universidade federal do paranÁ setor de ciÊncias … · estudos cebrap intitulada o espelho de...

116
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS ANGELO MARCELO VASCO HISPANIDADE, HUMANISMO E FUTUROLOGIA EM GILBERTO FREYRE: UMA ANÁLISE DE “ALÉM DO APENAS MODERNO” CURITIBA 2015

Upload: vocong

Post on 21-Nov-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

ANGELO MARCELO VASCO

HISPANIDADE, HUMANISMO E FUTUROLOGIA EM GILBERTO FREYRE: UMA ANÁLISE DE “ALÉM DO APENAS MODERNO”

CURITIBA 2015

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

ANGELO MARCELO VASCO

HISPANIDADE, HUMANISMO E FUTUROLOGIA EM GILBERTO FREYRE: UMA ANÁLISE DE “ALÉM DO APENAS MODERNO”

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais.

Orientadora: Professora Dra. Simone Meucci.

CURITIBA 2015

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

AGRADECIMENTOS

Agradeço à professora Simone Meucci, quem primeiro me sugeriu fazer uma monografia que versasse sobre o livro Além do apenas moderno. Este trabalho, e tudo aquilo que, eventualmente, poderá surgir dele, está e estará sempre em dívida com esse primeiro estímulo.

Aos amigos Ellen e Victor, pela disposição em ler o primeiro projeto desta monografia. Obrigado pela amizade sincera que tem nos acompanhado já há alguns anos e que, espero, continue a acompanhar por muitos outros.

Ao amigo Lucas Camargo que, durante todo o tempo em que estive em Madrid, teve a disposição e a imensa generosidade em buscar e disponibilizar-me livros a que eu não poderia ter acesso. Este trabalho não seria o que é sem sua ajuda.

Ao amigo Lucas Roahny, por ter sido o primeiro com quem conversei sobre a ideia de um trabalho que articulasse hispanidade e futurologia em Gilberto Freyre. Seu incentivo foi fundamental para que eu acreditasse nas possibilidades teóricas desta pesquisa.

Aos meus pais, pelo fundamental apoio em todas as áreas de minha vida e por sempre acreditarem em meus projetos.

E à Nuria Brice, pelo amor, apoio e paciência. Você me ensina o significado profundo da palavra companheirismo.

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

RESUMO

Este trabalho se constitui em um esforço de compreensão da concepção de hispanidade

em Gilberto Freyre realizado a partir de uma interpretação da obra "Além do apenas

moderno". Nesse livro, Freyre propõe a ideia de uma futurologia sociológica cuja base

poderia ser encontrada naquilo que o autor pernambucano chama de ciência hispânica

do homem. Tal ciência, uma forma compreensiva e autobiográfica de se produzir

conhecimento, teria emergido entre os hispanos já no início da era moderna, como

resultado do percurso histórico particular da península ibérica, em que se destaca

principalmente o longo contato com o elemento semita - judeu e muçulmano. Autores

como Unamuno, Ortega y Gasset e Ganivet, que reconhecidamente influenciaram a

obra de Freyre, seriam, para Gilberto, atualizadores dessa forma de saber. Tendo como

base esse conjunto epistêmico ibérico, Freyre irá propor um antagonismo entre

civilização hispânica, da qual o Brasil faria parte, e o que, em termos gerais, ele delimita

como mundo norte-europeu e anglo-saxão. A utilização desse recurso de afirmação de

contrários o aproximaria do ensaísmo latino-americano, mais especificamente de sua

corrente "arielista", que remete a José Enrique Godó. Sugiro, nesse sentido, que, em

Além do apenas moderno, Freyre propõe uma espécie de arielismo, em que o futuro

pós-moderno implicaria em uma recuperação de aspectos da tradição, tema esse

sempre tão caro ao autor pernambucano, a partir da qual a forma hispana de conhecer o

mundo e relacionar-se com ele, mais poética, intuitiva e humanista, sustentada

essencialmente a partir do conceito de tempo tríbio, poderia restaurar os equívocos do

mundo "apenas moderno", grosseiramente materialista e racionalista. O tempo-ócio dos

hispanos - tempo-saudade, tempo-nostalgia, tempo-existencial - repararia no futuro pós-

moderno a relação meramente utilitária com o tempo que havia se tornado o padrão na

vida "apenas moderna". Sustento que, a partir desse argumento, Freyre pode enfatizar a

singularidade do percurso histórico brasileiro, refutando a ideia de seu “desvio”, e, ao

mesmo tempo, contestar o discurso sociológico da modernidade, o que lhe dá

possibilidade de afirmar seu projeto intelectual de propor outra sociologia.

Palavras-chave: Pensamento Social Brasileiro; Gilberto Freyre; Modernidade; Pós-

modernidade; Hispanidade; Futurologia.

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

ABSTRACT

This monograph is an effort to understand the idea of Hispanidade (Hispanicity) in the

work of Gilberto Freyre carried out through an interpretation of the book Além do apenas

moderno (Beyond the merely modern). In this book, Freyre proposes the idea of a

sociological futurology whose base could be found in that which he calls “Hispanic

Science of Man”. This Science, a comprehensive and autobiographical way of conceiving

knowledge, would have emerged among the spaniards in the begining of the Modern

Age, as a result of the peculiar history of the Iberian Peninsula, in which stands out the

continued contact of christians, muslims and jews. Authors such as Unamuno, Ganivet

and Ortega y Gasset, who admittedly have influenced the work of Freyre, would be, in

his own opinion, renewers of this Hispanic Science of Man. Positining himself upon this

set of iberian epistemic propositions, Freyre will suggest an antagonism between

hispanic civilization, which Brazil would belong to, and what in general terms he defines

as north-european and anglo-saxon world. By affirming these two opposing identities,

Freyre would near the Latin American essay tradition, specially the one initiated by José

Enrique Rodó with his seminal work Ariel. I suggest therefore that in Além do apenas

moderno Freyre will propose an idea that could be understood as arielismo, in which the

post-modern future would signify a return of traditional values. In this new post-modern

world of his, the hispanic way of experiencing the world – more poetic, intuitive and

humanist – could repair the mistakes committed by the “merely” modern world, vulgarly

materialistic and rationalist. The hispanic idleness would repair in the post-modern future

the merely utilitarian relation with time that had become the pattern of modern life. I

suggest that, based on this argument, Freyre is able to emphasize the singularity of

brazilian historical experience, refusing therefore the idea of its “deviation”, and, at the

same time, contest the sociological discourse of modernity, which enables him to affirm

his intellectual project of proposing another approach to sociology.

Key-words: Brazilian social thought; Gilberto Freyre; Modernity; Post-modernity,

Hispanicity; Futurology.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..............................................................................................................................................7

1 ALÉM DO APENAS MODERNO: UMA ANÁLISE ............................................................................ 11

1.1 Modernidade, pós-modernidade e futurologia: a concepção de tempo em Gilberto Freyre

................................................................................................................................................................. .13

1.2 Compreender o presente, predizer o futuro: A leitura que Gilberto Freyre faz de seu tempo

.................................................................................................................................................................. 28

1.2.1 A revolução biossocial ............................................................................................................ 29

1.2.2 A questão do tempo crescentemente livre ou as relações entre trabalho e lazer ......... 38

1.2.3 As ciências e as humanidades .............................................................................................. 44

1.2.4 A tropicalidade como especificidade brasileira ................................................................... 48

2 HISPANIDADE EM GILBERTO FREYRE: A INFLUÊNCIA DO PENSAMENTO ESPANHOL ..50

2.1 O caminho para a hispanidade ..................................................................................................... 52

2.2 O sentido da hispanidade: a civilização hispânica .................................................................... 62

2.3 A hispanidade como influência: os autores espanhois ............................................................. 76

3 HISPANIDADE, HUMANISMO E FUTUROLOGIA: A REABILITAÇÃO DO APENAS

MODERNO ................................................................................................................................................. 92

3.1 Intra-história e intra-futuro: do passado profundo ao futuro íntimo ......................................... 95

3.2 Além do apenas moderno como um arielismo ......................................................................... 104

3.3 Considerações finais .................................................................................................................... 107

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................................... 114

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

7

INTRODUÇÃO

Este trabalho sobre o livro Além do apenas moderno de Gilberto Freyre teve, na

verdade, seu início a partir das provocações de outra leitura. Foi, primeiramente, O

Espelho de Próspero de Richard Morse que despertou meu interesse para o tema aqui

discutido. Teria a civilização ibero-americana alguma mensagem para o nosso mundo

moderno?, pergunta-se Morse no prefácio de seu livro, questão que irá direcionar toda

sua abordagem que retraça a genealogia da história comum das Américas e busca

compreender suas duas distintas matrizes civilizacionais, a ibérica e a anglo-saxã,

tomando-as como diferentes opções culturais. A partir desse enquadramento, a

experiência histórica da Ibero-América é tratada não como “estudo de um caso de

desenvolvimento frustrado”, mas como a “vivência de uma opção cultural” (Morse, 1988,

p.14), que, nesse sentido, teria, sim, algo de fundamental a ensinar ao mundo moderno.

A resposta que a narrativa sociológica hegemônica dá à pergunta de Morse é, no

entanto, bastante distinta. De acordo com ela, a herança ibérica brasileira seria uma das

razões para nossa renitente ausência de modernidade, nosso persistente atraso.

Poderia ser tomada como emblemática dessa narrativa dominante, a posição de Simon

Schwartzman (1988; 1997) para quem as teses do brasilianista estadunidense seriam

apenas um culturalismo erudito, ilusório e profundamente equivocado1. A obra de Morse

não é, todavia, o cerne desta monografia. Ela é apenas o ponto de partida. A

provocação que me possibilitou olhar para Freyre de outra maneira.

A leitura de Além do apenas moderno fez-me conhecer um Freyre diferente

daquele com quem já tivera contato. As ideias-força que sustentam a obra do ensaísta

de Apipucos – a mestiçagem, a tropicalidade e o iberismo, para citar apenas algumas –

estavam ali, é verdade. Havia, no entanto, aspectos distintos que, logo no início, talvez

não tenha conseguido perceber muito bem. A escritura livre e inventiva de Gilberto

parecia ser levada às últimas consequências e chegava a aparentar certo

descompromisso com o rigor sociológico. O emprego de ideias como tempo tríbio,

futurologia e revolução biossocial, por exemplo, causavam, confesso, certo

estranhamento. Minha primeira impressão foi de que o livro era prospectivo em demasia

1 Sobre o debate entre Morse e Schwartzman ver: Schwartzman (1988; 1989) e Morse (1989). O debate

se iniciou com a resenha do livro O Espelho de Próspero que Schwartzman escreveu para a revista Novos Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman e, por fim, a tréplica de Schwartzman que tem como título O gato de Cortázar. A discussão versa, sobretudo, acerca da tensão tradição-modernidade, que é o tema central deste meu trabalho.

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

8

e que Freyre inseria-se demais no próprio texto, falando muitas vezes de si mesmo e de

sua obra, e esboçava um futuro que parecia ser mais fruto de sua imaginação do que

propriamente uma análise cuidadosa dos fatos sociais.

Eu estava, no entanto, equivocado. Tive que deixar o livro de lado por alguns

meses para poder, posteriormente, compreendê-lo de verdade em todas as suas

possibilidades. Nesses meses em que me afastei dele, conheci mais profundamente o

pensamento hispânico. Travei meu primeiro contato com autores como Miguel de

Unamuno, Ángel Ganivet, Ortega y Gasset e Américo Castro, intelectuais espanhóis

contemporâneos cuja influência na obra de Freyre é bastante notável. Conheci também

autores espanhóis mais antigos como Baltasar Gracián, Juan Luis Vives e Frei Luis de

León, símbolos do humanismo espanhol e que Freyre insistentemente retoma na obra

que é objeto deste trabalho. Descobri o misticismo nas figuras de San Juan de la Cruz e

Santa Teresa de Jesus em todo seu vigor poético e literário. Aprendi sobre o

renascimento e o barroco espanhol, períodos em que emergiram os escritos de Miguel

de Cervantes, Lope de Vega, Francisco de Quevedo e tantos outros autores que fizeram

esse momento histórico da Espanha ser conhecido como século de ouro.

Ao voltar para a obra de Freyre, após alguns meses de inserção no pensamento

espanhol, minha apreensão do texto foi outra. Como irei mostrar ao longo deste

trabalho, os capítulos que compõem o Além do apenas moderno foram sendo escritos

em anos anteriores à sua publicação, em forma de ensaios, artigos e apresentações de

conferência. Por terem uma coerência interna e abordarem temas comuns, são

agrupados e transformados em livro, que será publicado em 1973. Nesse sentido, tanto

o prefácio escrito por Gilberto e a introdução são bastante reveladores do sentido de

unidade que se pretende privilegiar. Nessas duas partes iniciais do livro, emerge com

força a ideia que irá embasar a proposição freyriana de uma futurologia sociológica:

aquilo que o autor pernambucano chama de “ciência hispânica do homem”. Dirá ele,

“dos modernos métodos de compreensão que, nas Ciências do Homem, permitem vir se

desenvolvendo uma sociologia voltada para o estudo, assim compreensivo, dos futuros

possíveis – uma como futurologia – não há despropósito em destacar-se que têm

antecedentes hispânicos” (Freyre, 2001, p.35).

Penso ter sido o contato mais aprofundado com o pensamento espanhol que me

possibilitou reler o livro de Freyre “com outros olhos”. Ao ter as referências intelectuais

que embasavam as ideias do autor pernambucano, aquilo que me parecia defeito numa

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

9

primeira leitura tornou-se virtude; converteu-se na base que sustentava todo o livro.

Obviamente, Gilberto não irá se limitar apenas a autores espanhóis para sustentar sua

ideia de futurologia. Há uma profusão de autores recuperados que seriam exemplos

daquilo que ele pretendia alcançar com uma ciência que abordasse o futuro: desde

clássicos como George Simmel, Max Weber, Alexis de Tocqueville, passando por

nomes conhecidos, mas que não são em geral mobilizados pela sociologia, estando

mais ligados a outras ciências e à literatura, como Aldous Huxley, Arnold Toynbee, John

Maynard Keynes, Paul Valéry, até chegar em nomes mais desconhecidos como Gaston

Berger, Bertrand de Jouvenel e Georges Balandier. Além do apenas moderno é, nesse

sentido, mais um símbolo daquilo que afirmaram Peter Burke e Maria Lúcia Pallares-

Burke (2008, p.20) de que Freyre era uma espécie de “esponja intelectual”, capaz de

absorver informações das mais variadas fontes e tornar ideias de outros autores como

parte de si mesmo.

Como este é, no entanto, um pequeno trabalho monográfico, tive que fazer a

opção de centrar-me em algumas poucas ideias esboçadas no livro. Entendo que a mais

importante delas remete à concepção de hispanidade. Por isso, esta monografia

pretende captar como Freyre esboça essa ideia em Além do apenas moderno e como

ela se conecta com a futurologia. A conexão entre hispanidade e futurologia será, como

tentarei mostrar, a reivindicação por Freyre de seu método sociológico, bastante distinto

daquele que era empregado pela sociologia institucionalizada em sua época. Penso ser

correto dizer que a cisão entre a sociologia de Freyre e a sociologia científica (Meucci,

2006) poder-nos-ia remeter ao debate entre Morse e Schwartzman e que, nesse

embate, Freyre estaria posicionado ao lado do norte-americano, enquanto Schwartzman

representaria a sociologia institucional e científica.

A fim de alcançar esse objetivo de aproximar hispanidade e futurologia,

estruturarei o trabalho da seguinte maneira. No primeiro capítulo, farei uma análise

ampla de Além do apenas moderno, em que tentarei mostrar as principais ideias que

fundamentam o projeto de Freyre de sugerir os contornos de uma ciência que possa vir

a ser institucionalizada como futurologia. Irei, em um primeiro momento, reportar-me a

todo o aparato teórico que Gilberto utiliza para construir a ideia de futurologia e, num

segundo momento, buscarei mostrar como ele operacionaliza essa ideia, fazendo

análises de futuros possíveis para a humanidade e, em especial, como o próprio autor

pernambucano diz, para a “humanidade brasileira”.

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

10

No segundo capítulo, centrar-me-ei na concepção de hispanidade como Gilberto

a forja não apenas em Além do apenas moderno, mas ao longo de sua obra. Tentarei

mostrar como as teses ibéricas, que em um primeiro momento reportavam-se,

sobretudo, ao mundo português, passam a integrar também o universo espanhol, de

forma que, ao final da carreira do autor pernambucano, iberismo já é sinônimo de

hispanidade. Nesse sentido, procurarei tornar claro qual o sentido da hispanidade

reivindicada por Freyre. Apoiar-me-ei nas ideias do filólogo e historiador espanhol

Américo Castro para ilustrar como Gilberto a entendia. Por fim, retomarei autores

contemporâneos como Miguel de Unamuno, Ángel Ganivet e Ortega y Gasset que

tiveram importante influência na obra do autor pernambucano. Meu objetivo aqui será

mostrar como o conjunto do pensamento hispânico oferece para Freyre outra episteme

na qual ele pode se basear para questionar o que Sérgio Tavolaro (2005; 2013) chama

de discurso sociológico da modernidade.

No último capítulo, mostrarei como é, sobretudo, a partir da concepção de intra-

história de Miguel de Unamuno que Gilberto se baseia para conceber sua futurologia,

que, ver-se-á, busca conhecer o intra-futuro de uma sociedade. Não se trata, portanto,

de projetar um futuro utópico como aquele que emerge da teleologia da modernidade,

em que no porvir da vida humana encontrar-se-ia a superação de todos os problemas

do passado e do presente, mas sim de encontrar o futuro íntimo, o futuro interior de uma

sociedade, que se conecta com suas tradições mais profundas (Freyre, 2001, p.29). Em

um segundo momento, utilizo-me do livro Ariel de José Enrique Rodó para sugerir que

em Além do apenas moderno Freyre empreende uma espécie de arielismo, em que o

futuro pós-moderno é apresentado como momento histórico de retomada da tradição,

especialmente aquela que se reporta a um modo hispânico de viver o tempo, o tempo

tríbio, e de conhecer o mundo, a ciência hispânica do homem. Nesse sentido, da mesma

forma como Rodó realiza uma crítica da modernidade utilitarista anglo-saxã

reivindicando o latinoamericanismo, Freyre contesta o mundo “apenas moderno” a partir

da reivindicação da hispanidade. Em ambos, há a mesma defesa do ócio frente ao

tempo transformado em mero instrumento da acumulação, o mesmo argumento de que

os valores do humanismo podem reabilitar um mundo dominado pelos interesses do

racionalismo moderno utilitarista.

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

11

1 ALÉM DO APENAS MODERNO: UMA ANÁLISE

With varying content, the term ‘modern’ again and again expresses the consciousness of an epoch that relates itself to the past of antiquity, in order to view

itself as the result of a transition from the old to the new.

J.Habermas2

A definição de moderno expressa na epígrafe acima serve como bom ponto de

partida para se iniciar uma discussão do livro Além do apenas moderno de Gilberto

Freyre. Não porque ela exprima uma consonância de pensamento entre Habermas e

Freyre. Exatamente pelo contrário. É provável que o autor pernambucano concordasse

com a afirmação do filósofo alemão; no entanto, se este se apoiaria na ideia de

modernidade como consciência de uma transição do antigo para o novo a fim de

defendê-la e sustentar os ganhos – ainda inacabados – que ela representa para a

humanidade, o ensaísta de Apipucos dela partiria para criticar a efemeridade e

transitoriedade do chamado mundo moderno, que, para ele, mal começa a existir e já

deixa de ser. Essa é a ideia central e o eixo sobre o qual se articulam todas as

argumentações do livro Além do Apenas Moderno: a contingência do mundo moderno e

a necessidade de se pensar para além dele.

Em seu texto de abertura do livro3, José Guilherme Merquior (2001, p.10) percebe

de maneira precisa aquilo que subjaz ao pensamento freyriano na forma como

apresentado nessa obra: sua percepção da “atitude paradoxal do espírito pós-moderno

em relação ao tempo histórico”. A pós-modernidade, para Freyre, caracteriza-se como

um momento em que já não mais se “esposa a mitologia profana do progresso linear”

(Ibid, p.10). Ou seja, aquela certeza tão moderna de que existe uma transição perene do

arcaico ao novo, e que produziu as narrativas dominantes sobre a modernidade, não

existe mais. Ao observar especialmente o comportamento de jovens de seu tempo,

Freyre (2001, p.67) percebe um repúdio ao moderno por parte do espírito pós-moderno

que reclamaria, inclusive, por saudosismo, um retorno ao arcaico. Nesse sentido, as

narrativas teleológicas tão características das interpretações modernas da História

perdem força e sentido, uma vez que não são capazes de explicar os comportamentos

sociais do homem contemporâneo, que de tantas maneiras passa a voltar-se ao

passado, ao antigo, contrariando as perspectivas que defendem a linearidade do tempo.

2 “Com alguma variedade de conteúdo, o termo moderno repetidamente expressa a consciência de uma

época que se conecta com o passado da antiguidade a fim de considerar a si mesma como resultado de uma transição do velho para o novo” [tradução do autor]. 3 Ensaio publicado originalmente no Jornal do Brasil, em 05.01.1974, e que abre a 2ª edição do livro de

Freyre publicado pela Topbooks Univercidade Editora em 2001, a qual utilizo para escrever este trabalho.

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

12

A essa compreensão do que sejam modernidade e pós-modernidade, soma-se

outra ideia fundamental para a construção teórica do livro. O que Freyre vem a chamar

de futurologia está em permanente diálogo com seu entendimento do moderno e do

pós-moderno. Neste capítulo inaugural, portanto, pretendo apresentar, em um primeiro

momento, essas noções mais amplas e abrangentes, espécie de guias teóricos, que

conduzem Freyre na escritura de Além do apenas moderno, a partir de uma chave

explicativa que conecta as concepções de futurologia e pós-modernidade, qual seja: sua

concepção de tempo, explicitada no conceito de tempo tríbio, também chamado por

Gilberto de tradição ibérica de temporalidade4. Entendo que uma compreensão correta

do que o autor pernambucano pretende teoricamente com a ideia de futurologia só pode

ser obtida por meio de sua articulação com a concepção de tempo em Freyre e de seu

entendimento do que vem a ser a pós-modernidade.

Em um segundo momento do capítulo, pretendo avançar em direção às ideias e

interpretações desenvolvidas pelo autor ao longo do livro, cujo entendimento preciso só

poderá vir a partir de uma clara compreensão daquilo que explanarei na primeira parte

deste capítulo. Se na primeira parte exponho o que é a futurologia, na segunda, mostro

como Freyre operacionaliza essa ideia. Nesse sentido, na segunda parte, tentarei

enfatizar as ideias mais específicas que emergem no livro como esforço do autor para

explicar a realidade cambiante de seu tempo. Centrar-me-ei, basicamente, naquilo que

Freyre chama de revolução biossocial, em suas ideias sobre a relação trabalho e lazer –

que, em alguns momentos, aparece como problema do tempo crescentemente livre ou

concebido na expressão “ócio versus negócio” –, em suas concepções acerca das inter-

relações entre gerações, no debate entre ciências físicas e naturais, de um lado, e as

humanidades, de outro, em sua reflexão sobre o papel dos intelectuais e, por último, na

tropicalidade como especificidade brasileira.

Haveria, obviamente, mais temas a ser investigados em um trabalho que se

proponha a analisar Além do apenas moderno. As escolhas que fiz estão relacionadas

com as restrições de pesquisa que um pequeno trabalho como uma monografia impõe.

Optei, portanto, por aqueles temas que me pareciam os mais relevantes para uma

compreensão total do livro de Freyre. Ademais, a eleição dos tópicos relaciona-se com o

objetivo mais amplo do trabalho, que é analisar a ideia de hispanidade presente na obra.

4 A concepção de tradição ibérica de temporalidade aparece desenvolvida pela primeira vez no texto The

Iberian concept of time, que Freyre publicou originalmente na revista The American Scholar no verão de 1963.

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

13

Não se trata, portanto, de analisar exaustivamente o livro do autor pernambucano,

senão descortinar como futurologia e hispanidade caminham juntas. A escolha dos

temas está, nesse sentido, intimamente relacionada com esse objetivo maior.

O escopo deste primeiro capítulo é oferecer uma compreensão geral da obra que

funcione como uma base a assentar a discussão que virá posteriormente. Minha

intenção aqui será tornar clara, principalmente, a noção de futurologia. Para tanto, terei

de recorrer a todo o aparato teórico mobilizado por Gilberto Freyre para construir essa

concepção. Nos capítulos seguintes, irei me defrontar com a noção de iberismo5, que

tanto marcou o autor ao longo de toda sua carreira, na forma como essa ideia aparece

desenvolvida especificamente em Além do apenas moderno – sempre evidenciada no

termo hispanidade – e como ela se articula com o conceito de futurologia. O momento

pós-moderno, ao superar a efemeridade do moderno, abre-se como oportunidade de

concretização da ideia, sempre tão cara a Freyre, de retorno à tradição. É nesse

sentido, de recuperação do tradicional, do chamado arcaico, que futurologia e

hispanidade se combinam, como a forma de pensar característica de um tempo que

restaura aquilo que a modernidade, em sua presunção teleológica, desvirtuara.

Tal é, como a entendo, a relação entre hispanidade e futurologia. Ante o

esfacelamento das certezas do efêmero moderno, é preciso repensar o passado; na

verdade, é preciso repensar o próprio tempo. É o que Freyre se propõe a fazer em Além

do apenas moderno. Voltemo-nos, portanto, ao livro a fim de descobrir o que o ensaísta

de Apipucos tem a nos ensinar.

1.1 Modernidade, pós-modernidade e futurologia: a concepção de tempo em

Gilberto Freyre

Una sociedad se define no sólo por su actitud ante el futuro sino frente al passado: sus recuerdos no son

menos reveladores que sus proyectos. Octavio Paz

Freyre abre sua obra, logo nas primeiras linhas do prefácio escrito para o

lançamento de sua primeira edição, deixando claro, em primeiro lugar, qual

preocupação fundamental o ocuparia no transcorrer daquelas páginas. Trata-se de

abordar “alguns aspectos de alguns dos atuais estudos, dentro e fora das chamadas

5 Iberismo é como, em geral, são chamadas as teses ibéricas de Freyre pela literatura especializada,

conceito a partir do qual, basicamente, deduz-se ser o Brasil herdeiro das tradições culturais da península ibérica, que nos foram legadas por meio do processo de colonização. Neste trabalho, usarei iberismo e hispanidade como sinônimos, remetendo-me sempre a essa ideia de especificidade cultural ou civilizacional ibérica, da qual o Brasil faz parte. O segundo capítulo centrar-se-á nesse tema.

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

14

Ciências do Homem, que se relacionam, sob a forma de indagações e conjeturas, com o

futuro – ou com os possíveis futuros – quer do Homem, quer do mundo em que o

Homem vive” (Freyre, 2001, p. 23). Ademais, enfatiza Freyre de que não se tratava, o

futuro, de assunto novo para ele. O novo livro que oferecia ao leitor, publicado em 1973,

concernia a tema acerca do qual já escrevera e falara ao longo dos anos antecedentes

ao seu lançamento.

O que Gilberto Freyre chama de futurologia em Além do apenas moderno faz

parte, portanto, de um conjunto de reflexões que já o preocupavam desde muito antes

da publicação de seu livro. Não se trata, pois, de uma excentricidade a que o autor

tenha se permitido nos anos finais de sua carreira intelectual. Algo como aventurar-se

pela adivinhação ou ficção científica. Nada disso. Pelo contrário, veremos que sua

tentativa de pensar o futuro está intimamente ligada com aquela que talvez tenha sido a

ideia mais resistente em todo pensamento freyriano e que mobilizou, em grande medida,

seus esforços para compreender o Brasil. Refiro-me à defesa da tradição e à defesa da

necessidade de se buscar no passado brasileiro as respostas para melhor compreensão

do presente e os indícios para aquilo que se deveria perseguir no futuro, aspectos muito

presentes em Freyre já desde Casa-Grande & Senzala. Complementa-se a essa ideia a

sempre crítica postura freyriana em relação à busca do progresso a qualquer custo que,

concebida a partir da concepção de modernização, colaborava para a descaracterização

da singularidade brasileira.

A ideia de que era preciso conservar a tradição – senão toda, pelo menos parte

dela – foi sempre, em Freyre, o elo que conectava, ou que deveria conectar, o passado

com o futuro. Sua persistente reticência ao projeto modernizador6 devia-se ao fato de

que a modernidade descaracterizava nossa tradição e, portanto, rompia nosso elo com

o passado, deixando-nos, dessa forma, suscetíveis a um futuro alheio àquilo que nos

era mais próprio. Para ele, assim como para Octavio Paz, de cuja obra Sor Juana Inés

6 A expressão “projeto modernizador” aqui se refere à ideia sociológica de que a modernidade implicaria

na superação inevitável da tradição, que é pensada justamente como aqueles traços arcaicos, pré-modernos que, senão todos, pelo menos em parte, Freyre entendia ser preciso conservar. Tradição como antítese de modernidade, portanto. Penso que Tavolaro (2005) seja uma boa referência para sistematizar a “ideia sociológica” a que me refiro aqui. Para esse autor, o discurso sociológico da modernidade opera dentro de uma episteme que demarca “o terreno cognitivo de um certo discurso sobre a modernidade” que se tornou “hegemônico na produção sociológica internacional”. Segundo esse discurso, o padrão de sociabilidade moderno está estruturado em torno de três pilares fundamentais: a) diferenciação/complexificação social; b) secularização; c) separação entre público e privado. (Tavolaro, 2005, p.7). Qualquer sociedade, para ser considerada moderna, deveria ter sua sociabilidade adaptada a esses pilares. Ocupariam “posições nodais” dentro desse discurso sociológico hegemônico da modernidade autores como Marx, Weber, Durkheim, Simmel e, mais recentemente, Parsons, Luhmann e Habermas (Ibid, p.12).

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

15

de la Cruz o las trampas de la fe7 retiro a epígrafe desta seção, projetos de futuro e

recordações do passado não constituíam esferas autônomas da vida intelectual de uma

nação. Pelo contrário, ambas – proyectos e recuerdos – articulam-se na medida em que

aquilo de que, como país, nos recordamos, tomado de forma positiva ou negativa,

constitui o fundamento a partir do qual se constroem esboços de futuro. Nesse sentido,

tanto em Paz quanto em Freyre há uma reivindicação da tradição e esse aspecto é

absolutamente fundamental para se entender a futurologia freyriana.8

O esforço historiográfico e interpretativo de Gilberto Freyre, no qual o elemento

da tradição desempenha papel fundamental, pode ser encontrado, sobretudo, nos três

livros que formam sua Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil iniciada em

1933 com Casa-Grande & Senzala, continuada em Sobrados e Mucambos, de 1936, e

concluída em 1957 com Ordem e Progresso. Gilberto Freyre dedicara-se diligentemente

à compreensão do passado brasileiro e interpretação de seu presente. Intentava, agora,

com o Além do apenas moderno, uma sistematização de seu pensamento acerca do

futuro. Segundo palavras do próprio autor pernambucano: “Tais estudos, denominados,

por uns, prospectivos, por outros, futurológicos, pedem uma sistemática especial antes

de sua imediata e arbitrária elevação a ciência. Mesmo assim imprecisos, são dos mais

se impõem à atenção da gente universitária de hoje”. (Freyre, 2001, p.23).

Estas duas dimensões temporais, passado e futuro, não estariam, portanto,

totalmente separadas no pensamento freyriano. Nesse sentido, parece-me importante

ressaltar como o próprio autor, posteriormente, irá refletir sobre seu legado. Em prefácio

à segunda edição francesa do livro Casa-Grande & Senzala, publicada em 1974 – ou

seja, apenas um ano após a publicação de Além do apenas moderno –, Freyre faz uma

afirmação que julgo importante e que vale a pena ser transcrita na íntegra:

“Le livre enfin innovait par sa conception du temps, envisagé à la fois dans le passé, le présent et l’avenir. En partant des origines d’un societé, il tentait de discerner son

7 Este livro de Octavio Paz, obra clássica do autor, constitui-se, ao mesmo tempo, um esforço de

interpretação histórica da Nova Espanha do século XVII e uma tentativa de situar a vida e a obra literária da poetisa mexicana sor Juana Inés de la Cruz nesse contexto. Ensaio histórico e texto de crítica literária, seu livro é considerado o mais importante já escrito a respeito de sor Juana Inés e também dá continuidade a muitas das ideias que o escritor e diplomata mexicano já desenvolvera em seu conhecido estudo crítico da modernidade El laberinto de la soledad. 8 Essa aproximação entre Freyre e Paz não constitui o objeto deste trabalho e, por essa razão, não será

aprofundada. No entanto, certamente o será em futuras pesquisas. Tanto Freyre quanto Paz são autores fundamentais do panteão intelectual brasileiro e mexicano em cujas obras há uma importante reivindicação da tradição. Ocupam posições semelhantes no mundo intelectual de seus países, tendo sido rechaçados pela esquerda acadêmica. Ademais, Casa Grande & Senzala e El laberinto de la soledad são consideradas, pelo cubano Enrico Mario Santí (2014, p.14), colunas fundamentais do edifício teórico em que veio se constituir o chamado ensaio de identidade nacional latino-americano.

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

16

évolution probable, et ceci en mettant l’accent sur l’importance de la culture africaine noire dans la formation du Brésil moderne”

9 (Freyre, 2009, p.24).

O prefácio dessa edição francesa está assinado em Recife no ano de 1973,

exatamente o mesmo em que Gilberto Freyre publica Além do apenas moderno, e cujo

prefácio foi escrito em abril daquele mesmo ano. A concepção de tempo que Freyre

apresenta mais sistematicamente em Além do apenas moderno fá-lo reexaminar sua

obra inicial, afirmando encontrar já no momento de escritura de Casa-grande & Senzala

a ideia de que o homem nunca vive separadamente passado, presente e futuro, mas,

pelo contrário, vivencia sua existência imerso nas três esferas temporais conjuntamente.

Sabemos, obviamente, que uma obra está sempre sujeita a apropriações e

ressignificações futuras, seja por intérpretes que se propõem a analisá-la, seja pelo seu

próprio autor, que pode optar por dar ela uma nova coloração mais afeita às novas

ideias que lhe sobrevém com o tempo. Como afirma Octavio Paz, “la obra se desprende

de su autor y se transforma en una realidad autónoma” (Paz, 2008, p.14). De qualquer

forma, Freyre destaca uma continuidade em seus escritos, enfatizando neles uma

perene concepção de tempo.

O que quero enfatizar aqui é aquilo a que se refere Maria Lúcia Pallares-Burke

em seu Um vitoriano nos trópicos, livro que, como a própria autora afirma, tenta oferecer

uma “biografia intelectual genética” que destaca os “elementos formadores do

pensamento de Gilberto Freyre” (Pallares-Burke, 2005, p.18). Ao citar o psicanalista Erik

Erikson, afirma a historiadora brasileira que “à medida que envelhecemos, todos nós,

conscientemente ou não, reinterpretamos nossa própria vida” (Ibid, p.19). Todavia maior

o interesse de autores prolíficos como Freyre em dar um sentido e progressão à sua

vida e obra. Pallares-Burke enfatiza essa preocupação de auto invenção e auto

apresentação de Freyre, que se fazem notar, especialmente, segundo a autora, em

Tempo morto e outros tempos, autobiografia escrita pelo autor pernambucano em forma

de diário10. Nesse sentido, poder-se-á interpretar a tentativa de Freyre em destacar a

presença da concepção de tempo tríbio já em Casa-Grande e Senzala – e não apenas

9 “O livro enfim inovava por sua concepção de tempo, considerado conjuntamente no passado, no

presente e no futuro. Partindo das origens de uma sociedade, tentava discernir sua provável evolução, e nisto insistindo na importância da cultura africana negra na formação do Brasil moderno” [tradução do autor]. Utilizo neste trabalho reimpressão de 2009 da segunda edição, de 1974, publicada pela editora Gallimard. 10

Segundo Pallares-Burke, o livro Tempo morto e outros tempos, publicado em 1975 como uma recopilação dos diários que um jovem Freyre teria escritos nos anos de 1921-1922, seria, na verdade, uma autobiografia escrita pelo autor em tom memorialista ao longo dos anos, na qual Freyre conferiria ao passado um sentido mais afeito ao percurso que ele próprio gostaria de imprimir em sua obra.

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

17

mais tarde11 – como mais uma tentativa de auto apresentação, de retratar a própria obra

como dotada de um sentido contínuo e perene.

De qualquer maneira, o destaque dado à ideia de tempo tríbio nos anos 70

mostra como, nesse momento da carreira do autor pernambucano, a concepção assume

importância. A forma como Gilberto Freyre concebe o tempo é decisiva para o

enquadramento que ele dará à sua futurologia. O que o autor chama de tempo tríbio é,

portanto, a base de sua reflexão acerca do futuro. Tal relação é explicitada em excerto

de Além do apenas moderno que transcrevo a seguir. A citação é longa, mas em razão

de sua importância parece-me fundamental reproduzi-la integralmente:

“Os estudos que, depois de algum tempo como sistemática, venham possivelmente a constituir-se em ciência que se denomina Futurologia – ciência relativa – tendem a ser uma disciplinação da tendência humana para a profecia, em ligação com a tendência, também muito humana, para o retrospecto ou a evocação; para recuperação do tempo perdido e até para a saudade; e sem que falte a qualquer dessas tendências o terra-a-terra da observação da realidade imediata. Realidade imediata na qual se cruzam sobrevivências e antecipações. O homem nunca está apenas no presente, sem deixar de ser homem pleno ou integral. Se apenas se liga ao passado, torna-se arcaico. Se apenas procura viver no futuro, torna-se utópico. A solução para as relações do homem com o tempo parece estar no reconhecimento do tempo como uma realidade dinamicamente tríbia da concepção brasileira; e como o homem vive imerso no tempo, ele próprio é um ser – um estar sendo, diria talvez Gasset – tríbio.” (FREYRE, 2001, p.28,29).

É importante destacar que, para Freyre, o futuro não se confunde com utopia. Um

futuro enquanto utopia é resultado de concepções que tomam o tempo porvir como uma

“sala de estar, paradisíaca e estática” (Freyre, 2001, p. 31). Tomado nesse sentido, o

futuro estaria separado do presente e seria pensado apenas como aquele momento em

que os problemas que se apresentam no mundo de hoje se resolveriam. Freyre entende

que contribui para fazer dessa visão a predominante dos tempos modernos aquela

atitude triunfalista dos cientistas físicos, que julgam ser o futuro o momento em que a

ciência encontrará soluções para todos os problemas da humanidade e a vida se

tornará, assim, uma espécie de paraíso terreno, aquele tempo em que as vicissitudes do

presente e do passado que constringiram o homem serão superadas.

Para Freyre, o futuro pensado assim é meramente utópico e não é esse o

contorno que ele deseja dar à sua concepção de futurologia. O tempo é uma realidade

tríbia, ou seja, passado, presente e futuro se encontram em permanente contato, nunca

alheios uns aos outros. Por essa razão, não faz sentido para o autor pernambucano

pensar o futuro como utopia, pois este jamais corresponderá a uma espécie de estágio

11

O conceito de tempo tríbio teria aparecido, pela primeira vez, na obra de Freyre, no livro Ordem e Progresso, de 1957.

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

18

superior da humanidade, algo que parece mais fruto da idealização do pensamento

teleológico do que uma realidade observável. Fica evidente, portanto, que, para Freyre

(2001, p. 32), o novo não é necessariamente superior ao antigo. Existe uma

imprevisibilidade natural no universo que pode tornar as descobertas revolucionárias de

hoje em instrumentos de destruição do bem-estar humano amanhã. Não teria sido essa,

de certa maneira, a história do século XX? O período de maiores avanços sendo o

também o de maior destruição. A terra totalmente esclarecida resplandecendo sob o

signo de uma calamidade triunfal, afirmariam Adorno e Horkheimer (1947, p.5) em seu

Diáletica do Esclarecimento.

A ideia de que o futuro não pode ser pensado apenas enquanto utopia é,

portanto, fundamental. Como transparece na crítica de Freyre (2001, p.34) a Roderick

Seidenberg – “arquiteto com algo de sociólogo”, a quem Freyre chama de futurólogo –

quando este sugere que o futuro humano tende a ser dominado pela máquina, o divórcio

entre passado, presente e futuro resultava em perspectivas que descolavam o homem

histórico daquilo de que mais concreto ele possuiria. Preocupava Freyre o homem

histórico, não o homem pós-histórico de Seidenberg, homem este que não teria controle

de seu próprio futuro.

Seidenberg dava ênfase “ao condicionamento do Homem pelo futuro em vez do

condicionamento do futuro pelo Homem” (Freyre, 2001, p.34). O autor pernambucano

entendia que esses dois elementos não eram mutuamente excludentes. Para Freyre

(2001, p.34), “se é certo, como Seidenberg sugere, que o futuro humano tende a ser

dominado pela máquina, não parece menos certo que o Homem venha a limitar esse

domínio”. Nesse sentido, Gilberto demonstra claramente qual o seu entendimento

acerca da substância da relação do homem com o futuro. Cito-o textualmente:

“Admitindo-se que o Homem não venha a interferir de modo absoluto sobre o seu futuro, com a crescente automação tanto lhe aumentando o tempo livre como lhe diminuindo as oportunidades de fazer sentir o seu domínio direto sobre seu ambiente, de certa altura em diante tendente a autodesenvolver-se, admite-se, contudo, à base de prognósticos idôneos, que parte considerável do futuro humano seja susceptível de refletir vontades, gostos, decisões do Homem” (FREYRE, 2001, p.34).

Essa ideia esboça algo de fundamental para compreender a futurologia freyriana.

Parecia-lhe certo que o processo de desenvolvimento tecnológico levaria às sociedades

a um nível de automação que, cada vez mais, daria protagonismo à máquina em

detrimento do homem. Um futuro dominado pela máquina, no entanto, poderia ser válido

como ficção científica, mas, para Freyre, não se apresentava “válido como futurologia

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

19

sociológica que alcance o futuro do homem em termos de história humana” (Freyre,

2001, p. 34). Não se trata, portanto, de fazer ficção científica, pois esse gênero literário

implica em pensar o homem apartado de uma realidade histórica sociologicamente

verificável.

Assim, Gilberto Freyre expõe claramente o que pretende com uma sistematização

de seus estudos futurológicos: “é o futuro do Homem, quer histórico, quer trans-

histórico, projetado sobre os séculos, que principalmente nos interessa em tais estudos.

O futuro de suas sociedades e de suas culturas. O futuro de sua própria configuração

antropológica” (Freyre, 2001, p.34). Importante destacar que esse futuro é, para ele,

passível de ser planificado. Daí a importância de se sistematizar a futurologia como

forma científica, sociológica de analisar e prever o futuro.

O papel a ser desempenhado pelos cientistas sociais é, nesse sentido,

fundamental. A futurologia que Freyre propõe deve ser, necessariamente, resultado de

um permanente diálogo entre ciências e humanidades. As ciências físicas e naturais não

são capazes de pensar por si só as consequências imprevistas das inovações

tecnológicas. Para isso, necessitam do auxílio de outro cientista – aquele mais

preocupado com questões psicológicas, antropológicas e sociológicas – cujo modelo de

treinamento científico lhe torna mais apto para antever as consequências não de todo

racionais do progresso tecnológico. Ademais, requer-se a contribuição do humanista, do

poeta, do escritor, enfim, de todo aquele homem preocupado com o futuro humano e

que, por meio de sua sensibilidade, consegue enxergar o que a fria racionalidade do

cientista físico não pode antecipar (Freyre, 2001, p. 31, 32).

Gilberto Freyre requer, portanto, um papel crítico e ativo das humanidades na

construção de uma análise acerca do futuro. Nesse sentido, afirma ele:

“A atuação de intelectuais, em geral, e de cientistas sociais, em particular, em esforços de planificação de futuros humanos, ou de um futuro humano geral, de que eles participem ao lado de cientistas físicos, químicos, biológicos, em vez de passiva, precisa de ser ativa, mesmo que uma colaboração assim ativa, da parte deles, complique, em vez de facilitar ou simplificar tais esforços. Nada de nos esquecermos das advertências de mais de um filósofo de que, nos domínios do saber, a simples exatidão – que tanto simplifica esse saber – não é suficiente para chegar-se às verdadeiras verdades: tão complexas.” (FREYRE, 2001, p.33).

É importante destacar que há aqui, para além da construção de uma concepção

de futurologia, o que, em si, já é importante, uma profunda reflexão epistemológica. Ao

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

20

se propor a pensar o tempo, e, em especial, o futuro, em Além do apenas moderno,

Gilberto Freyre realiza, como acertadamente percebe José Guilherme Merquior (2001,

p.14), “um verdadeiro exame de consciência da metodologia sociológica”. Não irei me

deter nessa questão neste momento, pois irei avançar nela nos próximos capítulos

deste trabalho, quando abordarei, mais especificamente, as relações entre hispanidade

e futurologia. No entanto, deve-se destacar, desde já, que a maneira como Freyre

concebe a futurologia tem relação direta com sua concepção de como se deve construir

o conhecimento sociológico. Sua ênfase está na dimensão humanística, inventiva,

compreensiva da sociologia, aquilo que ela tem de poética, sem deixar de ser,

cientificamente, rigorosa. E esse aspecto está intimamente relacionado com o que ele

chamará de hispanidade da futurologia. Voltarei a esse tema posteriormente.

Gilberto Freyre não se percebe exatamente um prógono no que se refere ao seu

tratamento do futuro. Entendia que entre brasileiros, sim, era pioneiro em sua

abordagem futurológica. No entanto, conecta seus estudos com uma série de outros

autores – em geral, franceses e estadunidenses – que também já realizavam esforços

no sentido de complexificar a compreensão do futuro. Esses autores refletem o que

Freyre (2001, p.24) chama de “tipo novo de atitude sociológica para com o futuro”.

Destaque dado, por ele, para a França que, já desde nos anos 60, contava com dois

centros de estudos futurológicos, cuja direção cabia a dois sociólogos respeitados pelo

autor pernambucano, Georges Balandier e Bertrand de Jouvenel12.

O que distinguia essas abordagens, e as conectava com o tipo de aproximação

futurológica da sociologia que Freyre propugnava, era sua compreensão de certa

transição pela qual passava o mundo contemporâneo que reclamava, por um lado, outra

forma de abordagem do tempo e, por outro, uma superação das abordagens clássicas

sociológicas que insistiam, por exemplo, em dar uma ênfase repetitiva nos conflitos de

classe, quando esses, claramente, já não detinham a força explicativa de outrora. Os

12

Os dois centros de estudos a que Freyre se refere são: 1) Le Centre International de prospective criado em 1957 por Gaston Berger e André Gros e que, posteriormente, teria seu nome alterado para Centre d’Études Prospective. Berger foi o criador da palavra “prospective” em francês com o objetivo de distanciar-se da ideia de “prévision”. Tratava-se de não apenas prever o futuro, mas projetar-se em direção a ele de forma a intervir sobre o rumo dos acontecimentos. Até 1969, esse Centro publicou La revue Prospective, revista mencionada por Freyre em Além do apenas moderno; 2) O segundo centro a que Freyre se refere foi fundado em 1960 por Bertrand de Jouvenel. O centro foi criado inicialmente como um Comitê Internacional e, posteriormente, em 1967, tornou-se Associação Internacional. Seu nome, Futuribles, foi cunhado por de Jouvenel a partir da junção das palavras future e possibles e tomada de um jesuíta espanhol chamado Luís Molina, que a criara no século XVI. A partir de 1974, o centro passa a publicar a Revue Futuribles, revista que continua hoje em circulação. Considera-se Bertrand de Jouvenel e Gaston Berger os teóricos pioneiros na França da ideia de “prospective”.

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

21

problemas contemporâneos seriam outros, o mundo se transformava e fazia-se

necessário perceber essas mudanças a fim de se ter a perspectiva correta sobre o

futuro. Futuro esse que estava aberto a várias possibilidades, como a palavra futuribles

expressava. Não apenas um futuro, mas vários, sendo necessário ter sobre eles a

perspectiva científica correta a fim de poder, na medida do possível, antecipá-los.

Gilberto Freyre (2001, p.24) cita em seu livro um conclave francês realizado em

1965 cuja temática girava, basicamente, “em torno de uma reorientação sociológica em

face de problemas de classes sociais”. Segundo ele, o referido conclave teria apontado

para a superação das abordagens que enfatizam conflitos de classe em relação àquelas

que davam mais destaque à desarmonia entre sociedades e ambientes e que

apontavam para questões de etnia e cultura (Ibid, p.26). Ademais, previa-se que o

chamado Terceiro Mundo13 se anteciparia ao futuro no sentido de apresentar novas

questões cuja compreensão exigiria o surgimento de novos conceitos e novas formas de

análise (Ibid, p.27).

É importante destacar como a futurologia de Freyre, ao analisar movimentos

teóricos que aconteciam em outras partes do mundo, no que se refere ao surgimento de

novas temáticas, em boa medida, acerta suas previsões. Destaque-se, nesse sentido, a

publicação, em 1969, do clássico dos estudos étnicos de Frederik Barth Ethnic groups

and Boundaries: The social organization of cultural difference, que marca um novo

momento na teoria social no qual cultura e etnia, como componentes explicativos do

Estado-Nação, tornam-se fundamentais. Quanto à importância do terceiro mundo como

formulador de novas tendências teóricas, o ano de 1978 irá ver a publicação de

Orientalismo de Edward Said e, a partir dele, o aparecimento dos chamados Estudos

pós-coloniais, que perfazem aquele que hoje já pode ser considerado como um dos

paradigmas teóricos dominantes das ciências sociais norte-americanas e que, dentro do

13

O conclave mencionado por Freyre deu-se em 1965, período no qual o processo de descolonização de África e Ásia se encontrava bastante adiantado, com grande parte dos territórios desses continentes já tendo constituído nações independentes, com a exceção das colônias portuguesas que se mantiveram submetidas ao poder colonial português até os anos 70, mas que, no ano de 1965, já se encontravam em plena guerra colonial com Portugal, desde 1961. Quando Freyre faz menção a esse conclave e refere-se ao “Terceiro Mundo” é preciso ter em mente esse contexto de surgimento de novas nações. Ademais, a noção de “Terceiro Mundo” havia alcançado certo vigor teórico desde a Conferência de Bandung, em 1955, que resultara no surgimento dos chamados “países não alinhados”, que se opunham tanto à política exterior de Estados Unidos quanto de URSS naquele momento de polarização ideológica de guerra fria. A ideia de terceiro mundo detinha, portanto, conotações cambiantes, variando desde um aspecto mais negativo, nesse caso referindo-se a uma ideia de nações atrasadas no desenvolvimento capitalista, até um mais positivo, significando autoafirmação, soberania e não alinhamento. Se estavam condicionadas historicamente por seu suposto atraso, tais nações do Terceiro Mundo ofereciam, não obstante, imenso potencial de reformulação do futuro. Penso que Freyre compartilhava dessa ideia.

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

22

universo que se denomina de Estudos Culturais, é certamente o paradigma mais

florescente (Chibber, 2013, p.3).

Tenha-se em mente que Gilberto Freyre publicou Além do apenas moderno em

1973. Sua escritura, no entanto, deu-se antes disso, uma vez que os textos que

compõem a obra foram sendo escritos ao longo dos anos anteriores, na forma de artigos

ou conferências, como o próprio autor afirma em seu prefácio (Freyre, 2001, p.30).

Nesse sentido, o livro é inovador ao se antecipar a questões teóricas que se tornariam

hegemônicas a partir dos anos 70 e, especialmente, ao se propor discutir a ideia de pós-

modernidade em momento em que a utilização de tal conceito ainda era tão incipiente

nas ciências sociais.

Penso ser importante lembrar, ainda, o contexto intelectual brasileiro nesses

anos. Freyre apostava por uma ideia de pós-modernidade e de superação de

abordagens clássicas como a luta de classes que o distanciava do marxismo vigente na

academia brasileira. São dessa mesma época livros clássicos de Florestan Fernandes

como Sociedades de classes e subdesenvolvimento, de 1968, Capitalismo dependente

e classes sociais na América Latina, de 1973 e A revolução burguesa no Brasil: Ensaio

de interpretação sociológica, de 1975. Ademais, são desse mesmo período obras

importantes da teoria da dependência como Dependência e desenvolvimento na

América Latina, de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto, publicado em 1970. Ou

seja, enquanto a sociologia acadêmica debruçava-se, com profundidade, em análises

marxistas a fim de tentar compreender o atraso que caracterizava sociedades

subdesenvolvidas como o Brasil, Freyre, apartado dela, caminhava por outra direção,

aquela que traçara desde Casa-Grande & Senzala, e que enfatizava aspectos mais

culturalistas que, posteriormente, com o triunfo do chamado pós-moderno, seriam

retomados.

O primeiro grande referencial teórico na filosofia e nas ciências sociais que

aborda o pós-moderno enquanto conceito é a obra A condição pós-moderna de Jean-

François Lyotard, escrita em 1979, seis anos após o lançamento por Freyre de Além do

apenas moderno. Interessa-me aqui, sobretudo, o que se passava antes do lançamento

do livro de Lyotard e não tanto o desenvolvimento posterior do pós-moderno, uma vez

que minha preocupação é com o contexto histórico da obra de Freyre. Como nos faz

saber Perry Anderson (1999, p.9,10) em sua obra As origens da pós-modernidade, a

ideia de um pós-modernismo já existia desde os anos 1930, quando surgiu pela primeira

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

23

vez no mundo hispânico, utilizado originalmente por Federico de Onís, filólogo e crítico

literário, amigo de Unamuno e Ortega y Gasset, nomes estes em torno dos quais girava

o mundo intelectual espanhol.14

Considerada a influência que o mundo intelectual hispano exercia sobre Freyre, é

muito possível que o autor pernambucano já estivesse familiarizado com a utilização da

ideia de pós-moderno por Federico de Onís. Em passagem de Tempo morto e outros

tempos, o autor pernambucano menciona conversa com o espanhol – que foi, inclusive,

professor de literatura espanhola na Universidade de Columbia, onde Freyre estudara –

em que discutem “assuntos hispânicos” (Bastos, 2003, p.10). Trata-se, no entanto, de

afirmação meramente especulativa que mereceria, por si só, outra pesquisa, uma vez

que não tive acesso a fontes primárias ou secundárias que possam referendar essa

afirmação. Um dos objetivos desta pesquisa, no entanto, é abrir caminho justamente

para futuras investigações a respeito da ligação de Gilberto Freyre e pensadores

espanhóis. Esse tema, portanto, certamente irá retornar em minhas pesquisas

posteriores.15

Perry Anderson (1999, p.10,11) nos dá a saber que o termo “pós-moderno”, que

já entrara no vocabulário da crítica literária hispanófona desde os anos 30, irá surgir no

mundo anglófono apenas vinte anos mais tarde. Alguns autores de língua inglesa, ao

longo dos anos cinquenta, utilizam-se do conceito em diferentes contextos. São, em um

primeiro momento, o britânico Arnold Toynbee, no oitavo volume de seu Study of

History, publicado em 1954, e o poeta estadunidense Charles Olson que, mais ou

menos na mesma época, mais precisamente em 1952, utilizava também o termo para

definir o tempo presente em andamento como “pós-moderno, pós-humanista e pós-

histórico” (Ibid, p.13). Já no final dos anos 50, o sociólogo C. Wright Mills irá reempregar

o termo para “indicar uma época na qual os ideais modernos do liberalismo e do

socialismo tinham simplesmente falido, quando a razão e a liberdade se separaram

numa sociedade pós-moderna de impulso cego e conformidade vazia” (Ibid, p.18,19).

14

O fato de que a primeira utilização do termo pós-modernismo tenha ocorrido no mundo hispânico não parece ser gratuito. Gilberto Freyre percebia haver no pensamento hispânico um vanguardismo que ele admirava. A hispanidade da futurologia é, nesse sentido, algo natural, uma vez que a tradição de pensamento hispânico sempre teve a tendência de antecipar-se, segundo o autor pernambucano. Esse argumento reaparecerá no segundo capítulo. 15

Voltarei, no entanto, a esse tema, da influência do mundo intelectual hispânico em Freyre, ainda neste trabalho, quando abordarei, no próximo capítulo, mais especificamente, o significado da concepção de hispanidade na obra de Freyre.

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

24

Importante destacar, ainda, que a noção de pós-moderno, cuja utilização até

então fora circunstancial, irá ganhar difusão mais ampla e desenvolvimento teórico a

partir dos anos 70 (Ibid, p.20). O momento decisivo, segundo Perry Anderson (1999,

p.23) será em 1972 com o lançamento de uma publicação literária chamada Boundary 2,

que trazia expressamente o título Revista de Literatura e Cultura Pós-modernas.

Retomava-se o legado poético crítico de Charles Olson e estabelecia-se “a ideia de pós-

moderno como referência coletiva” (Ibid, p.23). A Revista Boundary 2 continua existindo,

mas desde o final dos anos 80 sob comando da Duke University Press e com o nome

Boundary 2: an international jornal of literature and culture.16

Cito esse pequeno percurso histórico da ideia de pós-moderno para

contextualizar a escritura de Além do apenas moderno. Quando Freyre escreve esse

livro, aposta por um conceito que embora já fora utilizado, carecia de uma

sistematização e contornos mais claros, o que irá acontecer, no campo das ciências

sociais, apenas após a publicação do livro de Lyotard, que citei anteriormente.

Acrescente-se a isso o fato de que a obra está composta de artigos e conferências que

o autor pernambucano vinha escrevendo e apresentando, pelo menos, desde os anos

60, e teremos uma justa medida do caráter inovador desse livro17.

A concepção de pós-moderno que Gilberto Freyre propugna deve ser vista como

antítese do moderno, uma espécie de recuperação da tradição, que valorize os

elementos tradicionais que persistem no presente. Não se trata, portanto, de uma

argumentação exatamente como a de Lyotard, segundo a qual a perspectiva pós-

moderna se destacava por apontar para um esfacelamento das grandes narrativas

modernas e para o surgimento de “uma pluralidade de reivindicações heterogêneas de

conhecimento, na qual a ciência não tem um lugar privilegiado” (Giddens, 1991, p.9).

Tampouco Freyre se encontrava entre aqueles, como Anthony Giddens, que

sustentavam que a pós-modernidade nada mais era que um momento de radicalização

e universalização das consequências da modernidade, ou seja, que resignadamente

admitiam um novo tempo histórico pós-moderno, mas que não se conformavam com os

contornos explicativos que a ele davam os chamados teóricos pós-modernos.

16

Para mais informações: https://www.dukeupress.edu/boundary-2 17

Acredito que uma pesquisa que se dedicasse a fazer uma reconstituição histórica de quando exatamente cada capítulo de Além do apenas moderno foi escrito poderia prestar uma inestimável contribuição para melhor compreensão do amadurecimento de algumas das ideias que Freyre expõe no livro. Infelizmente, não me foi possível, nesta pesquisa, alcançar esse nível de detalhamento, que exigiria consulta de fontes primárias a que, por enquanto, não pude ter acesso.

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

25

Sem dúvida, Gilberrto Freyre percebia, quando da publicação de Além do apenas

moderno, que o momento histórico em que vivia passava por um esfacelamento das

certezas modernas, com as quais – deve-se acrescentar – o autor nunca comungou.

Nesse sentido, Sérgio Tavolaro (2013, p.307) afirma que a obra de Freyre demonstrava

consciência acerca da existência de uma geopolítica do conhecimento presente no

discurso sociológico da modernidade que tendia a enquadrar sociedades como a

brasileira a partir do signo do “desvio”. O esforço interpretativo de Freyre sempre se

direcionou a enfatizar uma singularidade brasileira que escapava aos limites das

narrativas hegemônicas da modernidade. Esse aspecto acerca da compreensão que o

autor pernambucano tinha do Brasil implicava em uma concepção de filosofia da história

que permitia a Freyre recepcionar a noção de pós-moderno em total coerência com seus

escritos anteriores.

O pós-moderno em Freyre terá, pois, uma coloração que se harmoniza bem com

as ideias mais duradouras de seu pensamento, sobretudo, aquela que nos remete à

defesa da tradição, ou seja, defesa da singularidade da civilização brasileira: tropical,

mestiça e hispânica (Freyre, 2001, p.36,37). O pós-moderno é, nesse sentido, o tempo

de recuperação de nossa essência, uma vez que desvaneceram os ideais modernos e

restou evidenciada sua fugacidade. O moderno é aquilo que se desfaz rapidamente; o

pós-moderno, no entanto, estende-se indefinidamente e confunde-se com o próprio

futuro. Gilberto Freyre explicita essa ideia em Além do apenas moderno, mostrando de

forma inequívoca como conecta pós-modernidade e futurologia. Cito-o textualmente:

“é difícil dizer-se onde termina o moderno e começa o pós-moderno. Seguindo-se, entretanto, o critério de tempo tríbio, de início se reconhece o que há de efêmero no chamado moderno. Mal começa, já deixa de ser, para ter sido. Daí o pós-moderno se apresentar como sua quase imediata superação. Imediata e relativamente duradoura. O moderno é fugaz. Mas ninguém pode pôr limites nem lógicos nem cronológicos ao pós-moderno. Ele se confunde com o próprio futuro humano. Ou com os próprios futuros humanos: os possíveis. Os prováveis. Os imagináveis. Os perceptíveis. Que todos esses constituem objetos ou sujeitos de cogitações ou especulações futurológicas”. (FREYRE, 2001, p.29,30).

A pós-modernidade configura-se, assim, como momento histórico de amplas

possibilidades. Se, em parte, ela corresponde a um retorno à tradição, a um passado

arcaico dado como superado pelos modernos, por outro lado, as novas sociabilidades

impedem que o futuro seja uma mera reprodução do passado. Freyre está bem

consciente disso. A futurologia, como ele a pensa, precisa ser sistematizada como um

esforço de pessoas de inteligência que conjuguem saberes humanísticos e científicos,

sejam bons conhecedores do passado e saibam ler o presente do mundo em transição a

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

26

fim de projetar o futuro pós-moderno. No próprio livro, Freyre oferece exemplos de como

fazê-lo abordando temas contemporâneos cujo enfrentamento lhe parece fundamental

para construção do futuro que virá. Dedicar-me-ei a eles de forma mais específica na

próxima seção deste capítulo, em que tentarei mostrar como o autor pernambucano

operacionaliza sua futurologia.

É importante que se tenha claro o que significa dizer que o pós-moderno, para

Freyre, implique num retorno à tradição. Essencialmente, o ensaísta de Apipucos parece

estar se referindo a uma forma particular de relacionar-se com o tempo. O moderno,

cuja essência parece estar cristalizada no anglo-saxão, é adepto de uma filosofia time is

money. Calvinisticamente ascético, ou seja, de moral irrepreensível, está convencido

que o tempo não pode ser desperdiçado. Esse modelo oferece, em boa medida, aquilo

que é, para Freyre, a civilização ocidental. Uma civilização rigorosamente cronométrica

(Freyre, 2001, p.143).

Essa não é a tradição da qual o Brasil faz parte, segundo Gilberto Freyre.

Estamos ligados historicamente a outro modelo civilizacional que nos foi legado pela

colonização. Tradição, portanto, tem a ver com transmissão de símbolos, memórias,

recordações, usos e hábitos. Aquela a que estamos mais intimamente ligados remete-

nos à península ibérica, de onde vieram nossos colonizadores18. Segundo Freyre (2001,

p.36), “somos, os brasileiros, uma gente hispânica sendo também uma gente situada no

trópico e localizada na América”. Tal herança conecta-nos com um sentido de tempo

completamente diverso daquele dos anglo-saxões e norte europeus. Trata-se de uma

“tradição ibérica de temporalidade em que a espera tende a tornar-se esperança”

(Freyre, 2001, p.28), ou, como afirma o autor pernambucano em outra passagem: são

as gentes hispânicas, como a brasileira, “gentes saudosas de passados e esperançosas

de futuro; e não apenas apegadas ao presente” (Ibid, p.36).

O moderno, por nos ser alheio, por ser fundamento de outra tradição, não pode,

entre nós, perdurar. Nesse sentido, Freyre não parece tomar moderno e universal por

sinônimos, como o faz a sociologia da modernização em suas pretensões

modernizantes de progresso. O mais natural para o autor pernambucano, portanto, é

que, no futuro, o pós-moderno tenda a reabilitar certos arcaísmos como, por exemplo, a

18

Acrescente-se que, para Freyre, o colonizador ibérico, português, no caso brasileiro, misturou-se profusamente com indígenas e negros africanos, cuja herança cultural também se caracterizava por uma relação com o tempo diametralmente oposta a dos ocidentais, do tempo cronométrico. Assim, reforçam-se na civilização híbrida dos trópicos aqueles traços peninsulares de uma relação com o tempo mais flexível, ajustável e malemolente.

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

27

valorização do ócio, característica tão comum entre as sociedades ibéricas. Hábitos

tipicamente nossos teriam sido abandonados em razão da “tirania da ética do tempo-

dinheiro” (Freyre, 2001, p.69). O hábito de se fazer “pausas lúdicas, recreativas, até, ao

redor de mesinhas de cafés” teria se perdido entre “muitos urbanitas brasileiros de agora

calvinisticamente convencidos de que não devem gastar ou desperdiçar tempo sorvendo

café ou chope ou refresco de coco ou comendo doce ou pastel, sentados, em café,

cervejarias, confeitarias, tascas” (Ibid, p.67,68). A pós-modernização tenderia a corrigir

esses desvios.

É nesse sentido que a compreensão do pós-moderno em Freyre não se confunde

exatamente com aquela de um autor como Lyotard. Para o filósofo francês, a pós-

modernidade caracterizava-se como um tempo histórico de fragmentação, em que a

ciência já não possuiria mais o monopólio da verdade. Ora, em Freyre a ciência –

aquela de sentido mais moderno, de locus privilegiado de manifestação da razão –

nunca assenhorou-se de tal exclusividade. O ensaísta de Apipucos sempre foi um

sociólogo heterodoxo, empenhado, sim, em utilizar-se de metodologia precisa, mas

também sempre aberto à intuição, à inspiração e ao instinto. Em Freyre, razão e

sentimento nunca estiveram completamente separados. Sua obra sociológica sempre

esteve aberta à intuição poética, característica marcante já desde Casa-Grande &

Senzala.

Não é, portanto, estranho que Além do apenas moderno tenha obtido uma fria

recepção em seu tempo e, mesmo hoje, não fomente tanto interesse. Escassos são os

comentários acerca dessa obra. Em um tempo de crescimento econômico e

modernização, falar em contingência e efemeridade do moderno e, ademais, defender o

arcaico soava como mero conservadorismo. O livro teve apenas duas edições, a

primeira, do ano de lançamento, 1973, e a segunda, que utilizo neste trabalho, publicada

em 2001. Pouquíssimo se comparado às 52 edições de Casa-Grande & Senzala, por

exemplo.

Em artigo sobre o livro Ordem e Progresso, cujo lançamento se deu em 1957,

Lucia Lippi Oliveira (2003) afirma algo que julgo aplicar-se também ao contexto de

lançamento de Além do apenas moderno. Para ela, a fria recepção a Ordem e

Progresso, no final dos anos cinquenta e início dos sessenta, tem a ver com o contexto

histórico vivido no Brasil, época em que se acentuou a dicotomia modernidade-tradição,

“sendo atribuídos ao primeiro termo valores positivos e, ao segundo, a negatividade

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

28

quase absoluta”. Ademais, os intelectuais brasileiros estavam, nesse momento,

comprometidos com o projeto de tirar o Brasil do atraso que o caracterizava a fim de

torná-lo uma nação desenvolvida. Não haveria espaço, portanto, para as ideias

freyrianas, que serão retomadas somente a partir dos anos 80 e que hoje gozam de

vigor renovado.

Assentadas, assim, as bases de compreensão do significado de futurologia e pós-

modernidade para Freyre, posso avançar em direção à como se dá a operacionalização

dessas ideias no livro Além do apenas moderno. Tentarei mostrar, a partir de agora,

como o autor pernambucano lê o seu tempo, percebendo nele uma transição profunda e

tentando firmar as bases de uma ciência futurológica – de base sociológica – que possa

auxiliar a humanidade nos desafios que lhe sobrevirão. É o que farei nesta próxima

seção do capítulo.

1.2 Compreender o presente, predizer o futuro: A leitura que Gilberto Freyre faz de

seu tempo

“pasado, presente y futuro, cuál es el verdadero tiempo del hombre? Dónde está su reino? Y si su reino es el presente, cómo insertar el ahora,

por naturaliza explosivo y orgiástico, en el tiempo histórico?

Octávio Paz

Se na primeira parte deste capítulo o objetivo era apontar como Gilberto Freyre

concebe sua ideia de futurologia a partir de uma concepção de tempo particular – o

tempo tríbio – e uma compreensão específica do que vêm a ser o moderno e o pós-

moderno, nesta segunda parte irei aprofundar na leitura que Freyre faz de seu tempo

com base em todas essas ideias. A primeira parte do capítulo apresenta, portanto, as

concepções que devem ser pensadas como lentes por meio das quais o sociólogo

pernambucano enxerga seu momento histórico, as mudanças que nele percebe ocorrer

e como elas irão moldar o futuro do homem. Nesse sentido, a maneira como Freyre

concebe o tempo e sua interpretação do que são o moderno e o pós-moderno

funcionam como fundamentos de sua futurologia, cuja operacionalização, por sua vez,

delineia a apresentação das questões teóricas colocadas ao longo dos capítulos do

livro.

Em Além do apenas moderno, portanto, os capítulos estão estruturados no

sentido de apresentar problemas contemporâneos – lembre-se que o contemporâneo

aqui remete ao ano de 1973, quando Freyre escreveu o livro – e sugerir como tais

questões irão moldar o futuro da humanidade, com especial interesse para a

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

29

“humanidade brasileira”, abrindo espaço para que se possa pensar uma futurologia

sociológica capaz de prever o futuro e, assim, agir sobre ele. Freyre, dessa maneira,

apresenta a futurologia e a operacionaliza ao mesmo tempo. Atua como um intérprete

que analisa e critica o seu tempo e propõe ideias para o futuro imaginando como esse

futuro será. Nesse sentido, esta seção do trabalho dedica-se a tentar entender como

Gilberto Freyre “inserta o agora no tempo histórico” – o seu agora – retomando as

palavras de Octavio Paz da epígrafe acima.

Em vários momentos do livro Freyre faz espécies de “previsões futurológicas”. Irei

abordá-las pontualmente quando for relevante para a construção dos argumentos

relativos ao tema principal deste trabalho. Essas previsões incluem prognósticos sobre o

futuro das relações raciais, de classe e de gênero. Também incluem discussões sobre

poligamia, concepções de família, lugar da religiosidade mística em sociedades

supostamente secularizadas. Enfim, a gama de assuntos abordadas no livro é realmente

extensa. Nesse sentido, como afirmei no início deste capítulo, darei especial atenção

àquelas questões que me remetem para meu objetivo principal, que é apontar as

aproximações entre hispanidade e futurologia e, com isso, direcionar-me a uma

discussão epistemológica que entendo estar presente no livro.

Esta segunda parte do capítulo estará dividida em quatro subpartes, cada uma

correspondendo a um grande tema levantado por Freyre em Além do apenas moderno e

que citei no início do capítulo como aqueles a respeito dos quais iria me preocupar. São

eles: A revolução biossocial, o problema do tempo crescentemente livre ou as relações

entre trabalho e lazer, o debate entre ciências e humanidades e a tropicalidade como

problema específico brasileiro. Há outros dois temas levantados por Freyre no livro e

que considero relevantes para este trabalho. Trata-se do problema de inter-relação entre

gerações e do papel a ser desempenhado pelos intelectuais no futuro. O primeiro será

abordado no subtema relativo à revolução biossocial e o segundo, naquele em que

discorro acerca do debate entre ciências e humanidades.

1.2.1 A revolução biossocial

Em que exatamente consiste este fenômeno que Gilberto Freyre chama de

revolução biossocial? Basicamente, é a ideia por meio da qual o autor pernambucano

tenta entender e explicar os processos de avanço tecnológico da modernidade e suas

consequências para a sociabilidade humana. Trata-se de um fenômeno mais perceptível

entre aquelas sociedades já em transição da fase moderna para a pós-moderna, ou

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

30

seja, aquelas em que o advento do capitalismo industrial encontra-se em uma fase

avançada de automação, processo esse cujas consequências já são mais claramente

perceptíveis no tecido social. Destaque-se, no entanto, que se essa revolução é mais

visível nessas sociedades de capitalismo avançado, tampouco deixa de se fazer

perceber em países como o Brasil que, mesmo retardados, como afirma Freyre, no

processo de pós-modernização, encontram-se afetados pelas mudanças de um mundo

crescentemente pós-moderno19.

A questão da adaptabilidade do homem ao meio sempre preocupou Gilberto

Freyre. Esse problema está presente em sua obra desde Casa-Grande & Senzala, livro

em que dedica muitas linhas a fim de explicar o processo de adaptação do português ao

trópico. Insistia o autor pernambucano desde então que “ao contrário da aparente

incapacidade dos nórdicos, é que os portugueses têm revelado tão notável aptidão para

se aclimatarem em regiões tropicais” (Freyre, 2006, p.73). Nesse sentido, Sérgio

Tavolaro (2013, p.285) afirma que “mesmo a contrapelo de argumentos-chave de Casa-

Grande & Senzala, “aspectos mesológicos” muitas vezes são assumidos como variáveis

independentes da experiência social brasileira, lado a lado com (e não subordinados a)

fatores sociais e culturais”.

Tavolaro apresenta esses argumentos ao contrapor-se a ideia de Jessé Souza

(2000, apud TAVOLARO, 2013, p.285) para quem apenas nas obras de maturidade de

Freyre a dimensão mesológica ganha relevo. Souza (2000, apud TAVOLARO, 2013,

p.284) entende que nas obras do Freyre jovem os argumentos tendem a estar

subordinados à dimensão cultural, enquanto que a preocupação com a influência do

meio torna-se preponderante apenas no Freyre da maturidade. Tavolaro (2013. p.286)

oferece outra intepretação segundo a qual “o trópico foi desde o início, e assim

permaneceu posteriormente, uma peça chave nesse ambicioso projeto intelectual [de

Freyre]”. Esse ambicioso projeto a que Tavolaro se refere seria a hipótese que ele lança

de que o esforço de Gilberto Freyre para estabelecer a singularidade da experiência

brasileira tinha também como objetivo “relativizar o protagonismo (epistemológico,

normativo e estético-expressivo) exclusivo de sociedades tradicionalmente tidas como

19

É importante destacar que um país de tradição hispânica como o Brasil possui ainda mais motivos para “pós-modernizar-se”, em razão de sua peculiar tradição em cuja essência há um pensamento que, para Freyre, já é, em certo sentido, pós-moderno. Irei avançar nesse tema nos próximos capítulos, por isso não detalharei essa ideia neste momento. Tenha-se em mente, no entanto, desde já, que a pós-modernidade para uma nação de tradição hispânica como o Brasil é uma espécie de destino natural. Essa é uma ideia fundamental para este trabalho.

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

31

modelares da modernidade”. Voltarei a esse importante argumento mais a frente, mais

especificamente no próximo capítulo.

Por ora, cabe ressaltar, portanto, que a relação entre Homem e meio físico é

fundamental para Freyre. Sua concepção de revolução biossocial está baseada na

importância que essa associação tem. Assim, essa revolução que caracteriza seu tempo

“consiste, principalmente, na busca de uma maior adaptação, por meios tecnológicos,

do Homem, ou de homens, a ambientes e de ambientes a homens” (FREYRE, 2001,

p.65). A automação crescente permitia aos homens melhorar sua adaptabilidade aos

meios em que viviam. Em última instância, o que o desenvolvimento tecnológico estava

permitindo ao ser humano era obter triunfos médico-sociais que aumentavam

significativamente a expectativa de vida.

O aumento da média de vida permitia o surgimento, ou formação, de um novo

tipo biossocial ao qual o autor pernambucano dá o nome de “homem-sênior” (Freyre,

2001, p.65). As sociedades de desenvolvimento capitalista mais avançado,

essencialmente as norte-europeias e os Estados Unidos, defrontavam-se com um novo

tipo de configuração social. Os longos processos de automação e industrialização pelos

quais essas sociedades haviam passado implicaram numa maior capacidade de se

adaptar aos ambientes e em triunfos médico-sociais que resultaram num aumento da

expectativa de vida entre suas populações. Assim, tornava-se cada vez mais comum

que homens – e mulheres também, ainda que Freyre refira-se sempre à humanidade

utilizando o gênero masculino – encerrassem suas carreiras de trabalho em um

momento da vida em que continuavam produtivos.

Gilberto Freyre irá tomar essa transformação biossocial como o fato mais notável

– e, sem dúvida, o mais definidor – de seu tempo. Ele entende que a presença do novo

tipo biossocial de “homem-sênior” irá “equilibrar-se de tal modo com a do homem-júnior

nas populações pós-modernas que a ancianidade poderá vir a ter importância igual à

maturidade e juvenilidade” (Freyre, 2001, p.65). A presença de um estrato social

formado por pessoas já em idade avançada, acima dos sessenta anos, mas ainda

produtivos será, portanto, para Freyre, um fato notável no futuro e implicará em uma

série de transformações cujos efeitos serão sentidos em vários aspectos da

sociabilidade humana.

Gilberto Freyre dá destaque para o efeito dessas mudanças nas relações entre as

gerações. Acredita que existem, grosso modo, três situações temporais possíveis a que

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

32

se pode reduzir a vida humana: “a adolescência prolongada em primeira mocidade, a

meia-idade e a primeira velhice, por vezes prolongada na segunda” (FREYRE, 2001,

p.82). Sua tese é de que o primeiro e terceiro grupos – que equivalem ao que chama o

autor pernambucano de, respectivamente, netos e avós – possuem maior ânimo

renovador e são mais independentes que o segundo, grupo este que se constitui numa

espécie de “burguesia do tempo” dado sua menor independência em razão da

prevalência nele dos interesses econômicos que tendem a dominar o homem de meia-

idade.

Note-se que os valores dominantes para Freyre são aqueles do convencionalismo

burguês moderno, que tendem a sujeitar o homem de idade média, entre os trinta e

cinco e sessenta e cinco anos, grupo econômica e politicamente dominante cuja

tendência é conformar-se com a ordem social e a ideologia prevalecente. Os jovens

tendem a afastar-se dessa predisposição conformadora, pois ainda não estão seduzidos

pela tendência a deixar de ser independentes e espontâneos em razão da estabilidade

econômica, objetivo que faz com que o homem de meia idade, calculadamente, adote

os valores que lhes pareçam dominantes. Por outro lado, o homem-sênior, aquele

superior aos sessenta ou sessenta e cinco anos, com os novos avanços médico-

científicos, tem chegado à terceira idade com vigor e disposição para engajar-se em

atividades políticas, intelectuais e artísticas e já sem o freio que a necessidade da busca

por estabilidade econômica impõe. Já não precisam, portanto, aderir aos valores

dominantes e podem, assim, revolucionar a si mesmos e o seu tempo.

Em sociedades com a Suécia, Grã-Bretanha, Alemanha, França e Estados

Unidos haveria sinais bastante visíveis das mudanças ocasionadas pelo aumento da

expectativa de vida. Dentre elas, um dos aspectos mais notáveis para Freyre (2001,

p.94) é a “frequência de indivíduos de idade superior a sessenta e cinco anos nos

cursos de nível secundário ou universitário” e a capacidade desses indivíduos de

“assimilarem plenamente, em cursos de literatura, de ciência, de filosofia, de arte,

valores em muitos casos mal assimilados por estudantes de idade ainda verde”. Nesse

sentido, o autor pernambucano nota que “a universidade moderna tem isto de

revolucionário: começa a ser um centro de estudos para indivíduos idosos tanto quanto

para indivíduos juvenis” (Ibid, p.94). E não é apenas a esses indivíduos de idade mais

avançada que a universidade está se abrindo. Também “aos jovens vindos de famílias

pequeno-burguesas e operárias” (Ibid, p.86). Essa ampliação do universo social

alcançado pela universidade terá grande implicação na formação de um mundo “pós-

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

33

operário”. Abordarei esse tema mais detalhadamente na próxima seção, em que

discorrerei acerca da mudança da ética do trabalho nas sociedades pós-modernas.

Ademais, soma-se a essa possibilidade de mudança que avanços tecnológicos e

médico-sociais permitiam o fato de o autor pernambucano acentuar a plasticidade

inerente do ser humano, cuja essência, para ele, caracterizava-se mais por um “estar

sendo”, tomado de Ortega y Gasset20, do que por uma natureza única e imutável. Freyre

(2001, p.83) utiliza-se, nesse sentido, de autores como Daniel Defoe, Honoré de Balzac

e Marcel Proust, “novelistas com alguma coisa de biógrafos e até de historiadores –

historiadores sociais mais que científicos –”, a fim de colocar ênfase nas transformações

pelas quais o homem passa, social e biologicamente, ao mudar de situação no tempo21.

Dentre essas mudanças, destaque dado por Freyre ao ânimo renovador e à

independência tanto de jovens quanto dos mais anciãos. “Daí a tendência, que é

sociologicamente interessantíssima, para os equivalentes de netos formarem alianças

com os equivalentes de avós, com esses dois grupos de idade numa como oposição

aos grupos de idade madura” (Freyre, 2001, p.83).

Mas como se pode dar essa associação entre netos e avós? Freyre destaca duas

características inerentes a estes, indivíduos com mais de sessenta anos, que lhes

permite – como diz José Guilherme Merquior (2001, p.11) ao analisar essa relação entre

gerações proposta pelo autor pernambucano – “dar lastro e sentido ao revolucionarismo

saudosista dos jovens”. Trata-se da sua capacidade de transmitir aos jovens os valores

da tradição e da clássica tolerância do avô, “pai com açúcar”. Essas duas

características, unidas ao vigor transformador do jovem, forneceriam o substrato

revolucionário da transformação biossocial que se processava.

Freyre entendia que o jovem pós-moderno, em sua contestação, não reivindicava

mais modernidade. Pelo contrário, possuía uma atitude positiva em relação ao passado,

do qual procurava reviver formas dando-lhes novos conteúdos. Seu gosto, diz Freyre

(2001, p.70), “é por formas românticas de arte, de música, de cultura, de vida e mesmo

20

Ao enfatizar que o homem é um estar sendo, Freyre referia-se à compreensão de Ortega y Gasset de não ter o homem uma natureza fixa. Destaque-se, nesse sentido, Meditaciones del Quijote, obra publicada pelo autor espanhol em 1915 e na qual há sua conhecida frase “yo soy yoy y mi circunstancia, y si no la salvo a ella, no me salvo yo” (Ortega y Gasset, 2004, p.178). O tema da circunstância também é tratado por Ortega na obra Que es filosofia?. 21

Freyre cita esses três autores como exemplos da capacidade de biografar e criar personagens suscetíveis a mudanças no tempo, personagens complexos, que não eram “estátuas quase indiferentes ao tempo” (2001, p.83). Diz Freyre, que as alterações “fazem do homem, através de suas diferentes situações no tempo, não um ser sempre o mesmo, mas um constante estar sendo, como talvez dissesse Ortega” (2001, p.83).

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

34

de amor”. Em outro momento, Freyre faz uma afirmação que bem poderia ser pensada

como uma análise precisa de formas de comportamento bastante contemporâneas, e

digo em relação mesmo a esta segunda década do século XXI. Aqui Freyre parece

prever corretamente uma tendência que se acentuou. Cito-o textualmente:

“Estamos diante, em certas áreas de comportamento da parte de jovens, de um surpreendente regresso, característico de toda uma mocidade mais anticonvencional, a arcaísmos românticos ou romanticóides no trajo, nos penteados, no uso de bigodes, costeletas, barbas, por jovens e até por adolescentes logo que podem ostentar tais arcaísmos. Saudosismo, portanto. O quase pós-moderno, repudiando o moderno e com saudade do pré-moderno: do arcaico, até” (FREYRE, 2001, p.67).

Vê-se que o elemento da tradição é fundamental na análise freyriana. Buscava-a

em seu comportamento o jovem pós-moderno que, em sua busca, poderia ser auxiliado

por aquele que Freyre denominava “homem-sênior”. E de que maneira poderia isso

ocorrer? Freyre (2001, p.70) utiliza-se da concepção de Deus construída pelo poeta

romântico alemão Heinrich Heine, que enfatizava menos a punibilidade de um severo

pai de adultos e mais a docilidade e capacidade para o perdão de um avô de jovens.

Assim, o homem-sênior freyriano se assemelha a esse deus-avô capaz de guiar jovens

“destruidores de convenções menos por serem maus do que por se sentirem

desajustados num mundo em aguda fase de transição com não pouco dos valores

tradicionalmente protetores de sociedades e homens em estado de crise” (FREYRE,

2001, p.70). O espírito contestador jovem dirigia-se mais a um convencionalismo

burguês do que propriamente à tradição, mesmo porque, como bem percebe Merquior

(2001, p.12), Gilberto Freyre está dotado de um “senso sociológico que reconhece no

passado o esboço de valores sufocados pela reificação e massificação do homem na

sociedade moderna”.

A crítica de Gilberto Freyre está, portanto, direcionada à tirania de uma

modernidade pan-racionalista que acreditava poder oferecer soluções científicas a todos

os problemas da humanidade, o que, em última instância, terminaria por desagregar

completamente os mitos que uma vez derem sentido à vida do homem tradicional. O

autor pernambucano deixa clara sua crítica a certa concepção de secularização do

mundo moderno que implicava numa total superação da tradição. Diz Freyre, “pois não

se pense dos mitos que facilmente se deixam extinguir pela racionalização da vida

através da tecnologia: esperam sempre o momento de ressurgir sob novo aspecto”

(FREYRE, 2001, p.98).

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

35

É como se Freyre estivesse dizendo que o revolucionário jovem pós-moderno,

pelo menos aqueles dos países de capitalismo avançado, nos quais a revolução

biossocial já se fazia notar, já sentiam as promessas não cumpridas da vida moderna e,

em seu novo revolucionarismo, voltassem-se a certos arcaísmos. Nesse percurso,

contaria com o auxílio fundamental do “homem-sênior”, a quem, acrescente-se, não

cabia papel de mero coadjuvante, senão também de artífice deste novo tempo porvir.

Mas e o Brasil, onde se encontrava nesse processo?

Freyre (2001, p.67) entendia que o Brasil estava passando por um tempo de

transição de “uma época paleotécnica, de ritmo ainda lento de vida e trabalho, para

outra, neotécnica mas ainda não caracteristicamente automatizada”. Ou seja,

estávamos ainda na transição do chamado arcaico ao apenas moderno. Em relação aos

países centrais do capitalismo, estávamos atrasados. Atraso, no entanto, que poderia

ser uma vantagem no processo de pós-modernização, uma vez que este promoveria o

resgate de traços pré-modernos que haviam sido rechaçados por serem arcaicos. O

problema, no entanto, é que o Brasil se encontrava obstinadamente decidido a

modernizar-se, o que se constituía, para Freyre, um atraso no processo de pós-

modernização. Isso ficará mais claro na próxima seção do capítulo quando abordarei as

relações do homem como o trabalho, principal diferença, para o autor pernambucano,

entre um mundo apenas moderno e outro já pós-moderno.

Cabe dizer, por último, em relação à revolução biossocial, mais duas coisas. Em

primeiro lugar, o conservadorismo de Freyre não se confunde com reacionarismo22. Ao

reivindicar a tradição, o autor pernambucano não espera simplesmente que aquilo que

denomina de “volta a arcaísmos” signifique um retorno total ao passado patriarcal cujo

processo de desagregação já descrevera em Sobrados e Mucambos e Ordem e

progresso. Obviamente não é disso que se trata. Freyre (2001, p.90), inclusive, aponta

que a presença mais ativa do homem-sênior na sociedade do futuro não deve implicar

em reacionarismo ou conservantismo. Cita, nesse sentido, a França, país já bastante

avançado em sua pós-modernização e a cuja população idosa não faltaria “inquietação

renovadora”. Penso que a insistência de Freyre na tradição deve ser vista mais como

um esforço de fazer de sua obra, como afirma Tavolaro (2013, p.286) – a quem citei

22

Bastos (1998, p.53) conta que em entrevista com Freyre, realizada em 1985, utilizou a palavra “antiliberal” para assinalar algumas de suas teses. Em resposta, Gilberto diria: “Não precisa definir como antiliberal minha posição. Pode dizer que sou conservador, o que é inteira verdade. Só não admito que me chamem reacionário”.

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

36

aqui anteriormente, e cuja ideia agora retomo –, uma tentativa de “desestabilizar a

centralidade epistemológica da modernidade europeia”.

A obra de Gilberto Freyre se constitui como perseverante defesa da singularidade

do processo sócio histórico brasileiro. Nesse sentido, poder-se-ia aproximar a insistência

de Freyre na especificidade brasileira com a defesa latino-americanista de José Enrique

Rodó em sua obra profunda e influente Ariel, publicada no ano 1900. Nela, o que faz o

escritor uruguaio é defender a particularidade latino-americana em face da

avassaladoramente crescente influência da América do Norte, já então, na passagem do

século XIX ao XX, a maior expressão do triunfo da modernidade norte-europeia e anglo-

saxã. Retomo um argumento de Rodó que me parece ter íntima relação com a

insistência que Gilberto Freyre dá à tradição.

“no veo la gloria, ni en el propósito de desnaturalizar el carácter de los pueblos – su genio personal –, para imponerles la identificación de um modelo extraño al que ellos sacrifiquen la originalidad ireemplazable de su espíritu; ni en la creencia ingenua de que eso pueda obtenerse alguna vez por procedimientos artificiales e improvisados de imitación” (RODÓ, 2009, p.197).

Voltarei a essa comparação com o Ariel de Rodó, que será importante nos

próximos capítulos. Por ora, importa destacar que ao interpretar sua contemporaneidade

a partir da ideia de revolução biossocial, e enfatizar nela o papel dos homens de terceira

idade como transmissores de valores tradicionais aos jovens, Gilberto Freyre coloca

ênfase naqueles princípios perenes de uma sociedade, traços duradouros que, a

despeito das mudanças, seguem existindo e cujo abandono, para a adoção de valores

alheios a essa cultura, provoca instabilidade e incerteza. Para o autor pernambucano, a

essência brasileira era, fundamentalmente, hispânica, tropical e mestiça. Dessas

características brotavam nossos traços mais duradouros. O que o processo de

modernização fazia, com seu discurso utilitarista fundado em uma ética do trabalho

anglo-saxã, era desvirtuar a personalidade brasileira, desnaturalizar seu caráter

impondo uma identificação com um modelo estranho que sacrificava a originalidade de

seu espírito, tomando aqui as palavras de Rodó.

Percebe-se, ademais, que a construção de argumentos de Freyre não é

meramente reacionária ao atentar-se para o aspecto comportamental da revolução

biossocial. E este é o segundo daqueles dois argumentos finais que citei anteriormente

como os últimos que iria explanar nesta seção do trabalho. O autor pernambucano

retoma a ideia da plasticidade humana ao abordar o futuro da sexualidade e das

relações amorosas, temas sempre tão caros a ele. Duas características do mundo pós-

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

37

moderno que emergia seriam o gradativo apagamento das fronteiras entre os gêneros e

a “crescente tolerância não apenas de práticas bissexuais como de práticas

homossexuais” (Freyre, 2001, p.114).

Para Freyre, esses dois aspectos do mundo pós-moderno estavam conectados.

Desde o final da Segunda Guerra, “algumas das barreiras antigas de segregação do

sexo feminino como sexo ortodoxamente frágil, belo, gracioso, doméstico, dependente”

teriam se quebrado ou enfraquecido “para em seu lugar, desenvolver-se considerável

igualdade de formas e funções sociais entre os sexos” (Ibid, p.114). Igualdade que teria

sido favorecida pelo surgimento de novos costumes e que passava a ser, inclusive,

consagrada por novas leis. Posteriormente, nos anos sessenta, a tendência acentuar-

se-ia com a “idealização de certos caraterísticos do tipo feminino” que teria gerado

“novas expressões de adolescência e juventude” com traços “nitidamente bissexuais”.

Em outros tempos, diz Gilberto, tais tendências teriam sido repelidas pelos costumes e

contidas por “leis dominadoras” que acentuavam a diferença entre os sexos. No entanto,

o pós-moderno nascente possibilitaria um espaço próprio para que houvesse a

“consagração do unissexo” (Ibid, p.114).

As novas leis “consagradoras de novos costumes” teriam também influência nas

relações amorosas e sexuais. Destaca Freyre a provável consagração da tolerância em

relação a práticas bissexuais e homossexuais que o autor pernambucano percebia

como inovações sociais revolucionárias. A legitimação do amor homossexual seria, para

Gilberto, expressão da “quebra da ortodoxia burguesa” e do triunfo de um “romantismo

antes antiburguês do que anticristão” (Ibid, p.76). Por meio dessa consagração,

reabilitar-se-ia o homossexual como “pessoa socialmente normal e não monstruosa”

(Ibid.76), deixando-se para trás, assim, aquele contexto social burguês em que homens

como Oscar Wilde foram condenados à dura prisão pela prática do amor homossexual

(Ibid, p.114).

Antecipando-se de maneira notável às discussões que estão em pauta nos dias

de hoje, Gilberto aponta a possibilidade de estabilização social e jurídica de ideias como

a de um “terceiro sexo” (Ibid, p.115). Aponta, no entanto, que a “inteira normalização da

figura do homossexual” estaria ainda por processar-se (Ibid, p.77) e que a consagração

dos novos costumes poderia encontrar “reação” (Ibid. p.114). Parece, de fato, notável

que Freyre conseguira antever, ainda na década de 70, o caminho pelo qual as

discussões sobre identidade de sexo e gênero caminhariam e que, inclusive, conseguira

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

38

predizer a reação de uma moral conservadora que vemos agora opor-se às medidas

jurídicas que tentam estabilizar e garantir a efetiva igualdade para cada indivíduo

autodeterminar-se no que se refere às suas identidades de sexo e gênero.

1.2.2 A questão do tempo crescentemente livre ou as relações entre trabalho e

lazer

A revolução biossocial remete-nos a três características fundamentais do mundo

cambiante que Gilberto Freyre se põe a observar. Abordei duas delas na seção passada

do trabalho, a crescente automação que se processava com base nos avanços

tecnológicos e o aumento da média de vida ancorada nos progressos médico-sociais. O

terceiro elemento desse tripé a sustentar a chamada revolução biossocial é a ampliação

do lazer ou do tempo livre nas chamadas sociedades em transição do apenas moderno

para o pós-moderno. Para Freyre, a mudança na relação das pessoas com o trabalho

seria um aspecto definidor do futuro.

Ver-se-á que a nova vinculação dos homens e mulheres com o trabalho remete,

de maneira muito clara, à concepção de hispanidade, ou seja, ao elemento hispânico

que compõe a especificidade brasileira. Um dos traços mais marcantes e persistentes

da civilização hispânica seria, para Freyre, sua forma de encarar o trabalho,

diametralmente oposta àquela das civilizações anglo-saxãs e norte-europeias, de matriz

protestante. Se para os estes o trabalho consistia em vocação, em seu sentido mais

puramente weberiano, para os católicos hispânicos o trabalho seria um fardo,

característica que implicaria numa valorização do ócio criativo, do lúdico, em detrimento

do meramente utilitário e produtivo. O pós-moderno freyriano restaura essa

característica tão hispânica, que fora estigmatizada pelo mundo apenas moderno como

arcaica e atrasada.

Para Freyre, a análise da relação homem-trabalho-tempo deve ser daquelas que

mais atenção obtenha do futurólogo. Há uma maneira fundamentalmente particular a

moldar o modo de se encarar o tempo e o trabalho que marcará o futuro pós-moderno.

Diz o autor pernambucano: “Restaura-se o prestígio do ócio como positivo, de que

negócio é o negativo. Restaura-se a relação do Homem com o Tempo em termos

menos de produtividade de trabalho individual ou grupal que de capacidade do

desocupado – indivíduo ou grupo – para preencher o tempo desocupado ou livre de

modo diversamente lúdico, hedônico e, em alguns casos, criador ou sublimador”

(Freyre, 2001, p.139).

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

39

Por que razão entendia Gilberto Freyre que haveria no mundo pós-moderno essa

tendência a um aumento do tempo livre, a valorização do ócio e a uma mudança nas

relações com o trabalho? Basicamente, por duas razões, que estão conectadas à sua

ideia de revolução biossocial. Em primeiro lugar, o aumento da média de vida havia

implicado em que pessoas de terceira idade chegassem à última fase de suas vidas

com vitalidade produtiva. “Há dois outros aumentos em ascensão fulminantemente

rápida nos últimos decênios: o quantitativo, de média de vida humana, e o qualitativo, de

saúde, e, consequentemente, de validez biossocial do homem depois de atingidos os

sessenta e cinco anos” (Freyre, 2001, p.177).

O futuro implicaria, portanto, num rearranjo social no qual esses indivíduos, de

idade avançada, tornar-se-iam mais ativos e participativos, seja em atividades lúdicas e

artísticas, cuja importância remeteria a uma esfera mais propriamente individual, ou

mesmo nas políticas e econômicas, cujos efeitos se fariam sentir no todo social. Em

segundo lugar, verificava-se também “tendências para um gozo de tempo pelos jovens,

despreocupados, contrária à mística, até há pouco dominante no Ocidente, do “time is

money”. Há uma evidente inclinação, da parte de vários desses jovens, para um tipo de

relação com o tempo antes romanticamente desinteressado do que pragmaticamente

calculado” (Freyre, 2001, p.66).

Nesse sentido, haveria uma propensão, nas civilizações industriais, para que

esses indivíduos mais ociosos – os mais jovens e os mais velhos – formassem espécies

de “brigadas revolucionárias de choque contra os representantes, por excelência, da

ordem estabelecida que são, nas mesmas civilizações, os indivíduos ainda em decisiva

e por vezes despótica maioria: os de idade média” (Freyre, 2001, p.178). O principal

lugar a se travar esse combate entre gerações seria o campo das relações com o

trabalho e com o tempo. Para Freyre, a principal característica dessa burguesia dos

homens de meia idade seria a defesa de seus interesses “que são principalmente os de

ordem, de organização, de estabilidade, através de métodos principalmente racionais,

lógicos, jurídicos”. (Ibid, p.179). Contra eles, levantar-se-iam jovens e idosos,

conectados por um espírito pós-moderno, revolucionariamente defensores de uma

ociosidade mais lúdica e criativa.

Ou seja, a tirania do tempo rigorosamente cronometrado, tão específica de

sociedades como a estadunidense, governadas pela incessante produção de dinheiro

(Freyre, 2001, p.51), sustentava-se, essencialmente, por meio da defesa de valores,

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

40

para Freyre, “apenas modernos”. Em tais sociedades predomina o “ideal calvinista do

tempo-dinheiro” (Ibid, p.179). Em contraposição a esse espírito, haveria uma tendência

pós-moderna – tão hispanicamente voltada ao lazer e à ociosidade criativa – que

propugna outra relação com o tempo, em que predominaria o tempo livre sobre o tempo

ocupado.

É interessante perceber que Freyre (2001, p.179) não julga haver diferença entre

Estados Unidos e União Soviética no que se refere à mentalidade voltada ao trabalho, à

produção, ao negócio, enfim, à industrialização. Ambas, em seus extremos ideológicos –

capitalista e “sob alguns aspectos” democrática23, por um lado; socialista e totalitária, de

outro – representam o “rígido organizacionalismo” das sociedades industriais. Gilberto

destaca, ainda, que ambas as sociedades, estadunidense e soviética, caracterizam-se

por possuir volonté d’antecipation (Ibid, p.25) e um future-oriented element (Ibid, p.25)

que as tornam tão semelhantes. A sustentar esse caráter orientado para o futuro está

um “racionalismo ativista e altamente otimista”24.

Para Freyre, portanto, o mundo pós-modernizado não se caracterizava, como

para Giddens (1991, p.9), como um momento de aceleração e ampliação das conquistas

modernas. Pelo contrário, o novo mundo, o futuro, propendia ao pré-moderno,

restaurando, em parte, ao menos no que se refere à relação do homem com o tempo,

aquilo que fora chamado, pelos modernos, de arcaico. O pós-moderno seria, portanto,

pós-capitalista e pós-burguês no sentido de que emergiria, para o autor pernambucano,

uma superação da civilização baseada puramente no negócio. Freyre explicita isso em

passagem que vale a pena citar em sua íntegra.

“Estamos hoje, no Ocidente e em mais de uma área mais ocidentalizada do Oriente, numa fase de desenvolvimento humano em que as virtudes e os valores consagrados por aquelas duas revoluções – a Comercial e a Industrial – são valores em crise, sob o impacto do começo de uma terceira revolução que excederá, talvez, em importância, a da ascensão social, já em grande parte realizada, do Proletário, já em grande parte ex-Proletário. Essa profecia marxista tornaram-na já circunstâncias não previstas de todo pelo gênio de Marx antes episódio do que culminância de um processo revolucionário pós-comercial e pós-industrial. É um processo que está nos levando de uma civilização à base do negócio, como foi principalmente a burguesa, capitalista, industrial, a uma civilização à base do ócio, e tão pós-burguesa quanto pós-proletária; tão pós-trabalhista

23

Perceba-se aqui o cuidado de Freyre em descrever os Estados Unidos como sociedade “sob alguns aspectos democrática”. Não inteiramente democrática, portanto. A ressalva é importante, pois Gilberto não considerava que fosse suficiente apenas um modelo político liberal e democrático. O Brasil, lembremos, por sua configuração social particular, seria para o autor pernambucano uma democracia social, ainda que não sujeita a um governo politicamente democrático. 24

Lembre-se que Além do apenas moderno foi escrito quando ainda vigia a polarização da guerra fria. No próximo capítulo, tentarei mostrar como a ênfase na particularidade hispânica irá embasar o que pode ser pensado como uma alternativa geopolítica ibérica, por meio da qual Freyre tenta escapar às constrições ideológicas da guerra fria.

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

41

quanto pós-capitalista. O tempo-ócio tende a predominar, em dias próximos, sobre o tempo-negócio de modo verdadeiramente revolucionário, em consequência direta do rápido aumento da automatização que das áreas superindustrializadas da Europa, da América e do Japão se comunicará decerto, sem demora, às apenas industrializadas" (FREYRE, 2001, p.177).

Freyre acreditava que o mundo que emergia, o mundo pós-moderno, seria tanto

pós-trabalhista quanto pós-capitalista, uma vez que a relação do ser humano com o

tempo tenderia a ser menos cronometrada, menos controlada, mais livre, mais lúdica.

Aquilo que Marx pensara como culminância do processo revolucionário, a ascensão do

proletariado, não era mais, para Freyre, que apenas uma etapa de um futuro que seria

pós-proletário. Marx não teria previsto a capacidade de o mundo capitalista industrial

estender seus benefícios para além da classe burguesa e, com isso, conter o ímpeto

revolucionário proletário.

Nesse sentido, Freyre entendia que “a época do Proletário, do Operário, do

Trabalhador com iniciais maiúsculas” estaria “em começo de rápida dissolução” (Freyre,

2001, p.268). Ideologias que ainda projetassem reivindicações operárias para os futuros

possíveis seriam, portanto, arcaicas, uma vez que baseadas numa relação homem-

tempo-trabalho que tendia a ser cada vez mais obsoleta. Perceba-se mais uma vez a

associação do apenas moderno com o arcaico. Gilberto entendia que se caminhava em

direção a “um mundo socialmente novo”. Esse caminho, no entanto, não seria aberto

por “uma revolução social à moda marxista”, solução essa, para ele, “já sem sentido”,

mas sim “através de uma revolução total, biossocial” que teria como sua principal fonte

de estímulo a automatização (Ibid, p.269,270).

No entanto, os altos níveis de bem-estar alcançados pelas sociedades mais

avançadas no processo de automatização e industrialização tê-las-iam convertido em

reféns de suas condições. Teriam elas se tornado incapazes de desfrutar de seu tempo

livre e ocioso e faltar-lhes-ia, assim, um elemento tão fundamental à experiência

humana, o da surpresa, uma vez que todo seu futuro já se encontraria metodicamente

planificado. Em um polo oposto, encontrar-se-iam sociedades mais anarquicamente

estruturadas como as hispânicas, cuja falta de organização, tão desprezada pelas

sociedades de cultura estritamente moderna, constituir-se-ia em vantagem no novo

mundo pós-moderno que emergia.

Para Freyre, o Brasil deveria “preparar suas novas gerações para tempos pós-

modernos seguindo antes inspirações hispânicas de sentido e de uso de tempo que

exemplos suecos” (Freyre, 2001, p.160). O sueco seria o exemplo acabado daquelas

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

42

sociedades norte-europeias que, “a despeito de sua quase perfeição econômico-social

ou tecnológico-social”, vivem o “tempo-tédio” – da insipidez, da monotonia, do tédio da

vida –, bastante distinto do “ócio hispânico que se prolonga à revelia dos relógios sem

que o ocioso se sinta vítima do tédio; ou se apresse; ou se preocupe exageradamente

com as relações entre tempo e dinheiro” (Ibid, p.160). Esse hispânico, cujo equivalente

brasileiro é o nordestino, em geral, e o baiano, em particular, não corre o risco, “como

tantos suecos e não poucos ianques”, de, “vítima da monotonia da perfeita ordem e da

absoluta segurança de uma civilização cronometrada tanto no tempo físico como no

social, vir a suicidar-se de pura acedia” (Ibid, p.160).

Nesse argumento reaparece a questão do regionalismo, sempre tão cara ao autor

pernambucano. Nosso lado mais essencialmente hispânico – o nordestino, o baiano –

estaria sujeitando-se ao apenas moderno, materializado na figura do paulista. Assim

como os hispanos em relação à Europa, os baianos em relação a São Paulo teriam sua

inferioridade supostamente comprovada – tanto por economistas quanto por sociólogos

“mais aparentados dos economistas nas suas tabelas de valores” – através das

estatísticas nas quais se saíam tão mal, especialmente na “renda per capita” (Ibid,

p.161). É lastimável, para Freyre, que, comparado à sociedade sueca, à anglo-saxônica,

à alemã, à francesa, os hispanos façam “tão má figura” no que se refere às estatísticas

econômico-sociais. Da mesma forma, que os baianos o façam também em relação aos

paulistas. No entanto, Gilberto se permite uma provocação para além dos números e

das conclusões feitas a partir de tabelas e análises quantitativas. Considera que a

deficiência hispânica nas estatísticas compense aquela deficiência norte-europeia e

anglo-saxã de ausência, nessas culturas, do elemento de surpresa, deficiência do

predomínio da vida insípida e cronometrada em que não se sabe tirar proveito do ócio,

do lúdico.

Freyre entendia que caminhávamos para um mundo em que a deficiência

hispânica converter-se-ia em valor, pois a ética do trabalho seria substituída por uma

ética do lazer (Ibid, p.161). Esse novo sentido de tempo abriria espaço para “o ideal

democrático de reorganização social” (Ibid, p.162), uma vez que permitiria “maior

diversificação entre os componentes de uma comunidade”. Mas em que sentido isso

ocorreria? Para Gilberto, o maior lazer “parece que vai permitir aos homens maior

liberdade de expressão: em fazer o que sempre desejaram fazer dentre de uma maior

diversificação de atividades por escolha individual dos membros espontaneamente

ativos de uma comunidade” (Ibid, p.162). Reaparece, assim, o projeto político de Freyre,

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

43

menos centrado em uma organização que dependa de um Estado racional, burocrático,

moderno, liberal e democrático, e mais preocupado com a “democracia social”, ou seja,

com organização espontânea de uma comunidade. São as “antigas tradições

comunitárias” apresentadas por Gilberto como criação mais legítima que a moderna

democracia política (Schneider, 2012, p.79).

A gestão do tempo livre seria, pois, uma questão fundamental para o futurólogo,

uma vez que o mundo pós-moderno para o qual se caminhava constituir-se-ia como

“época de menos trabalho e mais lazer” (Ibid, p.162). Esse predomínio do lazer poderia,

no entanto, ter consequências problemáticas caso o tempo livre não fosse gerenciado

de forma inteligente pelas sociedades do futuro. “Em várias sociedades

superindustrializadas o homem médio não está sabendo o que fazer de seu crescente

lazer” (Ibid, p.194). Por essa razão, tem esse homem médio ficado “à mercê dos

exploradores comerciais do seu ócio, ou de seu tempo desocupado” de forma que aquilo

que era antes trabalho “rotineiramente mecânico” tem sido substituído por “divertimento

mecanizado, estandardizado” (Ibid, p.194,195). Dessa forma, os benefícios que a

automatização traz em forma de tempo livre acabam superados pelos “prejuízos mentais

e socioculturais” em que a forma de utilização desse tempo tem implicado.

Freyre faz, nesse sentido, uma crítica dura da forma como o lazer tem sido

gerenciado pelas sociedades modernas. O lazer tem sido transformado em nada mais

do que “recreações mecânicas de pura inspiração capitalista”, atividades em que os

indivíduos são “despersonalizados em massa”, “sobrevivências do capitalismo

furiosamente competitivo do século XIX para o qual o tempo todo era dinheiro ganho,

trabalho produtivo” (Ibid, p.196). Os jogos modernos seriam a expressão maior da

reprodução da lógica competitiva, por um lado, e da lógica de multidão, por outro (Ibid,

p.140). São eles divertimentos “ruidosos, excitantes ou violentos”, que apenas fazem

reproduzir, para os que os praticam, “sensações de grandes esforços produtivos ou

competitivos” (Ibid, p.196) e, para os que os assistem, a lógica da estandardização e o

sentido de massa despersonalizada. Ou seja, a lógica do trabalho produtivo teria se

tornado tão dominante que até mesmo o tempo livre, que supostamente deveria ser

utilizado para o ócio e para o prazer, havia se transformado em mais uma esfera da vida

em que a racionalidade competitiva se manifestava.

É preciso, portanto, pensar numa reorganização do tempo livre. Para Freyre, “o

tempo dedicado ao lazer não precisa de ser um equivalente do tempo ocupado pelo

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

44

trabalho ou pelo esforço, como quase todo o esportivo, de competição simbolicamente

produtiva. Não é esse esporte o mais capaz de dar ao homem aquela apreciação mais

pura de valores de existência que a alguns de nós parece ser a principal função do

lazer” (Ibid, p.196,197). A forma de lazer que tem dominado as sociedades apenas

modernas é meramente uma caricatura do trabalho produtivo e, por essa razão, é

antilúdica. Ela está saturada da “mística calvinista” de que os homens nunca devem

“perder o tempo, gastá-lo, desperdiçá-lo, mas sim salvá-lo, economizá-lo, guardá-lo

como capital”. É a dominação da mística do time is money até mesmo na esfera do

tempo supostamente livre (Ibid, p.197). A função do lazer, do ócio lúdico é fazer com

que o homem tenha uma apreciação dos valores de sua existência, algo que as

sociedades apenas modernas parecem estar sendo incapazes de conseguir.

É preciso, portanto, que as sociedades do futuro ocupem-se, fundamentalmente,

da organização do tempo livre, pois a boa saúde do corpo social dependerá desse

esforço. A organização do lazer deve liberar o homem de suas preocupações

produtivas. Freyre propõe, nesse sentido, uma “concepção eutênica de reconstrução

social”. Eutenia é um substantivo cujo significado é “boa saúde”. O ócio e o lúdico

devem prover ambientes socialmente saudáveis que liberem os indivíduos para que, na

medida de seus próprios interesses, possam desenvolver-se em atividades artísticas,

técnicas, científicas, culturais, educacionais e de qualquer outra natureza. Atividades

essas que aprimorem seu sentido de humanidade e individualidade e que não permitam

sua dissolução em massa disforme estandardizada. A atuação de homens de intelecto e

de ciência será fundamental nesse projeto de futuro de Freyre. Nesta próxima seção

abordarei, portanto, como o autor pernambucano pensa a esfera do conhecimento em

sua futurologia.

1.2.3 As ciências e as humanidades

A esfera do conhecimento é um elemento fundamental na abordagem freyriana

por duas razões que ficam bastante claras ao longo da leitura de Além do apenas

moderno. Em primeiro lugar, porque a transição do moderno ao pós-moderno implica

uma mudança nos métodos de estudo do Homem, com o ressurgimento e revalorização

dos saberes humanísticos (Freyre, 2001, p.40). Em segundo lugar, pois o cientista social

aspirante a futurólogo, que pretende compreender de forma precisa essa transição,

precisa dominar os conhecimentos tanto de cunho mais humanístico quanto aqueles

mais propriamente científicos. Nesse sentido, faz Freyre uma defesa da conciliação e

aproximação entre esses saberes.

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

45

“Não se admite que se prolongue o estado atual das duas subculturas, a humanística e a científica, a se conservarem reciprocamente hostis, com o iniciado numa delas desdenhoso da outra; e o humanista ignorante da expressão matemática e empenhado na verbal. Seria nos resignarmos à pior das guerras civis” (FREYRE, 2001, p.100).

Perceba-se que a ênfase que Freyre dá ao ressurgimento das humanidades de

maneira alguma implica em rebaixamento das ciências físicas ou naturais. Pelo

contrário, tinha ele consciência muito clara da importância que as chamadas ciências

duras teriam no mundo que se desenhava. Diz ele em certo momento que o mundo

futuro “será matematizado em parte considerável de sua cultura geral” (Ibid, p.100), o

que exigirá um conhecimento significativo dessa área por parte de todos e não apenas

daqueles indivíduos que se dedicam profissionalmente às atividades matemáticas e

físicas. E não são apenas às ciências matemáticas às quais o autor pernambucano dá

ênfase. “As chamadas ciências naturais são outras em que a criança de hoje precisa ir

sendo iniciada de modo mais incisivo” (ibid, p.101).

O que Freyre faz ao apontar para uma renovação dos saberes humanísticos é

direcionar sua crítica ao positivismo. Para ele, “as modernas ciências do Homem já não

obedecem às filosofias positivistas ou às neopositivistas que, durante quase um século,

tiveram sobre ela influência preponderante, colorindo também suas relações com a

engenharia física e a engenharia social” (FREYRE, 2001, p.99). Um dos piores aspectos

da massiva influência positivista nas ciências sociais teria sido a negação de toda

influência estética ou emocional, baseando a produção do conhecimento em uma estrita

divisão entre razão e emoção. A análise sociológica deveria, nesse sentido, repudiar o

que não se caracterizasse como orientação racional do mundo.

A ascensão das chamadas ciências positivas teria provocado a desvalorização

dos saberes humanísticos e confinado o pensar estético, intuitivo e poético a uma esfera

não-científica, de cunho mais literário. Os modernos saberes científicos teriam, dessa

forma, compartimentalizado o conhecimento e adotado, segundo Freyre, um “furor em

prol dos números – que seriam a única expressão cientificamente válida em toda

espécie de saber – e contra as palavras, desprezando, quase todas, como pura e vã

retórica” (Freyre, 2001, p.40). No entanto, tais saberes, os chamados positivos, teriam

sido intitulados modernos arbitrariamente, pois baseavam-se no espírito de uma época

que desprezava um outro tipo de saber, mais humanístico, ou seja, mais crítico e

intuitivo, a que se intitulou como arcaico.

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

46

Para Freyre, o pós-moderno resgataria o conhecimento dessa tendência. Ao

defender esse resgate, o autor pernambucano irá mostrar quais suas filiações

metodológicas no campo da sociologia. Diz ele, “nas ciências chamadas do Homem é

imensa a importância da perspectiva não-intelectualista e não-racionalista, mas

certamente científico-humanista, criadoramente intelectual, aberta por Simmel e Max

Weber e hoje tão válida como há meio século”. Ao constantemente chamar seu método

de compreensivo, Freyre está obviamente fazendo remissão a Weber, que ele toma,

juntamente com Simmel, como modelos, dentro da sociologia, da fusão entre os ideais

de ciência e humanismo proposta em Além do apenas moderno. A contribuição desses

autores seria, nesse sentido, fundamental para uma possível futurologia, pois se a

sociologia terá alguma relevância na compreensão dos futuros humanos, será preciso,

então, “ser sociólogo mais à maneira alemã, dos Simmel”, diz Freyre (Ibid, p.119).

Em que sentido a obra desses autores teria um sentido anti-intelectualista? Pois,

para Freyre, suas perspectivas sustentavam que “as consequências sociais acontecem

à revelia das intenções que os racionais supõem que delas decorrem” (Ibid, p.245). O

exemplo em que Gilberto se sustenta é a interpretação sociológica de Weber em A ética

protestante e o espírito do capitalismo, da qual se pode depreender que “as

consequências de caráter capitalista da ética protestante calvinista não foram

pretendidas pelo racionalismo de Calvino: o protestante por excelência intelectualista da

revolução anti-católica do século XVI” (Ibid, p.245). Assim, Freyre irá mencionar estudo

de Peter Berger25, o qual se poderia considerar notável exemplo da perspectiva pós-

moderna das ciências humanas, que aponta ter sido Weber quem mostrou ser precária

a interpretação, “com pretensões a cientificamente social”, do comportamento humano

como resultado imediato de deliberados esforços lógicos e racionais-intelectuais. Peter

Berger descreve uma realidade social muito mais complexa, que seria, para Freyre, um

antídoto aos “utopismos revolucionários e abstratos”, e aqui o autor pernambucano está

se referindo explicitamente ao marxismo, cujo “fracasso” ele vê associado a essa

perspectiva racionalista que impede de perceber os desvios não de todo racionais da

história (Ibid, p.246).

25

Peter L. Berger é autor, juntamente com Thomas Luckmann, do importante The social construction of reality, obra de 1966, referência do campo da sociologia do conhecimento. Ademais, é autor do livro Invitation to Sociology: A humanistic perspective, publicado três anos antes, em 1963, em que defende a orientação da sociologia em direção a sua dimensão humanística, aquilo que Freyre tenta também postular em Além do apenas moderno.

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

47

Não haveria para Freyre, no entanto, algo de completamente novo nas

perspectivas desses sociólogos. Algo delas já poderia ser encontrado na “ciência

hispânica do homem” desde, pelo menos, o século XVI, período de que Gilberto destaca

as obras de Baltasar Gracián e Juan Luis Vives, que em muito teriam se antecipado aos

sociólogos e antropólogos modernos. Diz ele expressamente que “Max Weber e Simmel

são sociólogos modernos de língua alemã aos quais não falta parentesco com a

tradição hispânica de estudo do Homem como um estudo que não repugna – como

repugna ao mais estreito positivismo sociológico – a complexidade dos temas

psicossociais que escapem a medições e mensurações” (Ibid, p.41).

Dentro dessa mesma tradição de estudos modernos mais humanísticos, Gilberto

destaca ainda a tese do poeta e escritor francês Paul Valéry em seus ensaios

Introduction à la methode de Léonard de Vinci e em Regards sur le monde actuel, nos

quais aparece “a necessidade de uma reorientação das ciências do Homem como

ciências que se assemelhem leonardodavincianamente, em seus métodos, às artes

plásticas, em sua mesma busca por um homem inteiro, vivente e existente, consciente e

subconsciente” (Ibid, p.41). As ciências modernas teriam reduzido o homem ao seu

intelecto, à sua razão, tornando toda a esfera do não-racional como não passível de

conhecimento objetivo, reservando, assim, para as manifestações dos sentimentos, e

não do intelecto, lugares fora da ciência, como a literatura ou a religião. O conhecimento

teria sido, dessa forma, compartimentalizado. No pensamento hispânico, no entanto, a

fusão entre razão e sentimento teria sido sempre o padrão. A plasticidade das ciências

humanas hispânicas, caracterizada pela fusão entre método artístico e filosófico, teria se

tornado obsoleta com o triunfo do cientificismo racional norte-europeu e anglo-saxão,

passando, tais estudos hispanos, a ser considerados “arcaicos, místicos, literários,

impressionistas, orientais, extra-europeus” (Ibid, p.43).

Não avançarei mais sobre esse tema, pois ele será tratado amplamente no

próximo capítulo. Por ora, importa destacar que o pós-moderno freyriano implicaria na

recuperação dessa forma hispana de conhecimento considerada como arcaica pelo

mundo “apenas moderno”. Não que Freyre entenda que essa forma plástica de

conceber as ciências humanas – mais preocupada em apreender um ser humano

integral e não apenas sua abstração racionalista – seja atributo apenas dos hispânicos.

Gilberto vê essa mesma tendência no mundo norte-europeu numa vertente de

pensamento que vai desde Pascal até Nietzsche e, mais contemporaneamente, no

existencialismo. Tendência, no entanto, minoritária em uma civilização em que terminou

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

48

por predominar o racionalismo e o quantitativismo (Ibid, p.43). Entre os hispanos, essa

forma de conceber a ciência teria sido dominante e constante e sua recuperação

significaria voltar a estudar o ser humano “menos como ser abstrato que como ser

situado: integrado, como pessoa, inclusive como sexo, em algum ambiente ou meio

particularmente ecológico do qual seria inseparável; e sentido na sua totalidade –

inclusive a totalidade tempo, sem separar-se rigidamente presente, de passado ou

futuro” (Ibid, p.43). Na última seção deste capítulo, irei me concentrar, portanto, no

aspecto mesológico que, como se vê, assume grande importância no mundo pós-

moderno de Freyre. Os estudos das ciências humanas não podem prescindir de

entender o ser humano em sua totalidade, o que significa estudá-lo em seu meio

geográfico. A tropicalidade terá, portanto, um lugar central na futurologia freyriana.

1.2.4 A tropicalidade como especificidade brasileira

O último elemento que quero destacar nesta breve exposição de Além do apenas

moderno é o da tropicalidade. Essa característica brasileira, sempre tão cara a Freyre, é

fundamental para sua concepção de futurologia. Já abordei a questão da importância

que a adaptação dos homens ao meio detinha para o autor pernambucano. O trópico é,

nesse sentido, fundamental, pois sendo faceta tão própria brasileira, é primordial

desenvolver plena capacidade de adaptar-se a ela. Um dos aspectos definidores do

futuro brasileiro seria, portanto, a habilidade das futuras gerações em conceber uma

vida tropical coerente com a mesologia dos trópicos.

Uma das particularidades da defesa que Freyre fazia da especificidade brasileira

referia-se a sua crítica da importação de formas de convívio e de relacionar-se com o

meio que nenhuma similitude guardavam com nossas características. Não se podia

pretender que um modo de viver adaptado a características específicas de um lugar

pudesse ser transplantado a outro sem que isso implicasse em perdas significativas. As

relações saudáveis entre homem e natureza regional dependiam de uma adequada

relação entre vida e meio. “Viver borealmente em ambiente boreal e viver tropicalmente

em ambiente tropical”, diz Freyre (2001, p.101).

A tropicalidade, portanto, não seria senão “um critério profundamente mais

ecológico, das relações do homem com a natureza e de suas culturas com os

ambientes” (Ibid, p.63). Um ser humano brasileiro completamente integrado com seu

meio ecológico demandaria um esforço adaptativo em relação àquilo que define a

ecologia do lugar onde vive, ou seja, do trópico. Isso seria possível, pois, como vim

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

49

destacando, o declínio de uma mentalidade “apenas moderna” permitiria ao “homem

situar-se não como dominador absoluto da natureza, mas também como parte dessa

natureza” (Ibid, p.64). A nova vida pós-moderna tenderia a corrigir os “excessos” de uma

automação que muitas vezes se desenvolvia completamente alheia aos compromissos

necessários com a natureza.

Um dos problemas do mundo moderno e de sua mentalidade “pan-racionalista” é

que teria se desenvolvido um entendimento, supostamente científico, de que seria

possível “a solução de todos os problemas do Homem civilizado através da pura

tecnologia” (Ibid, p.99). Freyre expressamente se coloca contrário a essa tendência,

dizendo que “a psiquiatria, a psicologia, a antropologia, a sociologia também são

ciências e não se pode dizer dos seus principais cultores modernos que concordem em

atribuir essa importância absoluta à tecnologia per se” (Ibid, p.99). Freyre diz que as

ciências humanas não estão mais submetidas ao positivismo e sua tentativa de

transformar a sociologia em uma espécie de engenharia social, ou, pelo menos, não

deveriam estar. As ciências humanas, com sua base crítica humanística, deveria

fornecer o contraponto necessário para que as ciências naturais não ensejem a

mentalidade de que através pura e simplesmente das inovações científicas o mundo

natural poderia ser completamente submetido. O problema, no entanto, é que ao

contrário do que deveria acontecer, as próprias ciências humanas haviam se inebriado

com esse pensamento triunfalista supostamente científico. Vê-se, portanto, como a

questão mesológica está conectada com o problema da seção anterior, das ciências e

das humanidades.

O intelectual pós-moderno deveria, para Freyre, estar dotado das necessárias

armas críticas humanísticas, sem, no entanto, desprezar as ciências naturais, que

seriam obviamente fundamentais no futuro. O autor pernambucano propõe, assim, um

humanismo crítico que possa revigorar as ciências humanas. No próximo capítulo,

tentarei mostrar como ele fará isso apoiando-se, sobretudo, na concepção de

hispanidade.

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

50

2 HISPANIDADE EM GILBERTO FREYRE: A INFLUÊNCIA DO PENSAMENTO

ESPANHOL

“Para entender la vida hispánica debe olvidarse por un momento la idea de que el éxito y la prosperidad materiales son necesarias

para definir esencialmente una cultura” Américo Castro

Neste capítulo, irei me dedicar fundamentalmente a dois objetivos. Discorrer

acerca da ideia de hispanidade presente na obra de Gilberto Freyre e da influência que

autores do pensamento espanhol tiveram na conformação dessa concepção. Trata-se,

pois, de uma forma de abordar aquilo que a literatura especializada denomina de

iberismo (Bastos, 1998; 2003; Schneider, 2012; Baggio, 2010; Souza, 2000), ou seja, as

teses ibéricas que recorrentemente foram utilizadas pelo autor pernambucano para

explicar certos traços resistentes da personalidade brasileira que estavam ligados à

herança colonial ibérica que nos foi legada. Minha preocupação centrar-se-á em tentar

entender como a leitura de autores hispânicos inspirou decisivamente a percepção de

Freyre e transmitiu à sua obra uma perspectiva específica acerca dos contornos da

influência ibérica sobre o Brasil.

Para além de enfatizar um ou outro autor que possa tê-lo influenciado mais

decisivamente, como, por exemplo, Miguel de Unamuno ou Ángel Ganivet, aos quais

Freyre refere-se explicitamente em seus escritos, quero destacar aqui uma forma de

pensar hispana, que estaria cristalizada no conjunto do pensamento espanhol, e que

exerceu não apenas certo fascínio sobre o autor pernambucano, mas, sobretudo,

influência decisiva no tipo de sociologia que ele viria a fazer e propor. Em Além do

apenas moderno, Freyre apresenta uma futurologia sociológica que está intimamente

relacionada com o que ele chama “ciência hispânica do homem”, uma forma de pensar

e fazer ciência dos hispanos, cuja essência apontaria para uma ênfase num ser humano

total; não apenas no aspecto da racionalidade, mas na razão e sentimento

consubstanciados; alma, espírito e pensamento em união indissociável. Ciência essa,

ademais, influenciada por um sentido de tempo profundamente particular, o tempo

hispânico, ou, como também o chama Gilberto, o tempo tríbio.

Conhecer e compreender o que Freyre pretende ao enfatizar uma maneira

particular de produzir conhecimento que remete à civilização hispânica é, portanto,

fundamental, pois o autor pernambucano irá reivindicar essa tradição de pensamento

em Além do apenas moderno. Nesse sentido, no percurso deste capítulo, buscarei, em

primeiro lugar, apresentar um breve esboço de como a ideia de hispanidade teria

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

51

amadurecido na obra de Gilberto. Em um segundo momento, centrar-me-ei em tentar

entender o que se poderia compreender por civilização hispânica a partir das ideias

sustentadas pelo filólogo e historiador espanhol Américo Castro, relacionando-as à

concepção de hispanidade presente em Freyre. Pretendo, assim, esclarecer a que o

autor pernambucano se refere ao mencionar a ideia de uma ciência hispânica do

homem na obra que constitui o objeto de análise deste trabalho.

Em um terceiro momento, retomarei os autores espanhóis que,

reconhecidamente, exerceram maior influência sobre Freyre: Miguel de Unamuno, Ángel

Ganivet e Ortega y Gasset (Bastos, 2003; Baggio, 2010; Pallares-Burke, 2005).

Abordarei, ainda, escritores como Laín Entralgo e Julián Marias, também citados pelo

autor pernambucano em Além do apenas moderno. Todos esses intelectuais espanhóis

contemporâneos são, no entendimento de Gilberto Freyre (2001, p.44), atualizadores de

uma interpretação hispânica da vida humana que remete a uma tradição iniciada

essencialmente com o “século de ouro”26, período de apogeu do humanismo clássico

espanhol, dentre cujos autores Freyre destaca Juan Luís Vives, humanista valenciano

do século XVI, e Baltasar Gracián, jesuíta autor de El criticón, obra-prima do século XVII

considerada ao lado de Dom Quixote de Cervantes o romance mais importante da

literatura espanhola (Santos Alonso, 2004, p.25).

Como afirmei, minha preocupação maior está antes em delimitar um sentido mais

amplo do pensamento hispânico do que propriamente apontar aproximações entre

Freyre e autores espanhóis, ainda que considere a comparação com os autores um

recurso indispensável para a constituição do argumento empregado aqui. Minha

insistência em enfatizar uma ideia de civilização e pensamento hispânico que o autor

pernambucano reivindica, ver-se-á, tem relação com minha sugestão de que, em Além

do apenas moderno, Gilberto propõe uma espécie de arielismo, ideia que remete ao

Ariel de José Enrique Rodó. Se o uruguaio empreende seu projeto de crítica da

modernidade desde as trincheiras ideológicas do latinoamericanismo (Castro, 2009,

p.11), o ensaísta de Apipucos o faz a partir da apropriação da hispanidade. Em ambos,

no entanto, vislumbra-se a mesma reivindicação de uma cultura humanística que

poderia combater o materialismo racionalista, personificado na cultura anglo-saxã;

26

O termo “século de ouro” refere-se, grosso modo, ao período histórico que compreende o Renascimento e o Barroco espanhol, nos séculos XVI e XVII, respectivamente. O termo foi cunhado no século XVIII por Luis José Velázquez em seu Orígenes de la poesia castellana e, posteriormente, consagrado pelo hispanista estadunidense George Ticknor. Costuma-se fixar seu início no reinado dos Reis Católicos e datar seu fim com a morte de Calderón de la Barca, em 1681, ou, um pouco mais a frente, com o final da Guerra de Sucessão Espanhola, em 1714. (Bayón, 2010, p.19).

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

52

vislumbra-se a mesma ideia de um futuro que não pode, nem deve prescindir de valores

tradicionais.

A utilização do recurso de comparação com Rodó servir-me-á, basicamente,

como forma de explicitar o argumento central de Além do apenas moderno:

desestabilizar a centralidade da experiência moderna. O moderno é, nessa obra, como

tentei mostrar no primeiro capítulo, o efêmero. Os rasgos tradicionais, supostamente

pré-modernos, cuja persistência marcam a experiência histórica brasileira não estão

enquadrados como impedimentos para a modernização, pois o foco de Freyre está na

pós-modernização. Nesse sentido, já não se trata de buscar afirmar “outra modernidade”

que caracterizaria o percurso histórico brasileiro. Na realidade, o arcaico, para o Gilberto

de Além do apenas moderno, é justamente identificar-se com a lógica moderna, que é a

lógica do “não há tempo a perder”, do time is money. A insistência nessa identificação, a

persistência em querer ser moderno, estaria atrasando o processo de “pós-

modernização de nosso país” (Freyre, 2001, p.67). Freyre empreende esse projeto, de

descentrar a experiência moderna, reivindicando uma tradição hispânica que é, para ele,

símbolo de pós-modernidade. O hispano, em sua forma de conhecer o mundo (sua

ciência humanística) e relacionar-se com ele (tempo tríbio), atesta outro tipo de

experiência social que Freyre toma como modelo a fim de sustentar que certas tradições

não devem ser renegadas, mas, sim, afirmadas. Como ele o faz é o que tentarei

mostrar.

2.1 O caminho para a hispanidade

Em texto intitulado A propósito de lo hispano y de su cultura, publicado

originalmente no ano de 1965, em Buenos Aires, Gilberto Freyre (1975, p.149) chama

Brasil e Argentina de “culturas nacionales de común origen hispánico y de futuro

probablemente común”. O autor continua e aprofunda esse argumento, da proximidade

cultural entre os dois países, a fim de enfatizar a essência que ele compreende ter a

hispanidade. Nesse sentido, acrescenta:

“Pero la cultura hispánica – cultura en su sentido sociológico, hispánica en el sentido de ibérica, pues conviene que algunos españoles dejen de pretender monopolizar el adjetivo “hispánico”, y entre los portugueses e brasileños otros tantos dejen de temer en él el espantajo de um supuesto imperialismo, el de la hispanidad en el significado exclusivo de españolidad – la cultura hispânica está en la base de nuestras estructuras nacionales argentina y brasileña, como vínculo transnacional, vivo y germinal en su capacidade de aproximar naciones, cuasi-naciones, poblaciones neohispánicas, en lo essencial de sus formas de vivencia y convivência” (Ibid, 1975, p.149)

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

53

Voltarei ao conteúdo desse excerto mais a frente. Por ora, o que quero enfatizar é

que o texto está publicado no Brasil no livro O brasileiro entre os outros hispanos:

afinidades, contrastes e possíveis futuros nas suas inter-relações, do ano de 1975,

apenas dois anos após o lançamento de Além do apenas moderno. Entendo que, para

se ter uma visão mais ampla do argumento freyriano, especialmente aquele que desejo

enfatizar neste trabalho – a proximidade entre hispanidade e futurologia –, seja preciso

analisar as duas obras conjuntamente. Os temas mais importantes abordados são

recorrentes nos dois livros. Se no primeiro, a ênfase está na futurologia, no segundo, ela

recai sobre a hispanidade. Ambas as concepções são, no entanto, tratadas, sempre que

possível, de forma conjunta.

Destaco outra passagem do mesmo texto publicado originalmente em Buenos

Aires no qual a relação entre os dois livros resta bem evidenciada.

“Quien considera problemas de sociedad y de cultura a través de una concepción trivia del tiempo, dificilmente puede delizarse hacia um tradicionalismo convencional: debe ser también calificado como futurólogo. Fue lo que destaqué en el primer curso universitario de Futurología, desde el punto de vista sociológico, dictado en Brasil”. (Freyre, 1975, p.151).

Perceba-se, portanto, que dois temas fundamentais de Além do apenas moderno,

a futurologia e o tempo tríbio, encontram-se presentes no argumento freyriano no livro O

brasileiro entre os outros hispanos. Um pouco mais a frente, no mesmo texto, Freyre

afirma:

“Repugna a alguno de nosostros, hispanos, um presentismo com pretensiones de modernismo que ignore sus dimensiones de tempo mas allá de lo inmediatamente actual o de lo apenas moderno. Y en esa actitud creo que se expresa la antigua tendencia hispánica a situar el hombre en un tiempo que, lejos de se mero presente, es también lo que fue y lo que será – inclusive lo más allá del tiempo –, los tres interpenetrando-se. Trívio, constantemente trívio.(Ibid, p.152).

Novamente aqui aparece de maneira clara os temas caros a Freyre em Além do

apenas moderno. Uma crítica do presentismo que revela o espírito do “apenas moderno”

e o elogio da concepção tríbia de tempo, mais afeita ao espírito pós-moderno. Essa

repetição dos temas é bastante visível em várias outras partes de O brasileiro entre os

outros hispanos. Há, portanto, uma relação estreita entre os dois livros publicados por

Freyre no curto espaço de tempo de dois anos, entre 1973 e 1975. Para além da

recorrência dos temas abordados, a própria estrutura de ambos é bastante semelhante.

Foram construídos a partir de textos escritos por Freyre em anos anteriores e que foram

recopilados e transformados em livro. Faz sentido, portanto, pensá-los conjuntamente

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

54

como um complexo de ideias que foram assumindo grande importância para Freyre,

pelo menos, a partir da década de sessenta27.

Pode-se perceber isso de maneira mais clara ao se retroceder precisamente até o

ano de 1960, quando Freyre publica um livro chamado Uma política transnacional de

cultura para o Brasil de hoje. Essa obra é resultado de uma conferência que o autor

pernambucano proferiu, no ano de 1959, na Faculdade de Direito da Universidade de

Minas Gerais28. Logo nas primeiras linhas do texto, Gilberto evidencia o tema sobre o

qual iria versar: a orientação da política exterior do Brasil no sentido de “uma afirmação

mais vigorosa da presença brasileira na América” (Freyre, 1960, p.37), o que para ele

era motivo de alegria.

O esforço de aproximação da América era para Freyre duplamente importante.

Em primeiro lugar, pois entendia que o mundo caminhava para um período em que o

Estado-nação perderia protagonismo, acentuando-se, assim, a importância de blocos

regionais de países. De acordo com o autor pernambucano, “as nações parecem cada

dia valer menos como simples nações ou puros Estados nacionais e mais como

conjuntos trans ou plurinacionais de cultura” (Ibid, p.37,38). O segundo motivo,

consequência automática do primeiro, consistia no fato de ser a América hispânica o

aliado mais natural do Brasil para formar um conjunto culturalmente coeso de nações.

Aqui irão entrar em cena os velhos argumentos freyrianos acerca da capacidade

de adaptação dos portugueses aos trópicos e da especificidade da civilização que se

criou no Brasil em razão dessa adaptabilidade ibérica. Para a afirmação de um conjunto

plurinacional forte, no entanto, não bastavam apenas Brasil, Portugal e as outras partes

tropicais do globo em que a cultura portuguesa havia se instalado. Era necessário

expandir o bloco e nesse sentido, portanto, o hispano é integrado ao mundo luso-

brasileiro freyriano. Em passagem em que fecha o argumento inicial da conferência,

Freyre aponta claramente todos esses elementos que se configurariam como o núcleo

de sua exposição: a América, o hispano e o luso-brasileiro como conjunto plurinacional e

o trópico, como o elemento fundamental a uni-los todos.

27

Nesse mesmo texto, do qual retirei os excertos que utilizei aqui, Freyre menciona uma conferência dada por ele na Universidade de Princeton no ano de 1961, na qual aborda temas relacionados com a questão do tembo tríbio, da hispanidade e da pós-modernidade. O que faz pensar, portanto, que já no início da década todos esses temas ocupavam uma preocupação conjunta, com sentido de unidade, para ele. 28

Trata-se da UFMG, fundada em 1927 sob o nome Universidade de Minas Gerais e cujo nome foi alterado para Universidade Federal de Minas Gerais em 1965. Fonte: https://www.ufmg.br/conheca/hi_index.shtml

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

55

“Se somos, na realidade, parte de um complexo ou de uma constelação cultural que se projeta em várias partes do mundo hoje (...) essa nossa situação abre à política exterior do Brasil perspectivas que, sem nos afastarem de nossos deveres já tradicionais de solidariedade com os Estados americanos, levam-nos a considerar sob um critério, também de particular solidariedade, nossas relações com outros povos, afins do nosso por um conjunto especial de formas de cultura adaptadas a condições de espaço – o espaço tropical – semelhantes às brasileiras. Esses povos são principalmente os hispanos, em geral, situados nos trópicos, e particularmente, dentro dessa constelação ao mesmo tempo ecológica e cultural, os povos de cultura predominante lusitana, estabelecidos no mesmo tipo de espaço e aí integrados como que simbioticamente com outros povos” (Freyre, 1960, p.37,38).

Para o Brasil, seria importante a aproximação de nações hispano e luso-tropicais

a fim de formar um conjunto transnacional mais amplo, pois permitiria o exercício de

uma liderança que nos seria natural em razão da “experiência brasileira de vanguarda

no sentido do desenvolvimento integral de uma civilização a um tempo moderna e

ecológica nos trópicos”. (Freyre, 1960, p.40). Para Gilberto, o Brasil era nação pioneira

na criação de uma moderna civilização tropical. Diferentemente daquilo que o europeu

cristão criou em áreas temperadas da América, ou mesmo em áreas tropicais como a

australiana – e aqui Freyre está se referindo indiretamente à colonização inglesa –, nas

quais não houve uma simbiose natural com meio, mas apenas transposição de uma

população europeia pela nativa, o luso-brasileiro teria realizado verdadeira ligação

associativa com os povos autóctones tropicais, o que significou não a substituição de

uma cultura por outra, mas amálgama cultural (Ibid, p.40,41).

Os argumentos expostos na conferência de 1959 não eram, no entanto,

completamente novos. A atenção de Freyre já se voltara para a América hispânica, pelo

menos, desde os anos quarenta, quando empreendera viagem por Argentina, Uruguai e

Paraguai. Seu giro platino rendeu interessantes textos escritos em Montevidéu, Buenos

Aires e Assunção publicados no jornal argentino La Nación e em jornais brasileiros

(Baggio, 2010, p.27). Nesses escritos, já aparece a ideia de que “a América Ibérica –

que ele designa no texto como ‘os povos americanos de formação indo-hispânica’ –

deveria unir forças para resistir o avanço do ‘industrialismo carbonífero e petrolífero,

ansioso de mercados passivamente coloniais’, que tenderia a uma ‘rígida uniformidade

cultural de continentes inteiros sob o domínio da política ou da economia do povo

triunfador’” (Freyre, 2003 apud Baggio, 2010, p.27).

É possível perceber já nesse momento uma preocupação de Freyre com um

modelo de modernização anglo-saxã, uniformizadora e padronizadora. Tal modelo seria

o sucessor natural do paradigma de colonialismo inglês, que, como apontei há pouco,

Gilberto contrastava com a colonização ibérica. Enquanto o português – ou, já neste

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

56

momento, poder-se-ia dizer o hispânico – promoveu o hibridismo, amálgama de

culturas, o inglês – ou anglo-saxão – favoreceu a substituição do povo autóctone,

vencido, por outro, o branco, cristão protestante, vencedor. Parece ficar claro já neste

momento que as linhas demarcadoras de uma divisão de processos históricos que

culminaram na formação de modelos opostos de civilização, o ibérico e o anglo-saxão,

passavam a incluir, para Freyre, não apenas o Brasil, mas toda a América hispânica29.

Para Katia Gerab Baggio (2010, p.30), nos textos desse período “há uma clara

disposição de Freyre em defender, idilicamente, a América Ibérica e mestiça diante de

um mundo de intolerância e guerra”. Trata-se do início dos anos quarenta, momento em

que a Segunda Guerra Mundial está em seu ápice. Ademais, ainda segundo a autora,

existe uma correlação entre o elogio tanto de Assunção quanto das províncias

argentinas – estas enquanto lugares de defesa das tradições em face da modernização

avassaladora de uma cidade como Buenos Aires – com “a nostalgia da cidade patriarcal

nordestina”. (Ibid, p.31). O Paraguai, ou, mais particularmente, a cidade aristocrática de

Assunção – ao contrário de uma metrópole cosmopolita, mas descaracterizada, como

São Paulo – teria preservado os valores profundos da América Ibérica: a tropicalidade, a

mestiçagem – indo-hispanidade, no caso específico paraguaio – e a cultura popular.

Se voltarmos ao início da década de sessenta e pensarmos na conjuntura

internacional que se configurava, com o acirramento das tensões da guerra fria a partir

da revolução cubana de 1959, que culminaria em dois episódios marcantes que refletem

bem a tensão vivida nesse período, o desembarque da baía dos porcos e a crise dos

mísseis, nos anos de 1961 e 1962, respectivamente, a posição de Freyre não deixa de

ser significativa. As margens de manobra na política internacional encontravam-se

29

O mesmo argumento acerca da diferença entre as colonizações ibérica e anglo-saxã pode ser encontrado no livro Novo mundo nos trópicos (1971), em que Freyre afirma: “...a verdade é que nem essas origens nitidamente portuguesas ou hispânicas, nem as suas raízes católico-latinas, fazem do Brasil simples e pura extensão da Europa como a Nova Inglaterra, da velha Inglaterra, e ainda, como a Nova Inglaterra, do cristianismo evangélico ou protestante”. É importante ressaltar que, apesar de publicado apenas em 1971, Novo mundo nos trópicos fora originalmente escrito e publicado em 1945, em inglês, sob o título Brazil, an Interpretation, a partir de seis conferências proferidas pelo autor pernambucano na Universidade de Indiana em 1944 (Pattern Lectures). Posteriormente, o ensaio original em inglês foi ampliado e publicado em 1959 sob o título New world in the tropics. Segundo Peter Burke, em prefácio intitulado Brasil para estrangeiros que abre a 3ª edição do livro publicado no Brasil, o texto das conferências tinha como objetivo apresentar o Brasil para um público acadêmico estadunidense. Não deixa de ser significativo, portanto, que o excerto acima seja exatamente o trecho de abertura do primeiro capítulo da obra. Freyre inicia sua apresentação do Brasil para seus ouvintes e leitores norte-americanos enfatizando a diferença entre os processos de colonização que constituíram ambos os países. Ademais, como afirma Elide Bastos (2005, p.99), em Brazil, an interpretation, o texto original, já aparece mais claramente a influência dos autores espanhois em Freyre. No excerto que citei, as origens brasileiras já mostram-se como “portuguesas ou hispânicas”. Ressalte-se, nesse sentido, que as conferências foram proferidas pouco tempo depois do giro platino de Freyre.

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

57

bastante restringidas, não havendo grandes possibilidades alternativas senão a adesão

automática aos blocos estadunidense e soviético. A posição de Freyre, podendo ser

vista como de tentativa de independência internacional frente às duas superpotências,

buscava encontrar um espaço próprio e altivo para o Brasil, no qual o país pudesse

exercer a liderança que lhe caberia.

Obviamente, não se trata de afirmar que a motivação da inclusão do Brasil em um

universo hispano mais amplo teve apenas motivações geopolíticas. Entendo que, sim,

foi um fator, como a própria conferência transformada em livro demonstra, mas o tema

ganha relevância para Freyre por uma série de outros fatores, dentre os quais

destacaria a aproximação cada vez maior do autor pernambucano com o universo do

pensamento hispânico e o progressivo reconhecimento da influência desse pensamento

em sua obra. Avançarei nessa ideia mais a frente. Quanto ao aspecto geopolítico,

retomo aqui argumento já utilizado no primeiro capítulo que expunha o debate entre

Sérgio Tavolaro (2013) e Jessé Souza (2000) acerca desse tema. Segundo Souza

(2000, p.71), a questão da tropicalidade ganha relevo nas obras de maturidade de

Freyre em razão de motivos geopolíticos. Para ele, “se nos escritos da juventude os

outros elementos estão subordinados à dimensão cultural, (...) nas obras da maturidade

a dimensão mesológica assume o lugar de maior preeminência como o nome da nova

ciência já sugere” (Ibid, p.71). A nova ciência a que Souza se refere é a tropicologia.

Ao trazer à discussão a questão da mesologia, Souza enfatiza a dimensão

geopolítica em razão da preocupação de Freyre (1969, apud Souza, 2000, p.71) com

“imperialismos de potências não tropicais com relação a espaços, recursos, população e

culturas tropicais”. De fato, se pensarmos no teor do livro Uma política transnacional de

cultura para o Brasil hoje, pode-se extrair do texto essa preocupação por parte de

Gilberto. A preocupação já aparece, inclusive, nos escritos dos anos quarenta. A ênfase

no hispano tropical como parte de um conjunto transnacional de cultural do qual também

fariam parte os luso-brasileiros e outros luso-tropicais poderia, portanto, ser entendido,

como sugeri antes, como um escape do campo de forças ideológico da conjuntura

político-internacional da época.

No entanto, ao invés de pensar esse percurso do pensamento de Freyre nos

termos que propõe Souza, ou seja, como uma progressiva perda de influência dos

argumentos culturalistas em relação a outros de cunho mesológico, parece-me mais

produtivo enquadrá-lo a partir do que propõe Sérgio Tavolaro (2013). Para este

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

58

sociólogo, a ênfase no “ambiente físico tropical” poderia ser pensada como “uma

consciente tentativa de relativizar o protagonismo (epistemológico, normativo e estético-

expressivo) exclusivo reivindicado por sociedades tradicionalmente tidas como

modelares da modernidade”. Nesse sentido, o trópico teria sido desde o início da obra

de Gilberto “uma peça-chave” no ambicioso projeto intelectual de Freyre, “graças a

predicados tomados por singulares, catalisadores de uma experiência social tida por

inovadora e irreprodutível pelas sociedades europeias hegemônicas” (Tavolaro, 2013,

p.282).

A essa proposição de Tavolaro, da existência de um projeto de relativizar o

protagonismo da modernidade anglo-saxã, penso que acrescentar a ideia de

hispanidade seja fundamental. A tropicalidade assume uma configuração muito

particular no pensamento de Freyre essencialmente em razão de o Brasil ter sido

colonizado pelo ibérico. O norte-europeu ou o anglo-saxão careciam das capacidades

adaptativas necessárias para estabelecer-se no trópico. Por essa razão, portanto, seu

esforço colonizador acabou por concentrar-se apenas nas zonas temperadas da

América. Somente a energia empreendedora do ibérico – nutrida pela própria condição

mesológica da península: o clima atlântico e a condição de passagem entre Europa e

África; pelo contato do hispano com o elemento semita: judeu e muçulmano; e pela

experiência colonial africana já adquirida no século XIV – poderia executar a difícil tarefa

de colonizar o trópico americano.

Por tudo isso, o ibérico realizou verdadeira fusão com o meio tropical, amálgama

natural cujo equivalente cultural é a mestiçagem das raças. O filólogo e historiador

Américo Castro (2004, p.23) ressalta essa qualidade entre os hispânicos de íntima

relação com o meio. “Para el español, el hombre y su entorno forman una unidad vital”.

Assim, o elemento tropical e o hispano se fundem no processo de formação brasileiro. A

inclusão da hispanidade no argumento de Tavolaro, que toma o aspecto mesológico, ou

seja, a tropicalidade, como uma linha de pensamento fundamental, seria, portanto, algo

natural. Como observou Edson Nery da Fonseca, importante estudioso da obra de

Gilberto Freyre, “o luso-tropicalismo gerou a luso-tropicologia, a luso-tropicologia gerou

a hispano-tropicologia e a hispano-tropicologia gerou a tropicologia”. Nesse sentido,

haveria uma progressão lógica no pensamento de Freyre que convergiria em direção à

tropicologia em cujo percurso está integrada a ideia de hispanidade. O hispano e o

trópico são, portanto, aspectos fundamentais no empreendimento intelectual de Freyre

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

59

de dar contornos claros a uma ampla civilização ibérica nas Américas, e não apenas

mais luso-brasileira, como esboçado em Casa-Grande e Senzala.

Dessa maneira, a hispanidade não desempenharia a função de apenas criar um

espaço geopolítico de afirmação de culturas ibéricas tropicais. Para além disso, ela

permitia pensar que nações como Brasil e Argentina compartilhavam não apenas uma

origem como também um futuro comum, como diz a citação de Freyre com que iniciei

esta seção do trabalho. Ensejava, portanto, contornos em que estariam incluídos, por

exemplo, os indo-hispânicos paraguaios que Freyre elogiara décadas antes. A

integração do luso-brasileiro a um mundo hispânico mais amplo oferecia possibilidades

para um contraste ainda mais agudo com o mundo anglo-saxão e norte-europeu.

O que gostaria de fazer na continuidade deste capítulo é, a partir daquilo que

brevemente expus, mostrar qual hispanidade é reivindicada por Freyre e que feições ela

irá assumir em sua obra. Entendo ser essa abordagem extremamente proveitosa para

aproximar-se da futurologia de Além do apenas moderno, que, como a entendo, está

impregnada de hispanidade30. No texto com que abri esta seção do capítulo, Freyre

afirmava duas coisas importantes. Em primeiro lugar, que Brasil e Portugal faziam parte

de um mundo maior hispânico. Em segundo lugar, que hispanidade não significava

necessariamente espanholidade. O texto, como afirmei, é de 1965 e pode-se perceber a

variação da abordagem ao tema que Gilberto dera nos anos quarenta, após sua viagem

platina, e no início dos anos sessenta, na conferência em Minas Gerais. A concepção de

hispanidade parece tomar densidade ao longo dos anos.

Penso que Katia Gerab Baggio (2010, p.32) perceba bem essa variação do

pensamento freyriano quando aponta que no livro Como e por que sou e não sou

sociólogo, de 1968, “Freyre define-se como um escritor pertencente à tradição ibérica,

mais espanhola que portuguesa”. Há, nesse sentido, uma notável mudança na

concepção de iberismo de Casa-Grande e Senzala que, basicamente, reportava-se

apenas ao mundo português31. Em passagem do livro Tempo morto e outros tempos,

30

Para Freyre (1975, p.151), falar em “civilização hispânica” era referir-se não apenas aos valores de um passado de glória, senão também às possibilidades de um “futuro de aventura hispânica”. Os hispânicos seriam naturalmente uma civilização voltada para o futuro em razão de sua inventividade e capacidade de adaptar-se ao futuro sem perder as referências do seu passado. Essa era, essencialmente, a principal característica da futurologia. 31

Na nota 13 do primeiro capítulo de Casa-Grande e Senzala, Gilberto Freyre afirma que o espanhol é mais “europeu” que o português e que as características de excepcionalidade ibérica a que ele se referia no livro reportavam-se especificamente a Portugal. Diz assim Freyre: “13. Desconhecemos em que elementos se apoia Waldo Frank para escrever: “El portugués es más europeo que el español: posee um linaje semítico más débil, un linaje gótico más fuerte” (“La selva”, em Sur, Buenos Aires, nº 1931).

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

60

Gilberto diz que “os grandes valores hispânicos são evidentemente os espanhois”.

Prossegue o argumento dizendo que a brasileiros e portugueses não basta sua tradição

em língua portuguesa para dar a grandeza que sua cultura poderia ter se acrescida dos

valores universais hispânicos (Freyre, 1975 apud Bastos, 2003, p.11).

Entendo que, em boa medida, essa transição das teses ibéricas freyrianas, de

uma essência mais portuguesa para outra mais espanhola, deva-se a uma progressiva

aproximação do pensamento hispânico de que Gilberto se torna cada vez maior

admirador e do qual passa a se sentir parte. Os “grandes valores hispânicos” citados por

Freyre são, nesse sentido, uma mescla das tradições populares, do sentido de tempo,

da produção artística e literária, dos grandes escritores e pensadores. É a Espanha de

Ramón Lulio, de Miguel de Cervantes, de Francisco de Goya, de Diego Velázquez, de

Baltasar Gracián, de Luis Vives, de Frei Luis de Leon, de San Juan de la Cruz, enfim, de

tantos e tantos nomes que fizeram a grandeza intelectual espanhola (Freyre, 1975 apud

Bastos, 2003, p.11).

Em uma passagem do livro O brasileiro entre os outros hispanos, Freyre afirma

que Fernand Braudel o teria incluído na linhagem de ensaístas hispânicos da qual

fariam parte Unamuno, Ganivet e Ortega y Gasset (Freyre, 1975, p.71). Penso que essa

referência seja emblemática de como, a esse ponto em sua carreira intelectual, Freyre

gostaria de ser visto. Há um momento importante no início do livro Social theory in the

tropics em que Peter Burke e Maria Lucia Pallares-Burke (2008, p.19) descrevem como

no processo de estabilização da imagem que, em geral, se tem a respeito de Freyre

existe uma boa dose de auto-invenção do próprio autor. Seria, portanto, um equívoco

tomar literalmente auto-representações como essa de Gilberto e simplesmente

considerá-las verdadeiras. Nesse sentido, importa menos, portanto, saber se Fernand

Braudel teria dito ou não o que Freyre afirma ter o historiador francês dito do que aquilo

que o autor pernambucano pretendia ao mencionar a afirmação de Braudel32.

Ainda segundo Burke e Pallares-Burke, à medida que se tornava mais velho,

Freyre falava cada vez mais a respeito de si mesmo. Como e por que sou e não sou

Pensamos exatamente o contrário: que o português sendo mais cosmopolita que o espanhol, é entretanto dos dois talvez o menos gótico e o mais semita, o menos europeu e o mais africano: em todo caso o menos definidamente uma coisa ou outra. O mais vago e impreciso, como expressão de caráter continental europeu. O mais extra-europeu. O mais atlântico”. 32

Bastos (2005, p.59) faz referência a essa mesma afirmação de Braudel sobre Freyre. Cito-a textualmente: “Ao discutir seu perfil como escritor, concordando com Fernand Braudel, [Freyre] se define como pertencente à tradição ibérica, mais espanhola do que portuguesa”.

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

61

sociólogo e Tempo morto e outros tempos poderiam ser enquadrados nessa tendência

(Ibid, p.19). Em Além do apenas moderno e em O brasileiro entre os outros hispanos,

Freyre também reiteradamente refere-se a si mesmo, às suas obras, a recepção destas

em círculos acadêmicos estrangeiros e àquilo que outros importantes autores teriam dito

a respeito dele. A citação acerca de Braudel que mencionei enquadrar-se-ia dentro

dessa tendência. Freyre via-se como um escritor da tradição hispânica e mobilizava sua

retórica para confirmá-lo. Como dizem a historiadora brasileira e o historiador britânico,

“a invenção de Freyre incluía sua auto invenção”33. (Ibid, p.19).

Mas o que significava exatamente reivindicar-se como um autor da tradição

hispânica? É o que tentarei demonstrar nas duas próximas seções deste capítulo. Um

dos aspectos mais importantes da revolução biossocial que transformava o mundo

apenas moderno em pós-moderno era, como mostrei no primeiro capítulo, a

revalorização dos saberes humanísticos. Nesse sentido, para Freyre, o futuro

caminhava no sentido de um apagamento daquelas fronteiras estáticas que se criaram

entre ciências e humanidades as quais, desde o triunfo do positivismo, haviam separado

as duas culturas, a humanística e a científica, tornando-as ignorantes uma em relação à

outra (Freyre, 2001, p.118). O ressurgimento dos saberes hispânicos seria fundamental

nesse processo.

“Pois uma das superações atuais, em considerável ala de Estudos do Homem, é a do cientificismo puro pelo humanismo científico. Essa superação permite que se apliquem abordagens imaginativas à realidade humana, tanto no trato do tempo passado como no do tempo futuro, deixando-se de enxergar em quanto seja abordagem desse tipo literatice ou fantasia ou, no mau sentido da expressão, poesia. Daí a valorização que desde Dilthey vem prestigiando Vives; que prestigia os estudos de um Ganivet, de um Unamuno, de um Ortega y Gasset; e que dão valor sociológico aos ensaios de um Laín Entralgo sobre as atitudes tão hispânicas – inclusive tão brasileiras – de espera e esperança” (Freyre, 2001, p.36).

Freyre considerava que a tradição hispânica, representada nesse excerto pelos

nomes de Unamuno, Ortega y Gasset e Ganivet, incorporava o humanismo científico a

que ele se refere. A abordagem desses autores era imaginativa, poética e, pode-se até

mesmo dizer, literária. A sociologia que o autor pernambucano propunha estaria

formada desses elementos também. Nesse sentido, importa saber por que a ciência

entre os hispanos possuía essa conformação específica. Que elementos da civilização

hispânica a tornavam tão distinta a ponto de Freyre reivindicá-la em sua formulação da

ideia de pós-moderno? É o que tentarei mostrar a seguir.

33

“The invention of Freyre included his self-invention” [tradução do autor].

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

62

2.2 O sentido da hispanidade: a civilização hispânica

Nesta seção do capítulo, buscarei mostrar o sentido da ideia de hispanidade em

Gilberto Freyre e a que ele está a se referir quando a mobiliza. Utilizarei, para isso,

algumas ideias do filólogo e historiador espanhol Américo Castro, várias vezes

mencionado por Gilberto em Além do apenas moderno. Talvez o elemento mais

importante dessa aproximação entre Freyre e Castro esteja na concepção de tempo

tríbio – tempo hispânico em sua essência –, conceito mobilizado pelos dois autores. A

forma de o hispânico viver e experimentar o tempo lhe dá características específicas e

diferencia-o do homem moderno, impõe que sua percepção frente à vida seja de outra

natureza. A racionalidade estritamente moderna, que brota do ímpeto em controlar e

planificar o futuro, não pode encontrar solo fértil na alma do homem ibérico, saudoso de

passados e em quem a “espera tende a tornar-se esperança”, como diz Freyre (2001,

p.28).

Penso ter José Guilherme Merquior apreendido de maneira precisa o sentido

desse enquadramento do tempo em Freyre. Diz ele, “Mestre Gilberto quer reviver,

contra a obsessão cronométrica do homem moderno, o sentido ibérico de tempo –

tempo vivencial, existencialíssimo, subjetivo-objetivo; pluritempo-duração (“tempo tríbio”,

diz Gilberto, em que passado, presente e futuro se interpenetram). Tempo hispânico

teorizado por Américo Castro e pelo próprio Gilberto (On the Iberian concept of time), e

visceralmente contrário ao objetivismo cronométrico imposto pela elevação da ascese

intramundana (Max Weber), metódica e fanaticamente laboriosa, a conduta arquetípica

do homem ocidental, na Idade Moderna. Tempovida, em face do estreito utilitarismo do

time is Money”. (Merquior, 2001, p.13)

A reivindicação desse tempo hispânico anti-moderno, tanto por Freyre quanto por

Américo Castro, é fundamental para a definição de fronteiras claras de civilizações

distintas – uma hispânica e outra norte-europeia e anglo-saxã – que, por sua vez,

remetem a processos históricos específicos que não podem ser obliterados em favor de

uma perspectiva linear de tempo34. Nesse sentido, destaca-se para ambos a

singularidade hispânica, cujo impulso vital, distinto daquele das culturas consideradas

essencialmente modernas, não pode ser reduzido apenas a uma reminiscência pré-

moderna, senão que constitui uma forma própria de ser e estar no mundo que não deve

34

Logo no início do primeiro capítulo deste trabalho, referi-me à ideia de Merquior que, ao sintetizar o espírito pós-moderno contido em Além do apenas moderno, dizia que a pós-modernidade, para Freyre, caracteriza-se como momento em que já não mais se esposa a “mitologia profana do progresso linear”.

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

63

ser desprezada. Para Gilberto, essa forma hispânica de estar no mundo é, pelo

contrário, atualíssima, tendo sido exaltada por ele, em Além do apenas moderno, como

um dos traços mais emblemáticos da pós-modernização. O pós-moderno como

recuperação de aspectos do pré-moderno.

Américo Castro, por outro lado, irá enfatizar a vitalidade da civilização hispânica

mesmo frente a momentos obscuros como aquele vivido pelo Ocidente na primeira

metade do século XX, em que as duas grandes guerras colocaram em xeque os valores

sobre os quais a Europa vinha depositando suas esperanças, pelo menos, desde os

dois séculos anteriores. Em seu discurso de investidura como professor de espanhol da

cátedra Emory L. Ford da Universidade de Princeton, cujo título, bastante simbólico, foi

El significado de la civilización hispánica, proferido em 11 de dezembro de 1940, ou

seja, ainda durante o calor dos eventos da Segunda Guerra Mundial, Castro defende o

vigor da cultura hispânica em face de uma cultura ocidental que parecia desmoronar.

“En diversas áreas importantes del pensamiento y de la ética, ciertas ideas sobre la cultura y la vida, incontestadas hasta hace treinta años, han entrado ahora en crisis. Siempre que esto ha ocurrido en la cultura occidental, la civilización hispánica ha mostrado que sus reservas permanecen intactas, que no han sido afectadas seriamente por las oscilaciones entre el progresso y el dolor y la miséria humanas. En estos tiempos sombríos empezamos a ver que cara a cara con armas tangibles y aparentemente irresistibles, las armas del espíritu pueden ser, con su carácter imponderable, tan eficaces o más que las primeras. El armamento y las líneas de defensa son de poca utilidade para aquellos que carecen de uma defensa interior. Sacar a la luz al hombre esencial, completamente y en marcado relieve, era y es la principal preocupación de la civilización hispânica”. (CASTRO, 2004, p.13,14)

Ora, o que está em ênfase aqui é uma qualidade perene da alma hispânica cuja

essência estaria mais bem dotada de armas do espírito do que propriamente da razão.

Estas estão mais suscetíveis às alterações do progresso e da dor, mais efêmeras,

portanto, uma vez que marcadas essencialmente pela necessidade de seus resultados

práticos, objetivos, ou seja, de sua exterioridade. Por outro lado, aquelas, as armas do

espírito, seriam mais duráveis e resistentes, pois não sucumbem frente às adversidades

da vida prática, pelo contrário, fortalecem-se, transformam as penúrias da vida objetiva

em poesia. São, portanto, dependentes apenas da interioridade.

Quero destacar e enfatizar essas ideias de Américo Castro, pois elas nos ajudam

a entender o significado profundo da hispanidade reivindicada por Freyre. Entendo que

no discurso proferido pelo filólogo espanhol, El significado de la civilización hispánica, do

qual retirei o excerto acima, há uma série de elementos que dão os contornos daquilo a

que o autor pernambucano refere-se quando faz alusão a um mundo hispânico. Com a

diferença, é claro, de que Gilberto inclui Brasil e Portugal nesse mundo e, por essa

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

64

razão, hispanidade não significa apenas espanholidade. Ademais, como exaustivamente

tenta demonstrar em O brasileiro entre os outros hispanos, e mesmo muitas vezes em

Além do apenas moderno, nós brasileiros somos hispanos diferentes, pois à nossa

hispanidade agrega-se a mestiçagem do elemento indígena e negro com o europeu e a

tropicalidade, o que nos torna hispanos singulares.

Destaco, nesse sentido, uma citação de Além do apenas moderno em que todos

esses elementos aparecem de forma bastante evidente. Diz Gilberto:

“Somos, os brasileiros, uma gente hispânica sendo também uma gente situada no trópico e localizada na América: duas outras dimensões de espaço-tempo que nos condicionam, além da cultura, o ethos; e que se juntam – inclusive com suas contradições – para dar às preocupações brasileiras com futuros possíveis que se exprimam através de estudos sociológicos desses futuros uma riqueza incomum. Entre os nossos futuros possíveis estão futuros que se ligam principalmente à nossa condição de hispanos, outros principalmente à nossa condição de tropicais, ainda outros, à nossa condição de gente, em grande parte, mestiça, situada no trópico. Somos uma gente situada no espaço e no tempo de três – pelo menos – diferentes maneiras, com preocupações por futuros possíveis em que se refletem predominâncias de apego ora a uma, ora a outra, dessas situações. Pois o nosso tempo é principalmente um tempo tríbio” (Freyre, 2001, p.37).

Há claramente, portanto, para Gilberto, um elemento hispânico que, juntamente

com a mestiçagem e a tropicalidade, caracterizar-nos-ia. Entender em que consiste essa

hispanidade parece-me fundamental, pois ela nos permite pensar de forma mais

abrangente a proposta de Tavaloro que já mencionei, de que a obra de Freyre seja um

intento de desestabilizar a centralidade da experiência moderna dos países centrais,

essencialmente a anglo-saxã. Ademais, dentro desse intento freyriano, deve-se destacar

a forma característica da civilização hispânica de produzir conhecimento, forma essa

mais plástica e humanística em comparação a outra de tipo cientificista e objetivista,

mais própria do racionalismo norte-europeu e anglo-saxão. A influência dos autores

espanhois será, nesse sentido, decisiva para Gilberto aguçar a percepção dessa

diferença. Esse é um elemento fundamental da reivindicação hispânica de Freyre que

retomarei mais a frente, mais especificamente na próxima seção deste capítulo.

E quais seriam as características mais profundas da hispanidade que Freyre

pretende ressaltar para além daquilo que o próprio conceito de tempo tríbio nos permite

deduzir? Entendo que algumas ideias de Américo Castro auxiliam-nos na resposta a

essa pergunta. Irei percorrê-las pelas próximas páginas. Para esse autor, “a alma

humana se expressa por meio das diferentes culturas” (Castro, 2004, p.24). Cada uma

delas, uma vez confrontadas com os problemas da existência, sejam morais ou naturais,

sejam de consciência ou relativos à vivência mais prática, oferecem diferentes tipos de

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

65

soluções que, em última instância, correspondem a atitudes em relação à própria vida.

Nesse sentido, a cultura alemã, por exemplo, poderia ser sintetizada a partir do conceito

de wissenchaft, pois sua existência tem aspirado a enfrentar os problemas da realidade

por meio de respostas metafísicas e científicas. O alemão seria, assim, um espectador,

uma espécie de consciência fora da vida a produzir soluções objetivas e sistemáticas

para seus próprios dilemas. A cultura francesa, por outro lado, representar-se-ia pelo

ideal de clarté. O francês teria dedicado o melhor de seus esforços a fim de “forjar o

instrumento expressivo da língua francesa, através do qual poderia clarificar toda a

confusão da vida humana” (Ibid, p.24). Para Castro, a civilização francesa, pelo menos

desde o século XVII, tem utilizado o pensamento para disciplinar a vida.

E o espanhol? Qual a fórmula, o vocábulo, a expressão que – como wissenchaft

para os alemães e clarté para os franceses – definiria a essência da civilização

espanhola? Para Américo Castro, tal fórmula não existe. E que não haja um vocábulo

que sintetize a postura do espanhol em relação à existência denota o significado mesmo

de sua civilização. Assim, “para el español, vivir es siempre un problema abierto y no

una solución que pueda confinarse en una consigna” (Ibid, p.24). Se fosse possível,

portanto, escutar a voz do milenário gênio espanhol, afirma Américo Castro (Ibid, p.15),

escutá-lo-íamos dizer algo como “Buscad al hombre detrás de la consigna”.

Eis a essência da alma hispânica desnuda, desvelada em sua natureza aberta,

volátil e oscilante. Que tragédia seria para o espanhol ter seu ímpeto em relação à vida

refreado por qualquer tentativa de sistematização, regulação ou metodização da

existência. Por essa razão, segundo Castro (Ibid, p.17), “en España la ciencia, la filosfía

abstracta y la técnica son raras mientras que el sentido moral está siempre presente.

Para su felicidade y desgracia, el hombre hispánico siempre ha confiado en su ego

integral, con lo que hay allí de seguridad y, también, de oscilaciones”.

Para Castro (Ibid, p.16), portanto, o ego espanhol não é o de Descartes, do

cogito, ergo sum. Na Espanha, “a claridade deslumbrante da razão” não teria

encontrado o mesmo espaço que obteve nas sociedades europeias mais racionalistas,

nas quais toda a esfera do “extra-racional” foi deixado às sombras, como aquela parte

do mundo que não era clara, distinguível ou objetivamente compreensível. Assim, o ego

hispânico permanece sendo o ego de Calderón de la Barca, de Miguel de Cervantes, de

Lope de Vega, de Francisco de Quevedo. Um ego que se interessou pela filosofia

apenas quando esta escapou às amarras do racionalismo puro (Ibid, p.17). E a razão

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

66

disso é simplesmente porque “el español no puede aislarse en la abstracción”. “En el

reino de los conceptos”, diz Américo Castro, “el español se siente más aislado que

Robinson Crusoé en su isla”.

Assim, portanto, se o padrão de medida de uma civilização for a atitude

racionalista do século XVIII e o consequente desenvolvimento, que com ela adveio, das

técnicas científicas que orientaram a busca de um mundo ordenado, então não se

encontrará muito valor nas conquistas e feitos da civilização hispânica, pois esta nunca

esteve muito interessada nesses fins racionais de ordenamento do mundo e, por essa

razão, o que há realizado está baseado em outros propósitos e outras preferências.

Seria natural, portanto, diz Castro (Ibid, p.12), que nas sociedades racionalistas que

emergiram na Europa moderna, “de estructura rígida, en las que todo individuo

considera resueltos los problemas primordiales relativos a la intimidad última de la

conciencia, la forma de vida hispánica produzca impressiones desconcertantes, a veces

irritantes e impertinentes”. A alma espanhola, tão adversa às necessidades da vida

prática, emprega o melhor de si naquilo que o racionalista acredita já ter solucionado: os

dilemas de sua “humanidade primária”.

Obviamente, essa postura em relação à vida implicou em muitos problemas para

o hispano. A vida material, por exemplo, tem sido um contínuo penar para ele. Segundo

Castro (Ibid, p.13), “incluso en los momentos de mayor esplendor político y militar,

cuando florecían prodigiosas formas de civilización, la vida cotidiana fue difícil y

problemática para los españoles”. Mesmo durante o apogeu de seu domínio imperial, o

estado espanhol caiu várias vezes em bancarrota. O imperador Carlos V, no século XVI,

teve de adiar o funeral de sua mãe, Joana “a louca”, por falta de recursos. Felipe IV,

“monarca de dois mundos”, rei espanhol do século XVII retratado por Velázquez em

“Las meninas”, teve dificuldades financeiras em certo momento até mesmo para

preparar as refeições diárias em seu palácio real. Assim, diz Américo Castro, é preciso

encontrar o valor e o significado da civilização hispânica mais além de seus logros

materiais.

Esse significado profundo da civilização hispânica estaria, pois, na vitalidade de

seu humanismo. Como diz a longa passagem de Américo Castro que citei no começo

desta seção do trabalho, num momento em que a Europa moderna encontrava-se

exaurida e esgotada face uma guerra cujas consequências não se poderiam, ainda na

época, prever, os valores hispânicos – essencialmente, sua reserva humanística –

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

67

emergiam intactos, não tendo sido afetados pelas oscilações entre o progresso e a dor e

miséria humanas. O pensamento racional moderno estabelecera uma linha histórica na

qual haveria um desenvolvimento natural que conduziria os homens de um estado de

dor e miséria em direção o progresso. A convulsão causada pelas duas guerras na

primeira metade do século XX havia desestabilizado essa certeza. O que Castro está a

dizer é que a alma hispânica sempre soubera que miséria e dor, de um lado, e

progresso, de outro, não são elementos de uma história linear, senão antes de um

processo histórico circular. Por essa razão, suas reservas morais podiam emergir

intactas em meio ao caos do conflito mundial e a desestabilização das certezas da

teleologia da história35.

Assim, pois, diz Castro (2004, p.22), “fuerte o débil, rica o en la pobreza, España

es siempre la misma”. Nesse sentido, o pensamento de Miguel de Unamuno poderia ser

considerado o símbolo por excelência do élan espanhol cujo fim principal, “ha sido

siempre el hombre, como realidad desnuda y absoluta, y de forma muy secundaria, los

productos con los que el hombre intenta substituir la conciencia de su existência” (Ibid,

p.20). Com isso em mente, o mesmo Américo Castro (ibid, p.16) chama Unamuno de

“compendio y símbolo de la naturaleza española” e “el español por antonomasia”. Mas

em que sentido seria o filósofo e professor da Universidade de Salamanca uma

expressão dos valores espanhois mais profundos? Explica-o bem o professor António

Lopez Molina (2006, p.23) ao dizer que para Unamuno “la verdadera filosofía es

necesario buscarla en lo más profundo del espíritu humano, como un modo de

comprender el mundo y la vida, y cuyo origen tiene que estar en un sentimiento respecto

a la vida misma, al que Unamuno denomina ‘sentimiento trágico de la vida’ (...)

Unamuno aboga por una definición de hombre como animal sentimental, en vez de

animal racional”.

A filosofia de Unamuno é, portanto, um constante embate entre razão e emoção.

Nesse sentido, seu pensamento não pode ser descolado de sua própria trajetória de

vida, marcada profundamente por sua formação inicial católico-cristã, sua perda da fé e

posterior reencontro com a crença a partir de, por um lado, uma matriz protestante de

pensamento fundada em Lutero e Kierkegaard e, por outro, uma ênfase no

espiritualismo de Santo Agostinho e dos místicos espanhóis, como San Juan de la Cruz

35

Perceba-se que essa perspectiva da História antes como evento circular do que linear se encontra na essência da futurologia freyriana. Para Gilberto, como tentei mostrar no primeiro capítulo, o futuro não pode ser mera utopia, pois não se pode esperar que o tempo porvir venha a solucionar todas as mazelas do presente e do passado.

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

68

e Santa Teresa de Jesús, em detrimento da teologia escolástica (Molina, 2009).

Unamuno é, assim, um artista cuja filosofia não pode ser separada da vida mesmo, de

sua trajetória, de suas emoções conflitivas, de seu eu marcado por aquilo que Américo

Castro assinalou ser tão típico do espanhol: os dilemas de sua humanidade primária.

Há, portanto, uma enorme diferença entre um filósofo espanhol e um filósofo

alemão. Se este, como afirmei anteriormente, é uma espécie de consciência fora da

vida, objetivo e sistemático, aquele, o hispânico, “forma parte como o grande ator no

espetáculo filosófico do qual também é o autor” (Castro, 2004, p.20). As nivolas36 de

Unamuno são um exemplo magistral dessa fusão entre autor e ator. Numa delas,

Niebla, Unamuno chega a ser personagem da história, que se desenrola num misto

turvo, como o próprio nome sugere, de realidade e ficção. As linhas entre objetividade e

subjetividade são, pois, muito menos nítidas no pensamento espanhol. Assim, é

possível dizer que “la vida, el pensamiento, la creacción artística, vienen a ser para el

español la puesta en enscena y la representación integral de su existencia misma” (Ibid,

p.20). Esses traços tão marcantes na filosofia de Unamuno podem ser também

encontrados mesmo na obra do filósofo espanhol moderno, rigoroso e racionalista por

excelência que foi Ortega y Gasset.

Costuma-se abordar Unamuno e Ortega y Gasset como os dois nomes do

pensamento espanhol contemporâneo para os quais todos os temas convergem .

Ao enfatizar-se a importância de ambos costuma-se também se acentuar suas

diferenças. Grosso modo, Ortega simbolizaria o ideal de uma Europa moderna e

racional. Sua postura não apenas filosófica, mas também de intelectual militante foi de

enfatizar a necessidade de Espanha modernizar-se. Unamuno, pelo contrário, estava

ligado aos ideais de uma Espanha mais antiga, arcaica poder-se-ia dizer. Em sua obra,

há um elogio das tradições populares espanholas mais profundas. Algo como o elogio

da rusticidade do português que há em Freyre. Se a obra de ambos esses grandes

espanhois pode ser pensada como uma resposta aos problemas mais profundos pelos

quais atravessava a Espanha da transição do século XIX para o XX, essencialmente

aqueles que remetiam ao subdesenvolvimento, o atraso em relação aos países

industrializados ocidentais e ao nacionalismo, os caminhos para os quais apontam

poderiam ser resumidos como, de um lado, amoldar-se ao moderno, e de outro,

sustentar suas tradições.

36

Nivola foi o neologismo criado por Unamuno para se referir às suas obras de ficção literária a fim de distanciar-se do termo novela em espanhol.

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

69

Fiz essa pequena digressão para acentuar o que afirmara antes que, mesmo em

Ortega y Gasset, um símbolo de filósofo moderno em solo espanhol, é possível

encontrar aqueles traços hispânicos profundos que, de certa maneira, borravam as

fronteiras entre o objetivo e subjetivo na produção do conhecimento. Para Américo

Castro, mesmo no Ortega de formação alemã37, os traços do autor artista seriam

evidentes. Nele, a filosofia ganhava em plasticidade por sua escrita de rara beleza que

carregava todo o anseio de seu eu empírico. Nesse sentido, a filosofia de Ortega não é

totalmente objetiva e imparcial. Ela seria como a obra-prima de Velázquez, Las

meninas, na qual o autor se insere na própria criação. Algo assim, para Américo Castro,

só pode ter lugar na Espanha.

Freyre, influenciado por Castro, não deixa de perceber e enfatizar essa

característica hispânica. Em Além do apenas moderno, ele destaca o elemento

autobiográfico presente no pensamento ibérico. Diz ele que

“em seu conjunto, os estudos realizados por espanhois e portugueses nesses três séculos [XVI, XVII e XVIII], formam uma sistemática de crítica e de interpretação da personalidade humana (...) na qual (...) o elemento autobiográfico se junta ao antropológico, não por excesso de vaidade ou de narcisismo por parte do analista, mas por ser essa fusão essencial à sua compreensão do processo não apenas analítico, porém criador de interpretação, pelo artista ou pelo místico ou pelo cientista do Homem o mais possível situado no seu ambiente tanto quanto no tempo. Um tempo inseparável do interpretado como vivido pelo mesmo intérprete. Daí Velásquez muito hispanicamente ter se incluído a si mesmo, ao seu cavalete, a sua palheta, a sua ação mesma de pintar um quadro particularíssimo, em Las meninas, projetando-se em pessoa sobre o tempo futuro

através de uma das suas criações” 38

.

Perceba-se que nesse excerto Freyre está enfatizando exatamente a mesma

qualidade do pensamento hispânico que Castro destacara. Posteriormente, no mesmo

trecho de Além do apenas moderno, Gilberto irá mencionar Américo Castro diretamente

a fim de ressaltar que essa intrusão do autor em sua obra no pensamento hispânico tem

relação direta com a influência muçulmana sufista de autobiografismo, que teria se

fixado na alma hispana em razão dos oito séculos de presença moura na península

37

A influência mais marcante do pensamento de Ortega y Gasset é, sem dúvida, a filosofia alemã. Foram em seus anos de estudo em Marburgo que ele “entrou em possessão de sua filosofia” (Villacañas, 2004, p.14,15). “Ortega reflexionou sobre a situação de Espanha, dialogou com seus melhores contemporâneos, esforçou-se com a filosofia europeia mais relevante, a que melhor conhece e crê apropriada para nós, a alemã” (Villacañas, 2004, p.18). Para Américo Castro (2004, p.18), “Ortega é a expressão rigorosa da filosofia existencial” na Espanha. “Iniciou sua carreira como neokantino, uma tendência que, como toda tendência puramente intelectualista, estava fadada a ser estéril em solo espanhol” e, posteriormente, “descobriria horizontes mais amplos na fenomenologia de Husserl”. Nesse sentido, apesar de enfatizar a sólida formação alemã de Ortega, Castro apontará para aqueles elementos mais plásticos de natureza hispânica que, mesmo no filósofo sistemático e racionalista, encontrarão algum espaço para se enraizar. 38

Em O brasileiro entre os outros hispanos, Freyre irá dedicar um capítulo todo para falar desse elemento autobiográfico no pensamento hispânico. Perceba-se, como argumentei antes, a semelhança entre esse livro e Além do apenas moderno, o que atesta ainda mais minha sugestão de que ambas as obras devam ser analisadas como um todo para se ter delas uma compreensão mais completa e profunda.

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

70

ibérica. Deve-se destacar que o filólogo e historiador espanhol é, reconhecidamente, um

dos mais importantes defensores da tese de que a essência mais íntima da alma

espanhola reside em sua história de fusão entre cristãos, judeus e muçulmanos39. Tese

essa que teve profundas implicações no pensamento freyriano, que irá associar a

mestiçagem ocorrida em solo brasileiro a uma forma de continuação daquela que,

anteriormente, já teria se processado na península.

Em relação à influência muçulmana entre os ibéricos, Freyre irá aprofundar a

reflexão. Julgo ser importante reproduzir na íntegra uma passagem de Além do apenas

moderno sobre esse tema, da fusão de culturas processada na península ibérica, pois a

discussão que se dá nela terá uma repercussão fundamental naquilo que se seguirá

neste trabalho. Diz o autor pernambucano que

“por ter sido a Península Ibérica ponto de encontro de saberes orientais com os ocidentais, com os orientais alcançando uma predominância que, a certa altura, vencido tecnologicamente o Oriente pelo Ocidente, tornou a antropologia e outros estudos, na mesma Península, arcaicos, em face dos estudos científicos desenvolvidos na Europa capitalista, industrial e protestante. O que resultou da ênfase dada, durante séculos, nos saberes orientais, a abordagens psicológicas, intuitivas e até – reconheçamos – místicas, alheias a técnicas racionais e de mensuração das quais, entretanto, se abusaria nas ciências do Homem, ocidentais de modo tal que se verificariam movimentos de retificação desses abusos. Essas retificações vêm encontrar alguns dos estudos hispânicos sobre o Homem, realizados dentro de constante hispânicas de orientação e de método desprezados por algum tempo como arcaicos, em estado, ao contrário, de flagrante atualidade e, mais do que isto, de futuralidade: capazes de concorrerem para estudos, no mesmo setor, que se projetem sobre possíveis futuros, sendo, nessas projeções, humanísticos, sem deixarem de ser científicos”. (Freyre, 2001, p.35,36)

Há vários elementos dessa passagem que merecem destaque. Em primeiro lugar,

Freyre afirma que, em dado momento da transição para a idade moderna, o ocidente

racional, capitalista e protestante passou a considerar arcaico o pensamento hispânico,

de tendências mais inventivas, místicas até, que fora marcado por seu lugar de ponto de

encontro com os saberes orientais. Esse arcaísmo está associado a tudo aquilo que vim

discutindo a partir das ideias de Américo Castro – a preocupação hispânica com a

humanidade primária, tema já supostamente resolvido pelo racionalismo. Em segundo

lugar, Gilberto percebe um movimento de renovação do pensamento contemporâneo

39

Ladero Quesada (2011, p.14), um dos principais medievalistas espanhóis, cita Américo Castro como referência para a tese – que se sustenta em uma interpretação particular da Reconquista medieval – de que mais do que enfrentamento radical de cristãos “reconquistadores” contra muçulmanos alheios à verdadeira substância histórica de Espanha, teria havido simbiose cultural, à qual se acrescentaram os judeus, e de tal simbiose nasceu o ser histórico de Espanha e suas peculiaridades mais duradouras, em que pese a ruptura imposta pelo triunfo da intolerância na época moderna. Essa tese de Castro apareceu pela primeira vez em 1948 em seu livro chamado España en su historia. Cristianos, moros y judíos. Posteriormente, o livro foi reeditado, já bastante ampliado, tornando-se uma obra praticamente nova, sob o nome La realidad histórica de España. Este último livro é citado várias vezes por Freyre em Além do apenas moderno.

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

71

que passa a revalidar esses outrora arcaicos estudos hispânicos do Homem. Como

tentei mostrar no capítulo anterior, o pós-moderno é justamente esse momento de

mudança, no qual os saberes supostamente “pré-modernos” podem ser recuperados em

toda sua vitalidade. Esse talvez seja o elemento de recuperação da tradição mais

importante da proposta freyriana em Além do apenas moderno. A sociologia futurológica

seria, portanto, a recuperação de uma tendência de pensamento mais humanística que,

ressalte-se, não deixa de ser científica.

Gostaria de recuperar novamente aquela proposta de Sérgio Tavolaro de que

haveria na obra de Freyre uma tentativa de desestabilizar a centralidade da experiência

moderna dos países modelares da modernidade, especialmente a anglo-saxã. Penso

agora já ter acrescentado elementos que me permitem aprofundar essa reflexão. A

ênfase na existência de um amplo mundo hispânico – que no Brasil viu suas tendências

serem realçadas a partir da integração do elemento negro e indígena também, à sua

própria maneira, anti-modernos – que se contrapõe a outro anglo-saxão e norte-europeu

tem como finalidade refutar uma filosofia da História moderna que se empenhou em

integrar todos os espaços e temporalidades existentes dentro de uma mesma linha de

continuidade. O positivismo do século XIX seria, nesse sentido, a corrente mais

emblemática dessa concepção de História como um contínuo progresso cujo sentido

evolutivo de direção era dado pelas sociedades norte-europeias e anglo-saxãs. Essas

sociedades encontrar-se-iam no final da linha evolutiva como o destino último para o

qual todas as outras, necessariamente, rumariam.

Américo Castro (2004, p.14) ao abordar essa filosofia da História chamou-a de “el

mito del progreso linear” e acrescentou que já não se poderia fazer mais do que “sonreír

al recordar que el siglo XIX intentó hacer de la ciencia una religión y creyó que el

progreso era el resultado de um mecanismo social que, una vez en marcha, no se

dentendría jamás”. Ademais, o filólogo espanhol percebe que, a partir dessa perspectiva

histórica, os valores hispânicos sofreram uma expressiva desvalorização, uma vez que

não estariam baseados no princípio racionalista, de que tudo que escapa à razão e à

conceituação não existe, sustentador das sociedades de progresso infinito. Os

hispânicos, como tentei demostrar aqui, estariam mais preocupados com o que

escondiam as sombras que a luz da razão não podia iluminar.

Quando Freyre reivindica esses valores hispanos, portanto, o que faz é procurar

jogar luz à singularidade do processo histórico das sociedades hispânicas e, por

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

72

consequência, também do brasileiro – por serem ambas um “conjunto indissociável”

(Bastos, 2005, p.10) – que não poderia ser subsumido a um suposto percurso histórico

universal único. Dessa forma, Freyre poderia contestar o “desvio” da modernidade

brasileira e afirmar um percurso próprio, distinto daquele dos países centrais que

forneciam a base para se pensar uma história universal única que progredia em direção

à modernidade. Para Tavolaro, no entanto, Freyre falha nesse seu intento. Para este

sociólogo, ao ressaltar a singularidade brasileira, Freyre se apoiaria em “referências

cognitivas” que, na verdade, acabavam por reafirmar o estigma de desvio do percurso

brasileiro.

Entre os elementos principais utilizados por Freyre para caracterizar a

singularidade do processo histórico brasileiro estariam a ausência de um efetivo

“desencantamento do mundo” e a relação “porosa e simbiótica” estabelecida com o

trópico. No Brasil, predominou a persistência de uma religiosidade híbrida que

incorporava elementos de um catolicismo de tipo mágico e místico, do fetichismo das

“coloridas” religiões africanas e do animismo das religiões autóctones (Tavolaro, 2013,

p.312). Ademais, a relação do homem com a natureza tropical era particular. “Tratar-se-

ia [o trópico] não só de um ambiente diverso do europeu (mais intenso, mais colorido,

mais vibrante, e, de certa forma, até mesmo mais hostil e inóspito a uma vida

regrada/sistemática), como também capaz de se traduzir em símbolos, padrões de

comportamento, valores diversos (os valores tropicais) e referências estéticas distintas

das europeias” (Ibid, p. 313).

A ênfase de Freyre nesses dois elementos, na opinião de Tavolaro, acabava por

reafirmar o “desvio” da modernidade brasileira, pois seu percurso histórico específico

estaria referendado em qualidades que o discurso sociológico da modernidade apontava

como justamente aquelas que configuram o mundo arcaico e pré-moderno, que

precisariam ser superadas para que se pudesse alcançar a modernidade. Para que o

Brasil fosse efetivamente uma sociedade moderna, teria de passar, portanto, pelo

desencantamento de sua religião mágica híbrida e por um distanciamento de sua

relação íntima com a natureza, afinal as qualidades do mundo moderno eram

precisamente a racionalização e a “autonomia em relação ao mundo natural” (Ibid,

p.313).

O discurso sociológico da modernidade operaria, segundo Tavolaro (2005, p.6),

dentro de uma episteme que “demarca o terreno cognitivo de um certo discurso da

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

73

modernidade que veio a se tornar hegemônico na produção sociológica internacional”.

Nesse discurso, as sociedades modernas centrais são aquelas que cumprem três pré-

requisitos: a) diferenciação e complexificação social; b) secularização; e c) separação

entre público e privado. (Tavolaro, 2005, p.11). Para esse sociólogo, Freyre acaba por

operar dentro desse “terreno cognitivo”, pois, a partir das nossas características que o

autor pernambucano enfatiza, nossa “condição moderna não seria outras senão uma

espécie de desvio em relação às ditas sociedades centrais da modernidade” (Ibid, p.11).

Penso que seja possível dizer, no entanto, que em Além do apenas moderno,

Freyre objetive justamente desestabilizar a centralidade desse discurso sociológico da

modernidade e não apenas enfatizar o percurso histórico singular brasileiro. Nesse livro,

Gilberto defende que não importa mais “ser apenas moderno”. É preciso ser pós-

moderno num sentido que transcenda a mera e efêmera modernidade. Não se trata

mais aqui de um Freyre que busque afirmar a modernidade tropical brasileira. Já

estamos diante de um autor que procura iluminar as qualidades pós-modernas não

apenas do Brasil, mas de todos os hispânicos. Nosso misticismo e nossa relação

simbiótica com a natureza seriam, nesse sentido, elementos de continuidade em nosso

percurso histórico que podem ser agora repensados como valor e não mais como

elementos que, tomados desde uma perspectiva moderna meramente racionalista,

objetivista e materialista, tornam-se símbolos de falta ou ausência. A sociologia

ecológica de Freyre poderia servir como exemplo dessa sua tentativa de subverter o

discurso sociológico da modernidade. Sua proposta tenta pensar a relação homem e

natureza “sem pretender que o tipo de vida adequado a um ambiente seja imposto

imperialmente a outro” (Freyre, 2001, p.101). Não se trata, portanto, de tomar como

base a relação do homem separada com o seu meio sustentada pela episteme

moderna. É preciso, no caso do Brasil, uma integração entre homem e trópico. É o que

a tropicologia tenta pensar. O próprio Tavolaro aponta que as discussões de Freyre

sobre as noções de tropicologia e lusotropicologia seriam sinais “indisfarçáveis” de sua

sensibilidade em relação à “geopolítica epistemológica que circunscrevia as ciências

sócias de sua época” (Tavolaro, 2013, p.308).

Ademais, a recuperação de uma tradição hispânica de pensamento seria

fundamental nesse intento freyriano. A ciência hispânica do homem operaria dentro de

outro referencial cognitivo, ou seja, de outra episteme. Razão e sentimento, como tentei

demonstrar, não estavam separados nessa tradição de pensamento, o que implicava,

por exemplo, em outro enquadramento do tema da secularização. O fato de que Freyre

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

74

tome como referencial teórico um autor como Unamuno, que, como mostrei, pensava a

filosofia mais como sentimento do que razão, talvez seja bastante indicativo das

posições epistêmicas do autor pernambucano. Por isso, o que vemos em Além do

apenas moderno é tanto uma ênfase na singularidade histórica hispânica e,

consequentemente, brasileira, quanto uma tentativa de contestar o discurso sociológico

da modernidade tomando outras referências para pensar o mundo social. Freyre chega

a dizer que os estudos sociológicos devem se reaproximar “daqueles inquéritos

antropológicos que os espanhóis realizavam entre as gentes nativas da América

tropical, em dias remotos” (Freyre, 2001, p.38). Afirma também que a “crítica da vida” de

Baltasar Gracián, no século XVII, poderia ser pensada como “ciência quase moderna”;

diz ainda que, em sua interpretação antropológica do homem, Juan Luis Vives teria se

antecipado a antropólogos e sociólogos modernos (Ibid, p.41). Penso que todos esses

esforços de Freyre em iluminar a importância da tradição hispânica de pensamento

devem ser interpretados como uma tentativa de transcender o terreno cognitivo

demarcado pela episteme dominante daquele discurso sociológico da modernidade que

Tavolaro descreve.

Nesse sentido, penso ser bastante profícuo pensar a proposta de Freyre em Além

do apenas moderno, de uma futurologia sociológica, como uma espécie de arielismo.

Em sua conhecida obra Ariel, José Enrique Godó leva a fundo o latinoamericanismo40

ao apresentá-lo, em ensaio cujas repercussões sobre o pensamento latino-americano

do século XX seriam imensas, a partir de um enquadramento de identidade cultural que

valorizava sua unidade e conjunto dentro de uma matriz greco-latina, sobretudo a

hispânica, que se opunha ao utilitarismo anglo-saxão. O Ariel de Rodó simbolizaria a

profundidade e espiritualidade da cultura da América Latina. Sua identidade se

construiria a partir de uma fusão dos ideais de beleza da cultura greco-latina e de

caridade da cultura cristã. A ele, contrapunha-se Caliban, símbolo do utilitarismo

materialista anglo-saxão e da avassaladora presença estadunidense no continente

americano que ameaçava colonizar o espírito latino. Por fim, triunfaria Ariel, sem, no

entanto, consagrar-se uma vitória definitiva, com o que Rodó convocava especialmente

40

Ao abordar latinoamericanismo reporto-me àquela tradição de pensamento cujo início remete ao Facundo de Sarmiento, escrito em 1845, obra que teria iniciado o ensaísmo latino-americano. Sobre essa tradição, afirmou Antonio Candido (1995, p.12) em seu conhecido Significado de raízes do Brasil: “No pensamento latino-americano, a reflexão sobre a realidade social foi marcada, desde Sarmiento, pelo senso dos contrastes e mesmo dos contrários – apresentados como contradições antagônicas em função das quais se ordena a história dos homens e das instituições”.

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

75

os jovens latino-americanos a manter o espírito de luta e de compromisso com o futuro

da América Latina41.

Entendo que há no Além do apenas moderno de Freyre esse mesmo espírito que

animou o Ariel de Rodó a pensar num futuro em que os valores profundos do

humanismo hispânico triunfariam sobre o materialismo estreito dos anglo-saxões, a

quem Gilberto chama de apenas modernos42. Esse recurso comparativo permite fazer

uma série de aproximações: a ideia do ócio que dignifica o indivíduo frente à vida

materialista, os valores do humanismo clássico transmitidos por meio da herança ibérica

que permitiriam superar o utilitarismo moderno, a utilização dos contrastes para marcar

identidades opostas e, principalmente, a tentativa de pensar outro referencial cognitivo

que não aqueles da ciência racional moderna são alguns dos pontos de contato entre

Além do apenas moderno e o Ariel de Rodó. Como diz Belén Castro (2009, p.11), “Rodó

assume o risco de pensar no turbilhão, em meio à vertigem da aceleração: é um

moderno que sem renunciar a alguns valores tradicionais, atua a uma só vez como

agente condutor de novos processos e como crítico dos mesmos”. Penso que a figura

do moderno que não renuncia certos valores tradicionais possa também descrever

Freyre, para quem o tempo-ócio dos hispanos – tempo-saudade, tempo-nostalgia,

tempo-existencial – restauraria no futuro pós-moderno a relação meramente utilitária

com o tempo que havia se tornado o padrão na vida “apenas moderna”. O arcaico, o

pré-moderno subverte o apenas moderno para se tornar pós-moderno. Era o que já

estaria em curso com a revolução biossocial que expliquei no capítulo anterior.

Antes, no entanto, de avançar mais nessa ideia de um arielismo presente na obra

Além do apenas moderno, o que farei no próximo capítulo, quando retomarei e

aprofundarei a relação entre hispanidade e futurologia, sendo a futurologia a concepção

que permite Freyre atuar da mesma forma que Rodó, como um intelectual que pensa os

novos processos em curso e os critica, julgo ser importante enfatizar um último aspecto

da noção de hispanidade em Freyre. Trata-se da influência que os autores espanhois

tiveram na conformação dessa ideia. Com isso, cobrirei os elementos mais importantes

do significado profundo a que o termo hispano remete na obra de Freyre. Intelectuais

41

É preciso ressaltar aqui que existe uma discussão acerca da significação de Caliban na obra de Rodó. Caliban não seria uma metáfora apenas dos Estados Unidos. Belén Castro (2009, p.77) ressalta a existência de “dois Calibans”: “el ‘Caliban de afuera’ (el intervencionismo y el materialismo de Estados Unidos) y el ‘Caliban de adentro’, el de los factores endémicos que impiden la causa regeneracionista inspirada a los nuevos intelectuales por Ariel. Porque Caliban también representa vários factores de la barbárie ‘de adentro’ que imposibilitan su proyecto cultural”. 42

Para o Freyre de Além do apenas moderno, os apenas modernos também englobam os norte-europeus, que muitas vezes são chamados no livro de “nórdicos”.

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

76

espanhois do passado e do presente contribuíram decisivamente para moldar a

percepção do que o autor pernambucano viria chamar de “ciência hispânica do homem”.

2.3 A hispanidade como influência: os autores espanhois

Elide Rugai Bastos (1998; 2003) divide a obra de Freyre em três momentos ao

tomar como critério a influência de autores espanhóis sobre o sociólogo pernambucano.

A terceira fase, constituída pelos trabalhos pós-1945, seria aquela na qual a influência

hispânica não apenas se torna mais visível como os créditos a ela passam a ser

explicitamente reconhecidos. Uma comparação entre o conteúdo do iberismo presente

em Casa Grande e Senzala e o vigente em Além do apenas moderno poderia ilustrar

bem essa transição da obra freyriana. Se em seu ensaio mais famoso, as teses ibéricas

reportam-se, sobretudo, às qualidades do colonizador português, em Além do apenas

moderno, o iberismo já é sinônimo de hispanidade e passa a englobar efetivamente a

totalidade do ibérico, espanhol e português, com uma proeminência, inclusive, daquele

sobre este.

Ademais de questões geopolíticas e outras que já abordei aqui, penso que o

progressivo reconhecimento e elucidação da influência de autores espanhois, mais do

que outros motivos, mudavam sensivelmente os contornos do iberismo de Gilberto, que

se expandia, assim, para abrigar de forma mais nítida os espanhóis e a tradição

hispânica. O seu conteúdo, no entanto, permaneceria basicamente o mesmo desde

Casa-Grande e Senzala. O não europeísmo da sociedade ibérica, a ausência de uma

racionalidade tipicamente burguesa, o caráter conciliador por meio do qual predominava

a acomodação à ruptura são traços das teses ibéricas mobilizados para destacar

características da formação social brasileira que permanecem. Acrescente-se a esses

temas que compõem o núcleo central do iberismo freyriano, o elogio que o autor

pernambucano faz da tradição artística, filosófica e literária hispânica, traço que se torna

mais claro a partir do momento em que Freyre passa a explicitar sua dívida intelectual

para com o pensamento espanhol.

A ênfase desta seção, portanto, será nas dívidas intelectuais de Freyre para com

os autores espanhois. O que gostaria de realçar aqui, no entanto, é menos como ideias

e conceitos de determinados escritores foram apropriados e utilizados pelo autor

pernambucano, ainda que esse aspecto seja extremamente importante, e mais o caráter

de conjunto de pensamento que a obra dos hispanos conforma e do qual, acrescente-

se, o autor pernambucano passa cada vez mais a sentir-se parte. A partir dos anos

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

77

sessenta tornam-se mais comuns afirmações de Freyre autodeclarando-se um escritor

hispânico. Isso aparece em Como e por que sou e não sou sociólogo, de 1968, e mais

explicitamente em O brasileiro entre os outros hispanos, de 1975.

Não se trata, em hipótese alguma, de utilizar tal argumento a fim de desvalorizar

outras influências sobre a obra de Freyre, mesmo porque fazê-lo implicaria em perder

de vista aquilo que Peter Burke (2008, p.20) menciona de que Gilberto era uma “esponja

intelectual”, “um leitor voraz com uma infinidade de interesses”, capaz de absorver

informações das mais variadas fontes e tornar ideias de outros autores como parte de si

mesmo. O inegável ecletismo do autor pernambucano já foi objeto de vários estudos e

mencioná-los todos aqui seria um desvio desnecessário de meu objetivo principal. Entre

esses estudos, é destacável o trabalho da historiadora Maria Lúcia Pallares-Burke, já

citado no primeiro capítulo, Um vitoriano nos trópicos, em que a autora analisa os anos

de formação do jovem Gilberto e a influência decisiva que o mundo anglo-saxão teve

nele, especialmente a Inglaterra.

Meu objetivo, no entanto, é enfatizar a influência hispânica em Freyre e, por essa

razão, quero retomar alguns autores que já mencionei neste trabalho a fim de

aprofundar o argumento que venho perseguindo de que na reivindicação de Freyre, em

Além do apenas moderno, de dois modelos civilizacionais distintos, o hispano e o anglo-

saxão ou norte-europeu, há uma ênfase fundamental nas diferentes formas de produzir

conhecimento de cada uma dessas tradições. Os hispânicos, mais intuitivos,

autobiográficos e subjetivos, se contrastados à rigidez objetiva e racionalista norte-

europeia ou anglo-saxã, teriam, ao longo de sua história, produzido uma “ciência

hispânica” menos voltada a operacionalizar a vida senão a criticá-la. Nesse sentido, dois

elementos dessa ciência seriam fundamentais e constitutivos: o elemento

autobiográfico, já que a crítica da vida se faz desde um ponto de vista específico, aquele

do autor; e o elemento compreensivo e interpretativo, cujo fim não seria chegar “a

verdade”, mas a uma das possíveis verdades.

Os autores que irei abordar aqui, fundamentalmente Miguel de Unamuno, Ortega

y Gasset e Ángel Ganivet, seriam na opinião de Freyre, atualizadores dessa forma de

conhecer e afrontar o mundo. Esses autores são, reconhecidamente, aqueles que mais

influência tiveram na obra de Freyre (Bastos, 2003; Baggio, 2010; Pallares-Burke, 2005).

No entanto, em Além do apenas moderno, há uma profusão de citações a outros

autores espanhois contemporâneos. Aparecem, ainda, Américo Castro, a respeito de

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

78

quem já falei neste trabalho, Laín Entralgo, Julián Marias, Gregorio Marañon, Menendez

y Pelayo e outros. Todos eles, à sua própria maneira, estiveram envolvidos com o

debate acerca do nacionalismo espanhol chamado “Ser de Espanha” ou “problema de

Espanha”, que, desde meados ao final do século XIX, ocupou o centro de todas as

reflexões intelectuais espanholas. O debate oscilava, basicamente, entre dois polos, a

saber: hispanismo e europeísmo.

Ainda no século XIX, o debate que estabelece essa discussão do nacionalismo

espanhol e assenta suas bases acontece entre duas tendências chamadas de

regeneracionismo e casticismo. Se os dois polos da discussão serão hispanismo e

europeísmo, então o regeneracionismo irá sustentar a necessidade de europeização

enquanto o casticismo, de preservar-se a hispanidade. O termo regeneracionismo toma

seu significado de regeneração, ou seja, da ideia de que era preciso “regenerar”

Espanha. Como nos dá a saber José Luis Abellán (1999, p.19), “desde que em 1875 se

implantara a Restauração borbônica, a preocupação pela regeneração de Espanha se

impõe em todo o país, e isso ocorre até o ponto de que o regeneracionismo se converte

em movimento a que todos os intelectuais do momento são devedores”. Veremos que

tanto Unamuno e Ganivet, quanto Ortega y Gasset serão devedores, em alguma

medida, dessa tradição de pensamento.

De maneira geral, os regeneracionistas sustentavam a necessidade de

europeização, enfatizavam a situação de atraso em que se encontrava Espanha, o que

implicava na perda de contato com todas as mudanças políticas que ocorriam na

Europa, que se tornava cada vez mais liberal e democrática, e apontavam que a

regeneração do país passaria por uma adaptação a essas realidades europeias (Bastos,

2003, p. 23). Joaquín Costa foi a figura mais emblemática dessa corrente. Seu livro

Oligarquia e caciquismo é, de certa forma, ilustrativo dos ideais que norteavam o

regeneracionismo. Romper com a política do caciquismo seria uma das formas para se

superar o atraso espanhol (Ibid, p.23).

O casticismo, que pode ser pensado nesse momento como tendência contrária

ao regeneracionismo, não é, no entanto, uma corrente de pensamento que, como sua

antagonista, tenha surgido apenas no século XIX. A ideia do castiço espanhol remete,

em um primeiro momento, ao século XVIII, como tendência de reação aos afrancesados

e às ideias ilustradas e, mais profundamente, aos estatutos de pureza de sangue da

Espanha pós-reconquista. O casticismo refere-se, nesse sentido, à ideia de uma

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

79

Espanha pura e tradicional, com sua identidade mais profunda relacionada com o

catolicismo. No século XIX, essa tendência encontrou um importante referente em

Marcelino Menéndez y Pelayo, filólogo e crítico literário de enorme erudição, diretor da

Biblioteca Nacional de Espanha até sua morte e que escreveu entre 1880 e 1882, em

três volumes, a obra Historia de los heterodoxos españoles. Nessa obra particularmente,

Menéndez Pelayo percorre a história espanhola fazendo uma equação de total

identidade entre catolicismo e espanholidade. A partir desse referente, analisa outros

grupos e movimentos que se constituiriam como espanhois heterodoxos, ou seja,

aqueles cuja identidade seria oposta à ortodoxia católica. Estamos aqui em um polo

completamente oposto às teses de Américo Castro de uma Espanha híbrida entre

cristãos, judeus e muçulmanos.

Os acontecimentos da última década do século XIX irão fazer com que o

regeneracionismo se imponha, ainda que, como tendência profunda espanhola,

especialmente ligada aos setores mais reacionários, não se possa dizer que o

casticismo se dissipe completamente. Um incidente em especial irá condicionar todo o

pensamento que emergirá na transição do século XIX para o XX, a guerra hispano-

americana de 1898 que, como resultado, fez com que a Espanha perdesse suas

possessões coloniais de Cuba, Filipinas e Porto Rico, o que ficou conhecido na

historiografia como “o desastre de 1898”. O desastre teve implicações profundas na

alma espanhola de então e desde aí é preciso posicionar todo o debate intelectual que

surgirá envolvendo o nacionalismo, do qual Unamuno, Ganivet e Ortega y Gasset serão

figuras proeminentes.

O desastre também servirá de referente para o nome da geração de intelectuais

que irá atingir seu período de maturidade nos últimos anos do século XIX e logo no

início do XX. A chamada Geração de 98, que terá em Unamuno e Ganivet seus

referentes, apoiar-se-á na tragédia para desenvolver um “pessimismo construtivo”

(Bastos, 2003, p.34) extremamente profícuo que irá inventar a nação espanhola. Nesse

sentido, o ensaio Idearium español de Ángel Ganivet, que tanta influencia teve sobre

Freyre43, irá se converter, em razão da importância que a ele deram os intelectuais que

compõe o núcleo duro dessa geração, no texto clássico e fundante do nacionalismo

espanhol (Abellán, 1999, p.15).

43

Sobre essa influência, ver Bastos (2003), em que há uma seção inteira de um capítulo intitulado “Retorno às tradições” dedicada a compreender a leitura que Freyre fez de Idearium español.

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

80

A posição que Ganivet ocupa na geração de 98 é, de certo modo, curiosa, pois,

mesmo tendo sido contemporâneo de Unamuno – a diferença de idade entre eles era de

apenas um ano, três meses e quatorze dias, como conta o filósofo de Salamanca em

suas aclaraciones prévias da obra El porvenir de España44 – se lhe considera um

precursor dos noventayochistas. Isso, muito provavelmente, deve-se por ter morrido

ainda muito jovem, aos 33 anos, em 1898, o que confere, para os espanhois, ainda

maior mística a esse fatídico ano. Serão Unamuno e seus companheiros de geração

que irão recuperar as ideias de Ganivet, sobretudo as de seu Idearium español, a fim de

tê-lo como uma referência para suas próprias aspirações intelectuais. No entanto, ainda

que considerado seu precursor, como diz José Luis Abellán (1999, p.24), “Ganivet

pertence à geração de 98 e é dentro dessa onde devemos encontrar sua significação

intelectual”.

E qual é essa significação intelectual tanto de Ganivet quanto dos demais autores

da geração de 98? Gostaria de sublinhar, dentre as muitas possibilidades, apenas duas,

que me parecem fundamentais para aproximá-los dos argumentos de Gilberto Freyre

em Além do apenas moderno, que é aqui meu objetivo principal. Em primeiro lugar, o

fato de serem literatos e pensadores. Em todos eles, mas sobretudo em Unamuno e

Ganivet, haverá o elemento que destaca Ortega y Gasset (1964 apud Abellán, 1999,

p.24): “Fazem literatura com as ideias, como outros depois haveriam de fazer

inversamente filosofia com literatura”. Perceba-se aqui a ênfase naquele mesmo

elemento que Freyre e Américo Castro destacavam da alma espanhola: a subversão

das linhas entre subjetividade e objetividade, entre ciência e filosofia, de um lado, e

literatura, de outro. Unamuno seria a maior expressão dessa virtude. Em sua novela

Amor y pedagogia fará uma crítica contundente do positivismo. Em outra chamada San

Manuel Bueno, mártir abordará a história de um padre que perde a fé para retomar tema

sempre tão caro a ele, o problema da fé e da dúvida. Essa e outras qualidades fariam de

Unamuno o “espanhol por antonomásia”, como o chamou Américo Castro, e dariam a

ele o caráter de atualizador moderno do espírito mais profundo do século de ouro.

Em segundo lugar, há entre os autores da geração de 98 uma mistura de dois

elementos que dá ao pensamento do grupo uma configuração muito peculiar:

nacionalismo tardio e irracionalismo. Em todos os intelectuais noventayochistas, autores

com Nietzsche e Schopenhauer tiveram marcada influência, o que fará Laín Entralgo

44

El Porvernir de España é uma obra que foi lançada a partir do intercâmbio de cartas públicas realizado entre Unamuno e Ganivet que foram publicadas originalmente no jornal El Defensor de Granada.

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

81

(1948, apud Abellán, 1999, p. 26) dizer: “para todos eles a vida é superior e irredutível à

razão; o sentimento, superior à lógica; a sinceridade, mais valiosa que a consequência”.

Novamente, vê-se aqui um elemento destacado por Freyre e Castro acerca da alma

espanhola, o embate entre razão e sentimento, em que, invariavelmente, o segundo

triunfa sobre o primeiro. Além disso, o fato de que o nacionalismo espanhol tenha sido

tardio em relação aos europeus irá conferir à reflexão nacional dos intelectuais de 98 um

aspecto casticista. Não se trata, obviamente, do mesmo casticismo de Menendez y

Pelayo, de uma Espanha reacionária e católica. O casticismo noventayochista reside no

fato de que todos os seus autores irão buscar uma “entidade metafísica chamada

Espanha” (Abellán, 1999, p.27) que se encontraria nas tradições do povo, onde residiria

a alma profunda do espanhol. É aí que se encontra a Espanha intrahistórica de

Unamuno e a Espanha madre y virgen45 de Ganivet.

O fato de que o regeneracionismo tenha se imposto, em razão do retumbante

sentimento de fracasso espanhol no fin de siècle, não significou entre os autores da

geração de 98 um adesão adstrita ao europeísmo. Isso se deve a esses dois elementos

que mencionei. A Europa racional e materialista não era a solução para os problemas

espanhois. As respostas, era preciso buscá-las dentro da própria Espanha, de sua alma,

de seu espírito mais íntimo que atravessava os séculos. Assim surge o nacionalismo

ganivetiano e unamuniano, que sempre se reporta às tradições profundas hispânicas.

Em passagem altamente significativa de Idearium español, o granadino irá dizer “cuanto

en España se construya con carácter nacional, debe de estar sustentado sobre los

sillares de la tradición” (Ganivet, 1999, p.53).

45

“Mãe e virgem” é a metáfora que Ganivet utiliza em Idearium español a fim de descrever a alma espanhola. Para ele, Espanha seria como aquela mulher que, tendo sido mãe por dever, descobre-se atraída pela irresistível vocação para a vida monástica, percebendo, assim, que todo seu espírito havia sido alheio à sua obra terrena. Fora mãe, tendo, na verdade, sempre desejado ser monja. A metáfora refere-se ao catolicismo (obra) e ao senequismo (espírito). Para o granadino, a obra espanhola construída ao longo dos séculos teria sido a católica, no entanto, seu espírito estava em outro lugar. Ele deveria ser encontrado no estoicismo natural y humano de Séneca. Sêneca foi um importante escritor e político do Império Romano, pertencente à corrente filosófica do estoicismo, nascido em Córdoba, sul da Espanha, hoje região autônoma de Andaluzia. Em passagem emblemática em que Ganivet explica quem foi Sêneca, também se pode ler qual era para ele a essência do espírito espanhol. Reproduzo-a aqui: “Séneca no es um español hijo de España por azar: es Español por esencia, y no andaluz, porque cuando nació aún no habian venido a España los vándalos; que a nacer más tarde, en la Edad Media, quizá no naciera em Andalucía, sino en Castilla. Toda la doctrina de Séneca se condensa en esta enseñanza: No te dejes vencer por nada extraño a tu espíritu, piensa, en medio de los accidentes de la vida, que tienes dentro de ti una fuerza madre, algo fuerte e indestructible, como un eje diamantino, alrededor del cual giran los hechos mezquinos que forman la trama del diário vivir (...) Esto es español; y es tan español, que Séneca no tuvo que inventarlo porque lo encontro inventado ya: sólo tuvo que recogerlo y darle forma perene, obrando como obran los verdaderos hombres de gênio” (Ganivet, 1999, p.38).

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

82

E quais seriam essas tradições a que Ganivet e Unamuno se reportavam?

Certamente não eram aquelas do catolicismo, que ambos os autores rechaçavam. Para

o granadino, Espanha havia se arruinado com a defesa do catolicismo (Ganivet, 1999,

p.53), que nada mais seria que um equívoco histórico, uma substituição do verdadeiro

espírito em favor da obra terrena como sugere a metáfora madre y virgen. Para o

filósofo basco, o catolicismo expressava a fe del carbonero, uma fé que em sua tentativa

estéril de ser racional, nada mais era que fé impositiva, fé de servo, de homem curvado

e obediente a quem não se permite questionar. Portanto, não é no catolicismo que se

deve encontrar as tradições hispânicas profundas. Tentar abordar a totalidade da

acepção de tradição para Unamuno e Ganivet poderia ensejar uma monografia inteira.

Irei, por essa razão, limitar-me a apontar algumas ideias que podem ser conectadas

com o pensamento freyriano.

De Ángel Ganivet, gostaria de destacar três ideias: a família e a cidade como

espaços de configuração social, a Espanha como península e a importância do

misticismo. Esta última me conectará diretamente com Unamuno que também

considerava a tradição mística espanhola como um dos fundamentos da alma nacional.

Do filósofo basco, irei também enfatizar o conceito de intra-história. Entendo que trazer

essas ideias desses dois autores seja de fundamental importância para a linha

argumentativa que tenho buscado neste trabalho. Unamuno e Ganivet eram duas

referências teóricas que contribuíam para a reflexão da outra seção anterior, de que a

sociologia de Freyre pode ser pensada como um intento de descentrar a episteme

dominante do “discurso sociológico da modernidade” (Tavolaro 2013; 2005).

Bastos (2005, p.57) afirma que nos textos Sociologia e Como e por que sou e não

sou sociólogo Freyre justificaria “seu próprio ecletismo sociológico” invocando Ganivet e

a intenção desse espanhol de que suas investigações não pertençam “a nenhuma das

ciências ou artes conhecidas até hoje e classificadas com maior ou menor acerto pelos

sábios de ofício” (Ganivet, 1996 aput Bastos, 2005, p.57). Ademais, ainda segundo

Bastos, a invocação de Ganivet servia para Gilberto como forma de justificar seu próprio

método, pois ele entendia que a abordagem do granadino não seria “prisioneira das

chamadas ciências puras” o que dava uma riqueza singular à análise desse autor,

“simultaneamente intérprete de si mesmo, de Granada e da Espanha” (Freyre, 1945

apud Bastos 2005, p.57).

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

83

Perceba-se aqui, na ideia de “intérprete de si mesmo”, aquele elemento citado

anteriormente da qualidade autobiográfica do pensamento espanhol. Para Freyre, um

dos aspectos da riqueza da obra de Ganivet estava neste autobiografismo tão

essencialmente característico da tradição hispânica. Tradição essa, como diz Bastos

(2005, p.59) “marcada tanto pela liberdade de expressão, pela ausência de fórmulas

canônicas de pesquisa e, principalmente, pela não separação das experiências de vida

e de escritura”; e da qual Freyre sentia-se parte. Relembro aqui novamente Américo

Castro, que comparou Ortega y Gasset a Velázquez ao invocar essa não separação

entre vida e obra.

Ao abordar o tema da família e da cidade como espaços de configuração social,

Ganivet está preocupado com os avanços modernos que descaracterizam a tradição

profunda espanhola. Para ele, como, posteriormente, para Freyre, “a cidade é um locus

ou espaço privilegiado do espírito e da cultura” (Bastos, 2003, p.62). As reformas

modernizantes descaracterizavam não apenas o espaço geográfico e estético, mas

também a própria configuração social. Perde-se, assim, uma “unidade harmônica que é

corrompida pela modernização” (Ibid, p.62). Nesse sentido, Bastos (2003) faz um

interessante paralelo entre as abordagens de Recife e Granada por Gilberto e Ganivet,

respectivamente, mostrando a importância que ambos deram à luta pela “preservação

da cidade e suas tradições” e como, no desenvolvimento dessas ideias, o granadino

teve influência marcante sobre o autor pernambucano (Ibid, p.66).46

A preocupação de Ganivet pela perda das tradições também se reflete em sua

análise do enfraquecimento do papel social da família como elemento aglutinador e

transmissor da cultura. Qualquer leitor de Gilberto Freyre irá imediatamente relacionar

essa ideia com a análise freyriana do papel da família patriarcal na formação social

brasileira. A associação é, de fato, inequívoca e Bastos (2003) a mostra muito bem. Em

uma passagem que Freyre irá retomar em artigo de jornal em 1925, Ganivet irá citar “o

braseiro e a lamparina” como metáforas do “sustentáculo da vida familiar” que, na

escassez de luz, “obrigavam às pessoas a se aproximarem e a formar um núcleo

comum”. O advento da luz elétrica teria contribuído para desestabilizar essa unidade

(Bastos, 2003, p.54,55). É a modernização que desagrega a tradição e, com isso, altera

a configuração social. Para Bastos (Ibid, p.55), Freyre irá continuar essa tese em

Sobrados e Mucambos, livro em que irá tratar mais especificamente da desagregação e

46

Para mais sobre essa comparação entre Recife e Granda e a influência de Ganivet na visão de Gilberto sobre a cidade, ver Bastos (2003) no capítulo 2 em uma seção intitulada “Granada-Recife”.

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

84

decadência da família patriarcal. O tema da transformação do espaço geográfico, da

urbanização, da decadência da casa-de-engenho, enfim, das mudanças que a

modernização suscitava também estarão presentes nesse livro, como a própria metáfora

do título sugere.

Outra ideia que está presente no Idearium español e merece destaque é a

concepção de “Espanha como península”. Ela é a manifestação, na obra do granadino,

do “espírito territorial” (Ganivet, 1999, p.56) que se expressou tão fortemente nos

nacionalismos do século XIX e cuja base se encontra na ideia romântica de “espírito do

povo” (Volkgeist) (Albellán, 1999, p.24). Para comparar os caracteres específicos que

nos diversos grupos sociais tomam as relações com o território, Ganivet irá defender a

existência de três tipos de povos: os continentais, os insulares e os peninsulares. Em

cada um deles manifestar-se-á um tipo característico de personalidade que tem relação

direta com a forma territorial. Assim, a Espanha será fundamentalmente um povo

peninsular. Não se trata, no entanto, de qualquer península. Diz Ganivet que Espanha é

uma península “na conjunção de dois continentes (...) somos una “casa con dos portas”,

y, por lo tanto, “mala de guardar”, y como nuestro partido constante fue dejarlas abiertas

(...) nuestro país se convertió en una espécie de parque internacional, donde todos los

pueblos y razas han venido a distraerse cuando les ha parecido oportuno” (Ganivet,

1999, p.60). Não irei me alongar explicando esse argumento. Trata-se apenas de

destacar dois aspectos: o aspecto mesológico que, como para Freyre, coloca-se como

variável explicativa; e o não europeísmo da península ibérica, seu lugar de transição

entre África e Europa. Elemento esse fundamental das teses ibéricas de Freyre.

A presença do elemento africano irá aparecer com mais força nas teses

ganivetianas quando o autor aborda o misticismo. Para Ganivet (1999, p.44), “a criação

mais original e fecunda do espírito religioso [espanhol] arranca da invasão árabe”. Não

era, portanto, o catolicismo que expressava de forma mais enfática o elemento religioso

tão presente na vida espanhola, mas, sim, o misticismo, poesia cristã e árabe a uma só

vez, que, para o autor granadino, era a tendência mais marcante do espírito religioso

espanhol. Nos “arrebatos de amor divino de Santa Teresa47”, aparecia com grande

relevo o caráter tradicional hispânico (Ibid, p.45). “El misticismo fué como una

santificación de la sensualidad africana” (Ibid, p.45).

47

Santa Teresa de Jesús, também conhecida como Teresa de Ávila, foi uma poetisa, escritora e religiosa espanhola do século XVI, fundadora da Orden de los Carmelitas descalzos e cuja obra é considerada, ao lado da de San Juan de la Cruz, seu contemporâneo, um dos fundamentos da mística cristã.

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

85

Unamuno também irá ressaltar a importância do misticismo. Para ele, “o

espiritualismo místico faz parte da própria essência de Espanha” (Bastos, 2003, p.29).

Em uma afirmação destinada àqueles que se fascinavam pelo europeísmo, o filósofo

basco irá dizer “considerar mais lisonjeiro ser compatriota de San Juan de la Cruz do

que de Descartes”. (Ibid, p.26). Essa afirmação expressa bastante bem a essência do

pensamento unamuniano, que nunca pretendeu fazer uma filosofia racionalista, senão

colocar em relevo um tipo de pensador apaixonado, vital e contraditório, que pensa “com

todo o corpo e toda a alma, com o sangue, com o tutano dos ossos, com o coração, com

os pulmões, com o ventre, com a vida” (Molina, 2006, p.21). Nesse projeto, o misticismo

sempre gozou de grande relevância. Não se trata, portanto, de enquadrar a mística

como uma expressão do arcaísmo ou atraso espanhol. O misticismo seria uma

constante da alma espanhola que não poderia ser abandonada em nome de um projeto

europeísta modernizador. Perceba-se, assim, que a utilização de Unamuno e Ganivet

como referenciais teóricos permite a Freyre, mais uma vez, sustentar sua ideia de que

certos aspectos da tradição deveriam ser conservados e, dessa forma, tentar operar fora

do campo delimitado pela episteme do discurso sociológico da modernidade que

mencionei anteriormente.

Do filósofo de Salamanca deve-se, ainda, destacar o conceito de intra-história. No

entanto, irei abordá-lo no próximo capítulo, quando retomarei a futurologia freyriana de

Além do apenas moderno, na qual a ideia de intra-futuro é fundamental. Para concebê-

la, Gilberto irá se reportar ao conceito de intra-história de Unamuno.

Bastos (2003, p.57,58) aponta que, em seu livro Sociologia, Freyre irá relembrar

que “seu interesse como cientista social em torno do comportamento humano foi

precedido pela leitura de ensaístas-romancistas, uma forte influência em sua análise

sociológica; entre essas contribuições destaca a obra daqueles intelectuais da geração

de 98”. Vê-se, assim, como a sociologia do autor pernambucano está marcada por todas

essas características que tentei destacar aqui, sobretudo o caráter literário,

autobiográfico e intuitivo presente no pensamento hispânico que está tão fortemente

presente nas obras de Unamuno e Ganivet e de outros autores da geração de 98.

É preciso ressaltar, no entanto, que o conceito de geração pode ser bastante

problemático, pois tenta unificar uma diversidade de autores que acabavam por

professar posições políticas, estéticas, literárias, intelectuais muito distintas. Seu

significado na Espanha é tema bastante debatido, como aponta Bastos (2003, p.36).

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

86

Ortega y Gasset dedicará vários estudos a esse respeito. Atribui-se à sua autoria,

inclusive, o termo “geração de 98”, utilizado por ele para definir uma mesma

“sensibilidade vital” que unificava os trabalhos de homens tão distintos como Unamuno,

Ganivet, Pío Baroja, Azorín e Ramiro de Maeztu. Essa mesma sensibilidade poderia ser

definida como o “pessimismo construtivo” (Bastos, 2003) que citei anteriormente, como

melancolia em relação ao absurdo da vida, como nostalgia daquilo que deveria ter sido

e não foi. Sentimentos esses que, se relembrarmos o que diziam Gilberto Freyre e

Américo Castro a partir do conceito de tempo tríbio, são tão particularmente e

essencialmente hispânicos.

A sensibilidade dos intelectuais da chamada Geração de 1914 será algo distinta

dessa que unificava os autores noventayochistas. Dentro da divisão entre europeísmo e

hispanismo que dava o tom das discussões sobre o nacionalismo espanhol finissecular,

os novecentistas terão uma posição mais puramente regeneracionista que se traduzirá

em um europeísmo mais aberto. Lembre-se que entre os autores da geração de 98, o

regeneracionismo esteve mediado pelo irracionalismo e por uma tendência nacionalista

casticista que conduzirá esses autores a uma busca da “entidade metafísica chamada

Espanha” que se encontraria nas tradições profundas espanholas. Entre os autores da

geração de 14, ao contrário, haverá uma tendência mais racionalista e sistemática.

Seguramente o grande nome entre os novecentistas será José Ortega y Gasset.

Se a geração de 98 tem como marco que lhe dá nome o desastre do ano de 1898, a de

1914 tem seu nome referendado pelo ano de lançamento do primeiro livro de Ortega,

Meditaciones del Quijote, “o livro emblemático da nova geração de 1914” (Villacañas,

2004, p.19). O ano de 1914 foi decisivo para a história europeia e Ortega o percebeu

assim, como um momento de “giro decisivo” tanto na história europeia quanto na

espanhola (Ibid, p.20). “Qualquer observador bem informado em política”, diz Villacañas,

“sabia que em 1914 o enfrentamento mundial acabaria destruindo o equilíbrio moribundo

da Restauração”. Por essa razão, diz o mesmo autor, só se pode encontrar o sentido

profundo do livro de Ortega em meio esse cruzamento de caminhos entre o horizonte

europeu e o presente espanhol cujo sentido íntimo dizia respeito à posição da Espanha

“em relação ao mundo latino e ao mundo germânico” (Ibid, p.20)

Centrar-me-ei nesse tema da relação do mundo latino e do mundo germânico na

obra de Ortega, essencialmente, em Meditaciones del Quijote, pois é a que permite uma

aproximação mais estreita com as ideias de Freyre. No ponto nº 6 da meditação

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

87

preliminar48 intitulado “Cultura mediterrânea”, Ortega irá tentar “transcender o casticismo

espanhol” (Villacañas, 2004, p.209). Sua abordagem não será mais de um mundo latino

em contraposição ao mundo germânico, pois para ele essa dicotomia era falsa. Ortega

irá citar Menéndez y Pelayo – a quem já me referi aqui neste trabalho – para mostrar

como o casticismo postulava a diferença entre cultura latina e germânica49. Diz ele,

“Cuando yo era muchacho leía, transido de fe, los libros de Menéndez Pelayo. En estos

libros se habla con frecuencia de las ‘nieblas germanicas’, frente a las cuales situa el

autor ‘la claridad latina’” (Ortega y Gasset, 2012, p.126). Para Ortega, “essa leitura

resultara insuficiente”, por isso, ele “rejeita a contraposição entre nieblas germanicas e

claridad latina” (Marías, 2012, p.126). Desde essa recusa, irá posicionar o problema a

partir de uma outra dicotomia, entre cultura mediterrânea e cultura germânica.

A proposta de Ortega está baseada na doctrina de las almas de Spengler

(Villacañas, 2004, p.209). Doutrina essa, por sua vez, que fora tratada por Wilhelm

Worringer em sua obra La esencia del estilo gótico, na qual aborda a arte gótica com

expressão suma do mundo germânico50 (Ibid, p.209). Desde esse referencial, Ortega irá

refutar a ideia de cultura latina, para ele um conceito “confuso e hipócrita” (Ortega y

Gasset, 2012, p.131), e dirá expressamente que “há, não uma cultura latina, senão uma

cultura mediterrânea” (Ibid, p.131). Ortega irá dizer que o mito da latinidade existia para

fazer com que “franceses, italianos e espanhóis” se pensassem herdeiros da civilização

helênica, o que, para ele, é falso. A latinidade nesses povos é romana e Roma fora

essencialmente uma civilização mediterrânea, herdeira de Creta e não dos valores

gregos. Em Creta desemboca a civilização oriental e se inicia outra que não é a grega

(Ibid, p.131). Ortega chega a afirmar que nas batalhas entre Roma e Cartago, as

guerras púnicas, houvesse sido a segunda a vencedora, não teria havido grande

diferença, pois “ambas estaban del alma helénica a la misma absoluta distancia” (Ibid,

p.131). O que Ortega quer dizer aqui é que a fisionomia dos povos que se desenvolveu

48

O livro possui a seguinte estrutura: está dividido em três partes, sendo a primeira um prólogo intitulado Lector; a segunda chama-se Meditación preliminar; e a tarceira, Meditación primera (Breve tratado de la novela). 49

É esse o sentido do casticismo que se faz notar nos intelectuais da geração de 98. A diferença entre hispanidade e europeísmo baseava-se nessa separação entre latinidade e germanidade. Por isso, para esses autores, era preciso buscar dentro da própria Espanha a “regeneração” e não tentar encontrá-la na Europa racional e materialista. Em autores como Unamuno e Ganivet, a especificidade hispânica terá, ainda, uma relação íntima com a influência oriental que, como expliquei, manifestava-se por meio do misticismo de influência muçulmana e do espírito peninsular que aproximava Espanha de África. 50

Essa relação direta entre gótico e germânico não passou despercebida por Gilberto Freyre. Em Casa-grande e Senzala, ao falar sobre a diferença entre o ibérico e o europeu, irá ressaltar os traços menos góticos e mais semitas do ibérico.

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

88

a norte e sul do mediterrâneo não era distante. Estavam ambos englobados na mesma

cultura, a mediterrânea.

Por isso, para ele, “a cisão que se tentou fazer do mundo mediterrâneo”, ou seja,

a dicotomia entre norte da África e sul da Europa, era um erro de perspectiva histórica.

(Ibid, p.132). As ideias de África e Europa teriam nublado a percepção dos historiadores

que não teriam percebido que, quando se formou a cultura mediterrânea, não existiam

nem África nem Europa como unidades conceituais. É apenas depois, quando os povos

germanos entram “no organismo unitário del mundo histórico” (Ibid, p.132), que a

Europa irá efetivamente começar. Então, a África irá nascer como a “não Europa”. A

partir daí, Itália, França e Espanha serão germanizadas e a cultura mediterrânea deixará

de ser uma realidade pura (Ibid, p.132). Conviverão nelas, portanto, aspectos do caráter

germânico e mediterrânico. Quando, séculos mais tarde, as ideias platônicas

despertarem, fá-lo-ão já dentro dos “crânios” germanos de Galileu, Leibniz, Descartes e

Kant (Ibid, p.132).

Nesse sentido, a cultura mediterrânea que Espanha herdou de Roma já não seria

uma realidade pura. Com a germanização e o surgimento da “Europa”, há no espanhol a

mistura do caráter mediterrânico e do germânico. A cultura mediterrânea teria sido pura,

para Ortega, até as invasões bárbaras, mas, desde então, “Italia, França, Espanha

estão encharcadas de sangue germânico” (Ibid, p.134). “Somos raças essencialmente

impuras”, dirá Ortega (Ibid, p.134). Esse enquadramento da teoria das raças51 permite a

Ortega afirmar que espanhóis, e europeus em geral, são “razas caos” em cujo “seio se

somam influências germânicas débeis, que apontam em direção à claridade conceitual,

junto a fortes influências mediterrâneas, que empurram em direção à confusão

conceitual e à claridade da impressão sensível” (Villacañas, 2004, p.121-122). O

fundamental para Ortega, portanto, é que no espanhol há traços tanto germânicos

quanto mediterrâneos e cada um deles se manifesta de forma distinta. A produção

ideológica levada a cabo na Espanha, desde a Idade Média, teria sido, no entanto,

fundamentalmente mediterrânea (Ortega y Gasset, 2012, p.134). Ortega quer sublinhar,

dessa forma, que Espanha tem sido marcada mais essencialmente pelos traços

mediterrâneos – a sensualidade, o impressionismo, a preferência pela superfície e

aparência das coisas. Os mediterrâneos não pensam claramente, veem claramente

51

Bastos (2003) sugere uma aproximação importante entre a perspectiva das raças de Ortega e a de Freyre. Para ela, a desconfiança de Ortega em relação a uma articulação mecânica entre raça e cultura é retomada e aprofundada por Freyre.

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

89

(Ibid, p.136). Entretanto, os traços germânicos, do pensamento claro, da preferência

pelo conceito preciso, também estão presentes na alma espanhola, ainda que quase

imperceptíveis.

A partir dessas ideias, Ortega y Gasset irá propor uma solução para o “problema

de Espanha” (europeísmo x hispanidade) distinta daquela que oferecem os autores da

geração de 98. A regeneração de Espanha não passa por uma escolha entre os valores

hispânicos ou europeus, tampouco passa pela busca das tradições profundas, como

propõem Unamuno e Ganivet. “Ortega pede uma colaboração, uma mestiçagem dir-se-

ia agora, dessas duas almas [mediterrânea e germânica], a pictórica e a meditadora”

(Villacañas, 2004, p.123). A solução para os problemas de Espanha encontrar-se-ia em

uma síntese das qualidades impressionistas mediterrâneas, que permitem Espanha ver

de uma forma artística única, e da profundidade conceitual germânica, que se

verdadeiramente explorada pela alma espanhola, permitiria a Espanha pensar com

claridade. Essa síntese, no entanto, não acontece sem hierarquia de valores. O mais

importante, para o Ortega formado na filosofia alemã, é o conceito e, portanto, os traços

germânicos, europeus (Ibid, p.124). Espanha deve, sobretudo, despertar seu instinto de

claridade, a ambição pela claridade (Ibid, p.124). A predominância do conceito justifica-

se pelo fato de que ele é o instrumento necessário para que o mundo seja submetido. O

conceito ordena o mundo em relações estáveis, oferece uma base sólida de progresso,

dá segurança e firmeza para o olhar e para a vida. Sem o conceito, a Espanha não terá

poder algum e, sobretudo, não terá poder sobre si mesma (Ibid, p.123). A

predominância alcançada pela civilização ocidental teria, nesse sentido, relação direta

com essa preponderância do caráter germânico da dominação da vida por meio do

conceito, da claridade resolutiva que a posse total das faculdades racionais ensejava e

que permitia uma separação completa entre natureza e cultura.

Ortega não propõe, no entanto, uma exclusão, senão uma síntese (Ibid, p.124).

Não se trata de abrir mão dos valores hispânicos, senão integrá-los com os europeus,

uma vez que ambos já fazem parte da alma espanhola como a ideia de fusão entre

cultura mediterrânea e germânica sugeria. O caminho dessa integração seria, para

Ortega, o Quixote de Cervantes. Somente o Quixote permitiria à Espanha integrar-se à

realidade europeia sem “cair nas mãos de um espírito estrangeiro” (Ibid, p.125). Ou seja,

ao aceder à realidade europeia e incorporar-se a ela, Espanha precisaria de um

fundamento que a mantivesse ligada a outros de seus próprios valores, tal alicerce seria

o Quixote. Não irei aqui explicar como Ortega promoverá a integração entre Espanha e

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

90

Europa por meio da reivindicação de O Quixote, pois isso demandaria um esforço de

muitas páginas que me afastaria do objetivo deste trabalho. Limito-me a enfatizar que o

retorno à obra de Cervantes confere a Ortega o caráter de renovador da tradição

hispânica de pensamento enfatizado por Freyre.

Nesse sentido, tanto Unamuno e Ganivet quanto Ortega y Gasset reportam-se,

em seu pensamento, às tradições hispânicas profundas, ainda que, em cada um deles,

o significado dessa “tradição” tenha conteúdos distintos. De fato, ao enfatizar a

predominância do conceito sobre o olhar, a supremacia da claridade germânica sobre o

impressionismo hispânico, Ortega acaba posicionando-se antes como defensor da

modernidade do que da tradição, se tomarmos a antítese entre modernidade e tradição

estritamente a partir de como o pensamento racionalista a enquadra. No entanto, Ortega

não deixa de ser um defensor de certa tradição hispânica, aquela que para ele se

encontra essencialmente em O Quixote de Cervantes, capaz de conectar Espanha com

o “mundo moderno”. A preocupação com a obra de Cervantes não é, entretanto,

exclusividade de Ortega. Outros autores da geração de 98 já haviam se ocupado dela.

O tema aparece em Unamuno, no seu livro Vida de Don Quijote y Sancho, em Azorín,

com La ruta de Don Quijote, e em Ganivet, que dedicara páginas de seu Idearium para

abordar o tema cervantino. Nesse sentido, Villacañas sugere que talvez não se deva

falar em uma geração de 1914, uma vez que o cosmos intelectual e as inquietudes de

Ortega eram as mesmas daqueles “grandes homens de 1898”. Ademais, o próprio

filósofo via-se como sendo daquela mesma geração, como uma espécie de “irmão mais

novo” (Villacañas, 2004, p.19). Deixando de lado discussões acerca da correção ou não

da utilização da ideia de geração para diferenciar autores espanhóis, o que me importa

mais especificamente é mostrar como o universo intelectual de todos esses autores era

o mesmo, o que implicou em sua apreensão por Freyre como um sentido de unidade,

que lhe permitia pensá-los como renovadores do que ele chamava de “ciência hispânica

do homem”.

Tal ciência seria o caminho para reaproximar as culturas científica e humanista,

separadas pelo triunfo do positivismo, ao qual se seguiu um “PhDeísmo” de origem

germânica que, posteriormente, passou também a ser dominante nos Estados Unidos

(Freyre, 2001, p.118). Para Freyre, esse “PhDeísmo” era o símbolo de uma

especialização estéril que havia abandonado as possibilidades de pensamento crítico

que o humanismo oferecia. O futuro, que reclamava uma importância cada vez maior

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

91

para as ciências físicas e naturais, não poderia mais prescindir dos saberes

humanísticos ou sacrificá-los em razão da busca pela objetividade máxima.

A incorporação à sociologia dessa ciência hispânica, mais inventiva, poética,

compreensiva e humanista, era tarefa a que se propunha Freyre, pois, para ele, Ortega

y Gasset, Unamuno e Ganivet eram, “em seu modo de considerar o Homem”, tão

sociólogos como humanistas. Considerá-los como sociólogos seria possível, pois “a

Sociologia é uma mansão com muitas portas”, diz o autor pernambucano (Ibid, p.119),

capaz de absorver muitas perspectivas. Seria preciso esforço e inventividade para que a

sociologia deixasse de ser o mero cientificismo a que foi reduzida. Mais necessária

ainda seria essa inventividade se o que se busca é uma sociologia relevante para

compreender o futuro. “Os futuros humanos”, diz Freyre, “não se deixam estudar em

laboratórios. Nem através de ciências técnicas chamadas objetivas de verificação. De

onde a necessidade do futurólogo recorrer a métodos imaginativos e compreensivos”

(Ibid, p.119).

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

92

3 HISPANIDADE, HUMANISMO E FUTUROLOGIA: A REABILITAÇÃO DO APENAS

MODERNO

Repugna a alguno de nosostros, hispanos, un presentismo con pretensiones de modernismo que ignore sus dimensiones de tiempo más allá

de lo inmediatamente actual o de lo apenas moderno. (...)

Lo que es historia – o tradición – es historia – o tradición – proyectada en un presente que a cada instante se proyecta en el futuro.

Gilberto Freyre

Este último capítulo pode ser considerado, todo ele, uma conclusão desta

monografia e, nesse sentido, tem fundamentalmente dois objetivos. Em primeiro lugar,

tornar mais clara a relação entre futurologia e hispanidade. Em segundo lugar, mostrar

como, por meio dela, Freyre pode sustentar sua posição metodológica com a qual

propõe outra forma de aproximação à sociologia. Ambas essas ideias já estão sugeridas

nos capítulos anteriores. Pretendo aqui apenas aprofundá-las. Como mencionei no

primeiro capítulo, Merquior (2001, p.14) apreende bem aquilo que subjaz ao

pensamento freyriano no livro que é objeto deste trabalho: “Além do apenas moderno

contém um verdadeiro exame de consciência da metodologia sociológica”. No capítulo

passado tentei mostrar como em Além do apenas moderno, Freyre reivindica uma

identidade cultural hispânica como uma das formas de afirmar a singularidade da

experiência histórica brasileira. “Somos os brasileiros”, como diz ele, “uma gente

hispânica sendo também uma gente situada no trópico e localizada na América” (Freyre,

2001, p.36). A mobilização dos argumentos de Américo Castro, para quem diferentes

complexos civilizacionais, como o hispânico, o germânico ou o francês, orientam-se a

partir de distintos impulsos vitais, auxilia a pensar a proposta de Gilberto sobre a

singularidade dos hispanos.

Ao enfatizar nossa identidade cultural hispânica, e reforçá-la como depósito de

um percurso histórico muito singular, entendo que Freyre esteja buscando encontrar um

espaço que lhe permita explicar a persistência de traços tidos como tradicionais, que

conformam tão intimamente nossa experiência sócio-histórica – a religiosidade mística,

a ligação simbiótica com a natureza expressada na ideia freyriana de tropicalidade, a

ausência de uma racionalidade estritamente burguesa, o personalismo e o

patriarcalismo que borravam as fronteiras entre público e privado e que davam o tom de

nossas relações sociais –, sem que ela seja enquadrada como um “desvio” da

experiência das sociedades modernas centrais. Para fazê-lo, Freyre precisa mobilizar

outras referências cognitivas que não aquelas do discurso sociológico da modernidade.

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

93

A reivindicação de uma “ciência hispânica do homem” é elemento chave desse

empreendimento freyriano.

A pós-modernidade assume, por essa razão, uma coloração muito particular em

Além do apenas moderno. Ela se constitui no momento histórico em que certas

tradições hispânicas, em especial sua concepção de tempo, o tempo tríbio, e sua

ciência humanística, poderiam e deveriam ser recuperadas. Em uma acepção ampla, na

verdade, não seria apenas para os hispanos que a pós-modernidade significaria um

momento de recuperação de certa tradição. Ao analisar seu tempo, Freyre percebe,

inclusive, que já haveria uma tendência para recuperação de “arcaísmos” naqueles

países de capitalismo avançado, as sociedades modernas centrais, em que a crescente

automação já permitia um gozo mais despreocupado do tempo e em que se poderia

também perceber em certos comportamentos o regresso de atitudes “romanticoides”

(Freyre, 2001, p.66). Esses países estariam à frente no processo de pós-modernização.

No entanto, países hispânicos como o Brasil podem rapidamente incorporar-se a esse

processo, pois, para nós, “a pós-modernização é uma questão de memória” (Merquior,

2001, p.14).

Para entender a pós-modernidade – ou, talvez melhor dizendo, para chegar a ela

– Freyre utiliza um recurso que irá buscar exatamente nas tradições de seu referente

cultural. É a futurologia, prática que lhe permitiria pensar passado, presente e futuro a

um só tempo. Essa futurologia seria a forma natural de fazer ciência de alguém que vive

numa tradição em que o tempo é tríbio. Ela é a sistematização científica de um impulso

natural em direção ao futuro daquele que, de certa maneira, já vive nele. Futuro

nostálgico e de esperança, como diz o autor pernambucano, futuro íntimo, que remete à

“intra-história” de Unamuno (Freyre, 2001, p.29), não o futuro utópico que desconecta o

porvir daquelas tradições mais íntimas de um povo.

A concepção de futurologia que Freyre elabora em Além do apenas moderno não

pode ser dissociada de como ele concebia, mais especificamente, a sociologia e, de

forma mais geral, o próprio conhecimento. Sua ênfase no saber que não esteja baseado

numa clara diferenciação entre razão e sentimento tem visivelmente, como tentei

demonstrar no capítulo anterior, forte influência espanhola, sobretudo de autores como

Miguel de Unamuno e Ángel Ganivet. A futurologia emergiria como um desdobramento

natural de uma forma compreensiva de se fazer ciência social, na qual elementos

estéticos, poéticos e intuitivos gozam de tanta importância quanto àqueles mais

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

94

estritamente racionais, como análise empírica, observação de dados e verificação de

hipóteses. Não há hierarquia entre essas duas abordagens, conquanto pareça que

Freyre dê mais importância à inventividade, à imaginação, à poesia. Ciência social essa,

acrescente-se, que seria um desdobramento espontâneo do humanismo científico com

raízes hispânicas. Humanismo de Juan Luis Vives e Baltasar Gracián que, em vários

sentidos, teriam se antecipado aos sociólogos e antropólogos modernos (Freyre, 2001,

p.41).

No quadro analítico proposto por Freyre, portanto, do Humanismo científico

emergiria uma ciência social compreensiva com uma tendência natural para a

futurologia. Não se trata, no entanto, de pensar um futuro utópico, aquele que se

projetaria como momento vindouro de segurança social e conforto físico fechado a todos

os “desvios da rotina” (Freyre, 2001, p.35) de uma sociedade moderna e racional que

teria atingido o gozo pleno de todas as suas faculdades mentais e logrado amplo

domínio e, por isso, separação da natureza. Esse não é o futuro para Gilberto, é o futuro

pensado desde “as mitologias profanas (burguesas, iluministas, marxistas) do progresso

linear” (Merquior, 2001, p.10). O futuro do autor pernambucano e, portanto, sua

futurologia são de outra ordem. O futuro é, como sugerido na epígrafe que abre este

capítulo, a tradição – que Freyre utiliza como sinônimo de história – projetada para o

porvir. A mesma tradição que Unamuno buscava encontrar com sua intra-história –

história profunda de um povo, seu inconsciente onde estão entranhadas suas

tendências mais íntimas –, agora utilizada por Freyre para encontrar o intra-futuro, o

“futuro íntimo” de uma sociedade.

Neste último capítulo de meu trabalho, portanto, irei retomar o tema da

futurologia, com o qual iniciei este trabalho, a fim de aprofundar sua compreensão

aproximando-o da concepção de hispanidade que abordei no capítulo anterior. O elo

que conecta ambas está na ideia de intra-futuro que tentarei tornar mais claro. A partir

dessa aproximação, buscarei refletir sobre o projeto epistemológico de Freyre que

subjaz ao argumento do livro. Em um segundo momento, irei recuperar muito

pontualmente a reflexão que iniciei a esboçar no capítulo anterior, de que o Além do

apenas moderno poderia ser compreendido como um arielismo, ideia que se reporta a

uma tradição de pensamento do ensaísmo latino-americano iniciada com o livro Ariel de

José Enrique Rodó.

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

95

3.1 Intra-história e intra-futuro: do passado profundo ao futuro íntimo

O argumento central de Além do apenas moderno, como já repeti algumas vezes,

consiste na ideia da efemeridade do moderno, de seu caráter contingencial. Freyre não

pensa a modernidade como etapa histórica necessária de superação da tradição, pois,

para ele, o passado nunca pode ser completamente superado. Nesse sentido, ao pensar

o futuro, Gilberto não se apoiará nas utopias modernas do progresso linear (Merquior,

2001, p.10), uma vez que o espírito pós-moderno – esse espírito do futuro que, ao

contrário do efêmero moderno, prolonga-se indefinidamente –, em sua concepção, não

está preso à “crença na idade áurea futura” (Ibid, p.10). Não há no raciocínio freyriano,

portanto, fim da História52. Pelo contrário, há continuidade, há retorno ao passado, há

retomada de certas tradições. Passado, presente e futuro estão plasmados em sentido

de contiguidade.

Assim, Freyre irá dizer:

“Pode-se dizer do futuro (...): ele é, em grande parte, criado pelo homem. Plasmado, em parte, por nós. Esculpido em pelos que, sendo presente e sofrendo influências do passado, concorrem para que o futuro tome formas que correspondam a desígnios que, atendendo a novas situações, excedam as experiências de tempos já vividos, sem repudiarem de todo tais experiências. Pois o Homem não é um ser sem antecessores: ele continua a ação, a cultura, a obra de antecessores, mesmo quando se rebela contra algumas das criações dos seus antecessores, destruindo-as para substituí-las” (Freyre, 2001, p.109)

Ora, o homem do futuro continua a obra de seus antecessores do passado, ainda

que destrua e substitua algumas de suas criações. Entendo que nessa passagem

Freyre esteja se reportando ao projeto moderno, iluminista e racionalista, de que se

poderia deixar para trás todas as amarras da vida antiga e arcaica a partir de um

domínio completo das faculdades racionais que se transformaria, consequentemente,

em controle da natureza. Subjaz nessa ideia a concepção de um futuro de progresso e

bem-estar contínuo. Freyre rejeita esse futuro, pois o passado imaginado por aqueles

que defendem essa utopia racional não é o mesmo passado que pensa Gilberto.

O passado não é sinônimo de arcaico ou de atraso. Várias vezes neste trabalho

mostrei como, pelo contrário, Freyre considera como “arcaico” o apenas moderno. O

novo, o futuro, é o pós-moderno. Nesse sentido, Gilberto sugere que já não haveria mais

no mundo um “modernismo ingenuamente convencido”, como fora costume em

modernismos anteriores, de que seja “redentor, messiânico, decisivo em termos

52

Refiro-me aqui, essencialmente, à ideia de Francis Fukuyama em seu livro “O fim da história e o último homem” em que defende o triunfo definitivo do liberalismo político e econômico, ou, em outros termos, da modernidade ocidental.

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

96

absolutos” (Ibid, p.72). Os modernos atuais já não se sentiriam “de todo firmes na sua

oposição total a valores e normas do passado nem estão certos de ser seu modernismo

capaz de qualquer duração” (Ibid, p.72). Assim, o passado pode retornar em toda sua

vitalidade.

Um dos principais elementos desse retorno ao passado em Além do apenas

moderno se encontra na reivindicação da ciência hispânica, por meio da qual Freyre

pode também questionar o discurso sociológico da modernidade, uma vez que a

sociologia teria desempenhado um papel fundamental em sedimentar um modernismo

ingenuamente convencido de ser messiânico, como afirma Freyre em sua crítica ao

moderno. Ao reclamar essa ciência hispânica, Freyre irá retomar autores hispanos como

Miguel de Unamuno e Ángel Ganivet, conforme tentei explanar no capítulo passado.

Um dos aspectos em que a relação de Além do apenas moderno com o

pensamento de Miguel de Unamuno fica mais evidenciada é na reivindicação da intra-

história como equivalente sociológico daquilo que Freyre postulava atingir com a

futurologia. Retomo excerto do prefácio de Gilberto ao livro em que essa associação

aparece de maneira clara

“Impossível deixar de ser a sociologia projetiva ou futurológica uma sociologia, em grande parte, de compreensão e até de imaginação compreensiva, que se exprima mais através de palavras – símbolos aproximativos – do que de números estatísticos, exatamente descritivos, embora não sejam a estatística, a linguagem matemática, o número, instrumentos que o futurólogo deva ou possa desdenhar. Apenas não é desses instrumentos que principalmente tende a depender a futurologia mais animada do desejo de penetrar no que se possa considerar, no futuro do homem, o equivalente sociológico daquilo que Unamuno, com relação ao passado, considerava “intra-história”; e que venha a denominar-se – deixemos aqui a sugestão – intra-futuro. Futuro íntimo. Futuro interior”. (Freyre, 2001, p.29).

É preciso primeiro entender o que vem a ser a intra-história para Unamuno a fim

de, então, compreender o que Freyre propõe com a ideia de intra-futuro. Segundo

Mariano Gómez (2003, p.56), “mediante o conceito de intrahistoria Unamuno pretende

inquirir o verdadeiro ser ou a essência da história mesma, tarefa equiparável a que em

geral sempre se há proposto a ontologia, investigar o autêntico ser das coisas, por cima

ou mais além de seu aspecto simplesmente aparente estabelecendo uma delimitação

clara entre o essencial e o fenomênico”. Nesse sentido, para esse autor a intra-história

de Unamuno busca representar “o verdadeiro conteúdo, a entranha ou a interioridade da

própria história” (Ibid, p.55). Ela não supõe, no entanto, uma “negação da história, a

menos que se trate da negação do caráter supostamente superficial, transitório ou

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

97

irrelevante da história”, pois a intra-história é, pelo contrário, a revelação do ser

autêntico da história (Ibid, p.55).

Penso ser fundamental entender em que contexto Unamuno propõe essas suas

ideias sobre a intra-história. O tema irá aparecer pela primeira vez, na obra do filósofo

basco, em uma série de ensaios publicado em 1895 e que serão republicados em 1902

na forma de um livro intitulado En torno al casticismo. No capítulo passado, quando

apresentei alguns autores espanhóis que influenciaram Freyre mais decisivamente,

expliquei brevemente o contexto espanhol de fin de siècle, no qual os debates sobre o

nacionalismo, a tradição e o futuro de Espanha, temas estes que se mesclavam no

universo da oposição entre hispanismo e europeísmo, davam o tom das discussões. É

dentro desse contexto, portanto, que a obra de Unamuno, bem como sua concepção de

intra-história, pode ser mais significativamente compreendida.

Nessa obra especificamente, En torno al casticismo, Unamuno realiza uma crítica

aguda aos “apologistas da Espanha castiça” (Rabaté, 2014, p.55); os conservadores; os

“desenterradores tradicionalistas” como Marcelino Menéndez y Pelayo; as vozes de um

“Espanha imortal” que exaltam uma “tradição eterna” moribunda buscada em um

“passado empoeirado”; os que celebram as glórias passadas que Unamuno qualifica

justamente como as “maiores vergonhas” de Espanha (Ibid, p.55,56). Lembre-se aquilo

que comentei no capítulo passado, que a ideia de regeneracionismo, tornada

preponderante especialmente a partir do “desastre de 98”, que apontava para a ideia de

Europa como solução de todos os problemas espanhóis, havia gerado uma “reação

castiça” que se manifestaria em vários autores desse período, inclusive em Unamuno

que também irá abordar o tema da “Espanha eterna”, sobretudo nesse seu ensaio

chamado En torno al casticismo.

A Espanha eterna de Unamuno será, no entanto, completamente diferente

daquela apregoada pelos casticistas. O filósofo basco defenderá outra tradição

espanhola e o fará já no início de seu ensaio cujo primeiro capítulo tem justamente o

título La tradición eterna. O tema da intra-história é fundamental na construção do

argumento empreendido por Unamuno, que “forja [esse] conceito opondo-se à tradição

conservadora espanhola” (Ibid, p.56). O livro En torno al casticismo pode ser visto,

dessa forma, como “um gesto de claro desafio aos tradicionalistas”, dos quais Unamuno

procura usurpar a propriedade do conceito de tradição, e também como intento de

“suscitar escândalo entre os doutrinadores do progresso” (Juaristi, 1997 apud Rabaté,

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

98

2014, p.59). Ou seja, no embate entre hispanismo e europeísmo, Unamuno irá se

colocar ao lado do primeiro sem, no entanto, aderir às posições castiças que

dominavam o terreno da hispanidade. Sua posição demandará uma outra apreensão da

ideia de tradição que será concebida, sobretudo, firmada na concepção de intra-história.

Unamuno faz uma analogia entre história e oceano que Bastos (2003, p.154)

apreende bem. Dirá ela que “Unamuno compara a história à superfície do mar, mais

visível recebendo a luz do sol e mais perceptível pelo ruído das ondas. Porém, essa

superfície se sustenta sobre o mar profundo; essas fundas camadas, agindo sem ruído,

sem receber a luz do sol, são comparadas à intra-história”. A alma castelhana, cuja

investigação é o propósito dos ensaios publicados originalmente em 1895, encontrar-se-

á nesse mar profundo. É preciso reportar-se à intra-história, portanto, para

verdadeiramente conhecê-la. Assim, os dois objetivos fundamentais de En torno al

casticismo serão explorar a “alma espanhola” e “conceber e ensinar de outra maneira a

História”. A verdadeira complexidade espanhola só poderia ser encontrada dessa

forma53 (Rabaté, 2014, p. 55,56).

A intra-história deverá, portanto, a fim de encontrar a verdadeira alma castelhana,

investigar as obras do espírito como a literatura, el romancero, el refranero, la

demótica54, as verdadeiras manifestações da alma da nação, do espírito de seu povo

(Ibid, p.57). Será, no entanto, preciso superar os limites e as barreiras da história

tradicional para atingir esse objetivo. Assim, Unamuno irá apontar sua crítica para a

história dos acontecimentos, a história erudita da nação empreendida pelos Menéndez y

Pelayo, que deverá ser superada para que emerja a história profunda e viva do povo

espanhol, a intra-história (Ibid, p.58).

A metáfora do oceano irá ilustrar bem a forma como Unamuno pensa a intra-

história. Nos mares profundos da história encontrar-se-á el pueblo campesino humilde y

callado, profundezas essas não buscadas pela historiografia tradicional, que se

53

Segundo Rabaté (2014, p.13), alma castellana deveria ter sido o título do livro publicado em 1902 que reunia todos os ensaios publicados originalmente em 1895. No entanto, naquele mesmo ano, Azorín lançara um livro exatamente com o mesmo título, Alma castellana, o que impossibilitou sua utilização por Unamuno, que terminou por nomear sua obra En torno al casticismo. A ideia de alma aqui se reporta, sobretudo, ao sentido de espírito de um povo, da concepção alemã de Volkgeist, cuja influência sobre a conformação dos nacionalismos do século XIX foi enorme. 54

O romancero refere-se ao conjunto literário espanhol cujo início poderia ser encontrado nos cantares de gesta medievais. O poema Cantar del mio Cid, escrito no século XII, seria o mais importante cantar de gesta espanhol conhecido. O romancero seria, portanto, toda a tradição literária que parte desde aí. Já o refranero faz alusão ao conjunto de ditos populares, expressão da ancestral sabedoria popular. E a demótica é, para Unamuno, a ciência do folclore (Rabaté, 2014, p.83).

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

99

concentra nas superfícies, “que privilegia em excesso os documentos escritos, os feitos

estabelecidos cientificamente” (Ibid, p.57,58). O filósofo basco irá, pelo contrário,

sustentar sua preferência “por historiadores artistas” como François Guizot e Jules

Michelet55, que “sustentavam as bases de uma história integral, total, das estruturas”

(Ibid, p.59). A intra-história será, assim, pensada como o elo entre passado e presente

que representa as estruturas de continuidade. “O campesinato com suas tradições, suas

lendas, seus romances, sua demótica, seu idioma oferece [à Unamuno] o substrato de

uma riqueza cultural cujo estudo pode contrapor a escrita da História oficial” (Ibid, p.74)

Em Além do apenas moderno, Freyre também irá, em muitos momentos, apontar

sua preferência pelos historiadores-artistas ou sociólogos-artistas, que são científicos

sem deixar de ser poéticos, que conseguem captar uma história social total, história dos

sentimentos, inclusive. Essa preferência, que aparece de forma explícita várias vezes no

livro, não é, no entanto, algo novo para Freyre. O método utilizado pelo autor

pernambucano sempre privilegiou essa forma de abordagem, que poderia ser chamada

de não convencional. Sua preferência por “novos objetos” de pesquisa são uma marca

de toda sua obra, em que versou, com um olhar historiográfico e sociológico, sobre

temas tão diversos como arquitetura vernacular, a história social da rede e da cadeira de

balanço, a história da alimentação, a vida sexual, a infância, enfim, temas do cotidiano

social (Burke, 1997). Essa forma de fazer história aproxima-se muito daquela que tentou

empreender Unamuno.

Nesse sentido, Bastos (2003) aponta semelhanças entre o projeto intra-histórico

de Unamuno e o método sociológico freyriano que considero fundamental ressaltar. Em

primeiro lugar, em relação à importância da linguagem no projeto de ambos os autores.

Para Unamuno, “a linguagem popular ou intraliterario56 reflete a alma de um povo, jaz

debaixo das formas esgotadas de um casticismo abafador” (Rabaté, 2014, p.82). A

língua teria sofrido com a “inquisição” das formas eruditas que favorece o uso de

“conceitos desencarnados” nos quais predominam o “purismo casticista” (Ibid, p.82).

Assim, Bastos (2003, p.163) aponta que Unamuno insiste que é preciso “levantar a voz

55

A mesma admiração por Michelet será encontrada também em Freyre. Peter Burke (1997) sustenta que a influência de Michelet é uma das pontes que aproxima a “nova história” da École des Annales e a “história social, psico-história ou antropologia histórica” de Freyre. Unamuno está, portanto, inserido nesse mesmo universo de preocupações históricas que conecta Gilberto com os Annales. 56

Unamuno se valeu muitas vezes do prefixo intra para expressar a essência de seu projeto intelectual. Segundo Gómez (2003, p.55), “intra-historia es concreción de um término genérico, de lo que es ‘intra’, valga decir, de lo que representa la interioridad o núcleo fundamental de algo. Unamuno habla de intra-historia, pero también de linguaje intra-literario, de lo intra-científico, de intra-filosofía, de lo intracuantitativo y también de lo intra-conciente”.

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

100

frente ao purismo casticista que no afã de defesa da língua acaba por solapar todo e

qualquer empenho de renovação não só dela como da sociedade”. Ainda segundo

Bastos (Ibid, p.163), “esse também é um ponto fundamental na reflexão freyriana”.

Em Casa-grande & Senzala, Freyre irá, a partir da influência de Boas “que

apontava o caráter inconsciente dos fenômenos linguísticos”, mostrar a “articulação

entre linguagem popular e relações sociais” (Ibid, p.163,164). Ele irá desenvolver “o

tema indicando uma das maneiras pelas quais os elementos da cultura negra são

transmitidos: via amas-de-leite que contam aos meninos histórias, nas quais se

mesclam heróis portugueses e africanos. Herdeiras dos akpalôs da África, as amas

operam uma fusão entre as duas tradições” (Ibid, p.164). Bastos retoma, nesse sentido,

um dos textos mais emblemáticos de Freyre em sua obra mais conhecida: “Sucedeu,

porém, que a língua portuguesa nem se entregou de todo à corrupção das senzalas, no

sentido de maior espontaneidade de expressão, nem se conservou acalafetada nas

salas de aula das casas-grandes sob o olhar duro dos padres-mestres. A nossa língua

nacional resulta da interpenetração das duas tendências” (Freyre, 1981 apud Bastos,

2003, p.165,166).

Dessa maneira, Bastos (Ibid, p.165) aproxima Freyre e Unamuno ao afirmar que

“a língua não pode ser vista apenas como forma vazia de conteúdo social”, ideia

presente em ambos os autores. Poder-se-ia dizer, portanto, que para Gilberto a língua

também expressa a intra-história, a história íntima de uma nação. Um segundo tema

que Bastos utiliza para aproximar os dois autores é o do regionalismo. Apontei

anteriormente como Unamuno, ao conceber sua concepção de intra-história, tentava

contrapor-se ao casticismo que havia tomado posse da ideia de tradição. Bastos (Ibid,

p.155) apreende bem o cerne da crítica do professor de Salamanca que entende ter

havido, no processo de construção da nação espanhola que arranca após a

Reconquista, o sacrifício da diversidade que perfazia os elementos constitutivos do povo

em benefício de “uma visão unitária de cultura, marcada pelo catolicismo e pelos

elementos de ordem moral nele contidos que serviram de sustentáculo ao poder político

centralizado”. A intra-história terá, portanto, em seu âmago essa crítica ao centralismo

que sufocou a diversidade e cujo caráter oficialista estava impresso na história erudita

que tinha em autores como Menéndez y Pelayo sua manifestação mais expressiva.

Seria natural, portanto, que a intra-história de Unamuno afirmasse as diferenças

regionais de Espanha. Com isso, Bastos aproxima-o de Freyre. Para a autora, “a ideia

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

101

do filósofo basco de que o homem universal emerge a partir do homem local encontra

em Gilberto um desenvolvimento enriquecido desde os textos dos anos 20 – artigos de

jornais, o Livro do Nordeste e o Manifesto Regionalista” (Ibid, p.167). Aponta, ainda, que

ambos os autores sustentam como um dever das classes dirigentes promover a

“manutenção das riquezas sociais e culturais dentro de uma orientação política que

respeite as características regionais, o modo de viver de seu povo e suas tradições”

(Ibid, p.169).

Um terceiro e último tema de aproximação entre Unamuno e Freyre destacado

por Bastos que quero realçar aqui é o aspecto mesológico. A ênfase na influência do

território e do clima nos homens e na diversidade geográfica da península foi uma

constante não apenas na obra de Unamuno, mas na de todos os autores da geração de

98. Tema esse que automaticamente se pode conectar com a ideia de tropicalidade de

Freyre. Várias vezes neste trabalho citei Sérgio Tavolaro, para quem o trópico teria sido

um elemento constante e fundamental da obra de Gilberto Freyre que servia como

argumento para demonstrar uma outra relação homem-natureza que se estabelecera no

Brasil e que atestava a singularidade de nosso percurso histórico. Relembro aqui citação

de Américo Castro que já mencionei e na qual ele destaca que, para o espanhol, o

homem e seu entorno formam uma unidade vital. É o que está presente no pensamento

de Unamuno: “É que a natureza está humanizada pelo homem que a habita e a

trabalha. As árvores são já, como os animais domésticos, algo nosso, obra nossa. E

são, por isso, espelho de nossa vida e de nosso pensar” (Unamuno, 1988 apud Bastos,

2003, p.173). A fusão entre homem e natureza é, portanto, “elemento fundamental da

intra-história” (Ibid, p.173)

Quando Freyre postula a ideia de intra-futuro para sua futurologia reporta-se,

portanto, a todas essas características da intra-história que resumidamente apontei,

fazendo, de certa maneira, referência também à sua própria obra, uma vez que a

mesma ideia de uma tradição eterna estaria presente nos seus escritos, que buscavam

apontar as persistências do caráter brasileiro por meio do uso dos mais variados

recursos metodológicos, especialmente uma historiografia de temas do cotidiano social.

A Espanha eterna de Unamuno dizia respeito aos traços profundos do povo que

persistiam no presente. Em Além do apenas moderno, Freyre irá postular com sua

futurologia que são esses traços, projetados no futuro, que devem ser pensados pelo

futurólogo. O objetivo é entender não o futuro utópico, mas o futuro íntimo, que, ao invés

de rejeitar passado e presente, conecta-se com eles.

Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

102

Há vários exemplos de como Freyre tenta empreender esse projeto de análise do

futuro íntimo em Além do apenas moderno. Abordei-os no primeiro capítulo e cito aqui

apenas mais um para exemplificar. Trata-se da relação entre indivíduos e religiosidade.

Em vários momentos do livro, Freyre repete a ideia de que não se deve insistir na

separação entre razão e sentimento. Não se deve esperar, portanto, do homem pós-

moderno uma postura completamente racional e antimística ou antirreligiosa. Diz Freyre

(2001, p.80) expressamente, “Não é de esperar-se do homem pós-moderno que se

torne anti-romanticamente alheio ao mistério de que se vem nutrindo no passado e se

nutre atualmente a religiosidade em oposição à racionalidade absoluta. Não é de

esperar do homem pós-moderno que venha a ser um ser totalmente racional em sua

vivência, em sua convivência e em suas crenças”.

O homem pós-moderno freyriano, cujo futuro poderia ser esboçado por meio da

futurologia, não abandonará necessariamente suas tradições. Pelo contrário, ele irá

retomar certos aspectos dela. O que Freyre entendia por revolução biossocial conteria

em si vários elementos desse retorno às tradições. Nesse sentido, Freyre (Ibid, p.79) irá

dizer que “é de prever para o futuro não de todo remoto uma revivescência religiosa com

projeções de caráter ético talvez regressivo sobre atitudes e sentimentos”. Insisto nesse

argumento, pois ele me parece fundamental para a proposta de Gilberto no Além do

apenas moderno de que o pensamento moderno, sobretudo em sua versão mais

racionalista e triunfalista, que postulava o progressivo desencantamento do mundo,

equivocava-se ao tornar tradição e arcaico sinônimos. Prossigo com o argumento do

autor pernambucano.

“Qual o futuro dessas atitudes? É talvez o futuro mais difícil de ser previsto ou mesmo imaginado. Uma coisa, porém, parece certa: a permanência ou a persistência ou a projeção sobre o futuro de uma religiosidade que, atualmente, não sendo atendida pelas religiões como que clássicas que, no Ocidente, vinham sendo representadas por Igrejas grandiosamente organizadas como a católica de Roma, a anglicana, algumas das protestantes mais eruditas – como a presbiteriana – está encontrando amparo ou refúgio em religiões românticas ou romanticóides: no Brasil, como em alguns outros países, em formas mais ou menos anarquicamente – no bom sentido de anarquia – evangélicas de cristianismo, em seitas afro-europeias, ou de todo ou quase de todo africanas, na magia, na astrologia, em revivescência de cultos pagãos. O que se procura é a satisfação do pendor para o místico: um pendor romântico que vem resistindo, há séculos, às vitórias das ciências, das técnicas, dos meios racionais e anti-românticos de conhecimento em setores que, por mais importantes, não são totalmente importantes para o Homem” (Ibid, p.79,80)

O sociólogo-futurólogo que pretenda captar minimamente bem os futuros

possíveis – futuros no plural, pois, para Freyre, eles são muitos –, não pode ignorar o

aspecto da religiosidade e supor que, no porvir, os indivíduos tenderão à total

Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

103

racionalidade e ignorarão a dimensão mística da vida. Freyre retoma, nesse sentido,

Paul Tillich57, a quem chama de “grande teólogo protestante pós-moderno”, que

sustentava que estaria se vendo o fim da “Era Protestante” em que a teologia teria se

sustentado sobre um racionalismo intelectualista. Para o autor pernambucano, teria sido

esse mesmo racionalismo intelectualista que “concorreu para a cientificização das

Ciências do Homem com sacrifício do que nelas tende a ser seu irredutível humanístico”

e para a “arbitrária simplificação do Homem em trabalhador ou produtor econômico”

(Ibid, p.244). Teologia, ciência e economia, pois, reduzidas à esfera do intelectualismo

racionalista de um pensamento moderno que tomou como valor apenas as capacidades

suscetíveis de serem racionalizadas e transformadas em lucro ou em domínio teológico

e científico da natureza e que reduziu à esfera do “não valor” todas as disposições e

características culturais que não se encaixavam no modelo desejado, transformando-as

em símbolo de “misticismo, mero esteticismo, vagabundagem” (Ibid, p.244).

Isso nos coloca de volta no problema central levantado por Tavolaro acerca do

enquadramento do percurso histórico brasileiro. Um país como o Brasil com pendores

místicos que simplesmente se recusam a desaparecer, com uma lógica de relação com

o tempo oposta àquela que favorece a acumulação de capital teria se constituído

através de uma experiência histórica que deve ser considerada como um mero desvio

daquela dos países modelares da modernidade? Entendo que é, sobretudo, a essa

questão fundamental que Freyre se reporta ao esboçar sua futurologia. É também a ela

que se dirige ao tomar como referência autores espanhóis e declarar-se um “autor

hispânico”. Gilberto buscava contestar a ideia de que nossa experiência histórica fosse

um desvio daquela dos países de modernidade supostamente avançada e o fazia por

meio da adoção de um método sociológico anticonvencional, baseado em outras

referências epistêmicas como a hispânica, que permitia que ele contestasse aquilo que

no capítulo passado chamei, baseado em Tavolaro, de discurso sociológico da

modernidade. A futurologia, de essência hispânica, seria um instrumento fundamental

dessa contestação, pois permitia Freyre pensar que o futuro não seria aquilo que a

ideologia moderna do progresso infinito pregava.

57

Paul Tillich foi um importante teólogo nascido na Alemanha, no seio de uma família luterana, cuja densa formação filosófica lhe fez ser amplamente considerado o mais importante teólogo do século XX. Tillich está entre os intelectuais alemães perseguidos pelo regime nazista que se refugiou, nos anos 30, nos Estados Unidos. Ali, foi professor do Union Theological Seminary, um dos centros de pensamento ecumênico mais importantes naquele país.

Page 104: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

104

Bastos (2003, p.174) faz um bom resumo dos traços mais marcantes de “um

pensador de tradição ibérica”, características que Freyre teria incorporado em sua

sociologia: “o ajuste da palavra à personalidade, a intensificação da realidade, a

invenção do real, a utilização dos mitos, um realismo que articula os fatos à experiência

e à imaginação, uma escritura assentada nas tradições do povo”. Aí estão vários rasgos

hispânicos que procurei abordar ao longo deste trabalho. O impressionismo de Ortega, o

autobiografismo de Américo Castro, a tradição eterna de Unamuno, o senequismo

(Espanha virgen e madre) de Ganivet. Traços que tornavam o pensamento hispânico,

para Freyre, tão particular a ponto de reivindicá-lo como base para sua proposta de

crítica da modernidade empreendida em Além do apenas moderno. Crítica essa que, se

avança um pouco mais a partir do emprego de novas ideias como a pós-modernidade e

a futurologia, não pode ser considerada tão distinta daquela que o ensaísta de Apipucos

já vinha empreendendo em outras obras, especialmente em sua Sociologia. Como

afirma Bastos (Ibid, p.177), ao trazer o modo hispânico de perceber a realidade ao seio

da sociologia, Freyre irá “polemizar com a maneira pela qual a sociologia vinha se

institucionalizando no Brasil”.

Na última parte deste trabalho, irei retomar o esboço de comparação entre o Além

do apenas moderno e o Ariel de José Enrique Rodó que iniciei no capítulo passado.

Meu objetivo com isso é aprofundar os argumentos deste capítulo e, ademais, sugerir

possíveis caminhos de continuidade para esta pesquisa.

3.2 Além do apenas moderno como um arielismo

Quero iniciar esta última parte do trabalho com um excerto do livro de Freyre que

me permitirá voltar a conectar com o Ariel de Rodó. Não serei exaustivo nesta

comparação, que terá como objetivo apenas assentar as bases para um caminho futuro

de estudos.

“Para certos historiadores, cujas perspectivas são pós-modernas mais do que apenas modernas, estamos diante do fim de uma Europa exclusiva ou imperialmente europeia, como marco de história humana. Essa Europa predominantemente esgotada como Europa política e economicamente imperial seria a burguesa, protestante, capitalista, laissez-fairista, intelectualista, racionalista, à parte da qual ficou a península hispânica como uma espécie de semi-Europa aparentemente arcaica e esgotada: na verdade pronta, depois de uma como hibernização sociológica, a antecipar-se à outra em pós-modernidade.” (Freyre, 2001, p.244)

Essa ideia de ser a península ibérica uma outra Europa, arcaica em relação

àquela que emerge especialmente a partir do século XVII e XVIII quando o triunfo do

racionalismo cartesiano faz surgir as sociedades modernas, tem sido uma fonte

Page 105: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

105

inesgotável de imaginação criativa para os intelectuais latino-americanos. Pelo menos

desde Sarmiento, que, com seu Facundo, inicia aquilo que se chama ensaísmo latino-

americano cuja base se assenta, como aponta Antonio Candido (1995, p.12), em uma

“reflexão sobre a realidade social marcada pelo senso dos contrastes e mesmo dos

contrários – apresentados como contradições antagônicas em função das quais se

ordena a história dos homens e das instituições”.

Importa-me aqui aquela tradição dentro desse pensamento latino-americano que

retoma a diferença entre uma Europa ibérica e outra moderna a fim de enfatizar um

conjunto de valores da primeira que deve ser reivindicado no sentido de afirmação de

um projeto próprio e independente do projeto moderno e racional. A corrente de

pensamento inaugurada por José Enrique Rodó com seu livro Ariel deve ser destacada

dentro dessa tradição. Sua influência e importância são tais que as interpretações que

dela decorreram ganharam nome próprio: arielismo.

O recurso de comparação de Ariel com Além do apenas moderno serve-me,

sobretudo, como forma de iluminar tanto a tese central do livro de Freyre, que é sua

crítica à modernidade, quanto a forma como ele a constrói, a partir da afirmação de

contrários materializados em conjuntos civilizacionais distintos que se não são

exatamente os mesmos nas duas obras – pois em Rodó a contraposição se dá

especificamente em relação aos Estados Unidos, representantes maiores do espírito

utilitário, enquanto que em Freyre a antinomia se edifica em oposição ao que o autor

pernambucano denomina amplamente de mundo norte-europeu e anglo-saxão –

possuem o mesmo fundamento. Tal fundamento encontra-se nas distintas matrizes

culturais das Américas que remetem, no caso da Ibérica, à latinidade e, no caso da

Anglo-saxã, à germanidade.

Ariel foi escrito por Rodó em 1900 e, segundo Belén Castro (2009, p.53),

“reelabora as buscas identitárias latino-americanas oferecendo uma reinterpretação

crítica que pela primeira vez articula, organiza e dá sentido a tantas vozes e

preocupações dispersas”. Essas buscas identitárias marcadas por vozes e

preocupações dispersas se caracterizavam por ser tanto de natureza intelectual –

expressadas na obra de escritores como José Martí e Rubén Darío – quanto de

natureza geopolítica – manifestadas tanto na ideia de restauração do projeto bolivariano

de Francisco Bilbao quanto na política de panlatinismo de Napoleão III. O que se

defendia em todas essas expressões de desejo de produzir uma identidade própria para

Page 106: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

106

a América Latina era a autonomia do subcontinente, tanto política quanto ideológica, em

face da crescente influência norte-americana.

Assim, José Martí demandava a construção de “trincheiras de ideias” que

pudessem conter o ímpeto messiânico e expansionista dos Estados Unidos cujo

fortalecimento progressivo desde o início do século XIX convertia-se em planos “pan-

americanistas” que nada mais eram que intervencionismo econômico e militar (Ibid,

p.51). O mesmo Martí alertava, ainda, contra a yanquimanía que tomava o imaginário de

tantos hispano-americanos, como Sarmiento, que enxergavam “no modelo de progresso

anglo-saxão a chave da modernização das adormecidas ex-colônias espanholas e no

yankee o protótipo do homem moderno” (Ibid, p.51). No mesmo sentido, o poeta Rubén

Darío sugeria, originalmente, em 1894, em ensaio que escreve sobre Edgar Allan Poe –l

e antecipando-se a Rodó na utilização da metáfora shakespeariana – que na outra

América era Caliban quem reinava. “Caliban reina en na isla de Manhattan, en San

Francisco, en Boston, en Washington, en todo el país. Ha conseguido estabelecer el

imperio de la materia desde su estado misterioso con Edison [...] Calibán se satura de

whisky, como en el drama de Shakespeare de vino; se desarrolla y crece; y sin ser

esclavo de ningun Próspero, ni martirizado por ningún genio del aire, engorda y se

multiplica” (Darío, 1998 apud Monteiro, 2009, p.161).

A todas essas ideias que já sugeriam uma contraposição clara e insuperável com

o “grande irmão do Norte”, seguiam-se também manifestações geopolíticas que

tornavam cada vez mais clara a contraposição entre as duas Américas. Lembre-se,

nesse sentido, que, como afirma Richard Morse (1988, p.14), “o termo América Latina

provém da França de Napoleão III (...) como parte de um discurso “geoideológico” para

a suposta unidade linguística, cultural e racial dos povos latinos, em contraposição aos

germânicos, anglo-saxões e eslavos”. O pan-latinismo de Napoleão III seria o

contraponto do pan-americanismo da Doutrina Monroe.

É, portanto, dentro de todo esse contexto que irá emergir o Ariel de Rodó. É por

reelaborar todas essa preocupações identitárias dispersas e dar-lhes uma voz e

coerência que o ensaio do uruguaio será tão influente. Um dos elementos mais

importantes que irá aparecer no texto de Rodó é a mudança de dois sentimentos que

durante as primeiras décadas do século XIX seguintes à independência dos países

latino-americanos haviam sido complementários: o desprezo contra a Espanha e sua

política colonial, responsáveis pelo atraso americano, e a admiração pelos Estados

Page 107: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

107

Unidos, país republicano, moderno e progressista (Ibid, p.50). Quando Rodó escreve

Ariel, a transição já estava feita. Espanha, “a madrasta opressora de outros tempos [..]

começará a ser vista como a doadora de um tesouro humanístico (a língua, a arte, a

literatura) que atualiza o passado da latinidade clássica e cristã” (Ibid, p.53). A obra do

ensaísta uruguaio será talvez a obra mais expressiva desse novo sentimento.

Nesse sentido, a guerra hispano-americana de 1898 terá tantas repercussões

para o latino americanismo quanto teve para a geração de 98 na Espanha. A vitória dos

Estados Unidos e a concretização de suas pretensões imperiais sinalizavam qual seria a

tendência política para o século XX e quem seria o inimigo a ser combatido. Ariel será,

portanto, como diz Belén Castro, um livro que “nace bajo el signo del desastre”; um livro

da geração de 98 pensado e sentido desde a América Latina e “impregnado de ideias

regeneracionistas” (Ibid, p.50). Lembre-se da discussão do capítulo passado entre

regeneracionismo e casticismo. Se na Espanha a antítese entre hispanismo e

europeísmo seria um símbolo da oposição entre tradição e modernidade, na América

Latina, a mesma oposição traduzir-se-á como latino-americanismo e pan-americanismo.

A mesma crítica da modernidade e defesa da tradição encontrada em um autor como

Unamuno será vista também em Rodó. O latino-americanismo passaria a representar a

defesa das tradições clássicas e hispânicas e o pan-americanismo, a avassaladora

modernidade utilitarista estadunidense.

Não irei aqui desenvolver as ideias do Ariel de Rodó, pois isso exigiria um esforço

que tornaria este trabalho ainda mais longo. O aprofundamento dessa comparação terá

de ficar para um trabalho futuro. Meu propósito aqui, como assinalei antes, é utilizar a

obra de Rodó a fim de tornar mais compreensíveis os argumentos de Freyre. Penso que

essa pequena explicação do contexto histórico em que surge a obra do ensaísta

uruguaio sirva bem para mostrar a proximidade entre sua defesa do latino-americanismo

e a reivindicação que Gilberto faz da hispanidade.

3.3 Considerações finais

O objetivo fundamental deste trabalho era entender como emerge uma

concepção de hispanidade em Além do apenas moderno, como ela se conecta com a

proposta de uma futurologia sociológica e como, a partir dessa conexão, Freyre pode

sustentar e avançar suas reivindicações de método em sociologia. Ao reivindicar a

cultura hispânica como um dos fundamentos da identidade brasileira, entendo que

Freyre busque destacar a singularidade de nosso processo histórico, que não pode nem

Page 108: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

108

deve ser apreendido como um mero “desvio” daquele das sociedades modernas

centrais. Para contestar esse desvio, Gilberto precisa apoiar-se em uma base

epistêmica que o permita questionar o discurso sociológico da modernidade, segundo o

qual uma sociedade deve necessariamente cumprir certos requisitos a fim de fazer a

transição da vida tradicional, onde se encontraria a negatividade e o arcaísmo, para a

vida moderna, esfera da positividade e do progressismo.

A persistência de traços da vida tradicional no processo histórico brasileiro seria

uma das causas que impedem nossa plena modernização, nossa entrada definitiva na

vida moderna por meio da qual poderíamos, finalmente, superar nosso renitente atraso.

Ao tomar como referência o que chama de “ciência hispânica do homem”, Freyre tenta

construir uma sociologia que supere essa narrativa histórico-sociológica. O tradicional

não deve ser impeditivo do alcance de uma ordem social desejável e, sobretudo, não

deve ser confundido como o meramente arcaico. A novidade que Além do apenas

moderno representa em relação a outras obras do autor pernambucano consiste na

adoção da ideia de pós-modernidade, que o permite pensar o moderno como transitório

e efêmero e o pós-moderno, como momento de retorno de certos valores tradicionais.

Esses valores são, sobretudo, uma forma humanística de se conceber a ciência e a

restauração do ócio como positividade, algo que fora perdido com o triunfo da

concepção moderna de se pensar o tempo unicamente como matéria-prima que se deve

transformar em capital.

Ao “restaurar” esses valores tradicionais essencialmente hispânicos, Freyre faz,

em certo sentido, o mesmo que Richard Morse em seu O espelho de Próspero58.

Segundo Morse, durante dois séculos um espelho norte-americano foi mostrado

agressivamente ao Sul da América e seria necessário invertê-lo para confrontar a Anglo-

América com a experiência histórica da Ibero-América. É possível usar a mesma

metáfora para o empreendimento de Gilberto em Além do apenas moderno, que

também tentaria virar o espelho que constantemente tem sido direcionado ao mundo

Ibérico – e, consequentemente, ao Brasil – a fim de demonstrar-lhe suas faltas, suas

ausências, suas incompletudes. Trata-se, portanto, de inverter essa tendência e mostrar

ao mundo anglo-saxão e norte-europeu que, no futuro que virá, as deficiências ibéricas

tornar-se-ão virtudes e as imperfeições do mundo “apenas moderno” ficarão evidentes.

58

É importante destacar que Morse está operando na mesma metáfora shakespeariana que Rodó. Seu Próspero, como ele mesmo afirma no prefácio de seu livro, inspirou-se na obra do uruguaio, mais especificamente no livro El mirador de Próspero, de 1909, em que Rodó retoma os argumentos de Ariel publicado 9 anos antes.

Page 109: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

109

A inversão do espelho, o confronto das sociedades modelares da modernidade com a

experiência histórica hispânica, seria possível com a pós-modernidade freyriana.

A defesa de uma sociologia mais humanística, em que as palavras tenham tanto

valor quanto tabelas e números parece ser uma das virtudes desse empreendimento de

Freyre em Além do apenas moderno. Na verdade, o argumento de Gilberto não se

restringe apenas à sociologia, ainda que seu interesse maior esteja nela. O ideal crítico

das humanidades parece estar cada dia mais desvalorizado em um mundo em que

avança a instrumentalização do saber acadêmico e no qual a universidade torna-se,

cada vez mais, mero fornecedor de mão-de-obra para o mercado. Textos como o de

Freyre, que enfatizam aquilo que as ciências humanas, como um conjunto de saberes

críticos, ainda têm a oferecer ao nosso mundo, devem ser relidos e recuperados.

Em 2013, a importante revista estadunidense The New Republic59 publicou artigo

do escritor e crítico Leon Wieseltier que logo em seu início faz a seguinte afirmação:

“Has there ever been a moment in American life when the humanities were cherished

less, and has there ever been a moment in American life when the humanities were

needed more? (...) For decades now in America we have been witnessing a steady and

sickening denigration of humanistic understanding and humanistic method. We live in a

society inebriated by technology, and happily even giddily governed by the values of

utility, speed, efficency, and convenience”60. Nada tão próximo daquilo que já afirmava

Freyre 40 anos antes em Além do apenas moderno.

Um pouco antes, mais precisamente no ano de 2004, Judith Butler fazia

afirmação parecida em seu livro Precarious Life: the powers of mourning and violence,

que teve um de seus capítulos traduzido pela Revista Contemporânea, do

Departamento de Sociologia da UFSCar, no ano de 2011. Nesse texto, traduzido para o

português com o nome de “Vida precária”, Butler inicia contando que participara de um

evento em que discursava o diretor de uma conhecida editora universitária. Nesse

discurso, dizia-se que as humanidades haviam perdido sua autoridade moral e sabotado

a si mesma com todo seu relativismo, questionamento e criticismo. Em suma, as 59

A revista The New Republic é uma importante publicação estadunidense de vertente liberal com mais de um século de produção, tendo sido fundada em 1914. 60

“Houve já algum momento na vida americana em que as humanidades foram tão pouco valorizadas, e houve algum momento na vida americana em que as humanidades fossem tão necessárias? (...) Por décadas na América temos testemunhado uma constante e sórdida difamação da percepção humanística e do método humanístico. Vivemos em uma sociedade inebriada pela tecnologia, alegremente, e mesmo frivolamente, governada pelos valores da utilidade, velocidade, eficiência e conveniência” [tradução do autor]. O texto integral pode ser encontrado em: http://www.newrepublic.com/article/113299/leon-wieseltier-commencement-speech-brandeis-university-2013

Page 110: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

110

humanidades eram, segundo a filósofa estadunidense, ridicularizadas. Segundo ela, no

entanto, “responder a esse discurso parece-me ser uma obrigação importante nestes

tempos” (Butler, 2011, p.15).

Cito esses dois exemplos apenas como ilustração da importância da perspectiva

que Freyre defende em Além do apenas moderno. A defesa do saber crítico e

humanístico que se constitui em razão de ser das ciências humanas é não apenas

necessário, mas imperativo nos dias de hoje. Se as humanidades terão alguma

relevância no mundo que virá, certamente não o será copiando modelos das ciências

matemáticas, físicas ou naturais. Como diz Butler, é como crítica cultural que as

humanidades têm algum futuro, pois é essa crítica que pode “nos fazer retornar ao

humano aonde não esperamos encontrá-lo, em sua fragilidade e nos limites de sua

capacidade de fazer sentido” (Ibid, p.32).

Essa importante virtude do livro de Freyre não pode, no entanto, ocultar alguns de

seus problemas. Entendo que os principais e mais destacáveis sejam sua rejeição

completa do marxismo e o problema do conservantismo, tantas vezes criticado, que a

ideia de recuperação da tradição pode ensejar. Não entendo que esse conservadorismo,

particularmente, deva ser imediatamente refutado; todavia, tanto no texto de Rodó

quanto no de Freyre, muitas vezes, transparece um certo elitismo na concepção de um

ócio humanístico desinteressado que despreza a massificação do mundo moderno que

deve ser mais bem problematizado. Entendo que é possível fazer uma crítica justa a

esses problemas sem, no entanto, desprezar a unidade do livro e sua importante crítica

ao modernismo vulgar que tomou como desvio todo o percurso histórico que não se

encaixava naquele dos países centrais da experiência moderna.

A rejeição do marxismo e, consequentemente, de uma análise cuidadosa das

relações de classe faz com que Freyre tenha uma visão um tanto quanto idílica do

futuro. O mundo que emergiu da última crise do sistema capitalista certamente não é

aquele que descreve Freyre, em que o ideal do ócio triunfaria sobre o do negócio. Nosso

tempo vivido e experimentado continua sendo o do time is money e parece ser cada dia

mais difícil dele desvencilharmo-nos. Nesse sentido, um importante contraponto crítico à

obra de Freyre poderia ser encontrado no ensaio do escritor norte-americano, e

professor de teoria da arte na Universidade Columbia, Jonathan Crary intitulado 24/7

Late Capitalism and the ends of sleep.

Page 111: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

111

Nesse livro provocativo, Crary sugere que o capitalismo contemporâneo prepara-

se para avançar em direção à última esfera da vida humana que ainda não se encontra

sob o domínio do capital: o sono. Logo no início do livro, o ensaísta nos informa sobre

pesquisas realizadas – por meio da parceria de universidades americanas, do

departamento de defesa dos Estados Unidos e do Pentágono – com um pássaro

chamado White-crowned sparrow. E qual seria a especificidade desse pássaro? Ele é

capaz de permanecer acordado durante toda sua migração de outono que o leva desde

o Alasca até o México. São 7 dias sem dormir e, muitas vezes, até mais. As pesquisas

do governo estadunidense dirigem-se no sentido de aprender como aplicar essa

característica desses pássaros em seres humanos. Como diz Crary, “o objetivo é

descobrir formas de tornar possível que as pessoas permaneçam sem dormir e, ao

mesmo tempo, que funcionem de maneira produtiva e eficiente (Crary, 2015, p.13). De

fato, tal futuro não tem absolutamente nenhuma relação com aquele pintado por Freyre.

Na realidade, é seu exato e assustador oposto.

Talvez a recuperação da proposta de Freyre nos desafie a um importante

exercício imaginativo a fim de pensar um mundo que contraste com o sombrio futuro

esboçado por Crary, em que nem mais em nosso sono poderemos estar livres do

domínio do mercado. É preciso, certamente, criar soluções por meio das quais se possa

retomar a proposta de um ócio que triunfe sobre o negócio; o lúdico possa novamente

encontrar espaço em um mundo inebriado por tecnologia e competição; e possamos

escapar da submissão total a uma experiência moderna que transforma absolutamente

tudo em mercadoria. No entanto, para realizar esse exercício imaginativo, não se pode

abrir mão de uma análise coerente do mundo capitalista para a qual a contribuição de

Marx continua sendo inestimável.

Quanto ao problema da recusa de Freyre pelo mundo moderno e suas

consequências mais imediatas: o liberalismo, a democracia de massas e a igualdade

que tende a tornar-se massificação, dirijo algumas palavras pontuais. Entendo que

estamos aqui diante do difícil problema de optar por soluções políticas que acabam

necessariamente por privilegiar um aspecto da vida humana em detrimento de outro.

Freyre claramente advoga uma opção política que não prima pelos valores da igualdade

política das democracias modernas. Sua compreensão é de que a plenitude da vida

humana pode ser encontrada em outra forma de organização política. Essa sua opção

faz com que ele, muitas vezes, imagine um futuro que, em sociedades capitalistas

ultracompetitivas, não é de fato acessível a todas as pessoas. A igualdade não parece

Page 112: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

112

ser uma questão fundamental para o autor pernambucano que se muitas vezes diz

acreditar que o futuro irá possibilitar maior liberdade para todos desfrutarem do lúdico,

em outras parece reafirmar uma visão de que a sociedade é mesmo hierarquizada e que

a cada indivíduo compete ocupar distintas posições na vida social e, de certa forma, até

mesmo resignar-se a elas. Como Freyre não aprofunda essa questão, sobre qual saída

política ele propõe para operacionalizar sua visão de futuro, deixa a possibilidade de

crítica nesse sentido.

Outro problema parece ser sua ingenuidade em relação à possibilidade de que os

processos de automação que possibilitaram o amplo desenvolvimento social e

econômico dos países centrais da modernidade fossem transferidos integralmente para

outras partes do mundo. O mundo regido pela ética do ócio dependeria muito desse

fator, da progressiva automação que liberaria os indivíduos do domínio da ética do

negócio. Novamente aí parece faltar a Freyre teoria marxista para compreender

plenamente o funcionamento do mundo capitalista e as desigualdades que ele produz

não apenas em nível local, no interior dos Estados-Nação, mas também em uma

dimensão mundial, fazendo com que países ocupem posições periféricas que, muitas

vezes, são extremamente difíceis de suplantar.

De qualquer forma, avançar nessas críticas extremamente complexas não é

tarefa para este trabalho, mas para pesquisas futuras. Por ora, encerro a reflexão com

aquilo que Além do apenas moderno tem de positivo. Com sua reivindicação de um

humanismo crítico, algo que me parece absolutamente fundamental para os dias de

hoje. Termino com as palavras proferidas por Leon Wiseltier, que citei anteriormente, em

discurso dirigido aos seus “colegas humanistas” em cerimônia de graduação da

Brandeis University, publicado pela revista The New Republic. Se o seu discurso

iniciava-se em tom de alerta, ele termina com uma mensagem de esperança:

“So keep your heads. Do not waver. Be very proud. Use the new technologies for old purposes. Do not be rattled by numbers, which will never be the springs of wisdom. In upholding the humanities, you uphold the honor of a civilization that was founded upon the quest for the true and the good and the beautiful. For as long as we are thinking and feeling creatures, creatures who love and imagine and suffer and die, the humanities will never be dispensable. From this day forward, then, act as if you are indispensable to your society, because – whether it knows or not – you are”

61.

61

“Então mantenham suas cabeças eretas. Não fraquejem. Sejam orgulhosos. Usem as novas tecnologias para velhos propósitos. Não sejam confundidos por números, que nunca serão a primavera do conhecimento. Ao sustentarem as humanidades, vocês sustentam a honra de uma civilização que foi fundada na busca pela verdade, pelo bom e pelo belo. Enquanto formos criaturas que pensem e sentem, criaturas que amam e imaginam e sofrem e

Page 113: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

113

Penso que se Freyre ainda pudesse reeditar o Além do apenas moderno, essa

citação certamente poderia estar nele.

morrem, as humanidades nunca serão dispensáveis. Deste dia em diante, ajam como se vocês fossem indispensáveis para a sociedade, pois – ela sabendo ou não – vocês são” [tradução do autor].

Page 114: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

114

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABELLÁN, José Luis. Introducción. In: GANIVET, Ángel. Idearium español. Madrid:

Editorial Biblioteca Nueva, 1999 [1996]

ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Ed., 1999

BASTOS, Elide Rugai. Gilberto Freyre e o pensamento hispânico: Entre Dom Quixote

e Alonso El Bueno. Bauru, SP: Edusc, 2003

_________. Iberismo na obra de Gilberto Freyre. In: Revista USP. São Paulo (38):

Julho/Agosto 1998, p.48-57

BAGGIO, Katia Gerab. Iberismo, Hispanismo e latino-americanismo no pensamento de

Gilberto Freyre: ensaios e impressões de viagens. In: BEIRED; BARBOSA (Org).

Política e Identidade cultural na América Latina. São Paulo: Editora Unesp, 2010,

P.14-44

BAYÓN, Miguel Zorita. Breve Historia del Siglo de Oro. Madrid: Ediciones Nowtilus,

2010

BURKE, Peter. Gilberto Freyre e a nova história. In: Tempo Social. Revista de

Sociologia USP. São Paulo 9(2): outubro de 1997, p.1-12

BUTLER, Judith. Vida Precária. In: Contemporânea – Revista de Sociologia da

UFSCar. São Carlos, Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da

UFSCar, nº 1, p.13-33, 2011

CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: Holanda, Sérgio Buarque de.

Raízes do Brasil. 26ª Edição: 14ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras,

1995

CASTRO, Américo. España en su historia: Ensayos sobre historia y literatura. Obra

reunida volumen 3. Madrid: Editorial Trotta, 2004

CHIBBER, Vivek. Postcolonial theory and the specter of Capital. New York, London:

Verso, 2013

CRARY, Jonathan. 24/7 El capitalismo al asalto del sueño. Barcelona: Editorial Ariel,

2015

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. 51ª Edição, São Paulo: Global Editora,

2006

_________. Além do apenas moderno. 2a Edição. Rio de Janeiro: Topbooks

Univercidade Editora, 2001

_________. Maîtres et esclaves: la formation de la societé brésilienne. Paris:

Gallimard, 2009 [1978]

Page 115: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

115

_________. Mundo novo nos trópicos. 3ª Edição. São Paulo: Global, 2011

_________. O brasileiro entre os outros hispanos: afinidades, contrastes e possíveis

futuros nas suas inter-relações. Rio de Janeiro: José Olympio. Brasília: INL, 1975

_________. Uma política transnacional de cultura para o Brasil de hoje. Rio de

Janeiro: Revista Brasileira de Estudos Políticos, 1960

GANIVET, Ángel. Idearium español. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1999 [1996]

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP,

1991

GÓMEZ, Mariano Álvarez. Unamuno y Ortega: La búsqueda azarosa de la verdade.

Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2003

GRACIÁN, Baltasar. El criticón Edición de Santos Alonso. Madrid: Cátedra Letras

Hispánicas, 2004 [1980]

LADERO QUESADA, Miguel Ángel. La formación medieval de España: Territorios.

Regiones, Reinos. Madrid: Alianza Editorial, 2011 [2004]

MERQUIOR, José Guilherme. Um humanista além da modernidade. In: FREYRE,

Gilberto. Além do apenas moderno. 2a Edição. Rio de Janeiro: Topbooks Univercidade

Editora, 2001

MOLINA, Antonio M. López. Introducción. In: UNAMUNO, Miguel de. Del sentimiento

trágico de la vida en los hombres y en los pueblos. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva,

2006

_________. Del amor a Dios al Dios-Amor. Reflexiones sobre un problema

unamuniano. In: Revista Pensamiento. Universidad Pontificia Comillas. Madrid: Vol. 65,

núm 243, 2009, p.143-160

MONTEIRO, Pedro Meira. As raízes do Brasil no Espelho de Próspero. In: Novos

Estudos CEBRAP, Nº 83. São Paulo: março de 2009, p.159-182

MORSE, Richard M. O espelho de Próspero: Cultura e ideias nas Américas. São

Paulo: Companhia das Letras, 1988

MEUCCI, Simone. Gilberto Freyre e a sociologia no Brasil: da sistematização à

constituição do campo científico. Tese (Doutorado em Sociologia). Instituto de Filosofia e

Ciências Humanas. Universidade de Campinas. Campinas, SP: 2006

OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Ordem e progresso em Gilberto Freyre. In: KOMINSKY; LÉPINE;

PEIXOTO (Org). Gilberto Freyre em quatro tempos. São Paulo: Editora UNESP, 2003

ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones del Quijote edición de Julián Marías. 9ª

Edición. Madrid: Cátedra Letras Hispánicas, 2012

Page 116: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman

116

_________. Meditaciones del Quijote edición de José Luis Villacañas. Madrid: Editorial

Biblioteca Nueva, 2004

PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São

Paulo: Editora UNESP, 2005

PALLARES-BURKE, Maria Lúcia; BURKE, Peter. Gilberto Freyre: Social theory in the

tropics. Long Hanborough, Witney, Oxfordshire, England: Peter Lang Ltd, 2008

PAZ, Octavio. Sor Juana Inés de la Cruz o las trampas de la fe. Tercera edición,

decimosexta reimpresión. México: Fondo de Cultura Económica, 2008 [1983]

RABATÉ, Jean-Claude. Introdução. In: UNAMUNO, Miguel de. En torno al casticismo.

Madrid: Cátedra Letras Hispánicas, 2014

RODÓ, José Enrique. Ariel. 5ª Edición. Madrid: Cátedra Letras Hispánicas, 2009

SANTÍ, Enrico Mario. Introducción. In: PAZ, Octavio. Laberinto de la soledad. 20ª

Edición. Madrid: Cátedra Letras Hispánicas, 2014

SCHWARTZMAN, Simon. O Espelho de Morse. In: Novos Estudos CEBRAP, Nº 22.

São Paulo: outubro de 1988, p.185-192

_________. A redescoberta da Cultura. São Paulo: Editora da Universidade de São

Paulo: Fapesp, 1997

SOUZA, Jessé. Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira. In: Tempo Social,

Revista Sociologia USP. São Paulo, 12(1): maio de 2000, p.69-100

TAVOLARO, Sérgio. Existe uma modernidade brasileira? Reflexões em torno de um

dilema sociológico brasileiro. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 20, Nº 54.

São Paulo, outubro de 2005, p.5-21

_________. Gilberto Freyre e nossa “modernidade tropical”: entre a originalidade e o

desvio. In: Sociologias. Ano 15, Nº 33. Porto Alegre: maio/ago 2013, p.282-317

UNAMUNO, Miguel de. Del sentimiento trágico de la vida en los hombres y en los

pueblos. Madrid: Editorial Biblioteca nueva, 2006

_________. En torno al casticismo. Edición de Jean-Claude Rabaté. Madrid: Cátedra

Letras Hispánicas, 2014.

VILLACAÑAS, José Luis. Introducción. In: ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones

del Quijote. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004

WIESELTIER, Leon. Perhaps culture is now the counterculture: A defense of the

humanities. In: The New Republic [on-line]:http://www.newrepublic.com/article/113299/leon-

wieseltier-commencement-speech-brandeis-university-2013