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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ RAMONE APARECIDA PRZENYCZKA CONFLITOS ÉTICOS NO CUIDADO DOMICILIAR DE ENFERMAGEM CURITIBA 2011

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    RAMONE APARECIDA PRZENYCZKA

    CONFLITOS TICOS NO CUIDADO DOMICILIAR DE ENFERMAGEM

    CURITIBA

    2011

  • 1

    RAMONE APARECIDA PRZENYCZKA

    CONFLITOS TICOS NO CUIDADO DOMICILIAR DE ENFERMAGEM

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de mestre em Enfermagem pelo Programa de Ps-Graduao em Enfermagem, rea de Concentrao Prtica Profissional de Enfermagem na linha de pesquisa Polticas e Prticas: de Educao, Sade, Enfermagem Setor de Cincias da Sade, Universidade Federal do Paran.

    Orientadora: Dr. Maria Ribeiro Lacerda

    Coorientadora: Dr. Rita de Cssia Chamma

    CURITIBA

    2011

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    FICHA CATALOGRFICA

    Przenyczka, Ramone Aparecida. Conflitos ticos no cuidado domiciliar de Enfermagem / Ramone Aparecida Przenyczka. Curitiba, 2011. 165 f.: il. 30 cm. Orientadora: Dr. Maria Ribeiro Lacerda. Coorientadora: Dr. Rita de Cssia Chamma. Dissertao (Mestrado) - Programa de Ps-Graduao em Enfermagem. rea de Concentrao: Prtica Profissional de Enfermagem. Setor de Cincias da Sade. Universidade Federal do Paran.

    1. 2. 1. Enfermagem. 2. Assistncia domiciliar. 3. tica. 4. Prtica profissional. 5. Pesquisa

    qualitativa. I. Lacerda, Maria Ribeiro. II. Ttulo.

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    Aos meus pais, Romo e Vera, e minha querida irm, Romara.

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    AGRADECIMENTOS

    A Deus, que no me abandona.

    Aos meus pais, que de tudo fizeram para proporcionar meus estudos desde sempre.

    Dr. Maria Ribeiro Lacerda, pela compreenso e pacincia nos momentos mais

    difceis durante os dois anos de Mestrado, pela orientao cientfica durante esta

    pesquisa, pelo estmulo fornecido em todos os trabalhos realizados, pela

    contribuio com meu aprendizado desde a graduao em Enfermagem, pela

    confiana em me ter como orientanda durante todos esses anos, pelo carinho em

    determinados momentos de minha vida particular.

    Dr. Rita de Cssia Chamma, por sua coorientao.

    s professoras do Programa de Ps-Graduao em Enfermagem da Universidade

    Federal do Paran.

    Aos integrantes da banca para a sustentao deste trabalho, que aceitaram

    prontamente o convite.

    A minha melhor amiga, Fabiana Nathalie, por sua amizade e pelo auxlio na

    diagramao deste trabalho.

    Doutoranda Luciane Favero, pela contribuio realizada neste trabalho.

    Ao Ncleo de Estudos, Pesquisa e Extenso em Cuidado Humano em Enfermagem

    (Nepeche).

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes), pelo

    apoio financeiro.

  • 6

    RESUMO

    PRZENYCZKA, R. A. Conflitos ticos no cuidado domiciliar de Enfermagem.

    165 f. Dissertao (Enfermagem) - Programa de Ps-Graduao em Enfermagem. Universidade Federal do Paran, Curitiba, 2011. A Enfermagem domiciliar est crescendo e com ela a necessidade de se examinar o padro tico relacionado. O estudo da tica, na rea da sade, ainda escasso e, em maior grau, na Enfermagem domiciliar. Assim, o objetivo desta pesquisa foi desenvolver um modelo terico que contemple a vivncia de conflitos ticos por enfermeiros no cuidado domiciliar. Trata-se de pesquisa qualitativa que utilizou como mtodo a Teoria Fundamentada nos Dados. Foram entrevistados, por meio de entrevista semiestruturada, vinte e um enfermeiros que atuam no cuidado domiciliar h pelo menos um ano, subdivididos em trs grupos amostrais. O primeiro grupo foi composto por nove enfermeiros de Unidades de Sade com Estratgia Sade da Famlia; o segundo foi formado por sete enfermeiros que trabalham em empresas privadas de home care; e o terceiro grupo amostral constituiu-se de cinco enfermeiros que atuam de forma autnoma no cuidado domiciliar. A coleta e anlise simultnea dos dados ocorreram de outubro de 2010 a julho de 2011. O modelo terico utilizado para interpretar o fenmeno Vivenciando conflitos ticos no cuidado domiciliar de Enfermagem foi o seis Cs adaptado, proposto por Glaser. A categoria central do fenmeno eleita foi Reconhecendo os conflitos ticos em sentido amplo, sendo que a mesma possui um contexto especificado na categoria Contextualizando a tica na prtica profissional, causas em Gnese dos conflitos ticos, uma contingncia em Encontrando dificuldades para a resoluo de conflitos ticos, condies intervenientes em Buscando estratgias para a resoluo de conflitos ticos as consequncias na categoria Implicaes da vivncia de conflitos ticos. O modelo terico admitiu visualizar que diferentes conflitos ticos so vividos pelos enfermeiros, que os mesmos possuem uma origem em questes sociais e profissionais, que bices so encontrados como os ligados formao, profisso, equipe, ao paciente/familiar e a outras instncias; apesar disso, os profissionais adotam diferentes maneiras para a dissoluo dos conflitos como so exemplos as estratgias subjetivas, institucionais e a rede de apoio; e que, como resultado, os enfermeiros necessitam de mais prtica, eles conseguem diferenciar as situaes vivenciadas no domiclio das de uma instituio hospitalar, expressam sentimentos positivos e negativos, resolvem os conflitos e registram os mesmos. Por fim, novos estudos devem ser concretizados sobre o assunto e considera-se que os enfermeiros devem realizar sua prtica pautados nos princpios ticos da profisso.

    Palavras-chave: Enfermagem. Assistncia domiciliar. tica. Prtica profissional. Pesquisa qualitativa.

  • 7

    ABSTRACT

    PRZENYCZKA, R. A. Ethical conflicts in nursing home care. 165 f. Dissertation

    (Nursing) - Program of Graduation in Nursing. Federal University of Paran, Curitiba, 2011. Nursing home care has been growing, so is the need to examine the related ethical standard. Ethics study in the nursing area is still scanty, and in a higher degree, in nursing home care. Thus, this research aims to develop a theoretical model contemplating the ethical conflicts experienced by nurses in home care. It is a qualitative nursing study using grounded-theory methodology. Twenty-one (21) nurses, working in the home care area for at least one year, were interviewed by means of a semistructured interview, subdivided in three sampling groups. The first group entailed 9 nurses from health units with the Program of Family Health Strategy; the second group was taken up by 7 nurses from private home care agencies, and the third sampling group entailed 5 self-employed home care nurses. Simultaneous data collection and analysis were carried out from October, 2010 to July, 2011. The theoretical model used in order to interpret the phenomenon Experiencing ethical conflicts in nursing home care was the adapted 6 Cs proposed by Glaser. The chosen core category of the phenomenon was Acknowledging ethical conflicts in a broad sense, which has a specified context in the category Contextualizing ethics in the professional practice, causes in Emergence of ethical conflicts, a contingency in Finding difficulties for the resolution of ethical conflicts, intervention conditions in Searching for strategies to solve ethical conflicts, the consequences in the category Implications of experience in ethical conflicts. The theoretical model enabled to elicit that different ethical conflicts are experienced by nurses, that they are originated in social and professional issues, that obstacles are found such as the ones related to the education, profession, the team, patient/family member and other instances; even so, professionals adopt different ways to solve conflicts, for example, subjective, institutional strategies and support networks; and that, consequently, nurses need more practice, they can distinguish home care situations from the ones at hospital settings, express positive and negative feelings, solve conflicts and report them. Concluding, further studies on the subject are necessary, and nurses are deemed to perform their practice guided by ethical principles in the profession.

    Keywords: Nursing. Home Nursing. Ethics. Professional Practice. Qualitative research.

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    LISTA DE DIAGRAMAS

    DIAGRAMA 1 VIVENCIANDO CONFLITOS TICOS NO CUIDADO DOMICILIAR DE ENFERMAGEM....................................................5 DIAGRAMA 2 CONTEXTUALIZANDO A TICA NA PRTICA PROFISSIONAL..58 DIAGRAMA 3 GNESE DOS CONFLITOS TICOS..............................................63 DIAGRAMA 4 CONFLITOS TICOS EM SENTIDO ESTRITO.................................. DIAGRAMA 5 DILEMAS TICOS............................................................................. DIAGRAMA 6 ENCONTRANDO DIFICULDADES PARA A RESOLUO DE CONFLITOS TICOS.......................................................................87 DIAGRAMA 7 BUSCANDO ESTRATGIAS PARA A RESOLUO DE CONFLITOS TICOS........................................................................... DIAGRAMA 8 IMPLICAES DA VIVNCIA DE CONFLITOS TICOS..................

    DIAGRAMA 9 MODELO TERICO DE VIVENCIANDO CONFLITOS TICOS

    NO CUIDADO DOMICILIAR DE ENFERMAGEM............................

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  • 9

    LISTA DE QUADROS

    QUADRO 1 MODELO DE NOTA TERICA............................................................ QUADRO 2 MODELO DE NOTA METODOLGICA................................................ QUADRO 3 MODELO DE CATEGORIZAO.......................................................51 QUADRO 4 CATEGORIAS, SUBCATEGORIAS E COMPONENTES NA CODIFICAO SUBSTANTIVA .........................................................53 QUADRO 5 TEMAS E CATEGORIAS RELACIONADOS AOS SEIS Cs NA CODIFICAO TERICA ..................................................................

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  • 10

    SUMRIO

    1 INTRODUO............................................................................................................

    1.1 OBJETIVO...............................................................................................................

    2 REVISO DE LITERATURA......................................................................................

    2.1 BREVE EVOLUO HISTRICA E FILOSFICA DA TICA................................

    2.1.1 A Idade Antiga.......................................................................................................

    2.1.2 A Idade Mdia.......................................................................................................

    2.1.3 A Idade Moderna...................................................................................................

    2.1.4 A Idade Contempornea.......................................................................................

    2.2 TICA: CONCEITO, OBJETO, FINALIDADE..........................................................

    2.3 CONFLITOS E DILEMAS TICOS NA ENFERMAGEM.......................................

    2.4 CUIDADO DOMICILIAR SADE..........................................................................

    2.4.1 Histrico do cuidado domiciliar..............................................................................

    2.4.2 O cuidado domiciliar: conceitos e implicaes......................................................

    3 METODOLOGIA.........................................................................................................

    3.1 TEORIA FUNDAMENTADA NOS DADOS..............................................................

    3.1.1 Amostragem terica..............................................................................................

    3.1.2 Coleta de dados....................................................................................................

    3.1.3 Anlise dos dados.................................................................................................

    3.1.3.1 Codificao substantiva......................................................................................

    3.1.3.2 Codificao terica............................................................................................

    3.2 ASPECTOS TICOS................................................................................................

    4 APRESENTAO DOS DADOS...............................................................................

    4.1 CONTEXTUALIZANDO A TICA NA PRTICA PROFISSIONAL...........................

    4.1.1 Compreendendo a acepo de tica.....................................................................

    4.1.2 Compreendendo o significado de dilemas ticos..................................................

    4.2 GNESE DOS CONFLITOS TICOS......................................................................

    4.2.1 Questes sociais...................................................................................................

    4.2.2 Questes profissionais..........................................................................................

    4.3 RECONHECENDO OS CONFLITOS TICOS EM SENTIDO AMPLO................

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  • 11

    4.3.1 Conflitos ticos em sentido estrito.......................................................................

    4.3.1.1 Extrapolando a competncia profissional.........................................................

    4.3.1.2 Relacionamento com colega e/ou paciente/familiar.........................................

    4.3.1.3 Violando o sigilo profissional............................................................................

    4.3.1.4 Preconceito......................................................................................................

    4.3.1.5 Violncia............................................................................................................

    4.3.1.6 Aborto.................................................................................................................

    4.3.1.7 Desrespeito entre os familiares..........................................................................

    4.3.1.8 Morte................................................................................................................

    4.3.2 Dilemas ticos.......................................................................................................

    4.3.2.1 Consentimento da famlia: quem respeitar?.....................................................

    4.3.2.2 Capacitao do cuidador: qual o limite?..........................................................

    4.3.2.3 Condies financeiras escassas: como proceder?.........................................

    4.4 ENCONTRANDO DIFICULDADES PARA A RESOLUO DE CONFLITOS

    TICOS..........................................................................................................................

    4.4.1 Dificuldades relacionadas formao...................................................................

    4.4.2 Dificuldades relacionadas profisso...................................................................

    4.4.3 Dificuldades relacionadas equipe.......................................................................

    4.4.4 Dificuldades relacionadas ao paciente/familiar.....................................................

    4.4.5 Dificuldades relacionadas a outras instncias.......................................................

    4.5 BUSCANDO ESTRATGIAS PARA A RESOLUO DE CONFLITOS

    TICOS..........................................................................................................................

    4.5.1 Estratgias prprias do cuidado domiciliar...........................................................

    4.5.2 Estratgias subjetivas............................................................................................

    4.5.3 Estratgias institucionais......................................................................................

    4.5.4 Rede de apoio.......................................................................................................

    4.6 IMPLICAES DA VIVNCIA DE CONFLITOS TICOS.......................................

    4.6.1 Necessidade de prtica.........................................................................................

    4.6.2 Diferenciando conflitos ticos institucionais dos domiciliares...............................

    4.6.3 Expressando sentimentos....................................................................................

    4.6.4 Resolvendo os conflitos ticos..............................................................................

    4.6.5 Registrando os conflitos ticos..............................................................................

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    5 DESENVOLVIMENTO DO MODELO TERICO.......................................................

    6 DISCUSSO COM OS AUTORES.............................................................................

    7 CONSIDERAES FINAIS........................................................................................

    REFERNCIAS..............................................................................................................

    APNDICES...................................................................................................................

    ANEXO.........................................................................................................................

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  • 13

    1 INTRODUO

    Nos ltimos anos muita contenda houve, e ainda persiste, sobre o

    vertiginoso desenvolvimento tcnico-cientfico e suas consequentes benesses para

    diferentes reas de conhecimento, dentre as quais a da sade e, mais

    especificamente, a da Enfermagem. Entrementes, h uma desproporo entre tal

    avano e outro tema que se insurge e permeia toda essa rea, qual seja, a tica,

    que at tem sido impugnada em artigos, livros, congressos e congneres, mas que

    merece ser mais problematizada e refletida na prtica dos profissionais.

    Como bem assinalado, utiliza-se exacerbadamente a palavra tica,

    banalizando-se o seu uso, o que leva diminuio de sua importncia. Por isso, a

    necessidade de se questionar como pensar a tica hoje, diante da rpida evoluo

    desordenada enfrentada pela sociedade (BOFF, 2003). Para tanto, preciso discuti-

    la efetivamente desde cedo e no de forma descontextualizada e acrtica.

    O estudo da tica no to comum dentro de instituies de sade do

    Brasil. Conquanto existam algumas que possuam Comisses de tica, inclusive

    especficas de Enfermagem, para tratar de assuntos afins, ele restringe-se ao meio

    acadmico e, mesmo nesse, o tempo destinado ao assunto nfimo, dedicando-se

    maior lapso s outras disciplinas em detrimento da tica.

    A propsito, Fernandes et al. (2008) registram que o progresso tcnico-

    cientfico atinge de perto o indivduo no seu ser tico, o que implica mudanas na

    dimenso tica do processo de formao do enfermeiro. Inclusive, as Diretrizes

    Curriculares Nacionais (DCN) do Curso de Graduao em Enfermagem vm

    exigindo uma educao destinada formao de um profissional capacitado para

    atuar com senso de responsabilidade social, compromisso com a cidadania e para

    ser promotor da sade integral do ser humano.

    Uma vez erigida a necessidade do estudo da tica e o compromisso de se

    formar profissionais responsveis, acordo esse realado nas DCN do Curso de

    Enfermagem, cumpre elucidar o seu significado. Cortina (2009, p. 35) faz a

    interessante aluso ao tema: a tica uma incompreendida, e [...] essa

    incompreenso a est deixando sem tarefa, isto , sem nada para fazer.

  • 14

    Simplesmente porque ningum sabe claramente o que fazer com ela. Nessa

    perspectiva, importante esclarecer o conceito que lhe atribudo.

    A tica pode ser conceituada como teoria ou cincia do comportamento dos

    homens em sociedade (VSQUEZ, 2008, p. 23). O autor sublinha nessa definio o

    carter cientfico da disciplina; a tica a cincia da moral e no a prpria moral e,

    portanto, no pode ser reduzida a um conjunto de normas e prescries (VSQUEZ,

    2008). Por conseguinte, entendemos a tica como o estudo, a reflexo, a discusso

    sobre o modo de comportar-se dos homens e sobre suas relaes entre si. Ela no

    um conjunto de costumes, preceitos, leis ou resolues que sujeitam a conduta dos

    homens em sociedade. A tica medita sobre as regras, sua necessidade, suas

    justificativas, porm, no prescreve, no ordena.

    Em tempos remotos, a tica dedicava-se, principalmente, ao individual e

    era estudada por filsofos e telogos. Devido s transformaes da sociedade, a

    primazia passou a ser o sujeito-social, com o envolvimento de pessoas em grupos

    comunitrios, profissionais, associaes de classe e outros (OGUISSO; SCHMIDT;

    FREITAS, 2010).

    Hodiernamente, faz-se necessrio, outrossim, considerar as questes ticas

    relacionadas s demandas de sade, afinal, o processo sade-doena no deve ser

    abordado somente por seus aspectos biologicistas. A tica permeia todas as reas

    de atuao da Enfermagem, pois intrnseca s aes humanas, sejam de trabalho

    ou no. No contexto dessa profisso, deve ser entendida para alm do cumprimento

    de valores morais e de normas ticas e legais. Tem de ser percebida como meio e

    fim para se alcanar a excelncia no cuidado prestado ao paciente e nas relaes

    de trabalho com os demais profissionais.

    Destaca-se que, na prtica da Enfermagem, so assduas as ocorrncias

    que propiciam problemas ticos em razo de que os profissionais esto envoltos por

    circunstncias conflituosas relacionadas ao paciente e/ou sua famlia, profisso,

    organizao do trabalho, entre outros.

    Tais problemas podem se constituir em um conflito ou dilema tico, que so

    termos distintos. Um conflito significa coliso; choque; penoso estado mental devido

    a choque entre tendncias opostas, e encontrado, em grau varivel, em qualquer

    indivduo (FERREIRA, 2010, p. 555). Ou, tambm:

  • 15

    profunda falta de entendimento entre duas ou mais partes. Ocorrncia concomitante de exigncias, impulsos ou tendncias antagnicas e mutuamente excludentes, e o estado da decorrente. Ato, estado ou efeito de divergiram acentuadamente ou de se oporem duas ou mais coisas. (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 520).

    J o dilema definido, por Ferreira (2009, p. 716), como um raciocnio cuja

    premissa alternativa, de sorte que qualquer de seus termos conduz mesma

    consequncia. E, segundo Houaiss e Villar (2009, p. 686), trata-se de:

    um raciocnio que parte de premissas contraditrias e mutuamente excludentes, mas que paradoxalmente terminam por fundamentar uma mesma concluso; em um dilema ocorre a necessidade de escolha entre alternativas opostas A e B, que resultar em uma concluso C, que se origina necessariamente tanto de A quanto de B.

    Diante dos conceitos apresentados por dois dicionaristas de renome, v-se

    que esses dois vocbulos preservam semelhanas entre si, ao menos, quando se

    descrevem choque entre tendncias opostas ou antagnicas (no conflito) e

    raciocnio e escolha a partir de premissas diferentes (no dilema).

    O conflito tico, tratado nesta pesquisa, diz respeito a uma coliso entre

    determinada ao ou omisso do profissional, do paciente ou de sua famlia e a

    tica. Significa ir contra preceitos ticos, brigar, colidir contra os mesmos. O dilema

    tico, por seu turno, acontece entre duas ou mais opes que envolvem uma

    situao tica, assim, o profissional ou o paciente est diante de mais de um

    caminho e tem que optar por um deles; nessa perspectiva, pode-se afirmar que ele

    possui um conflito, conflito esse entre duas ou mais possibilidades.

    Por assim se considerar, versar-se- sobre o conflito, doravante, como um

    termo genrico que abrange o dilema, sendo que este um conflito particular que

    envolve, necessariamente, uma escolha. Chama-se a ateno para o fato de que

    esse entendimento no especfico desta pesquisa. Duarte e Lautert (2006)

    realizaram estudo sobre conflitos e dilemas ticos num Centro Cirrgico e, para

    tanto, trataram do tema da mesma forma.

    Freitas, Oguisso e Merighi (2006) relatam que a preveno e o controle das

    ocorrncias ticas exigem investimentos materiais e humanos e vontade poltica

    para implementar aes na dinmica de trabalho. Todos os esforos dos

    enfermeiros seriam insuficientes para enfrentar ocorrncias ticas, se no houvesse

  • 16

    um processo de parceria da instituio e dos profissionais da rea da sade, no

    sentido de se comprometerem, eticamente, com uma meta institucional e profissional

    de zelar pela integridade e pelo respeito aos direitos do paciente, do colega de

    trabalho e dos prprios direitos.

    manifesto que dentro de instituies de sade maior o controle sobre as

    questes ticas relacionadas com a prtica dos profissionais de Enfermagem, porm

    o que fazer quando a atuao de profissionais se d fora desse limite espacial? E

    no me refiro, apenas, fiscalizao do exerccio profissional, por parte de

    empregadores ou dos rgos de classe, mas, igualmente, aos questionamentos, de

    natureza tica, experimentados pelo paciente e famlia, dentro da residncia, e que

    reclamam orientaes, intervenes e apaniguamento de um profissional da sade

    e, por bvio, do enfermeiro.

    No mbito do cuidado domiciliar de Enfermagem, diferentes conhecimentos

    so imprescindveis, dentre eles o tico. De tal modo, importante citar uma reviso

    integrativa, feita a partir da produo cientfica da Enfermagem brasileira, que

    concluiu que durante a realizao do cuidado domiciliar h o envolvimento de vrios

    tipos de conhecimentos: o cientfico, presente em 100% dos estudos selecionados; o

    poltico em 63,4%; e o conhecimento tico, em terceiro lugar, revelado em 56,1%

    dos estudos (FAVERO et al., 2009a).

    Lacerda (2010), proficientemente, afirma que a Enfermagem domiciliar exige

    um trabalho sistematizado acentuado por comunicao, tica e respeito humano

    pela vivncia das famlias. A mesma autora (2010) relata que preciso o

    comprometimento tico da enfermeira, no sentido de ser advogada do paciente, e

    que tal papel implica o respeito dignidade e aos direitos do ser humano durante o

    processo de trabalho.

    fato notrio que a Enfermagem domiciliar est crescendo e com ela surge

    a necessidade de se examinar o padro tico relacionado. Entendo que o estudo da

    tica, na rea da sade, ainda defectivo e, em maior grau, na Enfermagem

    domiciliar. Destarte, explorar o tema proposto, qual seja, os conflitos ticos, entre os

    quais se incluem os dilemas, envolvidos no cuidado domiciliar de Enfermagem,

    relevante por diferentes motivos.

  • 17

    O assunto, at ento, pouco discutido. So poucos os estudos sobre

    conflitos ticos na Enfermagem e aqueles sobre os dilemas so menores. Numa

    reviso sistemtica realizada em 2010, 175 artigos foram encontrados com o termo

    dilemas ticos e, aps anlise, s 7 restaram. Muitos artigos foram excludos

    porque, embora tratassem de tica, no consideraram um dilema tico

    (PRZENYCZKA et al., 2011).

    No cuidado domiciliar no h um panorama dessa situao. Conforme o

    mesmo estudo, os dilemas discutidos nas publicaes envolveram: reanimao

    cardiopulmonar de paciente, hemotransfuso em Testemunhas de Jeov, prtica da

    Enfermagem sem condies materiais, a continuidade ou no do tratamento de

    pacientes com paralisia cerebral grave (PRZENYCZKA et al., 2011). Assim sendo,

    no foram mencionados trabalhos sobre dilemas ticos na esfera do domiclio.

    Alm disso, a tica est presente na prtica da Enfermagem domiciliar e sua

    contemplao, dentro de instituies de sade ou de ensino, ainda escassa.

    Consoante Oguisso, Schmidt e Freitas (2010), a tica pode ajudar na reflexo de

    dilemas ticos e legais emergentes, respeitando-se as diferenas entre as pessoas,

    os grupos sociais e as diversidades culturais. Cabe enfatizar que o enfermeiro deve

    proteger e defender os direitos do paciente, assumindo integralmente a

    responsabilidade legal e profissional para com ele, assim como participar ativamente

    com os demais membros da equipe de sade na realizao de um cuidado com

    qualidade.

    Soma-se a esses motivos o fato de que os resultados desta pesquisa podem

    beneficiar os profissionais do cuidado domiciliar de Enfermagem no entendimento e

    resoluo dos problemas ticos que se apresentam no espao da residncia dos

    pacientes e, qui, mostrar caminhos para enfermeiros de outras reas.

    Os conflitos ticos so constantes na realidade dos enfermeiros e a

    dificuldade para resolv-los est na mesma proporo. A literatura disponvel

    pouca para orient-los e, no por isso, eles devem se deixar guiar por quaisquer

    decises. Devem, sim, buscar estratgias para resolv-los e lanar mo do apoio de

    outras pessoas. O enfermeiro no pode olvidar que sua conduta tem que estar

    pautada por um profundo respeito vida do paciente em todos os seus aspectos.

  • 18

    Alm dessas deferncias que me fizeram identificar a necessidade de

    maiores estudos sobre a tica profissional do enfermeiro no contexto domiciliar, h

    um interesse particular. Formei-me em Direito e, enquanto acadmica dessa

    faculdade, iniciei outra, a de Enfermagem na Universidade Federal do Paran

    (UFPR). Dentro desse novo Curso de Graduao, apreendi diferentes

    conhecimentos sobre a Enfermagem, assim como suas aplicaes em campo e, em

    razo da excelncia do corpo docente da instituio, procurei exercer minha prtica

    de forma mais reflexiva.

    Nesse contexto, no tempo em que estudava na graduao, voltei-me para

    questes ticas e legais no mbito da Enfermagem. Sendo assim, fui monitora da

    Disciplina de tica e Legislao Aplicada Enfermagem. Em seguida, participei, por

    dois anos, de um projeto de iniciao cientfica denominado Os profissionais de

    sade e o cuidado domiciliar no Programa de Sade da Famlia, sob a orientao

    da Professora Doutora Maria Ribeiro Lacerda, referncia em cuidado domiciliar.

    Pude, ento, no Trabalho de Concluso de Curso (Monografia), conciliar ambas as

    temticas e realizei a pesquisa Dilemas ticos no ensino do cuidado (de

    Enfermagem) para o cuidador domiciliar que revelou importantes dilemas na rea.

    Aps iniciar minha atividade profissional em um hospital, percebi que os

    problemas ticos se apresentavam rotineiramente no meu processo de trabalho, nas

    diferentes relaes com o paciente, com outros profissionais e com a prpria

    instituio. Exemplificadamente, presenciei demandas quanto revelao de

    diagnsticos a pacientes, hemotransfuso sangunea em Testemunhas de Jeov,

    reanimao cardiopulmonar de pacientes terminais, falta de autonomia

    profissional, revelao de segredos, entre outras. E, embora tendo desenvolvido

    estudos sobre o tema, algumas questes eram de difcil soluo, enquanto que

    outras eram insolveis.

    Essa dificuldade instigou-me a adquirir mais conhecimento sobre a tica na

    Enfermagem, principalmente no cuidado domiciliar, rea na qual essa temtica

    pouco estudada. Por essa forma, como o interesse pelo assunto permaneceu, ao

    ingressar no Mestrado do Programa de Ps-Graduao em Enfermagem da UFPR,

    optei pela linha de pesquisa Polticas e prticas: de educao, sade,

  • 19

    Enfermagem, da qual faz parte a Dr. Maria Ribeiro Lacerda, para dar continuidade

    aos estudos sobre a tica na prtica da Enfermagem no cuidado domiciliar.

    Isso posto, desenvolvi esta pesquisa com a seguinte questo norteadora:

    Como os enfermeiros vivenciam os conflitos ticos no mbito do cuidado domiciliar?

    Para respond-la, foi proposto o seguinte objetivo:

    1.1 OBJETIVO

    Desenvolver um modelo terico que contemple a vivncia de conflitos ticos

    por enfermeiros no cuidado domiciliar.

  • 20

    2 REVISO DE LITERATURA

    Devido s implicaes que o assunto ocasiona, necessria a anlise sobre

    determinados conceitos e questes relativas tica, aos dilemas e conflitos ticos

    na Enfermagem e ao cuidado domiciliar de Enfermagem. Para tanto, exibem-se

    algumas consideraes sobre tais temas que tendem a facilitar a compreenso do

    problema.

    2.1 BREVE EVOLUO HISTRICA E FILOSFICA DA TICA

    Sendo um captulo que se prope a realizar uma abordagem histrica,

    preciso tornar claro o corte temporal contemplado. Essa empreitada abranger todos

    os perodos da histria ocidental, iniciando-se no sculo IV a.C. com Scrates, na

    Idade Antiga, pois foi quando a tica comeou a ser abordada, e trmino na Idade

    Contempornea porquanto necessrio conhecer como a tica entendida

    atualmente.

    Exibir a evoluo histrica e filosfica da tica apresenta-se importante para

    o entendimento de seu conceito e dos elementos que influenciam suas percepes

    na poca presente.

    O tema ser explorado a partir do pensamento de apenas alguns filsofos e

    na medida necessria. Assim, optou-se pelos expoentes de cada um dos perodos

    que so constantemente citados em diferentes obras.

    2.1.1 A Idade Antiga

    A tica objeto de estudo h muito tempo e, por bvio, sua concepo e

    viso mudaram ao longo da histria. Na Antiguidade, ela no era abordada e

    conhecida da mesma forma que nos dias atuais, mas, certamente, alguns de seus

  • 21

    traos foram mantidos. Entrementes, se pensarmos na tica como o conjunto de

    valores de uma pessoa e no como ponderao filosfica, pode-se afirmar que ela

    esteve presente muito antes de se chegar Idade Antiga, afinal, a conduta do

    homem era motivada por valores que lhe eram relevantes.

    Na Antiguidade, antes da origem da Filosofia, as explicaes sobre o mundo

    e a vida se davam por meio de mitos. Contudo, em aproximadamente 600 a.C.,

    rompe-se com essa concepo mtica, pois nasceu a Filosofia na Grcia e seus

    filsofos procuraram provar que os mitos no eram confiveis. Os primeiros filsofos

    gregos, designados filsofos da natureza, ocuparam-se com as causas naturais para

    os fenmenos da natureza e investigavam, portanto, o mundo fsico (GAARDER,

    1995).

    As doutrinas ticas se desenvolvem em diferentes pocas como respostas

    aos problemas apresentados pelas relaes humanas (VSQUEZ, 2008). E foi

    quando o homem tornou-se tema de reflexo filosfica que a Filosofia se ocupou

    com as questes da tica (PEGORARO, 2006), particularmente em Atenas

    (VSQUEZ, 2008).

    Grandes filsofos desse perodo foram Scrates, Plato e Aristteles, cujas

    contribuies incluem o interesse pelo homem e seu lugar na sociedade, o uso da

    razo, a preocupao com a poltica, a lgica, a sistematizao do conhecimento

    ordenado em diversas cincias e a tica, entre outros assuntos (GAARDER, 1995).

    Scrates discutiu a tica no contexto da vida poltica de Atenas,

    relacionando-a com o bem, a virtude, o valor da pessoa e da sociedade

    (PEGORARO, 2006). Como os atenienses confundiam fatos e valores morais porque

    no sabiam os motivos pelos quais valorizavam certas coisas, Scrates os forava a

    indagar sobre a origem e a essncia dos valores, refutando meras opinies (CHAUI,

    2009). Sua tica era racionalista e nela eram encontradas: uma concepo do bem

    (como felicidade da alma) e do bom (como o til para a felicidade); a tese da virtude

    como conhecimento, e do vcio como ignorncia; a proposio segundo a qual a

    virtude pode ser ensinada. Para o filsofo, o homem age corretamente quando

    conhece o bem e, uma vez conhecendo-o, no pode deixar de pratic-lo; realizando

    o bem dono de si e, assim, feliz (VSQUEZ, 2008).

  • 22

    Seu discpulo, Plato, no deixou um tratado especfico sobre o assunto,

    porm sua obra tem um sentido tico observado nos temas da justia individual e

    social. No sistema platnico, a justia a virtude fundamental e atingida quando as

    trs classes sociais (trabalhadores, guerreiros e magistrados) e os elementos

    constitutivos do homem (razo, paixo, apetite) so hierarquicamente ordenados e

    subordinados (PEGORARO, 2006). Em sua tica transparece o desprezo pelo

    trabalho fsico e, por isso, os artesos ocupam um degrau inferior, enquanto se

    exaltam atividades superiores como a contemplao, a poltica e a guerra. No h

    lugar no Estado para os escravos porque desprovidos de virtudes morais e direitos

    cvicos (VSQUEZ, 2008).

    Plato foi mentor de Aristteles (384-322 a.C.) que, por sua vez, o

    fundador da disciplina filosfica a que se deu o nome de tica (PAIM, 2003).

    Segundo Aristteles, a tica possui as seguintes caractersticas: natural, porque

    emerge da estrutura biolgica dos homens; finalista, porque, em todas as suas

    aes, o homem visa alcanar um bem; racional, pois s possvel atingir esse

    bem por meio da razo; constitui-se de heteronomia, uma vez que o homem no

    nasce tico, somente com a repetio de aes se torna virtuoso, portanto, a tica

    vem de fora, da natureza (PEGORARO, 2006).

    A tica de Aristteles est unida filosofia poltica, pois, para ele, a

    comunidade social e poltica o meio necessrio da moral. O homem um ser

    social e enquanto homem s pode viver na polis. Sendo assim, no pode ter uma

    vida moral sem viver em sociedade. Porm, a vida moral no um fim em si mesmo,

    mas um meio para uma vida verdadeiramente humana. No entanto, essa vida s

    possvel elite, sendo que a maior parte da populao (os escravos) estava excluda

    (VSQUEZ, 2008).

    Em sntese, na obra de Aristteles est fixado que a virtude no

    obrigatria, uma conquista, uma aquisio; exige pr-requisitos e apresenta-se de

    forma diferente em relao a certos papis sociais; est associada ao saber, isto ,

    cultura (PAIM, 2003); e a felicidade o fim da conduta humana, a partir da natureza

    racional do homem (ABBAGNANO, 2007).

    De forma geral, o pensamento tico dos filsofos antigos tem como

    principais aspectos o racionalismo (o homem virtuoso age com a razo), o

  • 23

    naturalismo (age-se de acordo com nossa natureza) e a inseparabilidade entre tica

    e poltica (CHAUI, 2009). A tica grega exige requisitos e mostra-se diferente em

    relao aos papis sociais existentes, achando-se vinculada ao saber (PAIM, 2003).

    Na poca helenstica, ainda na Idade Antiga, houve a fuso da cultura grega

    com a oriental. O helenismo voltou-se para as necessidades do indivduo e a

    Filosofia ocupou-se, tambm, com a tica e a busca pela felicidade explicada de

    diferentes formas pelas variadas escolas como dos cnicos, esticos e epicuristas

    (GAARDER, 1995).

    Estoicismo e epicurismo surgem numa poca de decadncia e de crise

    social. Para ambos, a moral no mais se define em relao polis, mas ao universo.

    Para os esticos, o mundo possui Deus como princpio e s acontece o que Deus

    quer. Assim, o homem tem que aceitar o seu destino; o bem supremo viver de

    acordo com a natureza, com a razo e com a conscincia do nosso destino. Para os

    epicuristas, no h interveno divina; o homem alcana o bem sem cair no temor

    do sobrenatural, encontrando em si ou com amigos a tranquilidade da alma e a

    autossuficincia (VSQUEZ, 2008).

    2.1.2 A Idade Mdia

    A Idade Mdia, perodo compreendido entre os anos de 476 e 1453, foi

    caracterizada pelo domnio da Igreja Catlica na Europa, cuja economia era

    baseada no feudalismo. Numa poca em que foram construdas as primeiras

    universidades, a Igreja, com crena baseada num nico Deus, impediu a expanso

    da filosofia grega; mesmo assim, a cultura greco-romana foi transmitida, em parte,

    cultura catlica e rabe (GAARDER, 1995).

    Com o Cristianismo foi dado o passo inicial para vincular a moralidade a um

    ideal de pessoa humana, isto , o homem virtuoso (PAIM, 2003). Filsofos

    medievais ocuparam-se em analisar as contradies entre a Bblia e a razo. Santo

    Agostinho, por exemplo, influenciado pelo neoplatonismo, que defendia que tudo o

    que existia era de natureza divina, mostrou que h limites para o alcance da razo

  • 24

    em questes religiosas e que a f leva a Deus. Santo Toms de Aquino tentou

    conciliar a filosofia de Aristteles (adotando sua lgica, filosofia do conhecimento e

    da natureza) com o Cristianismo e, segundo ele, no h contradio inevitvel entre

    a filosofia ou razo e a revelao crist ou f (GAARDER, 1995).

    Na Idade Mdia o poder foi exercido pela Igreja que monopolizou a vida

    intelectual e, sendo assim, a tica impregnada de um contedo religioso. A tica

    crist partiu de verdades reveladas a respeito de Deus, de Suas relaes com o

    homem e da obedincia e sujeio aos Seus mandamentos (VSQUEZ, 2008). Se

    na Idade Antiga a tica era pensada em termos polticos, da polis, na Idade Mdia

    ela foi entendida por sua relao com Deus.

    As virtudes valorizadas na Antiguidade foram a prudncia, a fortaleza, a

    temperana, a justia. A doutrina crist valorizou a f, a esperana, a caridade, que

    so as virtudes supremas ou teologais. O Cristianismo introduziu uma ideia de

    riqueza moral: a da igualdade dos homens. Essa mensagem foi lanada num mundo

    que vivia uma espantosa desigualdade: a diviso entre escravos e homens livres, ou

    entre servos e senhores feudais (VSQUEZ, 2008).

    Apesar das desigualdades do mundo real, o Cristianismo deu aos homens,

    at mesmo aos oprimidos, a conscincia da sua igualdade. Sendo assim, a

    igualdade era mais espiritual ou para o amanh, num mundo sobrenatural

    (VSQUEZ, 2008).

    Alguns autores denominaram de tica de salvao a doutrina moral

    formulada durante a Idade Mdia, para destacar que, no processo de reelaborao

    da tica grega, deu-se precedncia vida eterna. A conquista da virtude na terra

    seria um requisito essencial obteno da paz interior aps a morte. Esse aspecto

    importante na medida em que serve para enfatizar o carter do elemento novo

    aparecido na poca do Renascimento: a religio protestante que iria dissociar a

    salvao do comportamento terreno. Agora, ao homem, s resta cumprir a lei moral,

    no se credenciando salvao pela obra que poder, no mximo, servir como

    indcio (PAIM, 2003).

  • 25

    2.1.3 A Idade Moderna

    A Idade Moderna compreende o perodo de 1453 a 1789. Antes de adentrar

    nele mister relatar que o mesmo foi precedido pelo Renascimento. Este no um

    perodo especfico, mas um movimento de transio entre a Idade Mdia para a

    Idade Moderna, quando foi redescoberta a cultura da Antiguidade. O homem voltou

    a ser o centro e podia explorar e agir na natureza, motivo pelo qual se fala no

    humanismo renascentista. Descobertas martimas, passagem da economia de

    subsistncia para a monetria, confirmao da teoria heliocntrica do universo por

    Coprnico, entre outras importantes revelaes (trajetria elptica dos planetas, Leis

    da Inrcia e da Gravitao Universal) culminaram com a Reforma Protestante

    (GAARDER, 1995).

    No fcil encontrar um denominador comum para as doutrinas ticas

    nessa poca, mas destaca-se a tendncia antropocntrica em contraste com a tica

    teocntrica da Idade Mdia (VSQUEZ, 2008).

    A Idade Moderna compreendeu movimentos como o Barroco, o Iluminismo e

    o Romantismo. O Barroco evidenciou-se por grandes conflitos entre protestantes e

    catlicos, pela busca do poder poltico e consolidao progressiva do materialismo,

    em oposio ao idealismo, mediante uma nova cincia da natureza defensora da

    reduo da realidade a substncias materiais concretas. Para vencer o ceticismo

    filosfico, filsofos prenderam sua ateno capacidade da razo humana para

    conhecer e demonstrar a verdade dos conhecimentos. Em oposio aos

    racionalistas, como Descartes e Espinosa que consideravam que o fundamento de

    todo o conhecimento humano residia na razo, os empiristas (como Locke, Berkeley

    e Hume) achavam que todo o conhecimento sobre o mundo provinha da experincia

    sensvel (GAARDER, 1995).

    O Iluminismo destacou: o racionalismo, nico guia da sabedoria; o regresso

    natureza, principalmente, com Rousseau; o Cristianismo humanista que tentava

    harmonizar a religio com a razo natural dos homens; a luta pelos direitos

    humanos. Muitas dessas novas afirmaes contriburam para uma revolta contra as

    autoridades que culminou com Revoluo Francesa de 1789 (GAARDER, 1995).

  • 26

    No Romantismo, que durou at parte do sculo XIX, o indivduo tinha

    liberdade de criao e de expresso. Co-existiram duas formas de Romantismo: o

    universal que se preocupou com a natureza, a alma universal e o gnio artstico; e o

    nacional que se interessava pela histria do povo, sua lngua e por toda cultura

    popular (GAARDER, 1995).

    V-se que no mundo moderno tudo contribuiu para uma tica fundamentada

    no homem cujo ponto culminante est na tica de Kant (VSQUEZ, 2008). um

    perodo com importantes pensadores como Hume, Voltaire, Rousseau, Kant e

    outros. Como visto, a tica exige um sujeito autnomo e, evidentemente, que o

    Cristianismo, pela ideia do dever, no atende a esse requisito. Os filsofos seguintes

    tentam resolver essa dificuldade.

    Segundo Rousseau, a conscincia moral inata, ns nascemos bons, mas

    essa bondade natural pervertida pela sociedade. E o cumprimento do dever

    apenas nos fora a recordar nossa boa natureza originria. Portanto, no se trata de

    uma imposio externa, pois quando obedecemos ao dever, obedecemos a ns

    mesmos (CHAUI, 2009).

    De acordo com Kant, o homem responsvel por seus atos e tem

    conscincia de seu dever, fato que o obriga a supor que livre. O homem age por

    respeito ao dever e no obedece a outra lei a no ser a que lhe dita sua conscincia

    moral. Para ele, os homens so fins em si mesmos e, como tais, formam parte do

    mundo da liberdade (VSQUEZ, 2008). Ao contrrio de Rousseau, afirmou que a

    conscincia moral no inata, na verdade, nascemos egostas, agressivos.

    Institumos valores morais pelo exerccio da razo, portanto o dever a expresso

    de nossa liberdade. Ns buscamos na razo o que tico e moral; sendo assim, se

    seguimos imposies morais, seguimos nossa razo, ento, existe liberdade

    (CHAUI, 2009). Trata-se de uma tica formal (tem de postular um dever para todos,

    independentemente da situao social) e autnoma (ope-se s morais

    heternomas nas quais a lei que rege a conscincia vem de fora) (VSQUEZ, 2008).

    Apesar dessas deferncias, Kant e Rousseau deixaram de considerar que

    as relaes pessoais entre indivduos so determinadas por suas relaes sociais.

    Deram mais ateno relao entre sujeito humano e natureza do que entre sujeito

    humano e cultura ou histria (CHAUI, 2009).

  • 27

    2.1.4 A Idade Contempornea

    Segue-se a Idade Contempornea, meio do sculo XIX at os dias atuais,

    quando se tem diferentes posies filosficas que foram expostas por alguns de

    seus maiores pensadores, cada um em sua rea de investigao (GAARDER,

    1995).

    A tica contempornea surgiu numa poca de vrios progressos cientficos e

    tcnicos que questionam a prpria existncia da humanidade, em razo da ameaa

    que seus usos destruidores acarretam. Filosoficamente, a tica se apresenta como

    uma reao contra o formalismo e o universalismo kantiano em favor de um homem

    concreto; contra o racionalismo absoluto e em favor do reconhecimento do irracional

    no comportamento humano; contra a fundamentao transcendente da tica e em

    favor da procura da sua origem no prprio homem (VSQUEZ, 2008).

    Didaticamente, pode-se estudar a tica contempornea por meio de muitas doutrinas

    diferentes, dentre as quais foram selecionadas as que se seguem.

    Uma delas compreende filsofos existencialistas como Kierkegaard e Sartre.

    Para Kierkegaard, pai do existencialismo, o que importa o homem concreto e sua

    subjetividade porque o indivduo existe unicamente no seu comportamento

    plenamente subjetivo. Apesar disso, o indivduo deve pautar seu comportamento por

    normas gerais e, por isso, perde em subjetividade (VSQUEZ, 2008).

    Para Sartre, tambm existencialista, cada indivduo escolhe livremente e, ao

    fazer isso, cria o seu valor. Assim, no existem valores objetivamente fundados,

    cada um cria os valores e normas que guiam seus comportamentos. E o que

    determina o valor de cada ato no o seu fim nem seu contedo, mas o grau de

    liberdade com que se realiza. A liberdade o valor supremo, o valioso escolher

    livremente. Na sua tica o homem se define por sua liberdade de escolha e pelo

    carter singular dessa escolha (VSQUEZ, 2008).

    Segundo Sartre, a liberdade a escolha incondicional que o homem faz de

    seu ser e de seu mundo. Quando algum julga estar sob o poder de foras externas

    mais poderosas que a prpria vontade, esse julgamento uma deciso livre, afinal,

    outros homens, nas mesmas circunstncias, podem no se curvar (CHAUI, 2009).

  • 28

    Outra doutrina a do pragmatismo, marcado pelo egosmo. Os valores e

    normas so esvaziados de contedo objetivo e o valor do bom varia de acordo com

    cada situao; so rejeitadas normas objetivas (VSQUEZ, 2008). A teoria

    pragmtica define o conhecimento verdadeiro por um critrio que no terico e,

    sim, prtico. Assim, a verdade sempre verdade se obtida por induo e por

    experimentao; alm disso, um conhecimento verdadeiro no s quando explica

    algo, mas quando obtm consequncias prticas e aplicveis (CHAUI, 2009).

    Cita-se, ainda, uma terceira corrente, a psiquitrica e psicoteraputica, cujo

    representante Freud. Segundo ele, o comportamento moral do homem obedece a

    foras ou impulsos que escapam ao controle da sua conscincia (VSQUEZ, 2008).

    A descoberta do inconsciente traz resultados graves para as ideias de

    conscincia responsvel, vontade livre e valores morais. Do ponto de vista do

    inconsciente, mentir, matar, roubar so simplesmente amorais, pois o inconsciente

    no conhece valores morais. No caso especfico da tica, a psicanlise mostrou que

    uma das fontes dos sofrimentos psquicos, causa de doenas e de perturbaes

    mentais, o rigor excessivo do superego (censura moral, interiorizada pelo sujeito,

    que absorve os valores de sua sociedade) que produz um ideal do ego (valores e

    fins ticos) irrealizvel, torturando psiquicamente aqueles que no conseguem

    alcan-lo (CHAUI, 2009).

    Desse modo, em lugar da tica h violncia. Violncia da sociedade, que

    exige dos sujeitos padres de conduta impossveis de serem realizados. Violncia

    dos sujeitos para com a sociedade, pois somente transgredindo os valores

    estabelecidos podero sobreviver (CHAUI, 2009).

    Para encerrar toda a matria sobre a evoluo histrica da tica, Paim

    (2003, p. 13), em suma, traz como principais modelos ticos:

    I. A tica grega, segundo a qual a virtude no obrigatria, exigindo pr-requisitos e apresentando-se de forma distinta em relao a certos papis sociais, achando-se associada ao saber. II. A tica de salvao, elaborada durante a Idade Mdia, assim denominada por ter interpretado a tica grega de ngulo teolgico, dando precedncia vida eterna. III. A tica social, elaborada nas naes protestantes, na poca Moderna, com o propsito de fixar critrios para a incorporao de princpios morais sociedade, j que a moralidade bsica entendida como sendo individual e dizendo respeito a uma relao com o Criador que no admite mediaes.

  • 29

    IV. A tica do dever, formulada por Kant, que circunscreve o problema tico ao da fundamentao da moral, preconizando uma soluo racional, sem recurso divindade. V. A tica ecltica, que se prope conciliar o racionalismo kantiano com a simultnea admisso de inclinaes morais nos homens, adotada pelos neotomistas. VI. A tica dos fins absolutos, segundo a qual "os fins justificam os meios", que, sem abdicar dos pressupostos cientificistas que a fazem renascer na poca Moderna, veio a ser encampada pelos marxistas. VII. A tica de responsabilidade, proposta por Max Weber, que pretende fazer renascer a tradio kantiana, no que diz respeito eliminao da dependncia religio, reelaborando-a para abandonar os vnculos que porventura tivesse estabelecido com a suposio de uma sociedade racional.

    2.2 TICA: CONCEITO, OBJETO, FINALIDADE

    A tica, do latim ethica, denota cincia da conduta (ABBAGNANO, 2007) e,

    do grego ethos, compreende as relaes sociais em que o homem nasce e se

    desenvolve (FREITAS, 2005), sendo denominada, tambm, como filosofia moral

    (CHAUI, 2009). A moral, por sua vez, vem do latim mos, costume, no sentido de

    conjunto de normas ou regras adquiridas por hbito. Ethos e mos assentam-se num

    modo de comportamento que no corresponde a uma disposio natural, mas que

    adquirido por hbito. V-se que o significado etimolgico de moral e de tica no

    fornecem o significado atual dos dois termos (VSQUEZ, 2008).

    Em diversas situaes os indivduos se defrontam com a necessidade de

    basear o seu comportamento em normas que julgam mais apropriadas, cumprem

    determinados atos, formulam juzos e se servem de argumentos que justificam as

    decises tomadas. Trata-se de um comportamento humano prtico-moral, mas, alm

    desse, os homens refletem sobre o mesmo, tomam-no como objeto de reflexo.

    Passa-se do plano da prtica moral para o da teoria moral, para a esfera dos

    problemas terico-morais ou ticos (VSQUEZ, 2008).

    A reflexo vinculada ao agir humano e que se expressa em juzos

    prescritivos, portanto, a moral. Um segundo nvel reflexivo acerca dos juzos,

    cdigos e aes morais j existentes chama-se tica (CORTINA, 2009). So

  • 30

    importantes tais afirmaes porque a mesma, por vezes, utilizada como sinnimo

    de moral.

    A tica, sendo assim, uma das subdivises da filosofia que estuda os

    juzos de apreciao da conduta humana, compreende os comportamentos que

    caracterizam uma cultura ou um grupo profissional (OGUISSO; SCHMIDT;

    FREITAS, 2010). Ela surge quando se discute os costumes e a compreenso do

    carter de cada pessoa, ou seja, seu senso e conscincia morais (CHAUI, 2009).

    Cortina (2009, p. 65), por sua vez, sustenta que o saber do prtico.

    A moral, assim, contemplada como um fenmeno que se manifesta

    primordialmente por uma linguagem formada por expresses como justo, injusto,

    mentira, lealdade etc. Tem como caractersticas: realizao da vida feliz;

    ajustamento a normas humanas; aptido para soluo de conflitos; aptido para ser

    solidrio; assuno de princpios universais que nos permitem avaliar as concepes

    morais dos outros e da prpria comunidade (CORTINA; MARTNEZ, 2005).

    Em sntese, quando algum enfrenta uma situao real, dever resolver por

    si mesmo, com a ajuda de norma que reconhece e aceita. De nada adianta recorrer

    tica para encontrar uma norma de ao, pois ela poder dizer-lhe o que um

    comportamento baseado em normas, ou em que consiste o fim visado pelo

    comportamento moral. O problema do que fazer numa situao da vida cotidiana

    um problema prtico-moral e no terico-tico (VSQUEZ, 2008).

    Pode-se inferir que o uso social dessas duas palavras no a deslindam, visto

    que na linguagem comum e na aplicao desta reflexo filosfica, ambas so

    utilizadas de forma indistinta. A tica se diferencia da moral por no estar presa

    determinada imagem do homem aceita por certo grupo (CORTINA, 2009).

    ticas tradicionais partem da ideia de que a misso do terico dizer aos

    homens o que devem fazer, ditando-lhes normas para pautar seu comportamento.

    Modernamente, a funo da tica a de explicar determinada realidade, elaborando

    os conceitos correspondentes. Seu objeto, portanto, a realidade humana que se

    chama moral, constituda por atos humanos (VSQUEZ, 2008).

    Da mesma forma, Cortina (2009, p. 67) elucida que porque a tarefa da tica

    consiste em esclarecer o fundamento pelo qual os juzos morais se apresentam com

    pretenses de necessidade e universalidade que seu objeto se funde na forma da

  • 31

    moralidade. Em outras palavras, dizer que seu objeto envolve o dever relacionado

    s aes expressas por juzos morais.

    Examinados conceito e objeto, sobeja a finalidade da tica. Esta trata de

    esclarecer se est de acordo com a racionalidade humana ater-se obrigao

    universal expressa nos juzos morais, ou seja, proporcionar procedimento lgico

    que permita discernir quando um contedo convm forma moral (CORTINA, 2009).

    Na construo de uma profisso, pode-se reconhecer o ideal tico que a

    orienta a partir das teorias, das crenas, dos paradigmas e da anlise dos objetivos

    propostos, dos conceitos que a fundamentam, de suas formas de escolher,

    formalizar e exercitar os conhecimentos considerados necessrios para o seu

    exerccio (MAFFIOLETTI; LOYOLA, 2003).

    Eventualmente, podem ocorrer conflitos entre os valores pessoais ou

    culturais do enfermeiro com aqueles de outros profissionais ou do paciente. Nesse

    caso, as diretrizes tico-profissionais devem ser suficientes para dirimir a questo,

    tendo em vista que os valores pessoais, religiosos ou culturais do enfermeiro no

    podem se sobrepor aos direitos do paciente (OGUISSO; SCHMIDT; FREITAS,

    2010).

    Esses conflitos podem levar a dilemas ticos. Estes podem causar

    sofrimento e confuso em pacientes e provedores de cuidados. A controvrsia a

    natureza dos problemas da tica, e para super-la e determinar um curso de ao,

    as questes ticas so processadas com cuidados. Processar um dilema tico

    requer negociao de diferenas, incorporao de ideias conflitantes e um esforo

    para se respeitar distintas opinies. Essa negociao pode ser em parte uma

    maneira de se entender ambiguidades (POTTER; PERRY, 2005).

    A formao generalista do enfermeiro enfatiza o contexto histrico-tico-

    legal da profisso, sendo importante acompanhar a evoluo da legislao da

    Enfermagem (leis, decretos, resolues, pareceres, projetos de lei) que interferem

    na delimitao dos espaos de atuao profissional do enfermeiro (OGUISSO;

    SCHMIDT; FREITAS, 2010).

    Apesar do conceito sobre tica profissional estar em constante evoluo,

    est claro que ela no significa apenas uma moral do bem e do mal e, sim, um meio

    de direcionar as aes de forma prudente tanto para profissionais quanto para os

  • 32

    pacientes no que diz respeito integridade fsica e moral durante o cuidado prestado

    (GARRAFA, 2005).

    2.3 CONFLITOS E DILEMAS TICOS NA ENFERMAGEM

    No h muitos estudos que contemplem os dilemas e conflitos ticos

    vivenciados por profissionais da Enfermagem. Sendo assim, no se pode deixar de

    expor comentrios sobre os parcos trabalhos realizados quanto a esse tema, at

    mesmo porque se revestem de grande interesse para essa rea da sade, por sua

    profundidade e mrito.

    Para descrever e analisar julgamentos morais das enfermeiras, Coelho e

    Rodrigues (2006) realizaram estudo qualitativo com 28 enfermeiras; mediante a

    anlise temtica dos dados, o direito informao foi descrito e, no conjunto, as

    respondentes basearam suas justificativas na tica normativa e deontolgica.

    Estudo identificou e analisou as implicaes ticas oriundas das prticas de

    acolhimento em Unidades Bsicas de Sade (UBS) e seus reflexos na ateno

    sade dos usurios. Revelaram-se contextos permeados por conflitos ticos;

    distanciamentos tcnicos e conceituais e limitaes estruturais; diferenas entre o

    que se caracterizou como o desejo de se sentir acolhido com respeito e as

    frustrantes experincias vivenciadas nas UBS, as quais revelam situaes de

    excluso e negao do direito sade. Resumidamente, os resultados mostraram

    um revs na implementao do acolhimento com os princpios da universalidade, da

    integralidade e da garantia do direito sade (BREHMER; VERDI, 2010).

    Freitas e Oguisso (2007) descreveram o perfil de profissionais de

    Enfermagem envolvidos em ocorrncias ticas. Os resultados expuseram que a

    maioria das ocorrncias envolveu profissionais do sexo feminino, sendo que a

    maioria foi comunicada Comisso de tica de Enfermagem da instituio pelos

    enfermeiros da mesma; parte significativa dos envolvidos encontra-se na faixa etria

    de 30 a 39 anos e, aproximadamente, metade deles eram auxiliares de

    Enfermagem; a jornada de trabalho de maior incidncia das ocorrncias

  • 33

    correspondente a seis horas dirias, envolvendo profissionais com mais de trs

    meses de vnculo empregatcio na instituio alvo do estudo.

    Chamma (2002), em seu estudo sobre dilemas ticos no processo ensino-

    aprendizagem de sade mental e Enfermagem psiquitrica, encontrou diversas

    situaes de natureza tica como: internao involuntria, restrio da liberdade,

    conteno fsica sem indicao teraputica, maus-tratos, furto de pertences e

    sujeio eletroconvulsoterapia e outros tratamentos sem consentimento do

    paciente; abuso de poder; negligncia e imprudncia profissionais; preconceito;

    mentiras; abuso sexual de paciente por outro paciente; relacionamento sexual

    consentido entre pacientes; recusa de familiares na participao do tratamento;

    ausncia de enfermeiro nos servios de sade e falta de condies mnimas para o

    exerccio de Enfermagem.

    Sua tese contempla, ainda, outras interrogaes ticas, mas, a partir das

    citadas, d para se ter uma noo da gravidade das situaes encontradas. Alm da

    gritante negligncia profissional, existe um desrespeito muito grande com os direitos

    dos pacientes que, infelizmente, desconhecem algumas de suas faculdades legais.

    A mesma autora aponta que a resoluo de tais dilemas envolve um conflito

    entre os valores individuais e a submisso s normas e regras institucionais que

    dificultam a tomada de decises. Alm disso, so empecilhos para o enfrentamento

    o desconhecimento, o conformismo, a liberdade tolhida e o prprio medo dos

    profissionais nas diversas situaes que se apresentam (CHAMMA, 2002).

    Com o objetivo de revelar os dilemas ticos nos servios de medicina

    diagnstica, Taffner (2005) realizou um estudo fenomenolgico que mostrou os

    seguintes dilemas referidos por enfermeiros: incluso ou no de pacientes

    oncolgicos em pesquisas clnicas; maus-tratos de me contra filhos; recusa, por

    parte de pacientes ou responsveis, da realizao de procedimentos por

    determinados profissionais; administrao de medicao com dosagens

    inadequadas; coleta de exames de menor de idade que se recusa a faz-lo e sem a

    autorizao necessria; limites da competncia legal de outros profissionais; falta de

    autonomia dos enfermeiros; e outros.

    Nesse estudo, as decises tomadas para a resoluo dos dilemas incluem a

    participao de todos os envolvidos, ponderao do custo-benefcio para o paciente,

  • 34

    prtica humanizada, respeito hierarquia institucional, cumprimento das normas da

    instituio, imparcialidade com a equipe (TAFFNER, 2005). Ressalta-se que, embora

    os profissionais devam certa obedincia ao local onde trabalham, tal obedincia no

    pode se sobrepor a leis e resolues que regulam a profisso. Ao contrrio, os

    profissionais devem reunir esforos para fazer cumprir o que de direito.

    No centro cirrgico, Duarte (2004) identificou como principais dilemas ticos,

    vivenciados por enfermeiros, a falta de adequada infraestrutura dentro das

    instituies hospitalares para atender demanda, o desrespeito aos pacientes e

    enfermeira, erro da equipe, alm de outros.

    Novamente so registrados casos de erro e negligncia profissionais e

    desrespeito aos pacientes. Importante lembrar que os profissionais devem estar

    comprometidos com a sade das pessoas.

    Relato de experincia, com o intuito de relatar o acompanhamento domiciliar

    e promover reflexo a respeito do dilema tico de cuidar de um paciente em fase

    terminal, concluiu que preciso sentir a realidade do paciente, realizar uma

    abordagem interdisciplinar e voltar o olhar para um cuidado com qualidade de vida

    nos momentos finais (SOUZA; SOUZA; SOUZA, 2005).

    Outro relato de experincia descreveu as dificuldades relacionadas aos

    primeiros socorros durante uma olimpada estudantil e correlacionou a experincia

    vivida com aspectos tcnicos, cientficos e ticos recomendados para a atuao do

    enfermeiro. Mostrou-se o dilema entre dar continuidade ou no ao tratamento de

    atletas sem recursos materiais necessrios s possveis intervenes mdicas por

    ocasio de algum dano sofrido (FRANA et al., 2007).

    Uma reviso identificou que os profissionais de sade vivenciam dilemas

    ticos quando precisam administrar hemotransfuso em Testemunhas de Jeov.

    Isso se d devido liberdade religiosa no ser um valor absoluto e ocorrer uma

    coliso de direitos fundamentais que exigem uma tomada de deciso centrada no

    ordenamento jurdico e nos princpios bioticos (FRANA; BAPTISTA; BRITO,

    2008).

    Estudo de abordagem qualitativa, realizado em Unidade de Terapia Intensiva

    (UTI) de um hospital geral do municpio de So Paulo, encontrou dilemas ticos

    ligados diversidade de valores, presena de pacientes terminais, s incertezas

  • 35

    sobre a terminalidade e limites de interveno para prolongar a vida de pacientes,

    discordncia na tomada de deciso, a no aceitao do processo de morte pela

    famlia do paciente e falta de esclarecimento da famlia e do paciente. A tomada de

    deciso dos enfermeiros, frente a essas situaes, leva em considerao os valores

    pessoais, a tica profissional, a empatia e o dilogo com os colegas (CHAVES;

    MASSAROLLO, 2009).

    Trigueiro et al. (2010), por meio de pesquisa qualitativo-exploratria com o

    fim de conhecer a percepo e a ao de enfermeiros diante da ordem de no

    reanimao, constataram que a maioria dos enfermeiros esto de acordo com a

    ortotansia, entretanto, o dilema tico mais vivenciado na prtica foi a distansia. As

    autoras (2010) concluem relembrando da necessidade de conscientizao sobre a

    importncia da participao do enfermeiro na tomada de deciso quanto a reanimar,

    opinando junto equipe multiprofissional na escolha do melhor.

    Todos os estudos relatados demonstram como o tema se sobressai e

    necessita de mais estudos, contribuies e discusses frequentes, pois tem

    correlao direta com o exerccio da profisso de Enfermagem e com a preveno

    de danos contra o paciente.

    2.4 CUIDADO DOMICILIAR SADE

    A composio tratada aqui contempla algumas consideraes sobre a

    evoluo histrica, a difuso e quatro dimenses acerca do cuidado domiciliar e seu

    conceito: o cuidado, a famlia, o contexto e o cuidador domiciliar.

    um trusmo afirmar a importncia desse texto. Com efeito, o cuidado

    domiciliar em qualquer sistema de sade, pblico ou privado, apresenta-se como

    uma alternativa eficaz ao modelo hospitalocntrico e com fora de resolutividade.

  • 36

    2.4.1 Histrico do cuidado domiciliar

    O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), por meio da Resoluo Cofen

    290/2004, determina que o cuidado domiciliar uma atividade especializada

    (BRASIL, 2004) e regula, pela Resoluo 270/2002, a atividade das empresas que

    prestam servios de Enfermagem domiciliar (BRASIL, 2002).

    A regulamentao da Enfermagem domiciliria relativamente recente, no

    obstante o mesmo no se pode afirmar de suas origens. A partir do momento em

    que grupos nmades constituram-se em tribos, as mulheres passaram a exercer a

    prtica de cuidar que consistia em aes que garantissem a sobrevivncia

    (GEOVANINI et al., 2005).

    Na Grcia (443 a.C.), h relatos de mdicos que percorriam as cidades

    assistindo s famlias, de casa em casa, orientando-as quanto melhoria do

    ambiente fsico, proviso de gua, alimentos puros, alvio da incapacidade e do

    desamparo (REINALDO; ROCHA, 2002). E, na Bblia, possvel identificar alguns

    aconselhamentos sobre como os hebreus deveriam cuidar de doentes, da higiene e

    da alimentao (BBLIA SAGRADA, 1993).

    No sculo XV, organizaes militares e religiosas iniciaram uma espcie de

    atendimento domiciliar. Em 1610, So Francisco de Sales fundou a Ordem da

    Virgem Maria, congregao feminina que visitava os doentes em casa pondo em

    prtica atividades como alimentao, higiene e auxlio na vestimenta. Mais tarde, foi

    fundado o Instituto das Filhas de Caridade destinado ao cuidado de doentes e

    pobres nos domiclios (DUARTE; DIOGO, 2000).

    Entre os anos de 1854 e 1856, em Londres, a prtica da visita domiciliar era

    realizada por mulheres da comunidade, sem muita instruo, que recebiam um

    salrio do Estado para educar as famlias carentes sobre os cuidados de sade.

    Eram chamadas de visitadoras sanitrias e a Sociedade de Epidemiologia de

    Londres era responsvel pelo seu treinamento. Com o passar do tempo, a

    experincia mostrou resultados positivos, o que levou os dirigentes dos distritos

    sanitrios a considerarem que, se empregassem mulheres de educao superior

  • 37

    (mdicas, enfermeiras e parteiras diplomadas) haveria uma otimizao no servio

    prestado aos pobres (ROSEN, 1994).

    Foi creditado a William Rathone a criao do servio de Enfermagem

    Distrital em Liverpool, na Inglaterra, o primeiro em sade pblica domiciliar. Era

    composto por enfermeiras que faziam atendimento aos doentes em suas casas.

    Rathone, em sua residncia, cuidou de sua esposa doente e escreveu todo o

    trabalho que desenvolveu. Tal relato foi fonte de inspirao para Florence

    Nightingale desenvolver recomendaes para o cuidado de Enfermagem em

    domiclio (MANUAL do home care para mdicos e enfermeiras, 1999).

    Nos Estados Unidos, incio do sculo XX, a Enfermagem estava inserida em

    todas as instncias responsveis pela sade pblica. Essa tendncia foi

    acompanhada pelos pases europeus e, em menor grau, por outros. No ano de

    1951, nos Estados Unidos, estavam em atividade 25.461 enfermeiras de sade

    pblica, das quais 12.556 trabalhavam com visitas domiciliares. As agncias

    mantinham o trabalho das enfermeiras junto s comunidades para atender aos seus

    problemas como um todo, inclusive a preveno da doena mental (REINALDO;

    ROCHA, 2002).

    No Brasil, a origem da Enfermagem como profisso deve-se ao cuidado

    realizado nos domiclios. Antes de 1890, quando ocorreu a criao da primeira

    escola para enfermeiros, o cuidado era exercido com fundamento na solidariedade,

    no misticismo e no senso comum. O aspecto profissional da Enfermagem surge com

    a prestao de cuidados nos domiclios, por mes e escravos, ou seja, pessoas sem

    o devido preparo tcnico (MOREIRA, 2005).

    A primeira escola de Enfermagem do sistema Nightingale foi fundada em

    So Paulo, no Hospital Samaritano, em 1894. Maggie K. Grosart e Lillian Lees

    foram duas enfermeiras contratadas cujos contratos dispunham que deveriam

    exercer a Enfermagem domiciliar. Infelizmente, essa iniciativa no teve grande

    repercusso, pois se tratava de um grupo restrito e dirigido s pessoas de religio

    presbiteriana, e as alunas eram recrutadas entre famlias inglesas, americanas e

    alems (OGUISSO; SCHMIDT, 2010).

  • 38

    Em 1918, Carlos Chagas, diretor do Departamento Nacional de Sade

    Pblica, incentivou a criao de cursos e escolas, entre elas a de Enfermeiras

    Visitadoras, fundada com apoio da Fundao Rockefeller em 1923 (ROSEN, 1994).

    Em 1920, Amaury de Medeiros introduziu, na escola de Enfermagem da

    Cruz Vermelha, um curso de visitadoras sanitrias. No mesmo ano, foi criado o

    servio de visitadoras como parte do servio de profilaxia da tuberculose. Tal

    iniciativa marcou a incluso da visita domiciliar como atividade de sade pblica,

    uma vez que o servio fazia parte do Departamento Nacional de Sade Pblica. As

    visitadoras deveriam priorizar aspectos educativos de higiene e cuidado dos doentes

    (SOUZA; LOPES; BARBOSA, 2004).

    Concomitantemente, foram sendo criados, em todo o pas, os centros de

    sade, os quais tinham como objetivo o tratamento da tuberculose e da hansenase

    e a diminuio da mortalidade infantil. Nesses centros, desempenhavam papel

    preponderante as visitas domiciliares executadas por pessoal de nvel mdio

    (SOUZA; LOPES; BARBOSA, 2004).

    Nos devidos termos, Oguisso e Schmidt (2010) afirmam que a Enfermagem,

    at meados do sculo passado, no gozava de prestgio social, pois era exercida

    por pessoas com pouco ou nenhum preparo; tambm a falta de recursos

    tecnolgicos levava as mulheres a preferirem dar luz em casa, assim como outras

    pessoas, em caso de doena, preferiam recolher-se em seus aposentos onde

    algum cuidava delas e, quando necessrio, profissionais eram chamados.

    A partir da evoluo das cincias, os cuidados com a sade foram

    transferidos para as instituies hospitalares. Com a alocao de recursos mais

    sofisticados, essa assistncia tornou-se mais dispendiosa e menos acessvel

    populao, principalmente a rural e a carente, que continuava desassistida. Os

    hospitais, especialmente as santas casas, eram destinados a pessoas que no

    contavam com algum para dar os cuidados. Da a ligao entre as congregaes

    religiosas e os hospitais, onde as pessoas vocacionadas prestavam os cuidados

    num gesto de caridade (OGUISSO; SCHMIDT, 2010).

    No Brasil, inicialmente, o atendimento de sade domiciliria interessou ao

    servio pblico e, somente no final da dcada de 1980, o setor privado foi

    despertado para essa modalidade de servio (LOPES, 2006). Nos ltimos anos, tal

  • 39

    modalidade est presente no desenvolvimento de polticas pblicas de sade. Em

    1991, foi previsto no Programa de Sade da Famlia e regulamentado pela Portaria

    1.892/1997. A Lei 10.424/2002 tambm incluiu o atendimento domiciliar Lei

    8.080/1990, quando foi acrescentado um captulo sobre assistncia domiciliar no

    Sistema nico de Sade (OGUISSO; SCHMIDT, 2010).

    Os servios de cuidado domiciliar expandiram-se de tal maneira, no Brasil,

    que necessitaram de uma regulamentao nacional prpria. Esta foi criada pela

    Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria, do Ministrio da Sade (OGUISSO;

    SCHMIDT, 2010), que baixou a Resoluo da Diretoria Colegiada, RDC, 11, de

    26/01/2006, que dispe sobre o regulamento tcnico de funcionamento de servios,

    pblicos ou privados, que prestam ateno domiciliar (BRASIL, 2006).

    Recentemente, foi aprovada a Portaria n 2.527, de 27 de outubro de 2011,

    do Ministrio da Sade que redefine a ateno domiciliar no mbito do Sistema

    nico de Sade (SUS), estabelecendo as normas para cadastro dos Servios de

    Ateno Domiciliar (SAD), a habilitao dos estabelecimentos de sade no qual

    estaro alocados e os valores do incentivo para o seu funcionamento (BRASIL,

    2011).

    2.4.2 O cuidado domiciliar: conceitos e implicaes

    Em todo o mundo medra o cuidado domiciliar. Nessa perspectiva, fatores

    causais desse crescimento so: aumento dos atendimentos populao idosa, a

    portadores de doenas crnicas degenerativas e sequelas provenientes de doenas

    ou acidentes; mudana do foco curativo para o da integralidade do ser humano;

    intensificao da preveno de doenas, promoo da sade; necessidade de

    reduo de custos; diminuio da sobrecarga existente no hospital; e aumento na

    eficincia e na eficcia do atendimento sade da populao (MARTINS;

    LACERDA, 2008).

    Diferentes autores tm focado sobre esse fenmeno que comprova ser o

    cuidado domiciliar uma opo cada vez mais contnua. Acrescentam-se s

  • 40

    justificativas anteriores: a individualizao do cuidado; o desenvolvimento de

    cuidados de longa durao na privacidade do domiclio; a oferta, ao paciente e

    famlia, da participao no planejamento do cuidado (PEDREIRA et al., 2010).

    Se, de um lado, alguns desses motivos so vistos como razes do

    crescimento do cuidado domiciliar, de outro lado, so considerados benefcios.

    Sendo assim, no se pode deixar de mencionar vantagens como a retomada da

    rotina diria da pessoa dependente, a privacidade, o apoio, a ateno, o carinho dos

    familiares, a diminuio do estresse e a melhora das condies de sade em um

    ambiente que no alimenta a ideia de doena. Quando a hospitalizao

    prolongada h alteraes nos hbitos de vida do dependente, afastando-o dos seus

    familiares, amigos e objetos pessoais, alm do risco de infeco hospitalar. Tudo

    isso favorece a recuperao do estado de sade do dependente (ZEM-

    MASCARENHAS; BARROS, 2009).

    Afora essas benesses, o cuidado domiciliar pode ser uma oportunidade

    significativa para que a autonomia do paciente e da famlia concretize-se, pois, mais

    do que um fazer, um momento em que a enfermeira est vivenciando situaes de

    sade-doena, no locus de habitao do paciente, de relaes e de significado de

    vida (LACERDA, 2010).

    Um dos melhores vernculos sobre o conceito de cuidado domiciliar o de

    Lacerda (2000, p. 34) que assim o denomina:

    cuidado desenvolvido com o ser humano (clientes e familiares), no contexto de suas residncias, e faz parte da assistncia sade dos envolvidos. Compreende o acompanhamento, a conservao, o tratamento e a recuperao de clientes, de diferentes faixas etrias, em resposta s suas necessidades e s de seus familiares.

    Do conceito da autora supracitada, extrai-se que o cuidado realizado num

    ambiente diferente do hospitalar, o domiclio. Alm disso, abrange o cuidado

    prestado tanto ao paciente como ao familiar. Esses fatos tornam a definio de

    cuidado domiciliar especfica em relao as demais.

    De forma menos abrangente e em conformidade com a Resoluo Cofen

    267/2001 (BRASIL, 2001), o cuidado domiciliar consiste na prestao de servios

    de sade ao cliente, famlia e grupos sociais em domiclio. Aqui tambm esto

  • 41

    presentes as caractersticas especficas do cuidar no domiclio e, como j se repisou,

    o foco do cuidado domiciliar de Enfermagem o paciente, a famlia e suas relaes.

    Independentemente da denominao assumida e das atividades

    desenvolvidas, cada uma dessas designaes encerra uma prtica de sade voltada

    para um objeto que pode ser o sujeito individual e se estender para alm do

    indivduo, abrangendo suas diferentes dimenses (KERBER; KIRCHHOF; CEZAR-

    VAZ, 2008) como, por exemplo, a famlia, o contexto e a casa.

    Outro ponto a ser observado a famlia. Esta pode ser conceituada de

    diferentes maneiras, conforme a rea de conhecimento que est enfocando do tema.

    Nesta pesquisa, a definio adotada a mais abrangente possvel, uma vez que

    adequada e interessante para as exposies realizadas. Klock, Heck e Casarim

    (2005) conceituam-na como unidade dinmica, formada por pessoas que se

    percebem como famlia, com certo tempo de convvio, construindo uma histria de

    vida; sendo que seus membros no precisam estar unidos apenas por laos de

    consanguinidade.

    Vale transpor, igualmente, as palavras de Bourget (2005) que relata ser a

    famlia um sistema ou unidade, cujos membros podem ou no viver juntos, pode ter

    ou no crianas, sejam elas de um nico pai/me ou no; nela existe compromisso

    entre seus membros e entre as funes de cuidado esto proteo, alimentao e

    socializao.

    Quando se fala no termo famlia, mais comum se pensar num conjunto de

    pessoas que possuem laos de sangue, como pai e filhos, me e filhos, tios, primos,

    irmos. Mas, como visto, mais do que isso, uma vez que no significado de famlia,

    inserem-se outras pessoas que no possuem ligao de consanguinidade e o que

    se destaca o vnculo estabelecido entre elas. Entender a famlia indispensvel

    quando se pensa em cuidado domiciliar, pois ela que assume total ou parcialmente

    os cuidados do paciente.

    A famlia uma instituio importante e deve ser compreendida como tal por

    parte dos profissionais de sade. Ela a responsvel pela eficcia do tratamento de

    um paciente, uma vez que assumir os cuidados do mesmo; a sua rotina, dinmica e

    a forma como os seus membros se relacionam influenciam no processo de

  • 42

    recuperao de seu familiar doente. Coaduna-se com essas reflexes, o exposto por

    Lacerda (2000, p. 95) quando ressalta que:

    muito importante que os profissionais de sade considerem as implicaes do impacto de uma doena no apenas sobre o indivduo, mas tambm sobre os familiares. Para se analisar este impacto em uma unidade familiar, deve-se considerar como uma doena especfica (sua natureza, seu carter agudo ou crnico e o grau de incapacitao gerado em cada paciente) abala esta famlia e os indivduos a ela pertencentes, pois o impacto da doena em um dos membros da famlia afetar, at certo ponto, os outros membros.

    Requer-se do profissional, por conseguinte, uma viso integralizada, com

    foco assistencial na famlia e no somente no indivduo doente, auxiliando essa

    famlia de maneira mais contextualizada e compreendida dentro das relaes

    familiares, tanto em situao de doena como em situao de sade (KERBER;

    KIRCHHOF; CEZAR-VAZ, 2008).

    Continuando a compreenso da dinmica do cuidado domiciliar, cumpre

    elucidar o contexto domiciliar que inclui, tambm, o entendimento do domiclio

    propriamente dito. Pode-se inferir, com Lacerda (1998), que a casa, o lar, o domiclio

    um local nico que oferece a oportunidade de observar o modo das pessoas

    enfrentarem, em seu meio familiar e com os recursos que lhes so disponveis, os

    problemas oriundos de se ter um familiar que necessita de cuidados diariamente.

    Tais afirmaes vm ao encontro da posio de Santos (2005), segundo o

    qual o ambiente domiciliar deve ser visto como ponto bsico que atenda s

    necessidades do doente; deve-se passar ao paciente que aquele ambiente lhe

    pertence, deve-se pedir licena para entrar, uma vez que estamos invadindo a sua

    privacidade, e cada pessoa possui sua prpria histria naquele local, no devendo

    ser desrespeitada; os objetos encontrados devem ser vistos de forma respeitosa e,

    mesmo que seja para o bem do paciente, as modificaes necessrias no ambiente

    requerem bom senso e s devem ser realizadas depois de discutidas com a famlia e

    com o prprio doente.

    O contexto domiciliar no abarca somente o domiclio, o espao fsico. Este

    permite uma compreenso diferenciada do processo de adoecimento dos indivduos,

    maior contato com a famlia e sua integrao nos cuidados, possibilidade de

    visualizar o contexto familiar e interagir nele. Portanto, o atendimento no domiclio

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    traz benefcios aos indivduos ali tratados, uma vez que so atendidos por uma

    conduta diferenciada dos profissionais que visam humanizao de sua prtica.

    Tal contexto engloba questes sociais, econmicas, culturais e relacionais

    que adquirem uma perspectiva especial, a qual deve ser observada pela enfermeira

    ao realizar o cuidado domiciliar. necessrio respeitar as tradies, hbitos,

    sentimentos e necessidades do paciente e famlia, a fim de enaltecer a humanizao

    e a autonomia dos envolvidos no cuidar. O sucesso do cuidado domiciliar est em

    olhar o indivduo e sua famlia em seu contexto, visualizando e considerando seu

    meio social, suas inseres, seu local de moradia, seus hbitos e relaes e

    qualquer outra coisa ou situao que faam parte de seu existir e estar no mundo

    (LACERDA, 2010).

    Certamente entendemos o cuidado domiciliar como uma forma de tratar da

    sade que anuncia favorveis perspectivas, j que no domiclio possvel conhecer

    todo o contexto de vida do indivduo, sua relao com a famlia, suas condies de

    habitao, de emprego, de saneamento bsico, enfim, suas condies de vida em

    geral.

    Nessa perspectiva, o contexto da casa no se reduz ao seu espao fsico,

    ele dever ser percebido com ampliao de seu significado, pois um conjunto de

    coisas, eventos e seres humanos correlacionados entre si e cujas entidades

    representam um carter particular e interferente ao mesmo tempo (LACERDA,

    2000). uma oportunidade nica para empreender os melhores cuidados de sade

    s pessoas e seus relacionamentos em seu local mais ntimo e privado da

    existncia: o lar (LACERDA, 2010).

    Por fim, outro elemento que possui papel fundamental para o cuidado

    domiciliar o cuidador. Este definido como um indivduo que se dispe a favor das

    necessidades de cuidados necessrios ao enfermo, expondo-se a riscos de

    comprometimento de sua prpria sade em beneficio do doente (BICALHO;

    LACERDA; CATAFESTA, 2008). Santos (2005) divide os cuidadores em dois

    grupos, a saber: o cuidador formal que contratado pela famlia; e o cuidador

    informal que faz parte da famlia.

    Lacerda (2010) elenca importantes questes sobre quem cuida do doente:

    essa pessoa o faz por livre escolha ou porque as circunstncias assim o

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    determinaram; a idade e a escolaridade, assim como tempo de cuidado, so

    aspectos a serem observados pela enfermeira e equipe de sade ao realizarem o

    cuidado domiciliar. A autora (2010) tambm afirma ser necessrio que a enfermeira

    determine, junto ao cuidador, quais aes vai realizar para cuidar, qual a

    periodicidade de fornecimento de orientaes para cuidar, quem vai