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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
MOBILIDADE SOCIAL: PARDOS NAS FORÇAS MILITARES DA
CAPITANIA DE SÃO PAULO
(FINAL DO SÉCULO XVIII – INICIO DO SÉCULO XIX)
Curitiba 2007
2
WALDEMAR MARTINS DA SILVA
MOBILIDADE SOCIAL:
PARDOS NAS FORÇAS MILITARES DA CAPITANIA DE SÃO PAULO
( FINAL DO SÉCULO XVII - INÍCIO DO SÉCULO XIX )
Monografia elaborada para obtenção de graduação em História no curso de História da Universidade Federal do Paraná – UFPR, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes - Departamento de História. Orientação do Professor Doutor Carlos Alberto Medeiros Lima.
Curitiba 2007
3
Sumário
Introdução.............................................................................................................5
Livres de cor: dificuldades de integração social...................................................11
Instituições militares: forças de defesa e controle social......................................15
Distribuição das tropas militares na capitania de São Paulo.................................28
Pardos nas forças militares....................................................................................35
Conclusão..............................................................................................................47
Fontes e Bibliografia..............................................................................................49
4
Resumo:
Este trabalho pretende analisar a mobilidade social das pessoas de cor no Brasil colônia, no final do século XVIII e início do século XIX na capitania de São Paulo, através da sua inserção nas forças militares, inserção esta que poderia ser feita de diferentes maneiras: recrutamentos compulsórios ou então por alistamentos voluntários. Trata também da discriminação sofrida por essas pessoas e das tensões e conflitos geradas pelo recrutamento. Palavras chaves: mobilidade social; forças militares; homens de cor.
5
Introdução
O objetivo deste trabalho é analisar as estratégias utilizadas pelos homens
livres de cor nas suas pretensões de se integrar à sociedade colonial e, para autores
como Herbert S. Klein uma dessas estratégias seria o ingresso nas forças militares. As
forças militares, segundo Klein, representariam para esses homens como que uma
“importante avenida de mobilidade social” onde “soldados de cor capacitados, poderiam
chegar a oficiais e, sendo-lhes concedidos os direitos correspondentes, exercer papel
eficaz no governo colonial” 1.
Este trabalho também se baseia no modelo teórico de “San Giminiano” de
Lawrence Stone, modelo este que autores já adaptaram nos estudos que realizaram a
respeito do Brasil colonial. Este modelo teórico diz que:
“- De uma grande base populacional da qual se erguem como torres uma série de
hierarquias econômicas e sociais mais ou menos independentes, fundamentadas na terra,
Igreja, lei, comércio e governo, descreve a sociedade da época no Brasil. Entretanto, essas
múltiplas hierarquias eram jurídica e teoricamente concebidas nos limites e gradações da
sociedade por ordens, com sua divisão fundamental entre nobres e plebeus. O individuo
poderia ascender em uma dessas torres, mas ao alcançar determinada altura haveria uma
forte tendência a conciliar sua posição e legitimar o status mais elevado com outros
atributos tradicionais e o estilo de vida da nobreza, são cruciais para a compreensão do
caráter do Brasil colonial, um lugar onde uma pessoa de posses e origens das mais
modestas dá-se ares de fidalgo”.2
Partindo desta teoria haveria diversas maneiras de ascensão na sociedade para a
população da colônia; uma delas poderia se dar através da inclusão destes homens livres
de cor nas forças militares, onde, dependendo de suas qualidades pessoais poderiam
galgar postos na hierarquia e a partir daí conquistar melhores posições na sociedade
através das promoções a postos mais elevados nas forças armadas da capitania.
A possibilidade para esta inclusão estaria aberta com a constituição de
companhias e regimentos de homens de cor criadas pelos administradores portugueses
para fazerem parte das forças militares, com vistas à defesa armada da colônia contra a
1 KLEIN, Herbert S. Os homens livres de cor na sociedade escravista Brasileira. Revista DADOS. Instituto Universitário de Pesquisas do RJ. 1978. Pág 04. 2 SCWARTZ, Stuart B. Segredos Internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. Trad. Laura Teixeira Motta. Ed. Cia. das Letras. 1988. São Paulo. SP. Pág. 211.
6
possibilidade, sempre presente nessa época, de uma agressão por parte dos espanhóis e
também no combate a quilombos, índios hostis e na captura de escravos fugidos.
A presença dos homens de cor nas forças militares nem sempre estava ligada a
tropas específicas, essas pessoas podiam prestar serviço em qualquer tipo de tropa das
existentes na colônia, pois, dependendo da necessidade eram incorporados até nas
tropas de brancos.
Essas pessoas livres de cor na maioria das vezes eram tratadas como “pardos”,
termo este que representava, segundo Sheila Siqueira de Castro Faria3, uma espécie de
condição social, os forros sempre foram referidos como tal, assim como seus filhos,
designados, geralmente, de pardos livres. Paulatinamente, no decorrer da segunda
metade do século XIX, passou a indicar uma cor, resultado da mestiçagem. Entre
escravos, no século XVIII, pardo era a terceira geração de africanos. Pais “pretos”,
indicativo de origem africana, tinham filhos “crioulos”, que se tornavam por sua vez,
pais de “pardos”.
Quando libertos, africanos, designados “pretos forros” tinham filhos (nascidos
livres) indicados já como “pardos”, muitas vezes seguido de “forro”, apesar destes
filhos nunca terem sido escravos. Praticamente não havia indicação de “preto livre”;
“preto” estava, pois, reservado ao mundo dos escravos, independente da cor do
indivíduo.
No final do século XVIII e inicio do século XIX os classificados como “pardos”
representavam em São Paulo um terço da população total e também um terço dos livres;
os identificados como negros perfaziam um quinto dos habitantes, pela sua significativa
participação como escravos, porém, sua participação na população livre era muito
pequena. No litoral ocorria a menor participação dos brancos, pela alta proporção de
africanos e seus descendentes entre os livres e o expressivo peso dos escravos na
população. Em Santos apenas metade dos livres eram brancos e como o percentual de
escravos atingia quase metade dos habitantes, ampliava-se o peso das pessoas com
ascendência africanas para aproximadamente dois terços da população. No vale do
Paraíba ocorria a maior proporção de brancos, tanto entre os livres como na população
total. Os resultados das demais regiões situam-se entre os dois extremos. Na cidade de
São Paulo e em Curitiba, os brancos representavam aproximadamente dois terços dos
3 FARIA, Sheila Siqueira de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial (Sudeste, século XVIII) Tese apresentada para obtenção ao grau de Doutor na UFF. Niterói. 1994. Pág 288
7
livres. Como na capital havia maior proporção de escravos, o peso dos brancos na
população mostrava-se inferior ao observado em Curitiba; nesta última vila, os brancos
superavam metade da população total. 4 A população da Vila de Castro também não
fugia muito dos padrões da própria vila de Curitiba.
Para Carlos Alberto Lima5 essa grande população de livres pobres que se
formou na colônia buscava com freqüência a fronteira agrícola como uma maneira de
estabelecimento autônomo através do campesinato, ao que ele denomina de
“campesinato negro” e sugere também que a formação dos terços de pardos poderia ser
resultado da grande difusão desse campesinato. Ainda segundo ele o alistamento
mostraria, inclusive, que esse processo de formação do “campesinato negro” era tão
difuso e considerado natural que o estado metropolitano chegou a encontrar uma
utilidade política e militar para ele.
Outro trabalho que também faz referência à formação destas unidades de
homens pardos é o que foi desenvolvido por Francis Albert Cotta, doutorando em
História pela FAFIDH/UFMG; neste trabalho sobre os Terços de Minas Gerais ele trata
da organização dos referidos Terços, bem como a tendência do governo português de
homogeneizar a multiplicidade de indivíduos e coloca-los sob um mesmo rótulo onde o
homem branco, o negro, o liberto, o cabra e o gentio eram denominados vadios. Trata
também da intenção do governo português de transformar: “o peso inútil da terra em
elemento útil ao Estado”6.
Hendrick Kray em um artigo publicado na Revista Brasileira de História
também faz referências às vantagens encontradas não só pelos homens livres de cor,
mas também por escravos; neste artigo ele fala a respeito do recrutamento de escravos
para as guerras de Independência da Bahia e dos ministros do governo que ordenaram a
autoridades locais que fosse aceita a “justa recompensa e libertarem os seus escravos;
um destes, Manoel Rufino Gomes, era sargento em 1935”7. Segundo ele, no caso dos
escravos o alistamento a essas forças poderia representar até a liberdade.
4 LUNA, Francisco Vidal&KEIN, Herbert S. Características da população em São Paulo no inicio do século XIX. População e Família. USP-FFLCH. São Paulo. 2000. 5 LIMA, Carlos A. M. Trabalho, Negócios e Escravidão. Artífices na cidade do Rio de Janeiro ( c. 1790 – c. 1808) Dissertação de Mestrado apresentada na UFRJ. 1993. 6 COTTA, Francis Albert. Os Terços de homens Pardos e Pretos Libertos: mobilidade social via postos militares na Minas do século XVIII. MNEME – Revista Humanidades – UFRN – CERES. Pág 01 7 Revista Brasileira de História. Número 22, Vol. 43. São Paulo, 2002. Pág 01.
8
Alguns estudiosos clássicos afirmam que não existia mobilidade social na
colônia e isso fica claro na descrição que Caio Prado Júnior faz da administração
militar; segundo ele:
“o recrutamento para as tropas durante a fase colonial e ainda durante o império
constituiu um grande espantalho para a população, pois, não havia nenhum critério
que norteasse esse procedimento, que era conduzido de acordo com as necessidades
do momento e do arbítrio das autoridades, o que explicaria a fuga da população ao
menor sinal de recrutamento”8.
Quando eram fixadas as necessidades os recrutadores saiam em busca das
pessoas para preencherem estes quadros e ninguém estava livre de ser recrutado, aquele
que fosse considerado apto era levado sem maiores explicações.
Roberto Guedes Ferreira, nos estudos que realizou a respeito da população livre
de cor na Vila de Porto Feliz entende que a mobilidade social entre as pessoas livres de
cor se dava por outros caminhos, que não a via militar, uma vez que aqueles que já
estavam estabelecidos em outro ofício lançavam mão de todos os meios possíveis para
se livrar desse recrutamento, recorrendo às autoridades, usando suas relações pessoais,
enfim, de todos os meios a seu alcance na tentativa de convence-las de que seriam mais
úteis para a sociedade desenvolvendo seus ofícios, do que engajados nas tropas.
Em contrapartida, Francis Albert Cotta vê no seu trabalho sobre os pardos nas
Minas Gerais do século XVIII, essa possibilidade, e o que prova isso, segundo ele, é que
se encontram no Rol dos Confessos de São José, por exemplo, diversas referências a
oficiais pardos compondo as forças militares dessa capitania.
Esta possibilidade aparece também em documentos que tratam das tropas
militares da colônia, sediadas na capitania de São Pedro, na correspondência trocada
pelo Comandante das tropas com o Governador falando sobre a conduta dos oficiais sob
o seu comando e de quais as virtudes se esperavam deles. Nesta correspondência se
percebe que dependendo do desempenho desses militares, os mesmos poderiam
ascender a postos mais elevados, o que caracterizaria, a meu ver, um tipo de ascensão
social, pois, mesmo sendo inserido nos postos subalternos, conforme seu desempenho
pessoal os militares poderiam ser recomendados a promoções aos postos mais elevados
da hierarquia; é claro que além desses aspectos também havia outros que se levavam em
8 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 12ª Edição. Ed. Brasiliense. São Paulo, 1972. pág 311.
9
conta: suas posses e suas relações sociais também tinham influência no momento da
proposta de promoção. Quando o candidato à promoção era alguém de boa condição
financeira a cor da sua pele não era considerada com o mesmo cuidado de quando se
tratava de pessoa que não possuía muitos bens.
Para a coroa havia interesse de que os homens de boas condições financeiras
ocupassem postos mais elevados nas forças militares, mesmo porque alguns deles, para
usufruir dos privilégios concedidos pelo Estado português aos oficiais milicianos
chegavam a mobilizar companhias inteiras com seus próprios recursos.
Nestes documentos constam as referências à pessoa do Tenente Silvério de
Souza Prátis, integrante das tropas coloniais prestando serviço na capitania de São
Pedro, onde se declaravam suas qualidades, não só de âmbito militar como suas virtudes
civis:
“Cazado – 14 anos e um mês e 21 dias de serviço – Tenente – 4º Tenente do
Regimento – sérvio na campanha de 1801 de Serro Largo. Tem desembaraço e
préstimo para qualquer servissos das Praça, de Companhia e de Esquadroens. He
civil, obediente e tem natureza para governar a Tropa. Tem mostrado ter economia,
he aciado, verdadeiro e cumpri com as obrigações da Religiam.
Julgo hábil para continuar com utilidade do servisso tanto no posto como em outro
qualquer que se lhe confira.”9
Este tipo de observação com que os militares eram avaliados para uma possível
promoção nos remete a pensar que milícias e auxiliares parecem ser instituições
patrimoniais em virtude do tipo de atributos que se consideravam como “cumprir com
as obrigações da religião” e “ter economia”.
Outros autores que também estarão presentes neste trabalho de pesquisa são
Antonio Manuel de Mello Castro e Mendonça que é uma das fontes utilizadas, e Nanci
Leonzo de onde vou me basear par obter dados mais gerais a respeito das tropas
militares da época colonial, pois estes autores também trataram da organização militar
da capitania de São Paulo na época abrangida pela pesquisa.
A documentação que pretendo utilizar nesta pesquisa que tem como objetivo os
Terços de Pardos na capitania de São Paulo nas décadas finais do século XVIII e
9 REVISTA DO ARQUIVO PÚBLICO DO Rio Grande do Sul. Oficinas Gráficas “A Federação”, Porto Alegre. 1921, Pág. 53
10
iniciais do século XIX encontra-se na correspondência oficial do governo da capitania
de São Paulo desse período.
Essa correspondência está publicada nos “Documentos Interessantes” para a
História e Costumes de São Paulo; Edições do Arquivo do Estado de São Paulo e
Mendonça, Antonio Manuel de Mello e Castro e. Memória econômico-política da
capitania de São Paulo, in Anais do Museu Paulista. Tomo XV, 1961. Esta obra foi
escrita durante o governo de Antonio Manuel de Mello Castro e Mendonça no período
que vai de 1797 a 1802 e trata da administração da capitania em todas as áreas com
ênfase na questão econômica
As informações contidas nesta correspondência se encontram estruturadas de
diversas maneiras, principalmente ofícios dos governadores da capitania a autoridades a
ele subordinadas; carta; registros, avisos, portarias, ordens das mais variadas,
transcrições de ofícios recebidos e Cartas Régias; pretendo usar também informações
fragmentárias retiradas de listas nominativas de habitantes dos anos de 1804, 1808,
1812, 1816, 1820, 1824 e 1829 da Vila de Castro que se encontram em cópias
microfilmadas pertencentes ao DHEIS/UFPR.
11
Livres de Cor: dificuldade de integração social
A integração dos libertos de origem africana no Brasil colônia e a sua ascensão
social sempre foram dificultadas pela coroa portuguesa através de políticas
discriminatórias com relação aos libertos e descendentes de escravos de origem
africana; o que não acontecia de maneira tão radical com ameríndios e seus
descendentes e também eventuais filhos de ameríndios com brancos que eram objeto de
alguma proteção da coroa portuguesa através de numerosas leis e memorandos editados
pela Corte; em contrapartida negros e mulatos sempre foram objeto de discriminação
ficando sujeitos aos mais diversos atos discriminatórios tanto visíveis como
dissimulados por parte tanto das leis como de particulares.
Numa situação destas eram visíveis às dificuldades que negros e libertos
enfrentavam para se inserir na sociedade colonial, limitando seu papel na formação
social da América portuguesa e, segundo Russel-Wood “só duas pessoas de origem
racial mestiça ocuparam cargos elevados no governo ou numa das ordens religiosas.
Foram o líder guerrilheiro João Fernandes Vieira (morto em 1861) e o jesuíta Antonio
Vieira(1608-97)”10.
A discriminação ficava evidente em leis e regulamentos que na maioria das
vezes não distinguiam com clareza escravos de libertos; essa descriminação ficava clara
nos regulamentos relativos ao uso de armas, onde negros, mulatos, índios carijós ou
mestiços, escravos ou livres eram proibidos “de portar espadas ou arma de fogo, sob
pena de açoitamento público no pelourinho”11. Essa lei só não se aplicava a soldados de
cor quando no cumprimento dos seus deveres e eram passíveis de relaxamento quando
se estivesse vivendo circunstâncias especiais; segundo reclamações de alguns senhores
esta lei era responsável pela impunidade desfrutada por negros fugidos e quilombolas
porque ela impedia que capitães-do-mato e seus bandos, que na maioria das vezes eram
pessoas de cor, pudessem andar armados.
Também a negros e mulatos era vedado o uso de certos tipos de roupa: existia a
proibição do uso de tecidos como a seda, veludo e ouro nas suas vestes de uso pessoal;
existia a alegação de que os usos luxuosos dos costumes angolanos tinham uma
influência perniciosa na colônia e foram objeto de censura em um “decreto com força de
10 A. J. R. Russell-Wood. Escravos e Libertos no Brasil Colonial. Ed. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 2005. Pág 115. 11 Idem pág. 107
12
lei de 5 de outubro de 1742, que reduzia severamente o uso de seda, veludo, ouro e prata
em roupas pessoais e em ocasiões como funerais”.12
Outra lei de 1749 pretendia não só restringir a ostentação das vestimentas,
limitando o uso da prata e do ouro no mobiliário, na decoração e nas carruagens como
continha uma cláusula que tratava especificamente ao uso da roupa por negros e
mulatos, na tentativa de evitar que eles se vestissem como gente branca; aqueles que
descumprissem a lei poderiam ter confiscado o artigo proibido, ser multado ou açoitado
se não pudesse pagar a multa e numa segunda transgressão corriam o risco de serem
mandados para o exílio.
Negros e mulatos também eram discriminados na aplicação da justiça onde se
observavam as mais variadas arbitrariedades promovidas pelas autoridades encarregadas
da sua aplicação, havia conjuntos de leis que se aplicavam aos brancos e outras que só
atingiam as pessoas de cor, isto é, por um mesmo crime havia punições diferentes
dependendo se o infrator fosse branco ou de ascendência africana. Era freqüente que os
juízes e funcionários do governo responsáveis pelo cumprimento das leis nem sequer
exigirem provas para condenar alguém que tivesse descendência africana.
Os serviços públicos na colônia independentemente se fossem da
municipalidade, do judiciário, os serviços da Igreja e as ordens religiosas eram fechados
a qualquer negro ou mulato; as pessoas livres de cor eram as mais afetadas por estas
regras do que os escravos porque estes não poderiam mesmo aspirar a nenhum cargo.
Para que se pudesse concorrer a qualquer cargo público na colônia era exigida uma
declaração de pureza de sangue aos candidatos o que demandava diversas investigações
e testemunhos, não só na colônia como, às vezes, até em Portugal; se o candidato fosse
casado sua esposa também era investigada.
A partir de 1642 o Conselho Ultramarinho de Lisboa formulou todas as leis
para o Brasil, África e Ásia; porém, os conselheiros na maioria das vezes não
conheciam os trópicos e os governadores tinham que modificar e interpretar a letra das
leis para adaptá-las a situação local. No Brasil colônia a escassez de brancos,
principalmente nas regiões interioranas, obrigava com que os governadores fizessem
vista grossa às características das origens negras de alguns candidatos a cargos públicos,
contanto que essas características não fossem muito acentuadas, principalmente a cor da
pele. Naturalmente que esta intolerância variava de lugar para lugar, dependendo das
12 A. J. R. Russell-Wood. Escravos e Libertos no Brasil Colonial. Ed. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2005. Pág 108
13
circunstâncias e da importância do cargo a ser ocupado. Em algumas vilas de Minas
Gerais a falta de brancos fez com que fossem nomeados para o cargo de vereador
diversos mulatos, como foi o caso de Mariana, depois da concessão do título municipal
aos antigos acampamentos de mineração aos quais a coroa concedeu essa condição.
Essas concessões locais também se estendiam aos cargos militares e em 1801 a
nomeação do cadete Felippe Carneiro de Bourbon que havia sido recomendada pelo
governador da Bahia, D. Fernando José Portugal, foi sugerida pelo secretário de Estado
que fosse revogada depois que se descobriu que o referido cadete era filho de um ex-
alfaiate pardo; isto somente não foi possível porque a opinião do príncipe regente era
que já era tarde demais para que a promoção fosse revogada, porém, este caso deveria
servir de exemplo para que as investigações fossem mais aprofundadas no futuro, aos
próximos candidatos a postos militares.
Em 1806, o conde da Ponte queixou-se de que, se houvesse o cumprimento de
que a exigência de que os regimentos de infantaria da tropa de linha fossem formados
por brancos, seria impossível manter seu efetivo total por causa da escassez de
potenciais soldados brancos. O governador informou ao príncipe regente que no
passado fora dada maior prioridade à preparação militar que à origem étnica dos futuros
infantes, e por isso tinham sido alistados como soldados indivíduos de “qualidades
escuras” e esse desleixo também se aplicavam aos regimentos das milícias.
Esta questão das nomeações para cargos públicos e do papel do negro e do
mulato livres no serviço público foi resumida por Gomes Freire de Andrade
(governador do Rio de Janeiro de 1733 a 1763 e de Minas Gerais de 1735 a 1763) e
Henry Koster na sua visita ao Brasil no início do século XIX onde o primeiro observou
que “a riqueza, em vez da cor, era o principal critério para os cargos públicos
municipais. O segundo contou que perguntara a um mulato se o capitão-mor do local
era também mulato e recebeu como resposta: ‘ele era, mas não é mais’. Ao lhe pedir
explicações, o informante acrescentou: ‘E pode lá um capitão-mor ser mulato’?” 13
Pelo que se pode observar as pessoas de cor no Brasil colônia sofreram toda a
sorte de discriminação e nas forças militares isso não era diferente: a discriminação
partia tanto das próprias autoridades militares quanto dos seus próprios pares, militares
brancos, que se recusavam a conviver com militares de cor, servindo nas mesmas
13A. J. R. Russell-Wood. Escravos e Libertos no Brasil Colonial. Ed. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2005. Pág 114
14
unidades. Não admitiam a atribuição de prestígio a essas pessoas e a conseqüente
ascensão delas aos postos mais elevados da hierarquia dentro das instituições militares.
Apesar de toda a discriminação a que estavam submetidos, registros encontrados
indicam que algumas dessas pessoas de cor conseguiram atingir postos mais elevados
na hierarquia militar, seja pela sua competência, suas posses ou seus contatos pessoais
na sociedade.
Os próprios registros de ordens discriminatórias emanadas das autoridades são as
provas de que essas pessoas estavam alcançando sucesso nas suas pretensões, pois, se
assim não fosse, não haveria necessidade de ordens procurando tentando impedi-las de
conseguir seus intentos.
15
Instituições militares: forças de defesa e controle social
Portugal sempre recorreu à organização de instituições militares gratuitas no
período colonial com a intenção de diminuir as despesas com a manutenção de corpos
militares regulares e também com o propósito de integrar o povoador nos seus desígnios
orientados para questões de natureza administrativas, dando a estes, as funções fiscais,
policiais e defensivas quando houvesse necessidade; pois, Milícias e Ordenanças eram
auxiliares das tropas de primeira linha. Suas funções policiais estavam ligadas à
manutenção da ordem pública, atuando na repressão aos quilombos, aos índios
desordeiros como os carijós, aos vadios e facínoras.
No Brasil colônia a administração era basicamente militar onde todos os homens
na idade entre dezesseis e sessenta anos estavam incluídos nas tropas de Linha, nas
Milícias ou nas Ordenanças. Para este propósito se destacavam as Milícias onde todos
os moradores eram alistados “sem exceção de nobres, plebeus, brancos, mestiços,
pretos, ingênuos e libertos” 14.
Com as reformas levadas a efeito pelo Marques de Pombal e a conseqüente
expulsão dos padres jesuítas dos domínios portugueses, até então os grandes
responsáveis pela instrução e educação dos coloniais, o papel das instituições militares
ganhou nova impulsão, pois, essas instituições passaram a ser o instrumento principal
da metrópole para o controle social da população.
A estrutura da organização militar no Brasil colônia reflete, inicialmente, a
transposição do modelo ibérico para a América Portuguesa. O modelo organizacional
militar luso-brasileiro seria formado pelo tripé: Tropa Regular, Regimentos Auxiliares
ou Milícias e Ordenanças. No período pombalino, a política defensiva visava
estabelecer um sistema militar que articulasse harmonicamente esses três tipos de
tropas. A partir da década de 1760, o Rio de Janeiro passou a ser o centro de gravidade
do dispositivo militar colonial. A filosofia administrativa que presidiu as ações dos vice-
reis e governadores estaria pautada na segurança e defesa das capitanias, na
racionalização administrativa e num eficiente sistema militar que prevenisse ataques
externos.
A Tropa Paga, Regular ou de Primeira Linha, recebia soldo, fardamento,
armamento, farinha, azeite, capim, cavalos e assistência hospitalar. As tropas auxiliares
formavam uma segunda instancia. Teoricamente tinham como missão atuar no caso de 14 LEONZO, Nanci. Nova História da Expansão Portuguesa – O Império Luso-brasileiro 1750-1822. Ed. Estampa. 1986. Vol III. Pág. 325.
16
invasões externas, mas na prática realizavam diversas diligências no âmbito da
capitania. Tais tropas eram compostas pelos Regimentos Auxiliares, que poderiam ser
Regimentos de Cavalaria de Nobreza e Regimento de Cavalaria Comum. Nos
regimentos de cavalaria era considerado idôneo para o alistamento todo o homem
branco ou tido como tal, que possuísse cavalo do seu andar, e um escravo que lhe
tratasse do sustento. No caso de comprovado o empobrecimento do militar de cavalaria
procedia-se, imediatamente, a sua transferência para a infantaria. Por sua vez, os
Regimentos de Infantaria congregavam em corpos separados, homens brancos, pardos e
negros libertos. Posteriormente, os Auxiliares foram transformados em Milícias ou
Regimentos Milicianos.
Formalmente, a idade dos soldados poderia variar entre 16 e 60 anos. Os
auxiliares não recebiam soldo, com exceção do Sargento Mor e do Ajudante,
equipamentos ou armamentos. No caso dos regimentos de Infantaria ou Cavalaria, o
posto mais alto era o de Coronel, seguido do Tenente Coronel, do Sargento-mor, do
Ajudante, dos Capitães, dos Tenentes e dos Alferes. Somente estes oficiais recebiam
Carta Patente. Os demais (sargento, furriel, cabo-de-esquadra, anspessada e soldado)
não eram considerados oficiais. As promoções eram obtidas em virtude da conjugação
dos serviços prestados à Coroa e da inserção dos futuros patenteados em redes
clientelares.15
Além dos oficiais do quadro ordinário, havia postos extraordinários: Oficiais
Agregados e Oficiais Graduados. O posto de Oficial Agregado era obtido por patente
comprada e era puramente “honorífica”, pois o oficial não exercia nenhum cargo. Da
mesma forma, o Oficial Graduado era aquele pertencente ao quadro ordinário que
recebia uma promoção “honorífica”, sem maiores efeitos práticos, já que continuava
ocupando os mesmos cargos e, possivelmente, recebendo o mesmo soldo.
Em resumo, a diferença principal entre as tropas é que as tropas de “primeira
linha” se destinavam defender o território contra inimigos externos e podiam ser
deslocadas para o exterior, em caso de guerra; a tropa de “segunda linha” tinha a missão
de garantir a segurança interna do território e em princípio funcionavam como reserva
da primeira linha, quando mobilizadas para a guerra. As tropas de “terceira linha” eram
responsáveis pela segurança local e não deviam ser deslocadas para fora de sua
jurisdição.
15COTTA, Francis Albert. Os Terços de Homens Pardos, Pretos e Libertos: mobilidade social via postos militares na Minas do século XVIII. MNEME – Revista Humanidades –UFRN – CERES. Pag 02
17
Na América Portuguesa esta separação entre os diversos tipos de tropas
militares nunca ficou bem claro e, a respeito dessa situação pode se ter uma idéia
através da seguinte transcrição:
“Desde a creação dos ditos corpos auxiliares, não se havia mais ouvido fallar em
ordenanças, porque os capitaens more, que então existião, havião sido substituídos
pelos mestres de campo; porem de 1795 em diante pouco mais ou menos appareccêo
no Maranhão Manoel Jozé Avelino, irmão do secretario do governo, provido nesse
posto por S.A.R. e com farda do regimento de linha, e algumas vezes nos dias
públicos, com farda de coronel da primeira plana da corte. Sahindo a regulação da
tropa, pouco tempo antes da retirada do mesmo Senhor, para a sua nova corte, que
determinava as devizas para cada patente; e sendo os capitanes mores igualados aos
tenentes coronéis, mudou o dito capitão mor seu uniforme para o do regimento de
linha desta capitania, para cujo destricto era a sua patente.” 16
O contingente das Milícias sempre foi superior aos efetivos das forças
regulares ou de linha e um dos principais motivos para que isto acontecesse era que as
tropas regulares ou pagas deveriam se integradas somente por homens brancos, robustos
e de boa aparência, solteiros, sem compromissos nenhum, na flor da idade e de bom
talhe, acostumados aos trabalhos do campo; deveriam ter também propósitos de honra,
não serem efeminados e nem possuir vícios, o que por si só já era suficiente para reduzir
o universo de onde seriam recrutados, considerando-se que na época a população de
brancos na colônia era reduzida.
Um oficio do governador da capitania Jozé Antonio da Franca Horta a um
militar responsável pelo recrutamento esclarece a posição que as autoridades tinham a
respeito do recrutamento para as tropas de linha:
“Para a Tente. Corel. Je. Pedro Galvão de Moura: - Sendo-me prezente, q.’ as
recrutas q.’ lhe enviou o Cap. Mor da Villa de Concom. São quazi negros, q.’ Vmce
pr. isso se acha perplexo sobre assentar-lhes praça ou não, sou a dizer-lhe q.’ se
forem taes q.’ não devão servir em hum regimto. de homens brancos, Vmce os torne
a remetter ao do. Cap mor, fazendo-lhe ver da minha parte q.’ Eu mando recrutar pa.
16 GAIOSO, Raimundo José de Sousa. Compêndio Histórico-político dos Princípios da Lavoura do Maranhão. Ed. Livros do Mundo Inteiro. Rio de Janeiro. RJ. Pág 157-158.
18
a tropa de linha, q.’ se compõem de homês brancos, e qdo muito de alguns pardos
vistas as atuaes percizoens, e q.’ assim mande recrutas de homens brancos...”17
A instrução militar dada por Martinho de Melo e Castro, em 14 de Janeiro de
1775, ao Capitão-General Martim Lopes de Saldanha, explicitava a posição e as funções
dessas tropas:
“Essas forças, porém, devendo consistir em tropas regulares e auxiliares; não é
permitido às circunstâncias de cada Capitania que haja das primeiras mais do que o
número proporcionado à capacidade e situação dela; porque de outra sorte seria
converter um país que só deve constar de colonos e cultivadores: é por conseqüência
indispensavelmente necessário que as segundas, isto é, os corpos auxiliares formem a
principal defesa das mesmas Capitanias; porque os habitantes, de que se compõem os
mesmos corpos são os que em tempo de paz cultivam as terras, criam os gados e
enriquecem o país com o seu trabalho e indústria, e em tempo de guerra são os que
com as armas na mão defendem os seus bens, as suas casas e as suas famílias das
hostilidades e invasões inimigas.”18
Para uma maior eficácia no controle social os postos mais elevados das Milícias
eram entregues às pessoas mais ricas e, entre outros, o motivo principal era por que a
elas interessava sobremaneira a sobrevivência do regime colonial. Estes oficiais
milicianos desfrutavam de diversos privilégios dados por especial concessão regia
concedida por volta de 1765 que não eram desfrutados pelos seus iguais de armas
estabelecidos em Portugal. Tendo em vista os inúmeros privilégios, imunidades e
prestígio social, estes cargos foram sempre preenchidos com facilidade pela coroa
portuguesa; outro fato que se deve destacar é que o miliciano deveria, por seus próprios
meios arcar com as despesas para prover o seu armamento pessoal, sendo que esta era
outra razão que excluía grande parte da população de ocupar estes postos.
Para a ocupação destes postos, além do que foi dito acima, contava também as
contribuições e donativos feitos por estas pessoas para obras da coroa como se vê nas
promoções constantes do Avizo de 04 de novembro de 1779, do governador da
capitania:
17 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edições do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Vol. 58 Pág. 43. 18 WESTPHALEN, Cecília Maria. A Milícia na Comarca de Paranaguá e Curitiba. Revista do SBPH. Nº 16. 1999.
19
-“promovi por commissão em Postos Aggregados aos differentes Corpos Melicianos
desta Capitania os Officiaes constantes da Proposta que acompanha este officio os
quaes alem de terem as circunstancias necessárias para servirem dignamente os
mesmos postos, e se lhes conferir a honra delles ainda augmentarão o seu
merecimento com as contribuições, e voluntários donativos pª a continuação da
importante obra do Hospital Militar e Jardim Botânico desta cidade...”19
Gozando de todos estes privilégios e protegidos por cargos administrativos que
lhes davam prestígio e autoridade, diversos foram os casos de abuso de poder
perpetrados por oficiais milicianos contra o resto da população. As Companhias de
Ordenanças funcionavam como fonte de recrutamento para suprimento das fileiras das
tropas milicianas e sendo assim aqueles que, depois de cumprirem seu tempo de serviço
nas tropas regulares e retornarem aos seus próprios domicílios deveriam ser alistados
nas tropas milicianas; devendo ser também estes, auxiliares na instrução das pessoas
residentes no seu distrito “que por falta de meios não o podiam conseguir d’outra
sorte”20.
Em razão disso era recomendado que na escolha das pessoas para preenchimento
dos postos de oficiais das tropas milicianas fosse dada a preferência aqueles que já
haviam servido nas tropas regulares por algum tempo em virtude da experiência militar
adquirida durante o tempo que haviam permanecido no serviço dessas tropas; outro
detalhe que vale ressaltar é que para o preenchimento dos postos de oficiais superiores
das Milícias só concorriam os portugueses.
Em meados século XVIII, sob a influência das reformas militares do Conde de
Lippe e dos conflitos contra os espanhóis no sul da América Portuguesa, os corpos
auxiliares foram reorganizados e a Carta Régia que tratava do assunto esclarecia que
“todos os vassalos militares dos corpos auxiliares possuíssem, a sua custa, espadas e
armas de um mesmo calibre.”21
Esta reestruturação das forças militares ocorridas em 1766 foi um dos grandes
marcos das milícias formadas por negros e pardos na América Portuguesa e elas
surgiram da necessidade de reforçar os efetivos militares da colônia em função da
19 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edições do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Vol 30. Pág 199 20 LEONZO, Nanci. As Companhias de Ordenança na Capitania de São Paulo. Coleção Museu Paulista. Série de História . Vol 6. Ed. Fundo de Pesquisa do Museu Paulista- USP. São Paulo, 1997. pág 146 21 COTTA, Francis Albert. Fragmentos da História Militar de Minas Gerais: História e Historiografia. UFMG. Pág 35
20
ameaça espanhola que se verificava principalmente nas capitanias situadas mais ao sul.
A partir desta reestruturação das forças militares a reunião das companhias auxiliares de
infantaria de homens pardos e pretos libertos receberia a designação de “terço” 22 e o
seu comando seria do mestre-de-campo; quando uma destas companhias, por
especificidade da missão a desempenhar ou pela distância em que se encontrava, não
pudesse ser reunida ao terço, receberia a denominação de companhia franca.
O comando das diversas companhias de homens pardos ou de pretos libertos era
exercido por um capitão-mor, homem branco, poderoso e de considerável cabedal
econômico. Em cada companhia haveria um capitão e um alferes, responsáveis pela
disciplina e organização do corpo militar; se a milícia fosse composta por soldados e
cabos negros, os seus oficiais seriam negros; no caso de serem pardos, seus capitães e
alferes também seriam pardos.
As principais missões dadas a essas forças militares estavam normalmente
relacionadas ao combate aos quilombolas e aos índios bravios que por vezes tomavam
de assalto aos moradores da colônia. Eram respeitados pela sua capacidade de combate
em terrenos difíceis por que “entravam nos matos, descendo córregos por
despenhadeiros impraticáveis”23, e pela sua experiência adquiridas nessas incursões
eram sempre requisitados como guias nas expedições militares sempre que havia
necessidade.
No ano de 1772, o Sargento Mor da Vila de Jundiaí recebeu do governador da
capitania a seguinte ordem:
- “Porquanto hé conveniente ao servº de Sua Mag. q’ nos corpos de ordenanças desta
capitania se formem differentes companhias de todas as qualidades de homens de q’
se compõem às referidas ordenanças: Ordeno ao Sgtº Mor da Vª de Judiay, q’ no
destrº da mesma Vª forme logo huma compª de mulatos, bastardos e carijós,
escolhendo entre todos os q’ forem mais capazes e que se me devem propor pª
officiaes da compª de que logo me remeterá uma lista formal, executando esta
diligencia com toda a brevidade e com assistência do Cap. Jozé Gomes Gouvêa q’
para o mesmo effeito tenho particularmente instruído. São Paulo 11 de novembro de
1772. – Com a Rubrica de S. Exª D. Luiz Antonio de Souza.”24
22 COTTA, Francis Albert. Os Terços de Homens Pardos, Pretos e Libertos: mobilidade social via postos militares na Minas do século XVIII. MNEME – Revista Humanidades –UFRN – CERES. Pag 04 23 COTTA, Francis Albert. Fragmentos da História Policial e Militar de Minas Gerais: História e Historiografia. UFMG. Pág 38 24 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edição do Arquivo Público do Estado. Vol 33. Pág. 60.
21
Também se observa na ordem acima recebida pelo capitão-mor que essa
companhia não era específica para negros ou pardos, ela congregava a mestiçagem
existente na colônia como o “mulato” que provavelmente significava descendente de
liberto e o “bastardo” que é o mestiço de índio e o próprio indígena; com este tipo de
medida ao mesmo tempo em que separavam as pessoas de cor dos brancos evitava-se
também a separação de grupos raciais congregando-as num mesmo grupo.
Esta prática de formar companhias de homens de cor continuou a ser utilizada
nos anos subseqüentes pelo governador da capitania de São Paulo, pois, três anos
depois, no ano de 1775, existe o registro na correspondência do governo de uma ordem
semelhante expedida por essa autoridade:
“Por serviço de S. Mag. ordeno ao Cap mor das ordenanças Manoel de Olivrª.
Cardozo q’. logo, sem demora alguma faça erigir nesta Cidade e seo Destricto hua
companhia de mulatos forros, dos quaes faça uma lista geral, que me aprezentará com
os mesmos no prefixo termo de quinze dias, precedentes a data desta, declarando-me
com toda a individualização os mais capazes, em q.’ devo escolher os Officaes, para
logo lhes mandar pasar as suas Patentes ou Numbramentºs e ficara a dita companhia
completa no pé em que determino por sua formatura. Assim o executará e para
executar o dº Cap mor promptamente como deve porq.’ Assim convém ao Real
Serviço. S. Paulo a 4 de Janeiro de 1775. Com a rubrica de S. Exª.25
Cabe ressaltar que este recrutamento refere-se a uma companhia de mulatos
forros das Ordenanças e, ao solicitar a indicação dos mais capazes para ocupar os postos
de oficiais esta ordem também confirma que esses homens de cor poderiam ocupar os
postos de maior hierarquia dentro dessas companhias. Uma vez que ocupavam esses
postos gozavam os mesmos direitos e privilégios previstos para os demais oficiais das
forças militares da colônia; o que também nos remete a pensar que aqueles “soldados de
cor capacitados” poderiam chegar a oficiais, como diz Herbert Klein, e percorrer essa
“avenida de mobilidade social”, quando trata das pessoas de cor nas forças militares na
colônia portuguesa.
A respeito de promoções a homens pardos a postos de oficiais já no ano de 1765
aparece na correspondência remetida por D. Luis Antonio de Souza ao Vice-rei uma
referência à promoção de um pardo na Vila de Santos: 25 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edição do Arquivo Público do Estado. Vol. 33 Pág. 180
22
“Ilmo. e Exmº. Sr. – O Capitão da Companhia de homens pardos forros da Vila de
Santos, Caetano Francisco Santiago, de que dey conta a V. Exª. em carta de 2 de
Agosto do prezente ano de 1765 já acrescentou e formou sua companhia, porem não a
pode fazer maior do que sessenta homens, por não se descubrirem outros capazes de
servirem nesta Vila e suas vizinhanças. Sem embargo de eu lhe prometer Patente de
Capitão de Auxiliares pardos, com graduação de Tenente de Infantaria paga;
considerando que isto não poderia ser do agrado de S. Mag. que Dos Guarde e que
não devia fazer sem primeiro lhe dar conta passei somente o dito Caetano Francisco
Santiago huma Patente sem o declarar Capitão dos Auxiliares pardos, nem lhe dar a
graduação de Tenente somente a fiz expedir na forma da Cópia que a V. Exª. Remeto,
que he a mesma que se costuma passar no Rio de Janeiro aos Capitães do homens
pardos forros que há naquella cidade.”26
Outra possibilidade de inserção a essas forças militares pelas pessoas de cor
acredito que fosse a formação das companhias de Aventureiros que era uma das práticas
usadas pelas autoridades para a formação de forças militares quando da necessidade de
fazer frente a ameaças estrangeiras e também na exploração do território da colônia com
o intuito tanto de expandir as fronteiras como na busca de metais preciosos ou então
assegurar a posse de locais que já estavam sob o controle da coroa.
Ás pessoas que se alistavam nessas companhias, quando a finalidade não era
combater invasores, mas exploração ou posse de algum território, era permitido levarem
suas famílias para que se estabelecessem como povoadores:
“...se lhes daram gratuitamente nan só terras, em q’. possam plantar suas roças mas
além d’isto seram attendidos na forma que mandam as Reaes Ordens pª. se lhes
perdoarem crimes que não forem de primrª. cabeça, e gozarem o Privilégio de não
serem executados por dívidas, nem puxados pª. Serviço algum militar excepto
naquellas urgentes que forem para a sua prompta defeza como em toda parte se
praticava com os colonos...Sam Paulo a 16 de julho de 1774. Com a rubrica de S.
Exª.”27
Esta tentativa de convencer a população a acompanhar as tropas para se
estabelecerem como povoadores refere-se, provavelmente se refere a tentativa do
26 Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edição do Arquivo Público do Estado. Vol 72. Pág. 51 27 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edição do Arquivo Público do Estado. Vol 8. Pág 90.
23
governador de assegurar a posse do território que fazia fronteira com a território
espanhol na margem do rio Yguatemi.
O governador da capitania de São Paulo, D. Luis Antonio de Souza também
reconhecia não serem essas tropas de Aventureiros o tipo de milícia ideal para o serviço
regular, porém, acreditava que esses homens eram:
“a tropa mais útil e mais própria que pode haver para as campanhas do Rio Grande,
adonde se se abrir a guerra, são indispensavelmente necessárias pela qualidade de
ataques e estratagemas com que ofendem o inimigo, por isso se fazem mais
temidos”28
A correspondência entre diversos capitães-generais do ultimo quartel do século
XVIII destacava a técnica usada no combate por tropas formadas por negros, pardos e
índios; em suas ações utilizavam as emboscadas, caiam de surpresa sobre os inimigos,
exploravam em seu favor os acidentes do terreno, conheciam as matas as montanhas e
os rios e o que era muito importante para a época: sabiam tirar da natureza o seu
alimento o que lhes permitiam permanecerem muito tempo embrenhados nas matas, nas
suas ações utilizavam táticas de guerrilha, o que assustava muito seus adversários.
No século XVIII, segundo Herbert S. Klein, o número e o tamanho dessas
unidades de homens livres de cor cresceram de tal modo que passaram a ser designadas
para funções militares especializadas. Ao mesmo tempo, manifestava-se um processo de
diferenciação das unidades de combate com base em sua composição negra ou mulata.
Essas tropas se propagaram por quase todas as áreas da colônia e sua presença é
constantemente assinalada desde os primeiros recenseamentos militares datados de
meados e fins do século XVIII. Como exemplo Klein cita a capitania de Pernambuco
que em 1759
“de um total de 18.026 homens de tropa, regulares e voluntários, 2.723 (15%) eram
milicianos livres. Havia um Terço de Henriques formado por quinze companhias
totalizando 1.323 homens, além de um regimento de mulatos livres constituído de
1.400 homens” 29.
28 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edição do Arquivo Público do Estado. Vol 72. Pág. 49. 29 KLEIN, Herbert S. Os homens livres de cor na sociedade escravista Brasileira. Revista DADOS. Instituto Universitário de Pesquisas do RJ. 1978. Pág 04
24
O recrutamento para essas milícias não obedeciam a nenhuma regra e causavam
na maioria das vezes grande consternação na vida da colônia e, na visão de Caio Prado
Júnior,
“o recrutamento para as tropas durante a fase colonial e ainda durante o império
constituiu um grande espantalho para a população, pois, não havia nenhum critério
que norteasse esse procedimento; que era conduzido de acordo com as necessidades
do momento e do arbítrio das autoridades, o que explicaria a fuga da população ao
menor sinal do recrutamento”30.
A resistência a essas atitudes levaram a população a não mais aceitarem participar
das amostras militares que aconteciam de nas diversas localidades colônia que o
governador foi obrigado a despachar uma carta circulara com a ordem aos Capitães
Mores para que não se fizessem recrutamento durante essas amostras:
“Por me constar que em toda esta capitania geralmt. se receyam os Povos de aparecer
nas mostras geraes, com temor de lhe serem prezos os filhos e remetidos
violentamente p.ª o serviço das tropas de S. Mag., quando he certo q.’
voluntariamente devem obedecer todos p.ª quanto se oferecer do seu Real serviço
sem q.’ seja necessrº. constrange-los por força, nem chama-los com engano pª. as
referidas mostras, a q.’ todos devem aparecer sem receyo algum, como fiéis vassalos.
Ordeno e mando a todos os Capitaens mores da dependência deste governo,
Sargentos mores e Capitaens das ordenanças q.’ de hoje em diante por nenhuma
forma possam prender pª. Soldados, nem pª. Outras diligencias ao Real Serviço a
pessoa algua nas referidas mostras...”31
Este recrutamento não era privilégio dos momentos de conflitos externos, era sim
uma estratégia da Coroa. Nas tropas eram aproveitados os homens pobres,
frequentemente miseráveis e os desocupados, uma camada considerada desclassificada;
com a Ordem de 28 de abril de 1741, os negros forros e os mulatos que não tivessem
oficio ou fazenda em que trabalhar deveriam ser feitos soldados, embora alguns dos
governadores achassem que esses homens não tinham capacidade para realizar missões
de natureza militar.
30 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 12ª Edição. Ed. Brasiliense. São Paulo, 1972. Pág 311. 31 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edição do Arquivo Público do Estado. Vol. 33. Pág 59.
25
Quando eram fixadas as necessidades os recrutadores saiam em busca das pessoas
para preencherem estes quadros e ninguém estava livre de ser recrutado, aquele que
fosse considerado apto era levado sem maiores explicações para o posto. Esta situação
fica clara quando observamos a ordem do governador de São Paulo ao Capitão José
Gomes de Gouveia para que seja organizada uma bandeira para combater os Caiapós
que dificultam a navegação em trechos do rio Tietê com a recomendação que:
“bem entendido que todos aquelles q’ forem alistados, e se não se apromptarem como
devem para a mesma diligencia, serão castigados como dezobedientes e inúteis ao
serviço de S. Mag.; e do mesmo modo mandarei proceder contra as famílias dos que
se ausentarem, fazendo-as vir debaixo de prisão para esta cidade até elles
aparecerem, o q’ tudo fielmente executará o dito Capitão...) 32
Roberto Guedes Ferreira33 em estudos realizados a respeito da população livre de
cor na Vila de Porto Feliz nos dá a entender que aqueles que já estavam estabelecidos
em outro ofício qualquer, ao tentarem se livrar desses recrutamentos, apelavam para as
autoridades procurando provar que eram mais úteis para a sociedade desenvolvendo
seus ofícios do que engajadas às tropas; além do prejuízo que este recrutamento causava
a economia quando retirava trabalhadores das mais diversas atividades produtivas ainda
causava um grande transtorno para as famílias quando o recrutado era um homem
casado que ao ser incorporado às tropas deixava, às vezes, mulher e filhos ao
desamparo.
Esta correspondência foi encaminhada às autoridades pelo Capitão Mor da Vila
de Porto Feliz tentando liberar moradores de sua jurisdição das forças militares –
“Vejo-me na urgente necessidade de representar a V. Exa. o seguinte: Antonio
Pedroso de Campos é soldado Miliciano do Regimento de Sorocaba, aquartelado
nesta vila de Porto Feliz, em quem concorre o atributo de bom carpinteiro, e hábil
mestre de engenhos, o que se faz muito necessário a esta vila.
Assim tão bem Inácio Máximo de Faria e Jesuíno Francisco de Paula, ambos músicos
e bons oficiais de alfaiate, que trabalham com tenda aberta; os que pela sua arte têm
servido pronta e gratuitamente todas as funções reais e eclesiásticas, fazendo-se por
isso, e por seus ofícios, dignos de todo o acolhimento e conservação e utilidade ao
32 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edição do Arquivo Público de São Paulo. Vol VII. Pág 137. 33 FERREIRA, Roberto Guedes. Trabalho, Família, Aliança e Mobilidade Social: Estratégias de Forros
e seus descendentes – Vila de Porto Feliz – São Paulo. Séc. XIX. In V Congresso Brasileiro de História Econômica e 6ª Conferência Internacional de Empresas. Caxambu. MG. 07 a 10 Set de 2003.
26
País,como verão V. Exa. dos documentos juntos; pois é verdade que os ditos, há
muitos anos, que têm servido constantemente em praça de soldados do regimento.
Motivos estes, que me movem a recorrer a muita sábia proteção de V. Exa., para que,
atendendo ao exposto, se digne mandar que se lhes dê a sua baixa, providenciando,
outrossim, que jamais se assente praça a músicos desta vila pela grande falta e
necessidade que deles há.
Deus guarde a V. Exa. por longos anos para amparo deste povo.
Quartel de Porto Feliz, 3 de novembro de 1822 Antonio Silva Leite, capitão mor”.34
O quadro abaixo dá uma dimensão da grande diferenciação que existia entre as
próprias pessoas livres de cor na capitania e ao se observar os dados econômicos dessa
população se observa a grande estratificação social que existia entre elas.
“Cabedais” de libertos, negros e pardos livres em São Paulo no ano de 1765.
Faixas de “cabedais” Nº. de domicílios % Sem informação 60 82,1 Até 49$000 1 1,4 50$000 a 99$000 4 5,5 100$000 a 499$000 7 9,6 500$000 ou mais 1 1,4 Total 73 100 Obs: Foram considerados tanto os tratados como forros quanto os que só tinham uma cor atribuída a eles. Fontes: Documentos Interessantes para a História e costumes de São Paulo. v. LXII, 1937 (“Recenseamentos [1765-1767]”).
Isto não implica necessariamente que esta solicitação de isenção da incorporação
se destinasse aos regimentos de pardos uma vez que essa população livre de cor podia
ser incorporada em qualquer força militar, pois, a bem da verdade, muitas autoridades
eram contrarias a formação de regimentos exclusivos para homens de cor e preferiam
que estes fossem incorporados nas unidades militares onde não havia esta separação,
alegavam eles que assim o controle e a disciplina da tropa era facilitado.
As forças militares, as Milícias em especial, eram o “braço” das autoridades que
chegavam a todos os lugares da colônia e através delas tinha o governo o controle da
sociedade em todos os aspectos da vida social; desde o número de habitantes até os
ofícios que porventura esse habitantes desempenhavam. Vale também salientar que
essas forças eram as que executavam tanto as funções administrativas como as funções 34 FERREIRA, Roberto Guedes. Trabalho, Família, Aliança e Mobilidade Social: Estratégias de Forros
e seus descendentes – Vila de Porto Feliz – São Paulo. Séc. XIX. In V Congresso Brasileiro de História Econômica e 6ª Conferência Internacional de Empresas. Caxambu. MG. 07 a 10 Set de 2003.
27
policiais, na atuando na manutenção da ordem e do sossego público. Essas forças
militares seriam “a espinha dorsal da colônia, elemento de ordem e disciplina”, como
diz Raimundo Faoro.35
Vale ressaltar também os diversos fins a que atendiam os recrutamentos das
pessoas de cor, visto que esses recrutamentos não aconteciam somente com fins de
formar tropas para o combate, havia recrutamentos para conseguir homens para
exploração de territórios, povoamentos de pontos que já haviam sido explorados e
necessitava de gente para sua povoação e com isso garantir definitivamente a posse.
35 FAORO, Raimundo. Os donos do Poder. Formação do Patronato Brasileiro. Vol. I, pág. 186.
28
Distribuição das tropas militares na Capitania de São Paulo
Depois da reorganização militar levada a efeito pelo Governador da capitania. D.
Luis Antonio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Matheus, no ano de 1767, a
capitania contava com um corpo de tropa regular que estava constituído por seis
companhias de Infantaria destacada na cidade de Santos e estava encarregada de
fiscalizar as fortalezas e controlar os registros e passagens da capitania.
Além destas tropas contava, agora, com as novas tropas auxiliares que estavam
agrupadas em seis regimentos irregulares, dois de Cavalaria e quatro de Infantaria,
constituídos com o número de homens que se pudera arregimentar em todas as vilas:
- O Primeiro Corpo de Dragões de São Paulo e Vilas do Sul de Serra Acima com doze
companhias de Cavalaria e setecentos e sessenta e oito praças;
- O Segundo Corpo de Ligeiros de Guaratinguetá e Vilas do Norte de Serra Acima com
seis companhias de cavalaria e trezentos e oitenta e quatro praças;
- O Terceiro Corpo de Infantaria de São Paulo e Vilas de Serra Acima com quinze
companhias e novecentas e setenta e cinco praças;
- O Quarto Corpo de Infantaria de Guaratinguetá e Vilas de Serra Acima com seis
companhias e trezentos e noventa praças;
- O Quinto Corpo de Infantaria da Marinha de Santos e Vilas do Norte com oito
companhias e quintos e vinte praças e;
- O Sexto Corpo de Infantaria da Marinha de Paranaguá e Vilas do Sul com onze
companhias e setecentos e quinze praças.
Na Comarca de Paranaguá os Regimentos de Milícias têm sua origem no Aviso
Régio de 22 de Março de 1766, dirigido a D. Luiz Antonio ordenando que, nos distritos
da sua Capitania, fizesse alistar toda a gente, sem exceção, nobres, brancos, mestiços,
indígenas e libertos.
A fim de dar execução a esta ordem régia a Câmara Municipal de Paranaguá
“publicou o Bando, de 23 de Abril de 1766”36 para o chamamento dos conscritos. Em
toda a Comarca de Paranaguá, litoral e planalto, alistaram-se onze companhias de
Infantaria e três de Cavalaria, estas últimas de moradores da Vila de Curitiba.
Todas essas companhias passaram a compor o efetivo de um Regimento de
Auxiliares, o 6º Corpo de Infantaria da Marinha de Paranaguá e Vilas do Sul, com o
36 WESTPHALEN, Cecília Maria. A Milícia na Comarca de Paranaguá e Curitiba. Pág 32
29
efetivo de setecentos e quinze homens no litoral e duzentos e cinqüenta e dois em
Curitiba; para o comando deste Regimento de Auxiliares, o governador da capitania
expediu patente de Sargento-Mor em favor de Francisco José de Monteiro e Castro, e de
Ajudante em favor de Manuel da Cunha Gamito em 05 de setembro de 1767, ambos da
tropa de primeira linha.
Estas três Companhias de Cavalaria Ligeira que haviam sido formadas em
Curitiba também eram denominadas “uzares” 37, e contavam com um efetivo de oitenta
elementos em cada companhia e um total de duzentos e cinqüenta e dois homens,
incluindo neste número os oficiais. Todos os regimentos de auxiliares estavam
denominados seguindo um critério de localização geográfica com a intenção de facilitar
a reunião das diversas companhias para os exercícios militares e para alguma outra
necessidade, principalmente defesa, que exigisse a sua convocação imediata.
A capitania de São Paulo estava dividida em duas grandes áreas geográficas:
Vilas do Norte
Santos
São Vicente
São Sebastião
Conceição de Itanhaem
Ubatuba
Marinha
Vilas do Sul
Paranaguá
Curitiba
Iguape
Cananéia
Vilas do Norte
Pindamonhangaba
Taubaté
Guaratinguetá
Jacareí
Mogi
Serra Acima
Vilas do Sul
São Paulo
Itu
Sorocaba
37LEONZO, Nanci. As Companhias de Ordenança na Capitania de São Paulo. Coleção Museu Paulista. Série de História . Vol 6. Ed Fundo de Pesquisa do Museu Paulista- USP. São Paulo, 1997. pág 191.
30
Serra Acima
Vilas do Sul
Jundiaí
Parnaíba
As tropas militares ocupavam toda a capitania de São Paulo e totalizavam vinte e
uma companhias de cavalaria, com um total de 1.404 cavaleiros incluindo os oficiais e
quarenta companhias de infantaria reunindo, também com os oficiais, 2.600 pedestres38.
A correspondência que o governador da capitania dirigiu nesta época ao Conde
de Oyeras havia referências às companhias de mulatos onde informava que estes
estavam alistados em destacamentos especiais, havendo um excelente em Santos, outro
em São Vicente, um incompleto em São Sebastião e outros dois respectivamente em
Taubaté e Pindamonhangaba, esclarecia também que na Marinha todos os pretos e
mulatos usavam como armamento apenas lanças compridas. Isto deixa claro a intensa
militarização que estava sendo desenvolvida na capitania; cabe registrar que já na
primeira metade do século XVIII a Metrópole havia recomendado que não fossem
formados corpos de infantaria somente com pardos e bastardos, pois isto poderia vir
“em grande prejuízo desse Estado, e muito contra a quietação, e sossego desses
povos”.39 Estas recomendações se deviam, talvez, ao medo que as autoridades
metropolitanas tinham de que essas tropas pudessem se amotinar colocando em perigo a
paz na colônia, pois há que se considerar que a grande maioria da população, na época,
era formada por homens de cor.
Quando assumiu o governo da capitania, em 1797, D. Antonio Manoel de Mello
Castro e Mendonça reorganizou as forças militares existentes criando alguns regimentos
em conformidade ainda com a Carta Régia de 22 de Março de 1766 dirigida a D. Luiz
Antonio de Souza, então governador da capitania que dizia que o número das tropas
auxiliares deveriam ser proporcional ao número de habitantes:
“...atenta a situação local della, e fronteiras que offerece ao ataque de qualquer
Potência inimiga, julguei que devia formar mais Corpos Auxiliares ou Milicianos, por
38 LEONZO, Nanci. As Companhias de Ordenança na Capitania de São Paulo. Coleção Museu Paulista. Série de História . Vol. 6. Ed Fundo de Pesquisa do Museu Paulista- USP. São Paulo, 1997. pág 192. 39 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edição do Arquivo Público do Estado. Vol 24 Pag. 43-44
31
ser assim necessário á sua defeza e muito conforme ao espírito daquella Carta
Régia.”40
Nesta reorganização transformou o primeiro e o segundo Terço Auxiliar da
cidade de São Paulo e os dois de Santos e Paranaguá em quatro Regimentos de
Infantaria Miliciana de acordo com o Plano Geral de 1º de Agosto de 1976 e seguindo o
mesmo plano uniu as Companhias Avulsas de Mulatos e organizou o Regimento dos
Úteis, criando também os novos Regimentos de Infantaria Miliciana da Vila da Cunha,
da Vila de Sorocaba e a da Vila de Ytu cuja denominação ficou sendo a de Sertanejos.
Sobre este regimento da Vila de Ytu escreveu o Governador:
“Ilmo. e Exmo. Snr – Na conformidade da Carta Régia de 22 de Março de 1766, em
que sua Mag. determina se alistem todos os habitantes desta Capitania, e tendo
concideração ao grande número de homens mestiços e libertos que há na Villa de
Ytu, e seu districto, julguei ser muito conveniente ao Real Serviço formar desta gente
um Regimento de Milícias de Infantaria; que intitulei de Sertanejos da referida Villa;
assim para ter em respeito os sertoens daquela vizinhança onde vem desembarcar a
Estrada do Sul, ou Curitiba, como para domesticar, e fazer sociáveis estes homens
sujeitando-os a disciplina dos seus respectivos Cabos, com o que serão de grande
importância na occazião de algum rompimento de guerra.
Incluzo invio a V. Exª. a Proposta dos Officiais majores que destinei para este corpo,
esperando que V. Exª. se digne a levala a Real Presença para se obterem a sua
confirmação. Ds. g.o a V. Exª. São Paulo 26 de Abril de 1797. – Illmo e Exmº Snr. D.
Rodrigo de Souza Coutinho. – Antonio Manoel de Mello Castro e Mendonça”.41
A aprovação da criação deste regimento se deu no ano de 1798, conforme Oficio
de 09 de Abril deste mesmo ano, porém, não foram aprovadas as promoções propostas
para a constituição do seu Estado Maior; tendo em vista que estas promoções
acarretariam aumento de despesas para a coroa. A solução encontrada foi remanejar
oficiais de outros regimentos para a formação deste.
Este temor a essas tropas específicas de negros e pessoas de cor talvez esteja
relacionada com os acontecimentos da campanha do Sul quando o comandante das
tropas que se encontrava em Laguna, General em Chefe, João Henrique Bohm rejeitou
40 MENDONÇA, Antonio Manuel de Melo e Castro e. Memória econômico-política da Capitania de São Paulo, in: Anais do Museu Paulista. Tomo XV, 1961.Pag. 138 41 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edição do Arquivo Público do Estado. Vol 29. Pág. 61
32
as tropas de negros enviadas para reforçar as tropas que combatiam os castelhanos em
que se faz menção na carta enviada ao Brigadeiro Jozé Marcelino de Figueiredo pelo
governador Martim Lopes Lobo de Saldanha na data de 24 de julho de 1777:
“Em virtude da minha ordem, que já participei a V. Sª. Vem retrocedendo a negra
gente de Minas, a excepção dos de cavallo, que a não serem necessários na Laguna,
onde os destinava pella representação do comandante daquella Villa, V. Sª. E o
senhor General lhes darão o destino que melhor lhe parecer.”42.
Uma nota de rodapé esclarece que o motivo para o comandante ter rejeitado essa
tropa é “que esta gente remetida de Minas para o Sul era mal armada, mal fardada e mal
disciplinada”.
Aumentou também o efetivo da Cavalaria, conservou os Regimentos de Cavalaria
dos Dragões; criando também o Regimento de Cavalaria Miliciana de Curitiba na qual
incorporou as quatro antigas companhias que haviam sido agregadas ao Terço de
Paranaguá por Martin Lopes.
Entendia também este governador que as tropas deveriam ser apropriadas aos
lugares que iriam guarnecer e desejava transformar os Regimentos de Infantaria
Miliciana da Marinha de Santos e Paranaguá em Artilharia, que julgava as mais
apropriadas para proteger a costa contra possíveis ataques de navios estrangeiros.
Para D. Antonio Manuel de Mello Castro e Mendonça as forças de defesa
principais da capitania deveriam ser as Auxiliares que não oneravam a coroa e seus
componentes eram comprometidos com o desenvolvimento da colônia uma vez que em
tempo de paz eram os que produziam as riquezas com seu trabalho e, no caso de guerra
teriam o maior interesse em defender suas propriedades.
A partir desta data e com as modificações impostas por este governador as forças
militares da capitania de São Paulo ficaram assim constituídas:
Tropa paga
Nome da tropa Efetivo
Legião de Voluntários Reais 1.109 homens
Regimento de Artilharia 850 homens
42 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes da capitania de São Paulo. Edição do Arquivo Público do Estado. Vol 43. Pág. 81
33
Total da tropa paga 1959 homens
Fonte: MENDONÇA, Antonio Manuel de Mello e Castro e. Memória econômico-política da capitania de São Paulo, in Anais do Museu Paulista. Tom XV, 1961
Tropa Miliciana de Infantaria
Primeiro Regimento da Cidade 800 homens
Segundo Regimento da Cidade 800 homens
Regimento da Vila da Cunha 800 homens
Regimento da Vila de Sorocaba 800 homens
Regimento da Vila de Santos 800 homens
Regimento da Vila de Paranaguá 800 homens
Regimento da Vila de Ytu 800 homens
Regimento dos Úteis 800 homens
Total da tropa miliciana 6.400 homens
Fonte: MENDONÇA, Antonio Manuel de Mello e Castro e. Memória econômico-política da capitania de São Paulo, in Anais do Museu Paulista. Tom XV, 1961
Tropa de Cavalaria
Primeiro Regimento da cidade 604 homens
Segundo Regimento da cidade 604 homens
Regimento da Vila de Curitiba 604 homens
Total da tropa de cavalaria 1812 homens
Fonte: MENDONÇA, Antonio Manuel de Mello e Castro e. Memória econômico-política da capitania de São Paulo, in Anais do Museu Paulista. Tom XV, 1961
Esta nova composição das forças militares da capitania julgava o Governador,
seriam suficientes para atender as necessidades de defesa da capitania e ainda socorrer,
se necessário, as capitanias vizinhas.
Não fica claro se nesta reorganização o governador suprimiu as companhias de
mulatos existentes em Santos, São Vicente, São Sebastião, Taubaté e Pindamonhangaba
ou se essas companhias foram simplesmente incluídas nos novos regimentos dentro da
nova organização da tropa. O Regimento dos Úteis não aparece ligado a nenhuma das
cidades, apenas o Regimento dos Sertanejos aparece como sediado na Vila de Ytu, o
que faz supor que este Regimento não estava sediado em nenhuma localidade específica
34
e seria uma tropa que poderia ser deslocada de acordo com as necessidades que se
apresentassem em um determinado momento.
Existe também na correspondência deste governador mais uma referência a
respeito dessas tropas: é uma carta ao Conselho Ultramarinho a respeito de ordens
recebidas:
–“Senhora – Por Provisão de V. Mag. De 26 de Julho do prezente ano, expedido pelo
seu Conselho Ultramarinho, fico siente do que V. Mag. Determina a respeito dos
Tersos dos chamados Henriques, porém, não havendo nesta Capitania, onde há muito
poucos pretos forros, não me resta mais nada a executar senão o fixarem-se os
Editaes pª que a todos chegue esta notícia.
São Paulo 21 de 9brº de 1797. Antonio Manoel de Mello Castro e Mendonça. ”43
Isto não quer dizer que não existissem tropas de mulatos e pardos na Capitania de
São Paulo, porque provavelmente por Henriques se entendia tropas exclusivas de pretos
e pretos forros como eram denominadas estas tropas em outras capitanias da colônia,
nesta época.
Como se pode observar pela distribuição dos regimentos milicianos os
governadores na época tiveram a preocupação, ao organizar e distribuir essas forças, de
não deixar nenhuma localidade da capitania sem a cobertura militar; todos os recantos
da capitania estavam sujeitas as ordens emanadas das autoridades do governo e cabia
aos milicianos a fiscalização do cumprimento dessas ordens.
43 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edição Publico do Arquivo do Estado. Vol 29. Pág. 43.
35
Os pardos nas forças militares
Havia da parte da maioria das autoridades da época muitas restrições à presença
dos pardos nas forças militares da colônia, principalmente em unidades específicas para
homens de cor, e esta discriminação se manifestava quando existia a possibilidade de
alguma promoção de alguns deles a postos que não fossem os mais subalternos. Como
soldados até que não se faziam muitas restrições, pois nos recrutamentos não se levava
muito em conta à cor do recrutado, uma vez que esses recrutamentos eram feitos quando
havia necessidade urgente de homens para criar contingentes para missões que
normalmente demandavam urgência, portanto, não se fazia muita distinção entre as
pessoas: eram recrutados todos aqueles que tivessem condições de combater: pretos
forros, criminosos, indígenas, vadios, escravos.
Estes recrutamentos sempre foram motivos de pavor para a população da colônia,
pois, ninguém estava livre de ser recrutado; estar livre do recrutamento era um
privilégio de poucos; e quando determinados nem mesmo as autoridades podiam se
colocar contra as ordens de recrutamento. As medidas tomadas contra aqueles que
procuravam escapar eram sempre de trágicas conseqüências.
Uma carta do Governador da capitania de São Paulo ao Guarda mor João Miz de
Barros para que o mesmo organizasse uma Bandeira de duzentos homens para explorar
os sertões do Ivay nos dá a dimensão do que significavam esses recrutamentos:
- “Ordeno a vm que logo em recebendo esta faça saber os homens do seu districto
assim da ordenança como dos que estão soldados nas Tropas auxiliares, q’ todo o que
quizer hir para o descuberto, e expedições do Ivay o poderá fazer livremente hindo
alistarse com o dito João Miz de Barros (... ) e quando, absolutamente esquecidos, da
honra, Zelo, e fidelidade, com que devem empregar-se ao Real Serviço pertendão
escuzarse delle, por qualquer que seja o motivo, Logo sem exceçpção de pessoa fará
vm prender todos os homens solteiros assim vadios como outros quaesquer que
Sejão, e os fará remeter para esta Cidade para Se lhe Sentar Praça na guarnição da
marinha, donde se caresse de gente; do mesmo modo executará vm esta ordem nos
cazados, que tiverem pouco domicilio. São Paulo 12 de Dezembro de 1766.”44
Décadas depois, no ano de 1808, ainda se encontra registros a respeito do grande
numero de fugas em virtude dos recrutamentos, sendo que a Vila de Curitiba era
44 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Publicação do Arquivo Público do Estado. Vol. V. Pág. 10.
36
considerada pelos fugitivos um bom lugar para se livrarem dos agentes recrutadores;
talvez pela proximidade dos “sertões” o que possibilitava meios para passarem
despercebidos pelas autoridades.
Esta preferência dos fugitivos pela Vila de Curitiba provocou até um oficio do
governador da capitania ao Cap Mor no sentido de evitar que pessoas de outros distritos
se fixassem na vila:
“Para o Cap Mor de Coretiba – Tendo-me reprezentado o Cap mor da Villa de São
Carlos, q’. mtos., moradores desta Villa e seus Destrictos fugindo a fim de não serem
recrutados, tem poizado nessa Villa e seu Destricto: Ordeno a Vmce. Faça prender a
todos, q. pr. ahi tranzitarem sem as competentes licenças e remettidos prezos aos Cap
mores dos Destrictos de onde forme naturaes ou moradores ficando Me. Vmce.
Responsável, e S. A. R. pela falta de execução q. der a esta Ordem. Ds. ge. a Vmce.
São Paulo 1º de Dezo. De 1808. Antonio Joze da Franca e Horta. Sr. Antonio Ribeiro
de Andrade. Cap mor da Va. de Coretiba.”45
Segundo Caio Prado Junior: “ - Em 1797, vemos em São Paulo despovoarem-se
as regiões de Atibaia e Nazaré porque nelas se assinalara a presença de agentes
recrutadores; e a Câmara paulistana alarmada, pois era naquelas regiões que se abastecia
a capital, pedia providências ao governador.”46
Os oficiais brancos também não queriam desempenhar suas funções nos
regimentos de pardos, como fica claro no Oficio enviado pelo General Horta,
governador da Capitania de São Paulo ao Vice-Rei tratando das promoções nos diversos
regimentos de milicianos, e, neste caso, as promoções do Regimento dos Úteis:
“Tenho de lembrar a V. Exa. que o primeiro Ajudante deste Regimento deve ser
sempre graduado com a Patente de Capitão, vencendo o soldo de Ajudante, porque
sendo os Officiaes deste Corpo Mulatos, nenhum Official de honra nelle quer servir
para não ser mandado por hum deles na falta dos respectivos Officiaes maiores”...47
Quando, porém, aventava-se a possibilidade de algum pardo ascender a um posto
maior da hierarquia militar essas restrições apareciam, e também está registrada na
45 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edição do Arquivo Público do Estado. Vol. 58. Pág. 30. 46 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 12ª Edição. Ed. Brasiliense. São Paulo, 1972. pág 310 47 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edição do Arquivo Público do Estado. Vol 94 pág. 132.
37
correspondência do Gen Horta, onde ele explica através de oficio ao Vice-Rei porque
não está remetendo a proposta para a promoção de oficiais pardos:
“Não remeto a V. Exa. a Promoção relativa ao Undécimo, e ultimo Regimento
Miliciano, chamado dos Úteis, por me persuadir que nelle se devia fazer a mudança
que passo a expor. Este Corpo he composto de Mulatos Forros, dos quaes no
Governo do General Lorena se formaram três, ou quatro Companhias aVulsas, a que
meu antecessor ajuntou outra de novo para completar o Regimento. He certo que elle
foi aprovado, e se confirmarão as Patentes de alguns de seus Officiaes, mas não me
parece conforme a boa razão que homens abjectos, e de huma tão inferior qualidade
como são os daqui, cinjão huma banda, e entrem na roda da mais Officialidade,
quando há homens brancos, em que podem prover os Postos de Alferes, Tenente, e
Capitaens, do mesmo modo que sempre forão os Officies Superiores do dito
Regimento. Como pode Lizongear se hum homem de bem, que serve o Estado, de ser
Capitão, e ainda Tenen= Tenente Coronel, se vê condecorado com igual Patente, e
honras hum mulato Alfaiate, ou Çapateiro, outro que elle conheceu Escravo, e
finalmente outro ainda que forro é Cazado com huma Negra Captiva, como são de
ordinário os que actualmente servem neste Corpo.” 48
Isto demonstra toda a discriminação sofrida por essa população dentro das
instituições militares, algumas autoridades temiam também que uma vez inseridos nas
tropas, com acesso ao armamento e com alguns ocupando postos mais elevados na
hierarquia militar pudessem provocar algum motim ou se voltar contra a ordem
constituída, criando situações de perigo para o bem estar da colônia e o sossego da
população.
Talvez em virtude deste temor seja que as autoridades metropolitanas não
pensavam ser conveniente que homens pardos e bastardos forros servissem em corpos
separados e também suspenderam a promoção a Capitão de Gil de Andrade, ainda no
início do século XVIII, na capitania de Minas Gerias::
“A ordem de 27 de Janeiro de 1728, determinava ao Governador de Minas Gerais
que mandasse dar baixa ao registro de patente do Capitão da Ordenança dos homens
pardos e bastardos forros da Vila de Sabará Gil de Andrade, declarando-a sem
efeito, porque não convém que semelhantes homens sirvam em companhia ou corpo
separado dos demais, pois o que devia obrar em tal caso, era misturá-los aos demais
48“Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edição do Arquivo Público do Estado. Vol. 94. Pag. 170
38
corpos das ordenanças de homens brancos, para ficarem mais sujeitos e
obedientes.”49
A discriminação a que esse tipo de população estava sujeito não era um fato que
se verificava somente na capitania de São Paulo, mas segundo se observa na
documentação da época, estava disseminada em toda a colônia portuguesa e a sua
origem pode ser vista na maneira com que as próprias autoridades da metrópole
tratavam o assunto; como é o caso da referência acima.
Herbert S. Klein faz alusão, em um trabalho a respeito dos homens de cor na
sociedade brasileira a um pardo da capitania de Pernambuco, Vicente Ferreira de
Guedes, que ao lado de Henrique Dias, foi um dos mais destacados oficiais da milícia
pernambucana chegando a ser promovido ao posto de Mestre de Campo de um Terço de
milícias brancas desta capitania, em 1783. Destacou-se como um dos principais
oponentes da oligarquia usurpadora do Conselho Municipal de São Luiz do Maranhão;
e, por ser colaborador intimo de vários governos, provocou uma onda de protestos
quando foi efetivada sua nomeação para as tropas brancas, devido ao seu bom
relacionamento com os governadores maranhenses da época.
“Na mordaz correspondência enviada a corte por seus adversários, fazia-se constante
referencia ao fato de que ele era o primeiro mulato a ser nomeado chefe de um grupo
de milicianos voluntários brancos, enquanto diversos mulatos Mestres de Terço
haviam sido feitos chefes de milícias de cor. Os adversários de Guedez acusaram-no
de tudo: de rebelde a escravo fugido, disfarçado”. 50
Também na Bahia, a discriminação aos pardos aparece durante um processo
movido contra o soldado miliciano Luís Gonzaga das Virgens, que foi preso e
condenado sob a acusação de ser autor e divulgador de “papéis sediciozos” no ano de
1799. Durante a devassa levada a efeito por ocasião do processo aparece um
requerimento que o referido soldado pretendia encaminhar ao príncipe Regente D. João
pedindo para ser o “ajudante” do 4º Regimento de Milícias, exatamente o dos pardos.
Nos autos se encontram rasuras e palavras riscadas, dessa forma “parecendo de hum
habitante desta colônia, por isso dirigido aos homens nella chamados de segunda
49 COTTA, Francis Albert. Os Terços de Homens Pardos, Pretos e Libertos: mobilidade social via postos militares na Minas do século XVIII. MNEME – Revista Humanidades –UFRN – CERES. Pag 05 50 KLEIN, Herbert S. Os homens Livres de Cor na Sociedade Escravista Brasileira. Revista DADOS. Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro. 1978. Pág 5.
39
Espécie, habitantes dos países tórridos” no parecer do desembargador Francisco Sabino
Alves da Costa Pinto, que presidiu a devassa.
O requerimento começa destacando que “a maioria dos soldados nas tropas pagas
era de pardos, razão porque eram onerados com todos os deveres do bélico trabalho,
expondo suas vidas pelo bem do rei, do Estado e da Nação, sem merecerem acesso aos
postos por causa da diferença de cor, o que os colocava inferiores aos brancos desde a
adolescência até perderem as forças, a saúde e a própria vida. Ele guardava “a magoa, a
magoa inconsolável” de viver preterido somente por causa da cor. No seu caso pessoal,
porém, via uma solução: ser removido para o 4º Regimento de milícia, “por ser daqueles
homens que lhe são igaues”, ou seja, de cor”.51
Segundo o autor do texto este documento é impressionante pelo que revela da
descriminação de cor existente na administração e na sociedade colonial (o que havia na
tropa paga não era exceção); ainda segundo o autor é também expressivo pelos
sentimentos contrastantes de orgulho e inferioridade que nele afloram. De orgulho, na
afirmativa de servir em defesa do poder do real, “do Estado e da Nação”. E de
inferioridade pelo travo amargo de reconhecer na sua condição de pardo um obstáculo
para qualquer pretensão. No requerimento a rainha escreveu:
“se o Suple não he digno de ser accessível na graduação dos postos por ser pardo,
paresse ser justo que elle, e todos os indivíduos da classe, sejão extrahidos de huma
compalibilidade toda penoza, desgraçada e armada de calunias.”52
Ao tratar das estratégias de mobilidade social utilizadas por comerciantes
mulatos e negros em Minas Gerais, o então Ouvidor de Vila Rica, Tomás Antonio
Gonzaga, denunciava: “Os tendeiros/ mal se vêem capitães, são já fidalgos; / Seus
néscios descendentes já não querem conservar as tavernas, que lhes deram/ Os
primeiros sapatos, e os primeiros/ Capotes com capuz de grosso pano.”53
Esta situação causava indignação na população branca, pois, para eles valiam as
prescrições que os oficiais deveriam ter sangue limpo, avós de linhagem pura e pele
branca; a crítica baseava-se no sentido de que as patentes afidalgavam, levando mulatos
e negros a desprezarem o trabalho e procurarem conquistar os galões que afidalgavam e
51 TAVARES, Luís Henrique Dias. O Soldado Luís Gonzaga das Virgens. Revista Estudos Avançados 13 (37), 1999. Pág 173 52 Idem 53 Cotta, Francis Albert. Fragmentos da História Policial e Militar de Minas Gerais: História e Historiografia. UFMG. Pág. 34
40
desejavam as altas patentes “mais pelo título e pela honra do que pela execução dos
deveres que implicam.”
Também em documento enviado pelo governador da capitania de São Paulo,
Antonio Jozé da Franca e Horta, tratando da solicitação feita por Francisco de Salles
Fernandes que solicita através de requerimento ao Príncipe Regente o posto de
Secretário de um regimento, dentre as questões que o governador levanta para que o
mesmo não seja atendido está que se trata de “Por ser um homem conhecidamente
Mulato, sem caráter, ou qualidade alguma que o authorize...” 54
O quadro abaixo que trata das forças auxiliares de Curitiba não faz referência a
nenhum homem de cor, pois, na época dos auxiliares havia em muitos lugares tropas
exclusivas de brancos o que quer dizer que eles não estavam incluídos nas forças
militares nessa época e, se existissem alguns, estes não eram tratados como pardos e
sim como brancos.
Auxiliares em Curitiba (1797) segundo a lista de habitantes de 1797 (excluindo a Lapa)
Faixas etárias Brancos Descendentes livres de
escravos
10-19 11 -
20-29 43 -
30-39 30 -
40-49 3 -
50-59 4 -
60 ou mais 1 -
Total 92 -
Fontes: Arquivo do Estado de São Paulo. Lista de habitantes de Curitiba, 1797 (cópias microfilmadas pertencentes ao DEHIS/IFPR e ao Departamento Estadual do Arquivo Público). Apesar da discriminação que sofriam, ocupando postos mais subalternos os
pardos eram encontrados por toda a capitania, nos recenseamentos feitos na Vila de
Castro, onde estavam sediadas as 3ª e a 7ª Companhias do Regimento de Milícias de
Curitiba, por exemplo, aparecem diversos pardos pertencentes às milícias. No
recenseamento levado a efeito no ano de 1804 aparecem dois soldados milicianos:
Antonio do Rosário – 28 anos, natural de Castro que declara que vive de salário,
planta para seu sustento e é soldado miliciano da 7ª Companhia.
54 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes da capitania de São Paulo. Ofícios do Gen. Horta aos Vice-Reis e Ministros. 1802-1808.Vol 94. Pág 135
41
Francisco Roiz do Rosário – 40 anos, vive de salário, é natural de São Paulo,
também planta par o seu sustento e é soldado miliciano da 3ª Companhia dos Reais
Curitibanos.
Grande parte destes pardos livres que aparecem como milicianos estabelecidos
em Castro têm suas origens em diferentes lugares da colônia o que faz supor que eram
resultantes da migração interna, talvez na busca da fronteira livre e de terras
desocupadas para estabelecimento das suas lavouras. Outra coisa que chama a atenção é
que os milicianos de Castro, apesar de residirem na mesma vila pertenciam a
companhias diferentes, o que sugere que esses homens quando incorporados às milícias
eram misturados com os milicianos brancos, talvez até com o objetivo de evitar uma
concentração deles nos mesmos contingentes militares.
Já no recenseamento de ano de 1808 se percebe uma maior presença de
milicianos pardos na Vila de Castro; o que talvez possa ter sua explicação com o
aumento da incorporação de miliciano onde segundo Cecília Maria Westphalen55 nada
menos de 29,1 % do total do Regimento de Milícias de Curitiba foi incorporado no ano
de 1808. Este aumento no recrutamento talvez esteja relacionado com a nova situação
político-militar vivida pela colônia com a chegada da Corte ao Brasil, a declaração de
guerra à França e a situação vivida no Sul.
O ano de 1815 é outro que marca um novo aumento na incorporação de praças e
que teve como principal motivo o recrutamento com vistas à organização de dois
Corpos de Milícias a Cavalo para a campanha do Sul.
José Manoel – 22 anos, natural de Paranapanema, possui negócios de secos e
molhados; sendo sua ocupação principal ser soldado miliciano.
Antonio Ribeiro de Morais - 23 anos, natural de São Paulo, também possui
negócios de secos e molhados e é soldado miliciano.
Adriano Gonçalves – natural de Castro, tem 32 anos de idade, além de ser
soldado miliciano, possui sua lavoura e planta para o seu sustento.
Antonio Pinheiro - também natural de Castro, possui 32 anos de idade e planta
para o seu sustento.
Domingos Gonçalves – tem 32 anos, é ferreiro, natural de Castro, soldado
miliciano e planta para seu sustento.
55 WESTPHALEN, Cecília Maria. A Milícia na Comarca de Paranaguá e Curitiba. Revista da SBPH. Curitiba, nº. 16. 1999. Pág 37.
42
Vicente Dias – tem 40 anos de idade, natural de Castro, planta para seu sustento e
possui a graduação de cabo da milícia.
Pascoal de Ramos - tem 27 anos de idade, é oriundo de Viamão, vive de salários
e é soldado miliciano.
No recenseamento de 1812 também são registrados diversos pardos em Castro
pertencente às milícias:
José Lopes da Silva – com a idade de 56 anos, natural de Minas Gerais, é
ferreiro e soldado miliciano da 3ª Companhias.
José Ricardo – possui 37 anos de idade, é natural de Sorocaba, vive de seu
oficio de serrador e é também cabo miliciano.
Francisco Ferreira – também conta com 37 anos de idade, vive de seus negócios
e também é soldado miliciano da 3ª Companhia; natural de Curitiba.
Joaquim Serra – é natural de Castro, tem 27 anos de idade, planta para o seu
sustento e é miliciano da 3ª Companhia.
José Antonio – natural de Castro, vive de salário, tem 22 anos de idade e é
soldado miliciano da 1ª Companhia.
Paulo João Machado – natural de Castro, tem 64 anos de idade, planta para o
seu sustento e é cabo miliciano.
José Joaquim - natural de Castro, 28 anos de idade, vive de salário, é soldado
miliciano da 3ª Companhia.
Em 1816, na realização do recenseamento foram encontrados os seguintes
pardos milicianos:
José Ricardo - 36 anos de idade, vive de seus negócios, é natural de Sorocaba e
é cabo da milícia.
José Lopes da Silva - tem 60 anos de idade, trabalha como ferreiro, natural de
Minas Gerais e é soldado da milícia.
Antonio Pinheiro - vive de seu salário, natural de Castro, tem 42 anos de idade
e também é soldado miliciano.
Francisco Ferreira - sua ocupação principal é de condutor de cargas, possui 31
anos de idade, natural de Castro e é soldado da milícia.
Joaquim Serra - natural de Castro, tem 31 anos de idade. Este pardo já aparece
no recenseamento do ano de 1812, agora vive de salário e continua soldado da milícia.
Paulo João Machado - tem 68 anos de idade, natural de Castro, planta para seu
sustento e é cabo miliciano.
43
No recenseamento de 1820 aparecem dois pardos, um miliciano e outro soldado
aventureiro: um deles é José Ricardo agora com 40 anos de idade, sua profissão
declarada é a de carpinteiro, continua sendo cabo da milícia; o outro é Manoel Pereira,
natural de Castro, soldado aventureiro, tem 48 anos de idade e vive de suas lavouras.
Estes dois pardos, Antonio Ribeiro de Morais e Manoel Pereira, este último,
soldado aventureiro, possuíam escravos, isto quer dizer que seu pertencimento as
milícias talvez fosse mais reconhecimento de ascensão social, como defende Roberto
Guedes Ferreira do que instrumento de ascensão social como acredita Klein; isto porque
não provável que eles tivessem escravos porque pertenciam a milícia
Em 1824 aparecem também pardos dois milicianos na Vila de Castro: um deles
é Manoel Pereira, agora com 50 anos de idade, que já aparece no recenseamento de
1820 e Claro Gonçalves, com 22 anos de idade, natural de Castro e que vive de salário;
e é cabo de esquadra.
No recenseamento de 1829 já aumenta bastante o número de pardos milicianos
que aparecem nos registros:
Joaquim Alves, - 51 anos de idade, vive de sua lavoura, é soldado miliciano.
João Antonio - vive de seu trabalho, não consta a sua naturalidade nem a sua
idade, pertence à milícia.
Américo Manoel - vive de seu trabalho, possui 51 anos de idade, também sua
naturalidade não está registrada. É soldado da milícia.
Antonio Ribeiro – natural de Castro, tem 49 anos e vive de sua lavoura. É cabo
miliciano.
Manoel Faustino – vive de seus negócios, tem 37 anos, natural de Castro e é
soldado miliciano.
Mariano José – tem 43 anos, vive de salários, natural de Castro e também é
soldado miliciano.
Serafim Dias – natural de Castro, vive de salários, tem 26 anos e é soldado
miliciano.
Ricardo Pedroso – natural de Castro, tem 35anos, vive de salários, é soldado
miliciano.
Antonio Manoel do Rosário – natural de Castro, tem 37 anos, vive da lavoura, é
cabo miliciano.
Em nenhum dos recenseamentos aparece qualquer miliciano pardo com o posto
de oficial, o que indica que apesar do fato de pertencer à milícia trouxesse prestígio, o
44
acesso a postos mais elevados nestes regimentos milicianos ainda era privilégio dos
brancos, principalmente no caso de recenseamento da Vila Castro onde está se tratando
de regimento de milicianos de Curitiba e não de Regimento de Pardos ou dos Úteis
como também eram chamados estes regimentos.
Outro detalhe que se pode observar é que poucas são as pessoas que aparecem
em mais de uma lista e que aquelas que se repetem, apesar do espaço de tempo que
existem entre elas não apresentam nenhuma mudança na sua condição social, seja no
posto ocupado na milícia, seja no seu patrimônio. O único caso que se observa uma
pequena alteração é o do soldado aventureiro Manoel Pereira que na lista de 1820
aparece como possuidor de uma escrava, Maria, e que na lista de 1824 já possui um
escravo do sexo masculino chamado Joaquim.
Acredito que o caso destes soldados aventureiros seja o que mais possibilitou
aos homens pardos sua inserção em alguma força militar, pois, companhias de
aventureiros eram tropas pagas a que o governo lançava mão quando necessitava de
gente para exploração de novos territórios, principalmente. E eram soldados voluntários
recrutados dentre a população em geral, sem muita distinção; diversos deles, acredito,
tenham se tornado povoadores nessas novas terras, terra estas que o governo distribuía
como incentivo aqueles que as quisessem povoar.
As ordens para formação destas companhias já aparecem na correspondência
dos governadores em 1769 como a ordem que foi dada ao Cap Mor Manoel Lopes de
Siqueira:
“Por quanto se faz precizo tornar a restabelecer hua Compª de Aventureiro a que se
deu baixa no Rio Grande, por me ser necessário para servir prezentemente em as
expedições projectadas: Ordena ao Cap Mor Manoel Lopes de Siqueira forme com
toda a brevidade a sua dita companhia com o número de cem praças; e os Capitães
Mores de todos os Destrictos da minha Jurisdição o deixem alistar todos aqueles
homens mais capazes de bem servir na dita Companhia... São Paulo a 16 de Março de
1769. Com a rubrica de S. Exª.”56
Nestas listas da Vila de Castro aparecem muitos pardos com situação econômica
relativamente estável, mesmo que não possuíssem escravos: há dois donos de negócios
de secos e molhados e um ferreiro. Estes casos nos remetem a pensar, com já foi dito
56 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edição do Arquivo Público do Estado.Vol V. Pág 148.
45
anteriormente, que a milícia talvez não criasse ascensão social, mas pertencer a ela
referendava a posição daquelas pessoas que já a possuíssem por algum outro motivo.
Uma situação que esclarece bem este ponto é o caso encontrado por Roberto
Guedes Ferreira57 ao estudar os pardos livres da Vila de Porto
Feliz, nas primeiras décadas do século XIX nos mostra o caso do pardo Joaquim
Barbosa Neves, um pardo de abundosos bens, que acumulou bens com o seu trabalho de
alfaiate e loja de fazendas; nas primeiras listas analisadas por Guedes, em 1813, ele
aparece como pardo e soldado da milícia, já nas listas de 1820 ele foi considerado
branco e ocupando o posto de alferes das forças milicianas.
Em 1818 Joaquim Barbosa foi promovido à graduação de sargento em
reconhecimento aos serviços prestados tanto na tropa de Linha da capitania do Mato
Grosso como no Regimento de Milícias de Sorocaba, esta promoção se devia ao fato do
dito pardo estar servindo a mais de dez anos no regimento de Sorocaba e em atenção aos
serviços prestados a sua Majestade e, provavelmente também ao seu relacionamento
com as autoridades da Vila em virtude de seus negócios e da sua condição social.
“Portaria ao Cel do Regimento Meliciano da Villa de Sorocaba para dar baixa ao
soldado Joaquim Barboza Neves. Atendendo ao que nos reprezentou Joaquim
Barboza das Neves da 8ª Companhia do Regimento de Melicias da Vila de Sorocaba.
Havemos por bem mandar-lhe dar baixa do Real Serviço o Snr. Coronel do
Regimento assim o tenha entendido e Cumpra. Qtel Gen.al de São Paulo 26 de Junho
de 1818 _- Com a rubrica de S. Exª. e S.S.”58
Logo depois uma outra Portaria ordena que o referido soldado seja novamente
incorporado a tropa, agora no posto de sargento do Regimento dos Úteis:
- “Portª ao Coronel do Regimento dos úteis pª sentar praça de Sargtº ao Soldº
Joaquim Barboza Neves as 6ª Companhia do Regimento de Sorocaba – Tendo
consideração ao que Joaquim Barboza Neves Soldado da 6ª Companhia do
Regimento de Sorocaba aquartellada em Porto Feliz alem de haver servido por
alguns annos na tropa de linha da Capitania de Matto Groço serve a dez annos no
sobredito Regimento de Milícia de Sorocaba sem que nelle possa ter augmento ou
razão de sua cor. Ordenamos ao Snr. Coronel Manoel Jozé Ribeira Chefe do
57 FERREIRA, Roberto Guedes. Trabalho, Família, Aliança e Mobilidade Social: Estratégias de Forros
e seus descendentes – Vila de Porto Feliz – São Paulo. Séc. XIX. In V Congresso Brasileiro de História Econômica e 6ª Conferência Internacional de Empresas. Caxambu. MG. 07 a 10 Set de 2003. 58 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edição do Arquivo Público do Estado. Vol. 88. Pág. 45
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Regimento Miliciano dos Úteis que assentando praça ao sobredito Soldado na Compª
que o Regimtº do seu comando tem na Villa de Porto feliz lhe declare logo a praça de
sargento em attenção aos serviços que o mencionado Joaquim Barboza tem prestado
a S. Magte. o que cumpra.
São Paulo. 24 de Julho de 1818 – Com a rubrica de S. Exª. e S. S”. 59
Neste caso nos parece que a promoção do pardo Joaquim Barboza Neves não se
deve ao seu desempenho como soldado da milícia, mas como era pessoa que possuía
posses e era bem relacionado com as autoridades do local onde morava, não poderia
ocupar postos subalternos na tropa e em virtude dessa condição é que foi promovido;
sua promoção a postos mais elevados indica, que a posição que ira ocupar agora, na
milícia, servia para referendar a sua posição na sociedade. Algum tempo depois este
mesmo pardo foi promovido ao posto de Alferes.
Como já foi visto no capítulo anterior, grande era a discriminação sofrida pelas
pessoas de cor nas forças militares, porém, isto não impediu que alguns deles
conseguissem sucesso nas suas pretensões de se inserirem na sociedade colonial; às
vezes até por influência direta das próprias autoridades como se vê no caso deste pardo
de Porto Feliz.
Quando algum deles se destacava, não só pelas habilidades militares, o que
acredito tenha sido os menores casos, mas sim quando se apresentavam como homens
de situação econômica privilegiada, era interesse da própria coroa faze-los oficiais
graduados, talvez até para aproveitamento da influência destes entre as pessoas de cor,
mesmo com isso passassem a usufruir de todos os privilégios inerentes aos cargos que
ocupavam. Em conseqüência disso alguns até saindo da condição de “pardo” e passando
a ser tratados como brancos.
59 “Documentos Interessantes” para a História e Costumes de São Paulo. Edição do Arquivo Público do Estado. Vol. 88 Pág. 247.
47
Conclusão
Ao chegar ao final da pesquisa o que se pode concluir é que a organização dessas
tropas de pardos e pessoas de cor na capitania de São Paulo apresentava algumas
diferenças com relação a outras capitanias da colônia tratadas pela historiografia, como
por exemplo, Bahia, Minas Gerais e Pernambuco. Nestas capitanias essas forças eram
organizadas em regimentos próprios, que ficavam aquarteladas nas mais diversas
localidades, com estrutura mais bem organizada e onde grande parte dos postos da
hierarquia, na maioria das vezes, eram ocupados pelas próprias pessoas de cor.
No que se refere à capitania de São Paulo estas unidades militares de homens de
cor não se encontravam vinculadas a nenhuma localidade específica, a exceção era o
Regimento dos Sertanejos da Vila de Itu; as outras referencias que se encontra quando
se fala nestas tropas é que eram companhias dispersas ou avulsas e que as autoridades
mandavam formar conforme a necessidade, como também acontecia com as
companhias de Aventureiros. Estas companhias foram muito utilizadas pelo governador
D. Luis Antonio de Souza, o Morgado de Matheus, na campanha do Sul contra a
invasão castelhana e na exploração dos sertões em busca de novos territórios, na
formação e defesa do forte de Iguatemi. Considerava este governador que estes
aventureiros eram os melhores soldados com que se podia contar para fazer frente aos
inimigos, principalmente, os castelhanos.
Conclui-se também que da maneira que eram desencadeados os recrutamentos
na época do Brasil colônia e da dificuldade que tinham as pessoas de se isentarem deles
é de supor e as fontes nos mostram que pessoas de cor eram recrutadas em todas as
circunstâncias e acredito também que esta seria uma maneira dessas pessoas se
inserirem as forças militares onde poderiam, dependendo das circunstancias,
conseguirem se projetar dentro das tropas e conseguir galgar postos elevados na
hierarquia.
Outra conclusão a que se chega e que era o objetivo principal deste trabalho é que
apesar de não ser muito comum, e mesmo com toda a discriminação a que estavam
submetidos, esses homens de cor podiam sim, fazer carreira nas forças militares da
capitania ocupando inclusive postos elevados na hierarquia, nas unidades específicas
que eram criadas, como aparece nos registros das correspondências enviadas pelas
autoridades da época. Nas unidades comuns, onde não existia essa separação, onde
também os homens de cor eram incorporados, existem registros de pessoas de cor
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ocupando postos de oficiais, o que provocava, na maioria das vezes, protestos dos
brancos, como vimos nas transcrições das fontes, onde foi realizada a pesquisa.
Esta possibilidade de ocupar postos elevados na hierarquia militar
representava, para essas pessoas, o que Herbert S. Klein escreveu no seu trabalho a
respeito dos homens de cor na sociedade colonial portuguesa, que realmente a inserção
nas tropas da capitania representava uma “avenida social” que possibilitava aos homens
de cor adquirirem projeção social e usufruírem dos mesmos privilégios que os brancos
tinham na sociedade.
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FONTES E BIBLIOGRAFIA
Fontes primárias:
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Arquivo do Estado de São Paulo.
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50
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