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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN` Setor de CiŒncias Humanas, Letras e Artes Curso de Letras Bacharelado com Œnfase em Estudos da Traduªo TRADU˙ˆO E RELA˙ˆO: uma breve reflexªo sobre a noªo de relaªo Bermaniana a luz do conceito Derridiano de hospitalidade. SIMONE CHRISTINA PETRY CURITIBA 2008

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Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN` Setor de CiŒncias … · Berman, secondo il quale l ... livro A Prova do Estrangeiro na sua primeira ediçªo em 1984. A traduçªo desse livro, com

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes

Curso de Letras Bacharelado com ênfase em Estudos da Tradução

TRADUÇÃO E RELAÇÃO: uma breve reflexão sobre a noção de relação Bermaniana a luz do conceito

Derridiano de hospitalidade.

SIMONE CHRISTINA PETRY

CURITIBA 2008

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SIMONE CHRISTINA PETRY

TRADUÇÃO E RELAÇÃO: uma breve reflexão sobre a noção de relação Bermaniana a luz do conceito

Derridiano de hospitalidade.

Monografia apresentada à disciplina de Orientação Monográfica II do Curso de Letras Português-Italiano da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Letras com ênfase em Estudos da Tradução.

Orientador: Prof. Dr. Mauricio Mendonça Cardozo.

CURITIBA

2008

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Para Alécio (in memoriam), meu pai, e para José Maria Santos (in memoriam), por terem me iniciado na arte de conviver.

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Agradeço ao meu orientador Mauricio M. Cardozo, pela generosidade e disponibilidade constante. Aos professores Sandra M. Stroparo e Caetano W. Galindo, pela participação fundamental durante a minha graduação. Aos meus parceiros de viagem monográfica Gabriel Rachwal e Sirlene Neubauer, pela presença em todo o desenvolvimento do projeto. Ao Leandro Cardoso, pelo apoio e pela revisão final. À Lívia Morales e aos companheiros da ênfase em estudos da tradução, pelas discussões que me permitiram concluir este trabalho. À Evelyn Petersen e à Fernanda Baukat, pela amizade inabalável. À minha mãe, por tudo.

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Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é

delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze.

Graciliano Ramos

Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na

loucura.

João Guimarães Rosa

RESUMO

O presente trabalho propõe uma reflexão sobre o fazer tradutório. Essa reflexão tem início com a apresentação de uma noção de tradução que é constitutiva da visada ética da tradução articulada pelo teórico Antoine Berman, para quem a essência

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dessa prática é ser relação com o Outro. Em seguida, propõe-se uma problematização da noção de relação através do diálogo desta com o conceito Derridiano de hospitalidade. Por fim, essa problematização se apresenta como uma problematização do próprio fazer tradutório, tendo em vista a discussão de uma noção de tradução como relação. Palavras-chave: tradução; relação; hospitalidade; tradução como relação.

RIASSUNTO

Il presente lavoro propone una riflessione sul processo traduttivo. Questa riflessione è iniziata dalla presentazione di una nozione di traduzione. Questa nozione è costitutiva dalla finalità ética della traduzione articolata al teorico Antoine Berman, secondo il quale l�essenza di questa pratica è d�essere relazione con l�Altro. Appresso si propone una problematizzazione della nozione di relazione attraverso il dialogo di questa nozione com il concetto d�ospitalità di Jacques Derrida. Dopo, questa porblematizzazione si presenta come una problematizzazione del proprio processo traduttivo, tenendo conto della discuzione di una nozione di traduzione come relazione. Parole chiave: traduzione; relazione; ospitalità; traduzione come relazione.

ABSTRACT

This monograph proposes a reflection about on the translating practice. This reflection begins with the introduction of a translating notion, which is constitutive of the ethical aim of translating, articulated by the theorist Antoine Berman, to whom the gist from that practice rests on the relation with the Other. Next, a problematization of the notion of relation is proposed through its dialogue with the derridian concept of hospitality. Finally, this problematization introduces itself as a problematization of the very translating practice, in view of the discussion of a translating notion as relation.

Keywords: translating; relation; hospitality; translating as relation.

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SUMÁRIO 1. ABERTURA............................................................................................................ 6 2. A TRADUÇÃO EM MANIFESTO.......................................................................... 10 2.1. UMA FUGA DA TRADUÇÃO ETNOCÊNTRICA (problematizando a noção de tradução etnocêntrica)............................................................................................... 15 2.2. VISADA ÉTICA DA TRADUÇÃO (problematizando a noção de relação com o Outro)........................................................................................................................ 20 3. A REFLEXÃO DERRIDIANA SOBRE A HOSPITALIDADE (discutindo as questões do Estrangeiro e da Incondicionalidade)............................................. 24 3.1 A QUESTÃO DO ESTRANGEIRO...................................................................... 30 3.2. A HOSPITALIDADE INCONDICIONAL.............................................................. 39 4. A TRADUÇÃO COMO CONSTRUÇÃO DA RELAÇÃO...................................... 44 5. REFLEXÕES FINAIS............................................................................................ 50 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................... 53

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1. ABERTURA ____________________________________________________

Em meados do século XX, mais precisamente entre as décadas de setenta e

oitenta, tem início um processo de institucionalização de uma �área� voltada para o

estudo da tradução. Nesse cenário, o teórico e tradutor francês Antoine Berman1

ganha destaque como um dos mais importantes teóricos da tradução na

contemporaneidade.

Em 1981, Antoine Berman escreve um ensaio intitulado A Tradução em

Manifesto. 2 A proposição do autor, no referido ensaio, é a de refletir sobre o fazer

tradutório a partir de uma visão �moderna�, mas que dialogue com o �passado� tendo

em vista uma compreensão do si-mesmo (BERMAN, 2002, p.12) � diálogo

desenvolvido com a tradição do pensamento romântico alemão sobre tradução do

séc. XIX, em especial, a nosso ver, com as reflexões do filósofo Friedrich

Schleiermacher3. Essa proposição visa encaminhar a discussão sobre o fazer

tradutório para além da elaboração de uma teoria sistemática com o intuito de

auxiliar a prática tradutória. Berman encaminha sua discussão no sentido de se

refletir sobre e de se experienciar o fazer tradutório, possibilitando que a tradução

tenha �acesso a seu próprio ser� (ibidem, p.17). Ou seja, possibilitando que a

tradução encontre seu espaço e sua essência: �[...] a essência da tradução é ser

abertura, diálogo, mestiçagem, descentralização. Ela é relação, ou não é nada.�

(idem, grifo do autor).

Assim Berman institui, em alguma medida, uma discussão sobre a tradução a

partir de uma visão da tradução como relação. Berman institui essa condição para a

tradução não no sentido de ele ser o primeiro a fazer alusão a essa possibilidade � 1 Doutor em lingüística, tradutor do alemão e do espanhol, teórico da tradução com vasto conhecimento em história da tradução. 2 O ensaio A Tradução em Manifesto foi escrito originalmente em 1981 e publicado como prefácio do livro A Prova do Estrangeiro na sua primeira edição em 1984. A tradução desse livro, com a qual trabalharemos aqui, foi publicada no Brasil em 2002. 3 Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768 � 1834). Teólogo, filósofo e pedagogo alemão. Tradutor. Considerado o �pai� da hermenêutica moderna. Seu principal interesse na tradução era voltado para a formação da cultura e da língua alemã, que ele acreditava poder enriquecer através da tradução de grandes e significativas obras clássicas.

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pois ao relermos a história da tradução, principalmente a da Alemanha romântica, é

notável o quanto o tema foi ensaiado no discurso de muitos dos pensadores da

época �, mas no sentido de se considerar que foi esse teórico o primeiro a ser tão

categórico ao fazer tal colocação. Fato esse que despertou nossa atenção a ponto

de inseri-lo na reflexão que será realizada neste trabalho, visto que o foco da nossa

discussão será justamente a noção de tradução como relação.

Porém, ao anunciar que a �tradução é relação, ou não é nada!� Berman nos

desperta para a necessidade de uma problematização da noção de relação. Para

considerarmos a tradução como tal precisamos, primeiramente, entender mais

atentamente quais as implicações que esse termo traz para o fazer tradutório. E

também, num segundo momento, entender o que significa o nada nesse espaço,

pois, como conseqüência da máxima Bermaniana, caso a tradução não seja relação

ela será nada. Assim, não será tradução? Não será relação? O que será nesse

caso? Nesse sentido nos cabe também, num segundo plano, entender como fica o

espaço da tradução, como se constrói esse espaço, segundo Berman, a partir

desses parâmetros de reflexão. Tendo em vista que um dos objetivos principais

desse teórico, no nosso entendimento, é justamente o de delimitar um espaço para a

tradução, ou uma especificidade da tradução.

Este projeto será composto de três capítulos. O primeiro (parte 2) fará um

panorama geral da reflexão sobre tradução efetuada por Antoine Berman, com o

intuito de traçar a trajetória do autor até o estabelecimento do seu conceito de

tradução. Será dada atenção especial a dois conceitos indispensáveis para a

compreensão da noção de relação Bermaniana: o da tradução etnocêntrica e o da

visada ética da tradução. Para tanto, serão colocadas em discussão,

essencialmente, as obras �A Tradução em Manifesto� (2002) e A Tradução e a Letra

ou o Albergue do Longínquo (2007)4.

4 O texto A tradução e a letra ou o albergue do longínquo é uma versão revisada de um seminário apresentado em 1984 e publicado originalmente em 1985, como parte integrante de uma publicação coletiva intitulada Les Tours de Babel. Essais sur la traduction. A tradução desse texto, com a qual estamos trabalhando aqui, foi publicada no Brasil em 2007.

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No segundo capítulo (parte 3), problematizaremos a noção de relação

colocando-a em diálogo com a noção de hospitalidade debatida pelo filósofo

Jacques Derrida5. O motivo da escolha dessa linha de reflexão será exposto no

início do referido capítulo. Serão abordadas, em especial, as questões da

Hospitalidade Incondicional e do Estrangeiro (enquanto Outro), discutidas no texto

de Derrida (in: DERRIDA; DUFOURMANTELLE, 2003) publicado no livro Anne

Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da Hospitalidade6 : essas questões

servirão como base fundamental para problematização sugerida por nós.

No terceiro capítulo (parte 4) a problematização da noção de relação será

colocada em discussão como uma problematização da tradução como relação. Para

tanto, as bases para a discussão que efetuaremos nesse capítulo são parte das

reflexões do tradutor e professor Maurício Mendonça Cardozo, descritas,

essencialmente, em dois artigos: �Ilóquio ou por uma mecânica ética da tradução�

(2007) e �Tradução e o trabalho de relação� (no prelo), além da tese de doutorado

Solidão e Encontro: prática e espaço da crítica de tradução literária (2004), na qual

se deu início a sua reflexão sobre o tema aqui abordado.

Em suma, com as reflexões aqui expostas será possível, em alguma medida,

aprofundar e estender reflexões teóricas já instauradas contemporaneamente por

outros pesquisadores da tradução. Vale salientar que acreditamos que um

entendimento do fazer tradutório sob um viés filosófico � como construção da

relação � não elimina o interesse e a relevância da práxis, mesmo que essa

discussão não esteja posta neste projeto. Um pensamento inicialmente

5 Jacques Derrida (1930 � 2004) filósofo de expressão francesa. Tem seu nome ligado a um viés filosófico chamado Desconstrução. Com freqüência o seu trabalho é associado aos movimentos pós-estruturalista e pós-moderno. 6 Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade é um livro que surgiu a partir de um seminário apresentado por Jacques Derrida na França, do qual a filósofa e psicanalista Anne Doufourmantelle participou como ouvinte, e em seguida, solicitou ao autor duas das sessões por ele apresentadas, nas quais o tema principal abordado era o da Hospitalidade. As sessões escolhidas foram as quarta e quinta sessões, apresentadas respectivamente nos dias 10 e 17 de janeiro de 1996. Temos conhecimento que a discussão sobre o tema Hospitalidade foi desenvolvido por Derrida em outros textos mais, mas, aqui neste trabalho, para nossos fins, nos ateremos apenas às discussões postas nas duas sessões do seminário presenciadas por Doufourmantelle. Vale salientar que a discussão posta nessas sessões trafega por vieses políticos, éticos, históricos, entre outros, e dialoga com inúmeros teóricos de várias áreas. Embora considerando toda a discussão, focaremos nas passagens que discutem especificamente a relação de hospitalidade entre o Próprio e o Outro, com vistas a desenvolver a problematização que nos propusemos a realizar neste projeto.

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contemplativo, na busca pela compreensão de si mesmo e do Outro, determina um

movimento mais consciente voltado, principalmente, para as conseqüências éticas7

das escolhas que um profissional faz durante a sua prática.

7 Neste trabalho não discutiremos as conseqüências éticas da tarefa do tradutor, apenas apontaremos as diretrizes que nos conduzirão para essa reflexão em um próximo trabalho.

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2. A TRADUÇÃO EM MANIFESTO ________________________________________________

Antoine Berman � na década de oitenta, no contexto do intenso processo de

institucionalização da área dos estudos da tradução que se deu nessa época, como

explicitado na introdução deste trabalho, e diante do que chamava de teorias

tradicionais � reconhece a necessidade de a tradução encontrar o seu próprio

espaço e falar a partir de si mesma. Para Berman, a despeito de o pensamento

moderno estar intrinsecamente ligado aos problemas de tradução e ao que ele

chamaria de espaço da tradução, a prática tradutória ainda era interrogada, na

maioria das vezes, a partir de outras áreas e não a partir do seu próprio fazer.

Assim, no seu ensaio �A Tradução em Manifesto�, o teórico observa:

[...] a reflexão sobre a tradução tornou-se uma necessidade interna da própria tradução, como o havia sido parcialmente na Alemanha clássica e romântica. Essa reflexão não apresenta forçosamente a feição de uma �teoria� [...] Mas, em todos os casos, ela indica a vontade de definir-se e situar-se por si mesma e, por conseguinte, ser comunicada, partilhada e ensinada. (BERMAN, 2002, p.12, grifo do autor).

Conforme a citação acima indica, Berman toma por base as reflexões sobre

tradução desenvolvidas na Alemanha clássica e romântica. Isso remete à concepção

alemã de Bildung (no sentido da formação) e, por conseqüência, faz deduzir que a

idéia de tradução, para o autor, não se resume a uma mera questão técnica. Ao

contrário, está relacionada com a idéia de formação cultural de um povo, i.e., com a

idéia de que, a partir do contato com o Estrangeiro, a tradução, como princípio

fundamental, deve agregar valores à cultura de chegada.

O intuito de Berman não era, portanto, o de elaborar uma outra teoria da

tradução, no sentido rigoroso do termo, ou ainda, o que se poderia identificar como

uma teoria geral da tradução. Isso se deve principalmente ao fato de o autor não

acreditar na possibilidade de existência de uma regra geral, uma vez que, para

Berman, �o espaço da tradução é babélico, isto é, recusa qualquer totalização� (ibid.,

p. 21). Sua intenção é a de refletir sobre o fazer tradutório, refletir sobre o que está

sendo realizado e, com isso, promover uma nova visada desse fazer tradutório na

contemporaneidade.

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Assim sendo, falar de uma reflexão sobre/da tradução, ao invés de propor

uma nova teoria, pode ser extremamente proveitoso se o que se pretende é

estabelecer, sobretudo, um espaço distinto para a questão posta em discussão. Em

A tradução e a letra ou o albergue do longínquo, Berman explica sua posição:

[...] Não se trata aqui de teoria de nenhuma espécie. Mas sim de reflexão [...]. Quero situar-me inteiramente fora do quadro conceitual fornecido pela dupla teoria/prática, e substituir esta dupla pela da experiência e da reflexão. A relação entre a experiência e a reflexão não é aquela da prática e da teoria. A tradução é uma experiência que pode se abrir e se (re)encontrar na reflexão. (BERMAN, 2007, p.18, grifos do autor).

Na seqüência, Berman chama essa sua proposta de reflexão sobre tradução

de tradutologia 8 e diz tratar-se da �reflexão da tradução sobre si mesma a partir da

sua natureza de experiência� (ibidem, p.19).

Este é, portanto, o lugar onde se inscreve o discurso de Berman, que, de

certo modo, é o mesmo lugar que pretendemos explorar na elaboração deste

trabalho, em especial no que concerne ao refletir sobre tradução.

Tendo em vista tanto as práticas reflexivas quanto as práticas tradutórias 9,

três eixos são propostos pelo autor para desenvolver sua reflexão: história da

tradução, ética da tradução e analítica da tradução.

Como suporte para a sua reflexão sobre tradução, como primeira tarefa de

uma teoria moderna, Berman elege a elaboração de uma história da tradução que se

instaure a partir de uma abordagem estendida e aprofundada da história já

estabelecida � no caso de sua reflexão em A prova do estrangeiro, Berman discute

centralmente a tradição do pensamento romântico alemão sobre tradução �, visando

olhar o passado para repensar o presente, promovendo dessa maneira �um

movimento de retrospecção que é uma compreensão de si.� (BERMAN, 2002, p.12).

Segundo Berman, esse olhar retrospectivo, que estabelece uma história da

8 Cf. (BERMAN, 2007, p.19-24) onde o termo tradutologia é melhor desenvolvido pelo autor. Neste trabalho, não se fará uma abordagem mais aprofundada desse termo. 9 É interessante observar que Berman, além de teórico da tradução, era também tradutor, e, portanto, promove aqui um diálogo entre as vozes da prática e da teoria.

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tradução, é constitutivo de toda modernidade. Impulsionada por esse movimento, a

tradução contemporânea pode começar a pensar a partir de si mesma. É uma

maneira, também, de se estender o horizonte da tradução, tanto prático como

teórico/reflexivo. Berman afirma que �as grandes re-traduções do século 20 são

necessariamente acompanhadas por uma reflexão sobre as traduções anteriores�

(idem) e conclui dizendo que �é impossível separar essa história [da reflexão sobre

tradução e sobre as traduções] daquelas das línguas, das culturas e das literaturas�

(ibid., p. 13), visto que �em cada época ou em cada espaço histórico considerado, a

prática da tradução articula-se à da literatura, das línguas, dos diversos intercâmbios

culturais e lingüísticos.� (id.).

Em outras palavras, como conclui Cardozo (2004):

[...] ao realizar um movimento de releitura da tradição do pensar e do fazer tradutório no romantismo alemão, Berman reforça o traço de uma dimensão histórico-cultural da tradução � que se desdobrará ainda nos outros dois eixos ético e analítico.� (2004, p. 64)

Como um desses desdobramentos, o eixo da analítica da tradução é o

responsável por detectar o que ele chama de um sistema de deformação inerente à

tarefa do tradutor. Esse sistema é o responsável por deformar a letra 10 quando o

fazer tradutório prima por uma tradução que tem em vista um texto mais �belo� que o

�original�, mais acessível ao receptor da tradução, mais fácil de ser lido, menos

obscuro etc., i.e., uma tradução que se aproprie, segundo Berman, do que é

Estrangeiro no texto de partida. Nesse sentido, esse sistema de deformação

implicaria em um fazer tradutório que promove o apagamento do Outro.

Berman compara a sua analítica da tradução a uma psicanálise da tradução:

�O tradutor deve �colocar-se em análise�, recuperar os sistemas de deformação que

ameaçam a sua prática e operam de modo inconsciente no nível de suas escolhas

lingüísticas e literárias� (op. cit., p.20, grifo nosso). Mas não é só pelo viés

psicanalítico que Berman prevê a utilização do processo de análise; é também pelo

viés da análise textual, que se aplica no sentido de um reconhecimento dos sistemas

10 Berman sintetiza a sua definição de letra nestes termos: �a letra são todas as dimensões às quais o sistema de deformação atinge.� (BERMAN, 2007, p.62).

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de deformação nos textos traduzidos. A analítica da tradução seria uma equação

dos dois vieses aqui apontados.

Berman enumera 12 sistemas de deformação 11, deixando a possibilidade de

outros ainda por serem analisados. Esses sistemas são responsáveis por

transformar uma tradução em um texto que não se pareça com uma tradução, i.e.,

que se pareça com um texto originalmente escrito na língua da cultura de chegada,

determinando, por esse motivo, um apagamento do Outro em sua condição de

Estrangeiro. Esse apagamento muitas vezes não é percebido pelo leitor, razão pela

qual uma analítica da tradução estaria a serviço de flagrá-lo. Essas deformações

constitutivas do fazer tradutório tradicional têm como conseqüência e resultado uma

prática de tradução que Berman denomina como etnocêntrica. Nesse sentido, para

Berman, trata-se de um fazer tradutório que tem como principio uma ética negativa,

e por isso o resultado seria o de uma �má tradução�. (ibid., p. 18-20)

De acordo com o teórico, se existe uma ética negativa, pressupõe-se em

conseqüência uma ética positiva12, que é revelada após uma analítica da tradução.

E aqui encontramos o terceiro eixo de reflexão proposto pelo teórico, o eixo da ética

da tradução.

Uma ética da tradução, para Berman, consistiria �em resgatar, afirmar e

defender a pura visada da tradução como tal� (ibid., p.17). Essa visada da tradução,

segundo o teórico, significa �abrir no nível da escrita uma certa relação com o Outro,

fecundar o próprio pela mediação do Estrangeiro [...]� (ibid., p.16). A partir disso

Berman fala de uma visada ética da tradução, que seria, na nossa leitura, a defesa 11 Cf. em (BERMAN, 2007, p. 48-62) detalhes sobre os doze sistemas de deformação examinados por Berman. 12 Percebemos aqui a necessidade de futuramente enriquecermos uma discussão sobre a ética Bermaniana, problematizando as definições de ética positiva e ética negativa, principalmente devido ao fato de Berman propor um processo de destruição/desconstrução de teorias consideradas por ele tradicionais. Não o faremos neste trabalho, já que não pretendemos nos debruçar sobre uma discussão que trate de ética no sentido mais rigoroso do termo. Falaremos sobre esse termo a partir de um ponto de vista mais corrente, que trata da ética como aquilo que é relativo a um conjunto de valores. Não vamos tão pouco discutir, aqui, questões correlatas no âmbito da filosofia desconstrucionista Derridiana e da destruição Heideggeriana. Dessa forma, tomando por base o conceito de ética da tradução proposto por Berman, conceito este que será apresentado na seqüência deste parágrafo, entenderemos ética positiva simplesmente como aquela que defende como visada uma �boa tradução� e ética negativa a que defende como visada uma �má tradução�.

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da tradução como abertura ao Outro, enquanto relação com o Outro. É em defesa

da visada ética que ele vai criticar e analisar as teorias da tradução e as traduções

que ele chama de tradicionais, ou etnocêntricas � tendo sempre como sustentáculo

para essa análise os três eixos propostos �, para, através dessa reflexão,

estabelecer o espaço verdadeiro da tradução, ou até mesmo uma especificidade da

tradução.

Para o teórico francês, o fazer tradicional, através dos já citados sistemas de

deformação, destrói a essência verdadeira da tradução quando se apropria do Outro

ao invés de dar ouvidos a ele, ao invés de se abrir e se relacionar com esse Outro.

Ou ainda, quando não faz mais do que reafirmar o Próprio, em prejuízo de uma

possibilidade de relação com o Outro.

Conforme a reflexão Bermaniana é esse fazer tradicional que invariavelmente

domina a tarefa do tradutor enquanto prática e também enquanto teoria desde muito

tempo. A reflexão instaurada por Berman vai ao encontro deste �hábito�

concretizado, com o intuito de �questionar e talvez, de destruir [tal ação] 13, a partir

de uma experiência mais original, não da tradução, mas de sua essência.�

(BERMAN, 2007, p.25-26, grifo do autor).

Portanto, é uma prática e uma teoria da tradução etnocêntrica que Berman

pretende desconstruir, com o interesse de revelar a verdadeira essência da tradução

que, para o autor, como já apontamos anteriormente, é a de ser abertura, é a de ser

relação.

13 Berman utiliza-se aqui do termo destruir no sentido Heideggeriano da destruição (Destruktion). Neste trabalho, a noção da destruição de Heidegger torna-se mais adequada se substituirmos o termo por desconstrução, no sentido Derridiano desse conceito, que remonta a uma leitura que Derrida faz justamente do termo proposto por Heidegger. No nosso modo de entender, a destruição ou desconstrução se refere a um movimento que flagra o centro, a Verdade estipulada pela tradição para determinado conceito, com o objetivo de discutir, nos limites de sua própria lógica de operação, pontos de contradição. A partir da discussão desses pontos surgem novas possibilidades para os conceitos analisados. Sem, no entanto, colocar os conceitos tradicionais à margem, sem destruí-los, num sentido meramente negativo do termo.

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Nesse item nossa intenção foi a de uma síntese geral sobre o pensamento de

Berman. Nos itens seguintes discutiremos pontos mais específicos dessa reflexão

conforme os interesses deste trabalho.

2.1. UMA FUGA DA TRADUÇÃO ETNOCÊNTRICA (Problematizando a noção de

tradução etnocêntrica)

Um Arlequim servidor de dois amos. O título do texto teatral de Carlo Goldoni

cabe perfeitamente para exemplificar o eterno drama no qual, segundo Berman,

sempre estão inseridos os tradutores. Os dois amos, para o tradutor/arlequim,

seriam o contexto de partida e o contexto de chegada, ou como na concepção de

Schleiermacher, filósofo do séc. XIX, trata-se da decisão de levar o leitor ao autor ou

de trazer o autor até o leitor (SCHLEIERMACHER, 2001, p.43). A qual dos dois

amos servir? Qual deles é o merecedor de total dedicação? Aos dois, segundo

Schleiermacher, seria impossível servir ao mesmo tempo. Para o pensador e

tradutor alemão:

Ambos são tão diferentes um do outro que um deles tem de ser seguido tão rigidamente quanto possível do início ao fim. De qualquer mistura resulta necessariamente um resultado pouco confiável e é de recear que o autor e leitor se percam por completo. (idem)

Na concepção de Schleiermacher, a primeira situação é aquela que deve ser

seguida pelos tradutores, pelos �bons� tradutores, pois ao levar o leitor ao autor se

mantém, na tradução, aquilo que o estrangeiro tem de Estrangeiro e, por

conseqüência, esse tipo de tradução só acrescenta e enobrece a cultura e a língua

de chegada. É importante lembrar que Schleiermacher propõe essa reflexão no

contexto da Bildung, e que seu interesse era indiscutivelmente aquele que visava

uma discussão da tradução a serviço da formação lingüística, cultural, humanística.

Esse objetivo só pode se efetivar a partir da tradução, se o projeto do tradutor estiver

voltado para a preservação do Estrangeiro. Portanto, abrir-se para o Outro é o foco

principal da primeira máxima de Schleiermacher, tal qual também o é para Berman

como meta para uma �boa tradução�. A segunda situação, ou segunda máxima, é

aquela que pretende trazer o autor até o leitor, é aquela que procura apagar o que o

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estrangeiro tem de Estrangeiro, e obter através da tradução um texto �belo� que seja

capaz de esconder todas as marcas que o caracterizem como tradução. Trata-se de

uma apropriação do Outro, como se o autor do texto original pertencesse à cultura

do texto de chegada. (ibid., p.43,45). A esse modo de traduzir fundado numa

apropriação do Outro, como já vimos, Berman chama de tradução etnocêntrica.

Porém, as reflexões Bermanianas visam uma extensão dessas questões

pautadas apenas na busca pela �melhor� ou �pior� forma do fazer tradutório.

Independentemente de quão �nobre� seja o objetivo dessa análise, ele parte na

direção de uma Verdade da tradução. Para o teórico, o importante é promover uma

reflexão sobre o significado e o espaço da tradução nos tempos atuais. E isso vai

para além da dimensão prática da tradução, embora seja ela o seu ponto de partida.

Por conta disso, no ensaio �A tradução em manifesto�, Berman problematiza a

necessidade, por parte do tradutor, de uma escolha radical entre um dos seus

�amos�, i.e., problematiza o que motiva a escolha do tradutor a sanar o seu grande

dilema, problematiza o próprio dilema do tradutor em sua prática. Berman acredita

que a escolha radical por uma ou outra forma tem conseqüências bastante

significativas, pois ao optar exclusivamente por uma ou outra forma de atuar na

tradução, o tradutor está ao mesmo tempo estabelecendo uma hierarquia entre

culturas e, obviamente, entre línguas. (BERMAN, 2002, p.16).

Esse questionamento se dá a partir da identificação de uma resistência ao

Outro, que é inerente a toda cultura e se manifesta radicalmente na tradução. Trata-

se, portanto, de uma resistência que os tradutores enfrentam constantemente na sua

prática. Trata-se, também, de uma desconfiança do público letrado14 em relação ao

texto traduzido, desconfiança que acoberta a sacralização do texto �original�. (idem).

E é esta a questão primeira que dá impulso ao trabalho de reflexão ao qual Berman

pretende nos conduzir, diz ele:

Está na hora de meditar sobre este estatuto reprimido da tradução e sobre o conjunto de �resistências� que ele testemunha. O que poderia ser formulado assim: toda cultura resiste à tradução mesmo que necessite essencialmente dela. A própria visada da tradução � abrir no nível da escrita uma certa

14 Para Berman: público conhecedor de um idioma estrangeiro e acostumado a ler as obras também no �original�.

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relação com o Outro, fecundar o Próprio pela mediação do Estrangeiro � choca-se de frente com a estrutura etnocêntrica de qualquer cultura, ou essa espécie de narcisismo que faz com que toda sociedade deseje ser um Todo puro e não misturado. Na tradução, há alguma coisa da violência da mestiçagem. (idem, grifo do autor).

Nesse sentido percebemos que é impossível alcançar, na prática, uma visada

pura da tradução, ou ainda, escolher apenas não fazer uma tradução etnocêntrica. É

preciso levar em conta que Berman se opõe a uma atitude dominantemente

etnocêntrica, mas não pressupõe a possibilidade de uma tradução que também não

seja, em alguma medida, etnocêntrica. Isso porque não é possível se desvincular

totalmente de pressupostos ideológicos � constitutivos de uma opção etnocêntrica �,

já que estes estão enraizados nas inúmeras culturas, e o tradutor, que antes de

profissional é um ser humano e está intimamente conectado à sua própria cultura,

não escapa a essa condição. Até mesmo porque muito das nossas ideologias e dos

nossos desejos atuam sobre nós de modo inconsciente, como já argumentava Freud

no seu discurso sobre a psicanálise � e conforme mencionado no item 2 desse

trabalho, quando tratamos da analítica da tradução e da identificação dos sistemas

de deformação.

Desse modo, percebemos mais claramente que o �dilema� pelo qual passa o

tradutor, e a tradução em si, ou seja, a própria questão da tradução, vai muito além

de uma mera opção por determinado �modelo�. Conforme o que compreendemos da

reflexão proposta por Berman, a questão central da tradução, tanto para esse teórico

quanto para os fins da discussão aqui apresentada, reside na própria compreensão

da noção de relação. Berman ainda articula essa questão de maneira categórica:

�[...] a essência da tradução é ser abertura, diálogo, mestiçagem, descentralização.

Ela é relação, ou não é nada.� (ibid., p.17, grifo do autor).

Note-se que, a despeito da reflexão Bermaniana problematizar a possibilidade

de uma tradução totalmente não etnocêntrica, para Berman a �boa tradução� é

aquela que se funda na possibilidade da construção de uma relação que caminhe

nessa direção. É também aquela que se sustenta a partir de um movimento pré-

determinado de relação. Ou seja, um movimento que, ao pôr em relação15, prevê, no

15 A escolha pelo termo pôr em relação surge aqui neste trabalho, a partir da leitura da máxima Bermaniana em três outros textos: no texto francês e em duas de suas traduções, para o inglês e

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seu horizonte, a possibilidade de alcance do Outro, do Estrangeiro. Do contrário, é

nada.

Schleiermacher, de certo modo, também problematizava a questão de uma

escolha radical por essa estratégia de abertura. Ainda que, como Berman, privilegie

uma estratégia que promove o movimento do leitor na direção do autor, ainda que

defenda ser este o movimento mais adequado e enriquecedor, Schleiermacher

chama a atenção para a dificuldade em dar-se seguimento a este que podemos

entender como um modelo estrangeirizante de tradução. Isso fica claro no seguinte

trecho do seu artigo:

[...] dificuldades se apresentam quando o tradutor olha para a sua relação com a língua na qual ele escreve e para a relação de sua tradução com as suas obras. [...] E tem de se admitir que fazer isso com arte e medida, sem desvantagem própria e sem desvantagem para a língua, talvez seja a maior dificuldade que o nosso tradutor tem a superar. (Schleiermacher, 2001, p. 55,57, grifos nossos).

Com base na citação acima, entendemos que Schleiermacher ensaia um

reconhecimento da impossibilidade, ou ao menos dos limites de realização do seu

ideal � da construção de uma relação de abertura ao Outro. No entanto, o pensador

acredita que, uma vez mantendo-se esse ideal como horizonte, a tendência é a de

uma produção cada vez mais próxima desse horizonte, até o ponto de, quem sabe,

abrir-se no impossível a possibilidade de se atingir uma soberania cultural e

lingüística (ibid., p. 83,85). No final do seu artigo, referindo-se à Alemanha do início

do século XIX, Schleiermacher declara: �[...] Muitas tentativas e ensaios ainda

para o italiano. Como segue, respectivamente: ��[...] l�essence de la traduction est d�être ouverture, dialogue, métissage, décentrement. Elle est mise en rapport, ou elle n�est rien��, cf. (GODARD, Bárbara (1984): L�Éthique du traduire : Antoine Berman et le « virage éthique » en traduction, p.16. Disponível em: http://www.erudit.org/revue/ttr/2001/v14/n2/000569ar.html. Acesso em: 06/05/2008.); "The essence of translation is to be an opening, a dialogue, a cross-breeding, a decentering. Translation is 'a putting in touch with', or it is nothing", cf. (BERMAN, Antoine (1992): The experience of the foreign: culture and translation in romantic Germany. Albany, NY: State University of New York Press, p4.); �[...] �l�essenza della traduzione è di essere apertura, dialogo, meticciato, decentrament. È um mettere in relazione, o non è nulla.��, cf. (VINCENZI, Giampaolo (2003): �Etica ed Imitazione nella traduzione poética�. In: Smerilliana semestrale de civiltà poetiche n.2, p.307. Disponível em: http://www.smerillo.com/smerilliana/numero_2/numero_2-5_Vincenzi.htm. Acesso em 28/05/2008. De acordo com os nossos grifos, nas três citações, nota-se que há no termo escrito uma indicação de movimento no que tange à relação. Poderíamos então optar, a partir disso, por uma tradução para o português que seria a de pôr em relação, ou colocar em relação. Por esse motivo, daqui em diante, neste trabalho, trataremos a tradução (como relação) no sentido desse movimento.

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precisam ser feitos também aqui antes de surgirem algumas obras excelentes, e

muita coisa que brilha no início, depois é superada por melhores� (ibid., p.83).

Berman reafirma reconhecer à impossibilidade não etnocêntrica quando diz

que, ao questionar um modo etnocêntrico de tradução, não quer dizer, com isso, que

a tradução não admita nenhum elemento etnocêntrico na sua tessitura (BERMAN,

2007, p.37). E continua, esclarecendo que questionar a tradução etnocêntrica

�significa mostrar que essa parte é secundária, que o essencial do traduzir está

alhures [...]�. (ibid., p.39, grifos do autor). Assim, percebemos no discurso de Berman

que, mesmo tendo por horizonte uma visada pura da tradução, as relações

construídas através da tradução não deixam de ser, em alguma medida,

etnocêntricas. A tradução, nesse sentido, expõe, manifesta, torna visível a própria

condição de impossibilidade de construção de uma relação não etnocêntrica.

Ao tratar-se a tradução como impossibilidade e, em conseqüência disso,

também como traição � como reiterado proverbialmente pelo senso comum �, o lado

que se expõe dessa atividade, seguindo o raciocínio de Berman, é um lado que

podemos determinar como negativo. O que Berman propõe é encontrar o lado

positivo, ou melhor, o espaço positivo do traduzir, como o próprio autor o denomina.

(ibid., p.44). Isso porque, para ele, este sofrimento16, esta culpa que o ato de traduzir

carrega, �não concerne à verdade da tradução � sua verdade ética e histórica.�

(idem). É nesse sentido que, como já explicitamos anteriormente, o teórico alerta e

reafirma:

O acesso a essa verdade não é, todavia, direto. É através de uma destruição sistemática das teorias dominantes e de uma análise (no sentido cartesiano17 e freudiano ao mesmo tempo) das tendências deformadoras que operam em toda tradução que poderemos abrir um caminho em direção

16 Cf. em (BERMAN, 2007, p.39) �Não somente aquele [sofrimento] do tradutor. Também aquele [sofrimento] do texto traduzido.� Berman fala, portanto, do sofrimento do tradutor por ter uma tarefa impossível de ser alcançada, no que diz respeito a atingir os objetivos de uma visada ética, mas também fala do sofrimento do texto que não escapa as interferências deformadoras. Pode-se dizer que, de alguma maneira, no momento em que fala deste sofrimento inerente a experiência tradutória, Berman aponta também para uma violência que é, também, inerente a essa mesma experiência. 17 O termo cartesiano, para fins deste trabalho, deve ser entendido como um processo sistemático de análise textual.

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ao espaço positivo do traduzir e simplesmente do seu próprio. (idem, grifos do autor).

2.2. VISADA ÉTICA DA TRADUÇÃO (Problematizando a noção de relação com o

Outro)

No item anterior (2.1) vimos que, para Berman, uma visada ética da tradução

tem como objetivo defender a tradução como abertura ao Outro. Então, grosso

modo, pode-se dizer que a visada ética Bermaniana tem como objetivo defender a

condição da tradução como relação com o Outro. Isso, segundo ele, torna-se

possível a partir do momento em que se identificam as deformações típicas que têm

por conseqüência uma tradução etnocêntrica � o que Berman chamará de uma �má

tradução�. No entanto, Berman também admite a impossibilidade de que a relação

travada com o Outro seja isenta de traços etnocêntricos. Sendo assim, conclui-se

que uma analítica da tradução, que auxilia na identificação dos elementos

deformadores, oferece a possibilidade de que as interferências deformadoras sejam,

ao menos, minimizadas durante o fazer tradutório. Nesse sentido, uma �boa

tradução�, na análise de Berman, seria aquela em que as características

etnocêntricas são amenizadas? É possível pressupor que, ao mesmo tempo em que

as chances de se tomar o Outro por apropriação são minimizadas, amplia-se

também a possibilidade de se alcançar uma relação ideal com esse Outro (a partir

da abertura para um diálogo entre o Próprio e o Outro, que a analítica instaura). Ou,

ao menos, amplia-se a possibilidade de se aproximar de uma relação ideal.

Ao pensar a tradução nesses termos, Berman delimita, para a prática e para a

reflexão sobre tradução, o que ele vai chamar de um espaço da tradução, um

espaço dialógico e ético onde se constroem relações. E nesse espaço, se a

tradução se fechar ao Outro, ela é nada, uma vez que �ela é na sua essência,

animada pelo desejo de abrir o Estrangeiro ao seu próprio espaço de língua.�

(ibidem, p.69, grifos do autor). Segundo Berman:

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O ato ético consiste em reconhecer e em receber o Outro enquanto outro. Refiro-me aqui a toda meditação de Levinas em Totalidade e infinito.18 Essa natureza do ato ético está inserida implicitamente nas sabedorias gregas e hebraicas, para as quais, sob a figura do Estrangeiro (por exemplo, do suplicante), o homem encontra Deus ou o Divino. Acolher o Outro, o Estrangeiro, em vez de rejeitá-lo ou de tentar dominá-lo, não é um imperativo. Nada nos obriga a fazê-lo. (ibid., p.68).

Entendemos esse horizonte de uma relação ideal e não etnocêntrica como

componente de uma atitude que tenta alcançar um �além da Verdade� que é

metafísico, ou uma visada metafísica, como fala Berman. Essa visada é

impulsionada pelo desejo de apropriar-se do Outro inteiramente. Porém, uma vez

que esse desejo seja em alguma medida sublimado e transborde essa necessidade

de apropriação extrema do Outro, esse desejo passa a ser confrontado, ou pelo

menos amenizado, a partir da disposição para receber o �Outro enquanto Outro�.

Berman chama a relação que surge após esse transbordamento de relação

dialógica, porque, ao propor sua visada ética, pressupõe o diálogo com o Outro,

pressupõe a possibilidade de ouvir a resposta do Outro, de dar ouvidos ao Outro.

(BERMAN, 2002, p. 24).

À guisa de conclusão deste capítulo podemos destacar algumas questões

importantes que se levantam a partir de nossa leitura das reflexões Bermanianas.

A primeira delas diz respeito à noção de relação, cuja explanação foi feita no

item 2.1 deste capítulo. Vimos que Berman articula uma noção de relação como um

movimento de abertura ao Outro. Segundo o teórico, uma vez que esse movimento

de abertura não se instaure, ele não representa nada: não constituiria uma relação.

Mas, para o autor, a tradução, enquanto �boa tradução�, não deve promover

qualquer movimento de abertura ao Outro, qualquer tipo de relação: deve fazê-lo de

modo a não se apropriar desse Outro. Isso porque, uma vez que se aproprie do

Outro, ela (a tradução) não seria um movimento de abertura, mas sim, de

apagamento, de fechamento ao Outro. E, para Berman � repetimos �, quando isso

acontece, esse movimento não constitui relação, não é nada. Mas será que, nesse

18 Para fins deste trabalho, esse ato ético é compreendido no contexto ético proposto por Berman, ou seja, no contexto de uma ética da tradução que tem como função a defesa da pura visada da tradução, que, por sua vez, é a de ser abertura para o Outro. Desse modo, a despeito de sua relevância para a presente discussão, não vamos aqui discutir toda a meditação realizada por Lévinas a respeito do tema.

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caso, não haveria mesmo relação alguma? Nem mesmo uma �má relação�, uma �má

tradução�?

Como se percebe, Berman impõe dessa forma uma condição, ou uma

condição adequada, para que a tradução aconteça como relação. E ao mesmo

tempo em que impõe essa condição, o próprio teórico problematiza a possibilidade

de atendê-la idealmente. Nesse sentido, é preciso questionar, aqui, a real

possibilidade de se estabelecer uma condição para que a relação aconteça. Assim,

não sendo possível impor-lhe uma condição, é preciso discutir em que medida a

relação seria então incondicional. Será que a relação, ou melhor, esse movimento

de abertura, de pôr em relação19, poderia estar condicionado a um tipo pré-

determinado de relação?

De modo a adensar esse primeiro questionamento, nos deslocamos para uma

segunda questão, que diz respeito ao pressuposto do Outro, desse Outro inerente a

toda relação e, portanto, a toda tradução. Assim, se uma relação só pode se dar

conforme as condições impostas por Berman, a partir de uma abertura ao Outro,

mas, ao mesmo tempo, sem deixar de, em alguma medida, apropriar-se deste, como

mensurar o grau da possibilidade de se construir uma relação com um Outro

enquanto Outro20? É possível alcançar esse Outro? É possível anular a presença do

Próprio em uma relação?21 Temos como medir o quanto do Outro e o quanto de

Próprio permeia uma tradução/relação?22 Uma prática etnocêntrica apagaria

realmente o Outro a ponto de não podermos mais perceber nessa prática nenhum

traço que indique algum tipo de relação? Sendo a relação/tradução �ideal� de

Berman um tipo específico de relação, que resultaria numa �boa tradução�,

poderíamos falar então de uma �boa relação�? E poderíamos então chamar a

19 Ver nota 15. 20 Permitir-nos-emos compreender a expressão Outro enquanto Outro, utilizada por Berman, no sentido de um Outro na sua totalidade, pois, na relação ideal de Berman, a não etnocêntrica, o Próprio não pode se manifestar no Outro enquanto expressão. Esse Outro, portanto, poderia ser considerado idealizado, no pensamento Bermaniano, como um outro puro. 21 Falamos aqui da tentativa de evitar uma prática de tradução/relação etnocêntrica, de acordo com a proposta de Berman. 22 Aqui pensamos na elaboração que Berman faz ao reconhecer a não possibilidade de uma tradução totalmente não etnocêntrica.

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relação constitutiva de um contato etnocêntrico, uma vez que admitamos a sua

existência, de uma �relação ruim�?

Tomando como base esses questionamentos � que obviamente não

pretendemos esgotar nem responder aqui integralmente, uma vez que os

entendemos apenas como horizonte crítico de nossa discussão �, é possível

sintetizar duas questões centrais a serem desenvolvidas na seqüência deste

trabalho: a questão da condicionalidade da tradução como relação e a questão do

pressuposto de um Outro metafísico, ambas constitutivas da visada ética da

tradução proposta por Berman. No próximo capítulo, pretendemos discuti-las à luz

do conceito Derridiano de hospitalidade, em especial no que diz respeito às

discussões que o filósofo promove em torno das questões do Estrangeiro e da

Incondicionalidade do ato de hospitalidade.

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3. A REFLEXÃO DERRIDIANA SOBRE A HOSPITALIDADE (discutindo as questões do Estrangeiro e da Incondicionalidade) ___________________________________________________________________________

Um ato de hospitalidade só pode ser poético Jacques Derrida

No final do capítulo anterior sugerimos duas questões a partir da principal

afirmação de Antoine Berman, segundo o qual a tradução ou é uma relação23, ou

não é nada. Conforme descrito no mesmo capítulo, essa máxima Bermaniana

enfatiza a idéia de que a essência pura da tradução é ser abertura ao Outro, ao

Estrangeiro; é também promover um diálogo com o Outro, i.e., Berman fala da

propriedade da tradução, enquanto prática e reflexão, de promover uma espécie de

relação com o Outro. (BERMAN, 2002, p.16-17).

Buscaremos inicialmente traçar um paralelo entre as noções de relação e de

hospitalidade, considerando a hospitalidade no sentido de um movimento de

acolhimento do Outro na morada/espaço do Próprio. Começaremos pelo sentido

comum de ambas as noções: hospedar alguém significa, antes de tudo, abrir a sua

casa a um outro, significa abrir a sua casa para um estranho àquele espaço e a todo

o seu contexto de regras e costumes. Ao hospedar um outro se dá inicio a um

processo de convivência com esse outro, o que implica, num sentido comum, numa

relação. Portanto, um ato de hospitalidade é também, em alguma medida, um ato de

relação. Ou uma relação de hospitalidade.

Com vistas a estender a nossa reflexão sobre a noção de relação nos termos

propostos por Berman, entendemos que o ato de receber o Outro é uma forma,

também, de dar abertura ao Outro, ou ainda, de dar entrada ao Outro. Assim, abrir-

se, ou ser abertura, ao Outro é também um ato de hospitalidade para com ele, no

sentido de acolhê-lo em um determinado espaço. A hospitalidade pressupõe ainda,

seguindo por um sentido comum do termo, que esse Outro precisa ser recepcionado

com gentileza na casa do Próprio e pelo Próprio, a ponto de sentir-se, no espaço 23 Sempre que mencionarmos o termo relação utilizado por Berman para tratar da tradução, estaremos implicitamente falando de um movimento de pôr em relação. (vide nota 15 deste trabalho, capítulo 1 [parte 2] ).

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que não é o seu, como se estivesse na sua própria casa, como se fizesse parte da

família que o está recebendo24. Do mesmo modo, a relação com o Outro,

estabelecida durante a reflexão Bermaniana, implica num movimento de abertura

que tem, entre outros fins, o objetivo de receber o Estrangeiro a partir de uma atitude

de respeito para com ele. 25 Assim, a tradução como relação, tomando como base

toda a discussão elaborada até aqui, pode ser considerada também como um ato de

hospitalidade.

Dando seqüência à aproximação das noções aqui discutidas, a partir deste

momento, trataremos da noção de hospitalidade no sentido em que é discutida pelo

filósofo Jacques Derrida no desenvolvimento das suas reflexões. Acreditamos na

pertinência dessa aproximação porque o foco das discussões Derridianas, em

especial aquelas que discutem o tema da Hospitalidade, é direcionado,

principalmente, para as questões do estrangeiro e da condição de recepção e

desenvolvimento da relação estrangeiro/hóspede. E também porque essas questões

estão, a nosso ver, diretamente ligadas às questões levantadas por nós no item 2.2,

no que concerne à condicionalidade imposta por Berman à tradução (como relação),

e aos pressupostos que surgem, a partir disso, relacionados ao Outro, inerente a

toda relação.

Leyla Perrone-Moisés (2007) em artigo publicado na Revista Cult, utiliza como

tema principal para a sua discussão a expressão �um perigo e uma chance�, que

teria presença relevante em praticamente todas as questões importantes levantadas

por Derrida nas suas discussões. Segundo a autora, o filósofo afirmava que quando

se opta por percorrer um caminho, sempre se impõe uma condição de

enfrentamento de �um perigo e uma chance� 26. Com isso, uma vez aceita essa

24 Trata-se aqui de uma discussão que se insere no âmbito de uma discussão moral. E do mesmo modo como não adentraremos em discussões pertinentes à ética no sentido mais rigoroso do termo (ver nota 12 deste trabalho), também não o faremos com a questão da moral. Aqui, para fins deste trabalho, pensamos no termo moral no seu sentido comum de boa conduta, ou de bons costumes para com o Outro. 25 Cf. (BERMAN, 2007, p.7) em Nota dos Tradutores: �[...] A eticidade [para Berman] �reside no respeito, ou melhor, num certo respeito pelo original��. 26 E assim sucede quando da escolha de �todos os caminhos�, visto que não podemos prever, mas apenas supor o modo como se dará a construção de uma trajetória.

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condição, demonstra-se, de certo modo, confiança naquilo que está por vir. De certa

forma, essa é uma atitude que aposta no desconhecido, naquilo que se esconde na

parte escura do caminho. Assumir o risco de percorrer esse trajeto, segundo Derrida,

significa dirigir-se ao imprevisível e ao incalculável, acreditando numa possibilidade

qualquer de êxito. (2007, p.44-5). Assim, ao desenvolver o tema sobre a

hospitalidade, Derrida conduz o leitor para a percepção da necessidade de

enfrentamento dos perigos e chances que convivem lado a lado nesse tipo de

relação (relação de hospitalidade):

A hospitalidade, isto é, a aceitação do outro em nossa casa, em nosso país, representa um perigo: o hóspede pode ser um ladrão ou um terrorista. Por outro lado, a hospitalidade é um imperativo ético e a chance de uma relação pacífica entre os homens. Mais que isso: a acolhida do outro é a condição da ipseidade, já que não há sujeito sem o reconhecimento do outro. A hospitalidade deve ser incondicional. (idem, grifo nosso).

Para Derrida, de acordo com Perrone-Moisés, um ato de hospitalidade é

indispensável e fundamental para a constituição do Próprio, por questões até

mesmo de sobrevivência. Por outro lado, entendemos que é também uma situação

de risco, pois dependendo de quem seja o Outro, o resultado da abertura pode ser

extremamente perigoso. Existindo a possibilidade de perigo, nasce, naquele que

hospeda, a sensação de medo em relação ao hóspede, o que pode gerar, por

conseqüência, um início de relação permeado pela hostilidade, visto que o hóspede

pode ser também o inimigo, aquele que vem para causar um �estrago� na casa que

lhe dá abrigo 27. Devido a essa situação, hospedar um Outro naturalmente acaba por

instituir algumas condições, como por exemplo, a identificação desse Outro através

de um inquérito instaurado a partir do medo: Qual o seu nome? De onde e por que

vem? Para onde vai? Quais são os seus interesses? Entre outras �violências�.

Trata-se sim de uma violência, pois o termo hostilidade, de acordo com a sua

acepção, refere-se a uma manifestação de agressividade. Portanto, um inquérito

inicial com intenção de comprovar, digamos, o direito do Outro em ser hóspede,

pode ser considerado um indício de comportamento hostil, um ato agressivo e, por

fim, uma atitude de violência para com o estrangeiro.

27 Cf. (DERRIDA, 2003, p. 41) os termos hospitalidade, hostilidade e hóspede derivam do mesmo termo latino hostis que representa tanto o estrangeiro como o inimigo. Daí essa dualidade, mas não numa lógica que coloque estes termos em oposição, e sim, em conjunção.

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As condições que começam a se delinear a partir do inquérito inicial dizem

respeito ao perigo da situação, e vão de e ao encontro da proposta ideal de

hospitalidade defendida por Derrida, que é a de uma hospitalidade incondicional. De

encontro porque se as respostas ao inquérito não satisfizerem o hospedeiro, este

não abrirá a sua casa e, portanto, será negada a hospitalidade. Ao encontro, porque

satisfeito o desejo de reconhecimento do Outro pelo Próprio, a hospitalidade é

oferecida. Porém, nesse caso, impõem-se condições. Assim, como ficaria uma

proposta que se encaminha na direção de uma incondicionalidade? Essa afirmação de Derrida incomoda: �Deve-se dar ao outro�, diz ele, � a permissão de fazer a revolução em nossa casa�. �Como assim?�, diz o bom senso. �A hospitalidade tem limites!� Não, responde Derrida. � Se há hospitalidade, só pode ser incondicional. Não há hospitalidade condicional: se coloco condições ao outro que vem, ao que chega, não posso mais falar de hospitalidade. Mas, se a hospitalidade não pode ser incondicional, é preciso dizer, ao mesmo tempo, que uma hospitalidade incondicional é impossível, é o próprio impossível� (idem)

Por esse viés da reflexão Derridiana, pressupomos que Berman, ao propor

uma relação que se instaure a partir de um movimento de abertura ao Outro, e ao

mesmo tempo não permita uma interferência do Próprio nesse movimento, em

alguma medida, tal qual Derrida, defende a idéia de que ao Outro seja oferecido

abrigo (no espaço do Próprio) sem quaisquer limitações. Ou seja, podemos

compreender que Berman, de certo modo, compartilha da idéia de Derrida de que

não se deve colocar condições ao que vem de fora, i.e., não se deve colocar

condições àquele a quem se dá abertura. Berman � repetimos � afirma que se não

for assim não há uma relação, e em conseqüência não há uma tradução (como

relação), não há nada. Seria então a relação Bermaniana uma proposta de relação

incondicional?

Ao analisar a relação Bermaniana nos termos de uma incondicionalidade,

esbarramos na exposição das reflexões desse autor sobre a tradução/relação,

realizada no capítulo 2 deste trabalho. No referido capítulo identificamos um tipo

específico de relação ao qual Berman condiciona a tradução. O tipo de relação

determinado pelo teórico é justamente aquele que não sofre interferência

etnocêntrica, ou seja, aquele no qual o Outro não sofre um apagamento em prol do

Próprio. Assim, percebemos, ao traçar um paralelo entre a noção Derridiana de

hospitalidade e a noção Bermaniana de relação, que em Berman a questão da não

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apropriação do Outro pelo Próprio é aquela que aponta para uma possível

incondicionalidade da relação � visto que o Próprio deve oferecer total abertura ao

Outro. Ao mesmo tempo, esse imperativo da não apropriação é a mesma questão

que impõe uma condição para a existência da relação � visto que a relação só pode

ser efetivada na condição da não apropriação do Outro. Nesse sentido, se Derrida

afirma que havendo condição não há hospitalidade, pois esta deve ser incondicional,

então, podemos entender que, quando Berman postula uma incondicionalidade da

relação, mas impõe uma condição para que ela aconteça, estaria, em alguma

medida, afirmando que a relação é impossível?

O fato é que, enquanto Derrida afirma a questão da incondicionalidade,

Berman postula uma incondicionalidade, mas termina por impor uma condição.

Pode-se dizer, então, que há, em Berman, o mesmo paradoxo a ser resolvido na

prática da tradução/relação, como sugere Perrone-Moisés na conclusão da sua

reflexão sobre o tema da hospitalidade Derridiana:

Como resolver, na prática, esse paradoxo? Trata-se de considerar o impossível como �talvez possível�, de ter a hospitalidade absoluta [incondicional] como meta a ser buscada apesar de tudo e nesse sentido, o �impossível� passa a ser condição do �possível�. O impossível é a chance do possível, aquilo que mantém aberta a possibilidade. (idem)

Quando Berman admite a impossibilidade de uma tradução totalmente não

etnocêntrica, ou, não apropriadora, ao dizer que questionar esse tipo de prática �não

significa afirmar que a tradução não comporta nenhum elemento etnocêntrico [...]�

(BERMAN, 2007, p.37), ele estaria admitindo também a impossibilidade da tradução

como relação pura, considerando o ideal de relação constitutivo da sua visada ética.

Nesses termos, Berman nos permite colocar em questão a possibilidade de

existência de uma tradução. Uma vez que, se a tradução só pode ser relação

(aquela que ele idealiza), e essa relação não acontece, a tradução não é nada.

Assim, não haveria então tradução. Com isso, a tradução seria sempre ou uma não

relação, ou uma �má tradução�?

Dando continuidade a leitura da reflexão de Perrone-Moisés, podemos

entender, então, que a relação postulada por Berman deveria ser buscada como

meta para que se abra na impossibilidade a possibilidade de uma relação isenta de

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apropriação do Outro pelo Próprio? Só assim poderíamos pensar numa

possibilidade de �boa tradução�, ou mesmo numa possibilidade de tradução?

À diferença de Berman, o ideal de incondicionalidade de Derrida não coloca

como pauta principal a questão de apropriar-se ou não de um outro. Porque, para

Derrida, como veremos na seqüência, esse fato � o de acontecer uma apropriação

em alguma medida em toda relação � é instituído, é inevitável. A questão da

incondicionalidade Derridiana prevê como principio fundamental um enfrentamento,

�como se o estrangeiro fosse [...] aquele que coloca a questão ou aquele a quem se

endereça a primeira questão. [...] Mas também aquele que, ao colocar a primeira

questão, me questiona� (DERRIDA, 2003, p.5). Esse enfrentamento incorpora a

necessidade de convivência com o Outro que chega, com disposição para aceitar os

perigos e chances que a relação venha oferecer.

Nesse sentido, a relação de hospitalidade proposta por Derrida diz respeito a

um por vir que se constrói a partir da disposição em dar ouvidos ao Outro durante o

diálogo que instaura essa relação e, portanto, pressupõe-se, ainda, uma

disponibilidade para aceitar/tolerar o Outro, não importando quem ele seja ou de

onde venha. Por esse viés não há como prever como se dará a construção dessa

relação. É preciso deixá-la, em alguma medida, acontecer livremente, conforme

percebemos nas palavras desse filósofo:

[...] a hospitalidade absoluta [incondicional] exige que eu abra a minha casa [...] ao outro absoluto, desconhecido, anônimo, que eu lhe ceda lugar, que eu o deixe vir, que o deixe chegar, e ter um lugar no lugar que ofereço a ele, sem exigir dele nem reciprocidade (a entrada num pacto), nem mesmo o seu nome. (ibidem, p. 23,25)

Berman propõe, de certo modo, um pacto com o Outro ao colocar uma

condição para a relação, ele instaura um pacto para a existência dessa relação.

Esse pacto Bermaniano comporta a condição de que o Próprio não tomará o Outro

por apropriação. Desse modo, se supõe a possibilidade do Outro entrar no espaço

que lhe é oferecido, se entregar de modo a enriquecer esse espaço (em troca da

hospitalidade recebida), e se acomodar como se estivesse totalmente à vontade

nesse espaço que não é o seu, mas onde agirá de acordo com suas próprias leis.

Se uma relação se dá nesses moldes, levando-se em conta que o objetivo

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Bermaniano é não permitir a interferência do Próprio, quais seriam as condições

para um diálogo? Ou melhor, em que condições essa relação dialógica se daria? E

ainda, seria possível falar de uma não apropriação total do Outro uma vez que se

admita não existir um controle total sobre as ações deformadoras constitutivas de

um ato de apropriação (ver item 2)?

3.1 A QUESTÃO DO ESTRANGEIRO

Derrida inicia sua reflexão sobre o tema da hospitalidade colocando o

estrangeiro em questão:

A questão do estrangeiro não seria uma questão de estrangeiro? Vinda do estrangeiro? [...] antes de ser uma questão a ser tratada, antes de designar um conceito, um tema, a questão do estrangeiro é uma questão de estrangeiro, uma questão vinda do estrangeiro, e uma questão ao estrangeiro, dirigida ao estrangeiro. Como se o estrangeiro fosse, primeiramente, aquele que coloca a questão ou aquele a quem se endereça a primeira questão. [...] Mas também aquele que, ao colocar a primeira questão, me questiona. (ibidem., p.5, grifos do autor).

Desse modo, o filósofo nos oferece um determinado movimento de relação

com o Outro28. Um movimento que é circular e realizado por um questionador e um

questionado; movimento de perguntas e respostas, o que supõe reciprocidade. Da

maneira como nos é apresentado, entende-se que é também um movimento que se

desenvolve a partir do diálogo, portanto, no âmbito de uma relação dialógica. Nota-

se um indício desse mesmo movimento nas reflexões de Berman, quando o teórico

francês fala sobre o seu conceito de relação dialógica com o Outro. Essa relação

surge, segundo Berman, a partir do transbordamento do desejo de apropriar-se do

Outro, quando, então, abre-se a possibilidade do Próprio dar ouvidos ao Outro e

instaurar, assim, um diálogo que possibilite o início dessa relação. A proposta

Bermaniana é a de uma relação que se abre ao Outro enquanto Outro. Assim, se

28 Derrida, no texto com o qual estamos trabalhando, faz uma distinção entre os termos Estrangeiro e Outro Absoluto, conforme vamos apresentar na seqüência deste trabalho. Assim, para evitar qualquer tipo de confusão ao nosso leitor, que possa comprometer de alguma maneira a nossa reflexão, continuaremos fazendo uso dos termos Outro (ou estrangeiro) e Próprio, como até o momento, mesmo que esses termos não sejam usados por Derrida. Assim, os termos Estrangeiro e Outro Absoluto, no sentido Derridiano, somente serão indicados quando forem indispensáveis para a explicitação do pensamento do filósofo em questão.

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considerarmos a possibilidade de sublimação do desejo inicial de apropriação, com

o propósito de uma visada ética, podemos concluir que estaríamos construindo um

tipo de relação capaz de identificar, perceber e alcançar o Outro na sua totalidade.

(BERMAN, 2002, p.24).

No movimento dialógico proposto por Derrida apreendemos um segundo

movimento, que se aplica ao primeiro, e que é um movimento permeado pela

condição do enfrentamento. O termo enfrentamento é utilizado aqui no sentido de

�encarar e aceitar� aquilo que está por vir, bem como no sentido de �ataque e

defesa�. Pois é no diálogo, na relação com o Outro, que há a necessidade de

convivência, não somente com as chances, mas também com os perigos que estão

por vir. Essa convivência tem início, conforme já explicitamos no item 3, com um

inquérito � que avalia a �possibilidade� de acontecer um ato de hospitalidade, ou

uma relação de hospitalidade. Segundo Derrida, aquele que após o inquérito é

aceito como se fosse da família, contestará, inevitavelmente, o �dono do lugar�,

contestará as normas e os costumes do espaço o qual passará a compartilhar: Como se o Estrangeiro [o Outro] devesse começar contestando a autoridade do chefe, do pai, do chefe da família, do �dono do lugar�, do poder de hospitalidade [..] estabelecer que o não-ser é, sob qualquer consideração, e que o ser, por sua vez, de certa maneira não é. (DERRIDA, 2003, p. 7).

Nos dizeres de Derrida, o Outro, ao colocar em questão aquele que o recebe

como �filho� 29, é considerado aquele que, conseqüentemente, contesta o pai, o

chefe da família, ou, o �dono do lugar�. É aquele �que sacode o dogmatismo

ameaçador do logos paterno: o ser que é e o não-ser que não é� (idem). Portanto,

comete um ato de violência para com o hospedeiro (o Próprio) � da mesma forma

que Derrida considera o inquérito um ato de violência do hospedeiro para com o

hóspede �, ele é, como diz Derrida, um �parricida�. �Como todo parricídio, este

acontece em família: um estrangeiro só pode ser parricida se estiver de alguma

forma em família.� (id.). Ou seja, se for aceito como hóspede, se passar pelo

inquérito inicial. O Outro cometerá uma violência enquanto �parricida�, quando

29 Conforme elaboração no início deste capítulo, um ato de hospitalidade prevê a recepção do Outro na sua casa como se ele fosse da família. Considerando que o chefe da família seja o �pai� do lugar, o Outro, ao ser acolhido, passa a ser considerado naquele espaço como a um filho.

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coloca o Próprio em questão, mas faz isso após ter sido também colocado em

questão pelo hospedeiro ao pedir-lhe abrigo, após ter sofrido esse tipo violência.

A partir disso concluímos, nas reflexões Derridianas, que a violência é como

�uma rua de mão dupla�, no que diz respeito à reciprocidade entre os dois lados de

uma relação. Como analisa Cristina Carneiro Rodrigues (2006), ressaltando a

relação entre o Outro e o Próprio da tradução, por um viés Derridiano:

Derrida sustenta que �a escritura não se pensa fora do horizonte da violência intersubjetiva� e nada escapa radicalmente a ela: nem conhecimento, nem linguagem são estranhos à escritura e à violência. A partir dessas afirmações entende-se a impossibilidade de haver tradução que não envolva algum tipo de violência, completamente alheia a alguma relação de dominação. (2006, p.201, grifo nosso).

Portanto, abrir-se ao Outro significa também apropriar-se dele em alguma

medida e, com isso, naturalmente, o Outro se transforma durante a relação. E o

contrário também pode e deverá acontecer, i.e., o Outro fazendo com que o Próprio

se transforme, se redescubra na e a partir da relação, ao invés de apenas reafirmar

o si-próprio, como é sugerido na visada ética da tradução Bermaniana.

Retornando à reflexão de Derrida, percebemos, então, que a condição do

contestar é inevitável a partir e na relação de hospitalidade. Porque aquele que vem

de fora é um estranho, ele desconhece o contexto que envolve aquele espaço, e,

por esse motivo, de algum modo, precisa tentar se adaptar às regras do �abrigo� que

lhe está sendo oferecido. E nesse processo de adaptação � seguindo uma leitura

Derridiana, acreditamos ser este um processo continuo e infindável, e que faz parte

do enfrentamento indispensável para se construir uma relação � as regras do

espaço do Próprio são colocadas em questão. É quando, segundo Derrida, a

�Verdade� 30 instituída naquele ambiente pode vir à tona de modo a expor suas

possíveis contradições � visto que o hóspede percebe a �Verdade�, cultivada num

ambiente que não é o seu, por uma outra perspectiva, aquela do distanciamento de

quem observa de fora da situação. Isso acarreta, naturalmente, um conflito entre

hospedeiro e hóspede durante a relação de hospitalidade. (et. seq, p.7). É através

do esforço para manter essa relação � através de um enfrentamento das chances e 30 O termo Verdade será utilizado aqui apenas no sentido de valores.

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perigos que ela poderá oferecer �, que ambos, hospedeiro e hóspede, criarão um

espaço comum para possibilitar uma convivência. Espaço esse que, ao nascer do

diálogo, pode ser considerado como um espaço dialógico. Espaço onde se realiza

uma relação de hospitalidade. Ou, simplesmente, onde se constrói uma relação. Ou

ainda, onde se dá a relação entre o Outro e o Próprio. Um espaço comum que pode

ser considerado um espaço relacional que se funda a partir de um esforço

relacional31.

Já a relação dialógica idealizada por Berman não parece pôr centralmente em

discussão o �conflito�, o enfrentamento que acontece inevitavelmente durante a

construção de uma relação. Não percebemos um movimento de reciprocidade na

proposta de relação Bermaniana, no sentido de o Próprio vir a �sofrer a violência�

inerente ao contato com o Outro � falamos aqui da apropriação �, ou, de sofrer o

questionamento imposto pelo Outro. Berman, como vimos no capítulo 1 (parte 2),

fala de uma espécie de acréscimo qualitativo do Outro em relação ao Próprio, um

agregar valores, num sentido de formação lingüística, cultural e humanística. Porém,

não coloca em discussão, ao menos de modo explícito, a possibilidade de o Próprio,

para além de suprir aquilo que lhe falta, transformar-se e modificar-se após rever

seus próprios valores, após ter as suas �Verdades� colocadas à prova. Somente ao

rever os próprios valores, é que o Próprio, segundo o movimento Derridiano, para

além de revelar e aprender com o Outro, aprende consigo mesmo ao desencadear

um reconhecimento do si-próprio.

Por conta disso, somos levados a questionar a possibilidade de alcance da

totalidade do Outro, conforme defendida pela visada ética Bermaniana, quando o

teórico reflete sobre a possibilidade de não se cometer nem um tipo de apropriação,

ou de violência para com o Outro.32 Uma crença como essa, a nosso ver, poderia

31 Cf. (CARDOZO, 2007, p.9, 13) que institui o termo esforço relacional �como esforço de abertura ao outro, em oposição à idealização de um esforço que tem em vista alcançar o Outro [...] se instaura na tensão entre [...] duas disposições: entre um desejo de complemento e o desafio transbordante da abertura.� 32 Aqui vale reforçar que estamos falando especificamente da visada ética da tradução Bermaniana, a qual se opõe a uma tradução etnocêntrica. Ao tratar da visada ética o teórico é categórico ao dizer que em uma visada pura da tradução não cabe a apropriação do Outro, pois se houver apropriação a tradução não é relação. É isso que a visada ética defende a despeito de qualquer problematização

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comprometer a criação de um espaço comum entre o Outro e o Próprio,

principalmente se esse espaço possuir como alicerce o diálogo. Porque o diálogo

que Berman propõe aparentemente não consideraria centralmente o conflito e,

assim, não pressuporia algum grau de enfrentamento, de reciprocidade; não

pressuporia o esforço relacional necessário para que surja um espaço comum.

Márcio Costa (2000), ao fazer uma leitura do pensamento de Emmanuel

Lévinas sobre a questão do Outro, diz que há uma série de modalidades que não

caberiam no diálogo; na relação com o Outro:

[...] não se trata de encadeamento com o outro �eu�; não se trata de compreensão do outro; não se trata de comunhão com o outro; justamente porque todas essas modalidades destruiriam a alteridade do outro e o reduziriam a um alter - ego subsumido no si - mesmo (2000, p. 88).

A partir disso percebemos que, se na relação Bermaniana, conforme estamos

deduzindo neste trabalho, o propósito for realmente o de alcançar o Outro enquanto

Outro, na sua totalidade, procurando evitar qualquer gesto de apropriação por parte

do Próprio � acreditando assim, na possibilidade de uma compreensão total do

Outro, e também de comunhão total com o Outro �, não se estaria contando com a

possibilidade de o Próprio estar agindo através dos sistemas de deformação de

modo inconsciente, e desta forma projetar no Outro o si-próprio. Se assim for, o

Próprio estaria agindo contrário ao seu projeto, apropriando-se do Outro na tentativa

e na crença de não fazê-lo. Em seu artigo �Sobre a Interpretação e Ascetismo�,

Rosemary Arrojo (1993) faz uma leitura nesse sentido, elaborando-a por um viés

psicanalítico:

[...] o inconsciente �não é simplesmente, aquilo que deve ser lido, mas, também e, talvez principalmente, aquilo que lê, ou seja, aquilo que lê no que está sendo lido� [...] A situação dialógica em que o inconsciente inevitavelmente fala e lê nos traz uma outra formulação famosa de Lacan: �o inconsciente é o discurso do outro�. [...] Nesse diálogo, o analisando passa a atribuir ao analista o papel de uma �testemunha� às suas revelações, o papel do �outro�, cuja existência é invocada pela mediação da fala. Nesse papel, tudo o que o analista diz � suas resposta e suas reações � e que produz um �efeito� no analisando é precisamente o inconsciente do analisando, ou seja, �o discurso do outro�. A produção desse efeito que se dá na relação transferencial , que passa a se confundir com a própria

sobre a impossibilidade de uma tradução totalmente não etnocêntrica, discutida nos textos Bermanianos analisados neste trabalho.

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interpretação e que se estabelece entre sujeitos sempre portadores de um inconsciente, não pode isentar nem mesmo aquele que se encontra na posição de autoridade e de analista. (1993, p.102-103, grifos do autor).

Berman, a nosso ver, chega a reconhecer essa situação ao falar do cuidado

que se precisa ter ao elaborar uma teoria não etnocêntrica, uma vez que uma teoria

totalmente não etnocêntrica também poderia, em alguma medida, ser uma teoria

etnocêntrica. (BERMAN, 2002, p.18). E não é à toa que propõe um rigoroso sistema

analítico capaz de identificar os sistemas de deformação inerentes ao Próprio,

conforme abordagem no item 2.1 deste trabalho.

Porém, é a própria proposta de análise Bermaniana que, ao anunciar a

possibilidade de identificação das deformações no Próprio � com a finalidade de não

violentar o Outro �, anuncia, também, uma possibilidade de se alcançar o Outro na

sua totalidade. E dessa forma, a alteridade do Outro seria destruída � como vimos

na citação de Costa (2000, p.88), �essas modalidades destruiriam a alteridade do

outro� �, e é justamente isso que a visada ética da tradução, elaborada por Berman,

a nosso ver, pretende evitar.

Nesse caso, nos ocorre a necessidade de um certo cuidado até mesmo para

se falar em relação e diálogo, pois entendemos que estes por si só dependem da

�existência� de duas partes (o Próprio e o Outro), e as partes só �existem� uma

devido à outra, a partir da relação e do diálogo. Uma parte precisa necessariamente,

de alguma maneira, acolher a outra, pois uma vez que se comprometa a �existência�

de uma das partes, aniquila-se a outra por conseqüência: �[...] a acolhida do outro é

a condição da ipseidade, já que não há sujeito sem o reconhecimento do outro�.

(PERRONE-MOISÉS, 2007, p.44-5). Ou seja, independentemente do grau de

apropriação que acontecerá entre as partes envolvidas em uma relação, se

pensarmos na condição de ipseidade elaborada por Derrida (na leitura de Perrone-

Moisés), uma relação entre o Próprio e o Outro em alguma medida sempre

acontece. Independentemente das condições.

Retomando a citação de Derrida sobre a questão de estrangeiro, inserida no

início deste item, após problematizarmos a questão da relação dialógica e a posição

do Outro nessa relação, precisamos ainda, dentro da lógica Derridiana de

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hospitalidade, concluir que: quem chega é o estrangeiro, mas o hospedeiro também

o é, pelo ponto de vista daquele que vem de fora, daquele que vem para o

estrangeiro. A partir disso Derrida questiona o que é, então, ser estrangeiro:

[...] Quem é estrangeiro? [...] Nós havíamos apenas sublinhado que, se devemos dar-lhe uma determinada extensão, uma acepção corrente, tal como acontece no mais das vezes, stricto sensu, quando o contexto também não o precisa [...], estrangeiro é entendido a partir do campo circunscrito do ethos ou da ética, do habitat, ou da estada como ethos [...] (DERRIDA, 2003, p.39, grifos do autor). 33

Assim, o ser estrangeiro não é delimitado somente por fronteiras que separam

os países, como se entende por estrangeiro num senso comum do termo. Não são

essas fronteiras as únicas responsáveis por apontar quem é ou não é de fora, ou

quem é ou não é um estrangeiro. As fronteiras estão, conforme Derrida, para além

dos espaços físico ou geográfico, podem dizer respeito aos limites do próprio corpo,

num sentido material e simbólico, i.e., o termo corpo, aqui, metaforizando a casa, a

morada material, bem como a morada do espírito, do metafísico. Assim sendo, todo

Outro e todo Próprio são estrangeiros em alguma medida, inclusive para o si-próprio

� se pensarmos outra vez no consciente e inconsciente de nós mesmos. O

inconsciente é o Outro de nós mesmos, aquele que muitas vezes enxerga o que não

enxergamos em nós mesmo. Ele nos põe em questão:

[...] o inconsciente � ou o �outro� da consciência � não é algo que possa ser descartado ou mantido �fora� da razão ou da consciência, já se inscreve como uma �divisão�, uma �clivagem� dentro dela própria: �o inconsciente não é mais a diferença entre a consciência e o inconsciente e, sim, a diferença inerente, irredutível entre a consciência e ela mesma�. (ARROJO, 1993, p.101-102)

Dentro desses parâmetros, prosseguindo na problematização da questão do

estrangeiro, Derrida conclui seu pensamento defendendo a idéia de que a

33 Nossa compreensão de ethos se através do conceito elaborado por Vaz (1999, apud. Cardozo, 2007, p. 6-7) onde �ethos é a morada do animal e passa a ser a �casa� (oikos) do ser humano, não já a casa material que lhe proporciona fisicamente abrigo e proteção, mas a casa simbólica que o acolhe espiritualmente e da qual irradia para a própria casa material uma significação propriamente humana, entretecida por relações afetivas, éticas e mesmo estéticas, que ultrapassam suas finalidades puramente utilitárias e a integram plenamente no plano humano da cultura. Do ponto de vista de sua plena auto-realização, o ser - humano, antes de habitar no oikos da natureza, deve morar no seu oikos espiritual � no mundo da cultura � que é constitutivamente ético.� Cf. VAZ, Henrique Cláudio de Lima (1999): Escritos de filosofia IV. Introdução à Ética filosófica 1. São Paulo: Loyola. (p. 39-40).

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delimitação do espaço se dá pelo direito, pelas leis do espaço. Essas leis dizem o

que o Outro pode ou não fazer no espaço que o acolhe. São essas leis que apontam

o Outro como Outro ao espaço, como o diferente no espaço que está sendo

ocupado por ele. Se alguém precisa responder a leis de direitos e deveres, esse

alguém está na condição de estrangeiro, na condição de Outro.

Essas leis são, portanto, as regras, um ritual de deveres e direitos que são

apresentados ao Outro no espaço do hospedeiro, como um pacto selado entre eles,

o qual visa sustentar uma relação de hospitalidade. É em virtude dessas leis que

Derrida denomina esse tipo de hospitalidade como uma hospitalidade de direito. É

em nome dessa hospitalidade que se realiza um inquérito para se identificar o nome

daquele que pede abrigo � eliminando a possibilidade de se oferecer abrigo a um

parasita � para só depois acolhê-lo, para só depois oferecer-lhe moradia:

Como distinguir entre um hóspede e um parasita? Em principio, a diferença é estrita, mas para isso se exige um direito; é preciso submeter a hospitalidade, a acolhida, as boas-vindas, a uma jurisdição estrita e limitativa. (DERRIDA,2003, p.53).

Assim, percebemos que, a despeito de todo o processo de identificação sobre

o que é o estrangeiro, é o modo como se instaura a hospitalidade para com o Outro

que Derrida sugere repensar. O que nos faz crer que, além de pensarmos em uma

abertura ao Outro, devemos pensar nesse Outro como aquele que vem colocar o

Próprio em movimento progressivo. Portanto, torna-se indispensável, além de

receber o Outro, refletir sobre as condições estabelecidas para recebê-lo, pois

ambas as partes são beneficiadas a partir da e na relação. Para isso, Derrida

estende sua reflexão: �[...] A questão da hospitalidade começa aqui: devemos pedir

ao estrangeiro que nos compreenda, que fale nossa língua, em todos os sentidos do

termo, em todas as extensões possíveis, antes e a fim de poder acolhê-lo entre

nós?� (ibid., 15). Dessa forma, o filósofo inicia uma problematização do direito à

hospitalidade:

[...] esse direito à hospitalidade oferecida a um estrangeiro �em família�, representando o protegido por seu nome de família, é ao mesmo tempo o que torna possível a hospitalidade ou a relação de hospitalidade, o limite e o proibido. Nessas condições, não se oferece hospitalidade ao que chega anônimo e a qualquer um que não tenha nome próprio, nem patronímico,

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nem família, nem estatuto social, alguém que logo seria tratado não como estrangeiro, mas como mais um bárbaro (ibid., p.23).

Nota-se então que Derrida faz uma distinção entre o estrangeiro e o bárbaro.

Para designar este último o filósofo faz uso do termo outro absoluto:

[...] a diferença, uma das sutis diferenças, às vezes imperceptíveis entre o estrangeiro e o outro absoluto, é que este último pode não ter nome e nome de família; a hospitalidade absoluta ou incondicional que eu gostaria de oferecer a ele supõe uma ruptura com a hospitalidade no sentido corrente, com a hospitalidade condicional, com o direito ou o pacto de hospitalidade. (idem).

Nesse sentido, gostaríamos de ressaltar que a distinção entre os termos feita

por Derrida diz respeito principalmente ao fato de que, para ele, o estrangeiro é

aquele que tem um nome e o outro absoluto é aquele que não o tem. Em outras

palavras, o estrangeiro é o Outro de quem identifico e reconheço as origens, e o

outro absoluto é o Outro sobre quem nada sei; nem o nome, nem nada sobre suas

origens. Dessa forma, se pensarmos novamente nos perigos que o Próprio tenta

evitar, o Outro (estrangeiro) é aquele que receberíamos em nossa casa, e o outro

absoluto é aquele a quem normalmente não daríamos à acolhida, pois ele pode ser

o bárbaro que vai nos colocar em perigo. Essa situação é justa, segundo Derrida, e

perfeitamente compreensível numa situação real e cotidiana (ibid., p. 23, 25).

A despeito, porém, de todo o perigo que o outro absoluto pode oferecer, é a

acolhida a esse outro que Derrida propõe como uma forma de exercitar a

incondicionalidade, ou a hospitalidade incondicional. Questão a ser tratada no

próximo item do nosso trabalho.

À guisa de esclarecimento, vale destacar que, em relação ao outro absoluto

Derridiano, faz-se necessária uma leitura diferenciada daquela feita em relação ao

Outro Bermaniano. O outro absoluto ou incondicional, segundo Derrida, é aquele a

quem se deve dar abertura, é aquele com quem se deve construir uma relação, sem

condições. Desse modo, oferece-se a esse Outro uma abertura sem restrições, com

a ciência de que acontecerá uma construção de relação regida por um

enfrentamento dos perigos e chances. Ou seja: pressupondo atos de violência por

parte de ambos os envolvidos; pressupondo uma necessidade de adaptação que

acarretará em uma transformação dos dois envolvidos (idem). Já o Outro

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Bermaniano, de acordo com a proposta da visada ética, também deve ser posto em

relação a partir de uma abertura total sem restrições para a sua entrada, porém,

essa relação não prevê a transformação do Próprio, e sim, sua reafirmação

(BERMAN, 2002, p. 16-18).

3.2 A HOSPITALIDADE INCONDICIONAL

Vimos no item 3.1 que, para receber o Outro incondicionalmente, enquanto

outro absoluto, ou seja, recebê-lo sem lhe perguntar o nome, sem lhe exigir

reciprocidade, é preciso romper com as leis da hospitalidade corrente, ou, da

hospitalidade de direito. É preciso transgredir essas leis, segundo Derrida, porque

elas não permitem que se hospede o Outro sem que se conheça a sua origem e o

seu nome de família. As leis condicionam a hospitalidade a um pacto entre o

hospedeiro e o hóspede. Esse pacto, por sua vez, impede a hospitalidade num

sentido incondicional do termo (op.cit., p.23). Seria necessário, portanto, para

instaurar uma hospitalidade fundada na incondicionalidade, um rompimento com o

pacto imposto pela hospitalidade de direito.

A lei da hospitalidade, a lei formal que governa o conceito geral de hospitalidade, aparece como uma lei paradoxal, perversível ou pervertedora. Ela parece ditar que a hospitalidade absoluta [hospitalidade incondicional] rompe com a lei da hospitalidade como direito e dever, com o �pacto� de hospitalidade. [...] A hospitalidade justa rompe com a hospitalidade de direito; não que ela a condene ou se lhe oponha, mas pode, ao contrário, colocá-la e mantê-la num movimento incessante de progresso; mas também lhe é tão estranhamente heterogênea no direito do qual, no entanto, está tão próxima (na verdade, indissociável). (ibid., p. 23, 25, grifos do autor).

Ao mesmo tempo, Derrida reconhece, a despeito das aparentes contradições,

que o pacto é necessário e até mesmo indispensável para se dar início a uma

relação de hospitalidade. Além disso, pelo que podemos deduzir da citação acima,

esse pacto é o primeiro impulso para que o hospedeiro exercite a possibilidade de

uma hospitalidade incondicional, i.e., a possibilidade do impossível. É justamente a

impossibilidade de uma hospitalidade incondicional que coloca em progressão, em

crescimento e aprimoramento constantes, um ato de hospitalidade. Desse modo, por

meio de um processo progressivo, abre-se no por vir a possibilidade de um ato de

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hospitalidade incondicional: �[...] Mas, se a hospitalidade não pode ser incondicional,

é preciso dizer, ao mesmo tempo, que uma hospitalidade incondicional é impossível,

é o próprio impossível�. (PERRONE-MOISÉS, 2007, p. 45).

Derrida segue sua análise, sobre a referida questão, pelo seguinte viés:

Ela, a lei [hospitalidade incondicional], não seria efetivamente incondicional se não devesse tornar-se efetiva, concreta, determinada, se não fosse esse seu ser como dever-ser. Ela arriscar-se-ia a ser abstrata, utópica, ilusória, e, portanto, a voltar-se em seu contrário. Para ser o que ela é, a lei tem necessidade das leis que, no entanto, a negam, ameaçam-na, em todo caso, por vezes a corrompem ou pervertem-na. E devem sempre poder fazê-lo. (DERRIDA, 2003, p.71)

Nesse sentido, a hospitalidade incondicional seria indissociável da e

suplementar a uma hospitalidade de direito.

O suplemento acrescenta-se, é um excesso, uma plenitude enriquecendo uma outra plenitude, a culminação da presença. [...] Mas o suplemento supre. Ele não acrescenta senão para substituir. [...] Enquanto substituto, não se acrescenta simplesmente à positividade de uma presença, não produz nenhum relevo, seu lugar é assinalado na estrutura pela marca de um vazio. Em alguma parte, alguma coisa não pode-se preencher de si mesma, não pode efetivar-se [...] acrescentando-se ou substituindo-se, o suplemento é o exterior, fora da positividade à qual se ajunta, estranho ao que para ser por ele substituído, deve ser distinto dele. (grifos do autor) 34

Ao fazer a sua leitura da reflexão Derridiana, Perrone-Moisés (2007) sugere

que, ao olharmos para a questão da hospitalidade incondicional, poderíamos �[...]

considerar o impossível como �talvez possível�, [desse modo] ter a hospitalidade

absoluta [incondicional] como meta a ser buscada apesar de tudo [..]� (2007, p.45).

De algum modo, ao ter essa possibilidade como meta, trabalha-se para aprimorar o

desdobramento de um ato de hospitalidade, de uma relação de hospitalidade,

enriquecendo-o, preparando-o para a possível chegada de algo, no sentido de uma

suplementaridade, conforme a noção proposta por Derrida. Portanto, trabalhar esse

ato de hospitalidade é um esforço relacional no que diz respeito ao ato de receber o

Outro sem a imposição de condições. Esse esforço relacional, ou esse trabalho de

relação, é �[...] uma abertura ao infinito, à alteridade, para o outro que está por vir [...]

34 DERRIDA, Jacques (2006): �Do cegamento ao suplemento�. In: Gramatologia. Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva. p. 177-178.

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seria a ultrapassagem das fronteiras do ódio, das fronteiras da negação do outro.�

(CARVALHO, 1999, p.6)

Assim, percebemos que um ato de hospitalidade só pode ser poético35, no

sentido de que um ato de hospitalidade está sempre por fazer:

[...] tem a ver com essa fundação poética de uma abertura, de um processo se desdobrando no infinito; tanto no plano do indivíduo, que se assinaria individualmente, na sua ultrapassagem, a cada instante, tornando-se promessa dele mesmo, enfrentando as ameaças, enfrentando o que lhe chega pela fronteira de sua história; tanto no plano coletivo, a comunidade re-vendo sua inscrição histórica, discutindo seu próprio fechamento. (idem)

É notável que, para que um ato de hospitalidade aconteça, é necessário dar

incondicionalmente uma abertura ao Outro para que ele adentre o recinto do Próprio.

Portanto, o fundamental para a compreensão da filosofia Derridiana, aqui abordada,

a nosso ver, é perceber que a condição da hospitalidade é antes de tudo ser

incondicional à entrada do Outro. A hospitalidade está posta, ela é como a relação

que em alguma medida sempre acontece. Cardozo (2007) sintetiza a condição

humana com base no que chama de �Princípio da relacionalidade: O homem, na

inscrição de sua condição humana, é um ser relacional e, portanto, tem na relação �

consigo, com o mundo e com os outros � sua lei mais fundamental em todas as

dimensões de sua existência� (2007, p. 8, grifos do autor).

A hospitalidade acontece, mesmo quando por hostilidade, e a hostilidade

acontece inclusive a partir daquele que, ao solicitar abrigo, informou seu nome de

família e sua origem. Porque, mesmo este que dá o nome, em alguma medida, é um

outro absoluto, visto que não podemos alcançá-lo na sua totalidade36. Nesse

sentido, todo Outro, em alguma medida, tem algo de oculto, de bárbaro. Portanto,

hospedar o estrangeiro não é deixar de hospedar também o outro absoluto, que é 35 A epígrafe utilizada no início deste capítulo é um decalque da mesma epígrafe utilizada por Anne Dufourmantelle no início da �sua parte� textual no livro Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade. 36 Cf. (CARVALHO, 1999, p. 4) �Quando Derrida fala ser impossível a totalização, não no sentido clássico, onde o contrário da totalidade seria uma precariedade do fragmento, o fragmento como uma parte imperfeita, ou, apenas, como um representante ou substituto do todo, é por afirmar que o fragmento, em si, é relevante, independente de sua capacidade, bem sucedida, de representar o todo.�

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parte desse mesmo estrangeiro, parte negativa da positividade, �o não ser [que] é,

sob qualquer consideração, [...] e o ser, por sua vez, [que] de certa maneira não é.�

(DERRIDA, 2003, p. 7). Assim sendo, é preciso deixar o Outro entrar, atravessar o

limiar, deixar que ele ultrapassasse a soleira de um espaço delimitado para que seja

possível o início de um ato de hospitalidade. (idem, p.67,69). Do contrário, não

haverá, também, uma relação. Evitando-se a relação, coloca-se em risco a

existência do sujeito, visto que �não há sujeito sem o reconhecimento do outro�

(PERRONE-MOISÉS, 2007, p.45). É imprescindível, portanto, o enfrentamento dos

perigos e chances que podem vir do contato com o Outro:

A noção de hospitalidade incondicional cria um espaço de compaixão, no sentido de ser possível haver uma paixão con-vivencial, uma paixão pelo outro, num jogo que tem conflitos, mas que, pouco a pouco, eles possam ser transformados em uma experiência de abertura. (CARVALHO, 1996, p.6)

É esse movimento de enfrentamento, de esforço relacional, que guarda o

poético. É esse movimento que é um trabalho por fazer, ou seja, um esforço

necessário no ato da hospitalidade, no ato da relação.

Desse modo, para além do discurso Bermaniano voltado para a questão da

identidade, após a abertura que se ofereceu nesse trabalho para a interferência do

discurso Derridiano de hospitalidade, promovemos, aqui, o que se pode chamar de

uma reelaboração da noção de relação. E por esse motivo, a tradução como relação

poderia ser considerada como um ato de hospitalidade, como abordado no início

deste capítulo. Porque um texto traduzido �é, em alguma medida, representativo de

um modo de equacionar relações de diversas ordens (lingüísticas, literárias,

culturais, éticas, ideológicas, etc.)� (CARDOZO, 2008, no prelo). Assim, o fato de a

tradução ser uma relação é que se funda numa situação incondicional. Ou melhor:

�[...] A construção e o equacionamento de uma relação no ato da tradução é

incondicional: traduzir é pôr em relação� (idem, grifo nosso). Ou ainda: �Em outras

palavras: trata-se de dizer apenas que todo esforço relacional implica sempre em

uma rede de relações, de inúmeros termos, dispostos tanto de modo direto [...]

quanto de modo indireto [...]� (CARDOZO, 2007, p.11, grifo nosso).

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4. TRADUÇÃO COMO CONSTRUÇÃO DA RELAÇÃO ______________________________________________________

Um ato de tradução só pode ser poiético. Mauricio Mendonça Cardozo

No capítulo anterior desenvolvemos uma problematização da noção de

relação. Partimos de questionamentos levantados na leitura das reflexões de

Antoine Berman sobre a sua noção de tradução, confrontando-a, em seguida, com a

discussão em torno da questão da hospitalidade, nos termos em que é empreendida

por Jacques Derrida.

Durante esse processo de reflexão, um aspecto foi recorrente tanto na

problematização que fizemos da questão do Outro, quanto naquela que fizemos da

questão da incondicionalidade (da relação e da hospitalidade). Trata-se da questão

da apropriação, da violência característica a toda relação. Percebemos que a

violência, sendo inerente à relação, também o é ao fazer tradutório, uma vez que

nosso objeto de estudo se define a partir de uma concepção de tradução como

relação. Sob esse viés, é possível compreender que toda reflexão sobre tradução

�que se coloca como genuinamente respeitosa para a cultura e a língua da obra

original, que nega qualquer forma de violência, deve ser [passa a ser] abordada com

cautela e desconfiança� (RAJAGOPALAN, 2000, p.128).

Tendo em vista a máxima Bermaniana de que a relação só acontece se não

for etnocêntrica, a assunção da dimensão de apropriação no fazer tradutório leva-

nos a problematizar esse imperativo Bermaniano da relação. Em A Tradução e a

Letra ou o Albergue do Longínquo � bem como no ensaio �A Tradução em

Manifesto� �, Berman reconhece ser impossível uma relação sem algum grau de

apropriação do Outro pelo Próprio. Os motivos defendidos pelo autor foram

explicitados no item 2.1. Podemos dizer, portanto, que o teórico, ao admitir a

dimensão violenta do contato com o Outro, admite também, de certo modo, a

impossibilidade de se alcançar o Outro na sua totalidade � é preciso lembrar que o

autor defende esse alcance total do Outro quando elabora sua visada ética da

tradução.

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Ao falar de um movimento de abertura incondicional ao Outro, entendemos

que Berman articula sua noção de relação nos termos do discurso Derridiano sobre

a hospitalidade � que propõe uma abertura que deve se dar incondicionalmente,

num movimento de pôr em relação de hospitalidade. No entanto, esse movimento

deve se dar independentemente do grau de apropriação na relação.

A despeito de ainda questionarmos a possibilidade de se mensurar

efetivamente um grau de apropriação � lembramos que Berman pressupõe, na sua

problematização, a possibilidade de se atingir o �menor grau possível� de

apropriação do Outro �, perguntamos: seria possível assumirmos, a partir da

reflexão do teórico francês, que toda tradução, em alguma medida, é uma relação?

Kanavillil Rajagopalan (2000) conclui de forma bastante objetiva a discussão

sobre a questão da violência na tradução ao afirmar que:

Segundo a ótica dessas teorias [da tradução, inspiradas em reflexões pós-modernas], toda tradução, [...] passa por um ato de violência. Em outras palavras, a violência não é um mal que (infelizmente) atinge a tradução em muitos casos, que, portanto, pode e deve ter sido evitada a qualquer custo. Traduzir seria apropriar-se do texto dito �original�. E toda apropriação, por sua vez, se processaria mediante exercício de violência. Longe de tentar eliminar a violência do ato tradutório, ao teórico de tradução caberia perguntar quais as condições que propiciam a violência e quais as formas de resistência que as vítimas oferecem com ou sem êxito. Ou seja, a violência da tradução, [...], passa a ser questão a ser investigada e compreendida, e não vista como fonte de embaraço. (2000, p. 124-125).

Portanto, uma problematização da noção de relação nos direciona para um

outro modo de pensar a noção de tradução como relação, em que violência e

apropriação são componentes de construção da relação, ou, do fazer tradutório.

Assim, se entendemos a tradução não como um tipo específico de relação �

não somente aquela do discurso da identidade, mas também aquela dos discursos

da alteridade �, concluímos que, através dessa �outra� perspectiva, a tradução

assume em definitivo sua vocação de espaço da relação, num espaço que admite

tipos diferentes de relação como constitutivas do fazer tradutório.

Nessas condições, o Próprio, que anteriormente, na discussão sobre a visada

ética Bermaniana, era apenas reafirmado pelo Outro, passa a ter o seu valor

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determinado na e a partir da relação com este. Segundo Cardozo (2007, p.10), no

ensaio �Ilóquio ou por uma mecânica ética da tradução�: �O outro-da-relação seria,

assim, o resultado do esforço relacional de um Eu, que, por sua vez, só a partir

dessa relação, na relação, passaria a ter um valor relacional enquanto eu-da-

relação.� (grifos do autor).

Isso nos remete à reflexão Derridiana sobre a hospitalidade. Para Derrida,

quando o Próprio também é colocado em questão pelo Outro, valores são trazidos à

luz sob uma nova perspectiva, fazendo com que o Próprio sofra um processo de

revalorização. Dessa forma o Próprio também pode ser transformado na relação,

tanto quanto o Outro. A reelaboração ensaiada neste trabalho encontraria, desse

modo, eco no resultado da reflexão de Cardozo (2007), que problematiza a noção de

relação voltando-se para o fazer tradutório: Tal problematização [...] permite uma reelaboração da noção de relação, que passo a entender como um movimento fundado no esforço relacional � como esforço de abertura ao outro, em oposição à idealização de um esforço que tem em vista alcançar o Outro �, na responsabilidade � redefinida como disposição para dar ouvidos ao outro e oferecer-lhe algo em resposta � e na liminaridade � como condição liminar da relação, como algo que se dá sempre num limiar, em oposição à idealização da relação, como efetivação do encontro, do face-a-face. (id., p.9, grifos do autor).

Portanto, propõe-se, com este trabalho, uma reflexão sobre o fazer tradutório

que, em alguma medida, é suplementar às idéias Bermanianas de uma �moderna�

teoria/reflexão da tradução, ultrapassando-se as fronteiras das discussões centradas

apenas no lado positivo ou negativo dessa prática37: [isso não quer dizer] reverter posições e decretar a primazia do marginalizado sobre o que era considerado central. Em termos dos Estudos da Tradução, não significa privilegiar a tradução em detrimento do original. Fazê-lo seria, em um mesmo movimento, retomar as oposições clássicas que ocultam as relações de poder, de desejo, que fazem parte da tradução, assim como retomar as qualificações éticas avaliam um dos pólos como positivo e o outro negativo. (RODRIGUES, 2006, p.202)

Essa reflexão estaria, portanto, para além das questões que têm �em vista

exclusivamente uma excelência dessa prática, que se traduza centralmente na cura

dos males do tradutor ou da condição da tradução, ou seja, na cura de um 37 Nesse sentido as reflexões de Antoine Berman se dirigem ao estudo de um objeto, da visada ética, mais político que filosófico. Neste trabalho optamos pelo viés filosófico deixando o viés político para um maior aprofundamento reflexivo num próximo trabalho.

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sofrimento comunicativo� (op. cit., p.4, grifos do autor). 38 Essa reflexão, conforme

proposição de Rajagopalan (2000) deve voltar-se para uma �investigação�, uma

compreensão de como se dá o fazer tradutório, e em que condições o fazer

tradutório se dá (2000, p. 125), levando em consideração o esforço relacional que

fundamenta esse ato, esforço esse que pressupõe o enfrentamento das diferenças,

e, por conta disso, da violência que certamente dele fará parte.

Promover uma reflexão que se encaminhe para além das questões

referentes à excelência da tradução, não quer dizer ignorar, ou descartar uma

discussão sobre ao �males que precisam ser curados� (loc.cit., grifos do autor), mas

perceber que essa discussão trata da �própria condição de nossa prática [da prática

da tradução]. Assim, ao invés de limitar a discussão à cura do mal, [essa discussão

deveria se] concentrar [...] no desafio de convivência com essa, nessa condição.�

(idem, grifos do autor).

Percebemos, durante a desconstrução que a nossa problematização promove

na discussão Bermaniana, que há nesse discurso dois movimentos característicos,

um de dimensão política, pelo qual grande parte da discussão Bermaniana se

direciona39 � sobre o qual não abordaremos mais detalhes neste momento �, e o de

dimensão filosófica, no qual estivemos focados neste trabalho, e o qual, a nosso ver,

não estende uma discussão mais pontual sobre a questão da relação. Cabe,

portanto, enfatizar que a problematização da noção de relação realizada neste

trabalho, ao provocar uma reelaboração dessa noção Bermaniana a partir do diálogo

com uma noção de hospitalidade, não descarta a discussão sobre a

tradução/relação proposta por Berman. Ao contrário, enxerga-a como mola

propulsora, como uma abertura, um impulso progressivo visando dar maior

complexidade para o aprofundamento de reflexões que tratem do mesmo objeto.

38 Vale relembrar aqui o pensamento Bermaniano já citado no item 2 deste trabalho: �Há evidentemente, nessa experiência [no fazer tradutório], um sofrimento. Não somente aquele do tradutor. Também aquele do texto traduzido. Aquele sentido privado de sua letra. A tradução invade a intimidade deles� (BERMAN, 2007, p.39, grifos do autor). 39 A dimensão política da reflexão de Berman dialoga, em grande medida, com a reflexão do teórico da tradução Lawrence Venuti. Por esse motivo este teórico fará parte das referências bibliográficas do nosso próximo trabalho, no qual pretendemos fazer uma abordagem da discussão Bermaniana também pelo viés político que a constitui.

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Desse modo, a possibilidade de um viés reflexivo sobre a tradução inspirada

em reflexões pós-modernas ou pós-estruturalistas, como são considerados os

discursos Derridianos, em especial a reflexão sobre a questão da hospitalidade, nos

faz repensar uma denominação que soe mais adequada para essa nova

perspectiva. Uma perspectiva de abertura, de observarvação da poética do fazer

tradutório; de observação da construção da relação movimentada pelo ato do

traduzir. Movimentada pelo esforço relacional. Assim, o mais adequado seja, talvez,

falar de uma noção de tradução como construção da relação, de acordo com a

elaboração realizada por Cardozo (2008) em ensaio ainda em fase de publicação,

intitulado "Tradução e o trabalho de relação". Nesse ensaio o autor flagra discursos

genéricos da identidade e da diferença como discursos da relação, e a partir disso

propõe um reequacionamento da concepção de tradução baseando-se na noção de

relação, para por fim discutir, a partir de uma nova problematização que parte desse

reequacionamento, a tradução como um trabalho de relação. Assim Cardozo (2008,

no prelo) articula a tradução �como um trabalho por fazer. [...] Um trabalho de

relação, no sentido de um trabalho que tem lugar no fazer, na construção da relação

(das relações)�.

Nesse sentido, o autor percebe o fazer tradutório tal qual Derrida percebe um

ato de hospitalidade, um ato que só pode se dar na passagem, como um trabalho

por fazer, como um trabalho em construção. Cardozo entende �a tradução como

poiesis: como um trabalho, como um fazer que se vale de possibilidades diante das

impossibilidades impostas pela condição da relação� (idem, grifos do autor).

Assim, da mesma forma que um ato de hospitalidade, �uma ato de tradução

só pode ser poiético [...] só pode se dar como um esforço relacional, como

enfrentamento da condição da relação. [...] só pode se dar como um esforço de

construção, de uma construção de relação. (id., grifos do autor).

Com isso, uma próxima problematização, com vistas a estender este trabalho,

poderia caminhar na direção de uma reflexão sobre a condição da relação:

�Enfrentá-la [a reflexão sobre a condição da relação], com suas chances e perigos, é

o mínimo que se pode fazer diante do fato de que, a despeito de nossas

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compreensões por vezes tão divergentes, em alguma medida, a relação acontece.�

(id., grifo do autor).

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5. REFLEXÕES FINAIS ________________________________________________

No decorrer deste trabalho, procuramos refletir sobre um caminho possível

para a compreensão de um pensamento que tem como objeto de discussão a noção

de tradução como relação. O principal motivo é o de que essa discussão está em

desenvolvimento, atualmente, por pesquisadores do âmbito dos estudos da

tradução, e principalmente por nosso interresse em dar prosseguimento nas

pesquisas instauradas neste trabalho, através de um embasamento elaborado a

partir dessa pesquisa. Reflexões estas que entendemos, após o fechamento deste

trabalho, fazerem parte do que poderíamos chamar de um pensamento (pós)

moderno sobre a tradução.

No primeiro capítulo, durante a abordagem da proposta de Antoine Berman

para uma linha de pensamento que possibilite, em alguma medida, o

desenvolvimento de uma nova ou de uma moderna teoria da tradução, observamos

alguns pontos que careciam, a nosso ver, de uma maior problematização.

Principalmente naquilo que diz respeito à noção de relação proposta pelo autor, bem

como o entendimento de abertura oferecido ao Outro. Concluímos que Berman, ao

tratar da tradução como relação, ao menos no que concerne ao que chama de

visada ética da tradução, não leva em conta outras possibilidades de relação a não

ser aquela onde o Outro não sofra a apropriação do Próprio. Assim, percebemos a

necessidade de entender a relação enquanto uma relação com Outro. A partir disso

desenvolvemos algumas questões a serem problematizadas no capítulo seguinte,

como a questão da incondicionalidade da relação e a questão da alteridade.

No segundo capítulo, procuramos problematizar a noção de relação bem

como a relação com o Outro, promovendo um diálogo dos pressupostos

Bermanianos com os da questão da hospitalidade discutida por Jacque Derrida.

Derrida, ao desenvolver ou radicalizar as discussões da hospitalidade, partindo da

discussão sobre o mesmo tema desenvolvida por Lévinas, nos remete a novas

leituras sobre a relação com o Outro e a convivência com Outro, extremamente

pertinentes ao fazer tradutório pelo viés proposto por nós para delinear este projeto.

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Além disso, coloca-nos em diálogo com vários autores dentre os quais o próprio

Lévinas, além de Heidegger, Platão, etc., que nos servem de inspiração para o

aprofundamento, num futuro próximo, da reflexão iniciada neste trabalho.

A questão da hospitalidade em paralelo com a noção de relação Bermaniana

resultou em percepções sobre a tradução que nos encaminham para a necessidade

de reflexões que aprofundem, estendam alguns discursos já postos sobre o fazer

tradutório. Concluímos após essa aproximação que a questão da apropriação do

Outro é inerente ao ato de relação bem como ao ato de tradução, portanto esse é

um tema que deve observado por outro viés, e não mais para qualificar uma

tradução como sendo �boa� ou �má�. Para isso notamos a necessidade de uma

abertura às diferenças constitutivas da relação bem como da tradução, e por

conseqüência à percepção de que toda relação equaciona relações de diversas

ordens. São as diferenças que passam a ter peso fundamental numa reflexão sobre

o fazer tradutório, para além de serem apenas identificadas e colocadas como níveis

de qualificação de uma tradução; para além de qualificar a tradução a partir das

identificações de diferenças, o indispensável é entender como e porque essas

diferenças acontecem.

Com isso nos encaminhamos para o ultimo capítulo, o terceiro, abrindo a

partir dele possibilidades para dar continuidade ao nosso projeto.

Ao provocarmos uma desconstrução da reflexão Bermaniana, conforme

explicitada no item 4, colocamos a discussão de Berman em movimento,

promovemos aquilo que o próprio teórico nos faz intuir no final do seu ensaio a

�Tradução em manifesto�: a extensão da sua reflexão, a suplementação da sua

reflexão, partindo de dentro do espaço da tradução para dialogar com outros textos,

de outras áreas, no nosso caso a filosofia de Derrida, e assim procurar dar a

discussão interna da área novos ares. Desse modo, partimos de uma noção de

tradução como relação para uma nova abertura, a da noção de tradução como

construção da relação. A tradução passa, então, a ser o espaço onde as relações se

dão.

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Do mesmo modo como �A tradução não está dada, é uma relação por

construir...� (idem), ela é abertura, está por fazer, o pensamento sobre a tradução

está sempre por fazer, está sempre no por vir, como todo pensamento, como toda

reflexão que busca aprimorar-se. Sempre se pode e deve-se dar continuidade a

reflexões partindo de leituras de outros pensadores; estendendo-as, pondo-as em

movimento.

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