isso se passa justamente porque h tambm muito risco de fracasso e de perda. Mas, esse mundo como um todo no adquirido: ele se nos antepe como encontrado. Ele num vocabulrio clssico e que revela o fundo epistemolgico do que est em jogo o que primeiro para ns, cronolgica ou existencialmente, mas no na ordem do ser. isso o que ressalta da prpria leitura de Moreau, quando este diz, por exemplo, que a vida comum o que no tem necessidade de mudana para estar a; s aquele que quer outra coisa que deve mudar (...) Ela [sc. a vida comum] incontornvel; ela no uma escolha de vida; pode haver talvez uma deciso de deix-la; mas no h deciso de nela entrar; ela est a desde que ns estamos a; ela a forma espontnea de nossa condio (...). Isso no quer dizer que ela seja o fundamento do resto; mas ela o dado primeiro a partir do qual ns alcanaremos o fundamento (MOREAU, 1994, p 107-108 itlicos e incisos meus).

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    vida.

    Numa tradio que remonta, pelo menos, tica Nicomachea de

    Aristteles, Espinosa afirma que lcito inferir (colligere licet), a partir do

    que os homens fazem (ex eorum operibus), que tais bens ordinrios se

    reduzem basicamente aos trs seguintes: honra (honor), riqueza (divis) e

    prazer (libido). E a dificuldade apenas ao final da qual foi possvel

    efetivamente colocar-se em busca de outro modo de vida era que, se no

    houvesse outra felicidade alm da que proporcionada por esses bens

    ordinrios, a inquirio exigiria que dela o narrador se abstivesse13. Mas se,

    ao invs disso, a felicidade no se encontrasse na posse de tais bens, dela

    tambm o narrador ver-se-ia privado, caso no se lanasse busca do

    verdadeiro bem. No parecia possvel, portanto, ter as duas coisas. No

    pargrafo 3, Espinosa descreve nos seguintes termos essa impossibilidade,

    para um mesmo homem, de buscar, ao mesmo tempo, os bens ordinrios e o

    verdadeiro:

    Revolvia, portanto, em meu nimo (Volvebam igitur animo) se acaso no seria possvel (an forte esset possibile) chegar a uma nova instituio [de vida] (pervenire ad novum institutum), ou pelo menos (aut saltem) certeza da mesma (ad ipsius certitudinem), sem que fosse mudada (licet non mutaretur) a ordem e a instituio (ordo et institutum) de minha vida comum (commune vitae meae), o que muitas vezes tentei (quod saepe tentavi) frustradamente (frustra).14

    Essa a primeira e mais abstrata forma da exclusividade do

    13 TIE 2: eu era forado a me abster (cogebar abstinere) de procurar essas [coisas] (ab iis quaerendis) se quisesse seriamente (si seriam vellem) dedicar trabalho (operam dare) a alguma outra coisa nova (rei alii novae)

    14TIE 3. No dicionrio Latim-Ingls de Lewis & Short, Oxford, (in: http://www.perseus.tufts.edu), registram-se os seguintes significados para institutum: um propsito, inteno, desgnio; um arranjo ou plano; modo de vida, hbitos, prticas, maneiras; uma regulamentao. O verbo volvo, -ere, por sua vez, indica, concretamente, volver, revolver, voltar em giro, girar, rolar, verter, despejar, etc. Abstratamente e em sentido figurado, significa pensar e repensar, considerar a mesma coisa muitas vezes, conotando, pois, tambm nesse registro, um movimento circular, repetitivo. No contexto de seu uso por Espinosa, cabe interpretar o termo como conotando uma repetio sem condies internas, ou prprias, de dar fim a si mesma. Tal interpretao, ao menos no que se refere ao texto espinosano, reforada pelo advrbio forte, ou seja, pela maneira fortuita com que uma concluso apresentar-se-ia caso isso de fato viesse a ocorrer por meio desse expediente, ou seja, por meio do volver em nimo.

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    verdadeiro bem: a excluso recproca, a disjuno total, ou ele ou tudo

    mais! Mas, cabe perguntar: por qu? O que torna necessariamente

    frustradas essas primeiras tentativas de compatibilizao? Ora, responde o

    pargrafo 3, essas tentativas fracassam porque os bens ordinrios so

    estimados como bens supremos (tamquam summum bonum aestimantur), e

    arrastam a mente em mltiplas direes (distrahitur mens)15, a tal ponto

    (adeo) que ela mal pode (ut minime possit) pensar sobre outro bem (de alio

    aliquo bono cogitare). Quer dizer, era impossvel ter as duas coisas porque,

    ironicamente, esses bens ordinrios que exigiam exclusividade e rejeio

    de tudo mais, ao menos quando tomados como bens supremos. E, para quem

    puder atinar com a j mencionada matriz aristotlica desse texto de

    Espinosa, ser fcil antecipar que tomar algo como summum bonum

    equivale a no desej-lo em vista de outra coisa (diheteron), como um fim

    subalterno, um meio, estimando-o, antes, por si mesmo (diauto), como um

    fim ltimo numa cadeia de aes (Cf. Aristteles, tica a Nicmaco, 1094a1

    1094b13).

    Ou seja, s era impossvel uma soluo compatibilista por que,

    desejados por si mesmos, os bens ordinrios se fechavam alteridade

    (minime de alio) e se tornavam, por assim dizer, obsediantes16:

    4: pelo prazer o nimo suspenso (suspenditur animus) (...) maximamente (maxime) [a ponto de] no pensar em outra [coisa] (impeditur ne de alio cogitet);

    5 a honra suposta (supponitur) (...) ser sempre boa por si (semper bonum esse per se);

    4: e a riqueza frequentemente buscada por si (propter se).

    15 Adoto esta traduo de distraho, ao invs da mais natural, distrair, porque o tipo de sequestro da mente a descrito me parece muito mais forte do que o termo distrair conota normalmente em Portugus. No obstante, distrair tambm poderia ser usado, mas ao preo de uma outra nota que, ao modo desta, viesse acentuar as acepes de distrair como ludibriar, desviar a ateno, direcionar e dirigir a mente, etc. De toda forma, a base etimolgica da traduo adotada , literalmente, dis = em vrias direes + traho = tracionar.

    16 A terminologia da obsesso minha e no de Espinosa. Todavia, para um conceito equivalente em seu sistema, confira-se a ocorrncia de pertinacia, por exemplo, em tica IV, proposio 6.

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  • dossi 64

    Alis, dentre esses trs bens ordinrios, a honra descrita como o

    mais perigoso, pois, ao contrrio do prazer, no acarreta fastio e

    arrependimento aps a fruio, mas incita (incitamur), ao contrrio, a um

    aumento cada vez maior e a uma dedicao cada vez mais intensa (magis ac

    magis)17. J a riqueza, embora seja grandemente nociva quando desejada por

    si mesma, possui, todavia, uma versatilidade mais explcita de seu uso e, por

    isso, no conduz to automaticamente ao referido fechamento. Tanto que

    Espinosa acrescenta, j nesse momento do texto, na nota a do pargrafo 4,

    que seria possvel

    distinguir entre as riquezas que so procuradas (distinguendo divitias quae quaeruntur): ou por si mesmas (vel propter se), ou pela honra (vel propter honorem), ou pelo prazer (vel propter libidinem) ou pela sade e aumento das cincias e das artes (vel propter valetudinem et augmentum scientiarum et artium)18

    Se, por um lado, a vida comum, dedicada principalmente busca

    desses trs bens ordinrios, primeira vista parece marcada por certa

    17 Cf. TIE 5: mais e mais (magis ac magis) somos incitados a (incitamur ad) () aumentar (augendum). Trata-se de uma incitao a um aumento indefinido, que converte cada fruio em mera etapa subalterna, buscada a bem de outra, a qual, por sua vez, buscada a bem de outra, etc. de notar que, como num sistema de juros sobre juros, trata-se no de um simples aumento (magis ac magis), mas sim de um aumento do aumentar (ad augendum), um aumento de segunda ordem. Nessa economia de vida, o homem, em progresso geomtrica, endivida-se existencialmente na busca de bens fortuitos. Ora, o que de positivo pode, assim, ser aprendido desde j que uma nova instituio de vida haver de proporcionar um tipo de economia saudvel to potente quanto esta, mantendo inclusive seu carter de progresso geomtrica. E, de fato, como veremos, o supremo bem assim o faz, sendo um bem de segunda ordem.

    18 TIE 4, nota a. Cabe, a propsito, conjecturar se, em ltima anlise, no seria a natureza mesma das riquezas (divitiae) que permite tom-las como o menos nocivo dos bens ordinrios: penso, sobretudo, na riqueza tomada exemplarmente sob a forma do dinheiro, entendido como um equivalente geral de coisas diversas. O dinheiro , pois, algo que, por si, remete a algo alm de si, a saber, tanto quilo que ele h de comprar, quanto quilo (o trabalho) de que a expresso. Assim, estimo que seja por isso que as divitiae, procuradas propter se, indiquem a avaritia (Cf. 10), mas, procuradas a bem de outra coisa, sejam designadas atravs do termo nummus (moedas, Cf. 11 e 17). Entenda-se, porm, que no digo que o dinheiro deixe de ser nocivo por ser um equivalente geral e abstrato: o pensamento espinosano sempre impe severas restries a noes dessa sorte, tais como as noes ditas universais. O que observo que o fato, em verdade comum a todos os bens ordinrios, de poderem ser desejados por si ou por outro, mais explcito no caso do dinheiro, embora isso no impea que tambm ele, na dinmica prpria vida comum, possa aprisionar intensamente o nimo.

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    multiplicidade, por outro lado, sob essa aparncia oculta-se uma

    concentrao obsessiva, que diminui a aptido do corpo e da mente para a

    multiplicidade simultnea19. Compreende-se, assim, que a mencionada

    distrao (distractio) o arrastamento em muitas direes, que ocorre na

    busca dos bens ordinrios no passa de obsessiva repetio. Que esse

    empobrecedor fechamento alteridade seja experimentado como busca

    incessante, agitao, flutuao de nimo, medo e esperana, no quer dizer

    que, no vrtice desse leque de perturbaes, no estejam sempre as mesmas

    coisas (a riqueza, o prazer e a honra) retornando reiteradamente, sendo

    sempre provisoriamente conquistadas e provisoriamente perdidas. Veja-se,

    mais uma vez, a honra, no pargrafo 5, como caso paradigmtico dessa

    inaptido para a multiplicidade, pois ela probe comportamentos

    qualitativamente diferenciados, independentes ou singulares, exigindo uma

    padronizao da conduta, j que a vida de quem a busca

    deve ser dirigida (est dirigenda) necessariamente (necessario) segundo o juzo dos homens (ad captum hominum), a saber (scilicet), fugindo do que os homens vulgarmente fogem (fugiendo quod homines vulgo fugiunt) e procurando o que vulgarmente procuram (et quaerendo quod vulgo quaerunt).

    No pode ser, portanto, esta sorte de concordncia de ideias e desejos

    extrnseca e estereotipada, quando no, hipcrita aquela que se

    pretende como fruio social de uma mesma natureza humana20. Espinosa

    19 Cf. tica V, prop. 39, esclio. Para um bom resumo sobre a noo de aptido para a multiplicidade simultnea, veja-se a seguinte passagem de A nervura do Real: os corpos buscam a relao com outros que formam o vasto meio onde existem, relao que os faz regenerar-se, crescer, desenvolver-se para manter o equilbrio de suas propores de movimento e repouso, das quais dependem tanto suas vidas como a ampliao de sua aptido para o mltiplo simultneo; e as mentes exprimem em estados afetivos e cognitivos essas relaes, graas s quais tambm se regeneram, crescem e se desenvolvem, fortalecendo sua aptido para a multiplicidade simultnea de seus pensamentos e aes (CHAU, 1999, p 91).

    20 De fato, nesse ponto podemos encontrar em Espinosa uma posio convergente com a crtica heideggeriana da sujeio do indivduo ditadura do impessoal: Assim nos divertimos e entretemos como impessoalmente se faz; lemos, vemos e julgamos sobre a literatura e a arte como impessoalmente se v e julga; tambm nos retiramos das grandes multides como impessoalmente se retira; achamos revoltante o que impessoalmente se considera revoltante. O impessoal, que no nada determinado mas que todos so, embora

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    est falando, ao contrrio, de um empobrecimento comportamental,

    correlato de uma conduta heternoma, na qual a busca e a fuga so

    determinadas de fora, no sendo a expresso das leis internas da natureza

    prpria de cada indivduo. E essa homogeneizao refratria diversidade

    no apangio da vida de quem busca a honra como um fim em si, pois

    todos os bens ordinrios, cada um sua maneira, engendram um modo de

    vida pautado pela repetio, pela variao meramente quantitativa, sem

    diferentes diferenas. Se a obsesso tpica da vida comum nos incita a

    buscar sempre mais e mais (magis ac magis), no nos enganemos: trata-se

    apenas de mais e mais do mesmo. Multiplicidade e movimento nada mais

    so, aqui, do que atribulada monotonia.

    Ora, essa concluso importante porque mostra qual dever ser a

    natureza do fim ltimo a que a filosofia espinosana se encaminha. A

    limitao fundamental dos bens ordinrios, sua finitude enquanto bens,

    consiste no fato de que, quando desejados por si mesmos, eles suprimem

    todo outro objeto do desejo. De modo inverso, s poder ser infinitamente

    bom algo que, desejado por si mesmo, ao invs de gerar a escravizao ou a

    extino do desejo, gere sua expanso em uma multiplicidade de interaes

    diferentes e simultneas, fazendo sistema com a natureza. Um bem infinito

    no poderia ser tal que acarretasse a disjuno ou ele ou tudo mais (acaso

    no seria contraditrio um infinito que deixasse tudo mais fora de si?),

    devendo, antes, ser tal que, buscado como um fim em si mesmo, restitusse

    tudo mais (um legtimo infinito o que mantm infinitos entes finitos

    consistentes dentro de si). Por isso, o que quer que seja legitimamente

    no como soma, prescreve o modo de ser da quotidianeidade (HEIDEGGER, 1988, p 179). Essa inusitada convergncia do Tratado da Emenda com o j anteriormente mencionado texto de Heidegger fornece uma justificao interna ao sistema espinosano para recusa, no presente artigo, do uso padronizado das formas do impessoal na produo acadmica: escrevemos artigos como impessoalmente se escreve. Em se tratando aqui de uma publicao em dossi especialmente dedicado a temas pedaggicos, pareceu-me oportuno chamar a ateno para isso, na forma e no contedo desta anlise da filosofia de Espinosa. Obviamente, Espinosa um severo crtico do antropomorfismo e mesmo a categoria do sujeito como conscincia de si individual privada; no obstante, tambm um crtico, avant la lettre, das formas de usurpao da concretude singular pelo universal abstrato.

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    desejado por si h ser tal que, diversamente do que se passava com os bens

    ordinrios, permita, ou melhor, exija uma verdadeira expanso da vida

    mental (mais e mais de outro, no do mesmo). Para a pergunta: como

    somente (solum) o verdadeiro bem h de afetar o nimo e como todos os

    demais ho de ser rejeitados (rejectis)?, obtm-se, portanto, a resposta:

    deve-se rejeitar o que leva empobrecedora rejeio de tudo mais; deve

    afetar o nimo exclusivamente o que facultar a aptido para a multiplicidade

    simultnea. Numa reviravolta que no seria incorreto chamar de dialtica, a

    rejeio e a exclusividade so recolocadas como rejeio da rejeio e

    exclusividade da incluso.

    Finalmente, isso determina melhor em que consiste a

    comunicabilidade do verdadeiro bem. Se foi dito, no pargrafo 1, que o

    verdadeiro bem havia de ser sui communicabile, no se pode, agora,

    estranhar que ele no se mantenha fechado sobre si mesmo, de um lado,

    enquanto os bens ordinrios permanecem fechados sobre si mesmos, de

    outro. H, sem dvida, uma ntida distino entre eles, mas esta parece ser

    justamente que, sendo comunicvel, o verdadeiro bem no se isola da vida

    comum da mesma maneira que esta tende a isolar-se dele. A

    comunicabilidade impede que o bem, desejado per se, produza aquela

    distractio. Comunicvel, portanto, no apenas o que pode ser partilhado

    por todos os homens ao mesmo tempo, mas tambm o que conecta todos os

    estados de um s e mesmo homem atravs do tempo, quando este se pe a

    passar da velha para a nova vida, o que permanece no apesar mas

    atravs da mudana. Na acepo aqui pretendida, comunicabilidade o

    contrrio de unilateralidade ou desarticulao. Um bem comunicvel

    aquele que no se encontra fora, separado e polarizado contra a vida

    comum, mas que emerge dentro dela, restituindo-a e potencializando o que

    ela j possui de positivo em si mesma.

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  • dossi 68

    II.3) Os pargrafos 6 a 10

    Julgo, ademais, ser essa noo de comunicabilidade que, no pargrafo 6,

    transparece na adoo do critrio da utilidade para decidir qual bem deve

    ser exclusivo e qual deve ser rejeitado: eu era forado a inquirir (cogebar

    inquirere) o que seria mais til para mim (quid mihi esset utilius). Bernard

    Rousset, numa leitura bastante tradicional nesse ponto, afirma que essa

    escolha pelo mais til corresponde compreenso de que, seja qual for o

    escolhido, haver inevitavelmente uma perda, mas essa deve ser uma perda

    por um ganho, o que nos conduz a fazer um balano (ESPINOSA, 1992, p

    153). Avaliar a utilidade seria, nessa leitura, realizar um clculo racional de

    perdas e ganhos (embora Rousset, no mesmo passo, tenha o cuidado de

    advertir que no se trata de um clculo abstrato, uma vez que levada em

    conta a diferena entre o que est e o que no est dado de fato). Marilena

    Chau (1999, p 570), por sua vez, considera que, nesta passagem, o narrador

    muda o foco para abarcar com nitidez o campo de enfrentamento e

    perceber o que h de fazer para alcanar o alvo e por isso agora indaga o

    que seria mais til para a conservao de seu ser. Sem discordar de ambos

    os comentadores, eu gostaria apenas de observar que o conceito de til est

    intrinsecamente ligado noo de uso. O til, enquanto tal, precisamente

    aquilo que conduz a algo mais, que pode ser usado para x ou para y. Ora,

    dentre os trs bens ordinrios, a riqueza apresenta-se j o vimos21

    como exemplarmente til, uma vez que pode ser usada tanto para

    proporcionar a honra e o prazer quanto a sade e o desenvolvimento tcnico

    e cientfico. Todavia, ainda que a riqueza seja capaz de converter-se numa

    vasta multiplicidade de outras coisas distintas dela prpria, pode, no entanto,

    quando querida por si mesma, gerar um fechamento obsediante. A distractio

    21 Veja-se tambm tica IV, Apndice, Captulo28: Em verdade (Verum) o dinheiro (pecunia) conferiu (attulit) um compndio (resumo, atalho: compendium) de todas as coisas (omnium rerum) donde deu-se que (unde factum ut) sua imagem (ejus imago), maximamente (maxime), costuma ocupar (soleat occupare) a mente do vulgo (Mentem vulgi) a ponto de (quia vix) nenhuma espcie de felicidade (ullam Laetitiae speciem) poderem imaginar (imaginari possunt) a no ser acompanhada (nisi concomitente) da ideia das moedas (nummorum ide) como causa (tamquam causa).

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  • dossi 69

    que nesse caso se produz , por assim dizer, um arrastamento que separa a

    mente dos vrios objetos a que o til podia ser direcionado: a prpria coisa

    til, parte seu uso em vista de outra coisa, passa a ser desejada como um

    fim em si mesma (por exemplo: o dinheiro servindo obteno de mais

    dinheiro, servindo obteno de mais dinheiro, numa srie infinita de etapas

    sempre insuficientes, sempre subalternas). Nesse caso, d-se tambm uma

    inverso entre as posies do til e de seu usurio: este passa a viver em

    funo daquele e torna-se o elemento passivo na relao, ao passo que,

    complementarmente, aquilo que no era seno um recurso a ser usado, um

    meio, um instrumento, torna-se o protagonista ativo, o agente na relao22.

    Tal inverso encontra eco em uma conhecida frase do pargrafo 7 do

    Tratado da Emenda:

    todas aquelas coisas (illa omnia), porm, (autem) que o vulgo segue (quae vulgus sequitur) (...) frequentemente so causa da morte (frequenter sunt causa interitus) daqueles que as possuem (eorum qui ea possident), e sempre causa da morte (et semper causa interitus) daqueles que por elas so possudos (eorum qui ab iis possidentur).

    Assim, diante da pergunta sobre o quanto ou at que ponto os bens

    ordinrios podem ser teis, cumpre responder: parcialmente. Por isso,

    Espinosa os qualificar como incertos por sua natureza (sua natura), ao

    passo que o verdadeiro bem incerto apenas quanto a sua descoberta e

    aquisio. Se Espinosa qualifica o verdadeiro bem atravs da ideia de

    fixidez (fixum bonum), no se deve ver a qualquer sorte de paz inerte ou

    paralizao do nimo. Por bem fixo deve-se entender, antes, algo que no

    mude de bom para mau em hiptese alguma. Seu por assim dizer

    valor de bondade que possui fixidez: tal bem fixamente bom, ou seja,

    de modo incondicional. Os bens ordinrios podem ser ou no ser bons,

    22 So desejveis, aqui, associaes que certamente mereceriam ser trabalhadas a fundo em um outro estudo entre essa usurpao da atividade e da finalidade pelo til, descrita pelo espinosismo, e a reverso entre os lugares do sujeito e do objeto, nos processos chamados pela tradio marxista de fetichismo da mercadoria (coisas usurpam o lugar de sujeitos) e de reificao da conscincia (sujeitos se degeneram em coisas).

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  • dossi 70

    dependendo de serem ou no desejados por si mesmos. E o pargrafo 7

    extrai, ento, as consequncias desta combinao: um bem incerto sua

    natura, efetivamente presente, ao ser desejado per se, equivale a um mal

    certo! Isso desequilibra os pratos da balana em que as concorrentes formas

    de viver eram ponderadas, pois j no se trata mais de trocar bens certos (os

    bens ordinrios, certos porque disponveis em ato) por um bem incerto (no

    sentido de ainda no haver sido descoberto e adquirido), nem tampouco de

    trocar um bem incerto por outro igualmente incerto. Em verdade, trata-se de

    abrir mo de males certos por um bem que permanece apenas

    circunstancialmente incerto. A situao, para o narrador, comparvel de

    um doente (veluti aeger) que, atacado por uma enfermidade letal (letali

    morbo laborans) e antevendo morte certa (mortem certam praevidet) caso

    no administre um remdio apropriado (ni adhibeatur remedium), passa a

    procur-lo, ainda que incerto (quamvis incertum).

    mediante essa metfora mdica (recorrente ao longo de toda obra de

    Espinosa) que nosso filsofo, no pargrafo 8, faz uma apresentao de

    casos tpicos, situaes exemplares nas quais os homens perderam ou

    abreviaram a vida em virtude da busca de bens ordinrios como fins em si

    mesmos. Estes ltimos no so, portanto, incondicionalmente teis

    conservao de nosso ser (ad nostrum esse conservandum). Bem ao

    contrrio, suas limitaes acabam por tambm limitar a vida de quem os

    ama; razo pela qual, no pargrafo 9, Espinosa afirma que:

    esses males (haec mala) pareciam ser originados (Videbantur esse orta) do seguinte (ex eo), que toda felicidade ou infelicidade (quod tota felicitas aut infelicitas) est situada (sita est) s nisto (in hoc solo), evidentemente (videlicet) na qualidade do objeto (in qualitate obiecti), ao qual aderimos por amor (cui adhaeremus amore).

    A qualidade (qualitas) dos bens ordinrios sua finitude

    determina tambm a qualidade das comoes do nimo (commotiones

    animi) de quem os ama: eles originam litgios (lites) e tristeza (tristitia) caso

    se extingam (si pereat), inveja (invidia) caso sejam possudos por outro (si

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  • dossi 71

    ab alio possideatur) e, de modo geral, temor (timor) e dio (odium). Em

    oposio a isso, infere-se, racionalmente, que o objeto do amor deve ser

    uma coisa eterna e infinita (amor erga rem aeternam et infinitam), que

    alimenta o nimo s com alegria (pascit animum sola laetitia). A inferncia

    clara:

    experimentamos, vimos casos tpicos e tambm ouvimos

    relatos de que, nas situaes particulares de lida com os bens

    ordinrios, existe uma vinculao entre sua finitude e o

    atribulado fechamento patolgico de nosso modo ordinrio

    de vida23;

    ora, se tentando formar uma regra a partir de casos

    particulares, como prprio ao conhecimento emprico

    consideramos que amar algo implica em ficar ligado a isso a

    ponto de nos co-movermos em funo de seus movimentos,

    ento, conclui-se por inferncia racional que para

    proporcionar uma felicidade suprema, contnua e eterna, o

    objeto do amor, ao qual o amante est unido, tambm deve

    possuir essas mesmas caractersticas.

    Mas isso ainda conhecer abstratamente esse objeto, como um algo

    ou uma coisa (aliquid, res) que vem apenas dar suporte aos predicados que

    o precedem. Ainda mais: esses predicados foram descobertos por mera

    oposio a tudo que est dado; o verdadeiro bem ainda um no-bem-

    ordinrio, ao invs de uma presena afirmativa. por isso que o narrador

    relata, ao final do pargrafo 10, num dos momentos mais dramticos da

    narrativa, que:

    Embora (quamvis) percebesse (perciperem) tais [coisas] (haec) com

    23 Cf. TIE 1: a experincia ensinou (experientia docuit) que tudo que frequentemente ocorre (omnia, quae frequenter occurrunt) na vida comum (in communi vita) ftil e vo (vana et futilia esse). Os casos exemplares do 8, acima mencionados, tambm podem ser remetidos ao conhecimento por ouvir dizer.

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  • dossi 72

    muita clareza (adeo clare) pela mente (mente), eu no podia, porm (non poteram tamen), por conta disso (ideo) depor (deponere) toda avareza, prazer e glria (omnem avaritiam, libidinem, atque gloriam)

    Ora, se mais acima foi dito que, dependendo de como se concebesse o

    verdadeiro bem, ele poderia ou no ser adquirido, isso, para alm de

    qualquer trusmo, manifesta agora todas suas as consequncias. Com efeito,

    a chamada doutrina dos modos de percepo24 ensina que o gnero de

    conhecimento racional, que infere a essncia de algo atravs de suas

    propriedades, embora certo, ainda no plenamente capaz de vencer as

    paixes nascidas da experincia. Nesse sentido, so particularmente

    elucidativas as formulaes de outra obra de Espinosa que, como o Tratado

    da Emenda, pertence aos seus primeiros escritos, o Breve Tratado25.

    Resumirei, pois, as formulaes que me parecem mais relevantes para a

    compreenso do ponto ora levantado.

    No Breve Tratado, mais precisamente na Parte II, Cap.4, pargrafos 1-

    3, Espinosa afirma que, embora razo caiba o conhecimento correto do

    bem e do mal, ela se limita, porm, a relacionar-se com o objeto numa

    irredutvel exterioridade. De modo ainda mais detalhado, o pargrafo 2 do

    Captulo 22, da mesma Parte, afirma que: Como tudo o que encontramos

    em ns mesmos tem mais poder sobre ns do que o que vem de fora, segue-

    se sem dificuldade que a razo pode ser causa da destruio das opinies

    que adquirimos por simples testemunho; mas, por isso mesmo, acrescenta

    Espinosa em uma nota a esta frase,

    no podemos vencer, mediante a razo, aquelas [opinies/paixes] que esto em ns em virtude da experincia. Com efeito, essas opinies no so em ns outra coisa seno um gozo e uma unio imediata com algo que julgamos bom, enquanto a razo, ainda que

    24 Cf. TEIXEIRA, L. (2001) e REZENDE, C.N. (2004). Os modos de percepo so: 1) conhecimento por ouvir dizer; 2) conhecimento por experincia vaga; 3) conhecimento por inferncia racional; 4) conhecimento por cincia intuitiva.

    25 Korte Verhandeling em Holands, doravante abreviado KV. A traduo adotada aqui a de Atilano Domnguez (ESPINOSA, 1990). As referncias suficientes para a localizao dos excertos, independentemente da edio usada, seguiro as marcaes internas do texto da KV, indicando a Parte, o Captulo e o pargrafo.

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  • dossi 73

    nos mostre algo que melhor, no nos faz dele gozar. Assim, aquilo de que gozamos interiormente, no pode ser vencido por aquilo de que no gozamos e que est fora de ns, como o que nos mostra a razo. Assim, se essas opinies devem ser superadas, deve existir algo que seja mais poderoso, como ser um gozo ou uma unio imediata com algo que seja melhor conhecido e gozado do que o anterior caso em que a vitria sempre necessria ou maior que o bem desfrutado26.

    A tese geral, comum ao Tratado da Emenda, ao Breve Tratado e

    tambm tica, a de que no basta a um conhecimento ser verdadeiro e

    claro (qualidades do conhecimento racional) para que tenha eficcia sobre

    os afetos. Video meliora proboque, deteriora sequor27 o verso de Ovdio

    que Espinosa mais de uma vez emprega, a fim de resumir essa tese, ligada

    ao tema aristotlico da acrasia ou fraqueza da vontade28. Observando com

    ateno, pode-se ver que, no supracitado pargrafo 10 do Tratado da

    Emenda, essa tese se faz presente, especialmente atravs do uso do advrbio

    ideo (i.e. com isso, por isso, com base nisso, etc.), pois ele tem a funo de

    enfatizar que, se por ventura houver alguma possibilidade de que o amor se

    liberte dos bens ordinrios, no ser simplesmente de uma percepo clara

    26 No ser demasiado indicar tambm o que diz Espinosa imediatamente antes deste trecho citado (KV II, 2, 1): Dado que a razo no tem poder para conduzir-nos felicidade, no nos resta seno investigar se podemos alcan-la mediante a quarta e ltima forma de conhecimento, acrescentando, mais uma vez em nota, que Todas as paixes que lutam contra a boa razo (...) surgem da opinio. Tudo o que nesta bom ou mal, nos mostrado mediante a [razo]. Mas nenhuma destas duas capaz de nos libertar delas. A quarta e ltima forma de conhecimento ser justamente a chamada scientia intuitiva, nos termos da tica. O Tratado da Emenda, no por acaso, iniciar, depois de encerrado o promio, um exame dos modos de percepo, tendo como critrio de avaliao o fim que foi caracterizado pelos pargrafos iniciais.

    27 Vejo as coisas melhores e as aprovo, sigo as piores (Ovdio, Metamorfoses, Livro VII, linha 20).

    28 Em tempo: no defendo que haja lugar para a acrasia no sistema espinosano. Contrariando a teoria socrtica da ao humana, o acrtico o tipo moral aristotlico que no age mal por ignorncia ou erro; ele possui um conhecimento irretocvel do ponto de vista epistmico mas, ao mesmo tempo, uma falha ou interferncia na dinmica volitiva que o conduziria ao. nisso que consiste a acrasia ou fraqueza da vontade. Ora, a recusa espinosana da separao entre intelecto e vontade impede, de sada, a ocorrncia de estrita acrasia. E luz dos j citados excertos de KV, possvel compreender que o conhecimento que permite o fenmeno, de aparncia acrtica, em TIE 10, no irretocvel, visto ser marcado por certa deficincia que Espinosa assinala atravs da ideia de exterioridade. Por fim, explicitamente admitida a existncia de um conhecimento ainda superior (o que basta para atestar que nem tudo, do ponto de vista cognitivo, havia entrado em cena quando da falha prtica).

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    que essa conquista advir de fato: nem por isso (ideo) eu podia depor, etc.

    Na tica, muitas so as passagens concernentes ao tema dos limites

    prticos do conhecimento racional do bem e do mal. No pretendo adentrar

    nos meandros da obra magna, mas penso que cabe mencionar, pelo menos, o

    enunciado da proposio 14 da Parte IV. Completando o que dizia o Breve

    Tratado, tal proposio ajuda a compreender o que se passar na soluo

    que o pargrafo 11 do Tratado da Reforma confere aporia do pargrafo

    10. Diz a proposio 14 de tica IV:

    O conhecimento verdadeiro (Vera cognitio) do bem e do mal (boni et mali) enquanto verdadeiro (quatenus vera) no pode coagir afeto algum (nullum affectum coercere potest) mas apenas (sed tantum) enquanto considerado (quatenus consideratur) como afeto (ut affectus)

    II.4) Os pargrafos 11 a 13At a altura do pargrafo 10, a nica experincia que ocorreu (envolvendo,

    pois, fruio e unio com o objeto) foi, infelizmente, a da vaidade e

    futilidade do modo de vida presidido pela unio com os bens ordinrios: a

    experincia da falta de um legtimo fim por si, a submisso do nimo com a

    atribulada monotonia dessa insuficincia estrutural. De resto, o que se fez,

    do ponto de vista das operaes cognitivas, foi uma pouco segura induo

    emprica que passou dessa experincia particular para uma regra geral

    sobre o funcionamento do amor e uma inferncia racional sobre um

    objeto que portasse propriedades opostas s desses bens disponveis. Se

    deve ser possvel vencer a aporia, de aparncia acrtica, apresentada no

    pargrafo 10, preciso que entre em cena no apenas o xito

    representacional do conhecimento (quatenus vera) mas tambm seu aspecto

    afetivo (quatenus consideratur ut affectus). O modo como o pargrafo 11

    faz isso envolve, num mesmo lance, a passagem para uma apreenso mais

    concreta do verdadeiro bem, o incio da sada do nimo do jugo dos bens

    ordinrios e, nas palavras de Rousset (1992, p 159) nada menos que a

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    revelao da imanncia, que consiste na auto-suficincia da reflexo e vai se

    definir progressivamente como autonomia do intelecto. De minha parte,

    quero acrescentar que vejo nesse pargrafo a matriz para determinar o

    esprito ou carter da doutrina da educao das crianas, que permanece

    como objetivo final de toda a presente anlise. Portanto, cumpre traduzi-lo

    integral e meticulosamente:

    Eu via (videbam) somente isso (Hoc unum), que enquanto a mente (quod, quamdiu mens) versava acerca de tais pensamentos (versabatur circa has cogitationes) [sc. sobre a coisa eterna e infinita de que falava o 10], durante esse tempo (tamdiu) ela se afastava (aversabatur) daqueles (illa) [sc. avareza, prazer e glria], e seriamente pensava (et serio cogitabat) sobre a nova instituio de vida (de novo instituto), o que foi para mim (quod mihi fuit) de grande alento (magno solatio). Pois via (Nam videbam) aqueles males (illa mala) no serem de tal condio (non esse talis conditionis) que no aceitam ceder a remdios (ut nollent cedere remediis). E embora no incio (Et quamvis in initio) esses intervalos fossem raros (haec intervalla essent rara) e durassem (et durarent) por um espao muito exguo de tempo (per admodum exiguum temporis spatium) depois, porm (postquam tamen), que o verdadeiro bem (verum bonum) mais e mais (magis ac magis) se me deu a conhecer (mihi innotuit), estes intervalos (intervalla ista) foram mais longos e frequentes (frequentiora et longiora fuerunt); sobretudo (praesertim) depois que eu vi (postquam vidi) que a aquisio (acquisitionem) de dinheiro ou de prazer e glria (nummorum aut libidinem et gloriam) obsta durante o tempo (obesse tamdiu) [em que; lit.: quando] so buscadas (quamdiu quaeruntur) por si mesmas (propter se), e no como meios para outras coisas (et non tamquam media ad alia). Na verdade, porm, (vero), se so buscadas como meios (Si tamquam media quaeruntur), ento possuiro moderao (modum tunc habebunt), e no obstaro (et minime oberunt), mas, ao contrrio (sed contra), conduziro sobremaneira (multum conducent) ao fim em vista do qual so buscadas (ad finem, propter quem quaeruntur), como mostraremos no devido lugar (ut suo loco ostendemus).

    A fim de explicar como se configura essa nova situao afetiva de

    cores mais alegres, como indica o termo alento (solatio), que mais

    auspicioso do que a mera consolao resignada29 , conveniente comear

    29 Preferi o termo alento a consolao, primeiramente porque o Latim dispe da palavra consolatio, e depois para evitar as cores afetivas, por exemplo, do prmio de consolao, da resignao diante da impotncia, pois no disso que se trata.

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    atentando ao uso dos advrbios quandiu (durante o tempo, enquanto, desde

    que, na medida em que, etc.) e tamdiu (por tanto tempo, nesse nterim,

    desde ento, nessa medida, etc.), que so de procedncia temporal embora

    tambm possuam uso mais puramente condicional. Atravs deles, so

    descritos dois processos que ocorrem no tempo e que possuem uma relao

    de proporo direta entre suas efetuaes: desde que, enquanto e na medida

    em que acontecia efetivamente p (i.e. a mente versava (versabatur) sobre a

    coisa eterna e infinita), tambm acontecia q (i.e. a mente se afastava

    (aversabatur) de sua dinmica ordinria), e quanto mais p, tanto mais q,

    tendendo a uma passagem da intermitncia continuidade. Ora, a considerar

    apenas essa forma de funcionamento, seria lcito suspeitar que estamos

    diante de uma nova distractio, produzida por um novo e mais poderoso

    objeto obsediante: uma alterao, portanto, apenas no tema da obsesso, na

    direo (versabatur/aversabatur) do arrastamento, mas no no tipo de

    instituio da vida que se instaurava. Este seria o caso, por exemplo, do

    asceta, que, em nome de um supremo bem transcendente, extra mundano,

    oposto finitude, nega esta ltima, isola-se da vida social e recusa o mundo.

    Mas no isso que est sendo descrito aqui: a mente no deixava de pensar

    em tudo mais; pelo contrrio, quanto mais a mente perfazia o ato de pensar

    naquela coisa eterna e infinita, tanto mais ela vivia uma abertura alteridade

    e, mais uma vez, quanto mais ela se abria alteridade, mais pensava naquele

    infinito, num crculo virtuoso que progride geometricamente. A

    continuidade a que se tende no , pois, a estril homogeneidade que subjaz

    distractio, mas sim a que se exigia no pargrafo 1: suprema e contnua

    alegria (summa ac continua laetitia). O magis ac magis do pargrafo 11 ,

    portanto, estruturalmente distinto do magis ac magis exemplarmente

    associado honra. O que este pargrafo narra , pois, a experincia vivida

    dessa diferena estrutural, que se exprime na moderao30 com que os bens 30 Literalmente, a expresso do pargrafo 11 : se so buscadas como meios (Si

    tamquam media quaeruntur), ento possuiro modo (modum tunc habebunt). Ora, etimologicamente, modus liga-se justamente s ideias de medida, ajuste, regulagem e maneira. Mediante o advrbio modo, liga-se ideia de condio e s expresses nem mais

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    ordinrios passam a ser desejados quando submetidos potncia de um

    supremo desejo31, supremo precisamente porque, moderador, no precisa ser

    ele prprio moderado, sendo sempre incondicionalmente bom.

    por isso que Espinosa destaca, usando o advrbio praesertim

    (sobretudo), que o acontecimento crucial foi ter visto (postquam vidi) que

    tomar o infinito como incondicionado no leva aos mesmos resultados

    nefastos de tomar o finito como incondicionado. J no se trata mais de

    uma ideia abstrata e negativa acerca do que deveria, por oposio aos bens

    ordinrios, ser o verdadeiro bem, mas sim de uma experincia concreta

    da comunicabilidade do verdadeiro bem. essa experincia concreta que

    altera o quadro afetivo.

    E se Rousset fala aqui de auto-suficincia da reflexo, tal expresso

    me parece aceitvel se considerarmos que ela no pretende contradizer a

    tese espinosana de que o conhecimento verdadeiro, enquanto verdadeiro

    (quatenus vera), no pode coagir afeto algum. O que Rousset parece

    entrever , antes, o que eu chamaria de aspecto performativo da situao. Ou

    seja, para tomar um exemplo profundamente estudado por Espinosa ,

    trata-se de um processo cuja estrutura semelhante do cogito cartesiano,

    acerca do qual Descartes perguntava: Eu sou, eu existo (ego sum, ego

    existo), isso certo (certum est), mas por quanto tempo (sed quandiu)?,

    para ento responder: Ora, durante o tempo (quandiu) em que penso

    (cogito)32, pois a cessao do ato de pensar seria, ipso facto, o

    desaparecimento da existncia a que o ato se refere (qual seja, a sua

    prpria). No cogito cartesiano, a reflexo (o pensamento referindo-se a si

    mesmo e a correlata vivncia mental de que impossvel pensar que no

    estamos pensando enquanto pensamos) s autnoma quando efetuada,

    nem menos, na medida em que, na proporo em que, desde que, somente se. E pelo verbo Modulor, ari, remete a medir, regularizar, estabelecer um ritmo (num contexto musical), movimentar regularmente, etc.

    31 Cf. tica IV, apndice, Cap. 4 (summa hominis felicitas (...) finis ultimus, hoc est, summa cupiditas)

    32 Descartes, Meditaes. 2. Meditao 7. AT VII, p 48, 9-11. Negritos meus.

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    quando performada; em contrapartida, quando performada, ela basta para

    instituir a existncia do objeto em que pensa pois este o prprio ato de

    pensamento e, com isso, torna-se um pensamento necessariamente

    verdadeiro no sentido de, ao corresponder a si mesmo, corresponder a um

    objeto real e atual. Assim tambm, a ideia do verdadeiro bem no possui

    impacto afetivo algum enquanto meramente representativa (i.e. enquanto

    detentora de uma extrnseca relao de correspondncia com seu objeto),

    mas apenas enquanto um ato mental efetivamente performado na durao

    (modus cogitandi, essentia formalis, no jargo escolstico-cartesio-

    espinosano), pois, semelhana do cogito, a vivncia de haver efetivamente

    performado a ideia do verdadeiro bem, ao longo do percurso narrado pelos

    dez pargrafos iniciais, institui a presena de uma vida que j merece ser

    tida por verdadeiramente boa. Usando palavras que retomam o linguajar do

    incio do Tratado da Emenda, pode-se agora reafirmar que o bom

    andamento da descoberta (inventio) isto , o fato de que mais e mais

    (magis ac magis) o verdadeiro bem se me deu a conhecer (mihi innotuit)

    implica a progressiva aquisio (acquisitio) desse mesmo bem.

    Mais ainda: plenamente descoberto, o verdadeiro bem h de revelar-

    se, de certa maneira, desde sempre na posse de quem, de incio, julgava ter

    de procur-lo alhures. Sim, pois, sob a ideia adequada do bem infinito e

    eterno, os bens ordinrios restitudos em sua utilidade, desejados como

    meios ao invs de serem suprimidos tornam-se sobremaneira

    conducentes ao fim (multum conducent ad finem). Ao que vem somar-se

    num argumento que j foi tido por desconcertante a passagem do

    pargrafo 13, segundo a qual tudo aquilo (omne illud) que pode ser meio

    (quod potest esse medium) a que se chegue a (ut eo perveniat) [sc. ao fim

    visado], chama-se (vocatur) verdadeiro bem (verum bonum). Ora, os bens

    ordinrios esto dej la, presentes em ato, disponveis, sendo

    precisamente esta a sua certeza inicial; e agora, mediante a experincia do

    pensamento do infinito e eterno, eles se revelaram conducentes ao fim; logo,

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    so verdadeiros bens; logo, h verdadeiros bens j na posse de quem, de

    incio, julgava ter de renunciar a esses contedos da vida comum. O

    narrador do promio, portanto, fizera muito bem ao considerar inconsulto, l

    no pargrafo 2, simplesmente rejeitar os objetos que povoam a vida comum,

    pois, caso os houvesse rejeitado absolutamente, ter-se-ia privado do nico

    recurso existente em ato para chegar ao fim ltimo almejado, e uma tal

    rejeio o teria lanado no ascetismo. Rejeitar os bens ordinrios

    absolutamente seria, pois, to contrrio conservao de nosso ser quanto

    desej-los absolutamente.

    Finalmente, para explicitar o que j foi tido por desconcertante nesse

    passo e com isso encerrar a anlise dos antecedentes dos pargrafos 14 e

    15 necessrio atentar a uma mudana de registro de discurso operada

    por Espinosa nestes pargrafos 12 e 13, agora em tela. No pargrafo 12, o

    autor, saindo do registro estritamente narrativo que fora usado at ento,

    passa a propor definies do verdadeiro bem e do supremo bem: Aqui,

    apenas direi brevemente (Hic tantum breviter dicam) o que eu entend[o]

    (quid intelligam) por verdadeiro bem (per verum bonum ) e em simultneo

    o que seja o sumo bem (et simul quid sit summum bonum). Muitos

    comentadores notaram essa mudana de registro33; mas o que pde ser

    considerado desconcertante que, ento, torna-se possvel perguntar: por

    que apenas nesta altura que so definidos conceitos to importantes e que

    vieram sendo empregados intensamente no percurso at aqui? O que dizer

    de seu uso at o momento? Alis, nesse mesmo sentido seria possvel

    33 Zweerman (1987, p 80) afirma que se trata da passagem para uma exposio ontolgica do fundamento sobre o qual devem apoiar-se todas as afirmaes sobre o homem e sobre a realizao de sua vida, com o que estou de acordo. Djin (1996, p 30), por exemplo, sustenta que, desde o incio do promio, o uso do narrador em primeira pessoa consiste num recurso atravs do qual o leitor um homem qualquer (the Everyman), conhecedor do pensamento cartesiano, mas que est imerso na dinmica da vida ordinria que o espinosismo visa superar pode ingressar na posio de sujeito das aes narradas, identificando-se nas situaes descritas e sentindo-se implicado no contexto dramtico, de modo a tornar-se mais suscetvel s afirmaes feitas. Mas, na altura do 12, Djin, seguindo Zweerman, diagnostica a presena de um outro uso desse pronome pessoal, que corresponderia ao ponto de vista daquele que j fez o percurso apresentado: the I of the master.

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    protestar que, de fato, houve demasiadas mudanas no valor dos bens

    ordinrios ao longo dessa breve narrativa: de bens certos para bens incertos,

    de bens incertos para males certos e destes, surpreendentemente, para

    verdadeiros bens! Isso parece sugerir uma instabilidade semntica no uso do

    termo verum bonum antes da passagem do discurso a um registro

    definicional.

    Veja-se, como exemplo de tal desconcerto, a leitura desse trecho

    proposta por H.H. Joachim (1958, pp 20-21), segundo a qual a passagem

    dos pargrafos 12 e 13 seria a tal ponto compacta e abrupta que, tomada

    como est posta, dificilmente inteligvel. (...) A exposio breve,

    dogmtica e muito inadequada, alm de, em um aspecto, verbalmente

    inconsistente com o que precede. Tal inconsistncia verbal adviria do fato

    de que, por um lado, do pargrafo 1 ao 11, verum bonum designava o

    objeto da inquirio (o que fazia esperar que Espinosa procedesse

    desenvolvendo sua concepo da coisa eterna e infinita que os pargrafos

    9 e 10 nos exortam a amar); mas, por outro lado, sem que Espinosa

    houvesse advertido que o termo verum bonum seria provisrio, passa, no

    pargrafo 13, a chamar o fim de summum bonum, e de verum bonum os

    meios que a ele conduzem (meios, alis, que acabaram por incluir os males

    que faziam a misria da vida comum!). E, de fato, dito assim, tudo isso

    parece muito inconsistente.

    No entanto, em primeiro lugar, quanto ao uso pr-definicional de

    conceitos chave, preciso responder que, sem pecar contra a ordem das

    razes, as prprias definies tambm possuem uma gnese, sendo, pois,

    no somente pontos de partida mas tambm pontos de chegada, embora de

    processos distintos. So pontos de partida para as demonstraes, mas

    pontos de chegada para um trabalho preliminar chamado historia (de acordo

    com um vocabulrio de matriz baconiana)34. A respeito dessa historia, 34 Confira-se, a propsito, a Carta 37, de Espinosa a Bowmeester. Nela, nosso filsofo

    escreve que, para entender a distino entre imaginao e intelecto puro, bem como as leis de funcionamento deste ltimo, pelo menos o quanto o mtodo exige, no mister conhecer a mente por sua causa primeira, mas o suficiente compor (sufficit concinare)

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    oportuno conferir, muito rapidamente, o que ensina o Captulo VII do

    Tratado Teolgico-Poltico, onde o esquema geral de produo de

    definies apresentado a partir do que h em comum entre a produo das

    definies das coisas naturais e das coisas de que falam as Sagradas

    Escrituras. O mtodo de interpretar a natureza consiste em organizar uma

    histria da natureza, a partir da qual (ex qua), assim como a partir de dados

    certos (utpote ex certis datis), conclumos (concludimus) as definies das

    coisas naturais (rerum naturalium definitiones). Do mesmo modo, o

    mtodo de interpretar as Escrituras consiste em compor sua histria sincera

    (sinceram historiam adornare) e, a partir do que nela se colige, concluir as

    definies desde as quais as dedues sero feitas. Esse procedimento

    empregado porque, assim como a natureza, as Escrituras tambm no

    trazem (Scriptura non tradit) as definies (definitiones) das coisas de que

    falam (rerum de quibus loquitur). No caso da natureza, deve-se partir do

    levantamento de suas diversas aes (ex diversis naturae actionibus); no

    caso das Escrituras, deve-se partir das diversas narraes (ex diversis

    narrationibus) sobre uma mesma coisa ou assunto (de unaquaque re). E no

    caso do promio do Tratado da Emenda: principia-se por uma experincia

    vivida, passa-se a coligir as coisas que os homens comumente estimam

    como supremo bem, faz-se uma reduo destas a trs principais; passa-se a

    um levantamento dos frequentes exemplos de resultados letais nascidos de

    tal estima e, a partir do que se depreende dessa historia de vida anloga

    histria das aes da natureza ou das narraes das Escrituras chega-se

    s definies de verdadeiro bem e supremo bem. Portanto, o uso pr-

    definicional que veio sendo feito dos conceitos de verdadeiro bem e

    supremo bem no esprio, visto que encontrava-se controlado pelas

    regras desse procedimento chamado historia, que Espinosa apresenta e

    justifica nessas outras obras aqui citadas.

    uma pequena histria das percepes (historiolam perceptionum), daquele modo que Verulmio (Bacon) ensina. Sobre o uso do conceito baconiano de histria nesta Carta, no Tratado Teolgico-Poltico, no Tratado da Emenda e em outros textos de Espinosa, confira-se REZENDE (1997 e 2004b).

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  • dossi 82

    Mas, em segundo lugar e independentemente dessas referncias

    externas ao Tratado da Emenda , preciso perceber que este ltimo

    tambm possui em si mesmo as justificativas de sua dmarche. Com efeito,

    no pargrafo 12, Espinosa enuncia formalmente quais sejam as condies

    para que essas definies sejam corretamente inteligidas (ut recte

    intelligatur):

    deve-se notar (notandum est) que bom e mau (quod bonum et malum) no [so] ditos seno relativamente (non nisi respective dicantur), a tal ponto que uma s e mesma coisa (adeo ut una, eademque res) pode ser dita boa e m (possit dici bona et mala) segundo diversas relaes (secundum diversos respectus) e do mesmo modo perfeito e imperfeito (eodem modo ac perfectum, et imperfectum). Pois nada (Nihil enim) considerado em sua natureza (in sua natura spectatum) ser dito perfeito ou imperfeito (perfectum dicetur vel imperfectum); sobretudo (praesertim) depois que tivermos sabido (postquam noverimus) que tudo que se faz (omnia, quae fiunt) se faz (fieri) segundo uma ordem eterna (secundum aeternum ordinem) e segundo leis certas da natureza (et secundum certas naturae leges)

    Ora, no prprio pargrafo de abertura do Tratado da Emenda (1), o

    autor iniciara o promio atribuindo s vivncias, que comeava a narrar, o

    aprendizado de que os objetos e as causas de seus temores nada possuam de

    bom ou mal em si mesmos (nihil neque boni neque mali in se habere), a no

    ser enquanto o nimo fosse por eles movido (nisi quatenus ab iis animus

    movebatur). Essa relatividade do bem e do mal, do perfeito e do imperfeito,

    foi precisamente o que se experimentou ao longo de todo o promio,

    correspondendo ao contedo da histria de vida que antecedeu a elaborao

    de definies. por isso que apenas agora lastreados no s na

    experincia da vaidade e futilidade dos bens ordinrios mas principalmente

    na experincia alentadora do pargrafo 11 os conceitos protagonistas do

    promio podem aceder a um nvel definicional.

    No obstante, o que h de inegavelmente novo no pargrafo 12 a

    tese do determinismo ttico-nomolgico tudo que se faz est

    determinado quanto ordem e s leis de sua gnese , bem como a

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  • dossi 83

    afirmao de que o conhecimento desse determinismo confere fundamento e

    carter necessrio experincia vivida da relatividade do bem e do mal: o

    narrador aprendeu com a experincia que os bens ordinrios no so nem

    bons nem maus por sua natureza, eles so justamente por isso incertos

    em sua natureza e s se tornam certamente maus se forem tomados como

    supremos bens. O que o narrador no sabe por que isso acontece, e tal

    resposta efetivamente s poder ser dada na Mea Philosophia, a filosofia

    plenamente desenvolvida (a tica), para a qual Espinosa destina vrias

    discusses do Tratado da Emenda. Mas uma pessoa que, por ventura, j

    houvesse partido de uma perspectiva filosfica suficientemente conhecedora

    dessa resposta, isto , do universal determinismo ttico-nomolgico, jamais

    duvidaria da relatividade do bem e do mal, do perfeito e do imperfeito35.

    Afinal, como, por hiptese, essa pessoa j aceita que tudo est sujeito s leis

    e ordem da natureza, ento, de sada, necessariamente j admite que nada

    deveria ter ocorrido de modo diferente do que efetivamente ocorreu, nada

    sendo, portanto, ao mesmo tempo, real, de uma parte, e imperfeito ou

    perfeito, mau ou bom, de outra. O narrador no partiu dessa perspectiva

    filosfica, ele chegou a ela atravs da experincia, sendo o promio a

    narrativa em flashback dessa chegada. Portanto, o narrador no precisa da

    tese do determinismo para chegar s definies de verdadeiro e soberano

    bem, visto que elas podem ser elaboradas com base na histria da gnese

    concreta da experincia que culmina no j mencionado alento.

    E que o narrador no estivesse, de sada, de posse da compreenso de

    que tudo se faz conforme a lei e a ordem da natureza, algo que o pargrafo

    13 vem imediatamente justificar: a fraqueza humana (humana imbecillitas)

    no permite seguir essa ordem pelo pensamento, muito embora perceba no

    ser impossvel adquirir uma natureza humana muito mais firme (multo

    firmiorem) do que essa. Surge, assim, um novo incitamento, diverso do

    incitamento obsessivo de busca dos bens ordinrios: o homem incitado 35 H uma analogia aqui com o que diz Espinosa acerca de seu mtodo, defendendo-o

    de uma possvel acusao de circularidade nos 43 e 44 do TIE.

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    (incitatur) a buscar meios que conduzam (ad quaerendum media quae

    ducant) ele prprio (ipsum) a tal perfeio (ad talem perfectionem). E

    ento que so apresentadas as j mencionadas definies de verdadeiro e

    supremo bem, cujos enunciados cumpre agora citar integralmente:

    Tudo aquilo (omne illud) que pode ser meio (quod potest esse medium) para que se chegue a (ut eo perveniat) [sc. tal perfeio] chama-se verdadeiro bem (vocatur verum bonum). Supremo bem, no entanto, (Summum autem bonum) chegar a (est eo pervenire), de modo que ele [i.e. o homem] frua (ut ille fruatur) de tal natureza (tali natura) com outros indivduos (cum aliis individuis), se possvel (si fieri potest). Qual seja, porm, aquela natureza (Quaenam autem illa sit natura) mostraremos em seu devido lugar (ostendemus suo loco) ser, sem dvida (nimirum esse) o conhecimento da unio (cognitionem unionis) que a mente tem (quam mens habet) com a natureza inteira (cum tota natura).

    O que surpreendente ou talvez mais propriamente engenhoso e

    agudo, mas no desconcertante que, portanto, o supremo bem, a

    aquisio de uma natureza humana mais perfeita, justamente aceder a um

    ponto de vista a partir do qual deixa de fazer sentido falar de bem e mal

    e de perfeito e imperfeito, ao menos enquanto estas noes forem

    referidas s prprias coisas em si mesmas consideradas. Uma vez libertos

    dessa reificao do bem e do mal, a felicidade contnua que sempre foi,

    sem inconsistncia verbal alguma, o que a posse do verdadeiro bem havia

    de proporcionar passa a ser possvel a partir de qualquer coisa. O mundo,

    a natureza inteira, com todas as coisas singulares que agora podem ser

    tomadas como verdadeiros bens, a coisa infinita e eterna qual devemos

    nos ligar por amor. A natureza, esta a coisa (res), o objeto ou contedo da

    felicidade36. E s depois de compreendido isso que os predicados que a

    36 Confira-se, no Breve Tratado, o Primeiro Dilogo, que traz como personagens Amor (Liefde), Intelecto (Verstand), Razo (Reede) e Concupiscncia (Begeerlykheid). A personagem Amor, abrindo o dilogo, afirma que sua prpria perfeio depende das trs outras personagens na exata medida em que elas concebem ou compreendem (begrepen) objetos (voorwerp). Amor, ento, lhes pede que, enquanto so potncias cognitivas, digam se conhecem um ser (wezen) sumamente perfeito (oppersten volmaakt), que no possa ser limitado (bepaald) por nenhum outro. solicitao de Amor, Intelecto responde numa breve e nica fala que v ou contempla (aanschouw), como sendo o objeto solicitado, a natureza (Natur) como um todo (als gehee