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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
ANGELO MARCELO VASCO
HISPANIDADE, HUMANISMO E FUTUROLOGIA EM GILBERTO FREYRE: UMA ANÁLISE DE “ALÉM DO APENAS MODERNO”
CURITIBA 2015
ANGELO MARCELO VASCO
HISPANIDADE, HUMANISMO E FUTUROLOGIA EM GILBERTO FREYRE: UMA ANÁLISE DE “ALÉM DO APENAS MODERNO”
Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais.
Orientadora: Professora Dra. Simone Meucci.
CURITIBA 2015
AGRADECIMENTOS
Agradeço à professora Simone Meucci, quem primeiro me sugeriu fazer uma monografia que versasse sobre o livro Além do apenas moderno. Este trabalho, e tudo aquilo que, eventualmente, poderá surgir dele, está e estará sempre em dívida com esse primeiro estímulo.
Aos amigos Ellen e Victor, pela disposição em ler o primeiro projeto desta monografia. Obrigado pela amizade sincera que tem nos acompanhado já há alguns anos e que, espero, continue a acompanhar por muitos outros.
Ao amigo Lucas Camargo que, durante todo o tempo em que estive em Madrid, teve a disposição e a imensa generosidade em buscar e disponibilizar-me livros a que eu não poderia ter acesso. Este trabalho não seria o que é sem sua ajuda.
Ao amigo Lucas Roahny, por ter sido o primeiro com quem conversei sobre a ideia de um trabalho que articulasse hispanidade e futurologia em Gilberto Freyre. Seu incentivo foi fundamental para que eu acreditasse nas possibilidades teóricas desta pesquisa.
Aos meus pais, pelo fundamental apoio em todas as áreas de minha vida e por sempre acreditarem em meus projetos.
E à Nuria Brice, pelo amor, apoio e paciência. Você me ensina o significado profundo da palavra companheirismo.
RESUMO
Este trabalho se constitui em um esforço de compreensão da concepção de hispanidade
em Gilberto Freyre realizado a partir de uma interpretação da obra "Além do apenas
moderno". Nesse livro, Freyre propõe a ideia de uma futurologia sociológica cuja base
poderia ser encontrada naquilo que o autor pernambucano chama de ciência hispânica
do homem. Tal ciência, uma forma compreensiva e autobiográfica de se produzir
conhecimento, teria emergido entre os hispanos já no início da era moderna, como
resultado do percurso histórico particular da península ibérica, em que se destaca
principalmente o longo contato com o elemento semita - judeu e muçulmano. Autores
como Unamuno, Ortega y Gasset e Ganivet, que reconhecidamente influenciaram a
obra de Freyre, seriam, para Gilberto, atualizadores dessa forma de saber. Tendo como
base esse conjunto epistêmico ibérico, Freyre irá propor um antagonismo entre
civilização hispânica, da qual o Brasil faria parte, e o que, em termos gerais, ele delimita
como mundo norte-europeu e anglo-saxão. A utilização desse recurso de afirmação de
contrários o aproximaria do ensaísmo latino-americano, mais especificamente de sua
corrente "arielista", que remete a José Enrique Godó. Sugiro, nesse sentido, que, em
Além do apenas moderno, Freyre propõe uma espécie de arielismo, em que o futuro
pós-moderno implicaria em uma recuperação de aspectos da tradição, tema esse
sempre tão caro ao autor pernambucano, a partir da qual a forma hispana de conhecer o
mundo e relacionar-se com ele, mais poética, intuitiva e humanista, sustentada
essencialmente a partir do conceito de tempo tríbio, poderia restaurar os equívocos do
mundo "apenas moderno", grosseiramente materialista e racionalista. O tempo-ócio dos
hispanos - tempo-saudade, tempo-nostalgia, tempo-existencial - repararia no futuro pós-
moderno a relação meramente utilitária com o tempo que havia se tornado o padrão na
vida "apenas moderna". Sustento que, a partir desse argumento, Freyre pode enfatizar a
singularidade do percurso histórico brasileiro, refutando a ideia de seu “desvio”, e, ao
mesmo tempo, contestar o discurso sociológico da modernidade, o que lhe dá
possibilidade de afirmar seu projeto intelectual de propor outra sociologia.
Palavras-chave: Pensamento Social Brasileiro; Gilberto Freyre; Modernidade; Pós-
modernidade; Hispanidade; Futurologia.
ABSTRACT
This monograph is an effort to understand the idea of Hispanidade (Hispanicity) in the
work of Gilberto Freyre carried out through an interpretation of the book Além do apenas
moderno (Beyond the merely modern). In this book, Freyre proposes the idea of a
sociological futurology whose base could be found in that which he calls “Hispanic
Science of Man”. This Science, a comprehensive and autobiographical way of conceiving
knowledge, would have emerged among the spaniards in the begining of the Modern
Age, as a result of the peculiar history of the Iberian Peninsula, in which stands out the
continued contact of christians, muslims and jews. Authors such as Unamuno, Ganivet
and Ortega y Gasset, who admittedly have influenced the work of Freyre, would be, in
his own opinion, renewers of this Hispanic Science of Man. Positining himself upon this
set of iberian epistemic propositions, Freyre will suggest an antagonism between
hispanic civilization, which Brazil would belong to, and what in general terms he defines
as north-european and anglo-saxon world. By affirming these two opposing identities,
Freyre would near the Latin American essay tradition, specially the one initiated by José
Enrique Rodó with his seminal work Ariel. I suggest therefore that in Além do apenas
moderno Freyre will propose an idea that could be understood as arielismo, in which the
post-modern future would signify a return of traditional values. In this new post-modern
world of his, the hispanic way of experiencing the world – more poetic, intuitive and
humanist – could repair the mistakes committed by the “merely” modern world, vulgarly
materialistic and rationalist. The hispanic idleness would repair in the post-modern future
the merely utilitarian relation with time that had become the pattern of modern life. I
suggest that, based on this argument, Freyre is able to emphasize the singularity of
brazilian historical experience, refusing therefore the idea of its “deviation”, and, at the
same time, contest the sociological discourse of modernity, which enables him to affirm
his intellectual project of proposing another approach to sociology.
Key-words: Brazilian social thought; Gilberto Freyre; Modernity; Post-modernity,
Hispanicity; Futurology.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..............................................................................................................................................7
1 ALÉM DO APENAS MODERNO: UMA ANÁLISE ............................................................................ 11
1.1 Modernidade, pós-modernidade e futurologia: a concepção de tempo em Gilberto Freyre
................................................................................................................................................................. .13
1.2 Compreender o presente, predizer o futuro: A leitura que Gilberto Freyre faz de seu tempo
.................................................................................................................................................................. 28
1.2.1 A revolução biossocial ............................................................................................................ 29
1.2.2 A questão do tempo crescentemente livre ou as relações entre trabalho e lazer ......... 38
1.2.3 As ciências e as humanidades .............................................................................................. 44
1.2.4 A tropicalidade como especificidade brasileira ................................................................... 48
2 HISPANIDADE EM GILBERTO FREYRE: A INFLUÊNCIA DO PENSAMENTO ESPANHOL ..50
2.1 O caminho para a hispanidade ..................................................................................................... 52
2.2 O sentido da hispanidade: a civilização hispânica .................................................................... 62
2.3 A hispanidade como influência: os autores espanhois ............................................................. 76
3 HISPANIDADE, HUMANISMO E FUTUROLOGIA: A REABILITAÇÃO DO APENAS
MODERNO ................................................................................................................................................. 92
3.1 Intra-história e intra-futuro: do passado profundo ao futuro íntimo ......................................... 95
3.2 Além do apenas moderno como um arielismo ......................................................................... 104
3.3 Considerações finais .................................................................................................................... 107
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................................... 114
7
INTRODUÇÃO
Este trabalho sobre o livro Além do apenas moderno de Gilberto Freyre teve, na
verdade, seu início a partir das provocações de outra leitura. Foi, primeiramente, O
Espelho de Próspero de Richard Morse que despertou meu interesse para o tema aqui
discutido. Teria a civilização ibero-americana alguma mensagem para o nosso mundo
moderno?, pergunta-se Morse no prefácio de seu livro, questão que irá direcionar toda
sua abordagem que retraça a genealogia da história comum das Américas e busca
compreender suas duas distintas matrizes civilizacionais, a ibérica e a anglo-saxã,
tomando-as como diferentes opções culturais. A partir desse enquadramento, a
experiência histórica da Ibero-América é tratada não como “estudo de um caso de
desenvolvimento frustrado”, mas como a “vivência de uma opção cultural” (Morse, 1988,
p.14), que, nesse sentido, teria, sim, algo de fundamental a ensinar ao mundo moderno.
A resposta que a narrativa sociológica hegemônica dá à pergunta de Morse é, no
entanto, bastante distinta. De acordo com ela, a herança ibérica brasileira seria uma das
razões para nossa renitente ausência de modernidade, nosso persistente atraso.
Poderia ser tomada como emblemática dessa narrativa dominante, a posição de Simon
Schwartzman (1988; 1997) para quem as teses do brasilianista estadunidense seriam
apenas um culturalismo erudito, ilusório e profundamente equivocado1. A obra de Morse
não é, todavia, o cerne desta monografia. Ela é apenas o ponto de partida. A
provocação que me possibilitou olhar para Freyre de outra maneira.
A leitura de Além do apenas moderno fez-me conhecer um Freyre diferente
daquele com quem já tivera contato. As ideias-força que sustentam a obra do ensaísta
de Apipucos – a mestiçagem, a tropicalidade e o iberismo, para citar apenas algumas –
estavam ali, é verdade. Havia, no entanto, aspectos distintos que, logo no início, talvez
não tenha conseguido perceber muito bem. A escritura livre e inventiva de Gilberto
parecia ser levada às últimas consequências e chegava a aparentar certo
descompromisso com o rigor sociológico. O emprego de ideias como tempo tríbio,
futurologia e revolução biossocial, por exemplo, causavam, confesso, certo
estranhamento. Minha primeira impressão foi de que o livro era prospectivo em demasia
1 Sobre o debate entre Morse e Schwartzman ver: Schwartzman (1988; 1989) e Morse (1989). O debate
se iniciou com a resenha do livro O Espelho de Próspero que Schwartzman escreveu para a revista Novos Estudos CEBRAP intitulada O Espelho de Morse. Em seguida, veio a réplica de Morse sob o título A miopia de Schwartzman e, por fim, a tréplica de Schwartzman que tem como título O gato de Cortázar. A discussão versa, sobretudo, acerca da tensão tradição-modernidade, que é o tema central deste meu trabalho.
8
e que Freyre inseria-se demais no próprio texto, falando muitas vezes de si mesmo e de
sua obra, e esboçava um futuro que parecia ser mais fruto de sua imaginação do que
propriamente uma análise cuidadosa dos fatos sociais.
Eu estava, no entanto, equivocado. Tive que deixar o livro de lado por alguns
meses para poder, posteriormente, compreendê-lo de verdade em todas as suas
possibilidades. Nesses meses em que me afastei dele, conheci mais profundamente o
pensamento hispânico. Travei meu primeiro contato com autores como Miguel de
Unamuno, Ángel Ganivet, Ortega y Gasset e Américo Castro, intelectuais espanhóis
contemporâneos cuja influência na obra de Freyre é bastante notável. Conheci também
autores espanhóis mais antigos como Baltasar Gracián, Juan Luis Vives e Frei Luis de
León, símbolos do humanismo espanhol e que Freyre insistentemente retoma na obra
que é objeto deste trabalho. Descobri o misticismo nas figuras de San Juan de la Cruz e
Santa Teresa de Jesus em todo seu vigor poético e literário. Aprendi sobre o
renascimento e o barroco espanhol, períodos em que emergiram os escritos de Miguel
de Cervantes, Lope de Vega, Francisco de Quevedo e tantos outros autores que fizeram
esse momento histórico da Espanha ser conhecido como século de ouro.
Ao voltar para a obra de Freyre, após alguns meses de inserção no pensamento
espanhol, minha apreensão do texto foi outra. Como irei mostrar ao longo deste
trabalho, os capítulos que compõem o Além do apenas moderno foram sendo escritos
em anos anteriores à sua publicação, em forma de ensaios, artigos e apresentações de
conferência. Por terem uma coerência interna e abordarem temas comuns, são
agrupados e transformados em livro, que será publicado em 1973. Nesse sentido, tanto
o prefácio escrito por Gilberto e a introdução são bastante reveladores do sentido de
unidade que se pretende privilegiar. Nessas duas partes iniciais do livro, emerge com
força a ideia que irá embasar a proposição freyriana de uma futurologia sociológica:
aquilo que o autor pernambucano chama de “ciência hispânica do homem”. Dirá ele,
“dos modernos métodos de compreensão que, nas Ciências do Homem, permitem vir se
desenvolvendo uma sociologia voltada para o estudo, assim compreensivo, dos futuros
possíveis – uma como futurologia – não há despropósito em destacar-se que têm
antecedentes hispânicos” (Freyre, 2001, p.35).
Penso ter sido o contato mais aprofundado com o pensamento espanhol que me
possibilitou reler o livro de Freyre “com outros olhos”. Ao ter as referências intelectuais
que embasavam as ideias do autor pernambucano, aquilo que me parecia defeito numa
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primeira leitura tornou-se virtude; converteu-se na base que sustentava todo o livro.
Obviamente, Gilberto não irá se limitar apenas a autores espanhóis para sustentar sua
ideia de futurologia. Há uma profusão de autores recuperados que seriam exemplos
daquilo que ele pretendia alcançar com uma ciência que abordasse o futuro: desde
clássicos como George Simmel, Max Weber, Alexis de Tocqueville, passando por
nomes conhecidos, mas que não são em geral mobilizados pela sociologia, estando
mais ligados a outras ciências e à literatura, como Aldous Huxley, Arnold Toynbee, John
Maynard Keynes, Paul Valéry, até chegar em nomes mais desconhecidos como Gaston
Berger, Bertrand de Jouvenel e Georges Balandier. Além do apenas moderno é, nesse
sentido, mais um símbolo daquilo que afirmaram Peter Burke e Maria Lúcia Pallares-
Burke (2008, p.20) de que Freyre era uma espécie de “esponja intelectual”, capaz de
absorver informações das mais variadas fontes e tornar ideias de outros autores como
parte de si mesmo.
Como este é, no entanto, um pequeno trabalho monográfico, tive que fazer a
opção de centrar-me em algumas poucas ideias esboçadas no livro. Entendo que a mais
importante delas remete à concepção de hispanidade. Por isso, esta monografia
pretende captar como Freyre esboça essa ideia em Além do apenas moderno e como
ela se conecta com a futurologia. A conexão entre hispanidade e futurologia será, como
tentarei mostrar, a reivindicação por Freyre de seu método sociológico, bastante distinto
daquele que era empregado pela sociologia institucionalizada em sua época. Penso ser
correto dizer que a cisão entre a sociologia de Freyre e a sociologia científica (Meucci,
2006) poder-nos-ia remeter ao debate entre Morse e Schwartzman e que, nesse
embate, Freyre estaria posicionado ao lado do norte-americano, enquanto Schwartzman
representaria a sociologia institucional e científica.
A fim de alcançar esse objetivo de aproximar hispanidade e futurologia,
estruturarei o trabalho da seguinte maneira. No primeiro capítulo, farei uma análise
ampla de Além do apenas moderno, em que tentarei mostrar as principais ideias que
fundamentam o projeto de Freyre de sugerir os contornos de uma ciência que possa vir
a ser institucionalizada como futurologia. Irei, em um primeiro momento, reportar-me a
todo o aparato teórico que Gilberto utiliza para construir a ideia de futurologia e, num
segundo momento, buscarei mostrar como ele operacionaliza essa ideia, fazendo
análises de futuros possíveis para a humanidade e, em especial, como o próprio autor
pernambucano diz, para a “humanidade brasileira”.
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No segundo capítulo, centrar-me-ei na concepção de hispanidade como Gilberto
a forja não apenas em Além do apenas moderno, mas ao longo de sua obra. Tentarei
mostrar como as teses ibéricas, que em um primeiro momento reportavam-se,
sobretudo, ao mundo português, passam a integrar também o universo espanhol, de
forma que, ao final da carreira do autor pernambucano, iberismo já é sinônimo de
hispanidade. Nesse sentido, procurarei tornar claro qual o sentido da hispanidade
reivindicada por Freyre. Apoiar-me-ei nas ideias do filólogo e historiador espanhol
Américo Castro para ilustrar como Gilberto a entendia. Por fim, retomarei autores
contemporâneos como Miguel de Unamuno, Ángel Ganivet e Ortega y Gasset que
tiveram importante influência na obra do autor pernambucano. Meu objetivo aqui será
mostrar como o conjunto do pensamento hispânico oferece para Freyre outra episteme
na qual ele pode se basear para questionar o que Sérgio Tavolaro (2005; 2013) chama
de discurso sociológico da modernidade.
No último capítulo, mostrarei como é, sobretudo, a partir da concepção de intra-
história de Miguel de Unamuno que Gilberto se baseia para conceber sua futurologia,
que, ver-se-á, busca conhecer o intra-futuro de uma sociedade. Não se trata, portanto,
de projetar um futuro utópico como aquele que emerge da teleologia da modernidade,
em que no porvir da vida humana encontrar-se-ia a superação de todos os problemas
do passado e do presente, mas sim de encontrar o futuro íntimo, o futuro interior de uma
sociedade, que se conecta com suas tradições mais profundas (Freyre, 2001, p.29). Em
um segundo momento, utilizo-me do livro Ariel de José Enrique Rodó para sugerir que
em Além do apenas moderno Freyre empreende uma espécie de arielismo, em que o
futuro pós-moderno é apresentado como momento histórico de retomada da tradição,
especialmente aquela que se reporta a um modo hispânico de viver o tempo, o tempo
tríbio, e de conhecer o mundo, a ciência hispânica do homem. Nesse sentido, da mesma
forma como Rodó realiza uma crítica da modernidade utilitarista anglo-saxã
reivindicando o latinoamericanismo, Freyre contesta o mundo “apenas moderno” a partir
da reivindicação da hispanidade. Em ambos, há a mesma defesa do ócio frente ao
tempo transformado em mero instrumento da acumulação, o mesmo argumento de que
os valores do humanismo podem reabilitar um mundo dominado pelos interesses do
racionalismo moderno utilitarista.
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1 ALÉM DO APENAS MODERNO: UMA ANÁLISE
With varying content, the term ‘modern’ again and again expresses the consciousness of an epoch that relates itself to the past of antiquity, in order to view
itself as the result of a transition from the old to the new.
J.Habermas2
A definição de moderno expressa na epígrafe acima serve como bom ponto de
partida para se iniciar uma discussão do livro Além do apenas moderno de Gilberto
Freyre. Não porque ela exprima uma consonância de pensamento entre Habermas e
Freyre. Exatamente pelo contrário. É provável que o autor pernambucano concordasse
com a afirmação do filósofo alemão; no entanto, se este se apoiaria na ideia de
modernidade como consciência de uma transição do antigo para o novo a fim de
defendê-la e sustentar os ganhos – ainda inacabados – que ela representa para a
humanidade, o ensaísta de Apipucos dela partiria para criticar a efemeridade e
transitoriedade do chamado mundo moderno, que, para ele, mal começa a existir e já
deixa de ser. Essa é a ideia central e o eixo sobre o qual se articulam todas as
argumentações do livro Além do Apenas Moderno: a contingência do mundo moderno e
a necessidade de se pensar para além dele.
Em seu texto de abertura do livro3, José Guilherme Merquior (2001, p.10) percebe
de maneira precisa aquilo que subjaz ao pensamento freyriano na forma como
apresentado nessa obra: sua percepção da “atitude paradoxal do espírito pós-moderno
em relação ao tempo histórico”. A pós-modernidade, para Freyre, caracteriza-se como
um momento em que já não mais se “esposa a mitologia profana do progresso linear”
(Ibid, p.10). Ou seja, aquela certeza tão moderna de que existe uma transição perene do
arcaico ao novo, e que produziu as narrativas dominantes sobre a modernidade, não
existe mais. Ao observar especialmente o comportamento de jovens de seu tempo,
Freyre (2001, p.67) percebe um repúdio ao moderno por parte do espírito pós-moderno
que reclamaria, inclusive, por saudosismo, um retorno ao arcaico. Nesse sentido, as
narrativas teleológicas tão características das interpretações modernas da História
perdem força e sentido, uma vez que não são capazes de explicar os comportamentos
sociais do homem contemporâneo, que de tantas maneiras passa a voltar-se ao
passado, ao antigo, contrariando as perspectivas que defendem a linearidade do tempo.
2 “Com alguma variedade de conteúdo, o termo moderno repetidamente expressa a consciência de uma
época que se conecta com o passado da antiguidade a fim de considerar a si mesma como resultado de uma transição do velho para o novo” [tradução do autor]. 3 Ensaio publicado originalmente no Jornal do Brasil, em 05.01.1974, e que abre a 2ª edição do livro de
Freyre publicado pela Topbooks Univercidade Editora em 2001, a qual utilizo para escrever este trabalho.
12
A essa compreensão do que sejam modernidade e pós-modernidade, soma-se
outra ideia fundamental para a construção teórica do livro. O que Freyre vem a chamar
de futurologia está em permanente diálogo com seu entendimento do moderno e do
pós-moderno. Neste capítulo inaugural, portanto, pretendo apresentar, em um primeiro
momento, essas noções mais amplas e abrangentes, espécie de guias teóricos, que
conduzem Freyre na escritura de Além do apenas moderno, a partir de uma chave
explicativa que conecta as concepções de futurologia e pós-modernidade, qual seja: sua
concepção de tempo, explicitada no conceito de tempo tríbio, também chamado por
Gilberto de tradição ibérica de temporalidade4. Entendo que uma compreensão correta
do que o autor pernambucano pretende teoricamente com a ideia de futurologia só pode
ser obtida por meio de sua articulação com a concepção de tempo em Freyre e de seu
entendimento do que vem a ser a pós-modernidade.
Em um segundo momento do capítulo, pretendo avançar em direção às ideias e
interpretações desenvolvidas pelo autor ao longo do livro, cujo entendimento preciso só
poderá vir a partir de uma clara compreensão daquilo que explanarei na primeira parte
deste capítulo. Se na primeira parte exponho o que é a futurologia, na segunda, mostro
como Freyre operacionaliza essa ideia. Nesse sentido, na segunda parte, tentarei
enfatizar as ideias mais específicas que emergem no livro como esforço do autor para
explicar a realidade cambiante de seu tempo. Centrar-me-ei, basicamente, naquilo que
Freyre chama de revolução biossocial, em suas ideias sobre a relação trabalho e lazer –
que, em alguns momentos, aparece como problema do tempo crescentemente livre ou
concebido na expressão “ócio versus negócio” –, em suas concepções acerca das inter-
relações entre gerações, no debate entre ciências físicas e naturais, de um lado, e as
humanidades, de outro, em sua reflexão sobre o papel dos intelectuais e, por último, na
tropicalidade como especificidade brasileira.
Haveria, obviamente, mais temas a ser investigados em um trabalho que se
proponha a analisar Além do apenas moderno. As escolhas que fiz estão relacionadas
com as restrições de pesquisa que um pequeno trabalho como uma monografia impõe.
Optei, portanto, por aqueles temas que me pareciam os mais relevantes para uma
compreensão total do livro de Freyre. Ademais, a eleição dos tópicos relaciona-se com o
objetivo mais amplo do trabalho, que é analisar a ideia de hispanidade presente na obra.
4 A concepção de tradição ibérica de temporalidade aparece desenvolvida pela primeira vez no texto The
Iberian concept of time, que Freyre publicou originalmente na revista The American Scholar no verão de 1963.
13
Não se trata, portanto, de analisar exaustivamente o livro do autor pernambucano,
senão descortinar como futurologia e hispanidade caminham juntas. A escolha dos
temas está, nesse sentido, intimamente relacionada com esse objetivo maior.
O escopo deste primeiro capítulo é oferecer uma compreensão geral da obra que
funcione como uma base a assentar a discussão que virá posteriormente. Minha
intenção aqui será tornar clara, principalmente, a noção de futurologia. Para tanto, terei
de recorrer a todo o aparato teórico mobilizado por Gilberto Freyre para construir essa
concepção. Nos capítulos seguintes, irei me defrontar com a noção de iberismo5, que
tanto marcou o autor ao longo de toda sua carreira, na forma como essa ideia aparece
desenvolvida especificamente em Além do apenas moderno – sempre evidenciada no
termo hispanidade – e como ela se articula com o conceito de futurologia. O momento
pós-moderno, ao superar a efemeridade do moderno, abre-se como oportunidade de
concretização da ideia, sempre tão cara a Freyre, de retorno à tradição. É nesse
sentido, de recuperação do tradicional, do chamado arcaico, que futurologia e
hispanidade se combinam, como a forma de pensar característica de um tempo que
restaura aquilo que a modernidade, em sua presunção teleológica, desvirtuara.
Tal é, como a entendo, a relação entre hispanidade e futurologia. Ante o
esfacelamento das certezas do efêmero moderno, é preciso repensar o passado; na
verdade, é preciso repensar o próprio tempo. É o que Freyre se propõe a fazer em Além
do apenas moderno. Voltemo-nos, portanto, ao livro a fim de descobrir o que o ensaísta
de Apipucos tem a nos ensinar.
1.1 Modernidade, pós-modernidade e futurologia: a concepção de tempo em
Gilberto Freyre
Una sociedad se define no sólo por su actitud ante el futuro sino frente al passado: sus recuerdos no son
menos reveladores que sus proyectos. Octavio Paz
Freyre abre sua obra, logo nas primeiras linhas do prefácio escrito para o
lançamento de sua primeira edição, deixando claro, em primeiro lugar, qual
preocupação fundamental o ocuparia no transcorrer daquelas páginas. Trata-se de
abordar “alguns aspectos de alguns dos atuais estudos, dentro e fora das chamadas
5 Iberismo é como, em geral, são chamadas as teses ibéricas de Freyre pela literatura especializada,
conceito a partir do qual, basicamente, deduz-se ser o Brasil herdeiro das tradições culturais da península ibérica, que nos foram legadas por meio do processo de colonização. Neste trabalho, usarei iberismo e hispanidade como sinônimos, remetendo-me sempre a essa ideia de especificidade cultural ou civilizacional ibérica, da qual o Brasil faz parte. O segundo capítulo centrar-se-á nesse tema.
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Ciências do Homem, que se relacionam, sob a forma de indagações e conjeturas, com o
futuro – ou com os possíveis futuros – quer do Homem, quer do mundo em que o
Homem vive” (Freyre, 2001, p. 23). Ademais, enfatiza Freyre de que não se tratava, o
futuro, de assunto novo para ele. O novo livro que oferecia ao leitor, publicado em 1973,
concernia a tema acerca do qual já escrevera e falara ao longo dos anos antecedentes
ao seu lançamento.
O que Gilberto Freyre chama de futurologia em Além do apenas moderno faz
parte, portanto, de um conjunto de reflexões que já o preocupavam desde muito antes
da publicação de seu livro. Não se trata, pois, de uma excentricidade a que o autor
tenha se permitido nos anos finais de sua carreira intelectual. Algo como aventurar-se
pela adivinhação ou ficção científica. Nada disso. Pelo contrário, veremos que sua
tentativa de pensar o futuro está intimamente ligada com aquela que talvez tenha sido a
ideia mais resistente em todo pensamento freyriano e que mobilizou, em grande medida,
seus esforços para compreender o Brasil. Refiro-me à defesa da tradição e à defesa da
necessidade de se buscar no passado brasileiro as respostas para melhor compreensão
do presente e os indícios para aquilo que se deveria perseguir no futuro, aspectos muito
presentes em Freyre já desde Casa-Grande & Senzala. Complementa-se a essa ideia a
sempre crítica postura freyriana em relação à busca do progresso a qualquer custo que,
concebida a partir da concepção de modernização, colaborava para a descaracterização
da singularidade brasileira.
A ideia de que era preciso conservar a tradição – senão toda, pelo menos parte
dela – foi sempre, em Freyre, o elo que conectava, ou que deveria conectar, o passado
com o futuro. Sua persistente reticência ao projeto modernizador6 devia-se ao fato de
que a modernidade descaracterizava nossa tradição e, portanto, rompia nosso elo com
o passado, deixando-nos, dessa forma, suscetíveis a um futuro alheio àquilo que nos
era mais próprio. Para ele, assim como para Octavio Paz, de cuja obra Sor Juana Inés
6 A expressão “projeto modernizador” aqui se refere à ideia sociológica de que a modernidade implicaria
na superação inevitável da tradição, que é pensada justamente como aqueles traços arcaicos, pré-modernos que, senão todos, pelo menos em parte, Freyre entendia ser preciso conservar. Tradição como antítese de modernidade, portanto. Penso que Tavolaro (2005) seja uma boa referência para sistematizar a “ideia sociológica” a que me refiro aqui. Para esse autor, o discurso sociológico da modernidade opera dentro de uma episteme que demarca “o terreno cognitivo de um certo discurso sobre a modernidade” que se tornou “hegemônico na produção sociológica internacional”. Segundo esse discurso, o padrão de sociabilidade moderno está estruturado em torno de três pilares fundamentais: a) diferenciação/complexificação social; b) secularização; c) separação entre público e privado. (Tavolaro, 2005, p.7). Qualquer sociedade, para ser considerada moderna, deveria ter sua sociabilidade adaptada a esses pilares. Ocupariam “posições nodais” dentro desse discurso sociológico hegemônico da modernidade autores como Marx, Weber, Durkheim, Simmel e, mais recentemente, Parsons, Luhmann e Habermas (Ibid, p.12).
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de la Cruz o las trampas de la fe7 retiro a epígrafe desta seção, projetos de futuro e
recordações do passado não constituíam esferas autônomas da vida intelectual de uma
nação. Pelo contrário, ambas – proyectos e recuerdos – articulam-se na medida em que
aquilo de que, como país, nos recordamos, tomado de forma positiva ou negativa,
constitui o fundamento a partir do qual se constroem esboços de futuro. Nesse sentido,
tanto em Paz quanto em Freyre há uma reivindicação da tradição e esse aspecto é
absolutamente fundamental para se entender a futurologia freyriana.8
O esforço historiográfico e interpretativo de Gilberto Freyre, no qual o elemento
da tradição desempenha papel fundamental, pode ser encontrado, sobretudo, nos três
livros que formam sua Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil iniciada em
1933 com Casa-Grande & Senzala, continuada em Sobrados e Mucambos, de 1936, e
concluída em 1957 com Ordem e Progresso. Gilberto Freyre dedicara-se diligentemente
à compreensão do passado brasileiro e interpretação de seu presente. Intentava, agora,
com o Além do apenas moderno, uma sistematização de seu pensamento acerca do
futuro. Segundo palavras do próprio autor pernambucano: “Tais estudos, denominados,
por uns, prospectivos, por outros, futurológicos, pedem uma sistemática especial antes
de sua imediata e arbitrária elevação a ciência. Mesmo assim imprecisos, são dos mais
se impõem à atenção da gente universitária de hoje”. (Freyre, 2001, p.23).
Estas duas dimensões temporais, passado e futuro, não estariam, portanto,
totalmente separadas no pensamento freyriano. Nesse sentido, parece-me importante
ressaltar como o próprio autor, posteriormente, irá refletir sobre seu legado. Em prefácio
à segunda edição francesa do livro Casa-Grande & Senzala, publicada em 1974 – ou
seja, apenas um ano após a publicação de Além do apenas moderno –, Freyre faz uma
afirmação que julgo importante e que vale a pena ser transcrita na íntegra:
“Le livre enfin innovait par sa conception du temps, envisagé à la fois dans le passé, le présent et l’avenir. En partant des origines d’un societé, il tentait de discerner son
7 Este livro de Octavio Paz, obra clássica do autor, constitui-se, ao mesmo tempo, um esforço de
interpretação histórica da Nova Espanha do século XVII e uma tentativa de situar a vida e a obra literária da poetisa mexicana sor Juana Inés de la Cruz nesse contexto. Ensaio histórico e texto de crítica literária, seu livro é considerado o mais importante já escrito a respeito de sor Juana Inés e também dá continuidade a muitas das ideias que o escritor e diplomata mexicano já desenvolvera em seu conhecido estudo crítico da modernidade El laberinto de la soledad. 8 Essa aproximação entre Freyre e Paz não constitui o objeto deste trabalho e, por essa razão, não será
aprofundada. No entanto, certamente o será em futuras pesquisas. Tanto Freyre quanto Paz são autores fundamentais do panteão intelectual brasileiro e mexicano em cujas obras há uma importante reivindicação da tradição. Ocupam posições semelhantes no mundo intelectual de seus países, tendo sido rechaçados pela esquerda acadêmica. Ademais, Casa Grande & Senzala e El laberinto de la soledad são consideradas, pelo cubano Enrico Mario Santí (2014, p.14), colunas fundamentais do edifício teórico em que veio se constituir o chamado ensaio de identidade nacional latino-americano.
16
évolution probable, et ceci en mettant l’accent sur l’importance de la culture africaine noire dans la formation du Brésil moderne”
9 (Freyre, 2009, p.24).
O prefácio dessa edição francesa está assinado em Recife no ano de 1973,
exatamente o mesmo em que Gilberto Freyre publica Além do apenas moderno, e cujo
prefácio foi escrito em abril daquele mesmo ano. A concepção de tempo que Freyre
apresenta mais sistematicamente em Além do apenas moderno fá-lo reexaminar sua
obra inicial, afirmando encontrar já no momento de escritura de Casa-grande & Senzala
a ideia de que o homem nunca vive separadamente passado, presente e futuro, mas,
pelo contrário, vivencia sua existência imerso nas três esferas temporais conjuntamente.
Sabemos, obviamente, que uma obra está sempre sujeita a apropriações e
ressignificações futuras, seja por intérpretes que se propõem a analisá-la, seja pelo seu
próprio autor, que pode optar por dar ela uma nova coloração mais afeita às novas
ideias que lhe sobrevém com o tempo. Como afirma Octavio Paz, “la obra se desprende
de su autor y se transforma en una realidad autónoma” (Paz, 2008, p.14). De qualquer
forma, Freyre destaca uma continuidade em seus escritos, enfatizando neles uma
perene concepção de tempo.
O que quero enfatizar aqui é aquilo a que se refere Maria Lúcia Pallares-Burke
em seu Um vitoriano nos trópicos, livro que, como a própria autora afirma, tenta oferecer
uma “biografia intelectual genética” que destaca os “elementos formadores do
pensamento de Gilberto Freyre” (Pallares-Burke, 2005, p.18). Ao citar o psicanalista Erik
Erikson, afirma a historiadora brasileira que “à medida que envelhecemos, todos nós,
conscientemente ou não, reinterpretamos nossa própria vida” (Ibid, p.19). Todavia maior
o interesse de autores prolíficos como Freyre em dar um sentido e progressão à sua
vida e obra. Pallares-Burke enfatiza essa preocupação de auto invenção e auto
apresentação de Freyre, que se fazem notar, especialmente, segundo a autora, em
Tempo morto e outros tempos, autobiografia escrita pelo autor pernambucano em forma
de diário10. Nesse sentido, poder-se-á interpretar a tentativa de Freyre em destacar a
presença da concepção de tempo tríbio já em Casa-Grande e Senzala – e não apenas
9 “O livro enfim inovava por sua concepção de tempo, considerado conjuntamente no passado, no
presente e no futuro. Partindo das origens de uma sociedade, tentava discernir sua provável evolução, e nisto insistindo na importância da cultura africana negra na formação do Brasil moderno” [tradução do autor]. Utilizo neste trabalho reimpressão de 2009 da segunda edição, de 1974, publicada pela editora Gallimard. 10
Segundo Pallares-Burke, o livro Tempo morto e outros tempos, publicado em 1975 como uma recopilação dos diários que um jovem Freyre teria escritos nos anos de 1921-1922, seria, na verdade, uma autobiografia escrita pelo autor em tom memorialista ao longo dos anos, na qual Freyre conferiria ao passado um sentido mais afeito ao percurso que ele próprio gostaria de imprimir em sua obra.
17
mais tarde11 – como mais uma tentativa de auto apresentação, de retratar a própria obra
como dotada de um sentido contínuo e perene.
De qualquer maneira, o destaque dado à ideia de tempo tríbio nos anos 70
mostra como, nesse momento da carreira do autor pernambucano, a concepção assume
importância. A forma como Gilberto Freyre concebe o tempo é decisiva para o
enquadramento que ele dará à sua futurologia. O que o autor chama de tempo tríbio é,
portanto, a base de sua reflexão acerca do futuro. Tal relação é explicitada em excerto
de Além do apenas moderno que transcrevo a seguir. A citação é longa, mas em razão
de sua importância parece-me fundamental reproduzi-la integralmente:
“Os estudos que, depois de algum tempo como sistemática, venham possivelmente a constituir-se em ciência que se denomina Futurologia – ciência relativa – tendem a ser uma disciplinação da tendência humana para a profecia, em ligação com a tendência, também muito humana, para o retrospecto ou a evocação; para recuperação do tempo perdido e até para a saudade; e sem que falte a qualquer dessas tendências o terra-a-terra da observação da realidade imediata. Realidade imediata na qual se cruzam sobrevivências e antecipações. O homem nunca está apenas no presente, sem deixar de ser homem pleno ou integral. Se apenas se liga ao passado, torna-se arcaico. Se apenas procura viver no futuro, torna-se utópico. A solução para as relações do homem com o tempo parece estar no reconhecimento do tempo como uma realidade dinamicamente tríbia da concepção brasileira; e como o homem vive imerso no tempo, ele próprio é um ser – um estar sendo, diria talvez Gasset – tríbio.” (FREYRE, 2001, p.28,29).
É importante destacar que, para Freyre, o futuro não se confunde com utopia. Um
futuro enquanto utopia é resultado de concepções que tomam o tempo porvir como uma
“sala de estar, paradisíaca e estática” (Freyre, 2001, p. 31). Tomado nesse sentido, o
futuro estaria separado do presente e seria pensado apenas como aquele momento em
que os problemas que se apresentam no mundo de hoje se resolveriam. Freyre entende
que contribui para fazer dessa visão a predominante dos tempos modernos aquela
atitude triunfalista dos cientistas físicos, que julgam ser o futuro o momento em que a
ciência encontrará soluções para todos os problemas da humanidade e a vida se
tornará, assim, uma espécie de paraíso terreno, aquele tempo em que as vicissitudes do
presente e do passado que constringiram o homem serão superadas.
Para Freyre, o futuro pensado assim é meramente utópico e não é esse o
contorno que ele deseja dar à sua concepção de futurologia. O tempo é uma realidade
tríbia, ou seja, passado, presente e futuro se encontram em permanente contato, nunca
alheios uns aos outros. Por essa razão, não faz sentido para o autor pernambucano
pensar o futuro como utopia, pois este jamais corresponderá a uma espécie de estágio
11
O conceito de tempo tríbio teria aparecido, pela primeira vez, na obra de Freyre, no livro Ordem e Progresso, de 1957.
18
superior da humanidade, algo que parece mais fruto da idealização do pensamento
teleológico do que uma realidade observável. Fica evidente, portanto, que, para Freyre
(2001, p. 32), o novo não é necessariamente superior ao antigo. Existe uma
imprevisibilidade natural no universo que pode tornar as descobertas revolucionárias de
hoje em instrumentos de destruição do bem-estar humano amanhã. Não teria sido essa,
de certa maneira, a história do século XX? O período de maiores avanços sendo o
também o de maior destruição. A terra totalmente esclarecida resplandecendo sob o
signo de uma calamidade triunfal, afirmariam Adorno e Horkheimer (1947, p.5) em seu
Diáletica do Esclarecimento.
A ideia de que o futuro não pode ser pensado apenas enquanto utopia é,
portanto, fundamental. Como transparece na crítica de Freyre (2001, p.34) a Roderick
Seidenberg – “arquiteto com algo de sociólogo”, a quem Freyre chama de futurólogo –
quando este sugere que o futuro humano tende a ser dominado pela máquina, o divórcio
entre passado, presente e futuro resultava em perspectivas que descolavam o homem
histórico daquilo de que mais concreto ele possuiria. Preocupava Freyre o homem
histórico, não o homem pós-histórico de Seidenberg, homem este que não teria controle
de seu próprio futuro.
Seidenberg dava ênfase “ao condicionamento do Homem pelo futuro em vez do
condicionamento do futuro pelo Homem” (Freyre, 2001, p.34). O autor pernambucano
entendia que esses dois elementos não eram mutuamente excludentes. Para Freyre
(2001, p.34), “se é certo, como Seidenberg sugere, que o futuro humano tende a ser
dominado pela máquina, não parece menos certo que o Homem venha a limitar esse
domínio”. Nesse sentido, Gilberto demonstra claramente qual o seu entendimento
acerca da substância da relação do homem com o futuro. Cito-o textualmente:
“Admitindo-se que o Homem não venha a interferir de modo absoluto sobre o seu futuro, com a crescente automação tanto lhe aumentando o tempo livre como lhe diminuindo as oportunidades de fazer sentir o seu domínio direto sobre seu ambiente, de certa altura em diante tendente a autodesenvolver-se, admite-se, contudo, à base de prognósticos idôneos, que parte considerável do futuro humano seja susceptível de refletir vontades, gostos, decisões do Homem” (FREYRE, 2001, p.34).
Essa ideia esboça algo de fundamental para compreender a futurologia freyriana.
Parecia-lhe certo que o processo de desenvolvimento tecnológico levaria às sociedades
a um nível de automação que, cada vez mais, daria protagonismo à máquina em
detrimento do homem. Um futuro dominado pela máquina, no entanto, poderia ser válido
como ficção científica, mas, para Freyre, não se apresentava “válido como futurologia
19
sociológica que alcance o futuro do homem em termos de história humana” (Freyre,
2001, p. 34). Não se trata, portanto, de fazer ficção científica, pois esse gênero literário
implica em pensar o homem apartado de uma realidade histórica sociologicamente
verificável.
Assim, Gilberto Freyre expõe claramente o que pretende com uma sistematização
de seus estudos futurológicos: “é o futuro do Homem, quer histórico, quer trans-
histórico, projetado sobre os séculos, que principalmente nos interessa em tais estudos.
O futuro de suas sociedades e de suas culturas. O futuro de sua própria configuração
antropológica” (Freyre, 2001, p.34). Importante destacar que esse futuro é, para ele,
passível de ser planificado. Daí a importância de se sistematizar a futurologia como
forma científica, sociológica de analisar e prever o futuro.
O papel a ser desempenhado pelos cientistas sociais é, nesse sentido,
fundamental. A futurologia que Freyre propõe deve ser, necessariamente, resultado de
um permanente diálogo entre ciências e humanidades. As ciências físicas e naturais não
são capazes de pensar por si só as consequências imprevistas das inovações
tecnológicas. Para isso, necessitam do auxílio de outro cientista – aquele mais
preocupado com questões psicológicas, antropológicas e sociológicas – cujo modelo de
treinamento científico lhe torna mais apto para antever as consequências não de todo
racionais do progresso tecnológico. Ademais, requer-se a contribuição do humanista, do
poeta, do escritor, enfim, de todo aquele homem preocupado com o futuro humano e
que, por meio de sua sensibilidade, consegue enxergar o que a fria racionalidade do
cientista físico não pode antecipar (Freyre, 2001, p. 31, 32).
Gilberto Freyre requer, portanto, um papel crítico e ativo das humanidades na
construção de uma análise acerca do futuro. Nesse sentido, afirma ele:
“A atuação de intelectuais, em geral, e de cientistas sociais, em particular, em esforços de planificação de futuros humanos, ou de um futuro humano geral, de que eles participem ao lado de cientistas físicos, químicos, biológicos, em vez de passiva, precisa de ser ativa, mesmo que uma colaboração assim ativa, da parte deles, complique, em vez de facilitar ou simplificar tais esforços. Nada de nos esquecermos das advertências de mais de um filósofo de que, nos domínios do saber, a simples exatidão – que tanto simplifica esse saber – não é suficiente para chegar-se às verdadeiras verdades: tão complexas.” (FREYRE, 2001, p.33).
É importante destacar que há aqui, para além da construção de uma concepção
de futurologia, o que, em si, já é importante, uma profunda reflexão epistemológica. Ao
20
se propor a pensar o tempo, e, em especial, o futuro, em Além do apenas moderno,
Gilberto Freyre realiza, como acertadamente percebe José Guilherme Merquior (2001,
p.14), “um verdadeiro exame de consciência da metodologia sociológica”. Não irei me
deter nessa questão neste momento, pois irei avançar nela nos próximos capítulos
deste trabalho, quando abordarei, mais especificamente, as relações entre hispanidade
e futurologia. No entanto, deve-se destacar, desde já, que a maneira como Freyre
concebe a futurologia tem relação direta com sua concepção de como se deve construir
o conhecimento sociológico. Sua ênfase está na dimensão humanística, inventiva,
compreensiva da sociologia, aquilo que ela tem de poética, sem deixar de ser,
cientificamente, rigorosa. E esse aspecto está intimamente relacionado com o que ele
chamará de hispanidade da futurologia. Voltarei a esse tema posteriormente.
Gilberto Freyre não se percebe exatamente um prógono no que se refere ao seu
tratamento do futuro. Entendia que entre brasileiros, sim, era pioneiro em sua
abordagem futurológica. No entanto, conecta seus estudos com uma série de outros
autores – em geral, franceses e estadunidenses – que também já realizavam esforços
no sentido de complexificar a compreensão do futuro. Esses autores refletem o que
Freyre (2001, p.24) chama de “tipo novo de atitude sociológica para com o futuro”.
Destaque dado, por ele, para a França que, já desde nos anos 60, contava com dois
centros de estudos futurológicos, cuja direção cabia a dois sociólogos respeitados pelo
autor pernambucano, Georges Balandier e Bertrand de Jouvenel12.
O que distinguia essas abordagens, e as conectava com o tipo de aproximação
futurológica da sociologia que Freyre propugnava, era sua compreensão de certa
transição pela qual passava o mundo contemporâneo que reclamava, por um lado, outra
forma de abordagem do tempo e, por outro, uma superação das abordagens clássicas
sociológicas que insistiam, por exemplo, em dar uma ênfase repetitiva nos conflitos de
classe, quando esses, claramente, já não detinham a força explicativa de outrora. Os
12
Os dois centros de estudos a que Freyre se refere são: 1) Le Centre International de prospective criado em 1957 por Gaston Berger e André Gros e que, posteriormente, teria seu nome alterado para Centre d’Études Prospective. Berger foi o criador da palavra “prospective” em francês com o objetivo de distanciar-se da ideia de “prévision”. Tratava-se de não apenas prever o futuro, mas projetar-se em direção a ele de forma a intervir sobre o rumo dos acontecimentos. Até 1969, esse Centro publicou La revue Prospective, revista mencionada por Freyre em Além do apenas moderno; 2) O segundo centro a que Freyre se refere foi fundado em 1960 por Bertrand de Jouvenel. O centro foi criado inicialmente como um Comitê Internacional e, posteriormente, em 1967, tornou-se Associação Internacional. Seu nome, Futuribles, foi cunhado por de Jouvenel a partir da junção das palavras future e possibles e tomada de um jesuíta espanhol chamado Luís Molina, que a criara no século XVI. A partir de 1974, o centro passa a publicar a Revue Futuribles, revista que continua hoje em circulação. Considera-se Bertrand de Jouvenel e Gaston Berger os teóricos pioneiros na França da ideia de “prospective”.
21
problemas contemporâneos seriam outros, o mundo se transformava e fazia-se
necessário perceber essas mudanças a fim de se ter a perspectiva correta sobre o
futuro. Futuro esse que estava aberto a várias possibilidades, como a palavra futuribles
expressava. Não apenas um futuro, mas vários, sendo necessário ter sobre eles a
perspectiva científica correta a fim de poder, na medida do possível, antecipá-los.
Gilberto Freyre (2001, p.24) cita em seu livro um conclave francês realizado em
1965 cuja temática girava, basicamente, “em torno de uma reorientação sociológica em
face de problemas de classes sociais”. Segundo ele, o referido conclave teria apontado
para a superação das abordagens que enfatizam conflitos de classe em relação àquelas
que davam mais destaque à desarmonia entre sociedades e ambientes e que
apontavam para questões de etnia e cultura (Ibid, p.26). Ademais, previa-se que o
chamado Terceiro Mundo13 se anteciparia ao futuro no sentido de apresentar novas
questões cuja compreensão exigiria o surgimento de novos conceitos e novas formas de
análise (Ibid, p.27).
É importante destacar como a futurologia de Freyre, ao analisar movimentos
teóricos que aconteciam em outras partes do mundo, no que se refere ao surgimento de
novas temáticas, em boa medida, acerta suas previsões. Destaque-se, nesse sentido, a
publicação, em 1969, do clássico dos estudos étnicos de Frederik Barth Ethnic groups
and Boundaries: The social organization of cultural difference, que marca um novo
momento na teoria social no qual cultura e etnia, como componentes explicativos do
Estado-Nação, tornam-se fundamentais. Quanto à importância do terceiro mundo como
formulador de novas tendências teóricas, o ano de 1978 irá ver a publicação de
Orientalismo de Edward Said e, a partir dele, o aparecimento dos chamados Estudos
pós-coloniais, que perfazem aquele que hoje já pode ser considerado como um dos
paradigmas teóricos dominantes das ciências sociais norte-americanas e que, dentro do
13
O conclave mencionado por Freyre deu-se em 1965, período no qual o processo de descolonização de África e Ásia se encontrava bastante adiantado, com grande parte dos territórios desses continentes já tendo constituído nações independentes, com a exceção das colônias portuguesas que se mantiveram submetidas ao poder colonial português até os anos 70, mas que, no ano de 1965, já se encontravam em plena guerra colonial com Portugal, desde 1961. Quando Freyre faz menção a esse conclave e refere-se ao “Terceiro Mundo” é preciso ter em mente esse contexto de surgimento de novas nações. Ademais, a noção de “Terceiro Mundo” havia alcançado certo vigor teórico desde a Conferência de Bandung, em 1955, que resultara no surgimento dos chamados “países não alinhados”, que se opunham tanto à política exterior de Estados Unidos quanto de URSS naquele momento de polarização ideológica de guerra fria. A ideia de terceiro mundo detinha, portanto, conotações cambiantes, variando desde um aspecto mais negativo, nesse caso referindo-se a uma ideia de nações atrasadas no desenvolvimento capitalista, até um mais positivo, significando autoafirmação, soberania e não alinhamento. Se estavam condicionadas historicamente por seu suposto atraso, tais nações do Terceiro Mundo ofereciam, não obstante, imenso potencial de reformulação do futuro. Penso que Freyre compartilhava dessa ideia.
22
universo que se denomina de Estudos Culturais, é certamente o paradigma mais
florescente (Chibber, 2013, p.3).
Tenha-se em mente que Gilberto Freyre publicou Além do apenas moderno em
1973. Sua escritura, no entanto, deu-se antes disso, uma vez que os textos que
compõem a obra foram sendo escritos ao longo dos anos anteriores, na forma de artigos
ou conferências, como o próprio autor afirma em seu prefácio (Freyre, 2001, p.30).
Nesse sentido, o livro é inovador ao se antecipar a questões teóricas que se tornariam
hegemônicas a partir dos anos 70 e, especialmente, ao se propor discutir a ideia de pós-
modernidade em momento em que a utilização de tal conceito ainda era tão incipiente
nas ciências sociais.
Penso ser importante lembrar, ainda, o contexto intelectual brasileiro nesses
anos. Freyre apostava por uma ideia de pós-modernidade e de superação de
abordagens clássicas como a luta de classes que o distanciava do marxismo vigente na
academia brasileira. São dessa mesma época livros clássicos de Florestan Fernandes
como Sociedades de classes e subdesenvolvimento, de 1968, Capitalismo dependente
e classes sociais na América Latina, de 1973 e A revolução burguesa no Brasil: Ensaio
de interpretação sociológica, de 1975. Ademais, são desse mesmo período obras
importantes da teoria da dependência como Dependência e desenvolvimento na
América Latina, de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto, publicado em 1970. Ou
seja, enquanto a sociologia acadêmica debruçava-se, com profundidade, em análises
marxistas a fim de tentar compreender o atraso que caracterizava sociedades
subdesenvolvidas como o Brasil, Freyre, apartado dela, caminhava por outra direção,
aquela que traçara desde Casa-Grande & Senzala, e que enfatizava aspectos mais
culturalistas que, posteriormente, com o triunfo do chamado pós-moderno, seriam
retomados.
O primeiro grande referencial teórico na filosofia e nas ciências sociais que
aborda o pós-moderno enquanto conceito é a obra A condição pós-moderna de Jean-
François Lyotard, escrita em 1979, seis anos após o lançamento por Freyre de Além do
apenas moderno. Interessa-me aqui, sobretudo, o que se passava antes do lançamento
do livro de Lyotard e não tanto o desenvolvimento posterior do pós-moderno, uma vez
que minha preocupação é com o contexto histórico da obra de Freyre. Como nos faz
saber Perry Anderson (1999, p.9,10) em sua obra As origens da pós-modernidade, a
ideia de um pós-modernismo já existia desde os anos 1930, quando surgiu pela primeira
23
vez no mundo hispânico, utilizado originalmente por Federico de Onís, filólogo e crítico
literário, amigo de Unamuno e Ortega y Gasset, nomes estes em torno dos quais girava
o mundo intelectual espanhol.14
Considerada a influência que o mundo intelectual hispano exercia sobre Freyre, é
muito possível que o autor pernambucano já estivesse familiarizado com a utilização da
ideia de pós-moderno por Federico de Onís. Em passagem de Tempo morto e outros
tempos, o autor pernambucano menciona conversa com o espanhol – que foi, inclusive,
professor de literatura espanhola na Universidade de Columbia, onde Freyre estudara –
em que discutem “assuntos hispânicos” (Bastos, 2003, p.10). Trata-se, no entanto, de
afirmação meramente especulativa que mereceria, por si só, outra pesquisa, uma vez
que não tive acesso a fontes primárias ou secundárias que possam referendar essa
afirmação. Um dos objetivos desta pesquisa, no entanto, é abrir caminho justamente
para futuras investigações a respeito da ligação de Gilberto Freyre e pensadores
espanhóis. Esse tema, portanto, certamente irá retornar em minhas pesquisas
posteriores.15
Perry Anderson (1999, p.10,11) nos dá a saber que o termo “pós-moderno”, que
já entrara no vocabulário da crítica literária hispanófona desde os anos 30, irá surgir no
mundo anglófono apenas vinte anos mais tarde. Alguns autores de língua inglesa, ao
longo dos anos cinquenta, utilizam-se do conceito em diferentes contextos. São, em um
primeiro momento, o britânico Arnold Toynbee, no oitavo volume de seu Study of
History, publicado em 1954, e o poeta estadunidense Charles Olson que, mais ou
menos na mesma época, mais precisamente em 1952, utilizava também o termo para
definir o tempo presente em andamento como “pós-moderno, pós-humanista e pós-
histórico” (Ibid, p.13). Já no final dos anos 50, o sociólogo C. Wright Mills irá reempregar
o termo para “indicar uma época na qual os ideais modernos do liberalismo e do
socialismo tinham simplesmente falido, quando a razão e a liberdade se separaram
numa sociedade pós-moderna de impulso cego e conformidade vazia” (Ibid, p.18,19).
14
O fato de que a primeira utilização do termo pós-modernismo tenha ocorrido no mundo hispânico não parece ser gratuito. Gilberto Freyre percebia haver no pensamento hispânico um vanguardismo que ele admirava. A hispanidade da futurologia é, nesse sentido, algo natural, uma vez que a tradição de pensamento hispânico sempre teve a tendência de antecipar-se, segundo o autor pernambucano. Esse argumento reaparecerá no segundo capítulo. 15
Voltarei, no entanto, a esse tema, da influência do mundo intelectual hispânico em Freyre, ainda neste trabalho, quando abordarei, no próximo capítulo, mais especificamente, o significado da concepção de hispanidade na obra de Freyre.
24
Importante destacar, ainda, que a noção de pós-moderno, cuja utilização até
então fora circunstancial, irá ganhar difusão mais ampla e desenvolvimento teórico a
partir dos anos 70 (Ibid, p.20). O momento decisivo, segundo Perry Anderson (1999,
p.23) será em 1972 com o lançamento de uma publicação literária chamada Boundary 2,
que trazia expressamente o título Revista de Literatura e Cultura Pós-modernas.
Retomava-se o legado poético crítico de Charles Olson e estabelecia-se “a ideia de pós-
moderno como referência coletiva” (Ibid, p.23). A Revista Boundary 2 continua existindo,
mas desde o final dos anos 80 sob comando da Duke University Press e com o nome
Boundary 2: an international jornal of literature and culture.16
Cito esse pequeno percurso histórico da ideia de pós-moderno para
contextualizar a escritura de Além do apenas moderno. Quando Freyre escreve esse
livro, aposta por um conceito que embora já fora utilizado, carecia de uma
sistematização e contornos mais claros, o que irá acontecer, no campo das ciências
sociais, apenas após a publicação do livro de Lyotard, que citei anteriormente.
Acrescente-se a isso o fato de que a obra está composta de artigos e conferências que
o autor pernambucano vinha escrevendo e apresentando, pelo menos, desde os anos
60, e teremos uma justa medida do caráter inovador desse livro17.
A concepção de pós-moderno que Gilberto Freyre propugna deve ser vista como
antítese do moderno, uma espécie de recuperação da tradição, que valorize os
elementos tradicionais que persistem no presente. Não se trata, portanto, de uma
argumentação exatamente como a de Lyotard, segundo a qual a perspectiva pós-
moderna se destacava por apontar para um esfacelamento das grandes narrativas
modernas e para o surgimento de “uma pluralidade de reivindicações heterogêneas de
conhecimento, na qual a ciência não tem um lugar privilegiado” (Giddens, 1991, p.9).
Tampouco Freyre se encontrava entre aqueles, como Anthony Giddens, que
sustentavam que a pós-modernidade nada mais era que um momento de radicalização
e universalização das consequências da modernidade, ou seja, que resignadamente
admitiam um novo tempo histórico pós-moderno, mas que não se conformavam com os
contornos explicativos que a ele davam os chamados teóricos pós-modernos.
16
Para mais informações: https://www.dukeupress.edu/boundary-2 17
Acredito que uma pesquisa que se dedicasse a fazer uma reconstituição histórica de quando exatamente cada capítulo de Além do apenas moderno foi escrito poderia prestar uma inestimável contribuição para melhor compreensão do amadurecimento de algumas das ideias que Freyre expõe no livro. Infelizmente, não me foi possível, nesta pesquisa, alcançar esse nível de detalhamento, que exigiria consulta de fontes primárias a que, por enquanto, não pude ter acesso.
25
Sem dúvida, Gilberrto Freyre percebia, quando da publicação de Além do apenas
moderno, que o momento histórico em que vivia passava por um esfacelamento das
certezas modernas, com as quais – deve-se acrescentar – o autor nunca comungou.
Nesse sentido, Sérgio Tavolaro (2013, p.307) afirma que a obra de Freyre demonstrava
consciência acerca da existência de uma geopolítica do conhecimento presente no
discurso sociológico da modernidade que tendia a enquadrar sociedades como a
brasileira a partir do signo do “desvio”. O esforço interpretativo de Freyre sempre se
direcionou a enfatizar uma singularidade brasileira que escapava aos limites das
narrativas hegemônicas da modernidade. Esse aspecto acerca da compreensão que o
autor pernambucano tinha do Brasil implicava em uma concepção de filosofia da história
que permitia a Freyre recepcionar a noção de pós-moderno em total coerência com seus
escritos anteriores.
O pós-moderno em Freyre terá, pois, uma coloração que se harmoniza bem com
as ideias mais duradouras de seu pensamento, sobretudo, aquela que nos remete à
defesa da tradição, ou seja, defesa da singularidade da civilização brasileira: tropical,
mestiça e hispânica (Freyre, 2001, p.36,37). O pós-moderno é, nesse sentido, o tempo
de recuperação de nossa essência, uma vez que desvaneceram os ideais modernos e
restou evidenciada sua fugacidade. O moderno é aquilo que se desfaz rapidamente; o
pós-moderno, no entanto, estende-se indefinidamente e confunde-se com o próprio
futuro. Gilberto Freyre explicita essa ideia em Além do apenas moderno, mostrando de
forma inequívoca como conecta pós-modernidade e futurologia. Cito-o textualmente:
“é difícil dizer-se onde termina o moderno e começa o pós-moderno. Seguindo-se, entretanto, o critério de tempo tríbio, de início se reconhece o que há de efêmero no chamado moderno. Mal começa, já deixa de ser, para ter sido. Daí o pós-moderno se apresentar como sua quase imediata superação. Imediata e relativamente duradoura. O moderno é fugaz. Mas ninguém pode pôr limites nem lógicos nem cronológicos ao pós-moderno. Ele se confunde com o próprio futuro humano. Ou com os próprios futuros humanos: os possíveis. Os prováveis. Os imagináveis. Os perceptíveis. Que todos esses constituem objetos ou sujeitos de cogitações ou especulações futurológicas”. (FREYRE, 2001, p.29,30).
A pós-modernidade configura-se, assim, como momento histórico de amplas
possibilidades. Se, em parte, ela corresponde a um retorno à tradição, a um passado
arcaico dado como superado pelos modernos, por outro lado, as novas sociabilidades
impedem que o futuro seja uma mera reprodução do passado. Freyre está bem
consciente disso. A futurologia, como ele a pensa, precisa ser sistematizada como um
esforço de pessoas de inteligência que conjuguem saberes humanísticos e científicos,
sejam bons conhecedores do passado e saibam ler o presente do mundo em transição a
26
fim de projetar o futuro pós-moderno. No próprio livro, Freyre oferece exemplos de como
fazê-lo abordando temas contemporâneos cujo enfrentamento lhe parece fundamental
para construção do futuro que virá. Dedicar-me-ei a eles de forma mais específica na
próxima seção deste capítulo, em que tentarei mostrar como o autor pernambucano
operacionaliza sua futurologia.
É importante que se tenha claro o que significa dizer que o pós-moderno, para
Freyre, implique num retorno à tradição. Essencialmente, o ensaísta de Apipucos parece
estar se referindo a uma forma particular de relacionar-se com o tempo. O moderno,
cuja essência parece estar cristalizada no anglo-saxão, é adepto de uma filosofia time is
money. Calvinisticamente ascético, ou seja, de moral irrepreensível, está convencido
que o tempo não pode ser desperdiçado. Esse modelo oferece, em boa medida, aquilo
que é, para Freyre, a civilização ocidental. Uma civilização rigorosamente cronométrica
(Freyre, 2001, p.143).
Essa não é a tradição da qual o Brasil faz parte, segundo Gilberto Freyre.
Estamos ligados historicamente a outro modelo civilizacional que nos foi legado pela
colonização. Tradição, portanto, tem a ver com transmissão de símbolos, memórias,
recordações, usos e hábitos. Aquela a que estamos mais intimamente ligados remete-
nos à península ibérica, de onde vieram nossos colonizadores18. Segundo Freyre (2001,
p.36), “somos, os brasileiros, uma gente hispânica sendo também uma gente situada no
trópico e localizada na América”. Tal herança conecta-nos com um sentido de tempo
completamente diverso daquele dos anglo-saxões e norte europeus. Trata-se de uma
“tradição ibérica de temporalidade em que a espera tende a tornar-se esperança”
(Freyre, 2001, p.28), ou, como afirma o autor pernambucano em outra passagem: são
as gentes hispânicas, como a brasileira, “gentes saudosas de passados e esperançosas
de futuro; e não apenas apegadas ao presente” (Ibid, p.36).
O moderno, por nos ser alheio, por ser fundamento de outra tradição, não pode,
entre nós, perdurar. Nesse sentido, Freyre não parece tomar moderno e universal por
sinônimos, como o faz a sociologia da modernização em suas pretensões
modernizantes de progresso. O mais natural para o autor pernambucano, portanto, é
que, no futuro, o pós-moderno tenda a reabilitar certos arcaísmos como, por exemplo, a
18
Acrescente-se que, para Freyre, o colonizador ibérico, português, no caso brasileiro, misturou-se profusamente com indígenas e negros africanos, cuja herança cultural também se caracterizava por uma relação com o tempo diametralmente oposta a dos ocidentais, do tempo cronométrico. Assim, reforçam-se na civilização híbrida dos trópicos aqueles traços peninsulares de uma relação com o tempo mais flexível, ajustável e malemolente.
27
valorização do ócio, característica tão comum entre as sociedades ibéricas. Hábitos
tipicamente nossos teriam sido abandonados em razão da “tirania da ética do tempo-
dinheiro” (Freyre, 2001, p.69). O hábito de se fazer “pausas lúdicas, recreativas, até, ao
redor de mesinhas de cafés” teria se perdido entre “muitos urbanitas brasileiros de agora
calvinisticamente convencidos de que não devem gastar ou desperdiçar tempo sorvendo
café ou chope ou refresco de coco ou comendo doce ou pastel, sentados, em café,
cervejarias, confeitarias, tascas” (Ibid, p.67,68). A pós-modernização tenderia a corrigir
esses desvios.
É nesse sentido que a compreensão do pós-moderno em Freyre não se confunde
exatamente com aquela de um autor como Lyotard. Para o filósofo francês, a pós-
modernidade caracterizava-se como um tempo histórico de fragmentação, em que a
ciência já não possuiria mais o monopólio da verdade. Ora, em Freyre a ciência –
aquela de sentido mais moderno, de locus privilegiado de manifestação da razão –
nunca assenhorou-se de tal exclusividade. O ensaísta de Apipucos sempre foi um
sociólogo heterodoxo, empenhado, sim, em utilizar-se de metodologia precisa, mas
também sempre aberto à intuição, à inspiração e ao instinto. Em Freyre, razão e
sentimento nunca estiveram completamente separados. Sua obra sociológica sempre
esteve aberta à intuição poética, característica marcante já desde Casa-Grande &
Senzala.
Não é, portanto, estranho que Além do apenas moderno tenha obtido uma fria
recepção em seu tempo e, mesmo hoje, não fomente tanto interesse. Escassos são os
comentários acerca dessa obra. Em um tempo de crescimento econômico e
modernização, falar em contingência e efemeridade do moderno e, ademais, defender o
arcaico soava como mero conservadorismo. O livro teve apenas duas edições, a
primeira, do ano de lançamento, 1973, e a segunda, que utilizo neste trabalho, publicada
em 2001. Pouquíssimo se comparado às 52 edições de Casa-Grande & Senzala, por
exemplo.
Em artigo sobre o livro Ordem e Progresso, cujo lançamento se deu em 1957,
Lucia Lippi Oliveira (2003) afirma algo que julgo aplicar-se também ao contexto de
lançamento de Além do apenas moderno. Para ela, a fria recepção a Ordem e
Progresso, no final dos anos cinquenta e início dos sessenta, tem a ver com o contexto
histórico vivido no Brasil, época em que se acentuou a dicotomia modernidade-tradição,
“sendo atribuídos ao primeiro termo valores positivos e, ao segundo, a negatividade
28
quase absoluta”. Ademais, os intelectuais brasileiros estavam, nesse momento,
comprometidos com o projeto de tirar o Brasil do atraso que o caracterizava a fim de
torná-lo uma nação desenvolvida. Não haveria espaço, portanto, para as ideias
freyrianas, que serão retomadas somente a partir dos anos 80 e que hoje gozam de
vigor renovado.
Assentadas, assim, as bases de compreensão do significado de futurologia e pós-
modernidade para Freyre, posso avançar em direção à como se dá a operacionalização
dessas ideias no livro Além do apenas moderno. Tentarei mostrar, a partir de agora,
como o autor pernambucano lê o seu tempo, percebendo nele uma transição profunda e
tentando firmar as bases de uma ciência futurológica – de base sociológica – que possa
auxiliar a humanidade nos desafios que lhe sobrevirão. É o que farei nesta próxima
seção do capítulo.
1.2 Compreender o presente, predizer o futuro: A leitura que Gilberto Freyre faz de
seu tempo
“pasado, presente y futuro, cuál es el verdadero tiempo del hombre? Dónde está su reino? Y si su reino es el presente, cómo insertar el ahora,
por naturaliza explosivo y orgiástico, en el tiempo histórico?
Octávio Paz
Se na primeira parte deste capítulo o objetivo era apontar como Gilberto Freyre
concebe sua ideia de futurologia a partir de uma concepção de tempo particular – o
tempo tríbio – e uma compreensão específica do que vêm a ser o moderno e o pós-
moderno, nesta segunda parte irei aprofundar na leitura que Freyre faz de seu tempo
com base em todas essas ideias. A primeira parte do capítulo apresenta, portanto, as
concepções que devem ser pensadas como lentes por meio das quais o sociólogo
pernambucano enxerga seu momento histórico, as mudanças que nele percebe ocorrer
e como elas irão moldar o futuro do homem. Nesse sentido, a maneira como Freyre
concebe o tempo e sua interpretação do que são o moderno e o pós-moderno
funcionam como fundamentos de sua futurologia, cuja operacionalização, por sua vez,
delineia a apresentação das questões teóricas colocadas ao longo dos capítulos do
livro.
Em Além do apenas moderno, portanto, os capítulos estão estruturados no
sentido de apresentar problemas contemporâneos – lembre-se que o contemporâneo
aqui remete ao ano de 1973, quando Freyre escreveu o livro – e sugerir como tais
questões irão moldar o futuro da humanidade, com especial interesse para a
29
“humanidade brasileira”, abrindo espaço para que se possa pensar uma futurologia
sociológica capaz de prever o futuro e, assim, agir sobre ele. Freyre, dessa maneira,
apresenta a futurologia e a operacionaliza ao mesmo tempo. Atua como um intérprete
que analisa e critica o seu tempo e propõe ideias para o futuro imaginando como esse
futuro será. Nesse sentido, esta seção do trabalho dedica-se a tentar entender como
Gilberto Freyre “inserta o agora no tempo histórico” – o seu agora – retomando as
palavras de Octavio Paz da epígrafe acima.
Em vários momentos do livro Freyre faz espécies de “previsões futurológicas”. Irei
abordá-las pontualmente quando for relevante para a construção dos argumentos
relativos ao tema principal deste trabalho. Essas previsões incluem prognósticos sobre o
futuro das relações raciais, de classe e de gênero. Também incluem discussões sobre
poligamia, concepções de família, lugar da religiosidade mística em sociedades
supostamente secularizadas. Enfim, a gama de assuntos abordadas no livro é realmente
extensa. Nesse sentido, como afirmei no início deste capítulo, darei especial atenção
àquelas questões que me remetem para meu objetivo principal, que é apontar as
aproximações entre hispanidade e futurologia e, com isso, direcionar-me a uma
discussão epistemológica que entendo estar presente no livro.
Esta segunda parte do capítulo estará dividida em quatro subpartes, cada uma
correspondendo a um grande tema levantado por Freyre em Além do apenas moderno e
que citei no início do capítulo como aqueles a respeito dos quais iria me preocupar. São
eles: A revolução biossocial, o problema do tempo crescentemente livre ou as relações
entre trabalho e lazer, o debate entre ciências e humanidades e a tropicalidade como
problema específico brasileiro. Há outros dois temas levantados por Freyre no livro e
que considero relevantes para este trabalho. Trata-se do problema de inter-relação entre
gerações e do papel a ser desempenhado pelos intelectuais no futuro. O primeiro será
abordado no subtema relativo à revolução biossocial e o segundo, naquele em que
discorro acerca do debate entre ciências e humanidades.
1.2.1 A revolução biossocial
Em que exatamente consiste este fenômeno que Gilberto Freyre chama de
revolução biossocial? Basicamente, é a ideia por meio da qual o autor pernambucano
tenta entender e explicar os processos de avanço tecnológico da modernidade e suas
consequências para a sociabilidade humana. Trata-se de um fenômeno mais perceptível
entre aquelas sociedades já em transição da fase moderna para a pós-moderna, ou
30
seja, aquelas em que o advento do capitalismo industrial encontra-se em uma fase
avançada de automação, processo esse cujas consequências já são mais claramente
perceptíveis no tecido social. Destaque-se, no entanto, que se essa revolução é mais
visível nessas sociedades de capitalismo avançado, tampouco deixa de se fazer
perceber em países como o Brasil que, mesmo retardados, como afirma Freyre, no
processo de pós-modernização, encontram-se afetados pelas mudanças de um mundo
crescentemente pós-moderno19.
A questão da adaptabilidade do homem ao meio sempre preocupou Gilberto
Freyre. Esse problema está presente em sua obra desde Casa-Grande & Senzala, livro
em que dedica muitas linhas a fim de explicar o processo de adaptação do português ao
trópico. Insistia o autor pernambucano desde então que “ao contrário da aparente
incapacidade dos nórdicos, é que os portugueses têm revelado tão notável aptidão para
se aclimatarem em regiões tropicais” (Freyre, 2006, p.73). Nesse sentido, Sérgio
Tavolaro (2013, p.285) afirma que “mesmo a contrapelo de argumentos-chave de Casa-
Grande & Senzala, “aspectos mesológicos” muitas vezes são assumidos como variáveis
independentes da experiência social brasileira, lado a lado com (e não subordinados a)
fatores sociais e culturais”.
Tavolaro apresenta esses argumentos ao contrapor-se a ideia de Jessé Souza
(2000, apud TAVOLARO, 2013, p.285) para quem apenas nas obras de maturidade de
Freyre a dimensão mesológica ganha relevo. Souza (2000, apud TAVOLARO, 2013,
p.284) entende que nas obras do Freyre jovem os argumentos tendem a estar
subordinados à dimensão cultural, enquanto que a preocupação com a influência do
meio torna-se preponderante apenas no Freyre da maturidade. Tavolaro (2013. p.286)
oferece outra intepretação segundo a qual “o trópico foi desde o início, e assim
permaneceu posteriormente, uma peça chave nesse ambicioso projeto intelectual [de
Freyre]”. Esse ambicioso projeto a que Tavolaro se refere seria a hipótese que ele lança
de que o esforço de Gilberto Freyre para estabelecer a singularidade da experiência
brasileira tinha também como objetivo “relativizar o protagonismo (epistemológico,
normativo e estético-expressivo) exclusivo de sociedades tradicionalmente tidas como
19
É importante destacar que um país de tradição hispânica como o Brasil possui ainda mais motivos para “pós-modernizar-se”, em razão de sua peculiar tradição em cuja essência há um pensamento que, para Freyre, já é, em certo sentido, pós-moderno. Irei avançar nesse tema nos próximos capítulos, por isso não detalharei essa ideia neste momento. Tenha-se em mente, no entanto, desde já, que a pós-modernidade para uma nação de tradição hispânica como o Brasil é uma espécie de destino natural. Essa é uma ideia fundamental para este trabalho.
31
modelares da modernidade”. Voltarei a esse importante argumento mais a frente, mais
especificamente no próximo capítulo.
Por ora, cabe ressaltar, portanto, que a relação entre Homem e meio físico é
fundamental para Freyre. Sua concepção de revolução biossocial está baseada na
importância que essa associação tem. Assim, essa revolução que caracteriza seu tempo
“consiste, principalmente, na busca de uma maior adaptação, por meios tecnológicos,
do Homem, ou de homens, a ambientes e de ambientes a homens” (FREYRE, 2001,
p.65). A automação crescente permitia aos homens melhorar sua adaptabilidade aos
meios em que viviam. Em última instância, o que o desenvolvimento tecnológico estava
permitindo ao ser humano era obter triunfos médico-sociais que aumentavam
significativamente a expectativa de vida.
O aumento da média de vida permitia o surgimento, ou formação, de um novo
tipo biossocial ao qual o autor pernambucano dá o nome de “homem-sênior” (Freyre,
2001, p.65). As sociedades de desenvolvimento capitalista mais avançado,
essencialmente as norte-europeias e os Estados Unidos, defrontavam-se com um novo
tipo de configuração social. Os longos processos de automação e industrialização pelos
quais essas sociedades haviam passado implicaram numa maior capacidade de se
adaptar aos ambientes e em triunfos médico-sociais que resultaram num aumento da
expectativa de vida entre suas populações. Assim, tornava-se cada vez mais comum
que homens – e mulheres também, ainda que Freyre refira-se sempre à humanidade
utilizando o gênero masculino – encerrassem suas carreiras de trabalho em um
momento da vida em que continuavam produtivos.
Gilberto Freyre irá tomar essa transformação biossocial como o fato mais notável
– e, sem dúvida, o mais definidor – de seu tempo. Ele entende que a presença do novo
tipo biossocial de “homem-sênior” irá “equilibrar-se de tal modo com a do homem-júnior
nas populações pós-modernas que a ancianidade poderá vir a ter importância igual à
maturidade e juvenilidade” (Freyre, 2001, p.65). A presença de um estrato social
formado por pessoas já em idade avançada, acima dos sessenta anos, mas ainda
produtivos será, portanto, para Freyre, um fato notável no futuro e implicará em uma
série de transformações cujos efeitos serão sentidos em vários aspectos da
sociabilidade humana.
Gilberto Freyre dá destaque para o efeito dessas mudanças nas relações entre as
gerações. Acredita que existem, grosso modo, três situações temporais possíveis a que
32
se pode reduzir a vida humana: “a adolescência prolongada em primeira mocidade, a
meia-idade e a primeira velhice, por vezes prolongada na segunda” (FREYRE, 2001,
p.82). Sua tese é de que o primeiro e terceiro grupos – que equivalem ao que chama o
autor pernambucano de, respectivamente, netos e avós – possuem maior ânimo
renovador e são mais independentes que o segundo, grupo este que se constitui numa
espécie de “burguesia do tempo” dado sua menor independência em razão da
prevalência nele dos interesses econômicos que tendem a dominar o homem de meia-
idade.
Note-se que os valores dominantes para Freyre são aqueles do convencionalismo
burguês moderno, que tendem a sujeitar o homem de idade média, entre os trinta e
cinco e sessenta e cinco anos, grupo econômica e politicamente dominante cuja
tendência é conformar-se com a ordem social e a ideologia prevalecente. Os jovens
tendem a afastar-se dessa predisposição conformadora, pois ainda não estão seduzidos
pela tendência a deixar de ser independentes e espontâneos em razão da estabilidade
econômica, objetivo que faz com que o homem de meia idade, calculadamente, adote
os valores que lhes pareçam dominantes. Por outro lado, o homem-sênior, aquele
superior aos sessenta ou sessenta e cinco anos, com os novos avanços médico-
científicos, tem chegado à terceira idade com vigor e disposição para engajar-se em
atividades políticas, intelectuais e artísticas e já sem o freio que a necessidade da busca
por estabilidade econômica impõe. Já não precisam, portanto, aderir aos valores
dominantes e podem, assim, revolucionar a si mesmos e o seu tempo.
Em sociedades com a Suécia, Grã-Bretanha, Alemanha, França e Estados
Unidos haveria sinais bastante visíveis das mudanças ocasionadas pelo aumento da
expectativa de vida. Dentre elas, um dos aspectos mais notáveis para Freyre (2001,
p.94) é a “frequência de indivíduos de idade superior a sessenta e cinco anos nos
cursos de nível secundário ou universitário” e a capacidade desses indivíduos de
“assimilarem plenamente, em cursos de literatura, de ciência, de filosofia, de arte,
valores em muitos casos mal assimilados por estudantes de idade ainda verde”. Nesse
sentido, o autor pernambucano nota que “a universidade moderna tem isto de
revolucionário: começa a ser um centro de estudos para indivíduos idosos tanto quanto
para indivíduos juvenis” (Ibid, p.94). E não é apenas a esses indivíduos de idade mais
avançada que a universidade está se abrindo. Também “aos jovens vindos de famílias
pequeno-burguesas e operárias” (Ibid, p.86). Essa ampliação do universo social
alcançado pela universidade terá grande implicação na formação de um mundo “pós-
33
operário”. Abordarei esse tema mais detalhadamente na próxima seção, em que
discorrerei acerca da mudança da ética do trabalho nas sociedades pós-modernas.
Ademais, soma-se a essa possibilidade de mudança que avanços tecnológicos e
médico-sociais permitiam o fato de o autor pernambucano acentuar a plasticidade
inerente do ser humano, cuja essência, para ele, caracterizava-se mais por um “estar
sendo”, tomado de Ortega y Gasset20, do que por uma natureza única e imutável. Freyre
(2001, p.83) utiliza-se, nesse sentido, de autores como Daniel Defoe, Honoré de Balzac
e Marcel Proust, “novelistas com alguma coisa de biógrafos e até de historiadores –
historiadores sociais mais que científicos –”, a fim de colocar ênfase nas transformações
pelas quais o homem passa, social e biologicamente, ao mudar de situação no tempo21.
Dentre essas mudanças, destaque dado por Freyre ao ânimo renovador e à
independência tanto de jovens quanto dos mais anciãos. “Daí a tendência, que é
sociologicamente interessantíssima, para os equivalentes de netos formarem alianças
com os equivalentes de avós, com esses dois grupos de idade numa como oposição
aos grupos de idade madura” (Freyre, 2001, p.83).
Mas como se pode dar essa associação entre netos e avós? Freyre destaca duas
características inerentes a estes, indivíduos com mais de sessenta anos, que lhes
permite – como diz José Guilherme Merquior (2001, p.11) ao analisar essa relação entre
gerações proposta pelo autor pernambucano – “dar lastro e sentido ao revolucionarismo
saudosista dos jovens”. Trata-se da sua capacidade de transmitir aos jovens os valores
da tradição e da clássica tolerância do avô, “pai com açúcar”. Essas duas
características, unidas ao vigor transformador do jovem, forneceriam o substrato
revolucionário da transformação biossocial que se processava.
Freyre entendia que o jovem pós-moderno, em sua contestação, não reivindicava
mais modernidade. Pelo contrário, possuía uma atitude positiva em relação ao passado,
do qual procurava reviver formas dando-lhes novos conteúdos. Seu gosto, diz Freyre
(2001, p.70), “é por formas românticas de arte, de música, de cultura, de vida e mesmo
20
Ao enfatizar que o homem é um estar sendo, Freyre referia-se à compreensão de Ortega y Gasset de não ter o homem uma natureza fixa. Destaque-se, nesse sentido, Meditaciones del Quijote, obra publicada pelo autor espanhol em 1915 e na qual há sua conhecida frase “yo soy yoy y mi circunstancia, y si no la salvo a ella, no me salvo yo” (Ortega y Gasset, 2004, p.178). O tema da circunstância também é tratado por Ortega na obra Que es filosofia?. 21
Freyre cita esses três autores como exemplos da capacidade de biografar e criar personagens suscetíveis a mudanças no tempo, personagens complexos, que não eram “estátuas quase indiferentes ao tempo” (2001, p.83). Diz Freyre, que as alterações “fazem do homem, através de suas diferentes situações no tempo, não um ser sempre o mesmo, mas um constante estar sendo, como talvez dissesse Ortega” (2001, p.83).
34
de amor”. Em outro momento, Freyre faz uma afirmação que bem poderia ser pensada
como uma análise precisa de formas de comportamento bastante contemporâneas, e
digo em relação mesmo a esta segunda década do século XXI. Aqui Freyre parece
prever corretamente uma tendência que se acentuou. Cito-o textualmente:
“Estamos diante, em certas áreas de comportamento da parte de jovens, de um surpreendente regresso, característico de toda uma mocidade mais anticonvencional, a arcaísmos românticos ou romanticóides no trajo, nos penteados, no uso de bigodes, costeletas, barbas, por jovens e até por adolescentes logo que podem ostentar tais arcaísmos. Saudosismo, portanto. O quase pós-moderno, repudiando o moderno e com saudade do pré-moderno: do arcaico, até” (FREYRE, 2001, p.67).
Vê-se que o elemento da tradição é fundamental na análise freyriana. Buscava-a
em seu comportamento o jovem pós-moderno que, em sua busca, poderia ser auxiliado
por aquele que Freyre denominava “homem-sênior”. E de que maneira poderia isso
ocorrer? Freyre (2001, p.70) utiliza-se da concepção de Deus construída pelo poeta
romântico alemão Heinrich Heine, que enfatizava menos a punibilidade de um severo
pai de adultos e mais a docilidade e capacidade para o perdão de um avô de jovens.
Assim, o homem-sênior freyriano se assemelha a esse deus-avô capaz de guiar jovens
“destruidores de convenções menos por serem maus do que por se sentirem
desajustados num mundo em aguda fase de transição com não pouco dos valores
tradicionalmente protetores de sociedades e homens em estado de crise” (FREYRE,
2001, p.70). O espírito contestador jovem dirigia-se mais a um convencionalismo
burguês do que propriamente à tradição, mesmo porque, como bem percebe Merquior
(2001, p.12), Gilberto Freyre está dotado de um “senso sociológico que reconhece no
passado o esboço de valores sufocados pela reificação e massificação do homem na
sociedade moderna”.
A crítica de Gilberto Freyre está, portanto, direcionada à tirania de uma
modernidade pan-racionalista que acreditava poder oferecer soluções científicas a todos
os problemas da humanidade, o que, em última instância, terminaria por desagregar
completamente os mitos que uma vez derem sentido à vida do homem tradicional. O
autor pernambucano deixa clara sua crítica a certa concepção de secularização do
mundo moderno que implicava numa total superação da tradição. Diz Freyre, “pois não
se pense dos mitos que facilmente se deixam extinguir pela racionalização da vida
através da tecnologia: esperam sempre o momento de ressurgir sob novo aspecto”
(FREYRE, 2001, p.98).
35
É como se Freyre estivesse dizendo que o revolucionário jovem pós-moderno,
pelo menos aqueles dos países de capitalismo avançado, nos quais a revolução
biossocial já se fazia notar, já sentiam as promessas não cumpridas da vida moderna e,
em seu novo revolucionarismo, voltassem-se a certos arcaísmos. Nesse percurso,
contaria com o auxílio fundamental do “homem-sênior”, a quem, acrescente-se, não
cabia papel de mero coadjuvante, senão também de artífice deste novo tempo porvir.
Mas e o Brasil, onde se encontrava nesse processo?
Freyre (2001, p.67) entendia que o Brasil estava passando por um tempo de
transição de “uma época paleotécnica, de ritmo ainda lento de vida e trabalho, para
outra, neotécnica mas ainda não caracteristicamente automatizada”. Ou seja,
estávamos ainda na transição do chamado arcaico ao apenas moderno. Em relação aos
países centrais do capitalismo, estávamos atrasados. Atraso, no entanto, que poderia
ser uma vantagem no processo de pós-modernização, uma vez que este promoveria o
resgate de traços pré-modernos que haviam sido rechaçados por serem arcaicos. O
problema, no entanto, é que o Brasil se encontrava obstinadamente decidido a
modernizar-se, o que se constituía, para Freyre, um atraso no processo de pós-
modernização. Isso ficará mais claro na próxima seção do capítulo quando abordarei as
relações do homem como o trabalho, principal diferença, para o autor pernambucano,
entre um mundo apenas moderno e outro já pós-moderno.
Cabe dizer, por último, em relação à revolução biossocial, mais duas coisas. Em
primeiro lugar, o conservadorismo de Freyre não se confunde com reacionarismo22. Ao
reivindicar a tradição, o autor pernambucano não espera simplesmente que aquilo que
denomina de “volta a arcaísmos” signifique um retorno total ao passado patriarcal cujo
processo de desagregação já descrevera em Sobrados e Mucambos e Ordem e
progresso. Obviamente não é disso que se trata. Freyre (2001, p.90), inclusive, aponta
que a presença mais ativa do homem-sênior na sociedade do futuro não deve implicar
em reacionarismo ou conservantismo. Cita, nesse sentido, a França, país já bastante
avançado em sua pós-modernização e a cuja população idosa não faltaria “inquietação
renovadora”. Penso que a insistência de Freyre na tradição deve ser vista mais como
um esforço de fazer de sua obra, como afirma Tavolaro (2013, p.286) – a quem citei
22
Bastos (1998, p.53) conta que em entrevista com Freyre, realizada em 1985, utilizou a palavra “antiliberal” para assinalar algumas de suas teses. Em resposta, Gilberto diria: “Não precisa definir como antiliberal minha posição. Pode dizer que sou conservador, o que é inteira verdade. Só não admito que me chamem reacionário”.
36
aqui anteriormente, e cuja ideia agora retomo –, uma tentativa de “desestabilizar a
centralidade epistemológica da modernidade europeia”.
A obra de Gilberto Freyre se constitui como perseverante defesa da singularidade
do processo sócio histórico brasileiro. Nesse sentido, poder-se-ia aproximar a insistência
de Freyre na especificidade brasileira com a defesa latino-americanista de José Enrique
Rodó em sua obra profunda e influente Ariel, publicada no ano 1900. Nela, o que faz o
escritor uruguaio é defender a particularidade latino-americana em face da
avassaladoramente crescente influência da América do Norte, já então, na passagem do
século XIX ao XX, a maior expressão do triunfo da modernidade norte-europeia e anglo-
saxã. Retomo um argumento de Rodó que me parece ter íntima relação com a
insistência que Gilberto Freyre dá à tradição.
“no veo la gloria, ni en el propósito de desnaturalizar el carácter de los pueblos – su genio personal –, para imponerles la identificación de um modelo extraño al que ellos sacrifiquen la originalidad ireemplazable de su espíritu; ni en la creencia ingenua de que eso pueda obtenerse alguna vez por procedimientos artificiales e improvisados de imitación” (RODÓ, 2009, p.197).
Voltarei a essa comparação com o Ariel de Rodó, que será importante nos
próximos capítulos. Por ora, importa destacar que ao interpretar sua contemporaneidade
a partir da ideia de revolução biossocial, e enfatizar nela o papel dos homens de terceira
idade como transmissores de valores tradicionais aos jovens, Gilberto Freyre coloca
ênfase naqueles princípios perenes de uma sociedade, traços duradouros que, a
despeito das mudanças, seguem existindo e cujo abandono, para a adoção de valores
alheios a essa cultura, provoca instabilidade e incerteza. Para o autor pernambucano, a
essência brasileira era, fundamentalmente, hispânica, tropical e mestiça. Dessas
características brotavam nossos traços mais duradouros. O que o processo de
modernização fazia, com seu discurso utilitarista fundado em uma ética do trabalho
anglo-saxã, era desvirtuar a personalidade brasileira, desnaturalizar seu caráter
impondo uma identificação com um modelo estranho que sacrificava a originalidade de
seu espírito, tomando aqui as palavras de Rodó.
Percebe-se, ademais, que a construção de argumentos de Freyre não é
meramente reacionária ao atentar-se para o aspecto comportamental da revolução
biossocial. E este é o segundo daqueles dois argumentos finais que citei anteriormente
como os últimos que iria explanar nesta seção do trabalho. O autor pernambucano
retoma a ideia da plasticidade humana ao abordar o futuro da sexualidade e das
relações amorosas, temas sempre tão caros a ele. Duas características do mundo pós-
37
moderno que emergia seriam o gradativo apagamento das fronteiras entre os gêneros e
a “crescente tolerância não apenas de práticas bissexuais como de práticas
homossexuais” (Freyre, 2001, p.114).
Para Freyre, esses dois aspectos do mundo pós-moderno estavam conectados.
Desde o final da Segunda Guerra, “algumas das barreiras antigas de segregação do
sexo feminino como sexo ortodoxamente frágil, belo, gracioso, doméstico, dependente”
teriam se quebrado ou enfraquecido “para em seu lugar, desenvolver-se considerável
igualdade de formas e funções sociais entre os sexos” (Ibid, p.114). Igualdade que teria
sido favorecida pelo surgimento de novos costumes e que passava a ser, inclusive,
consagrada por novas leis. Posteriormente, nos anos sessenta, a tendência acentuar-
se-ia com a “idealização de certos caraterísticos do tipo feminino” que teria gerado
“novas expressões de adolescência e juventude” com traços “nitidamente bissexuais”.
Em outros tempos, diz Gilberto, tais tendências teriam sido repelidas pelos costumes e
contidas por “leis dominadoras” que acentuavam a diferença entre os sexos. No entanto,
o pós-moderno nascente possibilitaria um espaço próprio para que houvesse a
“consagração do unissexo” (Ibid, p.114).
As novas leis “consagradoras de novos costumes” teriam também influência nas
relações amorosas e sexuais. Destaca Freyre a provável consagração da tolerância em
relação a práticas bissexuais e homossexuais que o autor pernambucano percebia
como inovações sociais revolucionárias. A legitimação do amor homossexual seria, para
Gilberto, expressão da “quebra da ortodoxia burguesa” e do triunfo de um “romantismo
antes antiburguês do que anticristão” (Ibid, p.76). Por meio dessa consagração,
reabilitar-se-ia o homossexual como “pessoa socialmente normal e não monstruosa”
(Ibid.76), deixando-se para trás, assim, aquele contexto social burguês em que homens
como Oscar Wilde foram condenados à dura prisão pela prática do amor homossexual
(Ibid, p.114).
Antecipando-se de maneira notável às discussões que estão em pauta nos dias
de hoje, Gilberto aponta a possibilidade de estabilização social e jurídica de ideias como
a de um “terceiro sexo” (Ibid, p.115). Aponta, no entanto, que a “inteira normalização da
figura do homossexual” estaria ainda por processar-se (Ibid, p.77) e que a consagração
dos novos costumes poderia encontrar “reação” (Ibid. p.114). Parece, de fato, notável
que Freyre conseguira antever, ainda na década de 70, o caminho pelo qual as
discussões sobre identidade de sexo e gênero caminhariam e que, inclusive, conseguira
38
predizer a reação de uma moral conservadora que vemos agora opor-se às medidas
jurídicas que tentam estabilizar e garantir a efetiva igualdade para cada indivíduo
autodeterminar-se no que se refere às suas identidades de sexo e gênero.
1.2.2 A questão do tempo crescentemente livre ou as relações entre trabalho e
lazer
A revolução biossocial remete-nos a três características fundamentais do mundo
cambiante que Gilberto Freyre se põe a observar. Abordei duas delas na seção passada
do trabalho, a crescente automação que se processava com base nos avanços
tecnológicos e o aumento da média de vida ancorada nos progressos médico-sociais. O
terceiro elemento desse tripé a sustentar a chamada revolução biossocial é a ampliação
do lazer ou do tempo livre nas chamadas sociedades em transição do apenas moderno
para o pós-moderno. Para Freyre, a mudança na relação das pessoas com o trabalho
seria um aspecto definidor do futuro.
Ver-se-á que a nova vinculação dos homens e mulheres com o trabalho remete,
de maneira muito clara, à concepção de hispanidade, ou seja, ao elemento hispânico
que compõe a especificidade brasileira. Um dos traços mais marcantes e persistentes
da civilização hispânica seria, para Freyre, sua forma de encarar o trabalho,
diametralmente oposta àquela das civilizações anglo-saxãs e norte-europeias, de matriz
protestante. Se para os estes o trabalho consistia em vocação, em seu sentido mais
puramente weberiano, para os católicos hispânicos o trabalho seria um fardo,
característica que implicaria numa valorização do ócio criativo, do lúdico, em detrimento
do meramente utilitário e produtivo. O pós-moderno freyriano restaura essa
característica tão hispânica, que fora estigmatizada pelo mundo apenas moderno como
arcaica e atrasada.
Para Freyre, a análise da relação homem-trabalho-tempo deve ser daquelas que
mais atenção obtenha do futurólogo. Há uma maneira fundamentalmente particular a
moldar o modo de se encarar o tempo e o trabalho que marcará o futuro pós-moderno.
Diz o autor pernambucano: “Restaura-se o prestígio do ócio como positivo, de que
negócio é o negativo. Restaura-se a relação do Homem com o Tempo em termos
menos de produtividade de trabalho individual ou grupal que de capacidade do
desocupado – indivíduo ou grupo – para preencher o tempo desocupado ou livre de
modo diversamente lúdico, hedônico e, em alguns casos, criador ou sublimador”
(Freyre, 2001, p.139).
39
Por que razão entendia Gilberto Freyre que haveria no mundo pós-moderno essa
tendência a um aumento do tempo livre, a valorização do ócio e a uma mudança nas
relações com o trabalho? Basicamente, por duas razões, que estão conectadas à sua
ideia de revolução biossocial. Em primeiro lugar, o aumento da média de vida havia
implicado em que pessoas de terceira idade chegassem à última fase de suas vidas
com vitalidade produtiva. “Há dois outros aumentos em ascensão fulminantemente
rápida nos últimos decênios: o quantitativo, de média de vida humana, e o qualitativo, de
saúde, e, consequentemente, de validez biossocial do homem depois de atingidos os
sessenta e cinco anos” (Freyre, 2001, p.177).
O futuro implicaria, portanto, num rearranjo social no qual esses indivíduos, de
idade avançada, tornar-se-iam mais ativos e participativos, seja em atividades lúdicas e
artísticas, cuja importância remeteria a uma esfera mais propriamente individual, ou
mesmo nas políticas e econômicas, cujos efeitos se fariam sentir no todo social. Em
segundo lugar, verificava-se também “tendências para um gozo de tempo pelos jovens,
despreocupados, contrária à mística, até há pouco dominante no Ocidente, do “time is
money”. Há uma evidente inclinação, da parte de vários desses jovens, para um tipo de
relação com o tempo antes romanticamente desinteressado do que pragmaticamente
calculado” (Freyre, 2001, p.66).
Nesse sentido, haveria uma propensão, nas civilizações industriais, para que
esses indivíduos mais ociosos – os mais jovens e os mais velhos – formassem espécies
de “brigadas revolucionárias de choque contra os representantes, por excelência, da
ordem estabelecida que são, nas mesmas civilizações, os indivíduos ainda em decisiva
e por vezes despótica maioria: os de idade média” (Freyre, 2001, p.178). O principal
lugar a se travar esse combate entre gerações seria o campo das relações com o
trabalho e com o tempo. Para Freyre, a principal característica dessa burguesia dos
homens de meia idade seria a defesa de seus interesses “que são principalmente os de
ordem, de organização, de estabilidade, através de métodos principalmente racionais,
lógicos, jurídicos”. (Ibid, p.179). Contra eles, levantar-se-iam jovens e idosos,
conectados por um espírito pós-moderno, revolucionariamente defensores de uma
ociosidade mais lúdica e criativa.
Ou seja, a tirania do tempo rigorosamente cronometrado, tão específica de
sociedades como a estadunidense, governadas pela incessante produção de dinheiro
(Freyre, 2001, p.51), sustentava-se, essencialmente, por meio da defesa de valores,
40
para Freyre, “apenas modernos”. Em tais sociedades predomina o “ideal calvinista do
tempo-dinheiro” (Ibid, p.179). Em contraposição a esse espírito, haveria uma tendência
pós-moderna – tão hispanicamente voltada ao lazer e à ociosidade criativa – que
propugna outra relação com o tempo, em que predominaria o tempo livre sobre o tempo
ocupado.
É interessante perceber que Freyre (2001, p.179) não julga haver diferença entre
Estados Unidos e União Soviética no que se refere à mentalidade voltada ao trabalho, à
produção, ao negócio, enfim, à industrialização. Ambas, em seus extremos ideológicos –
capitalista e “sob alguns aspectos” democrática23, por um lado; socialista e totalitária, de
outro – representam o “rígido organizacionalismo” das sociedades industriais. Gilberto
destaca, ainda, que ambas as sociedades, estadunidense e soviética, caracterizam-se
por possuir volonté d’antecipation (Ibid, p.25) e um future-oriented element (Ibid, p.25)
que as tornam tão semelhantes. A sustentar esse caráter orientado para o futuro está
um “racionalismo ativista e altamente otimista”24.
Para Freyre, portanto, o mundo pós-modernizado não se caracterizava, como
para Giddens (1991, p.9), como um momento de aceleração e ampliação das conquistas
modernas. Pelo contrário, o novo mundo, o futuro, propendia ao pré-moderno,
restaurando, em parte, ao menos no que se refere à relação do homem com o tempo,
aquilo que fora chamado, pelos modernos, de arcaico. O pós-moderno seria, portanto,
pós-capitalista e pós-burguês no sentido de que emergiria, para o autor pernambucano,
uma superação da civilização baseada puramente no negócio. Freyre explicita isso em
passagem que vale a pena citar em sua íntegra.
“Estamos hoje, no Ocidente e em mais de uma área mais ocidentalizada do Oriente, numa fase de desenvolvimento humano em que as virtudes e os valores consagrados por aquelas duas revoluções – a Comercial e a Industrial – são valores em crise, sob o impacto do começo de uma terceira revolução que excederá, talvez, em importância, a da ascensão social, já em grande parte realizada, do Proletário, já em grande parte ex-Proletário. Essa profecia marxista tornaram-na já circunstâncias não previstas de todo pelo gênio de Marx antes episódio do que culminância de um processo revolucionário pós-comercial e pós-industrial. É um processo que está nos levando de uma civilização à base do negócio, como foi principalmente a burguesa, capitalista, industrial, a uma civilização à base do ócio, e tão pós-burguesa quanto pós-proletária; tão pós-trabalhista
23
Perceba-se aqui o cuidado de Freyre em descrever os Estados Unidos como sociedade “sob alguns aspectos democrática”. Não inteiramente democrática, portanto. A ressalva é importante, pois Gilberto não considerava que fosse suficiente apenas um modelo político liberal e democrático. O Brasil, lembremos, por sua configuração social particular, seria para o autor pernambucano uma democracia social, ainda que não sujeita a um governo politicamente democrático. 24
Lembre-se que Além do apenas moderno foi escrito quando ainda vigia a polarização da guerra fria. No próximo capítulo, tentarei mostrar como a ênfase na particularidade hispânica irá embasar o que pode ser pensado como uma alternativa geopolítica ibérica, por meio da qual Freyre tenta escapar às constrições ideológicas da guerra fria.
41
quanto pós-capitalista. O tempo-ócio tende a predominar, em dias próximos, sobre o tempo-negócio de modo verdadeiramente revolucionário, em consequência direta do rápido aumento da automatização que das áreas superindustrializadas da Europa, da América e do Japão se comunicará decerto, sem demora, às apenas industrializadas" (FREYRE, 2001, p.177).
Freyre acreditava que o mundo que emergia, o mundo pós-moderno, seria tanto
pós-trabalhista quanto pós-capitalista, uma vez que a relação do ser humano com o
tempo tenderia a ser menos cronometrada, menos controlada, mais livre, mais lúdica.
Aquilo que Marx pensara como culminância do processo revolucionário, a ascensão do
proletariado, não era mais, para Freyre, que apenas uma etapa de um futuro que seria
pós-proletário. Marx não teria previsto a capacidade de o mundo capitalista industrial
estender seus benefícios para além da classe burguesa e, com isso, conter o ímpeto
revolucionário proletário.
Nesse sentido, Freyre entendia que “a época do Proletário, do Operário, do
Trabalhador com iniciais maiúsculas” estaria “em começo de rápida dissolução” (Freyre,
2001, p.268). Ideologias que ainda projetassem reivindicações operárias para os futuros
possíveis seriam, portanto, arcaicas, uma vez que baseadas numa relação homem-
tempo-trabalho que tendia a ser cada vez mais obsoleta. Perceba-se mais uma vez a
associação do apenas moderno com o arcaico. Gilberto entendia que se caminhava em
direção a “um mundo socialmente novo”. Esse caminho, no entanto, não seria aberto
por “uma revolução social à moda marxista”, solução essa, para ele, “já sem sentido”,
mas sim “através de uma revolução total, biossocial” que teria como sua principal fonte
de estímulo a automatização (Ibid, p.269,270).
No entanto, os altos níveis de bem-estar alcançados pelas sociedades mais
avançadas no processo de automatização e industrialização tê-las-iam convertido em
reféns de suas condições. Teriam elas se tornado incapazes de desfrutar de seu tempo
livre e ocioso e faltar-lhes-ia, assim, um elemento tão fundamental à experiência
humana, o da surpresa, uma vez que todo seu futuro já se encontraria metodicamente
planificado. Em um polo oposto, encontrar-se-iam sociedades mais anarquicamente
estruturadas como as hispânicas, cuja falta de organização, tão desprezada pelas
sociedades de cultura estritamente moderna, constituir-se-ia em vantagem no novo
mundo pós-moderno que emergia.
Para Freyre, o Brasil deveria “preparar suas novas gerações para tempos pós-
modernos seguindo antes inspirações hispânicas de sentido e de uso de tempo que
exemplos suecos” (Freyre, 2001, p.160). O sueco seria o exemplo acabado daquelas
42
sociedades norte-europeias que, “a despeito de sua quase perfeição econômico-social
ou tecnológico-social”, vivem o “tempo-tédio” – da insipidez, da monotonia, do tédio da
vida –, bastante distinto do “ócio hispânico que se prolonga à revelia dos relógios sem
que o ocioso se sinta vítima do tédio; ou se apresse; ou se preocupe exageradamente
com as relações entre tempo e dinheiro” (Ibid, p.160). Esse hispânico, cujo equivalente
brasileiro é o nordestino, em geral, e o baiano, em particular, não corre o risco, “como
tantos suecos e não poucos ianques”, de, “vítima da monotonia da perfeita ordem e da
absoluta segurança de uma civilização cronometrada tanto no tempo físico como no
social, vir a suicidar-se de pura acedia” (Ibid, p.160).
Nesse argumento reaparece a questão do regionalismo, sempre tão cara ao autor
pernambucano. Nosso lado mais essencialmente hispânico – o nordestino, o baiano –
estaria sujeitando-se ao apenas moderno, materializado na figura do paulista. Assim
como os hispanos em relação à Europa, os baianos em relação a São Paulo teriam sua
inferioridade supostamente comprovada – tanto por economistas quanto por sociólogos
“mais aparentados dos economistas nas suas tabelas de valores” – através das
estatísticas nas quais se saíam tão mal, especialmente na “renda per capita” (Ibid,
p.161). É lastimável, para Freyre, que, comparado à sociedade sueca, à anglo-saxônica,
à alemã, à francesa, os hispanos façam “tão má figura” no que se refere às estatísticas
econômico-sociais. Da mesma forma, que os baianos o façam também em relação aos
paulistas. No entanto, Gilberto se permite uma provocação para além dos números e
das conclusões feitas a partir de tabelas e análises quantitativas. Considera que a
deficiência hispânica nas estatísticas compense aquela deficiência norte-europeia e
anglo-saxã de ausência, nessas culturas, do elemento de surpresa, deficiência do
predomínio da vida insípida e cronometrada em que não se sabe tirar proveito do ócio,
do lúdico.
Freyre entendia que caminhávamos para um mundo em que a deficiência
hispânica converter-se-ia em valor, pois a ética do trabalho seria substituída por uma
ética do lazer (Ibid, p.161). Esse novo sentido de tempo abriria espaço para “o ideal
democrático de reorganização social” (Ibid, p.162), uma vez que permitiria “maior
diversificação entre os componentes de uma comunidade”. Mas em que sentido isso
ocorreria? Para Gilberto, o maior lazer “parece que vai permitir aos homens maior
liberdade de expressão: em fazer o que sempre desejaram fazer dentre de uma maior
diversificação de atividades por escolha individual dos membros espontaneamente
ativos de uma comunidade” (Ibid, p.162). Reaparece, assim, o projeto político de Freyre,
43
menos centrado em uma organização que dependa de um Estado racional, burocrático,
moderno, liberal e democrático, e mais preocupado com a “democracia social”, ou seja,
com organização espontânea de uma comunidade. São as “antigas tradições
comunitárias” apresentadas por Gilberto como criação mais legítima que a moderna
democracia política (Schneider, 2012, p.79).
A gestão do tempo livre seria, pois, uma questão fundamental para o futurólogo,
uma vez que o mundo pós-moderno para o qual se caminhava constituir-se-ia como
“época de menos trabalho e mais lazer” (Ibid, p.162). Esse predomínio do lazer poderia,
no entanto, ter consequências problemáticas caso o tempo livre não fosse gerenciado
de forma inteligente pelas sociedades do futuro. “Em várias sociedades
superindustrializadas o homem médio não está sabendo o que fazer de seu crescente
lazer” (Ibid, p.194). Por essa razão, tem esse homem médio ficado “à mercê dos
exploradores comerciais do seu ócio, ou de seu tempo desocupado” de forma que aquilo
que era antes trabalho “rotineiramente mecânico” tem sido substituído por “divertimento
mecanizado, estandardizado” (Ibid, p.194,195). Dessa forma, os benefícios que a
automatização traz em forma de tempo livre acabam superados pelos “prejuízos mentais
e socioculturais” em que a forma de utilização desse tempo tem implicado.
Freyre faz, nesse sentido, uma crítica dura da forma como o lazer tem sido
gerenciado pelas sociedades modernas. O lazer tem sido transformado em nada mais
do que “recreações mecânicas de pura inspiração capitalista”, atividades em que os
indivíduos são “despersonalizados em massa”, “sobrevivências do capitalismo
furiosamente competitivo do século XIX para o qual o tempo todo era dinheiro ganho,
trabalho produtivo” (Ibid, p.196). Os jogos modernos seriam a expressão maior da
reprodução da lógica competitiva, por um lado, e da lógica de multidão, por outro (Ibid,
p.140). São eles divertimentos “ruidosos, excitantes ou violentos”, que apenas fazem
reproduzir, para os que os praticam, “sensações de grandes esforços produtivos ou
competitivos” (Ibid, p.196) e, para os que os assistem, a lógica da estandardização e o
sentido de massa despersonalizada. Ou seja, a lógica do trabalho produtivo teria se
tornado tão dominante que até mesmo o tempo livre, que supostamente deveria ser
utilizado para o ócio e para o prazer, havia se transformado em mais uma esfera da vida
em que a racionalidade competitiva se manifestava.
É preciso, portanto, pensar numa reorganização do tempo livre. Para Freyre, “o
tempo dedicado ao lazer não precisa de ser um equivalente do tempo ocupado pelo
44
trabalho ou pelo esforço, como quase todo o esportivo, de competição simbolicamente
produtiva. Não é esse esporte o mais capaz de dar ao homem aquela apreciação mais
pura de valores de existência que a alguns de nós parece ser a principal função do
lazer” (Ibid, p.196,197). A forma de lazer que tem dominado as sociedades apenas
modernas é meramente uma caricatura do trabalho produtivo e, por essa razão, é
antilúdica. Ela está saturada da “mística calvinista” de que os homens nunca devem
“perder o tempo, gastá-lo, desperdiçá-lo, mas sim salvá-lo, economizá-lo, guardá-lo
como capital”. É a dominação da mística do time is money até mesmo na esfera do
tempo supostamente livre (Ibid, p.197). A função do lazer, do ócio lúdico é fazer com
que o homem tenha uma apreciação dos valores de sua existência, algo que as
sociedades apenas modernas parecem estar sendo incapazes de conseguir.
É preciso, portanto, que as sociedades do futuro ocupem-se, fundamentalmente,
da organização do tempo livre, pois a boa saúde do corpo social dependerá desse
esforço. A organização do lazer deve liberar o homem de suas preocupações
produtivas. Freyre propõe, nesse sentido, uma “concepção eutênica de reconstrução
social”. Eutenia é um substantivo cujo significado é “boa saúde”. O ócio e o lúdico
devem prover ambientes socialmente saudáveis que liberem os indivíduos para que, na
medida de seus próprios interesses, possam desenvolver-se em atividades artísticas,
técnicas, científicas, culturais, educacionais e de qualquer outra natureza. Atividades
essas que aprimorem seu sentido de humanidade e individualidade e que não permitam
sua dissolução em massa disforme estandardizada. A atuação de homens de intelecto e
de ciência será fundamental nesse projeto de futuro de Freyre. Nesta próxima seção
abordarei, portanto, como o autor pernambucano pensa a esfera do conhecimento em
sua futurologia.
1.2.3 As ciências e as humanidades
A esfera do conhecimento é um elemento fundamental na abordagem freyriana
por duas razões que ficam bastante claras ao longo da leitura de Além do apenas
moderno. Em primeiro lugar, porque a transição do moderno ao pós-moderno implica
uma mudança nos métodos de estudo do Homem, com o ressurgimento e revalorização
dos saberes humanísticos (Freyre, 2001, p.40). Em segundo lugar, pois o cientista social
aspirante a futurólogo, que pretende compreender de forma precisa essa transição,
precisa dominar os conhecimentos tanto de cunho mais humanístico quanto aqueles
mais propriamente científicos. Nesse sentido, faz Freyre uma defesa da conciliação e
aproximação entre esses saberes.
45
“Não se admite que se prolongue o estado atual das duas subculturas, a humanística e a científica, a se conservarem reciprocamente hostis, com o iniciado numa delas desdenhoso da outra; e o humanista ignorante da expressão matemática e empenhado na verbal. Seria nos resignarmos à pior das guerras civis” (FREYRE, 2001, p.100).
Perceba-se que a ênfase que Freyre dá ao ressurgimento das humanidades de
maneira alguma implica em rebaixamento das ciências físicas ou naturais. Pelo
contrário, tinha ele consciência muito clara da importância que as chamadas ciências
duras teriam no mundo que se desenhava. Diz ele em certo momento que o mundo
futuro “será matematizado em parte considerável de sua cultura geral” (Ibid, p.100), o
que exigirá um conhecimento significativo dessa área por parte de todos e não apenas
daqueles indivíduos que se dedicam profissionalmente às atividades matemáticas e
físicas. E não são apenas às ciências matemáticas às quais o autor pernambucano dá
ênfase. “As chamadas ciências naturais são outras em que a criança de hoje precisa ir
sendo iniciada de modo mais incisivo” (ibid, p.101).
O que Freyre faz ao apontar para uma renovação dos saberes humanísticos é
direcionar sua crítica ao positivismo. Para ele, “as modernas ciências do Homem já não
obedecem às filosofias positivistas ou às neopositivistas que, durante quase um século,
tiveram sobre ela influência preponderante, colorindo também suas relações com a
engenharia física e a engenharia social” (FREYRE, 2001, p.99). Um dos piores aspectos
da massiva influência positivista nas ciências sociais teria sido a negação de toda
influência estética ou emocional, baseando a produção do conhecimento em uma estrita
divisão entre razão e emoção. A análise sociológica deveria, nesse sentido, repudiar o
que não se caracterizasse como orientação racional do mundo.
A ascensão das chamadas ciências positivas teria provocado a desvalorização
dos saberes humanísticos e confinado o pensar estético, intuitivo e poético a uma esfera
não-científica, de cunho mais literário. Os modernos saberes científicos teriam, dessa
forma, compartimentalizado o conhecimento e adotado, segundo Freyre, um “furor em
prol dos números – que seriam a única expressão cientificamente válida em toda
espécie de saber – e contra as palavras, desprezando, quase todas, como pura e vã
retórica” (Freyre, 2001, p.40). No entanto, tais saberes, os chamados positivos, teriam
sido intitulados modernos arbitrariamente, pois baseavam-se no espírito de uma época
que desprezava um outro tipo de saber, mais humanístico, ou seja, mais crítico e
intuitivo, a que se intitulou como arcaico.
46
Para Freyre, o pós-moderno resgataria o conhecimento dessa tendência. Ao
defender esse resgate, o autor pernambucano irá mostrar quais suas filiações
metodológicas no campo da sociologia. Diz ele, “nas ciências chamadas do Homem é
imensa a importância da perspectiva não-intelectualista e não-racionalista, mas
certamente científico-humanista, criadoramente intelectual, aberta por Simmel e Max
Weber e hoje tão válida como há meio século”. Ao constantemente chamar seu método
de compreensivo, Freyre está obviamente fazendo remissão a Weber, que ele toma,
juntamente com Simmel, como modelos, dentro da sociologia, da fusão entre os ideais
de ciência e humanismo proposta em Além do apenas moderno. A contribuição desses
autores seria, nesse sentido, fundamental para uma possível futurologia, pois se a
sociologia terá alguma relevância na compreensão dos futuros humanos, será preciso,
então, “ser sociólogo mais à maneira alemã, dos Simmel”, diz Freyre (Ibid, p.119).
Em que sentido a obra desses autores teria um sentido anti-intelectualista? Pois,
para Freyre, suas perspectivas sustentavam que “as consequências sociais acontecem
à revelia das intenções que os racionais supõem que delas decorrem” (Ibid, p.245). O
exemplo em que Gilberto se sustenta é a interpretação sociológica de Weber em A ética
protestante e o espírito do capitalismo, da qual se pode depreender que “as
consequências de caráter capitalista da ética protestante calvinista não foram
pretendidas pelo racionalismo de Calvino: o protestante por excelência intelectualista da
revolução anti-católica do século XVI” (Ibid, p.245). Assim, Freyre irá mencionar estudo
de Peter Berger25, o qual se poderia considerar notável exemplo da perspectiva pós-
moderna das ciências humanas, que aponta ter sido Weber quem mostrou ser precária
a interpretação, “com pretensões a cientificamente social”, do comportamento humano
como resultado imediato de deliberados esforços lógicos e racionais-intelectuais. Peter
Berger descreve uma realidade social muito mais complexa, que seria, para Freyre, um
antídoto aos “utopismos revolucionários e abstratos”, e aqui o autor pernambucano está
se referindo explicitamente ao marxismo, cujo “fracasso” ele vê associado a essa
perspectiva racionalista que impede de perceber os desvios não de todo racionais da
história (Ibid, p.246).
25
Peter L. Berger é autor, juntamente com Thomas Luckmann, do importante The social construction of reality, obra de 1966, referência do campo da sociologia do conhecimento. Ademais, é autor do livro Invitation to Sociology: A humanistic perspective, publicado três anos antes, em 1963, em que defende a orientação da sociologia em direção a sua dimensão humanística, aquilo que Freyre tenta também postular em Além do apenas moderno.
47
Não haveria para Freyre, no entanto, algo de completamente novo nas
perspectivas desses sociólogos. Algo delas já poderia ser encontrado na “ciência
hispânica do homem” desde, pelo menos, o século XVI, período de que Gilberto destaca
as obras de Baltasar Gracián e Juan Luis Vives, que em muito teriam se antecipado aos
sociólogos e antropólogos modernos. Diz ele expressamente que “Max Weber e Simmel
são sociólogos modernos de língua alemã aos quais não falta parentesco com a
tradição hispânica de estudo do Homem como um estudo que não repugna – como
repugna ao mais estreito positivismo sociológico – a complexidade dos temas
psicossociais que escapem a medições e mensurações” (Ibid, p.41).
Dentro dessa mesma tradição de estudos modernos mais humanísticos, Gilberto
destaca ainda a tese do poeta e escritor francês Paul Valéry em seus ensaios
Introduction à la methode de Léonard de Vinci e em Regards sur le monde actuel, nos
quais aparece “a necessidade de uma reorientação das ciências do Homem como
ciências que se assemelhem leonardodavincianamente, em seus métodos, às artes
plásticas, em sua mesma busca por um homem inteiro, vivente e existente, consciente e
subconsciente” (Ibid, p.41). As ciências modernas teriam reduzido o homem ao seu
intelecto, à sua razão, tornando toda a esfera do não-racional como não passível de
conhecimento objetivo, reservando, assim, para as manifestações dos sentimentos, e
não do intelecto, lugares fora da ciência, como a literatura ou a religião. O conhecimento
teria sido, dessa forma, compartimentalizado. No pensamento hispânico, no entanto, a
fusão entre razão e sentimento teria sido sempre o padrão. A plasticidade das ciências
humanas hispânicas, caracterizada pela fusão entre método artístico e filosófico, teria se
tornado obsoleta com o triunfo do cientificismo racional norte-europeu e anglo-saxão,
passando, tais estudos hispanos, a ser considerados “arcaicos, místicos, literários,
impressionistas, orientais, extra-europeus” (Ibid, p.43).
Não avançarei mais sobre esse tema, pois ele será tratado amplamente no
próximo capítulo. Por ora, importa destacar que o pós-moderno freyriano implicaria na
recuperação dessa forma hispana de conhecimento considerada como arcaica pelo
mundo “apenas moderno”. Não que Freyre entenda que essa forma plástica de
conceber as ciências humanas – mais preocupada em apreender um ser humano
integral e não apenas sua abstração racionalista – seja atributo apenas dos hispânicos.
Gilberto vê essa mesma tendência no mundo norte-europeu numa vertente de
pensamento que vai desde Pascal até Nietzsche e, mais contemporaneamente, no
existencialismo. Tendência, no entanto, minoritária em uma civilização em que terminou
48
por predominar o racionalismo e o quantitativismo (Ibid, p.43). Entre os hispanos, essa
forma de conceber a ciência teria sido dominante e constante e sua recuperação
significaria voltar a estudar o ser humano “menos como ser abstrato que como ser
situado: integrado, como pessoa, inclusive como sexo, em algum ambiente ou meio
particularmente ecológico do qual seria inseparável; e sentido na sua totalidade –
inclusive a totalidade tempo, sem separar-se rigidamente presente, de passado ou
futuro” (Ibid, p.43). Na última seção deste capítulo, irei me concentrar, portanto, no
aspecto mesológico que, como se vê, assume grande importância no mundo pós-
moderno de Freyre. Os estudos das ciências humanas não podem prescindir de
entender o ser humano em sua totalidade, o que significa estudá-lo em seu meio
geográfico. A tropicalidade terá, portanto, um lugar central na futurologia freyriana.
1.2.4 A tropicalidade como especificidade brasileira
O último elemento que quero destacar nesta breve exposição de Além do apenas
moderno é o da tropicalidade. Essa característica brasileira, sempre tão cara a Freyre, é
fundamental para sua concepção de futurologia. Já abordei a questão da importância
que a adaptação dos homens ao meio detinha para o autor pernambucano. O trópico é,
nesse sentido, fundamental, pois sendo faceta tão própria brasileira, é primordial
desenvolver plena capacidade de adaptar-se a ela. Um dos aspectos definidores do
futuro brasileiro seria, portanto, a habilidade das futuras gerações em conceber uma
vida tropical coerente com a mesologia dos trópicos.
Uma das particularidades da defesa que Freyre fazia da especificidade brasileira
referia-se a sua crítica da importação de formas de convívio e de relacionar-se com o
meio que nenhuma similitude guardavam com nossas características. Não se podia
pretender que um modo de viver adaptado a características específicas de um lugar
pudesse ser transplantado a outro sem que isso implicasse em perdas significativas. As
relações saudáveis entre homem e natureza regional dependiam de uma adequada
relação entre vida e meio. “Viver borealmente em ambiente boreal e viver tropicalmente
em ambiente tropical”, diz Freyre (2001, p.101).
A tropicalidade, portanto, não seria senão “um critério profundamente mais
ecológico, das relações do homem com a natureza e de suas culturas com os
ambientes” (Ibid, p.63). Um ser humano brasileiro completamente integrado com seu
meio ecológico demandaria um esforço adaptativo em relação àquilo que define a
ecologia do lugar onde vive, ou seja, do trópico. Isso seria possível, pois, como vim
49
destacando, o declínio de uma mentalidade “apenas moderna” permitiria ao “homem
situar-se não como dominador absoluto da natureza, mas também como parte dessa
natureza” (Ibid, p.64). A nova vida pós-moderna tenderia a corrigir os “excessos” de uma
automação que muitas vezes se desenvolvia completamente alheia aos compromissos
necessários com a natureza.
Um dos problemas do mundo moderno e de sua mentalidade “pan-racionalista” é
que teria se desenvolvido um entendimento, supostamente científico, de que seria
possível “a solução de todos os problemas do Homem civilizado através da pura
tecnologia” (Ibid, p.99). Freyre expressamente se coloca contrário a essa tendência,
dizendo que “a psiquiatria, a psicologia, a antropologia, a sociologia também são
ciências e não se pode dizer dos seus principais cultores modernos que concordem em
atribuir essa importância absoluta à tecnologia per se” (Ibid, p.99). Freyre diz que as
ciências humanas não estão mais submetidas ao positivismo e sua tentativa de
transformar a sociologia em uma espécie de engenharia social, ou, pelo menos, não
deveriam estar. As ciências humanas, com sua base crítica humanística, deveria
fornecer o contraponto necessário para que as ciências naturais não ensejem a
mentalidade de que através pura e simplesmente das inovações científicas o mundo
natural poderia ser completamente submetido. O problema, no entanto, é que ao
contrário do que deveria acontecer, as próprias ciências humanas haviam se inebriado
com esse pensamento triunfalista supostamente científico. Vê-se, portanto, como a
questão mesológica está conectada com o problema da seção anterior, das ciências e
das humanidades.
O intelectual pós-moderno deveria, para Freyre, estar dotado das necessárias
armas críticas humanísticas, sem, no entanto, desprezar as ciências naturais, que
seriam obviamente fundamentais no futuro. O autor pernambucano propõe, assim, um
humanismo crítico que possa revigorar as ciências humanas. No próximo capítulo,
tentarei mostrar como ele fará isso apoiando-se, sobretudo, na concepção de
hispanidade.
50
2 HISPANIDADE EM GILBERTO FREYRE: A INFLUÊNCIA DO PENSAMENTO
ESPANHOL
“Para entender la vida hispánica debe olvidarse por un momento la idea de que el éxito y la prosperidad materiales son necesarias
para definir esencialmente una cultura” Américo Castro
Neste capítulo, irei me dedicar fundamentalmente a dois objetivos. Discorrer
acerca da ideia de hispanidade presente na obra de Gilberto Freyre e da influência que
autores do pensamento espanhol tiveram na conformação dessa concepção. Trata-se,
pois, de uma forma de abordar aquilo que a literatura especializada denomina de
iberismo (Bastos, 1998; 2003; Schneider, 2012; Baggio, 2010; Souza, 2000), ou seja, as
teses ibéricas que recorrentemente foram utilizadas pelo autor pernambucano para
explicar certos traços resistentes da personalidade brasileira que estavam ligados à
herança colonial ibérica que nos foi legada. Minha preocupação centrar-se-á em tentar
entender como a leitura de autores hispânicos inspirou decisivamente a percepção de
Freyre e transmitiu à sua obra uma perspectiva específica acerca dos contornos da
influência ibérica sobre o Brasil.
Para além de enfatizar um ou outro autor que possa tê-lo influenciado mais
decisivamente, como, por exemplo, Miguel de Unamuno ou Ángel Ganivet, aos quais
Freyre refere-se explicitamente em seus escritos, quero destacar aqui uma forma de
pensar hispana, que estaria cristalizada no conjunto do pensamento espanhol, e que
exerceu não apenas certo fascínio sobre o autor pernambucano, mas, sobretudo,
influência decisiva no tipo de sociologia que ele viria a fazer e propor. Em Além do
apenas moderno, Freyre apresenta uma futurologia sociológica que está intimamente
relacionada com o que ele chama “ciência hispânica do homem”, uma forma de pensar
e fazer ciência dos hispanos, cuja essência apontaria para uma ênfase num ser humano
total; não apenas no aspecto da racionalidade, mas na razão e sentimento
consubstanciados; alma, espírito e pensamento em união indissociável. Ciência essa,
ademais, influenciada por um sentido de tempo profundamente particular, o tempo
hispânico, ou, como também o chama Gilberto, o tempo tríbio.
Conhecer e compreender o que Freyre pretende ao enfatizar uma maneira
particular de produzir conhecimento que remete à civilização hispânica é, portanto,
fundamental, pois o autor pernambucano irá reivindicar essa tradição de pensamento
em Além do apenas moderno. Nesse sentido, no percurso deste capítulo, buscarei, em
primeiro lugar, apresentar um breve esboço de como a ideia de hispanidade teria
51
amadurecido na obra de Gilberto. Em um segundo momento, centrar-me-ei em tentar
entender o que se poderia compreender por civilização hispânica a partir das ideias
sustentadas pelo filólogo e historiador espanhol Américo Castro, relacionando-as à
concepção de hispanidade presente em Freyre. Pretendo, assim, esclarecer a que o
autor pernambucano se refere ao mencionar a ideia de uma ciência hispânica do
homem na obra que constitui o objeto de análise deste trabalho.
Em um terceiro momento, retomarei os autores espanhóis que,
reconhecidamente, exerceram maior influência sobre Freyre: Miguel de Unamuno, Ángel
Ganivet e Ortega y Gasset (Bastos, 2003; Baggio, 2010; Pallares-Burke, 2005).
Abordarei, ainda, escritores como Laín Entralgo e Julián Marias, também citados pelo
autor pernambucano em Além do apenas moderno. Todos esses intelectuais espanhóis
contemporâneos são, no entendimento de Gilberto Freyre (2001, p.44), atualizadores de
uma interpretação hispânica da vida humana que remete a uma tradição iniciada
essencialmente com o “século de ouro”26, período de apogeu do humanismo clássico
espanhol, dentre cujos autores Freyre destaca Juan Luís Vives, humanista valenciano
do século XVI, e Baltasar Gracián, jesuíta autor de El criticón, obra-prima do século XVII
considerada ao lado de Dom Quixote de Cervantes o romance mais importante da
literatura espanhola (Santos Alonso, 2004, p.25).
Como afirmei, minha preocupação maior está antes em delimitar um sentido mais
amplo do pensamento hispânico do que propriamente apontar aproximações entre
Freyre e autores espanhóis, ainda que considere a comparação com os autores um
recurso indispensável para a constituição do argumento empregado aqui. Minha
insistência em enfatizar uma ideia de civilização e pensamento hispânico que o autor
pernambucano reivindica, ver-se-á, tem relação com minha sugestão de que, em Além
do apenas moderno, Gilberto propõe uma espécie de arielismo, ideia que remete ao
Ariel de José Enrique Rodó. Se o uruguaio empreende seu projeto de crítica da
modernidade desde as trincheiras ideológicas do latinoamericanismo (Castro, 2009,
p.11), o ensaísta de Apipucos o faz a partir da apropriação da hispanidade. Em ambos,
no entanto, vislumbra-se a mesma reivindicação de uma cultura humanística que
poderia combater o materialismo racionalista, personificado na cultura anglo-saxã;
26
O termo “século de ouro” refere-se, grosso modo, ao período histórico que compreende o Renascimento e o Barroco espanhol, nos séculos XVI e XVII, respectivamente. O termo foi cunhado no século XVIII por Luis José Velázquez em seu Orígenes de la poesia castellana e, posteriormente, consagrado pelo hispanista estadunidense George Ticknor. Costuma-se fixar seu início no reinado dos Reis Católicos e datar seu fim com a morte de Calderón de la Barca, em 1681, ou, um pouco mais a frente, com o final da Guerra de Sucessão Espanhola, em 1714. (Bayón, 2010, p.19).
52
vislumbra-se a mesma ideia de um futuro que não pode, nem deve prescindir de valores
tradicionais.
A utilização do recurso de comparação com Rodó servir-me-á, basicamente,
como forma de explicitar o argumento central de Além do apenas moderno:
desestabilizar a centralidade da experiência moderna. O moderno é, nessa obra, como
tentei mostrar no primeiro capítulo, o efêmero. Os rasgos tradicionais, supostamente
pré-modernos, cuja persistência marcam a experiência histórica brasileira não estão
enquadrados como impedimentos para a modernização, pois o foco de Freyre está na
pós-modernização. Nesse sentido, já não se trata de buscar afirmar “outra modernidade”
que caracterizaria o percurso histórico brasileiro. Na realidade, o arcaico, para o Gilberto
de Além do apenas moderno, é justamente identificar-se com a lógica moderna, que é a
lógica do “não há tempo a perder”, do time is money. A insistência nessa identificação, a
persistência em querer ser moderno, estaria atrasando o processo de “pós-
modernização de nosso país” (Freyre, 2001, p.67). Freyre empreende esse projeto, de
descentrar a experiência moderna, reivindicando uma tradição hispânica que é, para ele,
símbolo de pós-modernidade. O hispano, em sua forma de conhecer o mundo (sua
ciência humanística) e relacionar-se com ele (tempo tríbio), atesta outro tipo de
experiência social que Freyre toma como modelo a fim de sustentar que certas tradições
não devem ser renegadas, mas, sim, afirmadas. Como ele o faz é o que tentarei
mostrar.
2.1 O caminho para a hispanidade
Em texto intitulado A propósito de lo hispano y de su cultura, publicado
originalmente no ano de 1965, em Buenos Aires, Gilberto Freyre (1975, p.149) chama
Brasil e Argentina de “culturas nacionales de común origen hispánico y de futuro
probablemente común”. O autor continua e aprofunda esse argumento, da proximidade
cultural entre os dois países, a fim de enfatizar a essência que ele compreende ter a
hispanidade. Nesse sentido, acrescenta:
“Pero la cultura hispánica – cultura en su sentido sociológico, hispánica en el sentido de ibérica, pues conviene que algunos españoles dejen de pretender monopolizar el adjetivo “hispánico”, y entre los portugueses e brasileños otros tantos dejen de temer en él el espantajo de um supuesto imperialismo, el de la hispanidad en el significado exclusivo de españolidad – la cultura hispânica está en la base de nuestras estructuras nacionales argentina y brasileña, como vínculo transnacional, vivo y germinal en su capacidade de aproximar naciones, cuasi-naciones, poblaciones neohispánicas, en lo essencial de sus formas de vivencia y convivência” (Ibid, 1975, p.149)
53
Voltarei ao conteúdo desse excerto mais a frente. Por ora, o que quero enfatizar é
que o texto está publicado no Brasil no livro O brasileiro entre os outros hispanos:
afinidades, contrastes e possíveis futuros nas suas inter-relações, do ano de 1975,
apenas dois anos após o lançamento de Além do apenas moderno. Entendo que, para
se ter uma visão mais ampla do argumento freyriano, especialmente aquele que desejo
enfatizar neste trabalho – a proximidade entre hispanidade e futurologia –, seja preciso
analisar as duas obras conjuntamente. Os temas mais importantes abordados são
recorrentes nos dois livros. Se no primeiro, a ênfase está na futurologia, no segundo, ela
recai sobre a hispanidade. Ambas as concepções são, no entanto, tratadas, sempre que
possível, de forma conjunta.
Destaco outra passagem do mesmo texto publicado originalmente em Buenos
Aires no qual a relação entre os dois livros resta bem evidenciada.
“Quien considera problemas de sociedad y de cultura a través de una concepción trivia del tiempo, dificilmente puede delizarse hacia um tradicionalismo convencional: debe ser también calificado como futurólogo. Fue lo que destaqué en el primer curso universitario de Futurología, desde el punto de vista sociológico, dictado en Brasil”. (Freyre, 1975, p.151).
Perceba-se, portanto, que dois temas fundamentais de Além do apenas moderno,
a futurologia e o tempo tríbio, encontram-se presentes no argumento freyriano no livro O
brasileiro entre os outros hispanos. Um pouco mais a frente, no mesmo texto, Freyre
afirma:
“Repugna a alguno de nosostros, hispanos, um presentismo com pretensiones de modernismo que ignore sus dimensiones de tempo mas allá de lo inmediatamente actual o de lo apenas moderno. Y en esa actitud creo que se expresa la antigua tendencia hispánica a situar el hombre en un tiempo que, lejos de se mero presente, es también lo que fue y lo que será – inclusive lo más allá del tiempo –, los tres interpenetrando-se. Trívio, constantemente trívio.(Ibid, p.152).
Novamente aqui aparece de maneira clara os temas caros a Freyre em Além do
apenas moderno. Uma crítica do presentismo que revela o espírito do “apenas moderno”
e o elogio da concepção tríbia de tempo, mais afeita ao espírito pós-moderno. Essa
repetição dos temas é bastante visível em várias outras partes de O brasileiro entre os
outros hispanos. Há, portanto, uma relação estreita entre os dois livros publicados por
Freyre no curto espaço de tempo de dois anos, entre 1973 e 1975. Para além da
recorrência dos temas abordados, a própria estrutura de ambos é bastante semelhante.
Foram construídos a partir de textos escritos por Freyre em anos anteriores e que foram
recopilados e transformados em livro. Faz sentido, portanto, pensá-los conjuntamente
54
como um complexo de ideias que foram assumindo grande importância para Freyre,
pelo menos, a partir da década de sessenta27.
Pode-se perceber isso de maneira mais clara ao se retroceder precisamente até o
ano de 1960, quando Freyre publica um livro chamado Uma política transnacional de
cultura para o Brasil de hoje. Essa obra é resultado de uma conferência que o autor
pernambucano proferiu, no ano de 1959, na Faculdade de Direito da Universidade de
Minas Gerais28. Logo nas primeiras linhas do texto, Gilberto evidencia o tema sobre o
qual iria versar: a orientação da política exterior do Brasil no sentido de “uma afirmação
mais vigorosa da presença brasileira na América” (Freyre, 1960, p.37), o que para ele
era motivo de alegria.
O esforço de aproximação da América era para Freyre duplamente importante.
Em primeiro lugar, pois entendia que o mundo caminhava para um período em que o
Estado-nação perderia protagonismo, acentuando-se, assim, a importância de blocos
regionais de países. De acordo com o autor pernambucano, “as nações parecem cada
dia valer menos como simples nações ou puros Estados nacionais e mais como
conjuntos trans ou plurinacionais de cultura” (Ibid, p.37,38). O segundo motivo,
consequência automática do primeiro, consistia no fato de ser a América hispânica o
aliado mais natural do Brasil para formar um conjunto culturalmente coeso de nações.
Aqui irão entrar em cena os velhos argumentos freyrianos acerca da capacidade
de adaptação dos portugueses aos trópicos e da especificidade da civilização que se
criou no Brasil em razão dessa adaptabilidade ibérica. Para a afirmação de um conjunto
plurinacional forte, no entanto, não bastavam apenas Brasil, Portugal e as outras partes
tropicais do globo em que a cultura portuguesa havia se instalado. Era necessário
expandir o bloco e nesse sentido, portanto, o hispano é integrado ao mundo luso-
brasileiro freyriano. Em passagem em que fecha o argumento inicial da conferência,
Freyre aponta claramente todos esses elementos que se configurariam como o núcleo
de sua exposição: a América, o hispano e o luso-brasileiro como conjunto plurinacional e
o trópico, como o elemento fundamental a uni-los todos.
27
Nesse mesmo texto, do qual retirei os excertos que utilizei aqui, Freyre menciona uma conferência dada por ele na Universidade de Princeton no ano de 1961, na qual aborda temas relacionados com a questão do tembo tríbio, da hispanidade e da pós-modernidade. O que faz pensar, portanto, que já no início da década todos esses temas ocupavam uma preocupação conjunta, com sentido de unidade, para ele. 28
Trata-se da UFMG, fundada em 1927 sob o nome Universidade de Minas Gerais e cujo nome foi alterado para Universidade Federal de Minas Gerais em 1965. Fonte: https://www.ufmg.br/conheca/hi_index.shtml
55
“Se somos, na realidade, parte de um complexo ou de uma constelação cultural que se projeta em várias partes do mundo hoje (...) essa nossa situação abre à política exterior do Brasil perspectivas que, sem nos afastarem de nossos deveres já tradicionais de solidariedade com os Estados americanos, levam-nos a considerar sob um critério, também de particular solidariedade, nossas relações com outros povos, afins do nosso por um conjunto especial de formas de cultura adaptadas a condições de espaço – o espaço tropical – semelhantes às brasileiras. Esses povos são principalmente os hispanos, em geral, situados nos trópicos, e particularmente, dentro dessa constelação ao mesmo tempo ecológica e cultural, os povos de cultura predominante lusitana, estabelecidos no mesmo tipo de espaço e aí integrados como que simbioticamente com outros povos” (Freyre, 1960, p.37,38).
Para o Brasil, seria importante a aproximação de nações hispano e luso-tropicais
a fim de formar um conjunto transnacional mais amplo, pois permitiria o exercício de
uma liderança que nos seria natural em razão da “experiência brasileira de vanguarda
no sentido do desenvolvimento integral de uma civilização a um tempo moderna e
ecológica nos trópicos”. (Freyre, 1960, p.40). Para Gilberto, o Brasil era nação pioneira
na criação de uma moderna civilização tropical. Diferentemente daquilo que o europeu
cristão criou em áreas temperadas da América, ou mesmo em áreas tropicais como a
australiana – e aqui Freyre está se referindo indiretamente à colonização inglesa –, nas
quais não houve uma simbiose natural com meio, mas apenas transposição de uma
população europeia pela nativa, o luso-brasileiro teria realizado verdadeira ligação
associativa com os povos autóctones tropicais, o que significou não a substituição de
uma cultura por outra, mas amálgama cultural (Ibid, p.40,41).
Os argumentos expostos na conferência de 1959 não eram, no entanto,
completamente novos. A atenção de Freyre já se voltara para a América hispânica, pelo
menos, desde os anos quarenta, quando empreendera viagem por Argentina, Uruguai e
Paraguai. Seu giro platino rendeu interessantes textos escritos em Montevidéu, Buenos
Aires e Assunção publicados no jornal argentino La Nación e em jornais brasileiros
(Baggio, 2010, p.27). Nesses escritos, já aparece a ideia de que “a América Ibérica –
que ele designa no texto como ‘os povos americanos de formação indo-hispânica’ –
deveria unir forças para resistir o avanço do ‘industrialismo carbonífero e petrolífero,
ansioso de mercados passivamente coloniais’, que tenderia a uma ‘rígida uniformidade
cultural de continentes inteiros sob o domínio da política ou da economia do povo
triunfador’” (Freyre, 2003 apud Baggio, 2010, p.27).
É possível perceber já nesse momento uma preocupação de Freyre com um
modelo de modernização anglo-saxã, uniformizadora e padronizadora. Tal modelo seria
o sucessor natural do paradigma de colonialismo inglês, que, como apontei há pouco,
Gilberto contrastava com a colonização ibérica. Enquanto o português – ou, já neste
56
momento, poder-se-ia dizer o hispânico – promoveu o hibridismo, amálgama de
culturas, o inglês – ou anglo-saxão – favoreceu a substituição do povo autóctone,
vencido, por outro, o branco, cristão protestante, vencedor. Parece ficar claro já neste
momento que as linhas demarcadoras de uma divisão de processos históricos que
culminaram na formação de modelos opostos de civilização, o ibérico e o anglo-saxão,
passavam a incluir, para Freyre, não apenas o Brasil, mas toda a América hispânica29.
Para Katia Gerab Baggio (2010, p.30), nos textos desse período “há uma clara
disposição de Freyre em defender, idilicamente, a América Ibérica e mestiça diante de
um mundo de intolerância e guerra”. Trata-se do início dos anos quarenta, momento em
que a Segunda Guerra Mundial está em seu ápice. Ademais, ainda segundo a autora,
existe uma correlação entre o elogio tanto de Assunção quanto das províncias
argentinas – estas enquanto lugares de defesa das tradições em face da modernização
avassaladora de uma cidade como Buenos Aires – com “a nostalgia da cidade patriarcal
nordestina”. (Ibid, p.31). O Paraguai, ou, mais particularmente, a cidade aristocrática de
Assunção – ao contrário de uma metrópole cosmopolita, mas descaracterizada, como
São Paulo – teria preservado os valores profundos da América Ibérica: a tropicalidade, a
mestiçagem – indo-hispanidade, no caso específico paraguaio – e a cultura popular.
Se voltarmos ao início da década de sessenta e pensarmos na conjuntura
internacional que se configurava, com o acirramento das tensões da guerra fria a partir
da revolução cubana de 1959, que culminaria em dois episódios marcantes que refletem
bem a tensão vivida nesse período, o desembarque da baía dos porcos e a crise dos
mísseis, nos anos de 1961 e 1962, respectivamente, a posição de Freyre não deixa de
ser significativa. As margens de manobra na política internacional encontravam-se
29
O mesmo argumento acerca da diferença entre as colonizações ibérica e anglo-saxã pode ser encontrado no livro Novo mundo nos trópicos (1971), em que Freyre afirma: “...a verdade é que nem essas origens nitidamente portuguesas ou hispânicas, nem as suas raízes católico-latinas, fazem do Brasil simples e pura extensão da Europa como a Nova Inglaterra, da velha Inglaterra, e ainda, como a Nova Inglaterra, do cristianismo evangélico ou protestante”. É importante ressaltar que, apesar de publicado apenas em 1971, Novo mundo nos trópicos fora originalmente escrito e publicado em 1945, em inglês, sob o título Brazil, an Interpretation, a partir de seis conferências proferidas pelo autor pernambucano na Universidade de Indiana em 1944 (Pattern Lectures). Posteriormente, o ensaio original em inglês foi ampliado e publicado em 1959 sob o título New world in the tropics. Segundo Peter Burke, em prefácio intitulado Brasil para estrangeiros que abre a 3ª edição do livro publicado no Brasil, o texto das conferências tinha como objetivo apresentar o Brasil para um público acadêmico estadunidense. Não deixa de ser significativo, portanto, que o excerto acima seja exatamente o trecho de abertura do primeiro capítulo da obra. Freyre inicia sua apresentação do Brasil para seus ouvintes e leitores norte-americanos enfatizando a diferença entre os processos de colonização que constituíram ambos os países. Ademais, como afirma Elide Bastos (2005, p.99), em Brazil, an interpretation, o texto original, já aparece mais claramente a influência dos autores espanhois em Freyre. No excerto que citei, as origens brasileiras já mostram-se como “portuguesas ou hispânicas”. Ressalte-se, nesse sentido, que as conferências foram proferidas pouco tempo depois do giro platino de Freyre.
57
bastante restringidas, não havendo grandes possibilidades alternativas senão a adesão
automática aos blocos estadunidense e soviético. A posição de Freyre, podendo ser
vista como de tentativa de independência internacional frente às duas superpotências,
buscava encontrar um espaço próprio e altivo para o Brasil, no qual o país pudesse
exercer a liderança que lhe caberia.
Obviamente, não se trata de afirmar que a motivação da inclusão do Brasil em um
universo hispano mais amplo teve apenas motivações geopolíticas. Entendo que, sim,
foi um fator, como a própria conferência transformada em livro demonstra, mas o tema
ganha relevância para Freyre por uma série de outros fatores, dentre os quais
destacaria a aproximação cada vez maior do autor pernambucano com o universo do
pensamento hispânico e o progressivo reconhecimento da influência desse pensamento
em sua obra. Avançarei nessa ideia mais a frente. Quanto ao aspecto geopolítico,
retomo aqui argumento já utilizado no primeiro capítulo que expunha o debate entre
Sérgio Tavolaro (2013) e Jessé Souza (2000) acerca desse tema. Segundo Souza
(2000, p.71), a questão da tropicalidade ganha relevo nas obras de maturidade de
Freyre em razão de motivos geopolíticos. Para ele, “se nos escritos da juventude os
outros elementos estão subordinados à dimensão cultural, (...) nas obras da maturidade
a dimensão mesológica assume o lugar de maior preeminência como o nome da nova
ciência já sugere” (Ibid, p.71). A nova ciência a que Souza se refere é a tropicologia.
Ao trazer à discussão a questão da mesologia, Souza enfatiza a dimensão
geopolítica em razão da preocupação de Freyre (1969, apud Souza, 2000, p.71) com
“imperialismos de potências não tropicais com relação a espaços, recursos, população e
culturas tropicais”. De fato, se pensarmos no teor do livro Uma política transnacional de
cultura para o Brasil hoje, pode-se extrair do texto essa preocupação por parte de
Gilberto. A preocupação já aparece, inclusive, nos escritos dos anos quarenta. A ênfase
no hispano tropical como parte de um conjunto transnacional de cultural do qual também
fariam parte os luso-brasileiros e outros luso-tropicais poderia, portanto, ser entendido,
como sugeri antes, como um escape do campo de forças ideológico da conjuntura
político-internacional da época.
No entanto, ao invés de pensar esse percurso do pensamento de Freyre nos
termos que propõe Souza, ou seja, como uma progressiva perda de influência dos
argumentos culturalistas em relação a outros de cunho mesológico, parece-me mais
produtivo enquadrá-lo a partir do que propõe Sérgio Tavolaro (2013). Para este
58
sociólogo, a ênfase no “ambiente físico tropical” poderia ser pensada como “uma
consciente tentativa de relativizar o protagonismo (epistemológico, normativo e estético-
expressivo) exclusivo reivindicado por sociedades tradicionalmente tidas como
modelares da modernidade”. Nesse sentido, o trópico teria sido desde o início da obra
de Gilberto “uma peça-chave” no ambicioso projeto intelectual de Freyre, “graças a
predicados tomados por singulares, catalisadores de uma experiência social tida por
inovadora e irreprodutível pelas sociedades europeias hegemônicas” (Tavolaro, 2013,
p.282).
A essa proposição de Tavolaro, da existência de um projeto de relativizar o
protagonismo da modernidade anglo-saxã, penso que acrescentar a ideia de
hispanidade seja fundamental. A tropicalidade assume uma configuração muito
particular no pensamento de Freyre essencialmente em razão de o Brasil ter sido
colonizado pelo ibérico. O norte-europeu ou o anglo-saxão careciam das capacidades
adaptativas necessárias para estabelecer-se no trópico. Por essa razão, portanto, seu
esforço colonizador acabou por concentrar-se apenas nas zonas temperadas da
América. Somente a energia empreendedora do ibérico – nutrida pela própria condição
mesológica da península: o clima atlântico e a condição de passagem entre Europa e
África; pelo contato do hispano com o elemento semita: judeu e muçulmano; e pela
experiência colonial africana já adquirida no século XIV – poderia executar a difícil tarefa
de colonizar o trópico americano.
Por tudo isso, o ibérico realizou verdadeira fusão com o meio tropical, amálgama
natural cujo equivalente cultural é a mestiçagem das raças. O filólogo e historiador
Américo Castro (2004, p.23) ressalta essa qualidade entre os hispânicos de íntima
relação com o meio. “Para el español, el hombre y su entorno forman una unidad vital”.
Assim, o elemento tropical e o hispano se fundem no processo de formação brasileiro. A
inclusão da hispanidade no argumento de Tavolaro, que toma o aspecto mesológico, ou
seja, a tropicalidade, como uma linha de pensamento fundamental, seria, portanto, algo
natural. Como observou Edson Nery da Fonseca, importante estudioso da obra de
Gilberto Freyre, “o luso-tropicalismo gerou a luso-tropicologia, a luso-tropicologia gerou
a hispano-tropicologia e a hispano-tropicologia gerou a tropicologia”. Nesse sentido,
haveria uma progressão lógica no pensamento de Freyre que convergiria em direção à
tropicologia em cujo percurso está integrada a ideia de hispanidade. O hispano e o
trópico são, portanto, aspectos fundamentais no empreendimento intelectual de Freyre
59
de dar contornos claros a uma ampla civilização ibérica nas Américas, e não apenas
mais luso-brasileira, como esboçado em Casa-Grande e Senzala.
Dessa maneira, a hispanidade não desempenharia a função de apenas criar um
espaço geopolítico de afirmação de culturas ibéricas tropicais. Para além disso, ela
permitia pensar que nações como Brasil e Argentina compartilhavam não apenas uma
origem como também um futuro comum, como diz a citação de Freyre com que iniciei
esta seção do trabalho. Ensejava, portanto, contornos em que estariam incluídos, por
exemplo, os indo-hispânicos paraguaios que Freyre elogiara décadas antes. A
integração do luso-brasileiro a um mundo hispânico mais amplo oferecia possibilidades
para um contraste ainda mais agudo com o mundo anglo-saxão e norte-europeu.
O que gostaria de fazer na continuidade deste capítulo é, a partir daquilo que
brevemente expus, mostrar qual hispanidade é reivindicada por Freyre e que feições ela
irá assumir em sua obra. Entendo ser essa abordagem extremamente proveitosa para
aproximar-se da futurologia de Além do apenas moderno, que, como a entendo, está
impregnada de hispanidade30. No texto com que abri esta seção do capítulo, Freyre
afirmava duas coisas importantes. Em primeiro lugar, que Brasil e Portugal faziam parte
de um mundo maior hispânico. Em segundo lugar, que hispanidade não significava
necessariamente espanholidade. O texto, como afirmei, é de 1965 e pode-se perceber a
variação da abordagem ao tema que Gilberto dera nos anos quarenta, após sua viagem
platina, e no início dos anos sessenta, na conferência em Minas Gerais. A concepção de
hispanidade parece tomar densidade ao longo dos anos.
Penso que Katia Gerab Baggio (2010, p.32) perceba bem essa variação do
pensamento freyriano quando aponta que no livro Como e por que sou e não sou
sociólogo, de 1968, “Freyre define-se como um escritor pertencente à tradição ibérica,
mais espanhola que portuguesa”. Há, nesse sentido, uma notável mudança na
concepção de iberismo de Casa-Grande e Senzala que, basicamente, reportava-se
apenas ao mundo português31. Em passagem do livro Tempo morto e outros tempos,
30
Para Freyre (1975, p.151), falar em “civilização hispânica” era referir-se não apenas aos valores de um passado de glória, senão também às possibilidades de um “futuro de aventura hispânica”. Os hispânicos seriam naturalmente uma civilização voltada para o futuro em razão de sua inventividade e capacidade de adaptar-se ao futuro sem perder as referências do seu passado. Essa era, essencialmente, a principal característica da futurologia. 31
Na nota 13 do primeiro capítulo de Casa-Grande e Senzala, Gilberto Freyre afirma que o espanhol é mais “europeu” que o português e que as características de excepcionalidade ibérica a que ele se referia no livro reportavam-se especificamente a Portugal. Diz assim Freyre: “13. Desconhecemos em que elementos se apoia Waldo Frank para escrever: “El portugués es más europeo que el español: posee um linaje semítico más débil, un linaje gótico más fuerte” (“La selva”, em Sur, Buenos Aires, nº 1931).
60
Gilberto diz que “os grandes valores hispânicos são evidentemente os espanhois”.
Prossegue o argumento dizendo que a brasileiros e portugueses não basta sua tradição
em língua portuguesa para dar a grandeza que sua cultura poderia ter se acrescida dos
valores universais hispânicos (Freyre, 1975 apud Bastos, 2003, p.11).
Entendo que, em boa medida, essa transição das teses ibéricas freyrianas, de
uma essência mais portuguesa para outra mais espanhola, deva-se a uma progressiva
aproximação do pensamento hispânico de que Gilberto se torna cada vez maior
admirador e do qual passa a se sentir parte. Os “grandes valores hispânicos” citados por
Freyre são, nesse sentido, uma mescla das tradições populares, do sentido de tempo,
da produção artística e literária, dos grandes escritores e pensadores. É a Espanha de
Ramón Lulio, de Miguel de Cervantes, de Francisco de Goya, de Diego Velázquez, de
Baltasar Gracián, de Luis Vives, de Frei Luis de Leon, de San Juan de la Cruz, enfim, de
tantos e tantos nomes que fizeram a grandeza intelectual espanhola (Freyre, 1975 apud
Bastos, 2003, p.11).
Em uma passagem do livro O brasileiro entre os outros hispanos, Freyre afirma
que Fernand Braudel o teria incluído na linhagem de ensaístas hispânicos da qual
fariam parte Unamuno, Ganivet e Ortega y Gasset (Freyre, 1975, p.71). Penso que essa
referência seja emblemática de como, a esse ponto em sua carreira intelectual, Freyre
gostaria de ser visto. Há um momento importante no início do livro Social theory in the
tropics em que Peter Burke e Maria Lucia Pallares-Burke (2008, p.19) descrevem como
no processo de estabilização da imagem que, em geral, se tem a respeito de Freyre
existe uma boa dose de auto-invenção do próprio autor. Seria, portanto, um equívoco
tomar literalmente auto-representações como essa de Gilberto e simplesmente
considerá-las verdadeiras. Nesse sentido, importa menos, portanto, saber se Fernand
Braudel teria dito ou não o que Freyre afirma ter o historiador francês dito do que aquilo
que o autor pernambucano pretendia ao mencionar a afirmação de Braudel32.
Ainda segundo Burke e Pallares-Burke, à medida que se tornava mais velho,
Freyre falava cada vez mais a respeito de si mesmo. Como e por que sou e não sou
Pensamos exatamente o contrário: que o português sendo mais cosmopolita que o espanhol, é entretanto dos dois talvez o menos gótico e o mais semita, o menos europeu e o mais africano: em todo caso o menos definidamente uma coisa ou outra. O mais vago e impreciso, como expressão de caráter continental europeu. O mais extra-europeu. O mais atlântico”. 32
Bastos (2005, p.59) faz referência a essa mesma afirmação de Braudel sobre Freyre. Cito-a textualmente: “Ao discutir seu perfil como escritor, concordando com Fernand Braudel, [Freyre] se define como pertencente à tradição ibérica, mais espanhola do que portuguesa”.
61
sociólogo e Tempo morto e outros tempos poderiam ser enquadrados nessa tendência
(Ibid, p.19). Em Além do apenas moderno e em O brasileiro entre os outros hispanos,
Freyre também reiteradamente refere-se a si mesmo, às suas obras, a recepção destas
em círculos acadêmicos estrangeiros e àquilo que outros importantes autores teriam dito
a respeito dele. A citação acerca de Braudel que mencionei enquadrar-se-ia dentro
dessa tendência. Freyre via-se como um escritor da tradição hispânica e mobilizava sua
retórica para confirmá-lo. Como dizem a historiadora brasileira e o historiador britânico,
“a invenção de Freyre incluía sua auto invenção”33. (Ibid, p.19).
Mas o que significava exatamente reivindicar-se como um autor da tradição
hispânica? É o que tentarei demonstrar nas duas próximas seções deste capítulo. Um
dos aspectos mais importantes da revolução biossocial que transformava o mundo
apenas moderno em pós-moderno era, como mostrei no primeiro capítulo, a
revalorização dos saberes humanísticos. Nesse sentido, para Freyre, o futuro
caminhava no sentido de um apagamento daquelas fronteiras estáticas que se criaram
entre ciências e humanidades as quais, desde o triunfo do positivismo, haviam separado
as duas culturas, a humanística e a científica, tornando-as ignorantes uma em relação à
outra (Freyre, 2001, p.118). O ressurgimento dos saberes hispânicos seria fundamental
nesse processo.
“Pois uma das superações atuais, em considerável ala de Estudos do Homem, é a do cientificismo puro pelo humanismo científico. Essa superação permite que se apliquem abordagens imaginativas à realidade humana, tanto no trato do tempo passado como no do tempo futuro, deixando-se de enxergar em quanto seja abordagem desse tipo literatice ou fantasia ou, no mau sentido da expressão, poesia. Daí a valorização que desde Dilthey vem prestigiando Vives; que prestigia os estudos de um Ganivet, de um Unamuno, de um Ortega y Gasset; e que dão valor sociológico aos ensaios de um Laín Entralgo sobre as atitudes tão hispânicas – inclusive tão brasileiras – de espera e esperança” (Freyre, 2001, p.36).
Freyre considerava que a tradição hispânica, representada nesse excerto pelos
nomes de Unamuno, Ortega y Gasset e Ganivet, incorporava o humanismo científico a
que ele se refere. A abordagem desses autores era imaginativa, poética e, pode-se até
mesmo dizer, literária. A sociologia que o autor pernambucano propunha estaria
formada desses elementos também. Nesse sentido, importa saber por que a ciência
entre os hispanos possuía essa conformação específica. Que elementos da civilização
hispânica a tornavam tão distinta a ponto de Freyre reivindicá-la em sua formulação da
ideia de pós-moderno? É o que tentarei mostrar a seguir.
33
“The invention of Freyre included his self-invention” [tradução do autor].
62
2.2 O sentido da hispanidade: a civilização hispânica
Nesta seção do capítulo, buscarei mostrar o sentido da ideia de hispanidade em
Gilberto Freyre e a que ele está a se referir quando a mobiliza. Utilizarei, para isso,
algumas ideias do filólogo e historiador espanhol Américo Castro, várias vezes
mencionado por Gilberto em Além do apenas moderno. Talvez o elemento mais
importante dessa aproximação entre Freyre e Castro esteja na concepção de tempo
tríbio – tempo hispânico em sua essência –, conceito mobilizado pelos dois autores. A
forma de o hispânico viver e experimentar o tempo lhe dá características específicas e
diferencia-o do homem moderno, impõe que sua percepção frente à vida seja de outra
natureza. A racionalidade estritamente moderna, que brota do ímpeto em controlar e
planificar o futuro, não pode encontrar solo fértil na alma do homem ibérico, saudoso de
passados e em quem a “espera tende a tornar-se esperança”, como diz Freyre (2001,
p.28).
Penso ter José Guilherme Merquior apreendido de maneira precisa o sentido
desse enquadramento do tempo em Freyre. Diz ele, “Mestre Gilberto quer reviver,
contra a obsessão cronométrica do homem moderno, o sentido ibérico de tempo –
tempo vivencial, existencialíssimo, subjetivo-objetivo; pluritempo-duração (“tempo tríbio”,
diz Gilberto, em que passado, presente e futuro se interpenetram). Tempo hispânico
teorizado por Américo Castro e pelo próprio Gilberto (On the Iberian concept of time), e
visceralmente contrário ao objetivismo cronométrico imposto pela elevação da ascese
intramundana (Max Weber), metódica e fanaticamente laboriosa, a conduta arquetípica
do homem ocidental, na Idade Moderna. Tempovida, em face do estreito utilitarismo do
time is Money”. (Merquior, 2001, p.13)
A reivindicação desse tempo hispânico anti-moderno, tanto por Freyre quanto por
Américo Castro, é fundamental para a definição de fronteiras claras de civilizações
distintas – uma hispânica e outra norte-europeia e anglo-saxã – que, por sua vez,
remetem a processos históricos específicos que não podem ser obliterados em favor de
uma perspectiva linear de tempo34. Nesse sentido, destaca-se para ambos a
singularidade hispânica, cujo impulso vital, distinto daquele das culturas consideradas
essencialmente modernas, não pode ser reduzido apenas a uma reminiscência pré-
moderna, senão que constitui uma forma própria de ser e estar no mundo que não deve
34
Logo no início do primeiro capítulo deste trabalho, referi-me à ideia de Merquior que, ao sintetizar o espírito pós-moderno contido em Além do apenas moderno, dizia que a pós-modernidade, para Freyre, caracteriza-se como momento em que já não mais se esposa a “mitologia profana do progresso linear”.
63
ser desprezada. Para Gilberto, essa forma hispânica de estar no mundo é, pelo
contrário, atualíssima, tendo sido exaltada por ele, em Além do apenas moderno, como
um dos traços mais emblemáticos da pós-modernização. O pós-moderno como
recuperação de aspectos do pré-moderno.
Américo Castro, por outro lado, irá enfatizar a vitalidade da civilização hispânica
mesmo frente a momentos obscuros como aquele vivido pelo Ocidente na primeira
metade do século XX, em que as duas grandes guerras colocaram em xeque os valores
sobre os quais a Europa vinha depositando suas esperanças, pelo menos, desde os
dois séculos anteriores. Em seu discurso de investidura como professor de espanhol da
cátedra Emory L. Ford da Universidade de Princeton, cujo título, bastante simbólico, foi
El significado de la civilización hispánica, proferido em 11 de dezembro de 1940, ou
seja, ainda durante o calor dos eventos da Segunda Guerra Mundial, Castro defende o
vigor da cultura hispânica em face de uma cultura ocidental que parecia desmoronar.
“En diversas áreas importantes del pensamiento y de la ética, ciertas ideas sobre la cultura y la vida, incontestadas hasta hace treinta años, han entrado ahora en crisis. Siempre que esto ha ocurrido en la cultura occidental, la civilización hispánica ha mostrado que sus reservas permanecen intactas, que no han sido afectadas seriamente por las oscilaciones entre el progresso y el dolor y la miséria humanas. En estos tiempos sombríos empezamos a ver que cara a cara con armas tangibles y aparentemente irresistibles, las armas del espíritu pueden ser, con su carácter imponderable, tan eficaces o más que las primeras. El armamento y las líneas de defensa son de poca utilidade para aquellos que carecen de uma defensa interior. Sacar a la luz al hombre esencial, completamente y en marcado relieve, era y es la principal preocupación de la civilización hispânica”. (CASTRO, 2004, p.13,14)
Ora, o que está em ênfase aqui é uma qualidade perene da alma hispânica cuja
essência estaria mais bem dotada de armas do espírito do que propriamente da razão.
Estas estão mais suscetíveis às alterações do progresso e da dor, mais efêmeras,
portanto, uma vez que marcadas essencialmente pela necessidade de seus resultados
práticos, objetivos, ou seja, de sua exterioridade. Por outro lado, aquelas, as armas do
espírito, seriam mais duráveis e resistentes, pois não sucumbem frente às adversidades
da vida prática, pelo contrário, fortalecem-se, transformam as penúrias da vida objetiva
em poesia. São, portanto, dependentes apenas da interioridade.
Quero destacar e enfatizar essas ideias de Américo Castro, pois elas nos ajudam
a entender o significado profundo da hispanidade reivindicada por Freyre. Entendo que
no discurso proferido pelo filólogo espanhol, El significado de la civilización hispánica, do
qual retirei o excerto acima, há uma série de elementos que dão os contornos daquilo a
que o autor pernambucano refere-se quando faz alusão a um mundo hispânico. Com a
diferença, é claro, de que Gilberto inclui Brasil e Portugal nesse mundo e, por essa
64
razão, hispanidade não significa apenas espanholidade. Ademais, como exaustivamente
tenta demonstrar em O brasileiro entre os outros hispanos, e mesmo muitas vezes em
Além do apenas moderno, nós brasileiros somos hispanos diferentes, pois à nossa
hispanidade agrega-se a mestiçagem do elemento indígena e negro com o europeu e a
tropicalidade, o que nos torna hispanos singulares.
Destaco, nesse sentido, uma citação de Além do apenas moderno em que todos
esses elementos aparecem de forma bastante evidente. Diz Gilberto:
“Somos, os brasileiros, uma gente hispânica sendo também uma gente situada no trópico e localizada na América: duas outras dimensões de espaço-tempo que nos condicionam, além da cultura, o ethos; e que se juntam – inclusive com suas contradições – para dar às preocupações brasileiras com futuros possíveis que se exprimam através de estudos sociológicos desses futuros uma riqueza incomum. Entre os nossos futuros possíveis estão futuros que se ligam principalmente à nossa condição de hispanos, outros principalmente à nossa condição de tropicais, ainda outros, à nossa condição de gente, em grande parte, mestiça, situada no trópico. Somos uma gente situada no espaço e no tempo de três – pelo menos – diferentes maneiras, com preocupações por futuros possíveis em que se refletem predominâncias de apego ora a uma, ora a outra, dessas situações. Pois o nosso tempo é principalmente um tempo tríbio” (Freyre, 2001, p.37).
Há claramente, portanto, para Gilberto, um elemento hispânico que, juntamente
com a mestiçagem e a tropicalidade, caracterizar-nos-ia. Entender em que consiste essa
hispanidade parece-me fundamental, pois ela nos permite pensar de forma mais
abrangente a proposta de Tavaloro que já mencionei, de que a obra de Freyre seja um
intento de desestabilizar a centralidade da experiência moderna dos países centrais,
essencialmente a anglo-saxã. Ademais, dentro desse intento freyriano, deve-se destacar
a forma característica da civilização hispânica de produzir conhecimento, forma essa
mais plástica e humanística em comparação a outra de tipo cientificista e objetivista,
mais própria do racionalismo norte-europeu e anglo-saxão. A influência dos autores
espanhois será, nesse sentido, decisiva para Gilberto aguçar a percepção dessa
diferença. Esse é um elemento fundamental da reivindicação hispânica de Freyre que
retomarei mais a frente, mais especificamente na próxima seção deste capítulo.
E quais seriam as características mais profundas da hispanidade que Freyre
pretende ressaltar para além daquilo que o próprio conceito de tempo tríbio nos permite
deduzir? Entendo que algumas ideias de Américo Castro auxiliam-nos na resposta a
essa pergunta. Irei percorrê-las pelas próximas páginas. Para esse autor, “a alma
humana se expressa por meio das diferentes culturas” (Castro, 2004, p.24). Cada uma
delas, uma vez confrontadas com os problemas da existência, sejam morais ou naturais,
sejam de consciência ou relativos à vivência mais prática, oferecem diferentes tipos de
65
soluções que, em última instância, correspondem a atitudes em relação à própria vida.
Nesse sentido, a cultura alemã, por exemplo, poderia ser sintetizada a partir do conceito
de wissenchaft, pois sua existência tem aspirado a enfrentar os problemas da realidade
por meio de respostas metafísicas e científicas. O alemão seria, assim, um espectador,
uma espécie de consciência fora da vida a produzir soluções objetivas e sistemáticas
para seus próprios dilemas. A cultura francesa, por outro lado, representar-se-ia pelo
ideal de clarté. O francês teria dedicado o melhor de seus esforços a fim de “forjar o
instrumento expressivo da língua francesa, através do qual poderia clarificar toda a
confusão da vida humana” (Ibid, p.24). Para Castro, a civilização francesa, pelo menos
desde o século XVII, tem utilizado o pensamento para disciplinar a vida.
E o espanhol? Qual a fórmula, o vocábulo, a expressão que – como wissenchaft
para os alemães e clarté para os franceses – definiria a essência da civilização
espanhola? Para Américo Castro, tal fórmula não existe. E que não haja um vocábulo
que sintetize a postura do espanhol em relação à existência denota o significado mesmo
de sua civilização. Assim, “para el español, vivir es siempre un problema abierto y no
una solución que pueda confinarse en una consigna” (Ibid, p.24). Se fosse possível,
portanto, escutar a voz do milenário gênio espanhol, afirma Américo Castro (Ibid, p.15),
escutá-lo-íamos dizer algo como “Buscad al hombre detrás de la consigna”.
Eis a essência da alma hispânica desnuda, desvelada em sua natureza aberta,
volátil e oscilante. Que tragédia seria para o espanhol ter seu ímpeto em relação à vida
refreado por qualquer tentativa de sistematização, regulação ou metodização da
existência. Por essa razão, segundo Castro (Ibid, p.17), “en España la ciencia, la filosfía
abstracta y la técnica son raras mientras que el sentido moral está siempre presente.
Para su felicidade y desgracia, el hombre hispánico siempre ha confiado en su ego
integral, con lo que hay allí de seguridad y, también, de oscilaciones”.
Para Castro (Ibid, p.16), portanto, o ego espanhol não é o de Descartes, do
cogito, ergo sum. Na Espanha, “a claridade deslumbrante da razão” não teria
encontrado o mesmo espaço que obteve nas sociedades europeias mais racionalistas,
nas quais toda a esfera do “extra-racional” foi deixado às sombras, como aquela parte
do mundo que não era clara, distinguível ou objetivamente compreensível. Assim, o ego
hispânico permanece sendo o ego de Calderón de la Barca, de Miguel de Cervantes, de
Lope de Vega, de Francisco de Quevedo. Um ego que se interessou pela filosofia
apenas quando esta escapou às amarras do racionalismo puro (Ibid, p.17). E a razão
66
disso é simplesmente porque “el español no puede aislarse en la abstracción”. “En el
reino de los conceptos”, diz Américo Castro, “el español se siente más aislado que
Robinson Crusoé en su isla”.
Assim, portanto, se o padrão de medida de uma civilização for a atitude
racionalista do século XVIII e o consequente desenvolvimento, que com ela adveio, das
técnicas científicas que orientaram a busca de um mundo ordenado, então não se
encontrará muito valor nas conquistas e feitos da civilização hispânica, pois esta nunca
esteve muito interessada nesses fins racionais de ordenamento do mundo e, por essa
razão, o que há realizado está baseado em outros propósitos e outras preferências.
Seria natural, portanto, diz Castro (Ibid, p.12), que nas sociedades racionalistas que
emergiram na Europa moderna, “de estructura rígida, en las que todo individuo
considera resueltos los problemas primordiales relativos a la intimidad última de la
conciencia, la forma de vida hispánica produzca impressiones desconcertantes, a veces
irritantes e impertinentes”. A alma espanhola, tão adversa às necessidades da vida
prática, emprega o melhor de si naquilo que o racionalista acredita já ter solucionado: os
dilemas de sua “humanidade primária”.
Obviamente, essa postura em relação à vida implicou em muitos problemas para
o hispano. A vida material, por exemplo, tem sido um contínuo penar para ele. Segundo
Castro (Ibid, p.13), “incluso en los momentos de mayor esplendor político y militar,
cuando florecían prodigiosas formas de civilización, la vida cotidiana fue difícil y
problemática para los españoles”. Mesmo durante o apogeu de seu domínio imperial, o
estado espanhol caiu várias vezes em bancarrota. O imperador Carlos V, no século XVI,
teve de adiar o funeral de sua mãe, Joana “a louca”, por falta de recursos. Felipe IV,
“monarca de dois mundos”, rei espanhol do século XVII retratado por Velázquez em
“Las meninas”, teve dificuldades financeiras em certo momento até mesmo para
preparar as refeições diárias em seu palácio real. Assim, diz Américo Castro, é preciso
encontrar o valor e o significado da civilização hispânica mais além de seus logros
materiais.
Esse significado profundo da civilização hispânica estaria, pois, na vitalidade de
seu humanismo. Como diz a longa passagem de Américo Castro que citei no começo
desta seção do trabalho, num momento em que a Europa moderna encontrava-se
exaurida e esgotada face uma guerra cujas consequências não se poderiam, ainda na
época, prever, os valores hispânicos – essencialmente, sua reserva humanística –
67
emergiam intactos, não tendo sido afetados pelas oscilações entre o progresso e a dor e
miséria humanas. O pensamento racional moderno estabelecera uma linha histórica na
qual haveria um desenvolvimento natural que conduziria os homens de um estado de
dor e miséria em direção o progresso. A convulsão causada pelas duas guerras na
primeira metade do século XX havia desestabilizado essa certeza. O que Castro está a
dizer é que a alma hispânica sempre soubera que miséria e dor, de um lado, e
progresso, de outro, não são elementos de uma história linear, senão antes de um
processo histórico circular. Por essa razão, suas reservas morais podiam emergir
intactas em meio ao caos do conflito mundial e a desestabilização das certezas da
teleologia da história35.
Assim, pois, diz Castro (2004, p.22), “fuerte o débil, rica o en la pobreza, España
es siempre la misma”. Nesse sentido, o pensamento de Miguel de Unamuno poderia ser
considerado o símbolo por excelência do élan espanhol cujo fim principal, “ha sido
siempre el hombre, como realidad desnuda y absoluta, y de forma muy secundaria, los
productos con los que el hombre intenta substituir la conciencia de su existência” (Ibid,
p.20). Com isso em mente, o mesmo Américo Castro (ibid, p.16) chama Unamuno de
“compendio y símbolo de la naturaleza española” e “el español por antonomasia”. Mas
em que sentido seria o filósofo e professor da Universidade de Salamanca uma
expressão dos valores espanhois mais profundos? Explica-o bem o professor António
Lopez Molina (2006, p.23) ao dizer que para Unamuno “la verdadera filosofía es
necesario buscarla en lo más profundo del espíritu humano, como un modo de
comprender el mundo y la vida, y cuyo origen tiene que estar en un sentimiento respecto
a la vida misma, al que Unamuno denomina ‘sentimiento trágico de la vida’ (...)
Unamuno aboga por una definición de hombre como animal sentimental, en vez de
animal racional”.
A filosofia de Unamuno é, portanto, um constante embate entre razão e emoção.
Nesse sentido, seu pensamento não pode ser descolado de sua própria trajetória de
vida, marcada profundamente por sua formação inicial católico-cristã, sua perda da fé e
posterior reencontro com a crença a partir de, por um lado, uma matriz protestante de
pensamento fundada em Lutero e Kierkegaard e, por outro, uma ênfase no
espiritualismo de Santo Agostinho e dos místicos espanhóis, como San Juan de la Cruz
35
Perceba-se que essa perspectiva da História antes como evento circular do que linear se encontra na essência da futurologia freyriana. Para Gilberto, como tentei mostrar no primeiro capítulo, o futuro não pode ser mera utopia, pois não se pode esperar que o tempo porvir venha a solucionar todas as mazelas do presente e do passado.
68
e Santa Teresa de Jesús, em detrimento da teologia escolástica (Molina, 2009).
Unamuno é, assim, um artista cuja filosofia não pode ser separada da vida mesmo, de
sua trajetória, de suas emoções conflitivas, de seu eu marcado por aquilo que Américo
Castro assinalou ser tão típico do espanhol: os dilemas de sua humanidade primária.
Há, portanto, uma enorme diferença entre um filósofo espanhol e um filósofo
alemão. Se este, como afirmei anteriormente, é uma espécie de consciência fora da
vida, objetivo e sistemático, aquele, o hispânico, “forma parte como o grande ator no
espetáculo filosófico do qual também é o autor” (Castro, 2004, p.20). As nivolas36 de
Unamuno são um exemplo magistral dessa fusão entre autor e ator. Numa delas,
Niebla, Unamuno chega a ser personagem da história, que se desenrola num misto
turvo, como o próprio nome sugere, de realidade e ficção. As linhas entre objetividade e
subjetividade são, pois, muito menos nítidas no pensamento espanhol. Assim, é
possível dizer que “la vida, el pensamiento, la creacción artística, vienen a ser para el
español la puesta en enscena y la representación integral de su existencia misma” (Ibid,
p.20). Esses traços tão marcantes na filosofia de Unamuno podem ser também
encontrados mesmo na obra do filósofo espanhol moderno, rigoroso e racionalista por
excelência que foi Ortega y Gasset.
Costuma-se abordar Unamuno e Ortega y Gasset como os dois nomes do
pensamento espanhol contemporâneo para os quais todos os temas convergem .
Ao enfatizar-se a importância de ambos costuma-se também se acentuar suas
diferenças. Grosso modo, Ortega simbolizaria o ideal de uma Europa moderna e
racional. Sua postura não apenas filosófica, mas também de intelectual militante foi de
enfatizar a necessidade de Espanha modernizar-se. Unamuno, pelo contrário, estava
ligado aos ideais de uma Espanha mais antiga, arcaica poder-se-ia dizer. Em sua obra,
há um elogio das tradições populares espanholas mais profundas. Algo como o elogio
da rusticidade do português que há em Freyre. Se a obra de ambos esses grandes
espanhois pode ser pensada como uma resposta aos problemas mais profundos pelos
quais atravessava a Espanha da transição do século XIX para o XX, essencialmente
aqueles que remetiam ao subdesenvolvimento, o atraso em relação aos países
industrializados ocidentais e ao nacionalismo, os caminhos para os quais apontam
poderiam ser resumidos como, de um lado, amoldar-se ao moderno, e de outro,
sustentar suas tradições.
36
Nivola foi o neologismo criado por Unamuno para se referir às suas obras de ficção literária a fim de distanciar-se do termo novela em espanhol.
69
Fiz essa pequena digressão para acentuar o que afirmara antes que, mesmo em
Ortega y Gasset, um símbolo de filósofo moderno em solo espanhol, é possível
encontrar aqueles traços hispânicos profundos que, de certa maneira, borravam as
fronteiras entre o objetivo e subjetivo na produção do conhecimento. Para Américo
Castro, mesmo no Ortega de formação alemã37, os traços do autor artista seriam
evidentes. Nele, a filosofia ganhava em plasticidade por sua escrita de rara beleza que
carregava todo o anseio de seu eu empírico. Nesse sentido, a filosofia de Ortega não é
totalmente objetiva e imparcial. Ela seria como a obra-prima de Velázquez, Las
meninas, na qual o autor se insere na própria criação. Algo assim, para Américo Castro,
só pode ter lugar na Espanha.
Freyre, influenciado por Castro, não deixa de perceber e enfatizar essa
característica hispânica. Em Além do apenas moderno, ele destaca o elemento
autobiográfico presente no pensamento ibérico. Diz ele que
“em seu conjunto, os estudos realizados por espanhois e portugueses nesses três séculos [XVI, XVII e XVIII], formam uma sistemática de crítica e de interpretação da personalidade humana (...) na qual (...) o elemento autobiográfico se junta ao antropológico, não por excesso de vaidade ou de narcisismo por parte do analista, mas por ser essa fusão essencial à sua compreensão do processo não apenas analítico, porém criador de interpretação, pelo artista ou pelo místico ou pelo cientista do Homem o mais possível situado no seu ambiente tanto quanto no tempo. Um tempo inseparável do interpretado como vivido pelo mesmo intérprete. Daí Velásquez muito hispanicamente ter se incluído a si mesmo, ao seu cavalete, a sua palheta, a sua ação mesma de pintar um quadro particularíssimo, em Las meninas, projetando-se em pessoa sobre o tempo futuro
através de uma das suas criações” 38
.
Perceba-se que nesse excerto Freyre está enfatizando exatamente a mesma
qualidade do pensamento hispânico que Castro destacara. Posteriormente, no mesmo
trecho de Além do apenas moderno, Gilberto irá mencionar Américo Castro diretamente
a fim de ressaltar que essa intrusão do autor em sua obra no pensamento hispânico tem
relação direta com a influência muçulmana sufista de autobiografismo, que teria se
fixado na alma hispana em razão dos oito séculos de presença moura na península
37
A influência mais marcante do pensamento de Ortega y Gasset é, sem dúvida, a filosofia alemã. Foram em seus anos de estudo em Marburgo que ele “entrou em possessão de sua filosofia” (Villacañas, 2004, p.14,15). “Ortega reflexionou sobre a situação de Espanha, dialogou com seus melhores contemporâneos, esforçou-se com a filosofia europeia mais relevante, a que melhor conhece e crê apropriada para nós, a alemã” (Villacañas, 2004, p.18). Para Américo Castro (2004, p.18), “Ortega é a expressão rigorosa da filosofia existencial” na Espanha. “Iniciou sua carreira como neokantino, uma tendência que, como toda tendência puramente intelectualista, estava fadada a ser estéril em solo espanhol” e, posteriormente, “descobriria horizontes mais amplos na fenomenologia de Husserl”. Nesse sentido, apesar de enfatizar a sólida formação alemã de Ortega, Castro apontará para aqueles elementos mais plásticos de natureza hispânica que, mesmo no filósofo sistemático e racionalista, encontrarão algum espaço para se enraizar. 38
Em O brasileiro entre os outros hispanos, Freyre irá dedicar um capítulo todo para falar desse elemento autobiográfico no pensamento hispânico. Perceba-se, como argumentei antes, a semelhança entre esse livro e Além do apenas moderno, o que atesta ainda mais minha sugestão de que ambas as obras devam ser analisadas como um todo para se ter delas uma compreensão mais completa e profunda.
70
ibérica. Deve-se destacar que o filólogo e historiador espanhol é, reconhecidamente, um
dos mais importantes defensores da tese de que a essência mais íntima da alma
espanhola reside em sua história de fusão entre cristãos, judeus e muçulmanos39. Tese
essa que teve profundas implicações no pensamento freyriano, que irá associar a
mestiçagem ocorrida em solo brasileiro a uma forma de continuação daquela que,
anteriormente, já teria se processado na península.
Em relação à influência muçulmana entre os ibéricos, Freyre irá aprofundar a
reflexão. Julgo ser importante reproduzir na íntegra uma passagem de Além do apenas
moderno sobre esse tema, da fusão de culturas processada na península ibérica, pois a
discussão que se dá nela terá uma repercussão fundamental naquilo que se seguirá
neste trabalho. Diz o autor pernambucano que
“por ter sido a Península Ibérica ponto de encontro de saberes orientais com os ocidentais, com os orientais alcançando uma predominância que, a certa altura, vencido tecnologicamente o Oriente pelo Ocidente, tornou a antropologia e outros estudos, na mesma Península, arcaicos, em face dos estudos científicos desenvolvidos na Europa capitalista, industrial e protestante. O que resultou da ênfase dada, durante séculos, nos saberes orientais, a abordagens psicológicas, intuitivas e até – reconheçamos – místicas, alheias a técnicas racionais e de mensuração das quais, entretanto, se abusaria nas ciências do Homem, ocidentais de modo tal que se verificariam movimentos de retificação desses abusos. Essas retificações vêm encontrar alguns dos estudos hispânicos sobre o Homem, realizados dentro de constante hispânicas de orientação e de método desprezados por algum tempo como arcaicos, em estado, ao contrário, de flagrante atualidade e, mais do que isto, de futuralidade: capazes de concorrerem para estudos, no mesmo setor, que se projetem sobre possíveis futuros, sendo, nessas projeções, humanísticos, sem deixarem de ser científicos”. (Freyre, 2001, p.35,36)
Há vários elementos dessa passagem que merecem destaque. Em primeiro lugar,
Freyre afirma que, em dado momento da transição para a idade moderna, o ocidente
racional, capitalista e protestante passou a considerar arcaico o pensamento hispânico,
de tendências mais inventivas, místicas até, que fora marcado por seu lugar de ponto de
encontro com os saberes orientais. Esse arcaísmo está associado a tudo aquilo que vim
discutindo a partir das ideias de Américo Castro – a preocupação hispânica com a
humanidade primária, tema já supostamente resolvido pelo racionalismo. Em segundo
lugar, Gilberto percebe um movimento de renovação do pensamento contemporâneo
39
Ladero Quesada (2011, p.14), um dos principais medievalistas espanhóis, cita Américo Castro como referência para a tese – que se sustenta em uma interpretação particular da Reconquista medieval – de que mais do que enfrentamento radical de cristãos “reconquistadores” contra muçulmanos alheios à verdadeira substância histórica de Espanha, teria havido simbiose cultural, à qual se acrescentaram os judeus, e de tal simbiose nasceu o ser histórico de Espanha e suas peculiaridades mais duradouras, em que pese a ruptura imposta pelo triunfo da intolerância na época moderna. Essa tese de Castro apareceu pela primeira vez em 1948 em seu livro chamado España en su historia. Cristianos, moros y judíos. Posteriormente, o livro foi reeditado, já bastante ampliado, tornando-se uma obra praticamente nova, sob o nome La realidad histórica de España. Este último livro é citado várias vezes por Freyre em Além do apenas moderno.
71
que passa a revalidar esses outrora arcaicos estudos hispânicos do Homem. Como
tentei mostrar no capítulo anterior, o pós-moderno é justamente esse momento de
mudança, no qual os saberes supostamente “pré-modernos” podem ser recuperados em
toda sua vitalidade. Esse talvez seja o elemento de recuperação da tradição mais
importante da proposta freyriana em Além do apenas moderno. A sociologia futurológica
seria, portanto, a recuperação de uma tendência de pensamento mais humanística que,
ressalte-se, não deixa de ser científica.
Gostaria de recuperar novamente aquela proposta de Sérgio Tavolaro de que
haveria na obra de Freyre uma tentativa de desestabilizar a centralidade da experiência
moderna dos países modelares da modernidade, especialmente a anglo-saxã. Penso
agora já ter acrescentado elementos que me permitem aprofundar essa reflexão. A
ênfase na existência de um amplo mundo hispânico – que no Brasil viu suas tendências
serem realçadas a partir da integração do elemento negro e indígena também, à sua
própria maneira, anti-modernos – que se contrapõe a outro anglo-saxão e norte-europeu
tem como finalidade refutar uma filosofia da História moderna que se empenhou em
integrar todos os espaços e temporalidades existentes dentro de uma mesma linha de
continuidade. O positivismo do século XIX seria, nesse sentido, a corrente mais
emblemática dessa concepção de História como um contínuo progresso cujo sentido
evolutivo de direção era dado pelas sociedades norte-europeias e anglo-saxãs. Essas
sociedades encontrar-se-iam no final da linha evolutiva como o destino último para o
qual todas as outras, necessariamente, rumariam.
Américo Castro (2004, p.14) ao abordar essa filosofia da História chamou-a de “el
mito del progreso linear” e acrescentou que já não se poderia fazer mais do que “sonreír
al recordar que el siglo XIX intentó hacer de la ciencia una religión y creyó que el
progreso era el resultado de um mecanismo social que, una vez en marcha, no se
dentendría jamás”. Ademais, o filólogo espanhol percebe que, a partir dessa perspectiva
histórica, os valores hispânicos sofreram uma expressiva desvalorização, uma vez que
não estariam baseados no princípio racionalista, de que tudo que escapa à razão e à
conceituação não existe, sustentador das sociedades de progresso infinito. Os
hispânicos, como tentei demostrar aqui, estariam mais preocupados com o que
escondiam as sombras que a luz da razão não podia iluminar.
Quando Freyre reivindica esses valores hispanos, portanto, o que faz é procurar
jogar luz à singularidade do processo histórico das sociedades hispânicas e, por
72
consequência, também do brasileiro – por serem ambas um “conjunto indissociável”
(Bastos, 2005, p.10) – que não poderia ser subsumido a um suposto percurso histórico
universal único. Dessa forma, Freyre poderia contestar o “desvio” da modernidade
brasileira e afirmar um percurso próprio, distinto daquele dos países centrais que
forneciam a base para se pensar uma história universal única que progredia em direção
à modernidade. Para Tavolaro, no entanto, Freyre falha nesse seu intento. Para este
sociólogo, ao ressaltar a singularidade brasileira, Freyre se apoiaria em “referências
cognitivas” que, na verdade, acabavam por reafirmar o estigma de desvio do percurso
brasileiro.
Entre os elementos principais utilizados por Freyre para caracterizar a
singularidade do processo histórico brasileiro estariam a ausência de um efetivo
“desencantamento do mundo” e a relação “porosa e simbiótica” estabelecida com o
trópico. No Brasil, predominou a persistência de uma religiosidade híbrida que
incorporava elementos de um catolicismo de tipo mágico e místico, do fetichismo das
“coloridas” religiões africanas e do animismo das religiões autóctones (Tavolaro, 2013,
p.312). Ademais, a relação do homem com a natureza tropical era particular. “Tratar-se-
ia [o trópico] não só de um ambiente diverso do europeu (mais intenso, mais colorido,
mais vibrante, e, de certa forma, até mesmo mais hostil e inóspito a uma vida
regrada/sistemática), como também capaz de se traduzir em símbolos, padrões de
comportamento, valores diversos (os valores tropicais) e referências estéticas distintas
das europeias” (Ibid, p. 313).
A ênfase de Freyre nesses dois elementos, na opinião de Tavolaro, acabava por
reafirmar o “desvio” da modernidade brasileira, pois seu percurso histórico específico
estaria referendado em qualidades que o discurso sociológico da modernidade apontava
como justamente aquelas que configuram o mundo arcaico e pré-moderno, que
precisariam ser superadas para que se pudesse alcançar a modernidade. Para que o
Brasil fosse efetivamente uma sociedade moderna, teria de passar, portanto, pelo
desencantamento de sua religião mágica híbrida e por um distanciamento de sua
relação íntima com a natureza, afinal as qualidades do mundo moderno eram
precisamente a racionalização e a “autonomia em relação ao mundo natural” (Ibid,
p.313).
O discurso sociológico da modernidade operaria, segundo Tavolaro (2005, p.6),
dentro de uma episteme que “demarca o terreno cognitivo de um certo discurso da
73
modernidade que veio a se tornar hegemônico na produção sociológica internacional”.
Nesse discurso, as sociedades modernas centrais são aquelas que cumprem três pré-
requisitos: a) diferenciação e complexificação social; b) secularização; e c) separação
entre público e privado. (Tavolaro, 2005, p.11). Para esse sociólogo, Freyre acaba por
operar dentro desse “terreno cognitivo”, pois, a partir das nossas características que o
autor pernambucano enfatiza, nossa “condição moderna não seria outras senão uma
espécie de desvio em relação às ditas sociedades centrais da modernidade” (Ibid, p.11).
Penso que seja possível dizer, no entanto, que em Além do apenas moderno,
Freyre objetive justamente desestabilizar a centralidade desse discurso sociológico da
modernidade e não apenas enfatizar o percurso histórico singular brasileiro. Nesse livro,
Gilberto defende que não importa mais “ser apenas moderno”. É preciso ser pós-
moderno num sentido que transcenda a mera e efêmera modernidade. Não se trata
mais aqui de um Freyre que busque afirmar a modernidade tropical brasileira. Já
estamos diante de um autor que procura iluminar as qualidades pós-modernas não
apenas do Brasil, mas de todos os hispânicos. Nosso misticismo e nossa relação
simbiótica com a natureza seriam, nesse sentido, elementos de continuidade em nosso
percurso histórico que podem ser agora repensados como valor e não mais como
elementos que, tomados desde uma perspectiva moderna meramente racionalista,
objetivista e materialista, tornam-se símbolos de falta ou ausência. A sociologia
ecológica de Freyre poderia servir como exemplo dessa sua tentativa de subverter o
discurso sociológico da modernidade. Sua proposta tenta pensar a relação homem e
natureza “sem pretender que o tipo de vida adequado a um ambiente seja imposto
imperialmente a outro” (Freyre, 2001, p.101). Não se trata, portanto, de tomar como
base a relação do homem separada com o seu meio sustentada pela episteme
moderna. É preciso, no caso do Brasil, uma integração entre homem e trópico. É o que
a tropicologia tenta pensar. O próprio Tavolaro aponta que as discussões de Freyre
sobre as noções de tropicologia e lusotropicologia seriam sinais “indisfarçáveis” de sua
sensibilidade em relação à “geopolítica epistemológica que circunscrevia as ciências
sócias de sua época” (Tavolaro, 2013, p.308).
Ademais, a recuperação de uma tradição hispânica de pensamento seria
fundamental nesse intento freyriano. A ciência hispânica do homem operaria dentro de
outro referencial cognitivo, ou seja, de outra episteme. Razão e sentimento, como tentei
demonstrar, não estavam separados nessa tradição de pensamento, o que implicava,
por exemplo, em outro enquadramento do tema da secularização. O fato de que Freyre
74
tome como referencial teórico um autor como Unamuno, que, como mostrei, pensava a
filosofia mais como sentimento do que razão, talvez seja bastante indicativo das
posições epistêmicas do autor pernambucano. Por isso, o que vemos em Além do
apenas moderno é tanto uma ênfase na singularidade histórica hispânica e,
consequentemente, brasileira, quanto uma tentativa de contestar o discurso sociológico
da modernidade tomando outras referências para pensar o mundo social. Freyre chega
a dizer que os estudos sociológicos devem se reaproximar “daqueles inquéritos
antropológicos que os espanhóis realizavam entre as gentes nativas da América
tropical, em dias remotos” (Freyre, 2001, p.38). Afirma também que a “crítica da vida” de
Baltasar Gracián, no século XVII, poderia ser pensada como “ciência quase moderna”;
diz ainda que, em sua interpretação antropológica do homem, Juan Luis Vives teria se
antecipado a antropólogos e sociólogos modernos (Ibid, p.41). Penso que todos esses
esforços de Freyre em iluminar a importância da tradição hispânica de pensamento
devem ser interpretados como uma tentativa de transcender o terreno cognitivo
demarcado pela episteme dominante daquele discurso sociológico da modernidade que
Tavolaro descreve.
Nesse sentido, penso ser bastante profícuo pensar a proposta de Freyre em Além
do apenas moderno, de uma futurologia sociológica, como uma espécie de arielismo.
Em sua conhecida obra Ariel, José Enrique Godó leva a fundo o latinoamericanismo40
ao apresentá-lo, em ensaio cujas repercussões sobre o pensamento latino-americano
do século XX seriam imensas, a partir de um enquadramento de identidade cultural que
valorizava sua unidade e conjunto dentro de uma matriz greco-latina, sobretudo a
hispânica, que se opunha ao utilitarismo anglo-saxão. O Ariel de Rodó simbolizaria a
profundidade e espiritualidade da cultura da América Latina. Sua identidade se
construiria a partir de uma fusão dos ideais de beleza da cultura greco-latina e de
caridade da cultura cristã. A ele, contrapunha-se Caliban, símbolo do utilitarismo
materialista anglo-saxão e da avassaladora presença estadunidense no continente
americano que ameaçava colonizar o espírito latino. Por fim, triunfaria Ariel, sem, no
entanto, consagrar-se uma vitória definitiva, com o que Rodó convocava especialmente
40
Ao abordar latinoamericanismo reporto-me àquela tradição de pensamento cujo início remete ao Facundo de Sarmiento, escrito em 1845, obra que teria iniciado o ensaísmo latino-americano. Sobre essa tradição, afirmou Antonio Candido (1995, p.12) em seu conhecido Significado de raízes do Brasil: “No pensamento latino-americano, a reflexão sobre a realidade social foi marcada, desde Sarmiento, pelo senso dos contrastes e mesmo dos contrários – apresentados como contradições antagônicas em função das quais se ordena a história dos homens e das instituições”.
75
os jovens latino-americanos a manter o espírito de luta e de compromisso com o futuro
da América Latina41.
Entendo que há no Além do apenas moderno de Freyre esse mesmo espírito que
animou o Ariel de Rodó a pensar num futuro em que os valores profundos do
humanismo hispânico triunfariam sobre o materialismo estreito dos anglo-saxões, a
quem Gilberto chama de apenas modernos42. Esse recurso comparativo permite fazer
uma série de aproximações: a ideia do ócio que dignifica o indivíduo frente à vida
materialista, os valores do humanismo clássico transmitidos por meio da herança ibérica
que permitiriam superar o utilitarismo moderno, a utilização dos contrastes para marcar
identidades opostas e, principalmente, a tentativa de pensar outro referencial cognitivo
que não aqueles da ciência racional moderna são alguns dos pontos de contato entre
Além do apenas moderno e o Ariel de Rodó. Como diz Belén Castro (2009, p.11), “Rodó
assume o risco de pensar no turbilhão, em meio à vertigem da aceleração: é um
moderno que sem renunciar a alguns valores tradicionais, atua a uma só vez como
agente condutor de novos processos e como crítico dos mesmos”. Penso que a figura
do moderno que não renuncia certos valores tradicionais possa também descrever
Freyre, para quem o tempo-ócio dos hispanos – tempo-saudade, tempo-nostalgia,
tempo-existencial – restauraria no futuro pós-moderno a relação meramente utilitária
com o tempo que havia se tornado o padrão na vida “apenas moderna”. O arcaico, o
pré-moderno subverte o apenas moderno para se tornar pós-moderno. Era o que já
estaria em curso com a revolução biossocial que expliquei no capítulo anterior.
Antes, no entanto, de avançar mais nessa ideia de um arielismo presente na obra
Além do apenas moderno, o que farei no próximo capítulo, quando retomarei e
aprofundarei a relação entre hispanidade e futurologia, sendo a futurologia a concepção
que permite Freyre atuar da mesma forma que Rodó, como um intelectual que pensa os
novos processos em curso e os critica, julgo ser importante enfatizar um último aspecto
da noção de hispanidade em Freyre. Trata-se da influência que os autores espanhois
tiveram na conformação dessa ideia. Com isso, cobrirei os elementos mais importantes
do significado profundo a que o termo hispano remete na obra de Freyre. Intelectuais
41
É preciso ressaltar aqui que existe uma discussão acerca da significação de Caliban na obra de Rodó. Caliban não seria uma metáfora apenas dos Estados Unidos. Belén Castro (2009, p.77) ressalta a existência de “dois Calibans”: “el ‘Caliban de afuera’ (el intervencionismo y el materialismo de Estados Unidos) y el ‘Caliban de adentro’, el de los factores endémicos que impiden la causa regeneracionista inspirada a los nuevos intelectuales por Ariel. Porque Caliban también representa vários factores de la barbárie ‘de adentro’ que imposibilitan su proyecto cultural”. 42
Para o Freyre de Além do apenas moderno, os apenas modernos também englobam os norte-europeus, que muitas vezes são chamados no livro de “nórdicos”.
76
espanhois do passado e do presente contribuíram decisivamente para moldar a
percepção do que o autor pernambucano viria chamar de “ciência hispânica do homem”.
2.3 A hispanidade como influência: os autores espanhois
Elide Rugai Bastos (1998; 2003) divide a obra de Freyre em três momentos ao
tomar como critério a influência de autores espanhóis sobre o sociólogo pernambucano.
A terceira fase, constituída pelos trabalhos pós-1945, seria aquela na qual a influência
hispânica não apenas se torna mais visível como os créditos a ela passam a ser
explicitamente reconhecidos. Uma comparação entre o conteúdo do iberismo presente
em Casa Grande e Senzala e o vigente em Além do apenas moderno poderia ilustrar
bem essa transição da obra freyriana. Se em seu ensaio mais famoso, as teses ibéricas
reportam-se, sobretudo, às qualidades do colonizador português, em Além do apenas
moderno, o iberismo já é sinônimo de hispanidade e passa a englobar efetivamente a
totalidade do ibérico, espanhol e português, com uma proeminência, inclusive, daquele
sobre este.
Ademais de questões geopolíticas e outras que já abordei aqui, penso que o
progressivo reconhecimento e elucidação da influência de autores espanhois, mais do
que outros motivos, mudavam sensivelmente os contornos do iberismo de Gilberto, que
se expandia, assim, para abrigar de forma mais nítida os espanhóis e a tradição
hispânica. O seu conteúdo, no entanto, permaneceria basicamente o mesmo desde
Casa-Grande e Senzala. O não europeísmo da sociedade ibérica, a ausência de uma
racionalidade tipicamente burguesa, o caráter conciliador por meio do qual predominava
a acomodação à ruptura são traços das teses ibéricas mobilizados para destacar
características da formação social brasileira que permanecem. Acrescente-se a esses
temas que compõem o núcleo central do iberismo freyriano, o elogio que o autor
pernambucano faz da tradição artística, filosófica e literária hispânica, traço que se torna
mais claro a partir do momento em que Freyre passa a explicitar sua dívida intelectual
para com o pensamento espanhol.
A ênfase desta seção, portanto, será nas dívidas intelectuais de Freyre para com
os autores espanhois. O que gostaria de realçar aqui, no entanto, é menos como ideias
e conceitos de determinados escritores foram apropriados e utilizados pelo autor
pernambucano, ainda que esse aspecto seja extremamente importante, e mais o caráter
de conjunto de pensamento que a obra dos hispanos conforma e do qual, acrescente-
se, o autor pernambucano passa cada vez mais a sentir-se parte. A partir dos anos
77
sessenta tornam-se mais comuns afirmações de Freyre autodeclarando-se um escritor
hispânico. Isso aparece em Como e por que sou e não sou sociólogo, de 1968, e mais
explicitamente em O brasileiro entre os outros hispanos, de 1975.
Não se trata, em hipótese alguma, de utilizar tal argumento a fim de desvalorizar
outras influências sobre a obra de Freyre, mesmo porque fazê-lo implicaria em perder
de vista aquilo que Peter Burke (2008, p.20) menciona de que Gilberto era uma “esponja
intelectual”, “um leitor voraz com uma infinidade de interesses”, capaz de absorver
informações das mais variadas fontes e tornar ideias de outros autores como parte de si
mesmo. O inegável ecletismo do autor pernambucano já foi objeto de vários estudos e
mencioná-los todos aqui seria um desvio desnecessário de meu objetivo principal. Entre
esses estudos, é destacável o trabalho da historiadora Maria Lúcia Pallares-Burke, já
citado no primeiro capítulo, Um vitoriano nos trópicos, em que a autora analisa os anos
de formação do jovem Gilberto e a influência decisiva que o mundo anglo-saxão teve
nele, especialmente a Inglaterra.
Meu objetivo, no entanto, é enfatizar a influência hispânica em Freyre e, por essa
razão, quero retomar alguns autores que já mencionei neste trabalho a fim de
aprofundar o argumento que venho perseguindo de que na reivindicação de Freyre, em
Além do apenas moderno, de dois modelos civilizacionais distintos, o hispano e o anglo-
saxão ou norte-europeu, há uma ênfase fundamental nas diferentes formas de produzir
conhecimento de cada uma dessas tradições. Os hispânicos, mais intuitivos,
autobiográficos e subjetivos, se contrastados à rigidez objetiva e racionalista norte-
europeia ou anglo-saxã, teriam, ao longo de sua história, produzido uma “ciência
hispânica” menos voltada a operacionalizar a vida senão a criticá-la. Nesse sentido, dois
elementos dessa ciência seriam fundamentais e constitutivos: o elemento
autobiográfico, já que a crítica da vida se faz desde um ponto de vista específico, aquele
do autor; e o elemento compreensivo e interpretativo, cujo fim não seria chegar “a
verdade”, mas a uma das possíveis verdades.
Os autores que irei abordar aqui, fundamentalmente Miguel de Unamuno, Ortega
y Gasset e Ángel Ganivet, seriam na opinião de Freyre, atualizadores dessa forma de
conhecer e afrontar o mundo. Esses autores são, reconhecidamente, aqueles que mais
influência tiveram na obra de Freyre (Bastos, 2003; Baggio, 2010; Pallares-Burke, 2005).
No entanto, em Além do apenas moderno, há uma profusão de citações a outros
autores espanhois contemporâneos. Aparecem, ainda, Américo Castro, a respeito de
78
quem já falei neste trabalho, Laín Entralgo, Julián Marias, Gregorio Marañon, Menendez
y Pelayo e outros. Todos eles, à sua própria maneira, estiveram envolvidos com o
debate acerca do nacionalismo espanhol chamado “Ser de Espanha” ou “problema de
Espanha”, que, desde meados ao final do século XIX, ocupou o centro de todas as
reflexões intelectuais espanholas. O debate oscilava, basicamente, entre dois polos, a
saber: hispanismo e europeísmo.
Ainda no século XIX, o debate que estabelece essa discussão do nacionalismo
espanhol e assenta suas bases acontece entre duas tendências chamadas de
regeneracionismo e casticismo. Se os dois polos da discussão serão hispanismo e
europeísmo, então o regeneracionismo irá sustentar a necessidade de europeização
enquanto o casticismo, de preservar-se a hispanidade. O termo regeneracionismo toma
seu significado de regeneração, ou seja, da ideia de que era preciso “regenerar”
Espanha. Como nos dá a saber José Luis Abellán (1999, p.19), “desde que em 1875 se
implantara a Restauração borbônica, a preocupação pela regeneração de Espanha se
impõe em todo o país, e isso ocorre até o ponto de que o regeneracionismo se converte
em movimento a que todos os intelectuais do momento são devedores”. Veremos que
tanto Unamuno e Ganivet, quanto Ortega y Gasset serão devedores, em alguma
medida, dessa tradição de pensamento.
De maneira geral, os regeneracionistas sustentavam a necessidade de
europeização, enfatizavam a situação de atraso em que se encontrava Espanha, o que
implicava na perda de contato com todas as mudanças políticas que ocorriam na
Europa, que se tornava cada vez mais liberal e democrática, e apontavam que a
regeneração do país passaria por uma adaptação a essas realidades europeias (Bastos,
2003, p. 23). Joaquín Costa foi a figura mais emblemática dessa corrente. Seu livro
Oligarquia e caciquismo é, de certa forma, ilustrativo dos ideais que norteavam o
regeneracionismo. Romper com a política do caciquismo seria uma das formas para se
superar o atraso espanhol (Ibid, p.23).
O casticismo, que pode ser pensado nesse momento como tendência contrária
ao regeneracionismo, não é, no entanto, uma corrente de pensamento que, como sua
antagonista, tenha surgido apenas no século XIX. A ideia do castiço espanhol remete,
em um primeiro momento, ao século XVIII, como tendência de reação aos afrancesados
e às ideias ilustradas e, mais profundamente, aos estatutos de pureza de sangue da
Espanha pós-reconquista. O casticismo refere-se, nesse sentido, à ideia de uma
79
Espanha pura e tradicional, com sua identidade mais profunda relacionada com o
catolicismo. No século XIX, essa tendência encontrou um importante referente em
Marcelino Menéndez y Pelayo, filólogo e crítico literário de enorme erudição, diretor da
Biblioteca Nacional de Espanha até sua morte e que escreveu entre 1880 e 1882, em
três volumes, a obra Historia de los heterodoxos españoles. Nessa obra particularmente,
Menéndez Pelayo percorre a história espanhola fazendo uma equação de total
identidade entre catolicismo e espanholidade. A partir desse referente, analisa outros
grupos e movimentos que se constituiriam como espanhois heterodoxos, ou seja,
aqueles cuja identidade seria oposta à ortodoxia católica. Estamos aqui em um polo
completamente oposto às teses de Américo Castro de uma Espanha híbrida entre
cristãos, judeus e muçulmanos.
Os acontecimentos da última década do século XIX irão fazer com que o
regeneracionismo se imponha, ainda que, como tendência profunda espanhola,
especialmente ligada aos setores mais reacionários, não se possa dizer que o
casticismo se dissipe completamente. Um incidente em especial irá condicionar todo o
pensamento que emergirá na transição do século XIX para o XX, a guerra hispano-
americana de 1898 que, como resultado, fez com que a Espanha perdesse suas
possessões coloniais de Cuba, Filipinas e Porto Rico, o que ficou conhecido na
historiografia como “o desastre de 1898”. O desastre teve implicações profundas na
alma espanhola de então e desde aí é preciso posicionar todo o debate intelectual que
surgirá envolvendo o nacionalismo, do qual Unamuno, Ganivet e Ortega y Gasset serão
figuras proeminentes.
O desastre também servirá de referente para o nome da geração de intelectuais
que irá atingir seu período de maturidade nos últimos anos do século XIX e logo no
início do XX. A chamada Geração de 98, que terá em Unamuno e Ganivet seus
referentes, apoiar-se-á na tragédia para desenvolver um “pessimismo construtivo”
(Bastos, 2003, p.34) extremamente profícuo que irá inventar a nação espanhola. Nesse
sentido, o ensaio Idearium español de Ángel Ganivet, que tanta influencia teve sobre
Freyre43, irá se converter, em razão da importância que a ele deram os intelectuais que
compõe o núcleo duro dessa geração, no texto clássico e fundante do nacionalismo
espanhol (Abellán, 1999, p.15).
43
Sobre essa influência, ver Bastos (2003), em que há uma seção inteira de um capítulo intitulado “Retorno às tradições” dedicada a compreender a leitura que Freyre fez de Idearium español.
80
A posição que Ganivet ocupa na geração de 98 é, de certo modo, curiosa, pois,
mesmo tendo sido contemporâneo de Unamuno – a diferença de idade entre eles era de
apenas um ano, três meses e quatorze dias, como conta o filósofo de Salamanca em
suas aclaraciones prévias da obra El porvenir de España44 – se lhe considera um
precursor dos noventayochistas. Isso, muito provavelmente, deve-se por ter morrido
ainda muito jovem, aos 33 anos, em 1898, o que confere, para os espanhois, ainda
maior mística a esse fatídico ano. Serão Unamuno e seus companheiros de geração
que irão recuperar as ideias de Ganivet, sobretudo as de seu Idearium español, a fim de
tê-lo como uma referência para suas próprias aspirações intelectuais. No entanto, ainda
que considerado seu precursor, como diz José Luis Abellán (1999, p.24), “Ganivet
pertence à geração de 98 e é dentro dessa onde devemos encontrar sua significação
intelectual”.
E qual é essa significação intelectual tanto de Ganivet quanto dos demais autores
da geração de 98? Gostaria de sublinhar, dentre as muitas possibilidades, apenas duas,
que me parecem fundamentais para aproximá-los dos argumentos de Gilberto Freyre
em Além do apenas moderno, que é aqui meu objetivo principal. Em primeiro lugar, o
fato de serem literatos e pensadores. Em todos eles, mas sobretudo em Unamuno e
Ganivet, haverá o elemento que destaca Ortega y Gasset (1964 apud Abellán, 1999,
p.24): “Fazem literatura com as ideias, como outros depois haveriam de fazer
inversamente filosofia com literatura”. Perceba-se aqui a ênfase naquele mesmo
elemento que Freyre e Américo Castro destacavam da alma espanhola: a subversão
das linhas entre subjetividade e objetividade, entre ciência e filosofia, de um lado, e
literatura, de outro. Unamuno seria a maior expressão dessa virtude. Em sua novela
Amor y pedagogia fará uma crítica contundente do positivismo. Em outra chamada San
Manuel Bueno, mártir abordará a história de um padre que perde a fé para retomar tema
sempre tão caro a ele, o problema da fé e da dúvida. Essa e outras qualidades fariam de
Unamuno o “espanhol por antonomásia”, como o chamou Américo Castro, e dariam a
ele o caráter de atualizador moderno do espírito mais profundo do século de ouro.
Em segundo lugar, há entre os autores da geração de 98 uma mistura de dois
elementos que dá ao pensamento do grupo uma configuração muito peculiar:
nacionalismo tardio e irracionalismo. Em todos os intelectuais noventayochistas, autores
com Nietzsche e Schopenhauer tiveram marcada influência, o que fará Laín Entralgo
44
El Porvernir de España é uma obra que foi lançada a partir do intercâmbio de cartas públicas realizado entre Unamuno e Ganivet que foram publicadas originalmente no jornal El Defensor de Granada.
81
(1948, apud Abellán, 1999, p. 26) dizer: “para todos eles a vida é superior e irredutível à
razão; o sentimento, superior à lógica; a sinceridade, mais valiosa que a consequência”.
Novamente, vê-se aqui um elemento destacado por Freyre e Castro acerca da alma
espanhola, o embate entre razão e sentimento, em que, invariavelmente, o segundo
triunfa sobre o primeiro. Além disso, o fato de que o nacionalismo espanhol tenha sido
tardio em relação aos europeus irá conferir à reflexão nacional dos intelectuais de 98 um
aspecto casticista. Não se trata, obviamente, do mesmo casticismo de Menendez y
Pelayo, de uma Espanha reacionária e católica. O casticismo noventayochista reside no
fato de que todos os seus autores irão buscar uma “entidade metafísica chamada
Espanha” (Abellán, 1999, p.27) que se encontraria nas tradições do povo, onde residiria
a alma profunda do espanhol. É aí que se encontra a Espanha intrahistórica de
Unamuno e a Espanha madre y virgen45 de Ganivet.
O fato de que o regeneracionismo tenha se imposto, em razão do retumbante
sentimento de fracasso espanhol no fin de siècle, não significou entre os autores da
geração de 98 um adesão adstrita ao europeísmo. Isso se deve a esses dois elementos
que mencionei. A Europa racional e materialista não era a solução para os problemas
espanhois. As respostas, era preciso buscá-las dentro da própria Espanha, de sua alma,
de seu espírito mais íntimo que atravessava os séculos. Assim surge o nacionalismo
ganivetiano e unamuniano, que sempre se reporta às tradições profundas hispânicas.
Em passagem altamente significativa de Idearium español, o granadino irá dizer “cuanto
en España se construya con carácter nacional, debe de estar sustentado sobre los
sillares de la tradición” (Ganivet, 1999, p.53).
45
“Mãe e virgem” é a metáfora que Ganivet utiliza em Idearium español a fim de descrever a alma espanhola. Para ele, Espanha seria como aquela mulher que, tendo sido mãe por dever, descobre-se atraída pela irresistível vocação para a vida monástica, percebendo, assim, que todo seu espírito havia sido alheio à sua obra terrena. Fora mãe, tendo, na verdade, sempre desejado ser monja. A metáfora refere-se ao catolicismo (obra) e ao senequismo (espírito). Para o granadino, a obra espanhola construída ao longo dos séculos teria sido a católica, no entanto, seu espírito estava em outro lugar. Ele deveria ser encontrado no estoicismo natural y humano de Séneca. Sêneca foi um importante escritor e político do Império Romano, pertencente à corrente filosófica do estoicismo, nascido em Córdoba, sul da Espanha, hoje região autônoma de Andaluzia. Em passagem emblemática em que Ganivet explica quem foi Sêneca, também se pode ler qual era para ele a essência do espírito espanhol. Reproduzo-a aqui: “Séneca no es um español hijo de España por azar: es Español por esencia, y no andaluz, porque cuando nació aún no habian venido a España los vándalos; que a nacer más tarde, en la Edad Media, quizá no naciera em Andalucía, sino en Castilla. Toda la doctrina de Séneca se condensa en esta enseñanza: No te dejes vencer por nada extraño a tu espíritu, piensa, en medio de los accidentes de la vida, que tienes dentro de ti una fuerza madre, algo fuerte e indestructible, como un eje diamantino, alrededor del cual giran los hechos mezquinos que forman la trama del diário vivir (...) Esto es español; y es tan español, que Séneca no tuvo que inventarlo porque lo encontro inventado ya: sólo tuvo que recogerlo y darle forma perene, obrando como obran los verdaderos hombres de gênio” (Ganivet, 1999, p.38).
82
E quais seriam essas tradições a que Ganivet e Unamuno se reportavam?
Certamente não eram aquelas do catolicismo, que ambos os autores rechaçavam. Para
o granadino, Espanha havia se arruinado com a defesa do catolicismo (Ganivet, 1999,
p.53), que nada mais seria que um equívoco histórico, uma substituição do verdadeiro
espírito em favor da obra terrena como sugere a metáfora madre y virgen. Para o
filósofo basco, o catolicismo expressava a fe del carbonero, uma fé que em sua tentativa
estéril de ser racional, nada mais era que fé impositiva, fé de servo, de homem curvado
e obediente a quem não se permite questionar. Portanto, não é no catolicismo que se
deve encontrar as tradições hispânicas profundas. Tentar abordar a totalidade da
acepção de tradição para Unamuno e Ganivet poderia ensejar uma monografia inteira.
Irei, por essa razão, limitar-me a apontar algumas ideias que podem ser conectadas
com o pensamento freyriano.
De Ángel Ganivet, gostaria de destacar três ideias: a família e a cidade como
espaços de configuração social, a Espanha como península e a importância do
misticismo. Esta última me conectará diretamente com Unamuno que também
considerava a tradição mística espanhola como um dos fundamentos da alma nacional.
Do filósofo basco, irei também enfatizar o conceito de intra-história. Entendo que trazer
essas ideias desses dois autores seja de fundamental importância para a linha
argumentativa que tenho buscado neste trabalho. Unamuno e Ganivet eram duas
referências teóricas que contribuíam para a reflexão da outra seção anterior, de que a
sociologia de Freyre pode ser pensada como um intento de descentrar a episteme
dominante do “discurso sociológico da modernidade” (Tavolaro 2013; 2005).
Bastos (2005, p.57) afirma que nos textos Sociologia e Como e por que sou e não
sou sociólogo Freyre justificaria “seu próprio ecletismo sociológico” invocando Ganivet e
a intenção desse espanhol de que suas investigações não pertençam “a nenhuma das
ciências ou artes conhecidas até hoje e classificadas com maior ou menor acerto pelos
sábios de ofício” (Ganivet, 1996 aput Bastos, 2005, p.57). Ademais, ainda segundo
Bastos, a invocação de Ganivet servia para Gilberto como forma de justificar seu próprio
método, pois ele entendia que a abordagem do granadino não seria “prisioneira das
chamadas ciências puras” o que dava uma riqueza singular à análise desse autor,
“simultaneamente intérprete de si mesmo, de Granada e da Espanha” (Freyre, 1945
apud Bastos 2005, p.57).
83
Perceba-se aqui, na ideia de “intérprete de si mesmo”, aquele elemento citado
anteriormente da qualidade autobiográfica do pensamento espanhol. Para Freyre, um
dos aspectos da riqueza da obra de Ganivet estava neste autobiografismo tão
essencialmente característico da tradição hispânica. Tradição essa, como diz Bastos
(2005, p.59) “marcada tanto pela liberdade de expressão, pela ausência de fórmulas
canônicas de pesquisa e, principalmente, pela não separação das experiências de vida
e de escritura”; e da qual Freyre sentia-se parte. Relembro aqui novamente Américo
Castro, que comparou Ortega y Gasset a Velázquez ao invocar essa não separação
entre vida e obra.
Ao abordar o tema da família e da cidade como espaços de configuração social,
Ganivet está preocupado com os avanços modernos que descaracterizam a tradição
profunda espanhola. Para ele, como, posteriormente, para Freyre, “a cidade é um locus
ou espaço privilegiado do espírito e da cultura” (Bastos, 2003, p.62). As reformas
modernizantes descaracterizavam não apenas o espaço geográfico e estético, mas
também a própria configuração social. Perde-se, assim, uma “unidade harmônica que é
corrompida pela modernização” (Ibid, p.62). Nesse sentido, Bastos (2003) faz um
interessante paralelo entre as abordagens de Recife e Granada por Gilberto e Ganivet,
respectivamente, mostrando a importância que ambos deram à luta pela “preservação
da cidade e suas tradições” e como, no desenvolvimento dessas ideias, o granadino
teve influência marcante sobre o autor pernambucano (Ibid, p.66).46
A preocupação de Ganivet pela perda das tradições também se reflete em sua
análise do enfraquecimento do papel social da família como elemento aglutinador e
transmissor da cultura. Qualquer leitor de Gilberto Freyre irá imediatamente relacionar
essa ideia com a análise freyriana do papel da família patriarcal na formação social
brasileira. A associação é, de fato, inequívoca e Bastos (2003) a mostra muito bem. Em
uma passagem que Freyre irá retomar em artigo de jornal em 1925, Ganivet irá citar “o
braseiro e a lamparina” como metáforas do “sustentáculo da vida familiar” que, na
escassez de luz, “obrigavam às pessoas a se aproximarem e a formar um núcleo
comum”. O advento da luz elétrica teria contribuído para desestabilizar essa unidade
(Bastos, 2003, p.54,55). É a modernização que desagrega a tradição e, com isso, altera
a configuração social. Para Bastos (Ibid, p.55), Freyre irá continuar essa tese em
Sobrados e Mucambos, livro em que irá tratar mais especificamente da desagregação e
46
Para mais sobre essa comparação entre Recife e Granda e a influência de Ganivet na visão de Gilberto sobre a cidade, ver Bastos (2003) no capítulo 2 em uma seção intitulada “Granada-Recife”.
84
decadência da família patriarcal. O tema da transformação do espaço geográfico, da
urbanização, da decadência da casa-de-engenho, enfim, das mudanças que a
modernização suscitava também estarão presentes nesse livro, como a própria metáfora
do título sugere.
Outra ideia que está presente no Idearium español e merece destaque é a
concepção de “Espanha como península”. Ela é a manifestação, na obra do granadino,
do “espírito territorial” (Ganivet, 1999, p.56) que se expressou tão fortemente nos
nacionalismos do século XIX e cuja base se encontra na ideia romântica de “espírito do
povo” (Volkgeist) (Albellán, 1999, p.24). Para comparar os caracteres específicos que
nos diversos grupos sociais tomam as relações com o território, Ganivet irá defender a
existência de três tipos de povos: os continentais, os insulares e os peninsulares. Em
cada um deles manifestar-se-á um tipo característico de personalidade que tem relação
direta com a forma territorial. Assim, a Espanha será fundamentalmente um povo
peninsular. Não se trata, no entanto, de qualquer península. Diz Ganivet que Espanha é
uma península “na conjunção de dois continentes (...) somos una “casa con dos portas”,
y, por lo tanto, “mala de guardar”, y como nuestro partido constante fue dejarlas abiertas
(...) nuestro país se convertió en una espécie de parque internacional, donde todos los
pueblos y razas han venido a distraerse cuando les ha parecido oportuno” (Ganivet,
1999, p.60). Não irei me alongar explicando esse argumento. Trata-se apenas de
destacar dois aspectos: o aspecto mesológico que, como para Freyre, coloca-se como
variável explicativa; e o não europeísmo da península ibérica, seu lugar de transição
entre África e Europa. Elemento esse fundamental das teses ibéricas de Freyre.
A presença do elemento africano irá aparecer com mais força nas teses
ganivetianas quando o autor aborda o misticismo. Para Ganivet (1999, p.44), “a criação
mais original e fecunda do espírito religioso [espanhol] arranca da invasão árabe”. Não
era, portanto, o catolicismo que expressava de forma mais enfática o elemento religioso
tão presente na vida espanhola, mas, sim, o misticismo, poesia cristã e árabe a uma só
vez, que, para o autor granadino, era a tendência mais marcante do espírito religioso
espanhol. Nos “arrebatos de amor divino de Santa Teresa47”, aparecia com grande
relevo o caráter tradicional hispânico (Ibid, p.45). “El misticismo fué como una
santificación de la sensualidad africana” (Ibid, p.45).
47
Santa Teresa de Jesús, também conhecida como Teresa de Ávila, foi uma poetisa, escritora e religiosa espanhola do século XVI, fundadora da Orden de los Carmelitas descalzos e cuja obra é considerada, ao lado da de San Juan de la Cruz, seu contemporâneo, um dos fundamentos da mística cristã.
85
Unamuno também irá ressaltar a importância do misticismo. Para ele, “o
espiritualismo místico faz parte da própria essência de Espanha” (Bastos, 2003, p.29).
Em uma afirmação destinada àqueles que se fascinavam pelo europeísmo, o filósofo
basco irá dizer “considerar mais lisonjeiro ser compatriota de San Juan de la Cruz do
que de Descartes”. (Ibid, p.26). Essa afirmação expressa bastante bem a essência do
pensamento unamuniano, que nunca pretendeu fazer uma filosofia racionalista, senão
colocar em relevo um tipo de pensador apaixonado, vital e contraditório, que pensa “com
todo o corpo e toda a alma, com o sangue, com o tutano dos ossos, com o coração, com
os pulmões, com o ventre, com a vida” (Molina, 2006, p.21). Nesse projeto, o misticismo
sempre gozou de grande relevância. Não se trata, portanto, de enquadrar a mística
como uma expressão do arcaísmo ou atraso espanhol. O misticismo seria uma
constante da alma espanhola que não poderia ser abandonada em nome de um projeto
europeísta modernizador. Perceba-se, assim, que a utilização de Unamuno e Ganivet
como referenciais teóricos permite a Freyre, mais uma vez, sustentar sua ideia de que
certos aspectos da tradição deveriam ser conservados e, dessa forma, tentar operar fora
do campo delimitado pela episteme do discurso sociológico da modernidade que
mencionei anteriormente.
Do filósofo de Salamanca deve-se, ainda, destacar o conceito de intra-história. No
entanto, irei abordá-lo no próximo capítulo, quando retomarei a futurologia freyriana de
Além do apenas moderno, na qual a ideia de intra-futuro é fundamental. Para concebê-
la, Gilberto irá se reportar ao conceito de intra-história de Unamuno.
Bastos (2003, p.57,58) aponta que, em seu livro Sociologia, Freyre irá relembrar
que “seu interesse como cientista social em torno do comportamento humano foi
precedido pela leitura de ensaístas-romancistas, uma forte influência em sua análise
sociológica; entre essas contribuições destaca a obra daqueles intelectuais da geração
de 98”. Vê-se, assim, como a sociologia do autor pernambucano está marcada por todas
essas características que tentei destacar aqui, sobretudo o caráter literário,
autobiográfico e intuitivo presente no pensamento hispânico que está tão fortemente
presente nas obras de Unamuno e Ganivet e de outros autores da geração de 98.
É preciso ressaltar, no entanto, que o conceito de geração pode ser bastante
problemático, pois tenta unificar uma diversidade de autores que acabavam por
professar posições políticas, estéticas, literárias, intelectuais muito distintas. Seu
significado na Espanha é tema bastante debatido, como aponta Bastos (2003, p.36).
86
Ortega y Gasset dedicará vários estudos a esse respeito. Atribui-se à sua autoria,
inclusive, o termo “geração de 98”, utilizado por ele para definir uma mesma
“sensibilidade vital” que unificava os trabalhos de homens tão distintos como Unamuno,
Ganivet, Pío Baroja, Azorín e Ramiro de Maeztu. Essa mesma sensibilidade poderia ser
definida como o “pessimismo construtivo” (Bastos, 2003) que citei anteriormente, como
melancolia em relação ao absurdo da vida, como nostalgia daquilo que deveria ter sido
e não foi. Sentimentos esses que, se relembrarmos o que diziam Gilberto Freyre e
Américo Castro a partir do conceito de tempo tríbio, são tão particularmente e
essencialmente hispânicos.
A sensibilidade dos intelectuais da chamada Geração de 1914 será algo distinta
dessa que unificava os autores noventayochistas. Dentro da divisão entre europeísmo e
hispanismo que dava o tom das discussões sobre o nacionalismo espanhol finissecular,
os novecentistas terão uma posição mais puramente regeneracionista que se traduzirá
em um europeísmo mais aberto. Lembre-se que entre os autores da geração de 98, o
regeneracionismo esteve mediado pelo irracionalismo e por uma tendência nacionalista
casticista que conduzirá esses autores a uma busca da “entidade metafísica chamada
Espanha” que se encontraria nas tradições profundas espanholas. Entre os autores da
geração de 14, ao contrário, haverá uma tendência mais racionalista e sistemática.
Seguramente o grande nome entre os novecentistas será José Ortega y Gasset.
Se a geração de 98 tem como marco que lhe dá nome o desastre do ano de 1898, a de
1914 tem seu nome referendado pelo ano de lançamento do primeiro livro de Ortega,
Meditaciones del Quijote, “o livro emblemático da nova geração de 1914” (Villacañas,
2004, p.19). O ano de 1914 foi decisivo para a história europeia e Ortega o percebeu
assim, como um momento de “giro decisivo” tanto na história europeia quanto na
espanhola (Ibid, p.20). “Qualquer observador bem informado em política”, diz Villacañas,
“sabia que em 1914 o enfrentamento mundial acabaria destruindo o equilíbrio moribundo
da Restauração”. Por essa razão, diz o mesmo autor, só se pode encontrar o sentido
profundo do livro de Ortega em meio esse cruzamento de caminhos entre o horizonte
europeu e o presente espanhol cujo sentido íntimo dizia respeito à posição da Espanha
“em relação ao mundo latino e ao mundo germânico” (Ibid, p.20)
Centrar-me-ei nesse tema da relação do mundo latino e do mundo germânico na
obra de Ortega, essencialmente, em Meditaciones del Quijote, pois é a que permite uma
aproximação mais estreita com as ideias de Freyre. No ponto nº 6 da meditação
87
preliminar48 intitulado “Cultura mediterrânea”, Ortega irá tentar “transcender o casticismo
espanhol” (Villacañas, 2004, p.209). Sua abordagem não será mais de um mundo latino
em contraposição ao mundo germânico, pois para ele essa dicotomia era falsa. Ortega
irá citar Menéndez y Pelayo – a quem já me referi aqui neste trabalho – para mostrar
como o casticismo postulava a diferença entre cultura latina e germânica49. Diz ele,
“Cuando yo era muchacho leía, transido de fe, los libros de Menéndez Pelayo. En estos
libros se habla con frecuencia de las ‘nieblas germanicas’, frente a las cuales situa el
autor ‘la claridad latina’” (Ortega y Gasset, 2012, p.126). Para Ortega, “essa leitura
resultara insuficiente”, por isso, ele “rejeita a contraposição entre nieblas germanicas e
claridad latina” (Marías, 2012, p.126). Desde essa recusa, irá posicionar o problema a
partir de uma outra dicotomia, entre cultura mediterrânea e cultura germânica.
A proposta de Ortega está baseada na doctrina de las almas de Spengler
(Villacañas, 2004, p.209). Doutrina essa, por sua vez, que fora tratada por Wilhelm
Worringer em sua obra La esencia del estilo gótico, na qual aborda a arte gótica com
expressão suma do mundo germânico50 (Ibid, p.209). Desde esse referencial, Ortega irá
refutar a ideia de cultura latina, para ele um conceito “confuso e hipócrita” (Ortega y
Gasset, 2012, p.131), e dirá expressamente que “há, não uma cultura latina, senão uma
cultura mediterrânea” (Ibid, p.131). Ortega irá dizer que o mito da latinidade existia para
fazer com que “franceses, italianos e espanhóis” se pensassem herdeiros da civilização
helênica, o que, para ele, é falso. A latinidade nesses povos é romana e Roma fora
essencialmente uma civilização mediterrânea, herdeira de Creta e não dos valores
gregos. Em Creta desemboca a civilização oriental e se inicia outra que não é a grega
(Ibid, p.131). Ortega chega a afirmar que nas batalhas entre Roma e Cartago, as
guerras púnicas, houvesse sido a segunda a vencedora, não teria havido grande
diferença, pois “ambas estaban del alma helénica a la misma absoluta distancia” (Ibid,
p.131). O que Ortega quer dizer aqui é que a fisionomia dos povos que se desenvolveu
48
O livro possui a seguinte estrutura: está dividido em três partes, sendo a primeira um prólogo intitulado Lector; a segunda chama-se Meditación preliminar; e a tarceira, Meditación primera (Breve tratado de la novela). 49
É esse o sentido do casticismo que se faz notar nos intelectuais da geração de 98. A diferença entre hispanidade e europeísmo baseava-se nessa separação entre latinidade e germanidade. Por isso, para esses autores, era preciso buscar dentro da própria Espanha a “regeneração” e não tentar encontrá-la na Europa racional e materialista. Em autores como Unamuno e Ganivet, a especificidade hispânica terá, ainda, uma relação íntima com a influência oriental que, como expliquei, manifestava-se por meio do misticismo de influência muçulmana e do espírito peninsular que aproximava Espanha de África. 50
Essa relação direta entre gótico e germânico não passou despercebida por Gilberto Freyre. Em Casa-grande e Senzala, ao falar sobre a diferença entre o ibérico e o europeu, irá ressaltar os traços menos góticos e mais semitas do ibérico.
88
a norte e sul do mediterrâneo não era distante. Estavam ambos englobados na mesma
cultura, a mediterrânea.
Por isso, para ele, “a cisão que se tentou fazer do mundo mediterrâneo”, ou seja,
a dicotomia entre norte da África e sul da Europa, era um erro de perspectiva histórica.
(Ibid, p.132). As ideias de África e Europa teriam nublado a percepção dos historiadores
que não teriam percebido que, quando se formou a cultura mediterrânea, não existiam
nem África nem Europa como unidades conceituais. É apenas depois, quando os povos
germanos entram “no organismo unitário del mundo histórico” (Ibid, p.132), que a
Europa irá efetivamente começar. Então, a África irá nascer como a “não Europa”. A
partir daí, Itália, França e Espanha serão germanizadas e a cultura mediterrânea deixará
de ser uma realidade pura (Ibid, p.132). Conviverão nelas, portanto, aspectos do caráter
germânico e mediterrânico. Quando, séculos mais tarde, as ideias platônicas
despertarem, fá-lo-ão já dentro dos “crânios” germanos de Galileu, Leibniz, Descartes e
Kant (Ibid, p.132).
Nesse sentido, a cultura mediterrânea que Espanha herdou de Roma já não seria
uma realidade pura. Com a germanização e o surgimento da “Europa”, há no espanhol a
mistura do caráter mediterrânico e do germânico. A cultura mediterrânea teria sido pura,
para Ortega, até as invasões bárbaras, mas, desde então, “Italia, França, Espanha
estão encharcadas de sangue germânico” (Ibid, p.134). “Somos raças essencialmente
impuras”, dirá Ortega (Ibid, p.134). Esse enquadramento da teoria das raças51 permite a
Ortega afirmar que espanhóis, e europeus em geral, são “razas caos” em cujo “seio se
somam influências germânicas débeis, que apontam em direção à claridade conceitual,
junto a fortes influências mediterrâneas, que empurram em direção à confusão
conceitual e à claridade da impressão sensível” (Villacañas, 2004, p.121-122). O
fundamental para Ortega, portanto, é que no espanhol há traços tanto germânicos
quanto mediterrâneos e cada um deles se manifesta de forma distinta. A produção
ideológica levada a cabo na Espanha, desde a Idade Média, teria sido, no entanto,
fundamentalmente mediterrânea (Ortega y Gasset, 2012, p.134). Ortega quer sublinhar,
dessa forma, que Espanha tem sido marcada mais essencialmente pelos traços
mediterrâneos – a sensualidade, o impressionismo, a preferência pela superfície e
aparência das coisas. Os mediterrâneos não pensam claramente, veem claramente
51
Bastos (2003) sugere uma aproximação importante entre a perspectiva das raças de Ortega e a de Freyre. Para ela, a desconfiança de Ortega em relação a uma articulação mecânica entre raça e cultura é retomada e aprofundada por Freyre.
89
(Ibid, p.136). Entretanto, os traços germânicos, do pensamento claro, da preferência
pelo conceito preciso, também estão presentes na alma espanhola, ainda que quase
imperceptíveis.
A partir dessas ideias, Ortega y Gasset irá propor uma solução para o “problema
de Espanha” (europeísmo x hispanidade) distinta daquela que oferecem os autores da
geração de 98. A regeneração de Espanha não passa por uma escolha entre os valores
hispânicos ou europeus, tampouco passa pela busca das tradições profundas, como
propõem Unamuno e Ganivet. “Ortega pede uma colaboração, uma mestiçagem dir-se-
ia agora, dessas duas almas [mediterrânea e germânica], a pictórica e a meditadora”
(Villacañas, 2004, p.123). A solução para os problemas de Espanha encontrar-se-ia em
uma síntese das qualidades impressionistas mediterrâneas, que permitem Espanha ver
de uma forma artística única, e da profundidade conceitual germânica, que se
verdadeiramente explorada pela alma espanhola, permitiria a Espanha pensar com
claridade. Essa síntese, no entanto, não acontece sem hierarquia de valores. O mais
importante, para o Ortega formado na filosofia alemã, é o conceito e, portanto, os traços
germânicos, europeus (Ibid, p.124). Espanha deve, sobretudo, despertar seu instinto de
claridade, a ambição pela claridade (Ibid, p.124). A predominância do conceito justifica-
se pelo fato de que ele é o instrumento necessário para que o mundo seja submetido. O
conceito ordena o mundo em relações estáveis, oferece uma base sólida de progresso,
dá segurança e firmeza para o olhar e para a vida. Sem o conceito, a Espanha não terá
poder algum e, sobretudo, não terá poder sobre si mesma (Ibid, p.123). A
predominância alcançada pela civilização ocidental teria, nesse sentido, relação direta
com essa preponderância do caráter germânico da dominação da vida por meio do
conceito, da claridade resolutiva que a posse total das faculdades racionais ensejava e
que permitia uma separação completa entre natureza e cultura.
Ortega não propõe, no entanto, uma exclusão, senão uma síntese (Ibid, p.124).
Não se trata de abrir mão dos valores hispânicos, senão integrá-los com os europeus,
uma vez que ambos já fazem parte da alma espanhola como a ideia de fusão entre
cultura mediterrânea e germânica sugeria. O caminho dessa integração seria, para
Ortega, o Quixote de Cervantes. Somente o Quixote permitiria à Espanha integrar-se à
realidade europeia sem “cair nas mãos de um espírito estrangeiro” (Ibid, p.125). Ou seja,
ao aceder à realidade europeia e incorporar-se a ela, Espanha precisaria de um
fundamento que a mantivesse ligada a outros de seus próprios valores, tal alicerce seria
o Quixote. Não irei aqui explicar como Ortega promoverá a integração entre Espanha e
90
Europa por meio da reivindicação de O Quixote, pois isso demandaria um esforço de
muitas páginas que me afastaria do objetivo deste trabalho. Limito-me a enfatizar que o
retorno à obra de Cervantes confere a Ortega o caráter de renovador da tradição
hispânica de pensamento enfatizado por Freyre.
Nesse sentido, tanto Unamuno e Ganivet quanto Ortega y Gasset reportam-se,
em seu pensamento, às tradições hispânicas profundas, ainda que, em cada um deles,
o significado dessa “tradição” tenha conteúdos distintos. De fato, ao enfatizar a
predominância do conceito sobre o olhar, a supremacia da claridade germânica sobre o
impressionismo hispânico, Ortega acaba posicionando-se antes como defensor da
modernidade do que da tradição, se tomarmos a antítese entre modernidade e tradição
estritamente a partir de como o pensamento racionalista a enquadra. No entanto, Ortega
não deixa de ser um defensor de certa tradição hispânica, aquela que para ele se
encontra essencialmente em O Quixote de Cervantes, capaz de conectar Espanha com
o “mundo moderno”. A preocupação com a obra de Cervantes não é, entretanto,
exclusividade de Ortega. Outros autores da geração de 98 já haviam se ocupado dela.
O tema aparece em Unamuno, no seu livro Vida de Don Quijote y Sancho, em Azorín,
com La ruta de Don Quijote, e em Ganivet, que dedicara páginas de seu Idearium para
abordar o tema cervantino. Nesse sentido, Villacañas sugere que talvez não se deva
falar em uma geração de 1914, uma vez que o cosmos intelectual e as inquietudes de
Ortega eram as mesmas daqueles “grandes homens de 1898”. Ademais, o próprio
filósofo via-se como sendo daquela mesma geração, como uma espécie de “irmão mais
novo” (Villacañas, 2004, p.19). Deixando de lado discussões acerca da correção ou não
da utilização da ideia de geração para diferenciar autores espanhóis, o que me importa
mais especificamente é mostrar como o universo intelectual de todos esses autores era
o mesmo, o que implicou em sua apreensão por Freyre como um sentido de unidade,
que lhe permitia pensá-los como renovadores do que ele chamava de “ciência hispânica
do homem”.
Tal ciência seria o caminho para reaproximar as culturas científica e humanista,
separadas pelo triunfo do positivismo, ao qual se seguiu um “PhDeísmo” de origem
germânica que, posteriormente, passou também a ser dominante nos Estados Unidos
(Freyre, 2001, p.118). Para Freyre, esse “PhDeísmo” era o símbolo de uma
especialização estéril que havia abandonado as possibilidades de pensamento crítico
que o humanismo oferecia. O futuro, que reclamava uma importância cada vez maior
91
para as ciências físicas e naturais, não poderia mais prescindir dos saberes
humanísticos ou sacrificá-los em razão da busca pela objetividade máxima.
A incorporação à sociologia dessa ciência hispânica, mais inventiva, poética,
compreensiva e humanista, era tarefa a que se propunha Freyre, pois, para ele, Ortega
y Gasset, Unamuno e Ganivet eram, “em seu modo de considerar o Homem”, tão
sociólogos como humanistas. Considerá-los como sociólogos seria possível, pois “a
Sociologia é uma mansão com muitas portas”, diz o autor pernambucano (Ibid, p.119),
capaz de absorver muitas perspectivas. Seria preciso esforço e inventividade para que a
sociologia deixasse de ser o mero cientificismo a que foi reduzida. Mais necessária
ainda seria essa inventividade se o que se busca é uma sociologia relevante para
compreender o futuro. “Os futuros humanos”, diz Freyre, “não se deixam estudar em
laboratórios. Nem através de ciências técnicas chamadas objetivas de verificação. De
onde a necessidade do futurólogo recorrer a métodos imaginativos e compreensivos”
(Ibid, p.119).
92
3 HISPANIDADE, HUMANISMO E FUTUROLOGIA: A REABILITAÇÃO DO APENAS
MODERNO
Repugna a alguno de nosostros, hispanos, un presentismo con pretensiones de modernismo que ignore sus dimensiones de tiempo más allá
de lo inmediatamente actual o de lo apenas moderno. (...)
Lo que es historia – o tradición – es historia – o tradición – proyectada en un presente que a cada instante se proyecta en el futuro.
Gilberto Freyre
Este último capítulo pode ser considerado, todo ele, uma conclusão desta
monografia e, nesse sentido, tem fundamentalmente dois objetivos. Em primeiro lugar,
tornar mais clara a relação entre futurologia e hispanidade. Em segundo lugar, mostrar
como, por meio dela, Freyre pode sustentar sua posição metodológica com a qual
propõe outra forma de aproximação à sociologia. Ambas essas ideias já estão sugeridas
nos capítulos anteriores. Pretendo aqui apenas aprofundá-las. Como mencionei no
primeiro capítulo, Merquior (2001, p.14) apreende bem aquilo que subjaz ao
pensamento freyriano no livro que é objeto deste trabalho: “Além do apenas moderno
contém um verdadeiro exame de consciência da metodologia sociológica”. No capítulo
passado tentei mostrar como em Além do apenas moderno, Freyre reivindica uma
identidade cultural hispânica como uma das formas de afirmar a singularidade da
experiência histórica brasileira. “Somos os brasileiros”, como diz ele, “uma gente
hispânica sendo também uma gente situada no trópico e localizada na América” (Freyre,
2001, p.36). A mobilização dos argumentos de Américo Castro, para quem diferentes
complexos civilizacionais, como o hispânico, o germânico ou o francês, orientam-se a
partir de distintos impulsos vitais, auxilia a pensar a proposta de Gilberto sobre a
singularidade dos hispanos.
Ao enfatizar nossa identidade cultural hispânica, e reforçá-la como depósito de
um percurso histórico muito singular, entendo que Freyre esteja buscando encontrar um
espaço que lhe permita explicar a persistência de traços tidos como tradicionais, que
conformam tão intimamente nossa experiência sócio-histórica – a religiosidade mística,
a ligação simbiótica com a natureza expressada na ideia freyriana de tropicalidade, a
ausência de uma racionalidade estritamente burguesa, o personalismo e o
patriarcalismo que borravam as fronteiras entre público e privado e que davam o tom de
nossas relações sociais –, sem que ela seja enquadrada como um “desvio” da
experiência das sociedades modernas centrais. Para fazê-lo, Freyre precisa mobilizar
outras referências cognitivas que não aquelas do discurso sociológico da modernidade.
93
A reivindicação de uma “ciência hispânica do homem” é elemento chave desse
empreendimento freyriano.
A pós-modernidade assume, por essa razão, uma coloração muito particular em
Além do apenas moderno. Ela se constitui no momento histórico em que certas
tradições hispânicas, em especial sua concepção de tempo, o tempo tríbio, e sua
ciência humanística, poderiam e deveriam ser recuperadas. Em uma acepção ampla, na
verdade, não seria apenas para os hispanos que a pós-modernidade significaria um
momento de recuperação de certa tradição. Ao analisar seu tempo, Freyre percebe,
inclusive, que já haveria uma tendência para recuperação de “arcaísmos” naqueles
países de capitalismo avançado, as sociedades modernas centrais, em que a crescente
automação já permitia um gozo mais despreocupado do tempo e em que se poderia
também perceber em certos comportamentos o regresso de atitudes “romanticoides”
(Freyre, 2001, p.66). Esses países estariam à frente no processo de pós-modernização.
No entanto, países hispânicos como o Brasil podem rapidamente incorporar-se a esse
processo, pois, para nós, “a pós-modernização é uma questão de memória” (Merquior,
2001, p.14).
Para entender a pós-modernidade – ou, talvez melhor dizendo, para chegar a ela
– Freyre utiliza um recurso que irá buscar exatamente nas tradições de seu referente
cultural. É a futurologia, prática que lhe permitiria pensar passado, presente e futuro a
um só tempo. Essa futurologia seria a forma natural de fazer ciência de alguém que vive
numa tradição em que o tempo é tríbio. Ela é a sistematização científica de um impulso
natural em direção ao futuro daquele que, de certa maneira, já vive nele. Futuro
nostálgico e de esperança, como diz o autor pernambucano, futuro íntimo, que remete à
“intra-história” de Unamuno (Freyre, 2001, p.29), não o futuro utópico que desconecta o
porvir daquelas tradições mais íntimas de um povo.
A concepção de futurologia que Freyre elabora em Além do apenas moderno não
pode ser dissociada de como ele concebia, mais especificamente, a sociologia e, de
forma mais geral, o próprio conhecimento. Sua ênfase no saber que não esteja baseado
numa clara diferenciação entre razão e sentimento tem visivelmente, como tentei
demonstrar no capítulo anterior, forte influência espanhola, sobretudo de autores como
Miguel de Unamuno e Ángel Ganivet. A futurologia emergiria como um desdobramento
natural de uma forma compreensiva de se fazer ciência social, na qual elementos
estéticos, poéticos e intuitivos gozam de tanta importância quanto àqueles mais
94
estritamente racionais, como análise empírica, observação de dados e verificação de
hipóteses. Não há hierarquia entre essas duas abordagens, conquanto pareça que
Freyre dê mais importância à inventividade, à imaginação, à poesia. Ciência social essa,
acrescente-se, que seria um desdobramento espontâneo do humanismo científico com
raízes hispânicas. Humanismo de Juan Luis Vives e Baltasar Gracián que, em vários
sentidos, teriam se antecipado aos sociólogos e antropólogos modernos (Freyre, 2001,
p.41).
No quadro analítico proposto por Freyre, portanto, do Humanismo científico
emergiria uma ciência social compreensiva com uma tendência natural para a
futurologia. Não se trata, no entanto, de pensar um futuro utópico, aquele que se
projetaria como momento vindouro de segurança social e conforto físico fechado a todos
os “desvios da rotina” (Freyre, 2001, p.35) de uma sociedade moderna e racional que
teria atingido o gozo pleno de todas as suas faculdades mentais e logrado amplo
domínio e, por isso, separação da natureza. Esse não é o futuro para Gilberto, é o futuro
pensado desde “as mitologias profanas (burguesas, iluministas, marxistas) do progresso
linear” (Merquior, 2001, p.10). O futuro do autor pernambucano e, portanto, sua
futurologia são de outra ordem. O futuro é, como sugerido na epígrafe que abre este
capítulo, a tradição – que Freyre utiliza como sinônimo de história – projetada para o
porvir. A mesma tradição que Unamuno buscava encontrar com sua intra-história –
história profunda de um povo, seu inconsciente onde estão entranhadas suas
tendências mais íntimas –, agora utilizada por Freyre para encontrar o intra-futuro, o
“futuro íntimo” de uma sociedade.
Neste último capítulo de meu trabalho, portanto, irei retomar o tema da
futurologia, com o qual iniciei este trabalho, a fim de aprofundar sua compreensão
aproximando-o da concepção de hispanidade que abordei no capítulo anterior. O elo
que conecta ambas está na ideia de intra-futuro que tentarei tornar mais claro. A partir
dessa aproximação, buscarei refletir sobre o projeto epistemológico de Freyre que
subjaz ao argumento do livro. Em um segundo momento, irei recuperar muito
pontualmente a reflexão que iniciei a esboçar no capítulo anterior, de que o Além do
apenas moderno poderia ser compreendido como um arielismo, ideia que se reporta a
uma tradição de pensamento do ensaísmo latino-americano iniciada com o livro Ariel de
José Enrique Rodó.
95
3.1 Intra-história e intra-futuro: do passado profundo ao futuro íntimo
O argumento central de Além do apenas moderno, como já repeti algumas vezes,
consiste na ideia da efemeridade do moderno, de seu caráter contingencial. Freyre não
pensa a modernidade como etapa histórica necessária de superação da tradição, pois,
para ele, o passado nunca pode ser completamente superado. Nesse sentido, ao pensar
o futuro, Gilberto não se apoiará nas utopias modernas do progresso linear (Merquior,
2001, p.10), uma vez que o espírito pós-moderno – esse espírito do futuro que, ao
contrário do efêmero moderno, prolonga-se indefinidamente –, em sua concepção, não
está preso à “crença na idade áurea futura” (Ibid, p.10). Não há no raciocínio freyriano,
portanto, fim da História52. Pelo contrário, há continuidade, há retorno ao passado, há
retomada de certas tradições. Passado, presente e futuro estão plasmados em sentido
de contiguidade.
Assim, Freyre irá dizer:
“Pode-se dizer do futuro (...): ele é, em grande parte, criado pelo homem. Plasmado, em parte, por nós. Esculpido em pelos que, sendo presente e sofrendo influências do passado, concorrem para que o futuro tome formas que correspondam a desígnios que, atendendo a novas situações, excedam as experiências de tempos já vividos, sem repudiarem de todo tais experiências. Pois o Homem não é um ser sem antecessores: ele continua a ação, a cultura, a obra de antecessores, mesmo quando se rebela contra algumas das criações dos seus antecessores, destruindo-as para substituí-las” (Freyre, 2001, p.109)
Ora, o homem do futuro continua a obra de seus antecessores do passado, ainda
que destrua e substitua algumas de suas criações. Entendo que nessa passagem
Freyre esteja se reportando ao projeto moderno, iluminista e racionalista, de que se
poderia deixar para trás todas as amarras da vida antiga e arcaica a partir de um
domínio completo das faculdades racionais que se transformaria, consequentemente,
em controle da natureza. Subjaz nessa ideia a concepção de um futuro de progresso e
bem-estar contínuo. Freyre rejeita esse futuro, pois o passado imaginado por aqueles
que defendem essa utopia racional não é o mesmo passado que pensa Gilberto.
O passado não é sinônimo de arcaico ou de atraso. Várias vezes neste trabalho
mostrei como, pelo contrário, Freyre considera como “arcaico” o apenas moderno. O
novo, o futuro, é o pós-moderno. Nesse sentido, Gilberto sugere que já não haveria mais
no mundo um “modernismo ingenuamente convencido”, como fora costume em
modernismos anteriores, de que seja “redentor, messiânico, decisivo em termos
52
Refiro-me aqui, essencialmente, à ideia de Francis Fukuyama em seu livro “O fim da história e o último homem” em que defende o triunfo definitivo do liberalismo político e econômico, ou, em outros termos, da modernidade ocidental.
96
absolutos” (Ibid, p.72). Os modernos atuais já não se sentiriam “de todo firmes na sua
oposição total a valores e normas do passado nem estão certos de ser seu modernismo
capaz de qualquer duração” (Ibid, p.72). Assim, o passado pode retornar em toda sua
vitalidade.
Um dos principais elementos desse retorno ao passado em Além do apenas
moderno se encontra na reivindicação da ciência hispânica, por meio da qual Freyre
pode também questionar o discurso sociológico da modernidade, uma vez que a
sociologia teria desempenhado um papel fundamental em sedimentar um modernismo
ingenuamente convencido de ser messiânico, como afirma Freyre em sua crítica ao
moderno. Ao reclamar essa ciência hispânica, Freyre irá retomar autores hispanos como
Miguel de Unamuno e Ángel Ganivet, conforme tentei explanar no capítulo passado.
Um dos aspectos em que a relação de Além do apenas moderno com o
pensamento de Miguel de Unamuno fica mais evidenciada é na reivindicação da intra-
história como equivalente sociológico daquilo que Freyre postulava atingir com a
futurologia. Retomo excerto do prefácio de Gilberto ao livro em que essa associação
aparece de maneira clara
“Impossível deixar de ser a sociologia projetiva ou futurológica uma sociologia, em grande parte, de compreensão e até de imaginação compreensiva, que se exprima mais através de palavras – símbolos aproximativos – do que de números estatísticos, exatamente descritivos, embora não sejam a estatística, a linguagem matemática, o número, instrumentos que o futurólogo deva ou possa desdenhar. Apenas não é desses instrumentos que principalmente tende a depender a futurologia mais animada do desejo de penetrar no que se possa considerar, no futuro do homem, o equivalente sociológico daquilo que Unamuno, com relação ao passado, considerava “intra-história”; e que venha a denominar-se – deixemos aqui a sugestão – intra-futuro. Futuro íntimo. Futuro interior”. (Freyre, 2001, p.29).
É preciso primeiro entender o que vem a ser a intra-história para Unamuno a fim
de, então, compreender o que Freyre propõe com a ideia de intra-futuro. Segundo
Mariano Gómez (2003, p.56), “mediante o conceito de intrahistoria Unamuno pretende
inquirir o verdadeiro ser ou a essência da história mesma, tarefa equiparável a que em
geral sempre se há proposto a ontologia, investigar o autêntico ser das coisas, por cima
ou mais além de seu aspecto simplesmente aparente estabelecendo uma delimitação
clara entre o essencial e o fenomênico”. Nesse sentido, para esse autor a intra-história
de Unamuno busca representar “o verdadeiro conteúdo, a entranha ou a interioridade da
própria história” (Ibid, p.55). Ela não supõe, no entanto, uma “negação da história, a
menos que se trate da negação do caráter supostamente superficial, transitório ou
97
irrelevante da história”, pois a intra-história é, pelo contrário, a revelação do ser
autêntico da história (Ibid, p.55).
Penso ser fundamental entender em que contexto Unamuno propõe essas suas
ideias sobre a intra-história. O tema irá aparecer pela primeira vez, na obra do filósofo
basco, em uma série de ensaios publicado em 1895 e que serão republicados em 1902
na forma de um livro intitulado En torno al casticismo. No capítulo passado, quando
apresentei alguns autores espanhóis que influenciaram Freyre mais decisivamente,
expliquei brevemente o contexto espanhol de fin de siècle, no qual os debates sobre o
nacionalismo, a tradição e o futuro de Espanha, temas estes que se mesclavam no
universo da oposição entre hispanismo e europeísmo, davam o tom das discussões. É
dentro desse contexto, portanto, que a obra de Unamuno, bem como sua concepção de
intra-história, pode ser mais significativamente compreendida.
Nessa obra especificamente, En torno al casticismo, Unamuno realiza uma crítica
aguda aos “apologistas da Espanha castiça” (Rabaté, 2014, p.55); os conservadores; os
“desenterradores tradicionalistas” como Marcelino Menéndez y Pelayo; as vozes de um
“Espanha imortal” que exaltam uma “tradição eterna” moribunda buscada em um
“passado empoeirado”; os que celebram as glórias passadas que Unamuno qualifica
justamente como as “maiores vergonhas” de Espanha (Ibid, p.55,56). Lembre-se aquilo
que comentei no capítulo passado, que a ideia de regeneracionismo, tornada
preponderante especialmente a partir do “desastre de 98”, que apontava para a ideia de
Europa como solução de todos os problemas espanhóis, havia gerado uma “reação
castiça” que se manifestaria em vários autores desse período, inclusive em Unamuno
que também irá abordar o tema da “Espanha eterna”, sobretudo nesse seu ensaio
chamado En torno al casticismo.
A Espanha eterna de Unamuno será, no entanto, completamente diferente
daquela apregoada pelos casticistas. O filósofo basco defenderá outra tradição
espanhola e o fará já no início de seu ensaio cujo primeiro capítulo tem justamente o
título La tradición eterna. O tema da intra-história é fundamental na construção do
argumento empreendido por Unamuno, que “forja [esse] conceito opondo-se à tradição
conservadora espanhola” (Ibid, p.56). O livro En torno al casticismo pode ser visto,
dessa forma, como “um gesto de claro desafio aos tradicionalistas”, dos quais Unamuno
procura usurpar a propriedade do conceito de tradição, e também como intento de
“suscitar escândalo entre os doutrinadores do progresso” (Juaristi, 1997 apud Rabaté,
98
2014, p.59). Ou seja, no embate entre hispanismo e europeísmo, Unamuno irá se
colocar ao lado do primeiro sem, no entanto, aderir às posições castiças que
dominavam o terreno da hispanidade. Sua posição demandará uma outra apreensão da
ideia de tradição que será concebida, sobretudo, firmada na concepção de intra-história.
Unamuno faz uma analogia entre história e oceano que Bastos (2003, p.154)
apreende bem. Dirá ela que “Unamuno compara a história à superfície do mar, mais
visível recebendo a luz do sol e mais perceptível pelo ruído das ondas. Porém, essa
superfície se sustenta sobre o mar profundo; essas fundas camadas, agindo sem ruído,
sem receber a luz do sol, são comparadas à intra-história”. A alma castelhana, cuja
investigação é o propósito dos ensaios publicados originalmente em 1895, encontrar-se-
á nesse mar profundo. É preciso reportar-se à intra-história, portanto, para
verdadeiramente conhecê-la. Assim, os dois objetivos fundamentais de En torno al
casticismo serão explorar a “alma espanhola” e “conceber e ensinar de outra maneira a
História”. A verdadeira complexidade espanhola só poderia ser encontrada dessa
forma53 (Rabaté, 2014, p. 55,56).
A intra-história deverá, portanto, a fim de encontrar a verdadeira alma castelhana,
investigar as obras do espírito como a literatura, el romancero, el refranero, la
demótica54, as verdadeiras manifestações da alma da nação, do espírito de seu povo
(Ibid, p.57). Será, no entanto, preciso superar os limites e as barreiras da história
tradicional para atingir esse objetivo. Assim, Unamuno irá apontar sua crítica para a
história dos acontecimentos, a história erudita da nação empreendida pelos Menéndez y
Pelayo, que deverá ser superada para que emerja a história profunda e viva do povo
espanhol, a intra-história (Ibid, p.58).
A metáfora do oceano irá ilustrar bem a forma como Unamuno pensa a intra-
história. Nos mares profundos da história encontrar-se-á el pueblo campesino humilde y
callado, profundezas essas não buscadas pela historiografia tradicional, que se
53
Segundo Rabaté (2014, p.13), alma castellana deveria ter sido o título do livro publicado em 1902 que reunia todos os ensaios publicados originalmente em 1895. No entanto, naquele mesmo ano, Azorín lançara um livro exatamente com o mesmo título, Alma castellana, o que impossibilitou sua utilização por Unamuno, que terminou por nomear sua obra En torno al casticismo. A ideia de alma aqui se reporta, sobretudo, ao sentido de espírito de um povo, da concepção alemã de Volkgeist, cuja influência sobre a conformação dos nacionalismos do século XIX foi enorme. 54
O romancero refere-se ao conjunto literário espanhol cujo início poderia ser encontrado nos cantares de gesta medievais. O poema Cantar del mio Cid, escrito no século XII, seria o mais importante cantar de gesta espanhol conhecido. O romancero seria, portanto, toda a tradição literária que parte desde aí. Já o refranero faz alusão ao conjunto de ditos populares, expressão da ancestral sabedoria popular. E a demótica é, para Unamuno, a ciência do folclore (Rabaté, 2014, p.83).
99
concentra nas superfícies, “que privilegia em excesso os documentos escritos, os feitos
estabelecidos cientificamente” (Ibid, p.57,58). O filósofo basco irá, pelo contrário,
sustentar sua preferência “por historiadores artistas” como François Guizot e Jules
Michelet55, que “sustentavam as bases de uma história integral, total, das estruturas”
(Ibid, p.59). A intra-história será, assim, pensada como o elo entre passado e presente
que representa as estruturas de continuidade. “O campesinato com suas tradições, suas
lendas, seus romances, sua demótica, seu idioma oferece [à Unamuno] o substrato de
uma riqueza cultural cujo estudo pode contrapor a escrita da História oficial” (Ibid, p.74)
Em Além do apenas moderno, Freyre também irá, em muitos momentos, apontar
sua preferência pelos historiadores-artistas ou sociólogos-artistas, que são científicos
sem deixar de ser poéticos, que conseguem captar uma história social total, história dos
sentimentos, inclusive. Essa preferência, que aparece de forma explícita várias vezes no
livro, não é, no entanto, algo novo para Freyre. O método utilizado pelo autor
pernambucano sempre privilegiou essa forma de abordagem, que poderia ser chamada
de não convencional. Sua preferência por “novos objetos” de pesquisa são uma marca
de toda sua obra, em que versou, com um olhar historiográfico e sociológico, sobre
temas tão diversos como arquitetura vernacular, a história social da rede e da cadeira de
balanço, a história da alimentação, a vida sexual, a infância, enfim, temas do cotidiano
social (Burke, 1997). Essa forma de fazer história aproxima-se muito daquela que tentou
empreender Unamuno.
Nesse sentido, Bastos (2003) aponta semelhanças entre o projeto intra-histórico
de Unamuno e o método sociológico freyriano que considero fundamental ressaltar. Em
primeiro lugar, em relação à importância da linguagem no projeto de ambos os autores.
Para Unamuno, “a linguagem popular ou intraliterario56 reflete a alma de um povo, jaz
debaixo das formas esgotadas de um casticismo abafador” (Rabaté, 2014, p.82). A
língua teria sofrido com a “inquisição” das formas eruditas que favorece o uso de
“conceitos desencarnados” nos quais predominam o “purismo casticista” (Ibid, p.82).
Assim, Bastos (2003, p.163) aponta que Unamuno insiste que é preciso “levantar a voz
55
A mesma admiração por Michelet será encontrada também em Freyre. Peter Burke (1997) sustenta que a influência de Michelet é uma das pontes que aproxima a “nova história” da École des Annales e a “história social, psico-história ou antropologia histórica” de Freyre. Unamuno está, portanto, inserido nesse mesmo universo de preocupações históricas que conecta Gilberto com os Annales. 56
Unamuno se valeu muitas vezes do prefixo intra para expressar a essência de seu projeto intelectual. Segundo Gómez (2003, p.55), “intra-historia es concreción de um término genérico, de lo que es ‘intra’, valga decir, de lo que representa la interioridad o núcleo fundamental de algo. Unamuno habla de intra-historia, pero también de linguaje intra-literario, de lo intra-científico, de intra-filosofía, de lo intracuantitativo y también de lo intra-conciente”.
100
frente ao purismo casticista que no afã de defesa da língua acaba por solapar todo e
qualquer empenho de renovação não só dela como da sociedade”. Ainda segundo
Bastos (Ibid, p.163), “esse também é um ponto fundamental na reflexão freyriana”.
Em Casa-grande & Senzala, Freyre irá, a partir da influência de Boas “que
apontava o caráter inconsciente dos fenômenos linguísticos”, mostrar a “articulação
entre linguagem popular e relações sociais” (Ibid, p.163,164). Ele irá desenvolver “o
tema indicando uma das maneiras pelas quais os elementos da cultura negra são
transmitidos: via amas-de-leite que contam aos meninos histórias, nas quais se
mesclam heróis portugueses e africanos. Herdeiras dos akpalôs da África, as amas
operam uma fusão entre as duas tradições” (Ibid, p.164). Bastos retoma, nesse sentido,
um dos textos mais emblemáticos de Freyre em sua obra mais conhecida: “Sucedeu,
porém, que a língua portuguesa nem se entregou de todo à corrupção das senzalas, no
sentido de maior espontaneidade de expressão, nem se conservou acalafetada nas
salas de aula das casas-grandes sob o olhar duro dos padres-mestres. A nossa língua
nacional resulta da interpenetração das duas tendências” (Freyre, 1981 apud Bastos,
2003, p.165,166).
Dessa maneira, Bastos (Ibid, p.165) aproxima Freyre e Unamuno ao afirmar que
“a língua não pode ser vista apenas como forma vazia de conteúdo social”, ideia
presente em ambos os autores. Poder-se-ia dizer, portanto, que para Gilberto a língua
também expressa a intra-história, a história íntima de uma nação. Um segundo tema
que Bastos utiliza para aproximar os dois autores é o do regionalismo. Apontei
anteriormente como Unamuno, ao conceber sua concepção de intra-história, tentava
contrapor-se ao casticismo que havia tomado posse da ideia de tradição. Bastos (Ibid,
p.155) apreende bem o cerne da crítica do professor de Salamanca que entende ter
havido, no processo de construção da nação espanhola que arranca após a
Reconquista, o sacrifício da diversidade que perfazia os elementos constitutivos do povo
em benefício de “uma visão unitária de cultura, marcada pelo catolicismo e pelos
elementos de ordem moral nele contidos que serviram de sustentáculo ao poder político
centralizado”. A intra-história terá, portanto, em seu âmago essa crítica ao centralismo
que sufocou a diversidade e cujo caráter oficialista estava impresso na história erudita
que tinha em autores como Menéndez y Pelayo sua manifestação mais expressiva.
Seria natural, portanto, que a intra-história de Unamuno afirmasse as diferenças
regionais de Espanha. Com isso, Bastos aproxima-o de Freyre. Para a autora, “a ideia
101
do filósofo basco de que o homem universal emerge a partir do homem local encontra
em Gilberto um desenvolvimento enriquecido desde os textos dos anos 20 – artigos de
jornais, o Livro do Nordeste e o Manifesto Regionalista” (Ibid, p.167). Aponta, ainda, que
ambos os autores sustentam como um dever das classes dirigentes promover a
“manutenção das riquezas sociais e culturais dentro de uma orientação política que
respeite as características regionais, o modo de viver de seu povo e suas tradições”
(Ibid, p.169).
Um terceiro e último tema de aproximação entre Unamuno e Freyre destacado
por Bastos que quero realçar aqui é o aspecto mesológico. A ênfase na influência do
território e do clima nos homens e na diversidade geográfica da península foi uma
constante não apenas na obra de Unamuno, mas na de todos os autores da geração de
98. Tema esse que automaticamente se pode conectar com a ideia de tropicalidade de
Freyre. Várias vezes neste trabalho citei Sérgio Tavolaro, para quem o trópico teria sido
um elemento constante e fundamental da obra de Gilberto Freyre que servia como
argumento para demonstrar uma outra relação homem-natureza que se estabelecera no
Brasil e que atestava a singularidade de nosso percurso histórico. Relembro aqui citação
de Américo Castro que já mencionei e na qual ele destaca que, para o espanhol, o
homem e seu entorno formam uma unidade vital. É o que está presente no pensamento
de Unamuno: “É que a natureza está humanizada pelo homem que a habita e a
trabalha. As árvores são já, como os animais domésticos, algo nosso, obra nossa. E
são, por isso, espelho de nossa vida e de nosso pensar” (Unamuno, 1988 apud Bastos,
2003, p.173). A fusão entre homem e natureza é, portanto, “elemento fundamental da
intra-história” (Ibid, p.173)
Quando Freyre postula a ideia de intra-futuro para sua futurologia reporta-se,
portanto, a todas essas características da intra-história que resumidamente apontei,
fazendo, de certa maneira, referência também à sua própria obra, uma vez que a
mesma ideia de uma tradição eterna estaria presente nos seus escritos, que buscavam
apontar as persistências do caráter brasileiro por meio do uso dos mais variados
recursos metodológicos, especialmente uma historiografia de temas do cotidiano social.
A Espanha eterna de Unamuno dizia respeito aos traços profundos do povo que
persistiam no presente. Em Além do apenas moderno, Freyre irá postular com sua
futurologia que são esses traços, projetados no futuro, que devem ser pensados pelo
futurólogo. O objetivo é entender não o futuro utópico, mas o futuro íntimo, que, ao invés
de rejeitar passado e presente, conecta-se com eles.
102
Há vários exemplos de como Freyre tenta empreender esse projeto de análise do
futuro íntimo em Além do apenas moderno. Abordei-os no primeiro capítulo e cito aqui
apenas mais um para exemplificar. Trata-se da relação entre indivíduos e religiosidade.
Em vários momentos do livro, Freyre repete a ideia de que não se deve insistir na
separação entre razão e sentimento. Não se deve esperar, portanto, do homem pós-
moderno uma postura completamente racional e antimística ou antirreligiosa. Diz Freyre
(2001, p.80) expressamente, “Não é de esperar-se do homem pós-moderno que se
torne anti-romanticamente alheio ao mistério de que se vem nutrindo no passado e se
nutre atualmente a religiosidade em oposição à racionalidade absoluta. Não é de
esperar do homem pós-moderno que venha a ser um ser totalmente racional em sua
vivência, em sua convivência e em suas crenças”.
O homem pós-moderno freyriano, cujo futuro poderia ser esboçado por meio da
futurologia, não abandonará necessariamente suas tradições. Pelo contrário, ele irá
retomar certos aspectos dela. O que Freyre entendia por revolução biossocial conteria
em si vários elementos desse retorno às tradições. Nesse sentido, Freyre (Ibid, p.79) irá
dizer que “é de prever para o futuro não de todo remoto uma revivescência religiosa com
projeções de caráter ético talvez regressivo sobre atitudes e sentimentos”. Insisto nesse
argumento, pois ele me parece fundamental para a proposta de Gilberto no Além do
apenas moderno de que o pensamento moderno, sobretudo em sua versão mais
racionalista e triunfalista, que postulava o progressivo desencantamento do mundo,
equivocava-se ao tornar tradição e arcaico sinônimos. Prossigo com o argumento do
autor pernambucano.
“Qual o futuro dessas atitudes? É talvez o futuro mais difícil de ser previsto ou mesmo imaginado. Uma coisa, porém, parece certa: a permanência ou a persistência ou a projeção sobre o futuro de uma religiosidade que, atualmente, não sendo atendida pelas religiões como que clássicas que, no Ocidente, vinham sendo representadas por Igrejas grandiosamente organizadas como a católica de Roma, a anglicana, algumas das protestantes mais eruditas – como a presbiteriana – está encontrando amparo ou refúgio em religiões românticas ou romanticóides: no Brasil, como em alguns outros países, em formas mais ou menos anarquicamente – no bom sentido de anarquia – evangélicas de cristianismo, em seitas afro-europeias, ou de todo ou quase de todo africanas, na magia, na astrologia, em revivescência de cultos pagãos. O que se procura é a satisfação do pendor para o místico: um pendor romântico que vem resistindo, há séculos, às vitórias das ciências, das técnicas, dos meios racionais e anti-românticos de conhecimento em setores que, por mais importantes, não são totalmente importantes para o Homem” (Ibid, p.79,80)
O sociólogo-futurólogo que pretenda captar minimamente bem os futuros
possíveis – futuros no plural, pois, para Freyre, eles são muitos –, não pode ignorar o
aspecto da religiosidade e supor que, no porvir, os indivíduos tenderão à total
103
racionalidade e ignorarão a dimensão mística da vida. Freyre retoma, nesse sentido,
Paul Tillich57, a quem chama de “grande teólogo protestante pós-moderno”, que
sustentava que estaria se vendo o fim da “Era Protestante” em que a teologia teria se
sustentado sobre um racionalismo intelectualista. Para o autor pernambucano, teria sido
esse mesmo racionalismo intelectualista que “concorreu para a cientificização das
Ciências do Homem com sacrifício do que nelas tende a ser seu irredutível humanístico”
e para a “arbitrária simplificação do Homem em trabalhador ou produtor econômico”
(Ibid, p.244). Teologia, ciência e economia, pois, reduzidas à esfera do intelectualismo
racionalista de um pensamento moderno que tomou como valor apenas as capacidades
suscetíveis de serem racionalizadas e transformadas em lucro ou em domínio teológico
e científico da natureza e que reduziu à esfera do “não valor” todas as disposições e
características culturais que não se encaixavam no modelo desejado, transformando-as
em símbolo de “misticismo, mero esteticismo, vagabundagem” (Ibid, p.244).
Isso nos coloca de volta no problema central levantado por Tavolaro acerca do
enquadramento do percurso histórico brasileiro. Um país como o Brasil com pendores
místicos que simplesmente se recusam a desaparecer, com uma lógica de relação com
o tempo oposta àquela que favorece a acumulação de capital teria se constituído
através de uma experiência histórica que deve ser considerada como um mero desvio
daquela dos países modelares da modernidade? Entendo que é, sobretudo, a essa
questão fundamental que Freyre se reporta ao esboçar sua futurologia. É também a ela
que se dirige ao tomar como referência autores espanhóis e declarar-se um “autor
hispânico”. Gilberto buscava contestar a ideia de que nossa experiência histórica fosse
um desvio daquela dos países de modernidade supostamente avançada e o fazia por
meio da adoção de um método sociológico anticonvencional, baseado em outras
referências epistêmicas como a hispânica, que permitia que ele contestasse aquilo que
no capítulo passado chamei, baseado em Tavolaro, de discurso sociológico da
modernidade. A futurologia, de essência hispânica, seria um instrumento fundamental
dessa contestação, pois permitia Freyre pensar que o futuro não seria aquilo que a
ideologia moderna do progresso infinito pregava.
57
Paul Tillich foi um importante teólogo nascido na Alemanha, no seio de uma família luterana, cuja densa formação filosófica lhe fez ser amplamente considerado o mais importante teólogo do século XX. Tillich está entre os intelectuais alemães perseguidos pelo regime nazista que se refugiou, nos anos 30, nos Estados Unidos. Ali, foi professor do Union Theological Seminary, um dos centros de pensamento ecumênico mais importantes naquele país.
104
Bastos (2003, p.174) faz um bom resumo dos traços mais marcantes de “um
pensador de tradição ibérica”, características que Freyre teria incorporado em sua
sociologia: “o ajuste da palavra à personalidade, a intensificação da realidade, a
invenção do real, a utilização dos mitos, um realismo que articula os fatos à experiência
e à imaginação, uma escritura assentada nas tradições do povo”. Aí estão vários rasgos
hispânicos que procurei abordar ao longo deste trabalho. O impressionismo de Ortega, o
autobiografismo de Américo Castro, a tradição eterna de Unamuno, o senequismo
(Espanha virgen e madre) de Ganivet. Traços que tornavam o pensamento hispânico,
para Freyre, tão particular a ponto de reivindicá-lo como base para sua proposta de
crítica da modernidade empreendida em Além do apenas moderno. Crítica essa que, se
avança um pouco mais a partir do emprego de novas ideias como a pós-modernidade e
a futurologia, não pode ser considerada tão distinta daquela que o ensaísta de Apipucos
já vinha empreendendo em outras obras, especialmente em sua Sociologia. Como
afirma Bastos (Ibid, p.177), ao trazer o modo hispânico de perceber a realidade ao seio
da sociologia, Freyre irá “polemizar com a maneira pela qual a sociologia vinha se
institucionalizando no Brasil”.
Na última parte deste trabalho, irei retomar o esboço de comparação entre o Além
do apenas moderno e o Ariel de José Enrique Rodó que iniciei no capítulo passado.
Meu objetivo com isso é aprofundar os argumentos deste capítulo e, ademais, sugerir
possíveis caminhos de continuidade para esta pesquisa.
3.2 Além do apenas moderno como um arielismo
Quero iniciar esta última parte do trabalho com um excerto do livro de Freyre que
me permitirá voltar a conectar com o Ariel de Rodó. Não serei exaustivo nesta
comparação, que terá como objetivo apenas assentar as bases para um caminho futuro
de estudos.
“Para certos historiadores, cujas perspectivas são pós-modernas mais do que apenas modernas, estamos diante do fim de uma Europa exclusiva ou imperialmente europeia, como marco de história humana. Essa Europa predominantemente esgotada como Europa política e economicamente imperial seria a burguesa, protestante, capitalista, laissez-fairista, intelectualista, racionalista, à parte da qual ficou a península hispânica como uma espécie de semi-Europa aparentemente arcaica e esgotada: na verdade pronta, depois de uma como hibernização sociológica, a antecipar-se à outra em pós-modernidade.” (Freyre, 2001, p.244)
Essa ideia de ser a península ibérica uma outra Europa, arcaica em relação
àquela que emerge especialmente a partir do século XVII e XVIII quando o triunfo do
racionalismo cartesiano faz surgir as sociedades modernas, tem sido uma fonte
105
inesgotável de imaginação criativa para os intelectuais latino-americanos. Pelo menos
desde Sarmiento, que, com seu Facundo, inicia aquilo que se chama ensaísmo latino-
americano cuja base se assenta, como aponta Antonio Candido (1995, p.12), em uma
“reflexão sobre a realidade social marcada pelo senso dos contrastes e mesmo dos
contrários – apresentados como contradições antagônicas em função das quais se
ordena a história dos homens e das instituições”.
Importa-me aqui aquela tradição dentro desse pensamento latino-americano que
retoma a diferença entre uma Europa ibérica e outra moderna a fim de enfatizar um
conjunto de valores da primeira que deve ser reivindicado no sentido de afirmação de
um projeto próprio e independente do projeto moderno e racional. A corrente de
pensamento inaugurada por José Enrique Rodó com seu livro Ariel deve ser destacada
dentro dessa tradição. Sua influência e importância são tais que as interpretações que
dela decorreram ganharam nome próprio: arielismo.
O recurso de comparação de Ariel com Além do apenas moderno serve-me,
sobretudo, como forma de iluminar tanto a tese central do livro de Freyre, que é sua
crítica à modernidade, quanto a forma como ele a constrói, a partir da afirmação de
contrários materializados em conjuntos civilizacionais distintos que se não são
exatamente os mesmos nas duas obras – pois em Rodó a contraposição se dá
especificamente em relação aos Estados Unidos, representantes maiores do espírito
utilitário, enquanto que em Freyre a antinomia se edifica em oposição ao que o autor
pernambucano denomina amplamente de mundo norte-europeu e anglo-saxão –
possuem o mesmo fundamento. Tal fundamento encontra-se nas distintas matrizes
culturais das Américas que remetem, no caso da Ibérica, à latinidade e, no caso da
Anglo-saxã, à germanidade.
Ariel foi escrito por Rodó em 1900 e, segundo Belén Castro (2009, p.53),
“reelabora as buscas identitárias latino-americanas oferecendo uma reinterpretação
crítica que pela primeira vez articula, organiza e dá sentido a tantas vozes e
preocupações dispersas”. Essas buscas identitárias marcadas por vozes e
preocupações dispersas se caracterizavam por ser tanto de natureza intelectual –
expressadas na obra de escritores como José Martí e Rubén Darío – quanto de
natureza geopolítica – manifestadas tanto na ideia de restauração do projeto bolivariano
de Francisco Bilbao quanto na política de panlatinismo de Napoleão III. O que se
defendia em todas essas expressões de desejo de produzir uma identidade própria para
106
a América Latina era a autonomia do subcontinente, tanto política quanto ideológica, em
face da crescente influência norte-americana.
Assim, José Martí demandava a construção de “trincheiras de ideias” que
pudessem conter o ímpeto messiânico e expansionista dos Estados Unidos cujo
fortalecimento progressivo desde o início do século XIX convertia-se em planos “pan-
americanistas” que nada mais eram que intervencionismo econômico e militar (Ibid,
p.51). O mesmo Martí alertava, ainda, contra a yanquimanía que tomava o imaginário de
tantos hispano-americanos, como Sarmiento, que enxergavam “no modelo de progresso
anglo-saxão a chave da modernização das adormecidas ex-colônias espanholas e no
yankee o protótipo do homem moderno” (Ibid, p.51). No mesmo sentido, o poeta Rubén
Darío sugeria, originalmente, em 1894, em ensaio que escreve sobre Edgar Allan Poe –l
e antecipando-se a Rodó na utilização da metáfora shakespeariana – que na outra
América era Caliban quem reinava. “Caliban reina en na isla de Manhattan, en San
Francisco, en Boston, en Washington, en todo el país. Ha conseguido estabelecer el
imperio de la materia desde su estado misterioso con Edison [...] Calibán se satura de
whisky, como en el drama de Shakespeare de vino; se desarrolla y crece; y sin ser
esclavo de ningun Próspero, ni martirizado por ningún genio del aire, engorda y se
multiplica” (Darío, 1998 apud Monteiro, 2009, p.161).
A todas essas ideias que já sugeriam uma contraposição clara e insuperável com
o “grande irmão do Norte”, seguiam-se também manifestações geopolíticas que
tornavam cada vez mais clara a contraposição entre as duas Américas. Lembre-se,
nesse sentido, que, como afirma Richard Morse (1988, p.14), “o termo América Latina
provém da França de Napoleão III (...) como parte de um discurso “geoideológico” para
a suposta unidade linguística, cultural e racial dos povos latinos, em contraposição aos
germânicos, anglo-saxões e eslavos”. O pan-latinismo de Napoleão III seria o
contraponto do pan-americanismo da Doutrina Monroe.
É, portanto, dentro de todo esse contexto que irá emergir o Ariel de Rodó. É por
reelaborar todas essa preocupações identitárias dispersas e dar-lhes uma voz e
coerência que o ensaio do uruguaio será tão influente. Um dos elementos mais
importantes que irá aparecer no texto de Rodó é a mudança de dois sentimentos que
durante as primeiras décadas do século XIX seguintes à independência dos países
latino-americanos haviam sido complementários: o desprezo contra a Espanha e sua
política colonial, responsáveis pelo atraso americano, e a admiração pelos Estados
107
Unidos, país republicano, moderno e progressista (Ibid, p.50). Quando Rodó escreve
Ariel, a transição já estava feita. Espanha, “a madrasta opressora de outros tempos [..]
começará a ser vista como a doadora de um tesouro humanístico (a língua, a arte, a
literatura) que atualiza o passado da latinidade clássica e cristã” (Ibid, p.53). A obra do
ensaísta uruguaio será talvez a obra mais expressiva desse novo sentimento.
Nesse sentido, a guerra hispano-americana de 1898 terá tantas repercussões
para o latino americanismo quanto teve para a geração de 98 na Espanha. A vitória dos
Estados Unidos e a concretização de suas pretensões imperiais sinalizavam qual seria a
tendência política para o século XX e quem seria o inimigo a ser combatido. Ariel será,
portanto, como diz Belén Castro, um livro que “nace bajo el signo del desastre”; um livro
da geração de 98 pensado e sentido desde a América Latina e “impregnado de ideias
regeneracionistas” (Ibid, p.50). Lembre-se da discussão do capítulo passado entre
regeneracionismo e casticismo. Se na Espanha a antítese entre hispanismo e
europeísmo seria um símbolo da oposição entre tradição e modernidade, na América
Latina, a mesma oposição traduzir-se-á como latino-americanismo e pan-americanismo.
A mesma crítica da modernidade e defesa da tradição encontrada em um autor como
Unamuno será vista também em Rodó. O latino-americanismo passaria a representar a
defesa das tradições clássicas e hispânicas e o pan-americanismo, a avassaladora
modernidade utilitarista estadunidense.
Não irei aqui desenvolver as ideias do Ariel de Rodó, pois isso exigiria um esforço
que tornaria este trabalho ainda mais longo. O aprofundamento dessa comparação terá
de ficar para um trabalho futuro. Meu propósito aqui, como assinalei antes, é utilizar a
obra de Rodó a fim de tornar mais compreensíveis os argumentos de Freyre. Penso que
essa pequena explicação do contexto histórico em que surge a obra do ensaísta
uruguaio sirva bem para mostrar a proximidade entre sua defesa do latino-americanismo
e a reivindicação que Gilberto faz da hispanidade.
3.3 Considerações finais
O objetivo fundamental deste trabalho era entender como emerge uma
concepção de hispanidade em Além do apenas moderno, como ela se conecta com a
proposta de uma futurologia sociológica e como, a partir dessa conexão, Freyre pode
sustentar e avançar suas reivindicações de método em sociologia. Ao reivindicar a
cultura hispânica como um dos fundamentos da identidade brasileira, entendo que
Freyre busque destacar a singularidade de nosso processo histórico, que não pode nem
108
deve ser apreendido como um mero “desvio” daquele das sociedades modernas
centrais. Para contestar esse desvio, Gilberto precisa apoiar-se em uma base
epistêmica que o permita questionar o discurso sociológico da modernidade, segundo o
qual uma sociedade deve necessariamente cumprir certos requisitos a fim de fazer a
transição da vida tradicional, onde se encontraria a negatividade e o arcaísmo, para a
vida moderna, esfera da positividade e do progressismo.
A persistência de traços da vida tradicional no processo histórico brasileiro seria
uma das causas que impedem nossa plena modernização, nossa entrada definitiva na
vida moderna por meio da qual poderíamos, finalmente, superar nosso renitente atraso.
Ao tomar como referência o que chama de “ciência hispânica do homem”, Freyre tenta
construir uma sociologia que supere essa narrativa histórico-sociológica. O tradicional
não deve ser impeditivo do alcance de uma ordem social desejável e, sobretudo, não
deve ser confundido como o meramente arcaico. A novidade que Além do apenas
moderno representa em relação a outras obras do autor pernambucano consiste na
adoção da ideia de pós-modernidade, que o permite pensar o moderno como transitório
e efêmero e o pós-moderno, como momento de retorno de certos valores tradicionais.
Esses valores são, sobretudo, uma forma humanística de se conceber a ciência e a
restauração do ócio como positividade, algo que fora perdido com o triunfo da
concepção moderna de se pensar o tempo unicamente como matéria-prima que se deve
transformar em capital.
Ao “restaurar” esses valores tradicionais essencialmente hispânicos, Freyre faz,
em certo sentido, o mesmo que Richard Morse em seu O espelho de Próspero58.
Segundo Morse, durante dois séculos um espelho norte-americano foi mostrado
agressivamente ao Sul da América e seria necessário invertê-lo para confrontar a Anglo-
América com a experiência histórica da Ibero-América. É possível usar a mesma
metáfora para o empreendimento de Gilberto em Além do apenas moderno, que
também tentaria virar o espelho que constantemente tem sido direcionado ao mundo
Ibérico – e, consequentemente, ao Brasil – a fim de demonstrar-lhe suas faltas, suas
ausências, suas incompletudes. Trata-se, portanto, de inverter essa tendência e mostrar
ao mundo anglo-saxão e norte-europeu que, no futuro que virá, as deficiências ibéricas
tornar-se-ão virtudes e as imperfeições do mundo “apenas moderno” ficarão evidentes.
58
É importante destacar que Morse está operando na mesma metáfora shakespeariana que Rodó. Seu Próspero, como ele mesmo afirma no prefácio de seu livro, inspirou-se na obra do uruguaio, mais especificamente no livro El mirador de Próspero, de 1909, em que Rodó retoma os argumentos de Ariel publicado 9 anos antes.
109
A inversão do espelho, o confronto das sociedades modelares da modernidade com a
experiência histórica hispânica, seria possível com a pós-modernidade freyriana.
A defesa de uma sociologia mais humanística, em que as palavras tenham tanto
valor quanto tabelas e números parece ser uma das virtudes desse empreendimento de
Freyre em Além do apenas moderno. Na verdade, o argumento de Gilberto não se
restringe apenas à sociologia, ainda que seu interesse maior esteja nela. O ideal crítico
das humanidades parece estar cada dia mais desvalorizado em um mundo em que
avança a instrumentalização do saber acadêmico e no qual a universidade torna-se,
cada vez mais, mero fornecedor de mão-de-obra para o mercado. Textos como o de
Freyre, que enfatizam aquilo que as ciências humanas, como um conjunto de saberes
críticos, ainda têm a oferecer ao nosso mundo, devem ser relidos e recuperados.
Em 2013, a importante revista estadunidense The New Republic59 publicou artigo
do escritor e crítico Leon Wieseltier que logo em seu início faz a seguinte afirmação:
“Has there ever been a moment in American life when the humanities were cherished
less, and has there ever been a moment in American life when the humanities were
needed more? (...) For decades now in America we have been witnessing a steady and
sickening denigration of humanistic understanding and humanistic method. We live in a
society inebriated by technology, and happily even giddily governed by the values of
utility, speed, efficency, and convenience”60. Nada tão próximo daquilo que já afirmava
Freyre 40 anos antes em Além do apenas moderno.
Um pouco antes, mais precisamente no ano de 2004, Judith Butler fazia
afirmação parecida em seu livro Precarious Life: the powers of mourning and violence,
que teve um de seus capítulos traduzido pela Revista Contemporânea, do
Departamento de Sociologia da UFSCar, no ano de 2011. Nesse texto, traduzido para o
português com o nome de “Vida precária”, Butler inicia contando que participara de um
evento em que discursava o diretor de uma conhecida editora universitária. Nesse
discurso, dizia-se que as humanidades haviam perdido sua autoridade moral e sabotado
a si mesma com todo seu relativismo, questionamento e criticismo. Em suma, as 59
A revista The New Republic é uma importante publicação estadunidense de vertente liberal com mais de um século de produção, tendo sido fundada em 1914. 60
“Houve já algum momento na vida americana em que as humanidades foram tão pouco valorizadas, e houve algum momento na vida americana em que as humanidades fossem tão necessárias? (...) Por décadas na América temos testemunhado uma constante e sórdida difamação da percepção humanística e do método humanístico. Vivemos em uma sociedade inebriada pela tecnologia, alegremente, e mesmo frivolamente, governada pelos valores da utilidade, velocidade, eficiência e conveniência” [tradução do autor]. O texto integral pode ser encontrado em: http://www.newrepublic.com/article/113299/leon-wieseltier-commencement-speech-brandeis-university-2013
110
humanidades eram, segundo a filósofa estadunidense, ridicularizadas. Segundo ela, no
entanto, “responder a esse discurso parece-me ser uma obrigação importante nestes
tempos” (Butler, 2011, p.15).
Cito esses dois exemplos apenas como ilustração da importância da perspectiva
que Freyre defende em Além do apenas moderno. A defesa do saber crítico e
humanístico que se constitui em razão de ser das ciências humanas é não apenas
necessário, mas imperativo nos dias de hoje. Se as humanidades terão alguma
relevância no mundo que virá, certamente não o será copiando modelos das ciências
matemáticas, físicas ou naturais. Como diz Butler, é como crítica cultural que as
humanidades têm algum futuro, pois é essa crítica que pode “nos fazer retornar ao
humano aonde não esperamos encontrá-lo, em sua fragilidade e nos limites de sua
capacidade de fazer sentido” (Ibid, p.32).
Essa importante virtude do livro de Freyre não pode, no entanto, ocultar alguns de
seus problemas. Entendo que os principais e mais destacáveis sejam sua rejeição
completa do marxismo e o problema do conservantismo, tantas vezes criticado, que a
ideia de recuperação da tradição pode ensejar. Não entendo que esse conservadorismo,
particularmente, deva ser imediatamente refutado; todavia, tanto no texto de Rodó
quanto no de Freyre, muitas vezes, transparece um certo elitismo na concepção de um
ócio humanístico desinteressado que despreza a massificação do mundo moderno que
deve ser mais bem problematizado. Entendo que é possível fazer uma crítica justa a
esses problemas sem, no entanto, desprezar a unidade do livro e sua importante crítica
ao modernismo vulgar que tomou como desvio todo o percurso histórico que não se
encaixava naquele dos países centrais da experiência moderna.
A rejeição do marxismo e, consequentemente, de uma análise cuidadosa das
relações de classe faz com que Freyre tenha uma visão um tanto quanto idílica do
futuro. O mundo que emergiu da última crise do sistema capitalista certamente não é
aquele que descreve Freyre, em que o ideal do ócio triunfaria sobre o do negócio. Nosso
tempo vivido e experimentado continua sendo o do time is money e parece ser cada dia
mais difícil dele desvencilharmo-nos. Nesse sentido, um importante contraponto crítico à
obra de Freyre poderia ser encontrado no ensaio do escritor norte-americano, e
professor de teoria da arte na Universidade Columbia, Jonathan Crary intitulado 24/7
Late Capitalism and the ends of sleep.
111
Nesse livro provocativo, Crary sugere que o capitalismo contemporâneo prepara-
se para avançar em direção à última esfera da vida humana que ainda não se encontra
sob o domínio do capital: o sono. Logo no início do livro, o ensaísta nos informa sobre
pesquisas realizadas – por meio da parceria de universidades americanas, do
departamento de defesa dos Estados Unidos e do Pentágono – com um pássaro
chamado White-crowned sparrow. E qual seria a especificidade desse pássaro? Ele é
capaz de permanecer acordado durante toda sua migração de outono que o leva desde
o Alasca até o México. São 7 dias sem dormir e, muitas vezes, até mais. As pesquisas
do governo estadunidense dirigem-se no sentido de aprender como aplicar essa
característica desses pássaros em seres humanos. Como diz Crary, “o objetivo é
descobrir formas de tornar possível que as pessoas permaneçam sem dormir e, ao
mesmo tempo, que funcionem de maneira produtiva e eficiente (Crary, 2015, p.13). De
fato, tal futuro não tem absolutamente nenhuma relação com aquele pintado por Freyre.
Na realidade, é seu exato e assustador oposto.
Talvez a recuperação da proposta de Freyre nos desafie a um importante
exercício imaginativo a fim de pensar um mundo que contraste com o sombrio futuro
esboçado por Crary, em que nem mais em nosso sono poderemos estar livres do
domínio do mercado. É preciso, certamente, criar soluções por meio das quais se possa
retomar a proposta de um ócio que triunfe sobre o negócio; o lúdico possa novamente
encontrar espaço em um mundo inebriado por tecnologia e competição; e possamos
escapar da submissão total a uma experiência moderna que transforma absolutamente
tudo em mercadoria. No entanto, para realizar esse exercício imaginativo, não se pode
abrir mão de uma análise coerente do mundo capitalista para a qual a contribuição de
Marx continua sendo inestimável.
Quanto ao problema da recusa de Freyre pelo mundo moderno e suas
consequências mais imediatas: o liberalismo, a democracia de massas e a igualdade
que tende a tornar-se massificação, dirijo algumas palavras pontuais. Entendo que
estamos aqui diante do difícil problema de optar por soluções políticas que acabam
necessariamente por privilegiar um aspecto da vida humana em detrimento de outro.
Freyre claramente advoga uma opção política que não prima pelos valores da igualdade
política das democracias modernas. Sua compreensão é de que a plenitude da vida
humana pode ser encontrada em outra forma de organização política. Essa sua opção
faz com que ele, muitas vezes, imagine um futuro que, em sociedades capitalistas
ultracompetitivas, não é de fato acessível a todas as pessoas. A igualdade não parece
112
ser uma questão fundamental para o autor pernambucano que se muitas vezes diz
acreditar que o futuro irá possibilitar maior liberdade para todos desfrutarem do lúdico,
em outras parece reafirmar uma visão de que a sociedade é mesmo hierarquizada e que
a cada indivíduo compete ocupar distintas posições na vida social e, de certa forma, até
mesmo resignar-se a elas. Como Freyre não aprofunda essa questão, sobre qual saída
política ele propõe para operacionalizar sua visão de futuro, deixa a possibilidade de
crítica nesse sentido.
Outro problema parece ser sua ingenuidade em relação à possibilidade de que os
processos de automação que possibilitaram o amplo desenvolvimento social e
econômico dos países centrais da modernidade fossem transferidos integralmente para
outras partes do mundo. O mundo regido pela ética do ócio dependeria muito desse
fator, da progressiva automação que liberaria os indivíduos do domínio da ética do
negócio. Novamente aí parece faltar a Freyre teoria marxista para compreender
plenamente o funcionamento do mundo capitalista e as desigualdades que ele produz
não apenas em nível local, no interior dos Estados-Nação, mas também em uma
dimensão mundial, fazendo com que países ocupem posições periféricas que, muitas
vezes, são extremamente difíceis de suplantar.
De qualquer forma, avançar nessas críticas extremamente complexas não é
tarefa para este trabalho, mas para pesquisas futuras. Por ora, encerro a reflexão com
aquilo que Além do apenas moderno tem de positivo. Com sua reivindicação de um
humanismo crítico, algo que me parece absolutamente fundamental para os dias de
hoje. Termino com as palavras proferidas por Leon Wiseltier, que citei anteriormente, em
discurso dirigido aos seus “colegas humanistas” em cerimônia de graduação da
Brandeis University, publicado pela revista The New Republic. Se o seu discurso
iniciava-se em tom de alerta, ele termina com uma mensagem de esperança:
“So keep your heads. Do not waver. Be very proud. Use the new technologies for old purposes. Do not be rattled by numbers, which will never be the springs of wisdom. In upholding the humanities, you uphold the honor of a civilization that was founded upon the quest for the true and the good and the beautiful. For as long as we are thinking and feeling creatures, creatures who love and imagine and suffer and die, the humanities will never be dispensable. From this day forward, then, act as if you are indispensable to your society, because – whether it knows or not – you are”
61.
61
“Então mantenham suas cabeças eretas. Não fraquejem. Sejam orgulhosos. Usem as novas tecnologias para velhos propósitos. Não sejam confundidos por números, que nunca serão a primavera do conhecimento. Ao sustentarem as humanidades, vocês sustentam a honra de uma civilização que foi fundada na busca pela verdade, pelo bom e pelo belo. Enquanto formos criaturas que pensem e sentem, criaturas que amam e imaginam e sofrem e
113
Penso que se Freyre ainda pudesse reeditar o Além do apenas moderno, essa
citação certamente poderia estar nele.
morrem, as humanidades nunca serão dispensáveis. Deste dia em diante, ajam como se vocês fossem indispensáveis para a sociedade, pois – ela sabendo ou não – vocês são” [tradução do autor].
114
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