universidade federal do paraná setor de ciências humanas, letras e
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
MICHELLE MASCHIO
OS TEMAS DOS EVANGELHOS APÓCRIFOS NAS PINTURAS DE GIOTTO QUE SE
ENCONTRAM NA CAPPELLA DEGLI SCROVEGNI (SÉCULO XIV).
CURITIBA
2007
MICHELLE MASCHIO
OS TEMAS DOS EVANGELHOS APÓCRIFOS NAS PINTURAS DE GIOTTO QUE SE
ENCONTRAM NA CAPPELLA DEGLI SCROVEGNI (SÉCULO XIV).
Monografia apresentada à disciplina Estágio
Supervisionado em Pesquisa Histórica HH067.
Orientadora: Professora Doutora Fátima Regina
Fernandes.
.
CURITIBA
2007
SUMÁRIO
RESUMO ...................................................................................................................................... iii
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 01
1- A QUESTÃO APÓCRIFA E A ORTODOXIA CRISTÃ ....................................................... 06
2- UMA CAPELA PARA REGINALDO SCROVEGNI ............................................................ 20
3- JOAQUIM E ANA: HERANÇA APÓCRIFA ......................................................................... 29
CONCLUSÃO .............................................................................................................................. 37
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................... 38
ANEXOS ...................................................................................................................................... 40
RESUMO
Entre 1303 e 1305, o pintor florentino Giotto de Bondone ilustra a vida de São Joaquim e
de Santa Ana numa seqüência narrativa exclusivamente pautada na literatura apócrifa, em
particular, no Proto-Evangelho de São Tiago e no Evangelho do Pseudo-Mateus. Os afrescos
encontram-se na cidade de Pádua, na Itália, e estão situados na parte superior de uma capela,
conhecida como Capela da Arena, Capela da Areia ou, ainda, como Cappella degli Scrovegni, em
referência à família de banqueiros que a construiu em anexo a sua própria residência.
São Joaquim e Santa Ana não são citados no Novo Testamento. Conhecemos sua
existência somente por intermédio dos evangelhos apócrifos, isto é, daqueles livros que não
figuravam entre os evangelhos canônicos.
Notadamente, a Baixa Idade Média já contava com uma ortodoxia cristã bastante
consolidada, o que nos conduz a investigar como a mensagem apócrifa da existência dos avós de
Jesus chega ao início do século XIV e é absorvida por Giotto. Mais do que isso: interessa-nos
apreender a importância e as implicações dos textos apócrifos nas expressões artísticas
medievais, bem como, demonstrar sua contribuição como instrumentos de aprendizagem e de
propagação da fé cristã.
INTRODUÇÃO
O século XXI traz consigo o crescente interesse por assuntos ligados à religião, o que nos
conduz a uma infinidade de novas temáticas e de novas abordagens. Ao contrário dos tempos
medievais, somos convidados a analisar os dogmas e as antigas “certezas” que permeiam o
cristianismo ocidental. Deste modo, não se pode negar que atualmente o universo religioso
insere-se na condição de objeto de estudo para um número cada vez maior de historiadores.
Contudo, nosso interesse não reside propriamente na apreensão de dogmas, nem
tampouco no estudo da Igreja Católica enquanto instituição. Estaremos discutindo a respeito de
representações artísticas produzidas num contexto medieval, cujo conteúdo religioso é norteado
por certas especificidades.
Mais precisamente, estaremos nos reportando a um conjunto de seis afrescos, pintados por
Giotto de Bondone1, entre 1303 e 1305. Os afrescos encontram-se na cidade de Pádua, na Itália, e
estão situados na parte superior de uma capela, conhecida como Capela da Arena, Capela da
Areia ou, ainda, como Cappella degli Scrovegni, em referência à família de banqueiros que a
construiu em anexo a sua própria residência.
Giotto, segundo Vasari, quando foi chamado pela família Scrovegni para executar esta
obra, já era bastante reconhecido como pintor e teria efetuado essa encomenda com o auxílio dos
discípulos de sua própria oficina, o que demonstra que os artistas deste período já haviam
ultrapassado a barreira do anonimato. Giotto encontra-se entre os primeiros artistas medievais a
ser patrocinado por uma burguesia urbana nascente, da qual partilhava certos valores, inclusive
sendo um homem bem-sucedido financeiramente, o que não era comum entre os pintores do
começo do século XIV.
A Capela Scrovegni é completamente tomada por afrescos, os quais se dividem em quatro
grandes temas: a vida de São Joaquim e Santa Ana; a vida de Maria; a vida, paixão e morte de
Jesus Cristo; e um grupo de alegorias que representam as virtudes — le virtú — e os vícios — i
vizi. Os seis afrescos referidos anteriormente, os quais constituem a fonte de nosso
questionamento, encontram-se inseridos na temática que narra a trajetória de vida de São
1 As informações sobre a vida e a autoria de muitas das obras de Giotto são, por vezes, bastante desencontradas, entretanto existe um certo consenso a respeito das considerações de Vasari, escritas em 1568, no livro: VASARI, Giorgio. Le vite dei piú eccellent pittori, scultori e architetti. Milano: Newton, 1993. Também disponível em: http://bepi1949.altervista.org/vasari/vasari00.htm
Joaquim e de Santa Ana. O motivo que orientou nossa escolha foi o fato de que Giotto utilizou-se
exclusivamente da literatura apócrifa2, ou seja, não-canônica, para concretizar essa parte de seu
empreendimento.
A temática que envolve a natividade de Maria perpassa igualmente por essa literatura,
contudo existe também a presença de elementos contidos na Bíblia Sagrada, o que não ocorre no
recorte anterior, pois se hoje conhecemos a identidade dos pais de Maria — inclusive seus nomes
— isso se deve tão somente aos escritos apócrifos. Em contrapartida, o conjunto de afrescos que
faz referência à vida de Cristo é todo de orientação canônica.
Deste modo, entende-se que Giotto “bebe” mais de uma fonte para construir sua narrativa
pictórica. Tendo em vista que nosso interesse reside em analisar apenas a expressão apócrifa de
Giotto — assim como suas implicações —, justifica-se nossa escolha pelo conjunto que trata dos
avós de Jesus.
São Joaquim e Santa Ana não são citados no Novo Testamento. Conhecemos sua
existência por intermédio dos evangelhos apócrifos, isto é, daqueles livros que não figuravam
entre os evangelhos canônicos, mas que, de certa forma, não continham idéias consideradas
heréticas. Os evangelhos apócrifos — que se constituem em um segmento dessa literatura
marginal — são livros escritos bem a posteriori à morte de Cristo, o que impossibilitava que os
mesmos fossem incorporados ao cânon oficial. Em geral, esses escritos circulavam apenas nas
mãos de eclesiásticos, o que não impediu que seu conteúdo chegasse ao conhecimento popular.
Nem tampouco que houvesse uma discussão acalorada no seio da Igreja sobre a questão apócrifa,
que se arrastaria por séculos, até mais precisamente, o Concílio de Trento, em meados do século
XVI.
Na seqüência de afrescos já referida, Giotto utiliza-se claramente de dois textos apócrifos,
os quais figuram hoje no que chamaríamos de “Evangelhos da Natividade e da Infância”, são
eles: o Proto-Evangelho de São Tiago e o Evangelho do Pseudo-Mateus. Ambos precocemente
excluídos da literatura oficial da Igreja. Esses apócrifos não foram incorporados ao cânon, entre
outras razões, por terem sido comprovadamente escritos a partir do século II d.C., o que
implicava em conseqüentes problemas de datação e de autoria, e por apresentarem uma
2 Seguramente pode-se afirmar que o número de apócrifos é superior ao número de livros componentes da Bíblia Canônica, sendo possível contabilizar aproximadamente 52 livros apócrifos, em relação ao Antigo Testamento e, por volta de 60, referentes ao Novo Testamento.
construção literária completamente distinta daquela apresentada pelos textos considerados
oficiais.
Foi durante o medievo, mais precisamente nos concílios e sínodos eclesiásticos, que os
dogmas cristãos foram se instituindo e se consolidando. Notadamente os primeiros séculos do
cristianismo correspondem ao período no qual os textos considerados sagrados ou “inspirados”
foram selecionados. Sendo assim, será necessário que nossa análise detenha-se ainda na
construção desta ortodoxia. O que se pode afirmar prontamente é que ao cabo do século IV, já
tinham sido selecionados os mesmos 27 livros que compõem o Novo Testamento que
conhecemos, inclusive, os quatro evangelhos canônicos: Mateus, Marcos, Lucas e João.
A discussão — que se arrastaria por séculos — diz respeito à convivência entre cristãos e
essa literatura marginal que surgia esporadicamente, e de forma silenciosa, tanto no Ocidente
quanto no Oriente. Pode-se pensar que existiu uma trajetória de exclusão destes livros, que de
início eram denominados apenas como não-canônicos, contudo o que nos parece mais acertado é
que houve um surto de escritos apócrifos, especialmente entre os séculos IV e VIII. Sendo que o
descobrimento de escritos dessa natureza pode ser verificado até os dias de hoje, se tomarmos
como exemplo os textos descobertos em Nag Hammadi, em 1945, no Egito.3
A partir dessas considerações, e retornando ao contexto de Giotto, surgem os primeiros
questionamentos. Como é possível, em plena baixa Idade Média, quando a ortodoxia cristã
ocidental já está praticamente consolidada, que um pintor possa expressar idéias e representações
religiosas que não estejam propositadamente contidas na Bíblia? Por que os apócrifos eram
freqüentemente uma das maiores fontes de inspiração para os artistas medievais? À essas
indagações seguem-se outras, o que nos levará a investigar a suposta liberdade com que Giotto
pôde empreender suas narrativas pictóricas e, até que ponto, esteve ou não orientado pelo
pensamento franciscano.4
3 Aldeia egípcia dotada de uma biblioteca de mesmo nome, na qual foram descobertos manuscritos em copta, escritos por volta do séc II d.C. A descoberta, feita por populares, totaliza treze códices de papiro e o seu conjunto ficou conhecido como Evangelhos Gnósticos e, possivelmente, sejam as versões mais antigas de que temos notícia de alguns dos já conhecidos apócrifos, tanto do Novo quanto do Velho Testamento. Ver: PIÑERO, Antonio (Ed.). Textos gnósticos: biblioteca de Nag Hammadi I. Madrid: Trotta, 1997, pp. 9-12; ROBINSON, James M. A biblioteca de Nag Hammadi: a tradução completa das Escrituras Gnósticas. São Paulo: Madras, 2006, pp. 9-11. 4 Giotto parece revelar de uma forma artística o humanismo que São Francisco de Assis imprimiu à religião no início do século XIII, o que não seria apenas um acaso, tendo em vista que a ordem franciscana foi a principal patrocinadora do pintor ao longo de toda sua vida.
Neste sentido, interessa-nos verificar o contexto da construção da Capela Scrovegni, o que
implica em conhecer seus patrocinadores e as reais motivações desse empreendimento. Assim
como, observaremos sua relação com outras formas artísticas contemporâneas, como a literatura
de Dante Alighieri (1265-1321), que além de admirador da obra de Giotto, era seu compatriota
florentino. Resta-nos, ainda, analisar com maior cuidado a apropriação que Giotto faz de suas
fontes apócrifas, com vistas a atender às necessidades de seus patrocinadores burgueses. Na
seqüência, temos a intenção de demonstrar a importância das mensagens apócrifas — na arte
medieval — como instrumentos de aprendizagem e de propagação da fé cristã.
Inicialmente, não podemos deixar de mencionar as informações desencontradas, e, até por
vezes, contraditórias sobre Giotto de Bondone. A data de seu nascimento, o aprendizado com
Cimabue5 e, até mesmo, a autoria dos afrescos da Basílica de São Francisco, em Assis, são
algumas das informações sobre o pintor que não derivam de um consenso entre os historiadores
da arte.
Em nossa análise, sucintamente, estaremos entendendo que Giotto foi, de fato, discípulo
de Cimabue e que executou a obra na Basílica para os franciscanos, por volta de 1296, mesmo
que algumas de nossas referências mais significativas não concordem com tais formulações. Cabe
agora esclarecer que estaremos tratando apenas da temática apócrifa contida nos afrescos de
Giotto, ou seja, não estaremos limitados às suas conhecidas inovações pictóricas. Ao contrário,
estaremos explorando a relação entre Giotto e sua expressão não-canônica; assunto ainda pouco
explorado pelos historiadores.
Com referência à literatura apócrifa, pode-se afirmar que é desconhecido o número total
de escritos a esse respeito, bem como, é notória a infinidade de edições, reedições e traduções de
textos dessa natureza. Contudo, em nossa análise estaremos restritos a apenas dois apócrifos, o
Proto-Evangelho de São Tiago e o Evangelho do Pseudo-Mateus, ambos contidos no livro
Evangelhos Apócrifos, de Luigi Moraldi.6
O desenvolvimento desta análise implicará na sua divisão em três capítulos: O Capítulo 1
— A questão apócrifa e a ortodoxia cristã — discute sobre o que é um apócrifo, e confronta
5 Giovanni Cimabue (c.1240-1302). Ver: CHILVERS, Ian. Dicionário Oxford de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.114. 6 MORALDI, Luigi. Evangelhos Apócrifos. São Paulo: Paulus Editora, 2005, pp. 91-161.
ainda, as especificidades canônicas e não-canônicas. Na seqüência, destacaremos alguns
“doutores” da Igreja que foram, de algum modo, protagonistas na seleção dos textos que hoje
conhecemos como canônicos, o que inclui suas respectivas considerações sobre os apócrifos, em
especial, sobre o Proto-Evangelho de São Tiago e o Evangelho do Pseudo-Mateus, ambos fonte
de inspiração para Giotto.
O Capítulo 2 — Uma capela para Reginaldo Scrovegni — discute o contexto da
península itálica na virada do século XIII para o século XIV, com vistas a apreender as
especificidades e as motivações derivadas da construção dessa capela para a família Scrovegni. O
que implica, também, em conhecermos as influências mais imediatas que poderiam recair sobre o
pintor, como o pensamento franciscano e as próprias exigências impostas por seus patrocinadores
burgueses.
O Capítulo 3 — Joaquim e Ana: herança apócrifa — visa uma análise mais detalhada
sobre a utilização temática apócrifa por parte de Giotto. Esse capítulo pretende verificar também
se existe um diálogo entre a expressão apócrifa de Giotto e outras formas artísticas
contemporâneas. Pretendemos, ainda, proporcionar uma discussão que demonstre a importância
da literatura apócrifa na iconografia medieval, bem como, sua relevância junto à construção de
um imaginário notadamente cristão.
1- A QUESTÃO APÓCRIFA E A ORTODOXIA CRISTÃ
Quando Giotto de Bondone, por volta do ano de 1303, pinta inúmeros afrescos no interior
da Capela Scrovegni; Mateus, Marcos, Lucas e João já eram, há praticamente dez séculos, os
únicos Evangelhos aceitos pela ortodoxia cristã. O que não significa que a questão apócrifa
estivesse definitivamente encerrada, pelo contrário, o surgimento — ou descobrimento — de
textos dessa natureza verifica-se principalmente após o estabelecimento do cânon do Novo
Testamento no século IV.
De acordo com Daniélou & Marrou, após a morte de Jesus, a comunidade cristã ficou a
cargo dos Apóstolos. “Ter sido testemunha de Cristo ressuscitado é condição para alguém ser
Apóstolo. Como o último a quem Cristo ressuscitado apareceu é que São Paulo foi agregado aos
doze.”7 Notadamente, Pedro e Paulo figuram como protagonistas no processo de formação das
primeiras igrejas cristãs — inclusive da igreja de Roma — sendo que neste momento já podemos
encontrar os primeiros conflitos com relação à doutrina cristã. Pedro tinha por objetivo converter
judeus ao cristianismo e, buscava, ainda, uma convivência pacífica entre a lei mosaica e os
ensinamentos de Jesus. Paulo, no entanto, procurava desvincular o cristianismo da religião
judaica e objetivava converter os pagãos.8
Uma terceira força atuante nas primeiras décadas do cristianismo foi Tiago, “o irmão do
Senhor”9, que é distinto dos dois Apóstolos de mesmo nome. São Tiago ocupava um lugar
eminente no meio judeu-cristão de Jerusalém, sendo seu primeiro bispo:
“Assim, no Evangelho dos Hebreus (...) é a este Tiago que Cristo ressuscitado aparece primeiro.
No Evangelho de Tomé, reencontrado em Nag Hammadi, Tiago, o Justo, é apresentado como
aquele a quem se devem dirigir os Apóstolos após a Ascensão. Clemente, em suas Hypotyposes, o
menciona antes de João e Pedro, como aquele que recebeu a gnose de Cristo. (...) Nos escritos
pseudo-clementinos, que utilizam fontes judeu-cristãs ebionitas, Tiago se apresenta como o
personagem mais importante da Igreja.”10
7 DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri-Irenée. Nova História da Igreja, v. 1: Dos primórdios a São Gregório Magno. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 29. 8 Ibid., p. 55. 9 Tiago Menor seria, segundo a tradição que deriva dos apócrifos, filho das primeiras núpcias de José. Ver: MORALDI, Luigi. Op. cit., pp. 91-100. 10 DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri-Irenée. Op. cit., p. 33.
Tiago não será mais mencionado após o ano de 70, provavelmente por ocasião de sua
morte. Contudo, o futuro reservará ao mesmo a autoria de um Evangelho, conhecido hoje como
Proto-Evangelho de São Tiago ou Livro de Tiago Menor — o qual figura entre as fontes
apócrifas utilizadas por Giotto —, de dois Apocalipses e de mais um escrito: o Apócrifo de Tiago.
Sabemos, ainda, por uma tradição disseminada por Eusébio de Cesaréia11, que os
Apóstolos dividiram-se e foram pregar o Evangelho pelos quatro cantos da terra. Segundo
Eusébio, de um modo geral, Tomé teria se dirigido à região dos partas (Pérsia), André para a
Cítia (Irã), Mateus para a Etiópia, Marcos teria fundado igrejas no Egito, João dirigiu-se à Ásia.
Pedro pregou na Síria, no Ponto e em Roma; Paulo dedicou-se em especial à Grécia, mas
também, à Ásia e ao Ocidente.12
Talvez, a precoce evangelização fora dos domínios de Jerusalém possa explicar o
surgimento de textos apócrifos tão antigos e em regiões tão diversas, alguns destes, inclusive,
datados do início do século II. “Os escritos apócrifos do Novo Testamento estão repartidos em
ciclos: ciclo de Pedro, ciclo de Tomé, ciclo de Filipe, ciclo de João. Ora, esses ciclos parecem
referir-se de fato a ambientes geográficos determinados.”13 Entretanto, a datação não é a única
condição para caracterizarmos um texto apócrifo. Mas afinal, o que é um apócrifo? Pelos menos,
quanto à origem etimológica da palavra, nossas referências têm opiniões bastante convergentes.
A palavra apócrifo deriva do grego apokryphos e significa algo secreto, oculto, escondido.
Para a Igreja Católica o termo apócrifo acabou adquirindo o significado de algo não-
canônico, ou seja, não-oficial, e, conseqüentemente, o de algo sem autenticidade, sem “inspiração
divina”. Contudo, podemos afirmar que os apócrifos não existem apenas em meio aos cristãos e
não dizem respeito apenas à vida de Cristo, pois é notória a existência de apócrifos judaicos, bem
como, de apócrifos referentes ao Antigo Testamento.
A Bíblia Católica contém sete livros a mais — no que se refere ao Antigo Testamento —
do que as compilações hebraicas. Para os judeus, os denominados deuterocanônicos14, ou livros
11 Bispo de Cesaréia (c. 275-339) que é apontado como primeiro historiador do cristianismo. Eusébio teve também papel relevante junto ao imperador Constantino, bem como, durante o Concílio de Nicéia (325), o qual buscava uma unidade da doutrina cristã frente às crescentes tendências heterodoxas. 12 EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica: os primeiros quatro séculos da Igreja Cristã. Rio de Janeiro / São Paulo: Casa Publicadora das Assembléias / Novo Século, 2002, p. 77. 13 DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri-Irenée. Op. cit., p. 63. 14 Expressão de origem grega que significa segundo cânon, em oposição a protocanônico (primeiro cânon) que teria sido exposto em um sínodo judaico, na cidade de Jâmnia por volta do ano de 90 d.C. O termo é aplicado a um conjunto de sete livros aceitos pelos cristãos como “inspirados”, os quais os judeus consideram desde então como apócrifos, a saber: Tobias, Judite, I Macabeus, II Macabeus, Sabedoria, Eclesiásticos e Baruc. Além desses livros,
do segundo cânon, não passam de textos apócrifos. O fato é que os cristãos adotaram de modo
irreversível a versão alexandrina da bíblia judaica para o Antigo Testamento. Esta ficou
conhecida como a Bíblia dos Setenta ou Septuaginta15, em alusão aos setenta rabinos que a
teriam traduzido para o grego, por ocasião de uma encomenda feita em Alexandria pelo então rei
do Egito Ptolomeu II (287-247 a.C.).
De acordo com Miller, esse cânon alexandrino para o Antigo Testamento, instituído no
século III a.C., foi reconhecido desde muito cedo por importantes eruditos cristãos como Irineu,
Justino e Cipriano, sendo que em nenhum concílio da Igreja primitiva foi recusada sua
canonicidade.16 Obviamente, houve discussões e dissensões sobre o assunto, e, ainda hoje, os
deuterocanônicos figuram como escritos “não-inspirados” para judeus e cristãos não-católicos.17
Com referência à composição do Novo Testamento, a discussão seria mais extensa e a
postura que um cristão deveria adotar em relação aos livros, então, marginalizados — ou não-
canonizados — só seria conhecida definitivamente após o Concílio de Trento, no decorrer do
século XVI.
Apócrifo não é sinônimo de herético, contudo uma das acusações mais freqüentes que
recaem sobre os apócrifos é que estes contêm idéias heréticas. Santo Irineu, doutor da Igreja
durante o século II, em sua obra mais célebre Adversus Haereses (Contra os Hereges), já
condenava aqueles que não admitiam o quádruplo Evangelho que se consolidava entre a
comunidade cristã. Sua luta incansável foi dirigida aos hereges, especialmente os gnósticos e os
valentinianos18.
“Siendo así las cosas, dan muestras de vanidad, ignorancia y atrevimento, aquellos que destrozam
la forma del Evangelio, y que o aumentam o disminuyen el número de los Evangelios: algunos lo
hacen para presumir de haber encontrado algo más de la verdad, otros para condenar las
Economías de Dios (...) Por su parte, los valentinianos dejam de lado toda vergüenza y presumen
podemos encontrar alguns fragmentos deuterocanônicos em livros canônicos como é o caso de alguns episódios em Ester e em Daniel. Ver: ZILLES, Urbano. Op. cit., p. 21. 15 Palavra latina que significa setenta, ou simplesmente, LXX. 16 MILLER, John W. As origens da Bíblia: repensando a história canônica. São Paulo: Loyola, 2004, pp.23-25. 17 Os protestantes, assim como os judeus, qualificam os deuterocanônicos como escritos apócrifos. 18 DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri-Irenée. Op. cit., pp. 115-122.
a los cuatro vientos, alardeando de que sus escritos contienen más verdades que los mismos
Evangelios.”19
Orígenes, personagem eminente da Igreja do século III, compartilha as idéias de seu
predecessor Irineu e serve de testemunho do esforço empregado pelos cristãos em distinguir os
escritos canônicos dos apócrifos, estes entendidos como obras heréticas, ou suspeitos de heresia:
“Assim agora, no Novo Testamento, muitos tentaram escrever o evangelho; antes, pelo prefácio
de Lucas, sabemos que foram escritos muitíssimos evangelhos. (...) A Igreja possui quatro
evangelhos; as seitas antigas possuem numerosíssimos, entre eles, um foi escrito segundo os
Egípcios, e outro segundo os Doze Apóstolos; (...) Entre todos esses escritos aprovamos só
aqueles que a Igreja aprova...”20
Apesar disso, tanto Irineu quanto Orígenes não denominavam tais escritos como
apócrifos, pois essa designação somente será encontrada formalmente em São Jerônimo, em fins
do século IV. “Inicialmente os livros que hoje chamamos apócrifos eram chamados ‘não
canônicos’, ‘duvidosos’, ‘contestados’, ‘livros que não podem ser lidos na igreja’, ‘livros
permitidos aos catecúmenos’...”21
Moraldi revela-nos que Santo Irineu denominava escritos dessa natureza como
“falsificados”.22 Isso não significa que os doutores dos primeiros séculos do cristianismo
desconhecessem tal termo, contudo utilizavam a palavra apócrifo para caracterizar certos textos
referentes ao Antigo Testamento e a outros de inclinação gnóstica.
Quando Clemente de Alexandria — teólogo e mestre de Orígenes — ao final do século II,
mencionava apokrypha biblia (livros apócrifos) em sua obra Stromata, provavelmente estava
fazendo uma alusão a escritos gnósticos. “Clemente fala dos gnósticos que se apoiavam em livros
apócrifos. Portanto, é provável que a palavra, como usada na tradição teológica, se tenha
originado no contexto gnóstico, no qual se refere a obras consideradas tão sagradas que não
deveriam ser acessíveis a todos.”23
19 IRENEO DE LYON (S.). Contra los Herejes: exposición y refutación de la falsa gnosis. México: CEM, 2000, p. 293. 20 ORÍGENES. Lc hom.,praefatio.In: MORALDI, Luigi. Op. cit., p. 16. 21 MORALDI, Luigi. Op. cit., p. 13. 22Ibid., pp. 11-14. 23 ZILLES, Urbano. Evangelhos Apócrifos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p.11.
O que nos conduz a discutir a respeito do gnosticismo e sua relação com a questão
apócrifa. Para os que se dizem gnósticos atualmente, o gnosticismo seria uma fusão da ciência
sagrada do Egito com a filosofia grega — das quais é indiscutivelmente tributária — que teria
ocorrido no século I a.C., e se estendido com vigor até meados do século III d.C.24 Entretanto,
para os historiadores da Igreja, o mais acertado seria pensarmos em um gnosticismo derivado de
correntes messiânicas — anteriores a Cristo — mas que de fato toma consistência já em meio
judeu-cristão, adquirindo um novo sentido e engrossando a fileira de correntes heterodoxas da
época.
Daniélou & Marrou preferem abordar a questão partindo do messianismo asiático e da
primeira obra reconhecida como gnóstica:
“O gnosticismo nasce após 70 nos meios judeu-cristãos messianistas da Ásia com Cerinto, de
Antioquia com Menandro. A corrente asiática representa um caráter mais prático. Sublinha
sobretudo o aspecto da revolta contra a Lei. Apresenta-se como exasperação de certas tendências
paulinas. Reveste certas formas amoralistas. A corrente antioquena é mais especulativa. É ela que
suscita com o Apocryphon de João, a primeira grande obra gnóstica que conhecemos. As duas
correntes desenvolveram-se em Alexandria....”25
Ainda de acordo com os autores, o gnosticismo teria encontrado ambiente favorável na
cidade de Alexandria. Uma conseqüência direta dessa influência filosófica pode ser sentida na
figura de Orígenes. Este acabou condenado pela Igreja — séculos após sua morte — por suspeita
de tendências gnósticas. Mesmo sendo um teólogo da mais alta credibilidade, não conseguiu
escapar por completo da influência filosófica neoplatônica e pitagórica que recebia do meio
egípcio.
Segundo Piñero, a palavra gnose procede do grego gnosis e significa conhecimento, ou
conhecimento em relação à ignorância. O objeto de conhecimento da gnose é a divindade, tudo
que dela provém e sua relação com os homens. Neste sentido, somente o homem conhecendo sua
essência poderia alcançar a salvação. Conhecer implica, assim, na salvação de todo o mal, ao qual
24 RAMOS, Lincoln. (Org.). Bíblia Apócrifa: fragmentos dos evangelhos apócrifos. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 19. 25 DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Op. cit., p. 88.
o homem possa estar imerso. Esse conhecimento opõe-se veementemente ao conhecimento
intelectual ou epistéme; este expressando um conhecimento científico em oposição à opinião.26
É, ainda, um movimento que reivindicava a posse de conhecimentos secretos, os quais
acabavam por segregar — de certo modo — a comunidade cristã, tendo em vista que a gnose era
um ensinamento repassado a poucos. “Inclusive pelos documentos canônicos sabemos com
segurança que Jesus não ensinava ao povo a doutrina em sua totalidade. De vez em quando reunia
seus discípulos mais íntimos e ia completando, esclarecendo ou explicando certos pontos de seus
ensinamentos que não podiam ser compreendidos pelo povo comum.”27
Ao gnosticismo foi relacionada a palavra apócrifo com o intuito de designar sua produção
literária, aproximando-se assim de sua origem etimológica grega. De acordo com Moraldi, “... é
muito mais provável que esse termo fizesse parte da terminologia gnóstica pagã. Ele significava
alguma coisa ‘mantida escondida por causa de sua preciosidade’ (...) não se trata, em todo o caso
de escritos cuja leitura fosse proibida aos judeus ou aos cristãos, mas de livros secretos e
preciosos para os gnósticos.”28 Tanto Moraldi quanto Zilles admitem que, durante a Antigüidade,
chamavam-se apócrifos também os livros destinados ao uso privado dos iniciados em alguma
seita.
Outra distinção que se faz necessária é aquela que vincula indiscriminadamente todo e
qualquer escrito apócrifo ao gnosticismo. Existe, sim, uma relação entre ambos, contudo
podemos afirmar que esta se limita apenas aos textos que pretendem ser reconhecidos como
evangelhos, ou seja, textos que falam diretamente de Jesus. Essa relação bastante estreita, e um
tanto incorreta, entre evangelhos gnósticos e apócrifos ultrapassou os primórdios do cristianismo
e foi resgatada recentemente, em meados do século XX, por ocasião das descobertas de Nag
Hammadi. 29 O fato é que o conjunto de evangelhos encontrados nessa aldeia egípcia passou a ser
denominado como “Evangelhos Gnósticos”.
Nas reflexões de Ramos e Zilles sobre a definição do que seria um apócrifo, encontra-se
ainda uma discussão sobre a palavra ágrafo. “Os apócrifos distinguem-se dos ágrafos. Por ágrafos
entendem-se frases avulsas, proferidas por Jesus Cristo, que não se encontram nos Evangelhos
26 PIÑERO, Antonio (Ed.). Op. cit., pp. 32-36. 27 Ibid., p. 159. 28 MORALDI, Luigi. Op. cit., p. 13. 29 Biblioteca de Nag Hammadi é a designação dada ao conjunto de manuscritos copta, descobertos em dezembro de 1945, numa aldeia egípcia de mesmo nome. Ao todo, totalizam 13 códices de papiro. Ver: PIÑERO, Antonio (Ed.). Op.cit., pp. 9-12; ROBINSON, James M. Op.cit., pp. 9-11.
Canônicos, mas foram conservadas em outros livros do Novo Testamento ou em outras fontes.
Literalmente, ágrafo é a expressão grega que significa “não escrito”.30 Como exemplo de ágrafo
podemos tomar uma frase proferida por Jesus e contida nos Atos dos Apóstolos: “Há mais
felicidade em dar do que em receber.” (At 20:35)
Outro termo que ainda carece de maiores esclarecimentos é o que diz respeito à palavra
cânon. “Para os gregos, o termo kanon, donde o nosso substantivo ‘cânon’ e o adjetivo
‘canônico’, designa a norma, a forma perfeita, o escopo estabelecido, a medida, o critério para
julgar, medir qualquer coisa. Há aqui algo caracteristicamente grego: existe no mundo uma
ordem, uma medida, uma beleza...”31 Cânon, em grego, significa ainda régua ou cana de medir.32
Quando este vocábulo alcança o mundo latino, ele adquire o sentido de modelo; de regra a ser
seguida.
Na apropriação cristã desse termo, a palavra cânon acabou por designar o conjunto de
livros — tanto Antigo quanto do Novo Testamento — que foi considerado pela ortodoxia da
Igreja, como divino ou de inspiração divina. Já no decorrer do século II d.C., e,
progressivamente, a palavra cânon tornava-se sinônimo de Bíblia.33 Igualmente, não podemos
confundir cânon bíblico com o conjunto de normas que regulam a disciplina eclesiástica e que
recebe a mesma designação.
Antes mesmo do primeiro cânon referente ao Novo Testamento, os quatro evangelhos
canônicos e os Atos dos Apóstolos já eram considerados como escritos inspirados. Sabe-se que o
reconhecimento e a compilação de tais escritos iniciou-se pelos próprios Apóstolos. Paulo
considerou o texto de Lucas tão repleto de autoridade quanto os do Antigo Testamento (I
Timóteo 5:18; Deuteronômio 25:4 e Lucas 10:7). Pedro reconheceu os registros de Paulo como
parte das Escrituras (II Pedro 3:15).
Atualmente, a Igreja considera como primeiro cânon neotestamentário, o fragmento de
Muratori.34 Deste escrito — fragmentado — perdeu-se o início e o fim, contudo é consensual
30 ZILLES, Urbano. Op. cit., p. 21. 31 MORALDI, Luigi. Op. cit., p. 11. 32 RAMOS, Lincoln. (Org.). Op. cit., p. 10. 33 Ibid., pp. 9-10. 34 Texto latino datado do século VII, provavelmente uma cópia do original produzido por volta de 170 d.C., foi descoberto na Biblioteca Ambrosina por Ludovico Antônio Muratori no ano de 1740. Posteriormente, foram encontrados outros fragmentos deste mesmo manuscrito na Biblioteca de Monte Cassino. Ver: MORALDI, Luigi. Op. cit., pp. 17-18.
entre os estudiosos que tivesse mencionado os Evangelhos de Mateus e de Marcos, especialmente
pelo fato de que, em suas primeiras linhas conhecidas, o texto salienta que o terceiro livro do
evangelho era segundo Lucas. O texto prossegue:
“O quarto evangelho é de João, um dos apóstolos. (...) André teve a revelação, segundo a qual, com
a aprovação de todos, João devia escrever o evangelho do qual é autor. (...) Os feitos de todos
apóstolos foram escritos num livro: com uma dedicação ao excelentíssimo Teófilo (...) Acolhemos
também os apocalipses, mas só os de João e de Pedro, sendo, porém, que este último alguns de nós
não querem que seja lido na igreja. (...) Seja como for, de Arsinoo, de Valentino e de Milcíades não
aceitamos absolutamente nada. Imaginem! Os marcionitas até escreveram um novo livro de
salmos...”35
De um modo geral, o cânon Muratoriano incluiu todos os livros do Novo Testamento com
a exceção de Hebreus, II João e III João. Além de elencar os textos considerados como sagrados,
o fragmento inaugurou, ainda, outras categorias de distinção para os textos não-canônicos, como
foi o caso do Apocalipse de Pedro.
Moraldi apresenta-nos, resumidamente, essa diferenciação: “1) livros considerados
sagrados por todos e que devem ser lidos na liturgia; 2) livros que não são aceitos por todos como
sagrados e que, por isso, em algumas igrejas não são lidos publicamente; 3) livros que podem ser
lidos privadamente, não na liturgia; 4) livros que a Igreja não pode aceitar, porque, escritos por
hereges, contêm erros.”36
Eusébio de Cesaréia, personalidade importante da primeira metade do século IV, também
transmitiu seu parecer acerca dos textos que circulavam em sua época, dividindo-os em quatro
categorias:
“1) livros homologúmenos, isto é, aceitos por todas as igrejas, ‘aos quais — escreve ele — se se
julgar oportuno, podem ser acrescentados o Apocalipse de João’; 2) livros antilegúmenos, isto é,
que são objetos de contestação, se bem que sejam aceitos por muitos (são os livros
‘deuterocanônicos’); 3) livros adulterados, escritos apócrifos citados por vários escritores
eclesiásticos e que circulam pelas igrejas, os quais, embora não estejam entre os canônicos, não
contêm idéias heréticas, isto é, têm caráter ortodoxo; entre esses livros ele cita o Evangelho dos
judeus, o Apocalipse de Pedro, os atos de Paulo, o Apocalipse de João, o Pastor de Hermas e
35 Fragmento Muratori. In: MORALDI, Luigi. Op. cit., pp. 18-20. 36 MORALDI, Luigi. Op. cit., p. 18.
outros; 4) livros heréticos, os quais pretendem substituir os escritos canônicos e para isso adornam-
se com o nome de algum apóstolo; entre esses ele cita o Evangelho de Pedro, o Evangelho de
Tomé, o Evangelho de Matias, os atos de João e outros.”37
Como se pode observar até então, a Igreja cristã dos primeiros séculos está centrada
principalmente na teologia de seus primeiros doutores e patriarcas. Até mesmo os concílios, nesse
primeiro momento, tiveram um alcance regional. Deste modo, podemos observar que as longas
distâncias e falta de contatos com maior freqüência favoreciam o surgimento de desvios da
ortodoxia.
Após séculos de perseguições aos cristãos, iniciadas com Nero (54-68), e com diferentes
intensidades até Diocleciano (284-305), o Império Romano, sob o imperador Constantino I (306-
337) torna o cristianismo sua religião oficial. Neste sentido, o próprio imperador encarregou-se
de fomentar a organização de um concílio eclesiástico com o intuito de fixar as bases para essa
ortodoxia. O primeiro Concílio de Nicéia, realizado em 325, tinha por objetivo alcançar uma
unidade em torno dos principais dogmas do cristianismo, tendo em vista que, com a associação
do cristianismo ao poder, as discussões doutrinárias passaram a ser tratadas como questões do
Império.
Obviamente a seleção dos escritos canônicos não seria a única preocupação desse
concílio. Entre os temas a serem discutidos estava, não menos, que a questão da Trindade e se a
celebração da Páscoa cristã deveria coincidir, ou não, com a judaica. Entretanto, o chamado
primeiro concílio ecumênico — ou universal — da Igreja ainda se ocuparia da ratificação do
quádruplo Evangelho. Infelizmente, não dispomos da documentação completa sobre o concílio
realizado em Nicéia. Conhecemos alguns detalhes das discussões teológicas por intermédio de
testemunhas oculares como Eusébio de Cesaréia e Santo Atanásio de Alexandria.
Sobre a seleção dos textos canônicos, sabemos apenas que foi a consagração de uma
tradição que viria pelo menos do ano de 170 d.C., provável data da redação do fragmento
Muratori. Todavia, é preciso lembrar que nenhuma das normas emanadas anteriormente podia
reivindicar a mesma validade universal, dada a representatividade mais restrita dos concílios
anteriores a Nicéia.
Mas quais seriam os critérios que caracterizariam um texto canônico? De acordo com
Miller, primeiramente, deveria ter sua autoria comprovada. Ainda neste quesito, o autor deveria 37 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Hist. eccles 3,25. In: MORALDI, Luigi. Op. cit., pp. 16-17.
ser reconhecidamente um Apóstolo ou ter tido contato com os mesmos; como é o caso de Marcos
e Lucas. O segundo critério diz respeito à doutrina, ou seja, o conteúdo do livro deveria estar de
acordo com o restante das Escrituras e, naturalmente, não apresentar heresias. O terceiro ponto é
a universalidade do texto, ou sua aceitação por parte de todas as igrejas e, o último critério seria
comprovar sua inspiração divina.38
Miller atenta para o fato de que, em Nicéia, foram declarados oficialmente pela
comunidade ecumênica os quatro evangelhos. Entretanto, se considerarmos os outros livros do
Novo Testamento, bem como, o Antigo Testamento — inclusive os deuterocanônicos —
podemos creditar a uma Carta Pascal, escrita em 367 por Santo Atanásio de Alexandria, o cânon
cristão mais próximo do que conhecemos hoje, com exceção, apenas do livro de Ester. Essa carta
dirigida aos seus bispos foi extremamente significativa para as igrejas gregas no Oriente, e sua
aceitação logo se fez sentir nas igrejas latinas.39
Os concílios seguintes que se ocupariam dessa questão — Laodicéia (363), Hippona (393)
e Cartago (397) — também chegaram a elencos bastante próximos ao de Atanásio de Alexandria.
As principais dúvidas pairavam sobre o Apocalipse de João, II Pedro, II João, III João e,
obviamente, sobre os deuterocanônicos. No ano de 405, o Papa Inocêncio I (401-417), na Carta
Consulenti Tibi, destinada ao bispo de Tolosa, faz uma seleção de textos canônicos e apócrifos,
inclusive designando os últimos desta forma.40
Santo Agostinho e São Jerônimo — personagens destacados da Igreja durante a segunda
metade do século IV — acataram as considerações de Atanásio de Alexandria, e o seu elenco
canônico acabou prevalecendo sobre os outros. Apesar de concordarem sobre o rol de livros
inspirados, Agostinho e Jerônimo tinham opiniões bastante contraditórias sobre os apócrifos.
Enquanto São Jerônimo mantinha uma postura implacável contra os apócrifos e inclusive contra
os deuterocanônicos, Santo Agostinho raciocinava de outro modo: “... aqueles livros que são
aceitos por todas as igrejas católicas, prefira-os ao que são aceitos somente por algumas; entre os
livros não aceitos por todos, prefira aqueles que têm a aprovação do maior número de igrejas
autorizadas (...) penso que todos esses livros devem ser considerados de igual autoridade.”41
38 MILLER, John W. Op. cit., p. 40. 39 Ibid., p. 48. 40 MORALDI, Luigi. Op. cit., pp. 21-23. 41 AGOSTINHO (S.). De doctr. christ. 2,8. In: MORALDI, Luigi. Op. cit., p. 17.
Deste modo, percebe-se que Santo Agostinho reconhece a importância de alguns textos
não-canônicos, ao contrário de São Jerônimo, que chegou a ponto de se recusar a traduzir alguns
textos do Antigo Testamento. Foi ele, igualmente, o responsável pela conotação negativa que
recaiu sobre a palavra apócrifo.42
Outro marco significativo foi o Decreto Gelasiano43, que de acordo com Moraldi, foi
atribuído ao Papa Gelásio (492-496), mas talvez possa ter sido escrito pelo Papa Dâmaso (366-
384) quase um século antes. Esse decreto contém a mais extensa lista de escritos do Novo
Testamento, assim como, uma seqüência de 60 obras apócrifas, as quais os católicos deveriam
evitar.
Discutidas as peculiaridades que envolvem os apócrifos, estaremos centrados, a partir de
então, nas fontes empregadas por Giotto, ou seja, no Proto-Evangelho de São Tiago e no
Evangelho do Pseudo-Mateus. Esses escritos fazem parte do que se denomina atualmente de
evangelhos da natividade e da infância e, em nenhum momento, obtiveram apoio em prol de sua
canonicidade.
Tratam-se naturalmente de duas fontes distintas, contudo o conteúdo de ambas é bastante
semelhante. Enquanto o evangelho atribuído a Tiago divide-se em três partes, a saber: natividade
de Maria (cap. I-XVI), nascimento de Cristo (cap. XVII-XX), matança dos inocente e martírio de
Zacarias (cap. XXI-XXV)44; o escrito atribuído ao evangelista Mateus apresenta-se em duas
partes: a primeira seria uma re-elaboração do Proto-Evangelho (cap. I-XVII) e a segunda é uma
seqüência de episódios que parecem inspirados no apócrifo do Pseudo-Tomé e outros parecem ser
originais.45
Muitos acreditam que o Pseudo-Mateus é uma paráfrase do Proto-Evangelho. Há também
aqueles que argumentam que ambos foram escritos pelo mesmo autor, assim como, temos
estudiosos que aferem datas não-coincidentes às diferentes partes que compõem esses apócrifos.
Seja como for, podemos afirmar que se tratam de textos independentes e repletos de detalhes
ainda não esclarecidos.
42 DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri-Irenée. Op. cit., pp. 285-286. 43 MORALDI, Luigi. Op. cit., pp. 21-24. 44 RAMOS, Lincoln. (Org.). Op. cit., p. 18; ZILLES, Urbano. Op. cit., p. 23. 45 ZILLES, Urbano. Op. cit., pp. 45-46.
O Proto-Evangelho de São Tiago durante muitos séculos foi conhecido apenas como
evangelho, livro ou apócrifo de Tiago. Foi o humanista francês Guilherme Postel, por volta de
1550, que na volta de uma viagem à Constantinopla trouxe consigo um exemplar desse escrito
muito difundido no Oriente e deu ao mesmo essa nova designação.46 O título de Proto-Evangelho
acabou prevalecendo, tendo em vista que se trata de um conteúdo anterior aos fatos relatados nos
quatro Evangelhos.
Com relação à autoria desse apócrifo, devemos salientar que não existe um consenso nem
sobre o assunto, tampouco sobre quem seria de fato Tiago Menor. Segundo a tradição católica
Tiago Menor seria um dos doze Apóstolos, filho de Alfeu e irmão de Judas Tadeu; juntamente
com Tiago Maior que seria o filho de Zebedeu e irmão do evangelista João. Entretanto, as
próprias Escrituras apontam para a existência de um terceiro Tiago — este, de fato, o detentor do
epíteto de “menor” — que seria o suposto irmão de Jesus, ou seja, um dos filhos das primeiras
bodas de São José. Tiago, o Menor, foi o primeiro bispo da comunidade de Jerusalém e membro
atuante no meio judeu-cristão das primeiras décadas do cristianismo.47
Outro fator que impossibilita a fixação de uma autoria precisa é que se considera que o
escrito seja uma compilação de três textos distintos, escritos inclusive em períodos diferentes. De
acordo com Moraldi, a Natividade de Maria, seria pouco anterior a Origines no início do século
III, o Apócrifo de José remontaria a meados do século II e o Apócrifo de Zacarias poderia
perfeitamente pertencer ao século II. Cada um deles teve sua história independente antes de
serem reunidos num só, sendo que a fusão dos documentos ocorre por volta do século IV.48
Por outro lado, Zilles considera que “... as duas primeiras partes foram escritas antes do
fim do século II. A terceira parte, que parece ser um acréscimo posterior, foi escrita no fim do
século IV.”49 Apesar disso, admite-se que já no decorrer do século II existia um Livro de Tiago,
pois conhecemos as primeiras menções sobre o texto nas obras de Justino († 165). Conforme a
bibliografia consultada, a autoria do Proto-Evangelho continua indeterminada, mesmo que alguns
admitam a atribuição que recai sob Tiago Menor. Diversos estudiosos, entre eles Moraldi,
também acreditam na impossibilidade de uma autoria precisa “... porque se deram conta que
46 RAMOS, Lincoln. (Org.). Op. cit., p. 20. 47 DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Op. cit., pp. 27-35. 48 MORALDI, Luigi. Op. cit., pp. 95-96. 49 ZILLES, Urbano. Op. cit., p. 24.
estava fora de suas possibilidades atribuir a obra a um autor determinado. E até hoje a situação
não mudou.”50
Notadamente, a intenção do texto é mais apologética do que propriamente doutrinal ou
histórica. O objetivo é defender a virgindade de Maria:
“É provável que os evangelhos apócrifos da natividade e da infância respondam a ataques contra
Jesus e Maria, que circulavam em ambientes judaicos, segundo os quais Jesus seria filho adulterino
de um soldado chamado Panthera (...) Ao problema dos ‘irmãos’ de Jesus, mencionados nos
evangelhos canônicos, e ao da virgindade de Maria também depois do parto, os apócrifos
respondem apresentando José como viúvo idoso com filhos já crescidos.”51
Na visão de Ramos, talvez a aceitação do Proto-Evangelho de São Tiago no Ocidente não
se verificou com tanta intensidade — como no Oriente — justamente pelo fato de apresentar José
como um ancião viúvo e com vários filhos pequenos.52
“O certo é que ficou praticamente desconhecido no Ocidente, desde o séc. IV. Só reaparece no séc.
XVI, quando Guilherme Postel, como vimos, trouxe de Constantinopla um exemplar, que editou
em tradução latina com o título atual. Apesar disso, ele exerceu grande influência indireta no
Ocidente, através de outros apócrifos que dele dependem: Evangelho do Pseudo-Mateus, Livro da
Natividade de Maria e Livro da Infância do Salvador.”53
Ironicamente a existência e a difusão do Evangelho do Pseudo-Mateus — a segunda fonte
de Giotto — vincula-se à figura de São Jerônimo, o mesmo que sempre lutou contra os apócrifos.
De acordo com Zilles, entre os séculos IV e V circulavam no Ocidente diversas narrativas proto-
evangélicas, estas extremamente difundidas entre os maniqueus e priscilianistas:
“O Evangelho do Pseudo-Mateus foi apresentado com a versão latina do texto original do
Evangelho canônico de Mateus, o qual segundo uma tradição, foi escrito em hebraico e, depois,
traduzido para o latim por são Jerônimo, o que ele mesmo afirma. Na verdade, até hoje se discute
qual foi o evangelho que ele traduziu (...) para fazer calar as heresias que se difundiram por causa
da tradição adulterada do maniqueístas Lêucio (ou Seleuco); trata-se, diz Jerônimo (afirmam que
50 MORALDI, Luigi. Op. cit., p. 95. 51 ZILLES, Urbano. Op. cit., p. 24. 52 RAMOS, Lincoln. (Org.). Op. cit., pp. 21-22. 53 Ibid., p. 22.
ele disse), de um livrinho que o próprio Mateus não quis juntar ao seu Evangelho e que contém
coisas secretas, que ele deixou em caracteres hebraicos.”54
O título Pseudo-Mateus foi dado por Tischendorf, em meados do século XIX55, em razão
da tradição mencionada acima. Tischendorf foi o responsável, ainda, por anexar duas supostas
cartas do século IV ao prólogo do mesmo apócrifo. A primeira seria uma carta dos bispos
Cromácio († 407) e Heliodoro († 400) a São Jerônimo56, na qual ambos pedem que Jerônimo
traduza um manuscrito hebraico que o santo teria encontrado recentemente e que teria sido
escrito pelo evangelista Mateus. A segunda carta seria supostamente a resposta de São Jerônimo
aos bispos referidos: “Na verdade, é árdua a tarefa que me foi imposta, considerando que Vossa
beatitude me intimou a revelar aquilo que o próprio São Mateus, apóstolo e evangelista, não quis
escrever abertamente. (...) Mas escreveu este libelo em hebraico, não permitindo que se
divulgasse, a tal ponto que o manuscrito foi conservado em poder de varões muito piedosos,
através dos tempos....”57
Novamente, estamos incapacitados de determinar a autoria do texto, bem como, sua
datação. A esse respeito, Moraldi e Zilles salientam que o apócrifo teve sua primeira menção
conhecida com Zenão, bispo de Verona (371-372). Entretanto, os autores discordam sobre o
Decreto Gelasiano: enquanto Moraldi insiste em assinalar que o Pseudo-Mateus não é citado
neste, Zilles aponta para o fato de que nessa altura o texto ainda era conhecido por Liber de
infantia Salvatoris et e Maria vel obstetrice, ou ainda, por escritos sob o nome de Lêucio; ambos
sabidamente condenados pelo decreto.
E Giotto? Conhecia nossas fontes? Obviamente que sim. A seguir, estaremos discutindo
sobre a apropriação que o pintor fez dos textos apócrifos, bem como, as possíveis motivações que
tornaram possível a construção da Capela Scrovegni.
54 MORALDI, Luigi. Op. cit., p. 118. 55 TISCHENDORF, C. Evangelia apocrypha, Lipsiae, 1852. 56 A Igreja admite que os bispos pediram a tradução do livro de Jó, e não o Evangelho de Mateus. Ver: DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri-Irenée. Op. cit., pp. 285-286. 57 ZILLES, Urbano. Op. cit., p. 47.
2- UMA CAPELA PARA REGINALDO SCROVEGNI
Tudo leva a crer que Giotto foi atraído à cidade de Pádua em razão de uma encomenda
para os franciscanos. Não é possível precisar se o pintor realmente atuou junto à decoração da
Basílica de Santo Antônio, mas aproveitando sua estada na cidade acabou aceitando um trabalho
proposto por Enrico Scrovegni, certamente um dos homens mais ricos daquela região. Enrico
pertencia a uma conhecida família de banqueiros paduanos, era filho de Reginaldo Scrovegni,
este citado por Dante Alighieri n’O Inferno (XVII, 64-65) devido a sua peculiar avareza.
Sabe-se que Enrico adquiriu as ruínas de um antigo anfiteatro romano em sua cidade
natal, as quais pertenciam à família Delesmanini que, por sua vez, recebeu as terras das mãos do
imperador Henrique III (1039-1056) da Germânia, em 1090.58 No lugar das ruínas seria
construído um palácio — do qual nada restou — e uma capela dedicada à Virgem.
É provável que naquele local tivesse existido uma capela consagrada a Maria, e que
Enrico Scrovegni tenha preferido perpetuar a tradição construindo um novo espaço para a
mesma. Mas, de acordo as fontes apresentadas por Ruskin, Enrico poderia possivelmente ser
membro da ordem dos Cavaleiros de Santa Maria. A ordem foi instituída no início do século XIII
com o intuito de defender a virgindade de Maria frente a ataques de heréticos.
“Her knights were first called Cavaliers of St. Mary; but soon increased in power and riches to
such a degree, that, from their general habits of life, they received the nickname of the “Mary
Brothers”. Federici gives forcible reasons for his opinion that the Arena Chapel was employed in
the ceremonies of their order; and Lord Lindsay observes, that the fullness with witch the history
of the Virgin is recounted on its walls, adds to the plausibility of his supposition.”59
Outra possibilidade sobre o que teria motivado a construção desta capela, é que durante o
período medieval, os indivíduos, cuja atividade profissional vinculava-se ao dinheiro, ou,
simplesmente às trocas, estavam menos seguros em relação a sua salvação espiritual, pois a Igreja
sempre condenou empréstimos com juros. Cabe salientar, ainda, que usurários e banqueiros não
eram os únicos a serem discriminados em virtude de sua profissão. De acordo com Baschet,
também os comerciantes, os barbeiros-cirurgiões, os artistas de rua, entre outros, não eram bem-
58 RUSKIN, John. Giotto: and his works in Padua. Disponível em: www.gutenberg.org/etext/18371, p. 2. 59 Ibid., p. 3.
vistos socialmente, devido à associação de suas atividades cotidianas com alguma espécie de
pecado.60
Seja como for, a Igreja sempre adotou uma postura de descontentamento frente aqueles
que praticavam a usura, partindo da premissa que o tempo só a Deus pertence. Isso não significa
que os próprios homens da Igreja não financiassem empréstimos ou fossem radicalmente contra
essa atividade. Enrico, após a morte do pai, talvez tenha pensado em alguma forma de apressar a
chegada de Reginaldo ao Paraíso. “A má fama desta família era pública e notória, pelo que se
pensou num fim expiatório para a fundação. Os Scrovegni eram aparentados com as famílias
Scala e Este, de clara tendência gibelina, motivo pelo qual alguns autores (...) pensaram que
foram razões políticas que levaram Giotto a afastar-se da Roma e Florença guelfas, o que não se
torna muito convincente se foi chamado a Pádua pelos franciscanos...”61
Politicamente, o que conhecemos hoje como Itália, durante a Idade Média — e, mais
precisamente, até sua unificação por volta de 1870 — era uma região extremamente fragmentada
e diversificada quanto a vários aspectos. No período medieval, as instituições políticas
gravitavam em torno das cidades, sendo que elas eram relativamente autônomas. Muitas dessas
cidades converteram-se em repúblicas, nas quais temos registros de violentas disputas internas,
especialmente entre os cônsules e os príncipes.
O sul da península itálica foi governado até 1266 pela dinastia suábia dos Hohenstaufen.
Em 1268, a convite do Papa, os Anjou assumem o poder. O que significou uma maior penetração
de influências francesas na região. A Igreja Católica também figurava como proprietária de
grande parte da península; o próprio Papa detinha uma vasta porção de terra que incluía Roma.
Deste modo, podemos perceber que, além das disputas internas, existiam duas grandes
forças atuando sobre as cidades italianas: Papado e Império. Os interesses antagônicos de ambas
as forças dividiam as cidades em partidos que se opunham de forma irreconciliável. Guelfos e
gibelinos — partidários do Papado e do Império respectivamente — não só dividiram
internamente as comunas como também fomentaram lutas sangrentas entre cidades rivais. O povo
flagelado, farto dos repetidos conflitos devastadores desses partidos aristocráticos, esboçou uma
60 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Editora Globo, 2006, pp. 147-154. 61 VALDOVINOS, José Manuel Cruz. Giotto: grandes mestres da pintura clássica. Madrid: Editorial Debate, 1997, p. 37.
tímida reação através de assembléias que pouco surtiram efeito. As cidades “autônomas”
encontravam-se, então, ou sob a proteção de uma burguesia endinheirada, ou sob a tirania dos
príncipes (condottieri).62
Roma e o Papa também passaram por graves crises durante todo o século XIV. A “cidade
eterna”, com a transferência da residência papal para Avinhão (1309-1377), temia perder sua
importância, e os senhores eclesiásticos, espalhados por toda a península, eram freqüentemente
alvos de violência. O século XIV ainda seria palco de um grande surto de peste bubônica (1347-
52) e da Guerra dos Cem Anos (1337-1453).63
Não temos registro se Giotto era guelfo ou gibelino, entretanto, seu compatriota Dante era
sabidamente gibelino. Talvez não saibamos com exatidão as preferências políticas do pintor em
decorrência dos diversos patrocínios que ele recebia. Sua oficina atendeu encomendas da ordem
franciscana, do Papado, de diversos cardeais, da corte de Anjou e da burguesia do norte da
península.
Giotto de Bondone chega a Pádua em 1302, e já no ano seguinte iniciaria os trabalhos
artísticos na capela. Como mencionamos anteriormente, as informações que possuímos sobre o
pintor apresentam-se por vezes contraditórias. De acordo com Vasari, o suposto sobrenome de
Giotto, Bondone, seria o nome de seu pai. Por outro lado, muitos estudiosos, italianos inclusive,
acreditam que Giotto não seria um nome próprio, mas sim uma abreviação, possivelmente, de
Ambroggio ou de Biagio. O que não pôde ainda ser comprovado, tendo em vista a inexistência de
documentos com esses nomes.
Ainda de acordo com Vasari, o pintor nasceu no ano de 1276 64, na vila de Colle de
Vespignano, a poucos quilômetros de Florença. Bondone, seu pai, era trabalhador da terra,
homem de poucas posses, e teria entregado seu filho, na época com dez anos, aos cuidados de um
afamado pintor florentino — Giovanni Cimabue —, após este ter visto um desenho feito pelo
menino. Bologna está convencido de que Giotto teria nascido, pelo menos, dez anos antes do que
afirma Vasari.65
62 HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. Lisboa: Ulisseia, s/d, pp. 9-30. 63 BASCHET, Jérôme. Op. cit., pp. 248-252. 64 Vasari esclarece que essa data provém do testemunho do cronista florentino António Pucci, o qual, na sua obra Centiloquio (1373) afirma que Giotto teria nascido entre 1266 e 1267. 65 BOLOGNA, Ferdinando. “Giotto”. In: DUBY, Georges; LACLOTTE, Michel (Orgs.). História Artística da Europa, v. 2: A Idade Média. São Paulo: Paz e Terra, 1995, p. 329.
Os historiadores da arte também se dividem quando se trata da participação de Giotto no
ciclo de afrescos da Basílica Superior de São Francisco, em Assis, por volta de 1296.66 O mesmo
acontece a respeito das inúmeras lendas e historietas sobre o pintor. Contudo, é importante
salientar que nossa análise é restrita apenas a sua produção paduana, e, mais especificamente,
somente aos afrescos da Capela Scrovegni, os quais são, de forma inquestionável, atribuídos a
Giotto.
Não queremos com essa exposição eliminar os conflitos e as discussões, apenas temos a
intenção de demonstrar que existem discordâncias, mesmo dentro da historiografia italiana, e, de
acordo com Valdevinos, “... se criaram dois círculos fechados onde o diálogo se estabeleceu
exclusivamente dentro de cada um deles, o que originou duas literaturas paralelas sobre Giotto,
ou seja, duas ‘verdades’ sobre ele.”67
Apesar da passagem de Giotto por Pádua ter inaugurado uma nova fase, não só na vida do
artista, mas também de toda a arte ocidental, a influência do pensamento franciscano que recai
sobre o pintor não pode ser desprezada. Indubitavelmente, a ordem franciscana foi a principal
patrocinadora da oficina de Giotto. E, a decoração da Basílica Superior de São Francisco, em
Assis, foi o primeiro grande trabalho do pintor; já não mais como discípulo de Cimabue.
Não temos como precisar quanto tempo essa obra durou nem tampouco quanto foram os
pintores que colaboram na sua execução. O que se sabe é que durou décadas e que durante os
trabalhos houveram inúmeras interrupções devidas a freqüentes alternâncias à frente da ordem
franciscana. Giotto deve ter trabalhado em Assis entre 1288 e 1292, sob o patrocínio do papa
Nicolau IV (1288-1296), o primeiro papa franciscano:
“A derradeira intervenção de Giotto na Basílica de Superior de São Francisco de Assis foi dedicada
ao ciclo da vida de São Francisco (...). As vinte e oito cenas provêm da Lenda Maior escrita por
São Boaventura entre 1260 e 1263, que, apoiada em tradições orais e outras biografias do santo, se
converteu na história oficial do fundador dos Franciscanos. Do mesmo modo, as pinturas de Giotto
foram igualmente um conjunto de imagens que cumpriu uma função propagandística extraordinária
entre os inúmeros peregrinos que visitavam a basílica. Além disso, cada cena era acompanhada de
66 VALDOVINOS, José Manuel Cruz. Op. cit., pp. 10-12. 67 Ibid., p. 10.
uma explicação do seu conteúdo em latim extraída da referida Lenda Maior, que se conhece,
embora hoje o texto esteja praticamente perdido.”68
Atualmente admite-se que Cimabue e Simone Martini69 também tenham contribuído na
decoração da basílica, contudo é Giotto quem rompe com a formalidade e a dureza do estilo em
vigor, procurando humanizar rostos e gestos. O humanismo que Giotto impõe às suas figuras
ultrapassava as convenções artísticas da época e, ao mesmo tempo, aproxima-se dos ideais
franciscanos mais profundos.
Giotto pinta o ciclo sobre a vida de São Francisco certamente orientado pela obra de São
Boaventura (1221-1274), na qual encontramos um discurso que atenua algumas orientações
franciscanas como o contato com a natureza e a opção pela pobreza. No entanto, o artista
representa o santo de forma humilde e sempre rodeado de plantas e animais. E, o mais curioso, é
que Giotto empreendeu estes afrescos no mesmo período em que o ministro geral da ordem
franciscana era Matias d’Acquasparta, este, “... hostil à exaltação sem reservas da pobreza, futuro
cardeal sobre quem Dante faria pesar a culpa de ter sido um dos responsáveis da ‘fuga’ à
verdadeira regra franciscana (Paraíso, XII, 124-126).”70
Por volta do Ano Mil, segundo Le Goff, os cristãos já tinham estabelecido um certo
imaginário religioso que compreendia a existência inquestionável de Deus, do Diabo e do Juízo
Final. Dessas considerações nasceram dois “receptáculos” póstumos para a alma humana: paraíso
e inferno. Contudo, o surgimento de um novo estrato social — a burguesia urbana — traria a
necessidade de mudanças a essa configuração, pois cada vez mais, rejeitavam-se idéias e
explicações de caráter simplista e a sociedade voltava-se contra os modelos estritamente
antagônicos. “A sociedade impiedosa e maniquéia da alta Idade Média torna-se inviável.”71
Nesse contexto, no qual são desprezadas as simples oposições, torna-se insatisfatório saber que os
destinos das almas humanas após a morte são apenas dois: o céu e o inferno, e ainda, que são
destinos definitivos.
68 VALDOVINOS, José Manuel Cruz. Op. cit., p. 22. 69 Simone Martini (c. 1284-1344) pintor sienense, possivelmente aprendiz de Duccio di Buoninsegna. Ver: CHILVERS, Ian. Op. cit., p. 494. 70 BOLOGNA, Ferdinando. Op. cit., p. 332. 71 LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida. Economia e religião na Idade Média. Lisboa: Teorema, 1987, p. 85.
Como conseqüência, o destino da alma de um burguês antes dos séculos XII e XIII, seria,
inevitavelmente, o inferno. Tanto por seu ofício em si — o comércio —, quanto pela sua prática
mais comum que era a usura.72 Deste modo, o nascimento do purgatório vem de encontro às
expectativas burguesas de salvação póstuma. Dentro de um contexto medieval, no qual pouco se
exigia aos leigos, em determinado momento fez-se necessário que a Igreja, auxiliada por reis e
imperadores, lançasse as bases de um código que refreasse a violência e mantivesse o controle
sobre os laicos. Era comum que os clérigos, mais precisamente os monges, fizessem penitência
por si e, por todos, sendo que isso distanciava demasiadamente os leigos de um sentimento e, até
mesmo, de uma atitude de contrição verdadeira.
Possivelmente no contexto inicial da reforma gregoriana73 já havia um temor generalizado
a respeito do destino póstumo das almas, sendo que a penitência deixava de ser uma
exclusividade do mundo monástico. Quando Le Goff analisa os usurários dos séculos XII e XIII
já considera que os usurários impenitentes — ou seja, não-arrependidos — eram uma escassa
minoria, o que reforça a idéia do medo de uma sentença definitiva mesmo entre os burgueses.
Neste sentido, quando o purgatório surge em fins do século XII, passa a existir também a
necessidade de se teorizar sobre suas implicações. Pois, o purgatório não surge apenas para
“esvaziar o inferno”, mas sim para representar uma possibilidade a mais de salvação através do
sincero arrependimento e da reparação do mal. Com o purgatório a sentença não se resumia mais
a dois veredictos e o burguês, enfim, poderia ter uma possibilidade de salvação, mesmo que
mediante contrição e restituição, em vida, ou até, após a morte. “A duração desta permanência
dolorosa no purgatório não depende só da quantidade de pecados que ainda impendem sobre eles
na hora da morte mas também do afeto dos seus próximos. Estes (...) podiam abreviar sua
permanência no purgatório por suas orações, as suas oferendas, a sua intercessão...”74
Talvez, devido a má fama da família Scrovegni, Enrico tenha planejado a construção da
capela em função da possível espera do pai no purgatório, pois este não representa um “bom
lugar”, como muitos o imaginaram em seu contexto inicial. Mesmo que a única saída do 72 A Igreja jamais condenou todas as formas de juro, especialmente aquelas que eram compatíveis com as taxas de mercado. A repreensão aos usurários limitava-se aqueles que cobravam taxas extremamente abusivas e eram conhecidos como usurários “manifestos”. Ver: LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida. Op. cit., pp. 88-91. 73 Amplo conjunto de reformas, que se iniciou em meados do século XI, destinado a resgatar o caráter primitivo do cristianismo. Moralmente a reforma condenava de forma veemente práticas heréticas como a simonia e o nicolaímo. A reforma gregoriana representou o marco inicial do que conhecemos como teocracia papal, na qual os papas julgavam-se com direito de exercer prerrogativas, não só espirituais, como temporais. Ver: KNOWLES, David; OBOLENSKY, Dimitri. Nova História da Igreja, v. 2: Idade Média, Petrópolis: Vozes, 1974, pp. 179-199. 74 LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida. Op. cit., p. 97.
purgatório seja inevitavelmente o paraíso, essa saída fica cada vez mais condicionada à
intercessão dos vivos ou — ao mais tardar — ao julgamento no dia do Juízo Final.
O que possivelmente Enrico não tenha percebido é que seu gesto de empreender por conta
própria a construção de uma capela e, em seguida, encomendar uma decoração pictórica com a
oficina de Giotto, foi uma clara decorrência da ascensão social pela qual a burguesia atravessava.
Na verdade, a escalada da burguesia ao poder faz parte de um conjunto de transformações
econômicas e sociais que, historicamente, conhecemos como o “Renascimento” do século XII.75
Não é possível descolar esse fenômeno do movimento de progresso material, no qual a
terra deixaria de ser a maior riqueza e o trabalho no campo de ser a única opção da maioria.
Obviamente, a atividade agrícola não é abandonada, pelo contrário, são os excedentes dessa
atividade que tornariam possível o ressurgimento das cidades, garantidos por inovações técnicas e
pelo aumento da superfície cultivada. O século XII é o momento em que a cidade deixa de ser um
entreposto comercial e passa a abrigar vários estratos sociais dentro de uma mesma muralha. O
campo torna-se um espaço subserviente das cidades, abastecendo-as, enriquecendo-as.
A riqueza gerada pelo meio rural era transferida para a aristocracia. De acordo com Duby,
além da classe senhorial representar — quase que exclusivamente — a maior beneficiada pelo
enriquecimento dos campos, esta procurava proteger, ou acumular, ainda mais a sua renda:
reduzindo as doações de terra à Igreja e repassando o patrimônio da família apenas ao filho
primogênito.
Conseqüentemente, a prosperidade da aristocracia estimulava a expansão do comércio.
Havia uma demanda cada vez maior por produtos de diversas naturezas. Isso garantiu a ascensão
de grupos ligados à atividade comercial. “Essa gente enriqueceu. Alguns se tornaram mais
abastados que muitos nobres. Mas seu ideal continuou sendo integrar-se à nobreza rural, ser
admitido no seio dela, compartilhar de suas maneiras de viver e de sua cultura.”76
Pode-se afirmar que esse renascimento, essencialmente urbano, foi impulsionado por
diversos fatores, entre eles, um vertiginoso aumento demográfico, a utilização de técnicas
agrícolas mais eficazes e o fim da sensação de insegurança gerada pelas invasões bárbaras que
sacudiram a Europa durante a alta Idade Média. No plano das idéias há um progressivo abandono
75 DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pp. 143-154. 76 Ibid., p. 145.
do pensamento apocalíptico, nos moldes das crônicas de Raul Glaber77, e um renovado otimismo
em relação à vida por parte dos indivíduos. “Trata-se bem de uma reviravolta completa na visão
da história humana. Esta deixa de ser contemplada, de maneira pessimista, como um processo de
corrupção inevitável. Ela aparece, pelo contrário, como uma conquista. (...) Sua marcha,
doravante paralela à da história da salvação, não parece mais conduzir implacavelmente à
decadência...”78
É nesse limiar de novas idéias — e de novas possibilidades — que surge a burguesia
mercantil. Do mesmo modo, é curioso pensarmos que em meio a tantas transformações esse novo
grupo social prefere adotar as práticas sociais da nobreza, admitindo esta, ao mesmo tempo, como
rival e espelho. Na ânsia de imitar a nobreza, o burguês sente-se à vontade em exercer o
patrocínio artístico.
Não é de causar espanto que os excedentes da exploração senhorial no campo, em
decorrência de seu grande volume, tenham sido empregados em criações culturais. “O patrocínio
foi, originariamente, a função específica do rei, lugar-tenente de Deus na Terra. Ora, essa função,
no século XII, a aristocracia inteira pretende preencher. (...) Os príncipes se apossaram do poder
do rei; não devemos negligenciar o fato de que eles quiseram também revestir-se das suas
virtudes.”79
A perda do monopólio do rei na participação da cultura erudita pode ser encarada como
uma vulgarização dos hábitos régios, os quais passam a ser imitados até pelos estratos menos
abastados da sociedade aristocrática. O burguês espelha-se na figura do nobre, e, “... forma-se,
assim, um novo tipo de cultura proposto a todos os membros da aristocracia, como também aos
enriquecidos, que sentem que adotá-la é para eles o melhor meio de fazer esquecer sua origem e
de confundir-se com a gente bem-nascida.”80
Além do prestígio, da satisfação pessoal ou do compromisso que o nobre sentia-se
incumbido junto ao patrocínio artístico, o burguês tinha um motivo a mais para empreender tal
gesto: a insegurança que possuía em relação à salvação de sua própria alma, assim, podemos
entender que, destinar uma parte de seus bens para ornar igrejas era realmente uma espécie de
investimento pessoal.
77 Monge cluniacense, de origem borgonhesa, que viveu até meados do século XI e que escrevia crônicas nas quais descrevia o medo acerca do ano 1000. 78 DUBY, Georges. Op. cit., p. 147. 79 Ibid., p. 150. 80 Id., p. 154.
Certamente, uma das características que impulsionaram o renascimento do século XII foi
a difusão do sistema monetário. Num período de menos cem anos — que se iniciou por volta do
fim do século XI — o dinheiro transformou-se no principal instrumento de poder, e isso exigiu
por parte da Igreja um combate maior contra a usura.
Na teoria, os textos da Igreja de fato condenavam de forma veemente a usura, mas na
prática essa repreensão limitava-se aos judeus usurários e a aqueles que sabidamente exageravam
na cobrança dos juros:
“Em 1179, o III Concílio de Latrão limitava-se a aconselhar a repressão dos usurários ‘manifestos’
(manifesti), também chamados ‘comuns’ (communes) ou ‘públicos’ (publici). Creio que se tratava
de usurários que a fama, a ‘reputação’, o murmúrio público, designava como usurários não
amadores mas ‘profissionais’ e que, acima de tudo, praticavam usuras excessivas. O IV Concílio
de Latrão (1215), ao condenar novamente as usuras dos Judeus, refere-se apenas àquelas que são
‘pesadas e excessivas’ (graves et immoderatas).”81
Tendo em vista as discussões teóricas que ocorriam em meio escolástico e a importância
cada vez maior da burguesia, a usura passa a desfrutar de, segundo Le Goff, cinco “desculpas”82
que, em síntese, tornavam essa prática aceitável; desde que moderada. Se num primeiro momento
a cristandade cria o purgatório para salvar os enriquecidos, algum tempo depois a Igreja resolve
apostar numa “infernização” do mesmo. Essa nova investida faz-se necessária, pois a aceitação,
mesmo que parcial, do usurário banalizava a própria existência do purgatório.
Reginaldo Scrovegni, pai de Enrico, era usurário “manifesto”, sabe-se, inclusive, que
costumava cobrar 100% sobre o valor emprestado. Enrico nunca deixou por escrito o motivo que
o levou a construir a capela, mas em seu testamento externou o desejo que os filhos a
mantivessem como patrimônio da família. Do mesmo modo, não podemos ignorar o fato de que
Enrico estivesse querendo evitar, para si próprio, um destino semelhante, afinal ele também
partilhava do mesmo “pecado”, embora em menor grau.
81 LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida. Op. cit., p. 91. 82 Ibid., pp. 92-94.
3- JOAQUIM E ANA: HERANÇA APÓCRIFA
Ao iniciarmos esta última etapa de nossa discussão, somos impelidos a discutir algumas
considerações sobre o que seria arte no período medieval. Primeiramente, é necessário
esclarecermos que durante a Idade Média não existe um fim exclusivamente estético, ou mesmo,
autônomo para a arte. Esta, de forma irremediável, estará condicionada à realização de edifícios
ou de objetos com a função única de devoção. Contudo, Baschet adverte que “Se é melhor
renunciar a incluir as obras medievais na categoria de ‘arte’, é forçoso (...) admitir que nelas
existe arte, quer dizer, um conhecimento e valores formais que conferem a cada uma seu estatuto
e a potência que a torna eficaz.”83
Até mesmo a noção do que seria um artista medieval não pode ser descolada da idéia de
um artesão, mesmo que tenhamos algumas exceções, como é o caso do próprio Giotto de
Bondone:
“Os artistas do século XIV são todos, ou quase todos, laicos (...) Estão organizados em associações
de ofícios muito congregadas, estreitamente especializadas. Substitutas do grupo familiar, estas
corporações oferecem-lhes refúgios, facilitam as deslocações de cidade para cidade, de construção
para construção (...) Por vezes, constituem-se grupos coerentes, móveis, espécies de condotte da
conquista estética, animados por um empresário que, como Giotto, recolhe as encomendas, fecha
os contratos e distribui o trabalho pelos seus ajudantes...”84
Outra consideração pertinente a ser analisada é se o patrocínio da família Scrovegni pode
ser encarado, ou não, como o início de uma arte burguesa. Na visão de Duby, a arte no século
XIV continua tutelada às instituições eclesiásticas e às cortes principescas. A burguesia, no seu
conjunto, ainda participava pouco nesse processo. Giotto e o norte da península itálica, neste
contexto, podem ser encarados como exceções, especialmente se contabilizarmos os grandes
homens de negócio que ali residiam.
83 BASCHET, Jérôme. Op. cit., p. 482. 84 DUBY, Georges. O tempo das catedrais: a arte e a sociedade 980-1420. Lisboa: Editorial Estampa, 1979, p. 191.
Duby ainda salienta que seria temerário considerar que existiu uma arte burguesa no
século XIV. “É ao erguer-se para fora da burguesia que o banqueiro ou o grande negociante se
torna mecenas, ligando-se ao meio principesco que serve...”85
A presente análise utiliza como fonte, além da já comentada literatura apócrifa, uma
seqüência de seis afrescos pintados por Giotto, ou seja, estamos inseridos numa problemática que
envolve necessariamente a questão das imagens, mesmo que estejamos privilegiando a temática
que as envolve. Sabe-se que a possibilidade da representação artística por intermédio de imagens
já foi duramente criticada — ou, ao menos, reprimida — pela Igreja Católica, principalmente se
relembrarmos o período iconoclasta (730-843) que se deu no Oriente Bizantino.
A importância das imagens para o cristianismo pode ser percebida de forma mais nítida se
pensarmos que elas representam um traço distintivo da cristandade medieval frente ao mundo
judaico e ao Islã. Estes não admitem que elementos sagrados sejam materializados e cultuados.
Judeus e muçulmanos consideram o culto às imagens, e as práticas a elas associadas, verdadeiros
atos de idolatria, comparando-os, inclusive, com os rituais pagãos da Antigüidade.
Cabe salientar ainda que o próprio cristianismo primitivo não se mostrava muito receptivo
às imagens.86 Contudo, se tradicionalmente o Oriente cristão tentava refrear o avanço das
representações por meio de imagens, por sua vez, no Ocidente sua importância aumentava cada
vez mais. A aceitação progressiva da representação do sagrado no Ocidente, obviamente,
encontrou resistência, entretanto alguns fatores concorreram para sua disseminação, entre eles, o
fato de que se acreditava que o ícone, de alguma forma, intercedesse junto à divindade e,
também, pela questão pedagógica.
Baschet aponta que os clérigos do século XII qualificaram as imagens sacras como as
“letras dos laicos” (litterae laicorum). Tendo em vista que durante o medievo, apenas uma
parcela muito pequena da população sabia ler e escrever, a função do ícone como instrumento
pedagógico parece bastante pertinente. É claro que não podemos reduzir o papel das imagens a
mera instrução para os illetrati, pois as obras medievais, de um modo geral, apresentavam um
conteúdo bastante erudito, e, por vezes, sua plena compreensão exigia uma cultura que apenas os
clérigos possuíam.
85 Ibid., p. 199. 86 DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri-Irenée. Op. cit., pp. 89-100.
Por volta do ano mil, eram recorrentes as representações que contemplavam a cruz e as
relíquias; verdadeiras imagens-objetos. Nesta mesma época, começam a ganhar destaque os
suportes tridimensionais, como as estátuas e os retábulos em madeira. As pinturas fizeram parte
da iconografia cristã desde o tempo das catacumbas, nos primeiros séculos da era cristã. No
entanto, durante a alta Idade Média temos uma brusca interrupção na produção artística desta
natureza, que somente será retomada, ainda que de forma tímida, no período carolíngio.87
De acordo com Baschet “... a Idade Média ocidental, a partir do século IX, e mais
claramente ainda do século XI, é um período de liberdade para as imagens e de excepcional
inventibilidade iconográfica. Mas em que consiste essa ‘liberdade’ da arte, uma vez que não se
deve esquecer absolutamente da intervenção de comanditários, quer dizer, no mais das vezes a
Igreja, instituição que faz pesar sobre a sociedade uma poderosa dominação?”88
No caso da Capela Scrovegni, primeiramente, devemos pensá-la como uma exceção.
Giotto, de fato, foi um artista e um homem à frente de seu tempo, assim como, Enrico, que de
acordo com Bologna, construiu o primeiro empreendimento de ordem espiritual patrocinado
exclusivamente pela burguesia.89 Enrico inclusive foi autorizado pelo Papa a auto proclamar-se
como único proprietário da capela.90
Outro fator que atesta essa condição de exceção, que a capela representa, é o fato de que o
próprio Enrico Scrovegni “... contratou como elaborador do repertório formal um teólogo do
mosteiro franciscano local, que estaria encarregado, por um lado, de garantir a autenticidade
bíblica dos frescos executados e, por outro, de fazer prevalecer as intenções do cliente.”91
Nesse sentido, percebe-se que houve a preocupação em satisfazer os propósitos de Enrico,
tanto que se nos atermos a um dos afrescos — que não faz parte do recorte apócrifo —,
conhecido como a Fuga para o Egito, não temos como explicar o grande número de mercadores
presentes na cena. Não existe menção alguma, nem nos textos canônicos, nem nos apócrifos
sobre a presença de mercadores neste episódio. Provavelmente, a presença destes junto à Sagrada
Família tenha a intenção de minimizar a má fama que a própria família de Enrico possuía na
sociedade.
87 BASCHET, Jérôme. Op. cit., pp. 486-491. 88 BASCHET, Jérôme. Op. cit., p. 491. 89 BOLOGNA, Ferdinando. Op. cit., p. 337. 90 TOMAN, Rolf (Ed.). A Arte do Gótico: Arquitetura, Escultura, Pintura. Köln: Könemann, 2000, p. 392. 91 Ibid., p. 392.
Enrico Scrovegni também se encontra retratado no Juízo Final, obviamente ao lado dos
justos e à direita de Cristo. Tradicionalmente, as igrejas e capelas medievais eram adornadas
tendo em vista essa, já comentada, função pedagógica. De um modo geral, o fiel entrava na igreja
e se deparava com representações nas laterais da nave que remetiam à vida de Jesus e de Maria.
No altar, eram comuns as imagens que contemplavam a crucifixão e a ressurreição, e, na saída —
na parte interna da parede que contem o pórtico — era de praxe a representação do Juízo Final, o
que reforçava a idéia de que o fiel estava sujeito ao julgamento na presença do pai. Nitidamente,
a intenção era lembrar, até o último instante, a submissão do homem frente à divindade.
As preferências de Enrico, assim como as progressivas interferências burguesas e
principescas no ato da criação artística, não foram bem-recebidas pelas ordens mais austeras: “Se
Giotto teve de reduzir o programa decorativo da capela da Arena, em Pádua, foi sob a pressão dos
ermitas agostinhos, encarregados de vigiar a execução da obra, e que o acusaram de fazer muitas
coisas ‘mais por pompa e vã glória de interesse do que para a glória e honra de Deus’.”92
Ainda sobre a intervenção do patrocinador, não podemos negligenciar a temática da
família. De acordo com Le Goff,
“É considerável a influência do desenvolvimento urbano sobre a evolução das estruturas e dos
comportamentos familiares. É na cidade que se passa da família ampliada, que é o tipo de família
do campo e da feudalidade, em que vivem juntos os filhos, os parentes, diversas gerações, em
suma, à família nuclear — os pais e filhos apenas (...) A partir dos séculos XII-XIII, desenvolve-se
na arte cristã o tema da Sagrada Família (...) Como nos quadros, as casas urbanas, salvo aquelas
dos grandes nobres, são feitas para famílias nucleares.”93
Neste caso, a representação da família que temos registrada na Capela Scrovegni segue a
tendência da época, pois mesmo tendo mais integrantes que uma simples família nuclear — pai,
mãe e filho(s) — estes não aparecem retratados juntos, ou seja, num primeiro momento temos a
família de Joaquim, Ana e Maria; e, apenas em outras cenas somos confrontados com a Sagrada
Família: José, Maria e Jesus.
A razão desta referência a Joaquim e Ana pode ser encarada como uma questão de
tradição — apócrifa, sem dúvida —, ou ainda, como uma referência às casas dos grandes nobres,
92 DUBY, Georges. O tempo das catedrais. p. 197. 93 LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: UNESP, 1998, p. 100.
que ainda remetiam a uma família mais numerosa, tendo em vista agregados e súditos; e que
Enrico provavelmente quisesse imitar.
Outra suposição bastante plausível sobre a presença dos pais de Maria na capela é que,
segundo os textos apócrifos, São Joaquim seria um rico comerciante. E, é notório que desde a
Antiguidade as atividades comerciais não eram bem-vistas, contudo Joaquim, de acordo com a
tradição, foi agraciado pelo nascimento, mesmo que tardio, de uma filha, esta inclusive destinada
a ter uma missão junto ao criador.
Artisticamente falando, “Discutiu Giotto com Enrico Scrovegni a composição para a
capela da Arena? (...) Na verdade, durante todo o século XIV, o laço de domesticidade, tal como
as cláusulas do contrato, submetia inteiramente a significação da obra de arte às intenções, aos
gostos, aos caprichos do mecenas.”94 Contudo, é importante salientar que a interferência do
patrocinador ou mecenas restringia-se no mais das vezes ao tema geral da obra, à incorporação de
algum santo protetor ou de uma cena bíblica preferida, à escolha das cores, à qualidade dos
materiais, aos prazos de entrega, entre outros.
Duby acredita que a figura do patrocinador “... não impunha à criação mais do que o
plano, o assunto e, em medida mais discreta, a trama da expressão. O criador continuava a ser, na
verdade, senhor dessa expressão.”95 Não é possível saber se Enrico sugeriu que Giotto utilizasse
especificamente a literatura apócrifa, entretanto é provável que o banqueiro tenha pedido ao
pintor que incorporasse a temática que envolve os pais de Maria em decorrência da atividade
comercial de São Joaquim.
Não temos como precisar a relação entre Giotto e a literatura apócrifa. A partir de um
sucinto levantamento sobre as temáticas mais recorrentes na obra do pintor, podemos supor que a
seqüência que contempla a vida de Joaquim e Ana é a única que provem de inspiração apócrifa.
Contudo, essa não pode ser uma afirmação conclusiva, pois não conhecemos a obra de Giotto por
completo. Ademais, muitas de suas pinturas foram perdidas, sem contar que a autoria de
inúmeras obras do pintor ainda é tema de litígio entre os historiadores da arte.
94 DUBY, Georges. O tempo das catedrais. p. 194. 95 Ibid., p. 194.
Mesmo derivando de uma tradição apócrifa, São Joaquim e Santa Ana são reconhecidos
oficialmente pela Igreja Católica. A devoção aos pais de Maria é muito antiga no Oriente, talvez
pelo fato de que lá os textos apócrifos foram mais difundidos. Seja como for, a tradição cristã
indica que Joaquim pertencia à família real de Davi; nos apócrifos encontramos referências que
sinalizam que Joaquim seria parente próximo de São José.
No Ocidente, pode-se afirmar que o culto à Santa Ana ganha força já no decorrer do
século VIII, quando, em 710, suas relíquias saíram da Terra Santa em direção à Constantinopla.
Entretanto, o culto a São Joaquim somente seria difundido por volta do século XV. Sua festa, de
início, era associada à de São José, contudo, o papa Paulo VI (1963-1978) decidiu reunir em uma
única data — 26 de julho — a celebração de ambos.
Giotto contemplou em seis cenas o recorte sobre os genitores de Maria: No primeiro
afresco Rejeição do sacrifício de Joaquim (Anexo 1) deparamo-nos com a condição de
esterilidade do casal. Segundo os apócrifos, Joaquim e Ana eram casados há vinte anos e, até
então, não tiveram filhos. Um dia, quando Joaquim fazia suas ofertas ao templo foi censurado,
pois não seria um homem abençoado; tendo em vista que não tinha descendência em Israel. De
acordo com Ruskin, Giotto teria seguido o Proto-Evangelho de Tiago, no qual temos menção
sobre dois outros personagens: Rúben — quem censurou Joaquim — este demonstrando certa
rispidez em relação ao mesmo e a figura de um grande sacerdote, que continuava a exercer suas
funções e mostrava-se alheio em meio à discussão que ocorria.96
A cena seguinte é conhecida como Joaquim refugiado entre os pastores (Anexo 2). De
acordo com os apócrifos, Joaquim ficou frustrado com as palavras de Rúben e decidiu ir para o
deserto, mesmo sem avisar Ana. Conforme a tradição, Joaquim jejuou por quarenta dias, até
receber a mensagem de um anjo, na qual foi anunciada a gravidez de sua esposa.
Ruskin observou que Giotto representou — além das ovelhas — um cão, cuja atitude
amistosa com Joaquim representa alegria e, em muito, remete aos afrescos do ciclo franciscano.
Do mesmo modo, a simplicidade expressa nos dois pastores ressalta a própria condição de mestre
que Joaquim detinha: “The figure of Joachim is singulaly beautiful in its pensiveness and slow
motion; and the ignobleness of the herdsmen’s figures is curiosly market in opposition to tje
dignity of their master.”97
96 RUSKIN, John. Op. cit., p. 33. 97 Ibid., p. 34.
A terceira cena, O Anúncio à Santa Ana (Anexo 3), representa o que está acontecendo
com Ana em meio a ausência do marido. Enquanto Joaquim jejuava no deserto, Ana recebeu a
visita de um anjo, cuja missão era avisá-la de que seria mãe. Segundo Valdovinos, para retratar
este episódio Giotto mesclou elementos contidos nas suas duas fontes apócrifas. E, podemos
nitidamente perceber alguns aspectos simbólicos na cena: “A cama vazia exprime a esterilidade e
por esse motivo aparecerá depois com Santa Ana e várias mulheres no momento do nascimento
de Maria. Para alguns, a criada é o povo pagão, que fica à margem da revelação, mas não se deve
por de parte que representa a vida activa perante a contemplativa de Santa Ana em oração.”98
No quarto afresco intitulado O sacrifício de Joaquim (Anexo 4) novamente temos a figura
de Joaquim rodeado por animais. Na mesma cena temos ainda a presença de um anjo e do
patriarca Abraão. O sacrifício de Joaquim tem uma conotação de agradecimento pelo
aparecimento do anjo Rafael. Na cena seguinte O sonho de Joaquim (Anexo 5) o anjo Rafael vem
de encontro a Joaquim dizendo que está na hora deste voltar para casa. Giotto, mais uma vez,
representou animais junto ao santo.
O último afresco conhecido como o Encontro na porta dourada (Anexo 6) apresenta o
reencontro do casal sobre a ponte que dá acesso à cidade. Valdovinos salienta que a cena está
envolta em ternura e simbolismos. É provável que as jovens que se encontram na entrada
representem a futura fertilidade de Ana, enquanto que a “enigmática” figura de preto pode
representar o abandono do luto.99
O fato de que os textos apócrifos não são aceitos pela Igreja, não afeta a importância
histórica dos mesmos, veneráveis por sua antiguidade. “Na tradição latina se conservaram
diretamente alguns apócrifos, como o Proto-Evangelho de Tiago e alguns outros sobre o
Adormecimento de Maria, sobretudo pequenas historietas ou lendas sobre Jesus que circulavam
através das recriações do Speculum Historiale de Vicente de Beauvais e da Lenda Áurea de
Jacobo de Vorágine.”100
Neste sentido, podemos perceber que os apócrifos não se manifestaram apenas na pintura.
A literatura, em geral, fez uso, ao menos, de elementos contidos nessas lendas. O próprio Dante,
quando escreve sua Divina Comédia recorre a elementos do Proto-Evangelho, assim como,
98 VALDOVINOS, José Manuel Cruz. Op. cit., p. 88. 99 Ibid., p. 90. 100 PIÑERO, Antonio. Op. cit., p. 178.
utiliza elementos apocalípticos quando escreve o Inferno. Foi assim que Giotto personificou o
gosto "dantesco" e tudo o que essa palavra significa, de sentimentos humanos como o desejo ou o
sofrimento.
CONCLUSÃO
É indiscutível a relevância da literatura apócrifa junto à iconografia medieval cristã, em
certa medida, porque ela procura preencher as lacunas que as próprias Escrituras preferiram
omitir. Do mesmo modo, a relação entre os apócrifos e as imagens — inspiradas nessa literatura
— aguçava a curiosidade dos indivíduos, pois a temática apócrifa não repete a seu modo a
história contada na Bíblia, pelo contrário, muitos dos textos apócrifos apresentam novas
passagens e, até mesmo, “novos” personagens, como é o caso de São Joaquim e de Santa Ana.
Giotto não foi único que recorreu aos apócrifos como fontes de inspiração, assim como,
podemos afirmar ainda que a pintura não foi o único suporte artístico em que eles se
manifestaram. Contudo, não temos registros sobre outras expressões apócrifas na obra do pintor,
o que reforça a singularidade iconográfica da Capela Scrovegni.
Em se tratando de uma exceção, a seqüência de afrescos que relata a trajetória de Joaquim
e Ana, apresenta-nos de forma bastante acentuada as intenções de seu patrocinador Enrico. Pode-
se dizer ainda que a Igreja, enquanto instituição hegemônica durante o medievo, tolerava algumas
expressões artísticas derivadas dos apócrifos, desde que não comprometessem em demasia a
ortodoxia.
A partir dessas considerações, podemos perceber o quanto a Igreja manipulava a
mensagem apócrifa. Se num primeiro momento havia uma recusa a esses textos, em outros, havia
tolerância. Em contrapartida, os partidários das mensagens apócrifas também tiravam seus
argumentos das Escrituras: “Jesus fez muitas outras coisas que não estão escritas neste livro. Se
fossem escritas uma por uma, penso que os livros sobre elas não caberiam no mundo.” (Jo 21,25)
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