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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ GISELLE CHRISTINA CORRÊA NIENKÖTTER A DEMOCRACIA NAS ESCOLAS PÚBLICAS ESTADUAIS DO PARANÁ: GESTÃO DEMOCRÁTICA OU DEMOCRATIZAÇÃO DA ESCOLA? CURITIBA 2009

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    GISELLE CHRISTINA CORRA NIENKTTER

    A DEMOCRACIA NAS ESCOLAS

    PBLICAS ESTADUAIS DO PARAN:

    GESTO DEMOCRTICA OU DEMOCRATIZAO DA ESCOLA?

    CURITIBA

    2009

  • GISELLE CHRISTINA CORRA NIENKTTER

    A DEMOCRACIA NAS ESCOLAS

    PBLICAS ESTADUAIS DO PARAN:

    GESTO DEMOCRTICA OU DEMOCRATIZAO DA ESCOLA?

    CURITIBA

    2009

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao, rea de Concentrao Educao, Cultura e Tecno-logia, rea Temtica Educao e Traba-lho, Linha de Pesquisa Polticas e Gesto da Educao, Setor de Educao, Univer-sidade Federal do Paran, como parte das exigncias para a obteno do ttulo de Mestre em Educao. Orientadora: Prof. Dra. Rose Meri Trojan Coorientadora: Prof. Dra. Tais Moura Tavares

  • AGRADECIMENTOS

    Professora Rose pelo sempre carinho, longas e prazerosas conversas, e o-

    rientao.

    Professora Tais, mais que educadora, amiga, confidente, me-loba, por fa-

    zer parte de mim para o resto da vida.

    Professora Maria Dativa pela generosidade, amizade e valiosas contribui-

    es no exame de qualificao.

    Aos Professores ngelo, Andra, Noela, Rose e Tais pelos ensinamentos, in-

    centivo e confiana.

    Ao Professor Erasto pela preciosa colaborao no exame de qualificao.

    Ao Professor Jefferson pelo aceite de participao na banca e amabilidade

    em todos os nossos encontros.

    s funcionrias do Programa de Ps-Graduao em Educao da UFPR, pelo

    acolhimento e dedicao.

    Simoni, amiga de todas as horas, por compartilhar os estudos, as alegrias e

    as dores nesta jornada e daqui por diante.

    Juliana, que fundamentalmente chegou ao fim do trabalho contribuindo no

    texto e estando ao meu lado, como irm.

    Luiza, amiga dedicada, pelas palavras de estmulo e carinho, ombros e ou-

    vidos nas horas difceis.

    Joaquim, Marilene, Srgio e Wilson, colegas do mestrado, pelas boas risa-

    das, timas discusses e excelentes festas.

    Ana Tereza, Janeslei, Maria Madalena, Marlei e Rosani, mulheres maravi-

    lhosas, mais que companheiras de trabalho, amigas que esto comigo em todos os

    momentos.

    direo e funcionrios da APP-Sindicato pelo apoio e compreenso da mi-

    nha ausncia em alguns perodos.

    Ao Slvio, meu companheiro em grande parte deste trabalho, por acompa-

    nhar a minha trajetria por onze anos.

    Aos meus familiares, que com o seu amor s me fizeram crescer.

    Muito obrigada!

  • Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, isto:

    que as pessoas no esto sempre iguais, ainda no foram terminadas mas

    que elas vo sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior.

    o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, monto.

    Joo Guimares Rosa

  • RESUMO

    A presente pesquisa discutiu a concepo de gesto democrtica defendida pelo governo estadual do Paran, luz da legislao educacional federal referenciada na Constituio Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional de 1996. O princpio da gesto democrtica, que nos movimentos sociais da dcada de 1980 tem um sentido de transformao da sociedade e de contestao da ordem ex-cludente e elitista presente na educao brasileira, parece se converter num conjunto de procedimentos adotveis, inclusive, em discursos conservadores. Em 2003, assu-miram no plano federal e estadual do Paran, governos que se auto-proclamaram democrticos e contrrios ao iderio neoliberal presente na formulao de polticas da dcada de 1990. Com isso, no plano da poltica educacional, adquiriu maior importn-cia o princpio da gesto democrtica. Neste contexto, este trabalho indaga: Qual a amplitude da categoria democracia presente em documentos da educao pblica paranaense? De que forma se apresentam os mecanismos de gesto democrtica nestes documentos? O tema da democratizao da escola limitou-se ao tema da ges-to democrtica? Em que consiste a atual proposta de gesto democrtica? Nessa direo, analisou-se a traduo dessas exigncias legais em documentos da Secreta-ria de Estado da Educao do Paran (SEED) e da APP-Sindicato dos Trabalhadores da Educao do Paran: o Caderno de Apoio para elaborao do Regimento Escolar (2007) e as Edies Pedaggicas da APP-Sindicato, alm do questionrio do Sistema de Avaliao da Educao Bsica (SAEB) de 2003 aplicado aos diretores de escola da rede estadual de ensino do Paran. Os resultados foram analisados luz das ca-tegorias de democratizao da dcada de 1980, quais sejam: democratizao da ofer-ta, dos aspectos administrativos e dos aspectos pedaggicos. Conclui-se que a polti-ca neoliberal se apropriou daqueles temas que eram da esquerda da dcada de oiten-ta, atribuindo um novo significado democratizao da escola, que passa a ser vista como o compartilhamento da manuteno da escola com os pais, a responsabilizao da gesto sobre o diretor, e a gesto democrtica reduzida aos mecanismos de parti-cipao.

    Palavras-chave: Gesto Democrtica. Democratizao da escola. Poltica Educacio-nal. Gesto Escolar.

  • ABSTRACT

    The present research discussed the democratic management conception supported by the State Government of Parana, enlighten by the Federal Education Legislation referred in the Federal Constitution of 1988 and by the National Education Bases Poli-cy Law of 1996. The democratic management principle, which in the social movement of the 80s has the meaning of social changing and of contestation of excluding and eliting present in the Brazilian education, seems to convert in a set of adoptable pro-ceedings, inclusive, in conservative speeches. In 2003, the Federal and the State of Parana elected governments, both self-proclaiming as democratic opposing to the neoliberal ideology present in the legislation formulating of the 90s. According to this, to the state educational politics sphere, the democratic management principle acquired more importance. Within this context, this research questions: What is the amplitude of the democratic category present in the public education documents of the State of Pa-rana? How the democratic management mechanisms are present in these docu-ments? Was the theme of the public schools democratization limited to the democratic management? What is consisted in the democratic management proposal? In this di-rection, the translation of theses legal exigencies were analyzed in the documents of the State Secretary of Education of Parana (SEED) and of the Labor Union of the Education Workers of Parana (APP-Sindicato): the Aid notes to the Schools Regiment elaboration (2007) and the APP-Sindicato Pedagocial Editions, as also the question-naire of the 2003 Basic Education Evaluation System (SAEB) answered by the school principals of the State Public Education System. The results were analyzed by the democratization categories of the 80s, being: offering, management and pedagogical aspects of democratization. It is concluded that the neoliberal politic appropriated those themes which belong to the left parties of the 80s, adding a new meaning to the schools democratization, which starts being seen as the sharing of the school main-tenance with the students parents, the management responsibilization to the school principal, and the democratic management reduced to participation mechanism.

    Key-words: democratic management, school democratization, educational politics, school management.

  • LISTA DE QUADROS

    QUADRO 1 - COMPARATIVO ENTRE OS FINS DA EDUCAO NOS PROJETOS DE LEI DOS DEPUTADOS OCTVIO EL-SIO, JORGE HAGE E A LDB...............................................

    52

    QUADRO 2 - COMPARATIVO ENTRE O DIREITO EDUCAO NOS PROJETOS DE LEI DOS DEPUTADOS OCTVIO EL-SIO, JORGE HAGE E A LDB..............................................

    53

    QUADRO 3 - COMPARATIVO ENTRE A GESTO DEMOCRTICA NOS PROJETOS DE LEI DOS DEPUTADOS OCTVIO ELSIO, JORGE HAGE E A LDB.......................................

    54

    QUADRO 4 - COMPARATIVO ENTRE O CONSELHO NACIONAL DE EDUCAO NOS PROJETOS DE LEI DOS DEPUTADOS OCTVIO ELSIO, JORGE HAGE E A LDB........................

    54

    QUADRO 5 - COMPARATIVO ENTRE O SISTEMA NACIONAL DE EDUCAO NOS PROJETOS DE LEI DOS DEPUTADOS OCTVIO ELSIO, JORGE HAGE E A LDB........................

    55

    QUADRO 6 - COMPARATIVO ENTRE AS NORMAS DA GESTO DE-MOCRTICA NOS PROJETOS DE LEI DOS DEPUTA-DOS OCTVIO ELSIO, JORGE HAGE E A LDB................

    56

    QUADRO 7 - PRINCIPAIS PROGRAMAS DESENVOLVIDOS PELA CGE, DISPONVEIS NO SITE..............................................

    79

    QUADRO 8 - TEMAS DOS TEXTOS PUBLICADOS NAS EDIES PEDAGGICAS DA APP-SINDICATO NOS ANOS DE 2007, 2008 E 2009................................................................

    89

    QUADRO 9 - TAXAS DE RENDIMENTO (APROVAO, REPROVA-O E ABANDONO), TAXA DE ESCOLARIZAO E I-DEB NO ESTADO DO PARAN.......................................

    95

  • LISTA DE TABELAS

    TABELA 1 - MDIAS DE PROFICINCIA EM LNGUA PORTUGUE-SA BRASIL 1995-2005.............................................

    85

    TABELA 2 - MDIAS DE PROFICINCIA EM MATEMTICA BRA-SIL 1995-2005.............................................................

    85

    TABELA 3 - VOC ASSUMIU A DIREO DESTA ESCOLA POR....

    91

    TABELA 4 - OS ESPAOS DE SUA ESCOLA SO UTILIZADOS PARA ATIVIDADES COMUNITRIAS? .........................

    98

    TABELA 5 - OCORRERAM NA ESCOLA...........................................

    99

    TABELA 6 - QUESTES POLTICAS................................................ 100

    TABELA 7 - RELAO ENTRE O TOTAL DE QUESTES NO QUESTIONRIO 2003 E AS QUESTES RELATIVAS GESTO E PARTICIPAO, AOS DIFERENTES SU-JEITOS ESCOLARES....................................................

    102

    TABELA 8 - RELATIVAMENTE AO PROJETO PEDAGGICO DES-TA ESCOLA...................................................................

    105

    TABELA 9 - NESTE ANO, QUANTAS VEZES O CONSELHO DE ESCOLA (CE) SE REUNIU? .............................................

    109

    TABELA 10 - O CONSELHO DE ESCOLA COMPOSTO POR............

    111

    TABELA 11 - COMPARAO ENTRE O PERCENTUAL DE PARTICI-PAO NA COMPOSIO DO CONSELHO ESCOLAR DOS SUJEITOS ESCOLARES NAS ESCOLAS PBLI-CAS ESTADUAIS DO PARAN, NAS ESCOLAS P-BLICAS ESTADUAIS BRASILEIRAS E NO BRASIL NO ANO DE 2003................................................................

    112

  • LISTA DE SIGLAS

    ABE - Associao Brasileira de Educao

    ADI Ao Direta de Inconstitucionalidade

    ANDE - Associao Nacional de Educao

    ANDES - Associao Nacional de Docentes do Ensino Superior

    Anpae - Associao Nacional de Poltica e Administrao da Educao

    ANPEd - Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Educao

    APMF Associao de Pais, Mestres e Funcionrios

    ARENA Aliana Renovadora Nacional

    BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento

    BIRD - Banco Internacional para Reconstruo e Desenvolvimento

    CACE - Coordenao de Assuntos da Comunidade Escolar

    CADEP - Coordenao de Apoio Direo e Equipe Pedaggica

    CBE - Conferncia Brasileira de Educao

    CCJ - Comisso de Constituio e Justia

    CCJC - Comisso de Constituio e Justia e de Cidadania

    CEDES - Centro de Estudos Educao & Sociedade

    CE Conselho Escolar

    CEE Conselho Estadual de Educao do Paran

    CF Constituio Federal

    CGE - Coordenao de Gesto Escolar

    CGT Comando Geral dos Trabalhadores

    CNE - Conselho Nacional de Educao

    CNTE - Confederao Nacional dos Trabalhadores em Educao

    CONAE Conferncia Nacional de Educao

    CONCLAT - Congresso das Classes Trabalhadoras

    CONEB - Conferncia Nacional de Educao Bsica

    CONEd Congresso Nacional de Educao

    Consed - Conselho Nacional dos Secretrios de Educao

    CUT Central nica dos Trabalhadores

    ECA Estatuto da Criana e do Adolescente

    EDUDATA - Sistema de Estatsticas Educacionais

    ENEM Exame Nacional do Ensino Mdio

    ENADE - Exame Nacional de Desempenho de Estudantes

  • FHC Fernando Henrique Cardoso

    FSM Frum Social Mundial

    Fundepar - Fundao Educacional do Paran

    GLBTT - Gays, Lsbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais

    IDEB - ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica

    INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira

    IPEA - Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

    LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional

    MEB - Movimento da Educao Brasileira

    MEC Ministrio da Educao

    MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

    NRE - Ncleo Regional de Educao

    NuPE - Ncleo de Poltica, Gesto e Financiamento da Educao

    OEA - Organizao dos Estados Americanos

    OCDE - Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico

    ONG Organizao No-Governamental

    PC do B Partido Comunista do Brasil

    PDS - Partido Democrtico Social

    PL Partido Liberal

    PISA - Programa Internacional de Avaliao de Alunos

    PNE Plano Nacional de Educao

    PNUD - Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

    PPP Projeto Poltico-Pedaggico

    PSDB Partido da Social Democracia Brasileira

    PSOL Partido Socialismo e Liberdade

    PSPN - Piso Salarial Profissional Nacional

    PSTU Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado

    PT Partido dos Trabalhadores

    SAEB - Sistema de Avaliao da Educao Bsica

    SEED - Secretaria de Estado da Educao do Paran

    UFPR Universidade Federal do Paran

    UNDIME - Unio Nacional dos Dirigentes Municipais de Educao

    UNE Unio Nacional dos Estudantes

    UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura

    UNICEF - Fundo das Naes Unidas para a Infncia

  • SUMRIO

    INTRODUO 1

    1. A CONSTITUIO DA CATEGORIA DEMOCRATIZAO 5

    1.1 O CONCEITO DE DEMOCRACIA 6

    1.2 A DEMOCRACIA LIBERAL 9

    1.3 A ORGANIZAO DO ESTADO LIBERAL BRASILEIRO 17

    1.4 A PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL 24

    1.5 OS MOVIMENTOS SOCIAIS DA EDUCAO E A DESCARACTERIZAO DA DEMOCRATIZAO 33

    2. OS PRINCPIOS DA DEMOCRATIZAO DA ESCOLA PBLICA BRASILEIRA 45

    2.1 A DEMOCRACIA ESCOLAR NA CONSTITUIO FEDERAL DE 1988 46

    2.2 A DEMOCRACIA NA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAO NACIONAL DE 1996 48

    2.3 A DEMOCRATIZAO ESCOLAR E A GESTO DEMOCRTICA: SINNIMOS? 61

    2.4 OS PROCESSOS DE DEMOCRATIZAO DA EDUCAO PBLICA DO PARAN: ELEIO PARA

    DIRETORES E CONSELHO ESCOLAR 66

    3. A EXPRESSO DA DEMOCRATIZAO ESCOLAR NOS DOCUMENTOS OFICIAIS E

    SINDICAIS 72

    3.1 POR QUE TAIS DOCUMENTOS? 75

    3.2 A DEMOCRATIZAO DOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS 87

    3.3 A DEMOCRATIZAO DA OFERTA 94

    3.4 A DEMOCRATIZAO DOS PROCESSOS PEDAGGICOS 97

    CONSIDERAES FINAIS 131

    REFERNCIAS 152

    DOCUMENTOS CONSULTADOS 160

    APNDICE 162

    ANEXO 166

  • 1

    INTRODUO

    A presente pesquisa discute a concepo de gesto democrtica defendida

    pelo governo estadual do Paran, luz da legislao educacional federal referencia-

    da na Constituio Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educao Na-

    cional de 1996.

    fato que o fim da ditadura1 no Brasil foi produto das mobilizaes da soci-

    edade civil, entre os quais se destaca o movimento das Diretas J2 que provocou

    uma srie de outros movimentos de abertura e de anseios pela democracia em di-

    versos mbitos. Na educao no foi diferente e se estabeleceram movimentos que

    defenderam e garantiram, de certa maneira, a instituio do princpio da democracia

    na escola.

    Contudo, a Constituio Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da E-

    ducao Nacional (LDBEN N. 9394/96) no expressaram totalmente as aspiraes

    daqueles que lutaram nos processos de formulao dos documentos legais. A defe-

    sa do princpio constitucional da gesto democrtica tem estado presente em ges-

    tes de um espectro muito amplo de partidos polticos que se situam mais esquer-

    da ou direita.

    O princpio da gesto democrtica, que nos movimentos sociais da dcada de

    1980 tem um sentido de transformao da sociedade brasileira e de contestao da

    ordem excludente e elitista presente na educao brasileira, converte-se, ento, num

    conjunto de procedimentos adotveis, inclusive, em discursos conservadores.

    Sem desmerecer a sua importncia e o avano traduzido legalmente, produ-

    to da presso popular, importa considerar que houve um esmaecimento da conquis-

    ta, no mais se questionando que o que se pretendia estava para alm da democra-

    tizao da gesto da escola.

    Em 2003, assumiram no plano federal e estadual do Paran, governos que

    se auto-proclamaram democrticos e contrrios ao iderio neoliberal3 presente na

    1

    A ditadura militar no Brasil governou o pas a partir de abril de 1964, aps um golpe articulado pe-las Foras Armadas em 31 de maro do mesmo ano, contra o governo do presidente Joo Goulart. Terminou em 1985, tendo como marco o movimento das Diretas J.

    2 Diretas J foi o movimento civil de reivindicao por eleies presidenciais diretas no Brasil ocorrido em 1984.

    3 O conceito de neoliberalismo ser discutido no captulo 1.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Golpehttp://pt.wikipedia.org/wiki/For%C3%A7as_Armadas_do_Brasilhttp://pt.wikipedia.org/wiki/31_de_mar%C3%A7ohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Goularthttp://pt.wikipedia.org/wiki/1984

  • 2

    formulao de polticas da dcada de 1990. Com isso, no plano da poltica educa-

    cional, adquiriu maior importncia o princpio da gesto democrtica.

    Neste contexto, este trabalho indaga: Qual a amplitude da categoria demo-

    cracia presente em documentos da educao pblica paranaense? De que forma se

    apresentam os mecanismos de gesto democrtica nestes documentos? O tema da

    democratizao da escola limitou-se ao tema da gesto democrtica? Em que con-

    siste a proposta de gesto democrtica?

    Investigar a amplitude da democratizao da escola estadual paranaense

    pertinente ao se considerar as duas principais premissas legais do pas para a ges-

    to da escola. A primeira refere-se efetivao do postulado na Constituio Fede-

    ral (1988) e a segunda Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDBEN

    N. 9394/96). Ambas explicitam que a gesto da escola pblica deve ser democrti-

    ca.

    Nessa direo, analisou-se a traduo dessas exigncias legais em documen-

    tos da Secretaria de Estado da Educao do Paran (SEED) e da APP-Sindicato

    dos Trabalhadores da Educao do Paran: o Caderno de Apoio para elaborao do

    Regimento Escolar (2007) e as Edies Pedaggicas da APP-Sindicato, alm do

    questionrio do Sistema de Avaliao da Educao Bsica (SAEB) de 2003 aplicado

    aos diretores de escola da rede estadual de ensino do Paran (em Anexo).

    Identificar a forma com que a democracia escolar se configura nos documen-

    tos supracitados, pode contribuir para o esclarecimento das dificuldades de se ins-

    taurar a gesto democrtica nas escolas pblicas do Paran. Este um dos desafi-

    os desta pesquisa. Afinal, a maior parte da literatura acerca da gesto democrtica

    escolar assinala como ela deveria ser e no necessariamente como ela se apresen-

    ta nas escolas a partir dos indicativos legais e traduzidos pelo poder pblico e pelos

    movimentos sociais nas suas propostas para a escola bsica.

    A literatura que indica como a gesto democrtica deveria ser bastante per-

    tinente e no ser desconsiderada. Contudo, entender como se configura a demo-

    cracia na gesto da escola a partir dos documentos, fornecer subsdios para a

    construo do perfil da gesto escolar paranaense, objeto de pesquisa do Ncleo de

    Poltica, Gesto e Financiamento da Educao (NuPE) da Universidade Federal do

    Paran, do qual participamos.

    Ressalta-se que este trabalho se relaciona a uma das pesquisas do Ncleo

    de Poltica, Gesto e Financiamento da Educao (NuPE) da Universidade Federal

  • 3

    do Paran, intitulada Polticas Educacionais e Qualidade de Ensino: As relaes en-

    tre o investimento financeiro em educao, as condies de qualidade, o perfil da

    demanda educacional e o desempenho estudantil no Estado do Paran. (GOUVEIA,

    A. B.; SOUZA, A. R.; TAVARES, T. M., 2006). Esta pesquisa tem o objetivo de esta-

    belecer a relao entre financiamento, condies de qualidade e desempenho estu-

    dantil na escola bsica, a partir do amplo mapeamento sobre todas as variveis re-

    lacionadas qualidade de ensino no estado do Paran. (GOUVEIA, A. B.; SOUZA,

    A. R.; TAVARES, T. M., 2006, p. 14). Entre estas variveis est o perfil da gesto

    escolar do estado, contemplando no somente as escolas da rede estadual de ensi-

    no objeto desta dissertao -, mas tambm todas as escolas das redes municipais

    de ensino paranaenses.

    Embora este trabalho no tenha como objetivo traar esse perfil, contribui

    para a sua compreenso na medida em que analisa as concepes de gesto de-

    mocrtica presentes na voz da SEED e do Sindicato. Entende-se aqui que tais con-

    cepes so constitutivas do que ou pode ser o perfil de gesto.

    Metodologicamente, utilizou-se como fonte emprica os documentos supraci-

    tados da SEED e da APP-Sindicato e a base de dados das perguntas e respostas

    coletadas dos diretores das escolas paranaenses no respectivo questionrio do SA-

    EB 2003 (MEC/INEP, 2006).

    Foram consideradas sete questes do questionrio 2003 para os diretores,

    sendo duas sobre o conselho escolar, uma sobre o projeto poltico-pedaggico e

    quatro sobre a participao. Os critrios de escolha de cada uma destas questes

    se relacionam com as formas de participao, os processos decisrios, a elaborao

    do projeto pedaggico, o conselho escolar, alm de outras questes conexas de-

    mocratizao da gesto das escolas.

    Com essa base metodolgica, a presente dissertao se constitui de trs

    captulos. O primeiro remete teoria sobre a democracia, desde o seu conceito pro-

    duzido no contexto da consolidao da democracia burguesa europia, passando

    para a construo da sociedade democrtica brasileira. Para esta autora mostrou-se

    necessrio este recuo histrico, sobretudo para a construo do conceito de demo-

    cracia que permeia este trabalho.

    O segundo captulo traz a incluso do preceito da democracia na construo

    da Constituio Federal de 1988, na LDB de 1996 e nos processos e demandas que

  • 4

    instituram a democracia nas escolas pblicas do Paran a partir da dcada de

    1980.

    Por fim, o terceiro captulo trata especificamente da categoria democracia

    nos documentos institucionais e sindicais paranaenses, bem como das questes

    pertinentes gesto da escola no questionrio do SAEB, com a finalidade de anali-

    sar a concepo de democracia e a amplitude da democratizao da escola estadu-

    al paranaense.

  • 5

    A CONSTITUIO DA CATEGORIA DEMOCRATIZAO

    La libert guidant le peuple (leo sobre tela, 1830), Eugne Delacroix (1798-1863),

    260 X 325 cm, Museu do Louvre-Paris

    Uma coisa pr ideias arranjadas, outra lidar com pas de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misrias...

    Joo Guimares Rosa

  • 6

    1. A CONSTITUIO DA CATEGORIA DEMOCRATIZAO

    Dados os princpios da gesto democrtica na constituio de 1988 e na

    LDB de 1996 e a forma como a democracia escolar tratada no regimento escolar

    do estado do Paran, nos textos do sindicato dos trabalhadores da educao para-

    naense e nas perguntas do questionrio do SAEB para diretores, pode-se inferir que

    a democracia no mbito escolar est limitada.

    Partindo do pressuposto que a democracia permeia a organizao escolar

    com o escopo de se criar condies para um ensino pblico de qualidade, assim

    como a escola poder se tornar o espao da aprendizagem da democracia, perti-

    nente entender de que democracia se trata. Ou melhor, esclarecer qual democracia

    vige no Brasil dentro de um dado contexto histrico, como parte de uma totalidade

    mundial, na historicidade da dinmica dos fatos que permearam a construo da

    sociedade brasileira.

    Por isso, trata-se a democratizao como categoria no sentido de traar uma

    orientao de pensamento que contemple as contradies que fazem da escola um

    espao contra-hegemnico, no s de reproduo da relao capital-trabalho, mas

    de transformao social. Com este sentido passe-se a delinear o conceito de demo-

    cracia que orienta este trabalho na busca da compreenso dos acontecimentos que

    levaram reduo da perspectiva da democracia no mbito escolar paranaense,

    como parte do processo de democratizao.

    1.1 O CONCEITO DE DEMOCRACIA

    A democracia como forma de governo apresenta formas conceituais diferen-

    tes de acordo com o modo de produo em que se estabelece.

    Na Grcia Clssica (sculos VI ao IV a.C.), com modo de produo escravis-

    ta, a democracia se originou e se realizou da forma mais direta que j se conheceu

    na histria ocidental, ainda que somente homens livres (mulheres no eram conside-

  • 7

    radas cidads), nascidos no Estado pudessem votar e deliberar em assembleia4.

    Classicamente, a definio de democracia vem do grego - dmokrata

    (de dmos 'povo' + krata 'fora, poder'5) e tem sua origem no trabalho A Poltica, do

    filsofo grego Aristteles. (384322 a.C.).

    Aristteles distinguiu seis formas de governo, estabelecendo como critrio o

    governo de muitos ou de poucos. Ele chamou de dmokrata (democracia) a um go-

    verno injusto governado por muitos, e a um sistema justo o governado por poucos. A

    este ltimo chamou - politea, normalmente traduzido como repblica (do

    latim res publica, 'coisa pblica', 'O Estado'6). A dmokrata de Aristteles chegou

    mais perto do que hoje se traduz como democracia direta, e politea refere-se de-

    mocracia representativa. (ARISTTELES, 1998).

    Desta maneira, a partir dos estudos de Aristteles, as teorias clssicas sobre

    democracia dividem-na nestes dois tipos de democracia; sendo a direta aquela em

    que os cidados decidem diretamente cada assunto por votao. J na democracia

    representativa os cidados elegem representantes que votam os assuntos de inte-

    resse popular, sendo a forma mais comum nas repblicas liberais. Para Doimo, a

    democracia representativa refere-se ao conceito de participao poltica [consagra-

    do] nas formaes liberal-democrticas em referncia participao institucional,

    isto , aquela voltada tomada de decises de poder, por meio de representantes

    escolhidos pelo sistema eleitoral. (DOIMO, 1995, p. 34).

    Sobre o pensamento de Aristteles, Atlio Boron lembra que o governo de-

    mocrtico deve necessariamente beneficiar os pobres, pela simples razo de que

    em todas as sociedades conhecidas at agora estes constituem maioria, e a demo-

    cracia , segundo o filsofo [Aristteles], o governo das maiorias em favor dos que

    nada tm. (BORON, 2001, p. 268).

    No decorrer da histria o conceito de democracia foi sendo adequado e re-

    estruturado ao momento histrico e at mesmo aos interesses que quele servia. No

    caso deste trabalho, interessa o conceito da democracia liberal, por ser a forma de

    4 Em Atenas a tarefa de fazer as leis competia Ekklesia, ou Assembleia do Povo, onde tinham

    lugar todos os considerados cidados. A reunidos, discutiam as decises a tomar e votavam-nas, de brao levantado. O trabalho da Assembleia era previamente preparado por um Conselho, a Bu-l, composto por 500 membros tirados sorte anualmente entre os cidados que se candidata-vam. (LEISTER, 2006). Ver Apndice com o detalhamento da democracia grega.

    5 Dicionrio Eletrnico Houaiss, 2001.

    6 Dicionrio Eletrnico Houaiss, 2001.

  • 8

    governo que se estruturou no capitalismo e por se caracterizar pela participao7

    representativa.

    Como ponto de partida, para se estabelecer a definio de democracia que

    permear este estudo, toma-se os conceitos de democracia no liberalismo e no so-

    cialismo, expostos no dicionrio de poltica de Norberto Bobbio.

    O primeiro parte do conceito clssico da democracia no liberalismo, conside-

    rando que o ponto de chegada da democratizao o sufrgio universal. De acordo

    com Bobbio, o conceito de democracia se esgota em um conjunto amplo de regras

    do jogo, quais sejam:

    1) o rgo poltico mximo, a quem assinalada a funo legislativa, deve ser composto de membros direta ou indiretamente eleitos pelo povo, em e-leies de primeiro ou de segundo grau; 2) junto do supremo rgo legislati-vo dever haver outras instituies com dirigentes eleitos, como os rgos da administrao local ou o chefe de Estado (tal como acontece nas rep-blicas); 3) todos os cidados que tenham atingido a maioridade, sem distin-o de raa, de religio, de censo e possivelmente de sexo, devem ser elei-tores; 4) todos os eleitores devem ter voto igual; 5) todos os eleitores devem ser livres em votar segundo a prpria opinio formada o mais livremente possvel, isto , numa disputa livre de partidos polticos que lutam pela for-mao de uma representao nacional; 6) devem ser livres tambm no sen-tido em que devem ser postos em condies de ter reais alternativas (o que exclui como democrtica qualquer eleio de lista nica ou bloqueada); 7) tanto para a lista dos representantes como para as decises do rgo polti-co supremo vale o princpio da maioria numrica, se bem que podem ser estabelecidas vrias formas de maioria segundo critrios de oportunidade no definidos de uma vez para sempre; 8) nenhuma deciso tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, de um modo especial o direito de tornar-se maioria, em paridade de condies; 9) o rgo do Governo deve gozar de confiana do Parlamento ou do chefe do poder executivo, por sua vez, eleito pelo povo. (BOBBIO et al, 1994, p. 326).

    O prprio autor considera que a democracia liberal se finda nos procedimen-

    tos para chegar deciso poltica e no sobre o que decidir. Sobre o que decidir, as

    regras do jogo democrtico liberal no estabelecem mais nada. Alm disso, todas as

    regras so geralmente institudas por leis, algo que se deve levar em conta em rela-

    o diferena entre o que a lei enuncia e o modo como aplicada. Certamente

    nenhum regime histrico jamais observou inteiramente o ditado de todas as regras;

    e por isso lcito falar de regimes mais ou menos democrticos. (BOBBIO et al,

    1994, p. 326).

    7 Participar: fazer parte de, tomar parte em, fazer saber, informar, anunciar. IN: CUNHA, A. G. da.

    Dicionrio etimolgico da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2007, p. 584.

  • 9

    Em contraposio, os dicionaristas citados apresentam o conceito de demo-

    cracia no socialismo, de forma a ampliar as possibilidades de participao do povo

    na tomada de decises. (BOBBIO et al, 1994).

    Na teoria socialista marxista-engelsiana, tomada por Bobbio como exemplo,

    ao contrrio da democracia liberal que tem como ponto de chegada o voto, este se

    torna o ponto de partida do processo de democratizao. Assim, o processo de de-

    mocratizao na perspectiva socialista critica a democracia apenas representativa e

    defende a democracia direta por meio da ampliao dos canais de participao po-

    pular e do controle do poder pela populao em conselhos. (BOBBIO, 1994, p. 324).

    A partir destes conceitos, toma-se neste trabalho a possibilidade de supera-

    o da democracia representativa, nas lacunas que os prprios limites do capitalis-

    mo permitem. O pressuposto da democracia socialista que o voto a porta de en-

    trada para o redimensionamento dos mecanismos de participao em todas as ins-

    tncias.

    Para se vislumbrar a possibilidade de uma democracia como forma de go-

    verno para o povo, parte-se da democracia liberal que se vivencia, ou seja, aquela

    que se instaurou a partir da revoluo francesa e suas implicaes para a consolida-

    o do capitalismo, bem como as suas contradies, que ao mesmo tempo limitam e

    permitem o avano da democratizao para a classe trabalhadora.

    1.2 A DEMOCRACIA LIBERAL

    A ascenso da burguesia trouxe os princpios da democracia do Estado Mo-

    derno, ou seja, a democracia liberal ou burguesa no final do sculo XVIII, inicialmen-

    te na Frana e depois por toda a Europa. Aps a queda da Bastilha, em 14 de julho

    de 1789, as exigncias do burgus foram delineadas na Declarao dos Direitos do

    Homem e do Cidado. Este documento um manifesto contra a sociedade hierr-

    quica de privilgios nobres, mas no um manifesto a favor de uma sociedade demo-

    crtica e igualitria. (HOBSBAWN, 1976, p. 77).

    Necessrio se faz considerar que a revoluo francesa nasce das contradi-

    es entre a estrutura do antigo regime e o movimento popular. Para acontecer, a

    revoluo precisou das massas camponesas e famintas, mas depois no olhou mais

  • 10

    para ela. A revoluo francesa transferiu o poder poltico efetivo dos proprietrios da

    terra para os donos da propriedade industrial e comercial. (LASKI, 1973, p. 172).8

    Seus princpios fundamentaram-se em direitos como liberdade, igualdade e

    propriedade, porm os dois primeiros relacionaram-se e subordinaram-se ao ltimo.

    Para o burgus liberal clssico, a propriedade privada era um direito natural, sagra-

    do, inalienvel e inviolvel. Os fins a que serviam a liberdade e a igualdade eram os

    fins dos proprietrios. Ou seja, somente os proprietrios exerciam a plena cidadania,

    sendo a propriedade o critrio do civismo. (BUFFA, 2000, p. 26). Aos no-

    proprietrios cabia uma cidadania restrita proteo e propriedade de si prprios,

    sem participao ativa na sociedade como, por exemplo, o direito ao voto para to-

    dos.

    Nesta poca a Frana estava iniciando seu processo de industrializao (j

    bem adiantado na Inglaterra), definindo-se como proprietrios os burgueses, dividi-

    dos em: donos de terras, oficiais e lojistas manufatureiros.

    Se a economia do mundo do sculo XIX foi fundamentada principalmente

    sob a influncia da revoluo industrial britnica, a poltica e a ideologia deste pero-

    do foram formadas basicamente pela revoluo francesa. A Frana forneceu o vo-

    cabulrio e os temas da poltica liberal para a maior parte do mundo. Segundo o his-

    toriador Eric Hobsbawn,

    [...] a Revoluo Francesa pode no ter sido um fenmeno isolado, mas foi muito mais fundamental do que os outros fenmenos contemporneos ... Em primeiro lugar, ela se deu no mais populoso e poderoso estado da Eu-ropa ... [Em 1789, de cada cinco europeus, um era francs]. Em segundo lugar, ela foi (...) uma revoluo social de massa, e incomensuravelmente mais radical do que qualquer levante comparvel. (HOBSBAWN, 1976, p. 72, grifo do autor).

    Na Introduo (1895) do texto As Lutas de Classes na Frana de 1848 a

    1850 de Karl Marx, Engels abstrai a essncia de todas as revolues que acontece-

    ram naqueles anos, em que se inclui a francesa, considerada por Hobsbawn como

    uma revoluo de massa, mas de uma massa depois excluda dos processos con-

    sequentes da revoluo:

    [...] o contedo concreto de cada caso, a forma comum de todas estas revo-lues era serem revolues de minorias. Mesmo quando a maioria presta-va sua colaborao o fazia consciente ou inconscientemente a servio

    8 Harold Joseph Laski (1893-1950), cientista poltico e pedagogo britnico, idelogo do Partido Trabalhista Britnico, conhecido como defensor de uma filosofia poltica derivada do Marxismo.

  • 11

    de uma minoria; mas esta, seja por isso, seja pela atitude passiva e no re-sistente da maioria, aparentava representar o povo. (MARX & ENGELS, [19], p. 97).

    O liberalismo foi uma doutrina criada por uma minoria, sob a premissa de

    uma maioria. Este e outros motivos e desdobramentos da revoluo situam a demo-

    cracia liberal no contexto das relaes capitalistas de classe, de trabalho e de pro-

    duo. A necessidade precpua dessa insero caracteriza a restrio da populao

    nos processos democrticos participativos. Quem no proprietrio no cidado

    efetivamente, mesmo que os preceitos legais de igualdade o indiquem como tal e,

    consequentemente, no tem os mesmos direitos participativos. Na democracia libe-

    ral o espao de participao se amplia do lado do capital: a posse do capital aumen-

    ta o poder de deciso.

    Na sociedade dividida em donos dos meios de produo e em donos somen-

    te de sua fora de trabalho, o trabalho se divide em intelectual e manual. No caso

    das polticas pblicas, por exemplo, h os que as pensam e h aqueles a quem res-

    ta o subjugar-se dada a falta de condies materiais e intelectuais para interferirem

    nas definies polticas que, por sua vez, interferem diretamente em suas vidas. Su-

    jeitos que, nas mais das vezes, vivem maniatados, pelas condies em que se esta-

    beleceu e se configurou a democracia liberal.

    Pouco menos de duzentos anos depois da revoluo francesa, em 1978, nos

    ltimos dias do Welfare State, Macpherson acreditava que o nvel tecnolgico de

    produtividade possibilitaria uma vida de bem-estar para todos. O Welfare State ou

    Estado de Bem-Estar Social imperou na Europa aps a segunda guerra mundial,

    como forma de promoo do bem-estar da populao (sade, educao, moradia

    etc.) e de regulao da economia. Foi a maneira dos pases capitalistas resolverem

    a crise econmica do ps 2. guerra e fazerem frente ao comunismo, de forma que a

    populao no se engajasse nas fileiras do socialismo.

    Segundo Boron,

    [...] nessa poca de ouro que transcorreu entre 1948 e 1973, o que houve foi um capitalismo que governava politicamente os mercados mediante uma densa rede de regulaes e intervenes de todo tipo. Foi exatamente este controle que possibilitou o incio de um profundo processo de democratiza-o... A partir da recomposio neoliberal, a situao muda radicalmente e o que observamos, tanto no centro quanto na periferia, um processo pro-gressivo de esvaziamento e enfraquecimento das instituies democrticas. (BORON, 2001, p. 180).

  • 12

    Sabe-se que a previso de Macpherson no se deu. O Estado de Bem-Estar

    praticamente desapareceu com o advento do neoliberalismo. O neoliberalismo a

    resposta crise do capitalismo decorrente da expanso da interveno do Estado,

    tomando forma no final da dcada de 1970 como 'Reaganismo' e 'Thatcherismo'. O

    arsenal do neoliberalismo inclui o farto uso de neologismos que procuram destruir a

    perspectiva histrica dando novos nomes a velhos processos ou conferir respeito a

    pseudoconceitos. Surgem assim conceitos como o ps-moderno, o desenvolvimento

    sustentvel, os movimentos sociais urbanos, a excluso social, os atores (sociais),

    as ONGs, a globalizao, o planejamento estratgico, que procuram encobrir, ao

    invs de revelar, a natureza do capitalismo contemporneo. (CROZIER, 1975).

    O neoliberalismo reestruturou a sociedade econmica e socialmente, desde

    o final da dcada de 1970, tendo como resultado uma expanso dos mercados sem

    precedentes na histria mundial do capitalismo. (BORON, 2001, p. 174).

    Este quadro de democracia representativa, que implica em participao res-

    trita do povo nas decises polticas, desde o incio do liberalismo - dado que o mo-

    vimento operrio vem pressionando para a superao dos limites de participao

    poltica postos pela burguesia -, abre a perspectiva de elaborao de estratgias no

    que se refere s transformaes do prprio capitalismo. E, nesse contexto, a con-

    quista da vontade das massas passa pelo afianamento de uma slida maioria elei-

    toral. (BORON, 2001, p. 116). O voto se torna a principal arma de transformao

    poltica da classe trabalhadora, mas tambm permite a manuteno do capitalismo.

    O sufrgio universal, ento, encerra uma contradio: a de ser tanto o limita-

    dor do avano da classe dominante mediante a escolha de representantes popula-

    res, como o legitimador do poder desta mesma classe.

    com este sentido de explorao do trabalho e de restrio de direitos que

    se deve distinguir se, nesta democracia, a burguesia somente a classe politica-

    mente dominante, ou se com a perpetuao da explorao econmica ela cede

    seu poder, pelo menos em parte, classe trabalhadora. Lukcs esclarece que, no

    caso da burguesia conferir parte do poder s massas operrias, a funo da demo-

    cracia a de minar e desorganizar o poder poltico e econmico da burguesia e de

    organizar as massas operrias para a ao autnoma. (LUKCS, 1980, p. 22). Esta

    a contraditria positividade da democracia restrita ou representativa: limita o poder

    do povo, mas concede a possibilidade de superao da limitao.

  • 13

    Marx faz a seguinte observao no texto As Lutas de Classes na Frana de

    1848 a 1850 ao dizer que a democracia contraditria no capitalismo porque:

    [...] mediante o sufrgio universal, concede a posse do poder poltico s classes cuja escravido vem de eternizar: o proletariado, os camponeses, os pequenos burgueses. E priva a classe cujo velho poder social sanciona, a burguesia, das garantias polticas deste Poder. Encerra o seu domnio po-ltico nos limites de algumas condies democrticas que a todo momento so um fator para a vitria das classes inimigas e pem em perigo os pr-prios fundamentos da sociedade burguesa. Exige, de uns, que no avan-cem, passando da emancipao poltica social; e, de outros, que no re-trocedam, passando da restaurao social poltica. (MARX & ENGELS, [19], p. 139-140).

    A incompatibilidade da democracia plena com o capitalismo no ser toma-

    da como um fim, mas justamente como o incio de uma transformao a partir da

    tomada de conscincia desta limitao democrtica na sociedade atual. Boron citan-

    do o filsofo mexicano Carlos Pereyra, diz que a expresso democracia burguesa

    um conceito monstruoso, pois esconde uma circunstncia decisiva da histria

    contempornea: a democracia foi obtida e preservada, em maior ou menor medida

    em distantes graus, contra a burguesia... (1990, p. 33, grifos do autor)[9].

    Em primeiro lugar porque errneo atribuir burguesia a conquista da de-

    mocracia, pois esta foi produto de lutas histricas das massas populares, primeiro

    contra a monarquia e a aristocracia, depois e continuamente, contra o capital. Em

    segundo lugar, porque o adjetivo burguesa acessrio e estereotipado, pois o va-

    lor10 da democracia sofre mudanas, independentemente de suas derivaes.

    Por isso, uma expresso como capitalismo democrtico recupera o verda-deiro significado da democracia com mais fidelidade que a frase democra-cia burguesa, ao destacar que suas marcas e notas definitivas - eleies li-vres e peridicas, direitos e liberdades individuais etc. so, apesar de sua inegvel importncia, formas polticas cujo funcionamento e eficcia espec-fica no bastam para esconder, neutralizar nem muito menos dissolver a es-trutura intrinsecamente antidemocrtica da sociedade capitalista ... (BO-RON, 2001, p. 275, grifos do autor).

    Capitalismo democrtico a melhor forma de denominar a democracia re-

    almente existente, pois a forma como se materializa o seu poder inseparvel da

    estrutura econmico-social sob a qual se sustenta: o modo de produo capitalista.

    9 PEREYRA, C. Sobre la democracia. Mxico: Cal y Arena, 1990.

    10 Segundo Coutinho, o valor uma categoria ontolgica social. As objetivaes da democracia (...) tornam-se valor na medida em que contriburam, e continuam a contribuir, para explicitar as componentes essenciais contidas no ser genrico do homem social. (COUTINHO, 1984, p. 24).

  • 14

    A limitao da democracia no capitalismo ratifica a expresso capitalismo democr-

    tico, posto que a democracia atenda tambm aos interesses do capital, com todos

    os benefcios classe trabalhadora obtidos pela sua prpria luta e no como benes-

    se da classe dominante.

    Tem-se ento que o liberalismo realmente existente no possibilita a de-

    mocracia plena11 e a fruio de direitos. Ao contrrio, o elitismo poltico liberal teme

    as maiorias, pois compreende que a massa tende a deixar-se arrastar por meros

    impulsos irracionais, e oprimir, assim, grupos minoritrios.12 (GARGARELLA, 2004,

    p. 99). Isto uma falcia, pois os grupos minoritrios, isto , a classe dominante, usa

    de toda a sua fora de explorao a partir do trabalho, sobretudo, para arrefecer os

    nimos das massas.

    Com efeito, se ordenssemos os sistemas polticos democrticos segundo o lugar que reservam interveno direta da cidadania na discusso e deci-so de assuntos pblicos, deveramos colocar o liberalismo no extremo re-servado aos sistemas mais limitativos da participao poltica das maiorias. (GARGARELLA, 2004, p. 100).

    A restrio do exerccio democrtico o fenmeno que caracteriza a demo-

    cracia representativa. Coutinho afirma que diversos pensadores liberais defenderam

    e procuraram dar expresso democracia um sentido restrito como forma de con-

    servao da ordem. Cita Schumpeter13 como um dos principais reducionistas do

    conceito de democracia ao liberalismo ao dizer que este pensador afirma que no

    se formam maiorias, a poltica feita por elites; o povo, alis, no consegue juntar

    razo e interesse, incapaz de avaliar racionalmente aquilo que lhe interessa efeti-

    vamente. (COUTINHO, 2003, p. 19). Nesta perspectiva, a democracia se restringe

    11

    A democracia realmente existente se restringe escolha bianual entre elites (no se escolhe quem pode se candidatar, apenas vota-se em um dos candidatos impostos), as maiorias no tm ingerncia na escolha de quem pode se candidatar, na distribuio do oramento pblico, por exemplo. Numa democracia plena, as maiorias discutiriam e decidiriam, atravs do voto, os investimentos e as polticas sociais desejadas.

    12

    O autor d interessantes exemplos, ingleses e americanos, sobre os subterfgios criados pelos tericos do campo para limitar a participao poltica dos desafortunados, sem propriedade. Ver GARGARELLA, 2004, p. 100. Roberto Gargarella professor de Teoria Constitucional e Filosofia Poltica na Universidade de Buenos Aires UBA e na Universidade Torcuato Di Tella, tambm na capital da Argentina.

    13

    Segundo Coutinho (2002, p. 19), ... pensador liberal que (...) buscou responder [ao] avano da democracia foi Joseph A. Schumpeter, brilhante economista, autor, entre outros, do livro Capitalismo, socialismo e democracia. Para Atlio Boron, sua concepo poltica era minimalista, ao reduzir o projeto democrtico aos seus contedos formais e procedimentais. (BORON, 2001, p. 268).

  • 15

    ao mtodo de escolha dos dirigentes entre membros das elites, ao contrrio do que

    Coutinho chamou de valor universal da democracia.

    A completa realizao do capitalismo democrtico , no sentido exato do

    termo, um campo de batalha decisivo entre burguesia e proletariado, ou seja, entre

    capital e trabalho. O desenvolvimento das contradies de uma determinada forma

    de conduo poltica a condio para a sua dissoluo e o surgimento de uma no-

    va forma. (MARX, 2006, p. 553).

    Mesmo com seus limites, o capitalismo democrtico amplia o espao polti-

    co, mas dentro da lgica capitalista no h permisso para a igualdade social, pois

    esta democracia legitima a ordem capitalista. Afinal, o sufrgio universal garante

    somente a representatividade, entendida como a delegao do poder. No uma

    representao com controle social, que indicaria uma possibilidade de interveno

    para alm do voto. Controle social significa a ao da sociedade civil sobre o Estado

    a partir da ampliao da participao popular e o compartilhamento da gesto com

    a sociedade civil organizada, atravs da criao de mecanismos sistemticos de

    discusso das prioridades de governo e de avaliao dos servios pblicos pela po-

    pulao. (MICHELETI, 2000, p. 24).

    A contradio inerente democracia via sufrgio est justamente na amplia-

    o da mera participao pelo voto, encontrando formas de maior influncia nas

    complexidades e contradies dos Estados burgueses. uma consequncia das

    prprias necessidades do processo de acumulao capitalista, do avano das lutas

    sociais, da crescente capacidade reivindicativa das massas e da paulatina modifica-

    o da correlao de foras em favor das classes populares. a partir da que En-

    gels constata com esperana o fato de que ... as instituies estatais nas quais se

    organiza a dominao da burguesia oferecem novas possibilidades classe traba-

    lhadora para lutar contra estas mesmas instituies... (MARX, 2006, p. 40 - Prefcio

    de Engels primeira edio inglesa do Capital 1886).

    Desta forma o voto, como uma das possibilidades de democratizao social,

    no deve ser desconsiderado, pois representa um meio, ainda que limitado, das

    classes desfavorecidas para a interveno poltica. E neste aspecto que se situa

    no s o voto, mas o conjunto de regras do jogo democrtico, considerando a sua

    aplicabilidade e a possibilidade de sua transformao para a ampliao da participa-

    o popular, se compreendendo a democracia no como um estado, e sim um con-

    tnuo processo, isto , a democratizao.

  • 16

    Nesse sentido, Lima indica que a democracia no pode ter carter universal

    por receber alcunhas, adjetivos, derivativos. (LIMA, 2006, p. 46). No possvel

    captar a essncia da democracia por esta encerrar interpretaes e localizaes his-

    tricas diferentes, como esclarecido no incio deste captulo ao referenciar o conceito

    em Bobbio.

    Coutinho inclusive, se retratou ao dizer que quando escreveu em 1979 o ar-

    tigo A democracia como valor universal, o fez sob este ttulo mais por provocao ao

    dogmatismo marxista-leninista. Em suas palavras:

    Hoje, se reescrevesse esse velho ensaio, (...), acho que no teria nada a modificar em seu contedo: mas, certamente, poria (...) outro ttulo, ou seja, A democratizao como valor universal, j que o que tem valor universal no so as formas concretas que a democracia adquire em determinados contextos histricos formas essas sempre modificveis, sempre renov-veis, sempre passveis de aprofundamento -, mas o que tem valor universal esse processo de democratizao que se expressa, essencialmente, nu-ma crescente socializao da participao poltica. (COUTINHO, 2003, p. 16-17).

    A democracia assume assim o carter de conceito em constante disputa po-

    dendo significar, no capitalismo, o direito individual de liberdade para possuir e de

    igualdade perante a lei. Vale lembrar que os pressupostos do liberalismo, sob a lgi-

    ca capitalista, ainda so os mesmos definidos por Marx.

    S reinam (...) igualdade, liberdade, propriedade... Liberdade, pois o com-prador e o vendedor de uma mercadoria a fora de trabalho, por exemplo so determinados apenas pela sua vontade livre. (...) Igualdade, pois es-tabelecem relaes mtuas apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um s dispe do que seu. (...) A nica fora que os junta e os relaciona a do proveito prprio, da vantagem individual, dos interesses privados. (MARX, 2006, p. 206).

    Assim, reafirma-se que o conceito de democracia no capitalismo ou de capi-

    talismo democrtico encerra uma contradio: as limitaes impostas pelo capitalis-

    mo se opem s transformaes desejadas pela maioria, mas permitem a criao

    das condies para que os trabalhadores lutem pela construo de uma sociedade

    realmente igualitria. A desigualdade social e a falta de liberdade que se ocultam

    sob a capa da igualdade e da liberdade formais.

    Compreende-se a amplitude da concepo de um socialismo democrtico,

    por no existir em ltima instncia socialismo sem democracia tampouco democracia

  • 17

    sem socialismo14, pois a igualdade real, efetiva, plena o pice da plena demo-

    cracia. Isto corrobora com as afirmaes de que no capitalismo s pode haver uma

    democracia restrita.

    No Brasil, a democracia restrita parece ainda mais contundente quando se

    une a isso a herana portuguesa do patrimonialismo e das prticas clientelistas des-

    de a colonizao, como se ver a seguir.

    1.3 A ORGANIZAO DO ESTADO LIBERAL BRASILEIRO

    O Brasil, alm de pegar o bonde andando no que se refere ao liberalismo e

    s pr em prtica os pressupostos econmicos do capitalismo, com a resistncia da

    oligarquia agrria, ainda tem como agravante a construo de uma sociedade sob o

    domnio de um pas Portugal - atrasado econmica e politicamente, que imprimiu

    neste processo um carter burocrtico e patrimonial.

    Pensadores brasileiros tambm delinearam o conceito de democracia, po-

    rm na perspectiva peculiar e tardia com a qual o liberalismo chega ao Brasil, assim

    como peculiar sua histria desde a dominao portuguesa. Os princpios do ca-

    pitalismo democrtico chegaram aqui no incio do sculo XIX, tendo maior influncia

    a partir da Independncia de 1822, j com a forte marca da excluso da participao

    popular.

    Para Costa (1999), os principais adeptos do liberalismo no Brasil foram ho-

    mens interessados na economia de exportao e importao, proprietrios de gran-

    des extenses de terra e escravos. Estes ansiavam por manter as estruturas tradi-

    cionais de produo, libertando-se do jugo de Portugal e ganhando espao no livre-

    comrcio. Esta elite tencionava manter as estruturas sociais estamentais e econmi-

    cas agrrias. Aps a independncia, os liberais pretendiam ampliar o poder legislati-

    vo em detrimento do poder real.

    14

    Se entendermos por socialismo a criao das condies para que a igualdade seja efetiva no s no plano econmico-social, mas tambm no plano poltico para que, ao lado da socializao dos meios de produo, haja tambm a socializao do poder -, ento devemos ter claro que no h democracia plenamente realizada sem socialismo. (COUTINHO, 2003, p. 32, grifos do autor). Na verdade, quem enuncia a inexistncia da democracia no capitalismo Rosa Luxemburgo. (Rosa fez esta afirmao em carta a Sonia Liebknecht, anterior a 24 de dezembro de 1917. In: Gesammelte Briefa. Traduo de: s/ autoria, v. 5. Berlim, Dietz Verlag, 1984).

  • 18

    Para compreender como se estabeleceu o capitalismo democrtico no Esta-

    do brasileiro, de acordo com os pressupostos at aqui expostos, e como a socieda-

    de brasileira se organizou na tentativa de conquista de espaos de democratizao,

    faz-se necessrio investigar este processo.

    Desde a colonizao organizada a partir do loteamento do territrio entre a

    elite portuguesa pelo sistema das capitanias hereditrias o poder no Brasil cal-

    cado no patrimonialismo15, organizado e guiado pela alternncia do poder entre as

    classes dominantes. Embora no tenha vingado como sistema colonizador, as capi-

    tanias hereditrias inauguraram as grandes propriedades, de carter patrimonial, no

    pas.

    O patrimonialismo tambm se caracteriza pela dominao senhorial, basea-

    da na economia escravista, com estrutura dual: a dominao tradicional dos senho-

    res e a ordem legal que o liberalismo trouxe para o Brasil. Esta estrutura dualista d

    origem outra forma de dominao: a estamental. O alto nvel de burocratizao e

    funcionalismo que o liberalismo brasileiro herdou do portugus possibilitou a domi-

    nao estamental como forma de organizao poltica. Para as elites dominantes, o

    estamento16 senhorial representava a sociedade civil, o povo, sendo a ele atribudo o

    direito de voto e de opinio. A democracia[17] no era uma condio geral da socie-

    dade. (FERNANDES, 2006, p. 63).

    15

    Organizao poltica bsica brasileira herdada da forma de organizao do Estado portugus. O patrimonialismo marcado pela apropriao de cargos e apresenta carter burocrtico no no sentido do aparelhamento racional de Weber -, mas no sentido da dependncia da articulao destes cargos em torno do governante. Esta forma de organizao poltica mantida pelos estamentos dominantes, sobretudo o estamento senhorial, subordinados quele governo. (FAORO, 2001; FERNANDES, 2006).

    16 Max Weber chama de estamento o conjunto de homens que reclamam uma situao estamental, ou seja, uma pretenso de privilgios. (WEBER, 1964, p. 244-245). Faoro, baseado em Weber, localiza a origem dos estamentos brasileiros na Coroa Portuguesa quando o Estado portugus se aparelha com a organizao poltico-administrativa, juridicamente pensada e escrita, racionalizada e sistematizada pelos juristas. Esta corporao de poder se estrutura numa comunidade: o estamento. Continua esclarecendo que estamento no sinnimo de classe social, pois esta se forma por interesses econmicos, podendo agregar diferentes estamentos. O estamento poltico, de interesse neste trabalho, constitui uma comunidade onde seus membros pertencem a um mesmo grupo qualificado para o exerccio do poder. O estamento , na realidade, um grupo de membros cuja elevao se calca na desigualdade social. (FAORO, 2001, p. 60-61).

    17 ... o povo se manifestaria diretamente, mas no todo o povo, seno o apto a representar o pas, pelos rendimentos, cultura e propriedade. (FAORO, 2001, p. 429). Sobre os processos eleitorais no decorrer do sculo XIX ver Faoro (2001, p. 414-444).

  • 19

    Economicamente, o estamento senhorial se distinguia pela extrao, lavoura

    e comrcio dos produtos. Para Caio Prado Jr (1997, p. 31) o sentido da colonizao

    brasileira se detm no carter mercantil. Ser a empresa do colono branco, que re-

    ne, natureza, prdiga em recursos aproveitveis para a produo de gneros de

    grande valor comercial, o trabalho recrutado entre raas inferiores que domina: ind-

    genas ou negros africanos importados.

    O colono branco, referenciado por Prado Jr, o senhor do engenho, da ex-

    plorao dos minrios, do algodo e, mais tarde, do caf. Prado Jr (1997, p. 32) en-

    tende que o Brasil se constitui com objetivo exterior: sem consideraes que no

    fossem o interesse daquele comrcio, que se organizaro a sociedade e a economia

    brasileiras. (...) Nada mais que isto.

    O senhor, sua famlia, seus empregados (escravos) e agregados inauguram

    o estamento senhorial (ou patrimonial), baseado na dominao patriarcal18, que re-

    presenta a base da diviso de classes brasileira. O senhor ter posio-chave no

    controle da economia e da sociedade ou, conforme Florestan Fernandes (2006, p.

    184, grifos do autor) na estrutura de poder da sociedade nacional.

    Contudo, a sociedade nacional possua outros sujeitos que embora no ti-

    vessem nenhum ou somente um pequeno poder, constituam-se em pea chave tan-

    to na produo e manuteno da economia, como na conservao do poder nas

    mos dos senhores. Eram famlias tradicionais, provindas na maioria, da nobreza

    portuguesa, alm de funcionrios da corte - mas no necessariamente proprietrias

    de latifndios. Formadas por profissionais liberais, comerciantes, jornalistas, polti-

    cos, militares, professores etc., as famlias tradicionais constituram um estamento

    que, ainda timidamente, disputava poder com os senhores fazendeiros. Florestan

    Fernandes (2006) as denominou estamento intermedirio. Esse era um estamento

    que disputava o poder por dentro, vivia subsidiariamente sob o poder dos senhores

    latifundirios.

    18

    Segundo Weber, a dominao patriarcal um tipo especfico de dominao tradicional. A dominao tradicional opera sobre a economia, com o mximo rigor na dominao patriarcal, as quais no se apoiam em nenhum quadro administrativo prprio dos senhores que possa encontrar-se em oposio com os demais membros da associao [escravos, agregados etc.]... (WEBER, 1964, p. 190, traduo nossa). No caso do Brasil, a economia no patrimonialismo o oikos [lar, casa, meio, em grego] do senhor com cobertura total das [suas] necessidades ... Neste caso as relaes econmicas esto estreitamente vinculadas tradio, o desenvolvimento de mercado encontra-se obstaculizado, o uso de dinheiro essencialmente natural, orientando-se pelo consumo, e em consequncia no possvel a formao do capitalismo [no do capitalismo como tipo ideal weberiano, mas de um capitalismo dependente e atrasado em relao ao europeu]. (WEBER, 1964, p. 190, traduo nossa).

  • 20

    O estamento intermedirio junto ao governo abala o status senhorial no fim

    do escravismo e do perodo imperial, em favor da condio burguesa que algumas

    famlias tradicionais, advindas em parte da nobreza portuguesa, j alavam.

    No anseio de manter os seus privilgios, o senhor adequou suas estratgias

    econmicas e sociais, to funcionais at o momento para mant-lo no poder, s no-

    vas formas que emergiam com o capitalismo, entre elas a competitividade. Dessa

    forma, o capitalismo brasileiro tem o seu incio marcado por forte controle estamental

    de renda e poder e, portanto, igualmente desigual. Nota-se ento que o capitalismo

    nacional no seguiu o padro capitalista das naes mais avanadas (caracterizado

    pela propriedade privada, livre iniciativa e redistribuio de renda e poder), e sim

    sustentou uma economia colonial exportadora, de fundamento escravista, (...) numa

    economia capitalista dependente em formao... (FERNANDES, 2006, p. 187). E

    com base no privilgio, que ora substitui ora contamina a lgica competitiva prpria

    do capitalismo no seu modelo clssico.

    Deste modo, a dominao patriarcal senhorial permanecia na transio do

    sculo XVIII para o XIX. Mas a chegada do novo sculo e a modernidade que o a-

    companhava punha os estamentos intermedirios em condies de disputa com o

    senhor agrrio. O novo estamento exigia poder agir socialmente como e enquanto

    membros dos estamentos dominantes. (FERNANDES, 2006, p. 187).

    Isso no alterava em nada a realidade histrica. Os que possuam o poder emanado da condio senhorial aceitavam de boa f essa igualdade fictcia, alimentada pela tradio e pela solidariedade patrimonialista, (...), e dele ti-ravam proveito prtico (pois os estamentos hegemnicos atrelavam a si, dessa maneira, os estamentos intermedirios, que no tinham, por sua vez, nenhuma probabilidade de autonomizao e de rebelio dentro da ordem). (FERNANDES, 2006, p. 189-190, grifos do autor).

    Ou seja, o estamento senhorial abraa os estamentos intermedirios com o

    objetivo de manter o status quo, criar laos de lealdade e duplo interesse, e apren-

    der com eles mais modernos, sem vnculos com o campo os meandros da mo-

    dernidade que o capitalismo anunciava. A estratgia dos senhores foi a da defesa da

    propriedade, da escravido e de outros componentes tradicionais aliada apropria-

    o dos novos meios de organizao do poder, de forma a se integrarem socieda-

    de nacional que emergia. O setor moderno vai ser composto por esses setores in-

    termedirios, mas tambm pelo setor ligado ao grande comrcio de exportao e

    importao.

  • 21

    Contudo, ao final do sculo XIX, com a proclamao da repblica, pessoas

    pertencentes parte subjugada da sociedade civil (escravos agora livres e homens

    livres vadios ou agregados, ou seja, pessoas de extrao social inferior), ascen-

    dem socialmente, principalmente formando-se religiosos catlicos19. (FERNANDES,

    2006, p. 190, grifos do autor). Sentindo-se ameaados, os homens de bem dos es-

    tamentos intermedirios trataram de utilizar-se dos papis que ocupavam na rede

    institucionalizada do poder para ordenar as leis aos seus interesses, de modo que

    seus privilgios no fossem abalados pela ascenso dos menos favorecidos social e

    economicamente.

    Aqui Florestan Fernandes percebe o primeiro sopro de democracia na soci-

    edade brasileira, mesmo que outorgada de acordo com os interesses dos estamen-

    tos intermedirios:

    Da surgiram [do receio da ascenso de alguns plebeus] inovaes teis e aparentemente democrticas (principalmente nas esferas em que esses estamentos [os intermedirios] transferiam para a coletividade os nus do financiamento, que no podiam enfrentar, do seu prprio status, com medi-das pertinentes gratuidade do ensino e outras garantias sociais, s quais dificilmente a plebe teria acesso). (FERNANDES, 2006, p. 192, grifos do au-tor).

    Essa burguesia brasileira comps com o prprio Estado o estamento domi-

    nante. Esta a diferena bsica entre a revoluo burguesa brasileira e a francesa:

    l a burguesia se uniu ao Quarto Estado (sobretudo os camponeses), mesmo que

    depois os rechaasse. Aqui, no houve participao popular: o estabelecimento do

    capitalismo democrtico deu-se entre estamentos que estavam no poder ou prxi-

    mos dele.

    Na cauda da burguesia, na acepo de Florestan Fernandes, a populao

    obtinha o direito20 de travar pequenas batalhas para ganhos muito pequenos. O que

    importava era que a hegemonia burguesa que se estabelecia no sofresse abalos. A

    transio entre a hegemonia oligrquica (era senhorial) e a sociedade de classes

    (era burguesa) marca o incio da modernidade brasileira. A burguesia brasileira no

    19

    Sobram ainda, para os indivduos livres da colnia, as profisses liberais (...). So naturalmente ocupaes por natureza de acesso restrito. Exigem aptido especial, preparos e estudos que no se podem fazer na colnia, e portanto recursos de certa monta. (...). Restar a Igreja. Esta sim oferece oportunidades mais amplas. Os estudos se podiam fazer em grande parte no Brasil... (PRADO JR, 1997, p. 280).

    20

    Partidos comunistas e sindicatos se organizavam no incio do sculo XX, influenciados pela onda anarquista europeia, aportada aqui com os imigrantes.

  • 22

    se estabelece num plano prprio de poder (como o fez a francesa), mas pelas bei-

    ras, se justapondo aos latifndios e s cidades com o comrcio.

    Em relao s classes desfavorecidas, a dominao burguesa no Brasil foi

    autocrtica - contraditria aos ideais liberais e repressiva. Quanto autocracia,

    utilizava-se dos mtodos antigos, do Imprio, para cercear a formao e a difuso

    de processos democrticos que se tentasse instituir. Os processos existiam legal-

    mente, mas no eram operados na sociedade. A represso teve longa durao, in-

    do do mandonismo, do paternalismo e do ritualismo eleitoral manipulao dos mo-

    vimentos polticos populares, pelos demagogos conservadores ou oportunistas e

    pelo condicionamento estatal do sindicalismo. (FERNANDES, 2006, p. 244-245).

    Francisco de Oliveira analisa que na histria do Brasil desde o perodo pos-

    terior Independncia, e mesmo aps a queda da ditadura militar de 1964 com o

    retorno das eleies diretas, o regime de dominao sempre foi estatal (constitucio-

    nal) e desptico.

    [...] o regime tem sido estavelmente desptico com breves perodos de a-bertura ou relaxamento; [democrtico] propriamente seria uma temeridade, ainda quando o formalismo reinante nas cincias da poltica e da sociologia no tenha muitos pruridos em [cham-lo] assim. (OLIVEIRA, 2003, p. 59).

    Isto no significa que no houve conflitos e manifestaes populares. Con-

    tudo, Florestan Fernandes diz que nos conflitos intraclasses e sua acomodao

    que se assenta a consolidao conservadora da dominao burguesa no Brasil.

    (FERNANDES, 2006, p. 245). Esta consolidao se d pela nova oligarquia, que o

    faz por meio do equilbrio realizado entre os setores intermedirios e os industriais.

    Desta forma, ela conseguiu resguardar os seus interesses, tanto os tradicionais

    quanto os modernos.

    Portanto, foi a oligarquia moderna que determinou e consolidou a dominao

    burguesa brasileira, no s protegendo os demais setores dominantes, como repri-

    mindo a luta de classes e o proletariado organizado. nesta conjuntura que se cris-

    taliza a democracia restrita na qual o domnio burgus permitia o limite da revoluo

    dentro da ordem. A democracia era aberta e funcional apenas para aqueles que

    tinham acesso ao crculo da dominao burguesa. A dominao serviu, naquele pe-

    rodo, no revoluo nacional e democrtica, mas ao capitalismo dependente

    que se almejava e se estabelecia atravs das classes dominantes. (FERNANDES,

    2006, p. 251).

  • 23

    At a dcada de 1930 no Brasil se consolidou a primazia burguesa como

    classe dominante e como operadora do capitalismo do Estado. A partir deste pero-

    do relevante considerar outro fator que passar a acompanhar a repblica brasilei-

    ra: as aes das foras armadas. Para Francisco de Oliveira, uma exceo que virou

    regra, ao afirmar que desde 1930 at o final da ditadura militar em 1985, o Brasil tem

    passado por tentativas de golpes de trs em trs anos:

    Nomeando: Revoluo de 30, Revoluo Constitucionalista paulista de 1932, eleio indireta de Vargas em 1934, revolta da Aliana Nacional Li-bertadora em 1935, putsch integralista de 1937, Estado Novo varguista em 1937, deposio de Vargas em 1945, cassao do Partido Comunista do Brasil em 1947/48, deposio de Vargas pelo suicdio em 1954, tentativa golpista de impedir a posse de Juscelino Kubistchek em 1955, golpe frus-trado de Jacareacanga em 1956, golpe frustrado da renncia de Jnio Qua-dros em 1961, parlamentarismo como soluo para a posse de Joo Gou-lart ainda em 1961, golpe militar definitivo em 1964, inaugurando a segunda ditadura do perodo, AI-2 dissolvendo os partidos polticos pr-64, impedi-mento da posse do vice-presidente Pedro Aleixo e Junta Militar em 1967, AI-5 em 1968 com o fechamento do Congresso, impedimento da posse de Ulysses Guimares como sucessor temporrio de Tancredo Neves, com a soluo de posse de Jos Sarney, em 1984. Fazendo-se as contas: 60 / 18 = 3,3 anos. Diferir, de um para outro autor, de uma para outra interpreta-o, a aritmtica da exceo permanente e mesmo alguns dos eventos aqui listados, mas dificilmente poder ser negada a permanncia de solu-es extra-constitucionais, para sermos mais suaves. (OLIVEIRA, 2000, p. 59, grifos do autor).

    Neste panorama social, claramente no democrtico, tanto a sua face eco-

    nmica capitalista -, quanto a poltica entre golpes so sustentadas pela classe

    burguesa, que se adqua e apoia os governos mais ou menos democrticos, de

    forma a no abalar a sua hegemonia econmica e social que serve a este Estado de

    exceo democrtica, numa via de mo dupla que se amolda tanto ao Estado cen-

    tralizador quanto este, adqua suas leis e normas s necessidades da classe domi-

    nante.

    E a classe trabalhadora? Como a maioria do povo se equilibra entre golpes e

    possibilidades de participao na vida econmica e poltica do pas? o que se

    buscar responder a seguir, procurando compreender como a populao, desde o

    incio da colonizao do Brasil subjugada e olvidada, passa a conquistar espaos

    mais democrticos de participao.

  • 24

    1.4 A PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL

    A ascenso da oligarquia burguesa, sob a tutela do Estado, foi se consoli-

    dando alheiamente ao povo. Isto no significa que a populao brasileira no tenha

    promovido movimentos e lutas populares pelos motivos mais variados, desde guer-

    ras por territrio at revolues para deposio de presidentes (por exemplo, a Re-

    voluo de 1930 que deps Washington Lus por golpe de Estado e alou Getlio

    Vargas presidncia do Brasil).

    Maria da Glria Gohn (2001), cientista poltica brasileira, uma das princi-

    pais referncias para se conhecer a histria dos movimentos sociais brasileiros. Em-

    bora trate de todos os movimentos, inclusive aqueles que no foram de iniciativa do

    povo, mas dos governos, considera que mesmo a promulgao de leis advm de

    lutas e processos participativos da sociedade civil.

    Em seus estudos, traa um breve quadro dos movimentos sociais no Brasil

    do final do sculo XIX e todo o sculo XX. A histria destes movimentos composta

    de uma srie de elementos que constituram a frgil cidadania conquistada pelas

    camadas populares. O carter histrico dos movimentos retrata a busca da demo-

    cratizao dos direitos e da participao da populao nos rumos da vida poltica e

    social brasileira. Neste trabalho, destacam-se os movimentos sociais a partir da d-

    cada de 1980, pelo seu carter de democratizao e pela sua importncia na redefi-

    nio das polticas pblicas para a educao.

    A dcada de 1980 foi uma das mais repletas de movimentos e lutas, a maio-

    ria em prol do fim da ditadura militar e da democratizao das polticas social e eco-

    nmica, sobretudo com a volta das eleies diretas. Logo em 1982 ocorrem eleies

    diretas para governadores dos estados, refletindo a abertura poltica que se iniciou

    em 1979.

    Nesta poca, Inglaterra e Estados Unidos comeam a engendrar e pr em

    prtica polticas fundamentadas nos princpios do chamado neoliberalismo, que che-

    gou ao Brasil uma dcada depois, e contribuiu para frear a crescente democratiza-

    o que parecia tomar forma no Brasil.

    O neoliberalismo, como a nova face do capitalismo, se caracteriza pe-

    la reorganizao do sistema capitalista dirigido para restabelecer a ampliao do

  • 25

    capital. Isto significou ampliar o papel do mercado e, a partir disso, reformular

    as polticas pblicas.

    As estratgias concretas idealizadas pelos governos neoliberais para redu-

    zir a ao estatal no terreno do bem-estar social so: a privatizao do financiamen-

    to e da produo dos servios; cortes dos gastos sociais, eliminando-se programas e

    reduzindo-se benefcios; canalizao dos gastos para os grupos carentes; e a des-

    centralizao em nvel local. (LAURELL, 1995, p. 16).

    Enquanto isso, no Brasil, de um lado, o processo de democratizao poltica

    alimentado pela proposta de fim da ditadura que, por sua vez, se pauta na espe-

    rana de conquista da igualdade social e, portanto, econmica. De outro lado, a po-

    sio econmica brasileira, de capitalismo dependente, devia se ajustar reestrutu-

    rao que ocorria em mbito global, o que trouxe reduo no mbito dos direitos so-

    ciais e exigiu reformas polticas de Estado, trazendo como consequncia uma rede-

    finio de valores.

    O esgotamento do regime militar somado alta inflao e ao desemprego

    levou a populao s greves e at a atos mais violentos, como linchamentos e sa-

    ques a supermercados. Completando o cenrio, partidos polticos de esquerda21

    voltam a se reorganizar livremente, contudo as divergncias entre os grupos de opo-

    sio no permitem a criao da unidade em torno da luta pela classe trabalhadora.

    Andra Barbosa Gouveia examinou em sua tese de doutorado os diferentes

    vieses que as acepes de direita e esquerda podem tomar. Assume-se neste traba-

    lho a perspectiva classista, em que

    [...] a diferenciao entre esquerda e direita pode tomar como critrio, ento, [para a esquerda] o reconhecimento da explorao capitalista, a perspectiva da transformao e a forma democrtica de organizao para esta trans-formao; do lado oposto [a direita], est a negao da explorao como problema intrnseco ao capitalismo, a perspectiva da manuteno do siste-ma e a forma burocrtica de organizao para manuteno do sistema. (GOUVEIA, 2008, p. 77-78).

    Vale destacar que sobre os problemas crnicos de fragmentao decorren-

    tes de rivalidades que atingem as esquerdas de modo geral e no somente a brasi-

    leira, Boron explica que deveriam convergir de forma unitria em torno de uma pro-

    21

    Neste perodo, podia-se identificar as esquerdas como anti-capitalistas. As atuais alianas e com-posies de governo no permitem mais essa distino de forma to polarizada. Para o detalha-mento das diferenas e semelhanas atuais entre partidos de esquerda e direita, ver Gouveia, 2008.

  • 26

    posta socialista de sociedade. Continua, dizendo que:

    O atraso ideolgico e terico da esquerda poltica e sua exasperante fragmentao em um arquiplago de rivalidades irreconciliveis privam-na de toda eficcia, comprometendo tambm a efetividade do crescente pro-testo popular que no encontra um continente adequado no qual canalizar suas esperanas e lutas. (BORON, 2001, p. 356, grifos do autor).

    Ainda assim, com muitos movimentos de esquerda sectrios entre si, o mo-

    vimento das Diretas J foi o maior e mais intenso do perodo, impulsionando as elei-

    es para a presidncia do pas22 e criando o processo Constituinte, o surgimento

    das centrais sindicais (CONCLAT, CGT, CUT etc.) e a criao de entidades organi-

    zativas dos movimentos sociais.

    Temas at ento ocultos so colocados na pauta de discusso da socieda-

    de, como mulheres, negros, meio ambiente, moradia etc. recolocando a populao

    mais pobre sob o status da cidadania, sobretudo aps a promulgao da Constitui-

    o de 1988, conhecida por isso como Constituio Cidad. Ainda porque muitos

    dos direitos no sejam garantidos at os dias de hoje, e o que est na pauta da m-

    dia justamente o oposto: a generalizao da violncia e do medo como tcnica de

    criminalizao da pobreza.

    Enfim, ao final dos anos de 1980 parecia que os direitos civis haviam sido

    conquistados no plano formal no s a partir da constituio, mas da nova configu-

    rao poltica depositada na esperana de se eleger, aps 25 anos, o presidente da

    repblica em 1989.

    No entanto, presidente eleito em 1989, Fernando Collor de Mello deposto

    em 1992 por denncias de corrupo partidas da prpria famlia. Surgiram dois mo-

    vimentos concomitantes que levaram a este desfecho: um pela tica na poltica, rea-

    lizada pelo Congresso Nacional no intuito de realizar o impeachment do presidente,

    e o movimento dos cara-pintadas, de estudantes secundaristas e universitrios, con-

    22

    Aqui vale uma considerao sobre os processos democrticos contraditrios da poca. A emenda Dante de Oliveira (a das diretas) foi rejeitada pelo congresso, apesar de toda a presso popular. Assim, Tancredo Neves foi eleito em colgio eleitoral, derrotando Paulo Maluf. As diretas s foram garantidas pela constituio de 1988. Contudo, no se pode negar que o movimento Diretas-j criou as condies para a eleio de um opositor do regime. Maluf era o candidato do governo depois de derrubar a candidatura do General Andreasa em prvias da Arena. Observe-se a contradio: o regime militar perdeu a eleio indireta de 1984 por ter tomado a atitude democrtica de realizar prvias. J no MDB, partido teoricamente mais democrtico, a indicao do candidato foi feita pela cpula do partido, pois se realizasse prvias as bases do partido forariam a candidatura de Ulysses Guimares que fatalmente perderia no colgio eleitoral. (Histria das eleies no Brasil. Disponvel em: Acesso: 02 mai. 2008).

  • 27

    tra o presidente. Este ltimo foi amplamente apoiado e divulgado pela mdia, sobre-

    tudo pela Rede Globo. As famlias Marinho e Collor tinham relaes comerciais de

    longa data, e provvel que diferenas antigas tenham vindo tona durante a cam-

    panha pr-impeachment23.

    A partir de 1991, o fato decisivo para o sucesso do programa de estabiliza-

    o que aconteceria no governo de FHC, foi o retorno do pas ao mercado interna-

    cional de capitais, viabilizado por renegociao da dvida e liberalizao no controle

    do capital externo. Foi assim que o Brasil chegou segunda metade dos anos 1990:

    sob a gide de um pensamento e uma poltica de corte neoliberal.

    A ltima grande mobilizao da populao, ainda que impulsionada pela m-

    dia, foi o movimento pela sada de Collor. Depois disso, a populao se estagnou no

    sentido da luta conjunta pela democracia e pela aquisio de mais direitos. Comea

    assim a desmoronar o sonho da plena democratizao dos direitos duramente lega-

    lizados no final dos chamados anos de chumbo. O desencanto das massas nos a-

    nos 1990 redefiniu o cenrio das lutas sociais no Brasil. Alguns movimentos sociais

    entram em crise: de militncia, de mobilizao, de participao cotidiana em ativi-

    dades organizadas, de credibilidade nas polticas pblicas, de confiabilidade e legi-

    timidade junto prpria populao. (GOHN, 2001, p. 127).

    Surgem movimentos sociais de cunho segmentado, voltados s necessida-

    des humanas bsicas, questes ticas e de valorizao da vida. Gohn evidencia que

    os movimentos eram mais campanhas, chamamentos conscincia individual e

    que a proliferao das ONGs (Organizaes No-Governamentais) e das parcerias

    pblico-privadas indicavam a descaracterizao da luta pelos direitos de classe. As

    novas orientaes de desregulamentao do papel do Estado, sobretudo na econo-

    mia, transferem as responsabilidades para as comunidades organizadas. (GOHN,

    2001, p. 129).

    Contribuiu tambm para a desmobilizao a runa do sonho do socialismo

    real, com a queda do Muro de Berlim e o fim da URSS (Unio das Repblicas Socia-

    listas Soviticas). Boron acrescenta que a esquerda, desde ento, permanece ca-

    bisbaixa e em silncio. (BORON, 2001, p. 287).

    23

    Sobre as relaes da imprensa com Fernando Collor no perodo que vai de sua ascenso em Alagoas at o afastamento da Presidncia, incluindo as histrias da relao entre a famlia Collor e Marinho, ver: CONTI, M. Notcias do Planalto. So Paulo: Companhia das Letras, 1999.

  • 28

    Este contexto de descaracterizao dos movimentos coletivos em troca dos

    movimentos individualistas portadores de bandeiras aparentemente abstratas, como

    a tica, a paz e a moralidade poltica acompanhado pela substituio da linguagem

    dos direitos cidados sade, educao, moradia e segurana social, para falar

    somente dos casos mais conhecidos, pelos jarges da economia neoclssica.

    Os direitos so convertidos em bens que, como todo bem da economia, se negocia no mercado, se compra e se vende, e ningum pode invocar um di-reito especial de adquirir um determinado bem. (...) O lento, mas progressi-vo deslocamento da linguagem dos direitos, colocada e resolvida no terre-no das instituies pblicas, para uma linguagem dos bens, conjugado e resolvido no mbito do mercado, um sutil indicador da decadncia poltica das democracias latino-americanas. (BORON, 2001, p. 256-257, grifos do autor).

    Instala-se definitivamente a oposio entre a lgica do mercado e a demo-

    cracia. Se esta se orienta teoricamente pela igualdade entre todos, conferindo-lhes o

    status de cidado, aquele opera na competio e na desigualdade de promoo ao

    acesso da populao a todos os seus bens.

    O prximo governo, de Fernando Henrique Cardoso (FHC - 1995-2002) soli-

    difica as estruturas neoliberais, as estatizaes e a transferncia de responsabilida-

    des para a populao organizada em ONGs e parceiros privados. interessante

    observar que grande parte do quadro deste governo era formada por lideranas do

    movimento estudantil das dcadas de 1970, 1980 e 1990, muitos exilados, como o

    prprio FHC, outros torturados e presos no perodo da ditadura.

    Numa nova conjuntura poltica e social, mas com as velhas amarras patri-

    monialistas dos grupos tradicionais que sempre estiveram no poder, o novo governo

    se adqua ao estamento poltico brasileiro, agora sob as novas bases polticas e

    econmicas de carter globalizado. Na verdade, estas lideranas, inclusive o presi-

    dente, por pertencerem ao PSDB partido autodenominado de centro-esquerda,

    mas bastante prximo aos princpios da direita em nenhum momento trouxeram a

    perspectiva de um governo popular, do povo e para o povo.

    este quadro que Jos Lus Fiori chamou de cosmopolitismo de ccoras,

    em aluso insero do Brasil no capitalismo internacional de mercado, porm con-

    jugado forma tupiniquim de faz-lo - de ccoras, pois o Brasil assiste e aceita as

    determinaes internacionais agachado, como se aguardasse, de modo submisso,

    as ordens a cumprir.

  • 29

    Similar ao ornitorrinco de Francisco de Oliveira24, Fiori define o patrimonia-

    lismo brasileiro hoje como uma aliana entre o que ele chama de

    [...] intelectualidade paulista e carioca atrelada s altas finanas internacio-nais, e o localismo dos donos do serto e da malandragem urbana brasilei-ra. Realismo subalterno e economicismo vulgar, que permitiram reunir libe-rais e marxistas num novo bloco intelectual de poder, com profundas razes na academia brasileira. (FIORI, 2000, p. 22).

    As sucessivas derrotas polticas no parlamento e mesmo a limitada repre-

    sentao da esquerda quando chegava ao poder, somada consolidao da hege-

    monia neoliberal promoveram a despolitizao e o individualismo. O consenso neoli-

    beral no sistema partidrio, uma alternncia sem alternativas e a crescente misria

    da classe trabalhadora acaba por torn-la presa fcil do clientelismo poltico, algo

    bastante presente no sistema poltico brasileiro historicamente.

    As polticas econmicas implementadas primeiro pelo governo Collor e, em

    seguida, radicalizadas pelo governo FHC, promoveram uma forte reduo da ativi-

    dade econmica no pas. A abertura comercial e financeira desenfreada, aliada s

    altas taxas de juros, acabou por quebrar inmeras empresas, desnacionalizar outras

    e provocar um aumento do desemprego a um grau antes inimaginvel. A pobreza,

    se antes era fruto dos baixos salrios, agora tambm resultante do desemprego e,

    na ideologia neoliberal, passa a ser o resultado da incompetncia do prprio traba-

    lhador.

    Nessa concepo, o desemprego tambm no resultado da poltica do go-

    verno ou da economia capitalista, mas da inempregabilidade do trabalhador que

    no tem a qualificao que o mercado hoje exige. Os direitos sociais e trabalhistas

    passaram a ser apresentados como a verdadeira causa do desemprego e, portan-

    to, deveriam ser flexibilizados para poder haver mais emprego. Em suma, a causa

    de todos os males estaria nos prprios trabalhadores e nos seus direitos, considera-

    dos excessivos.

    24

    Francisco de Oliveira criou a metfora do ornitorrinco para explicar a economia perifrica capitalista brasileira. Para ele, essa economia uma combinao esdrxula de setores altamente desenvolvi-dos, um setor financeiro macroceflico, mas com os ps de barro. O ornitorrinco brasileiro no bem como o ornitorrinco da Oceania. Ele uma figura magra, esqueltica, sustentando uma cabea enorme, que esse sistema financeiro, mas com pernas esqulidas e anmicas, que so a desi-gualdade social e a pobreza extrema. A impossibilidade do Brasil se desenvolver econmica e soci-almente deriva do comprometimento de estruturas que, aliado a inmeras distores internas (como ser a 8. economia mundial e estar entre os quatro pases mais desiguais do planeta) e a combina-es esdrxulas de tempos histricos, transforma o pas nu