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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MARIA DA PENHA DOS SANTOS DE ASSUNÇÃO
A ALFABETIZAÇÃO NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DO ESPÍRITO SANTO
(DÉCADA DE 1870)
VITÓRIA2009
MARIA DA PENHA DOS SANTOS DE ASSUNÇÃO
A ALFABETIZAÇÃO NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DO ESPÍRITO SANTO
(DÉCADA DE 1870)
Dissertação apresentada por Maria da Penha dos Santos de Assunção ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação, na linha de pesquisa: Educação e Linguagens.Orientadora: Profa. Dra. Cláudia Maria Mendes Gontijo
VITÓRIA
2009
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Maria da Penha dos Santos de Assunção
FALTA COMPLETAR
Orientadora: Claudia Maria Mendes Gontijo.Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo,
Centro de Educação.
MARIA DA PENHA DOS SANTOS DE ASSUNÇÃO
A ALFABETIZAÇÃO NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DO ESPÍRITO SANTO (DÉCADA DE 1870)
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação.
Aprovada em____de ____________de 2009.
COMISSÃO EXAMINADORA
Professora Drª Cláudia Maria Mendes GontijoUniversidade Federal do Espírito Santo
____________________________________________________
Professora Drª Cleonara Maria SchwartzUniversidade Federal do Espírito Santo
Professora Drª Regina Helena SimõesUniversidade Federal do Espírito Santo
Professora Drª Isabel Cristina da Silva FradeUniversidade Federal de Minas Gerais
___________________________________________________
AGRADECIMENTOS
Ao meu amado esposo Antônio Luis pela parceria e disposição em viabilizar a caminhada e ao meu filho Daniel pelo sorriso e pelas palavras tão carinhosas e especialmente pelo conforto nos momentos mais difíceis: “Mamãe não chore, se o dever não está certo é só fazer outra vez e pronto, se você fizer certo Cláudia vai ficar feliz e você vai acabar logo. Quando meu dever está errado eu quero chorar, mas eu não choro, faço novamente.
A Deus, pela oportunidade de obter conhecimentos tão importantes e significativos e pelo refrigério nos momentos da escrita. A minha irmã Adriane pela alegria em participar da minha conquista.
Aos meus amigos pelas orações e à minha amiga Geane pela grandiosidade da sua amizade.
Á Luis Alberto Campos pela alegria e estímulo a essa tão importante conquista.
Aos profissionais do CMEI Dr. Denizart Santos pela amizade e companheirismo.
Aos diretores Helder e Algustavo pela amizade e pelo empenho em viabilizar os horários para que eu pudesse pesquisar os dados e concluir o trabalho.
À Secretaria Municipal de Educação de Vitória por viabilizar a concretização deste projeto.
À Nalva pela amizade, pelo partilhamento dos desafios e também por gestos tão calorosos e acolhedores a minha temática.
Aos professores do Curso de Mestrado, em especial, às professoras Cleonara Maria Schwartz , Regina Helena Simões e Vânia Carvalho de Araújo pelas reflexões acerca da educação e da história da criança ao longo dos séculos.
À professora Isabel Cristina Frade por sua participação na banca de defesa.
À minha professora Cláudia Maria Mendes Gontijo por ter mantido uma postura ética, por dialogar sobre as possibilidades de avançar na pesquisa e especialmente por conduzir a mediação fazendo-me compreender a necessidade de manter uma postura de humildade diante do conhecimento acadêmico e especialmente por mediar a trajetória instigando-me a aprimorar as análises.
Dialogar com a experiência do outro, eis um dos grandes desafios da História. Expandir a experiência humana, eis uma das belezas da história.
JOSÉ GONÇALVES GONDRA
RESUMO
A dissertação integra a produção da linha de pesquisa Educação e Linguagens
do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do
Espírito Santo e do grupo de pesquisa Alfabetização, Leitura e Escrita, que
também tem como foco investigar a alfabetização na história da educação da
província/Estado do Espírito Santo. Toma como referência em suas análises a
perspectiva histórico-cultural e a concepção bakhtiniana de linguagem
abordando especificamente a noção de texto, que segundo Bakhtin (2003) “e
um dado primário de análise de todas as disciplinas”. A pesquisa tem como
principal objetivo estudar a alfabetização na província do Espírito Santo na
década de 1870 investigando se os discursos oficiais reformistas acerca da
alfabetização contribuíram para a constituição de “novos” métodos e práticas
de ensino da língua que rompessem com modelos baseados no trabalho com
as unidades mínimas da língua. Adota o estudo documental como opção
metodológica. Parte do pressuposto de que os textos constituídos nos
documentos quando são interrogados produzem significados que permitem
reconstruir a história do ensino da língua, pois na concepção bakhtiniana, os
textos têm relação com o contexto de produção, e portanto evidenciam que a
linguagem possui um caráter dialógico. Esse dialogismo conforme nos aponta
Bakhtin (2003) compreende que o texto constituído em um documento é o
diálogo de muitas vozes que se enunciam. A partir da análise de documentos
pertinentes a educação na província do Espírito Santo na década de 1870,
pudemos perceber que apesar de todo o discurso reformista acerca do ensino
da leitura e da escrita, os regulamentos pertinentes a instrução pública da
província deram continuidade ao uso de materiais de ensino as práticas de
ensino pelo método sintético, e que, embora houvesse sucessivas ocorrências
de discursos em prol a escolarização de toda a população, as crianças em
idade escolar não foram atendidas.
Palavras-chave: Alfabetização. Métodos de ensino. Livros de leitura.
ABSTRACT
The essay integrates a work from Espirito Santo Federal University program of
Posgraduate study in Education and Language and Alphabetization, Read and
Written research group. Aim to investigate the alphabetization practices in the
state based in a historical-cultural perspective and the bakhtinian conception of
language. Its main goal is understand the learning of the written language by
two deaf children of the second grade, in an elementary and municipal school of
Vitória, state of Espírito Santo. Adopts an ethnographic study case as a
methodological option. Presuppose that the sign language is enunciative and
discursive, thus, the deaf children can learn the written language by their
insertion in dialogical activities. From the analysis of three significant events,
favoring the textual production in sign language, activities about the written
system and written textual production, it concludes that the mediation through
sign language and the written one as mnemonic resource is considered
permanent condition to be successful in the written production, due to not be
possible for deaf children establish the reaction between phoneme and
grapheme. Children produce their texts based in shared experiences, that way
memory it stands out the as a very important function in the process. It
considers the school education as fundamental in the process, concluding that
subject conceptions and the teacher language determine the possibilities of
learning of the deaf children.
Keywords: Mediation. Deafness. Alphabetization.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO………....................................................................................15
2 BASES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS...................................................20
2.1 BASES METODOLÓGICAS.......................................................................20
3 A INSTRUÇÃO PÚBLICA PRIMÁRIA NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO
SANTO NA DÉCADA DE 1870.................... ......................................................44
3.1 A 3.1 A INSTRUÇÃO PRIMÁRIA NO BRASIL E NO MUNICÍPIO DA
CORTE..............................................................................................................50
3.2 A INSTRUÇÃO PÚBLICA ELEMENTAR NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO
SANTO ..............................................................................................................59
3.2.1 O regulamento de 1861..........................................................................65
3.2.2 O regulamento de 1873..........................................................................72
3.2. 3 O regulamento de 1877.........................................................................82
4 RECONSTRUINDO A HISTÓRIA DA ALFABETIZAÇÃO NA PROVÍNCIA DO
ESPÍRITO SANTO NA DÉCADA DE 1870: DIALOGANDO COM OS TEXTOS E
MATERIAIS DE ENSINO ..................................................................................87
4.1 O MÉTODO SIMULTÂNEO ..........................................................................97
4.2 O MÉTODO MÚTUO...................................................................................111
4.2 O MÉTODO MISTO.....................................................................................113
4.4 OS MATERIAIS IMPRESSOS DESTINADOS AO ENSINO DA LÍNGUA QUE
CIRCULARAM NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO NA DÉCADA DE
1870...................................................................................................................124
4.4.1 As propostas de Abílio César Borges.................................................132
4.42 O expositor portuguêz ou rudimentos de ensino da língua
materna.............................................................................................................134
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................... 162
1 INTRODUÇÃO
Os resultados da nossa pesquisa integram um conjunto de estudos orientados
pela professora Dr.ª Cláudia Maria Mendes Gontijo, na linha de pesquisa
Educação e Linguagens do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Espírito Santo, com a finalidade de investigar a
alfabetização no Espírito Santo. Atualmente, como resultado de um esforço
coletivo, temos os seguintes trabalhos concluídos: A alfabetização na história
da/o Província/Estado do Espírito Santo (1870-1920) de autoria de Cláudia
Maria Mendes Gontijo, A Alfabetização na história da educação do Espírito
Santo no período de 1924 a 1938, de autoria de Silvia Cunha Gomes, A
alfabetização e as práticas das professoras (1950): uma contribuição para a
história da educação no Espírito Santo, de autoria de Dulcinéa Campos, e um
ultimo trabalho de Neusa Balbina de Souza com o título As práticas de
alfabetização no município de Linhares nos anos de 1960. Assim, este estudo
compõe esse conjunto de trabalhos que tem buscado compreender a história
da alfabetização no Espírito Santo.
Por um lado, os estudos sobre a alfabetização no século XIX têm apontado a
importância de focarmos esse século, na expectativa de entendermos as
origens históricas das atuais práticas de ensino da leitura e da escrita. Por
outro lado, os estudos de Gontijo (2008), que, também, investigou a década de
1870, evidenciam a necessidade de aprofundamento de estudos sobre essa
década, principalmente, porque ela é fértil em debates que acentuam a
necessidade de prover a alfabetização com “novos” métodos de ensino que
atingissem resultados satisfatórios. Apesar da existência de um discurso
“inovador”, em 1871, foi regulamentado o ensino mútuo no Espírito Santo,
modelo de ensino que já havia sido adotado sem obtenção de resultados
satisfatórios.
O interesse pela abordagem histórica da alfabetização está relacionado a
nossa própria experiência profissional. Tivemos contato com a escola, pela
primeira vez, no ano de 1974. Iniciamos a aprendizagem da leitura e da escrita
no Grupo Escolar “Coronel Gomes de Oliveira”, na cidade de Anchieta, ES. O
método utilizado pela professora para ensinar foi o “Método da Abelhinha”. O
ensino da leitura e da escrita era iniciado pela memorização das letras e seus
respectivos sons. Mais tarde, quando nos constituímos professora
alfabetizadora, tivemos conhecimento de outros métodos de alfabetização que,
também, eram embasados nas unidades mínimas da língua escrita e oral.
Sempre as letras e os fonemas ou as sílabas serviam de base para iniciar o
ensino da leitura e da escrita. A partir dos trabalhos de Cagliari (1999) e de
Gontijo (2005), percebemos a importância de privilegiar o texto como unidade
de ensino na alfabetização. Apesar de não termos desenvolvido esse tipo de
trabalho com as crianças com as quais trabalhamos, começamos, então, a nos
interessar pelo estudo dos métodos de ensino da leitura e da escrita e
percebemos que alguns modelos atuais de alfabetização tinham suas “origens”
em práticas ou métodos desenvolvidos no século XIX.
Em nosso trabalho, considerando os resultados dos estudos realizados e as
fontes disponíveis, no momento de realização deste estudo, nos propusemos
investigar a alfabetização na década de 1870. Assim, objetivamos analisar se
os discursos oficiais acerca da alfabetização contribuíram para a constituição
de “novos” métodos e práticas de ensino da língua que rompessem com
modelos baseados no trabalho com as unidades mínimas da língua. Nessa
direção, analisamos os regulamentos, os textos jornalísticos e outros materiais
manuscritos e impressos referentes ao ensino da língua na província do
Espírito Santo.
Durante o trabalho de reunião das fontes, tivemos dificuldades de acesso a
algumas que estão sob a responsabilidade do Arquivo Público do Estado do
Espírito Santo e da Biblioteca Pública Estadual de Vitória, ES. Essas duas
instituições estavam em reforma no momento de nossa coleta de dados. Além
disso, as fontes localizadas no Arquivo Público do Estado do Espírito Santo
estão dispersas, o que inviabilizou a coleta de alguns dados importantes.
Segundo Gontijo (2008), isso evidencia a falta de políticas públicas de
valorização da memória da Educação no Espírito Santo. Diante dessas
dificuldades, recorremos à Academia Espírito-Santense de Letras, à Biblioteca
Nacional no Rio de Janeiro e à Biblioteca da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais.
Na busca de trabalhos que pudessem contribuir para a constituição de nossa
pesquisa, dialogamos com produções acadêmicas e científicas em torno da
historiografia da alfabetização, com a finalidade de compreender como o tema
investigado neste estudo tem sido tratado nos trabalhos acadêmicos. Desse
modo, analisamos os trabalhos de Mortatti (2000), Trindade (2002), Maciel e
Frade (2006), Peres (2006), Amâncio e Cardoso (2006), Schwartz e Falcão
(2005), Gontijo (2008) e Gomes (2008). Os três últimos trabalhos se referem a
pesquisas historiográficas acerca do ensino da leitura e da escrita na
Província/Estado do Espírito Santo nos séculos XIX e XX. Os outros trabalhos
fazem referência à historiografia da alfabetização em diferentes estados
brasileiros. São pesquisas significativas que nos permitiram compreender a
forma de organização do antigo ensino primário no país e, ao mesmo tempo,
evidenciaram aspectos relevantes ao desenvolvimento da alfabetização que
nos ajudaram a compreender as fontes analisadas neste trabalho.
Este relatório de pesquisa está dividido em cinco partes, considerando-se a
introdução uma delas. Na segunda, delineamos os aspectos teórico-
metodológicos que fundamentaram nossas análises. Na terceira, iniciamos a
análise dos dados, evidenciando, em primeiro lugar, a organização da instrução
pública primária do Espírito Santo no recorte temporal que nos dispusemos a
estudar. Constituímos o referido capítulo fazendo uma breve análise da
instrução pública no Brasil e no município da Corte e, depois, analisamos a
situação do ensino público no Espírito Santo. Nesse aspecto, tivemos o
cuidado de evidenciar a situação das escolas, a formação dos professores de
ensino da língua e os métodos de alfabetização adotados na província.
Sentimos a necessidade de recorrer a décadas anteriores a 1870, no intuito de
melhor compreender e analisar os dados pertinentes à historiografia da
alfabetização no Espírito Santo.
Na quarta parte, apresentamos uma análise mais “detalhada” acerca dos
materiais utilizados nas escolas nos momentos de ensino da língua. Nessa
direção, evidenciamos os suportes utilizados nas aulas de alfabetização e, ao
mesmo tempo, demonstramos as dificuldades de aquisição desses suportes
por parte dos alunos e dos professores. Na constituição do referido capítulo,
tivemos o cuidado de relacionar o uso dos materiais com os métodos de ensino
adotados, sem perder de vista o caráter socioideológico presente no contexto
espacial e temporal que optamos por estudar.
Na última e quinta parte, apresentamos nossas considerações acerca dos
resultados do estudo. Por ultimo, agrupamos nossas referências bibliográficas
e os anexos constituídos por documentos como regulamentos e outros textos
impressos e manuscritos utilizados no corpus da pesquisa.
2 BASES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS
Neste capítulo, abordamos os pressupostos teóricos e metodológicos que
embasaram o nosso estudo sobre a alfabetização. Assim, discutiremos,
sucintamente, como compreendemos a alfabetização, a visão de história que
orienta este estudo e a concepção de texto, pois o corpus desta pesquisa se
constituiu de textos impressos e manuscritos produzidos no período eleito para
estudo.
Graff (1994) e Gumperz (1991) assinalam que a alfabetização é um fenômeno
socialmente construído. Apesar de essa idéia ter sido acentuada mais
fortemente em Gumperz, os dois autores procuram analisar as práticas de
aprendizagem e o ensino da língua como um fenômeno que não se restringe à
simples aquisição da leitura e da escrita.
Graff (1994), em seus estudos, critica o ideário liberal que concebe a
alfabetização diretamente ligada ao desenvolvimento, portanto como motor do
desenvolvimento social, individual e econômico. Para esse autor, os “mitos”
sobre os poderes da alfabetização a reduz à funcionalidade e, ao mesmo
tempo, retiram-lhe o caráter histórico e social. Nesse sentido, a sociedade e,
mais especificamente, os políticos acabam tendo a alfabetização como uma
causa de sucesso ou de fracasso. Uma espécie de condição necessária à
própria saúde social, alargando, desse modo, enormemente os benefícios
advindos da alfabetização,
[...] Mal compreendida em decorrência da tirania do mito da alfabetização e outros mitos sociais e culturais. Os significados e contribuições da alfabetização têm sido equivocados, daí as discussões sobre o assunto são superficiais [...] (GRAFF, 1994 p. 27).
Com base nessa afirmativa, o autor entende que os “mitos” em torno dos
benefícios da alfabetização culminam em expectativas exageradas por parte
dos governantes que promovem campanhas de alfabetização, em nossa
opinião, descontínuas e contraditórias. O discurso sobre os poderes da escola
são frequentes na década de 1870. O trecho “[...] A escola forma a alma, a
família, o coração [...]”, publicado no jornal O Espírito-Santense, de 6 de
fevereiro de 1871, evidencia que a escola forma valores morais que garantem o
desenvolvimento da sociedade. Assim, “[...] A instrucção popular é a primeira
luz que ilumina os espíritos, é o poderoso martelo que quebra as cadeias da
ignorância, a mais cruel das escravidões, é o pão e a água da vida intelecttual
[...]” (O ESPÍRITO-SANTENSE, 1871, p. 1).
Como mencionado, Graff critica o poder atribuído à alfabetização, pois tal
soberania “ignora o papel vital da alfabetização no contexto sócio-histórico"
(GRAFF, 1994, p. 28). O autor aponta ainda que
O principal problema nos esforços para estudar a alfabetização, seja no passado, seja no presente, é o da reconstrução dos contextos de leitura e escrita; como, quando, onde, por que e para quem a alfabetização foi transmitida; os significados que lhe foram atribuídos; os usos que dela foram feitos; as demandas colocadas sobre as habilidades alfabéticas; os graus nos quais essas demandas foram satisfeitas; a extensão da restrição social na distribuição e difusão da alfabetização; e as diferenças reais e simbólicas que emanaram da condição social do “ser alfabetizado” entre a população (GRAFF, 1994, p. 34).
Conforme assinala o autor, a perspectiva desenvolvimentista não pode mais
explicar a alfabetização. Cook-Gumperz (1991) também discute os mitos que
permeiam a alfabetização, chegando a assinalar que, para muitos, esta ainda é
vista como "barômetro do clima social". Nos questionamentos da autora, está
presente uma crítica à alfabetização escolarizada, que vê os sujeitos que
procuram a escola como totalmente desprovidos de conhecimentos.
Partindo dessa premissa, a cultura escolar se sobrepõe à do sujeito sem
escolarização, desvalorizando o seu conhecimento, descontextualizando e/ou
abstraindo sua linguagem não escolarizada. A supremacia da alfabetização vai
se reelaborando na escola, selecionando aptos e inaptos. Experiências
linguísticas externas ao ambiente controlador da escola têm peso menor se
comparadas ao que a escola diz poder proporcionar. A cultura escrita invalida
os conhecimentos domésticos, especialmente os de cunho oral. Desse modo,
assim como Graff (1994), a autora considera que
A alfabetização não pode ser julgada separadamente de alguma compreensão das circunstâncias sociais e tradições históricas especificas que afetam o modo como esta capacidade enraíza-se numa sociedade. Quando investigamos como a escolarização é usada para obter-se a alfabetização, somos ainda mais levados a fazer julgamentos sobre os valores que ela cria (GUMPERZ, 1991, p. 29).
De acordo com a autora, pressupor que a escolarização pública e gratuita vai
resolver os problemas sociais é acreditar numa história do ensino da língua que
não leva em conta os valores ideológicos sobre os quais se assentam os
discursos em torno da alfabetização escolarizada. Nesse sentido, a partir da
concepção de alfabetização como fenômeno sócio-histórico, acentuamos,
conforme assinala Bloch (2001, p. 227), que "a história é uma coisa em
movimento".
Além disso, ao discutir sobre a serventia da história, esse autor salienta que a
sua preocupação não é dizer se ela é passado/presente, mas que a história se
constitui em "um esforço para um melhor conhecer" (BLOCH, 2001, p. 80).
Segundo Bloch (2001, p. 83-85), existem duas maneiras de se debruçar sobre
a história. Uma delas tem amparo na Sociologia de Durkhein e tem a faculdade
de ver a história como ciência do homem. Todavia Bloch prefere avançar nessa
proposta, pois entende a história como a “ciência do homem no seu tempo”. A
outra face da história menospreza o historiador e o coloca na classificação de
"historiador historizante". Isso, na visão de Bloch (2001, p. 73), "[...] é uma
alcunha injuriosa e reduz a essência da história à negação de suas
possibilidades [...]". Na sua perspectiva, o historiador analisa a própria ação do
homem.
Considerando os estudos de Bloch (2001), entendemos a História como ciência
que estuda os seres humanos no seu tempo. Segundo Bloch (2001, p. 82):
Por detrás dos traços sensíveis da paisagem, [dos utensílios ou das máquinas], por detrás dos documentos escritos aparentemente mais glaciais e das instituições aparentemente mais distanciadas dos que a elaboraram, são exatamente os homens que a história pretende apreender. Quem não conseguir será, quando muito e na melhor das hipóteses, um servente da erudição. O bom historiador, esse, assemelha-se ao monstro da lenda. Onde farejar carne humana é que está a sua caça.
Assim, a alfabetização é uma criação humana, portanto um fenômeno sócio-
histórico, e só pode ser entendida dessa forma por aqueles que desejam
estudá-la no presente ou no passado.
2.1 BASES METODOLÓGICAS
Conforme anunciamos, nosso corpus se constituiu de documentos impressos e
manuscritos referentes à instrução pública no Espírito Santo na década de
1870. Nesse contexto, é importante ressaltar, de acordo com Bakhtin (2000),
que o texto é uma realidade imediata do pensamento e da emoção. "[...] Onde
não há texto, também não há objeto de estudo e de pensamento [...]"
(BAKHTIN, 2000, p. 329). Desse modo, entendemos os documentos
analisados, neste estudo, como textos. Segundo Barros, os textos são “como
elos na cadeia histórica na cadeia discursiva”. [...] supõem tanto relações
dialéticas entre textos e seus sentidos quanto relações dialógicas entre textos e
seus sujeitos, já que os sentidos se distribuem por diferentes vozes [...]
(BARROS, 1999, p. 42).
Para a composição do corpus de nosso trabalho, utilizamos a pesquisa
documental. Ressaltamos que estamos trabalhando com fontes primárias e
secundárias. De acordo com Richardson (2007, p. 253), as fontes primárias
propiciam a “aproximação” com o acontecimento. Segundo o autor, essas
fontes minimizam a interferência “entre o registro e o acontecimento”. Ele
explicita que as fontes não garantem a veracidade das ocorrências. Nessa
direção, suas ponderações nos fizeram compreender que os escreventes dos
textos que analisamos não foram sujeitos imparciais, mas sujeitos situados,
que manifestaram suas opiniões e posicionamentos. Por isso, examinamos os
registros observando o contexto educacional do período delimitado para
entender os atravessamentos no texto.
Quanto às fontes secundárias, Richardson (2007, p. 253) assinala que estas
não têm relação direta com o acontecimento registrado. Segundo o autor, “[...]
Na fonte secundária existe pelo menos outra pessoa que participa na geração
da informação [...]” (RICHARDSON, 2007, p. 254). Esse aspecto discutido por
Richardson (2007) nos leva a ressaltar que tanto as fontes primárias quanto as
secundárias são importantes, pois ambas se tornam textos reelaborados no
momento da análise.
O trabalho de reunião, organização e análise das fontes documentais seguiu
etapas. Inicialmente, buscamos verificar no Arquivo Público Estadual,
localizado em Vitória, ES, se existiam documentos pertinentes ao período
investigado. Concomitantemente a esse procedimento, realizamos buscas de
documentos na Academia Espírito-Santense de Letras e na Biblioteca Pública
do município de Vitória, ES. A partir dessa primeira busca, observamos que
existiam alguns documentos imprescindíveis a nossa pesquisa, mas também
percebemos que alguns desses materiais estavam dispersos e ainda não
estavam disponibilizados para análise. Todavia prosseguimos no nosso intento,
pois também observamos que os documentos disponíveis eram suficientes.
Na expectativa de fortalecer nosso trabalho com a leitura de materiais
complementares, visitamos a Biblioteca Central da Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES), onde encontramos bibliografias pertinentes ao nosso
trabalho. Também visitamos páginas da internet (principalmente, o site da
CAPES1), com a finalidade de identificar as produções acadêmicas que tratam
da história da alfabetização.
Durante a coleta de dados, o Arquivo Público do Estado do Espírito Santo
passou por reformas. Essas reformas resultaram na mudança do local de
funcionamento do Arquivo. Após a mudança de endereço, aconteceram
“modificações” de ordem organizacional no fornecimento de materiais, que
incidiram negativamente na coleta, pois os materiais deixaram de ser
disponibilizados diariamente, passando a ser disponibilizados quinzenalmente.
Não bastando essa dificuldade, a disponibilização de materiais manuscritos foi
interrompida. Diante disso, recorremos à Biblioteca Pública do Estado e à
Academia Espírito-Santense de Letras, que, também, estavam passando por
reformas. Mesmo assim, conseguimos coletar alguns dados na Academia de
1 Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Letras, com a ajuda do presidente da instituição, professor Dr. Francisco
Aurélio Ribeiro.
Com muitas dificuldades, conseguimos reunir documentos oficiais e textos
jornalísticos. Os regulamentos da instrução pública no Espírito Santo já faziam
parte do acervo pessoal da Drª. Cláudia Maria Mendes Gontijo. Desse modo,
foram disponibilizados imediatamente. Pesquisamos alguns documentos na
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e na Biblioteca do CEALE, localizada na
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, onde
encontramos documentos importantes como livros de ensino da leitura e da
escrita utilizados no Espírito Santo.
Após a reunião das fontes, organizamos o conjunto de fontes documentais
pertinentes à época. Na tentativa de capturar detalhes sobre o funcionamento
das escolas de primeiras letras da província e, por conseguinte, analisar os
programas, os materiais e os métodos de ensino da língua regulamentados,
agrupamos os documentos segundo suas especificidades:
1. regulamentos imperiais e provinciais: regulamentos pertinentes ao
funcionamento das escolas de primeiras letras da província do Espírito
Santo e das demais escolas da província e regulamentos específicos de
funcionamento da escola normal da província em estudo e do
funcionamento das escolas de instrução primária, anexas à escola
normal;
2. documentos oficiais epistolares: mensagens dos ministros de ministérios
imperiais (Ministério da Guerra, Ministério de Fazenda),
correspondências das autoridades imperiais responsáveis pela compra
de materiais (Tesouraria da Fazenda e Diretoria da Instrução Pública na
província);
3. relatórios de visitas e de inspeção das escolas de primeiras letras
(termos de visita dos delegados literários e relatórios dos inspetores das
escolas das províncias);
4. mapas: mapas das escolas da província, com o quantitativo de
matrículas, os números de sujeitos alfabetizados e analfabetos, de
escolas da província e de escolas de primeiras letras. Os mapas
mostram, ainda, a situação de provimento de cargos dos professores e o
número de profissionais alfabetizados que trabalhavam na província;
5. textos jornalísticos: textos de jornais em que se evidenciam as
concepções de ensino, infância e alfabetização (artigos, poesias,
relatórios, discursos proferidos pela Câmara dos Deputados da província
do Espírito Santo, pareceres dos inspetores das comarcas referentes à
instrução pública na província);
6. livros completos: o livro de autoria de Cellestin Hippeau, datado de 1870,
referente à instrução nos Estados Unidos, para “compreensão” de
práticas de ensino utilizadas naquele país. Livros didáticos utilizados nas
escolas da província nas aulas de ensino da leitura e da escrita.
Diccionário histórico, geográphiico e estatístico da província do Espírito
Santo, datado de 1878, de autoria de Cezar Augusto Marques. Essa
obra nos permitiu estabelecer as relações entre as atividades
socioeconômicas da província e os modos de organização da instrução
primária nela existente;
7. listas: relações de materiais de uso do aluno e do professor solicitados e
enviados aos professores das escolas da província.
Após a reunião e a organização das fontes primárias, iniciamos a análise dos
textos. É importante ressaltar que, durante a reunião das fontes, utilizamos
uma câmera digital para fotografar os documentos, fizemos cópia manual de
outros que não podiam ser fotografados e usamos cópia xerocopiada dos
microfilmes dos jornais que circularam na província.
Na etapa posterior à organização das fontes, procedemos à leitura de todo o
material e, finalmente, constituímos nosso relatório de pesquisa a partir de
materiais coletados e da bibliografia pertinente.
Neste capítulo, discutiremos a educação primária no Brasil e na província do
Espírito Santo na década de 1870. Tentaremos contextualizar o ensino da
leitura e da escrita a partir da análise da organização e do funcionamento da
instrução primária no período.
Levando em conta as ideias de Bakhtin (1987), quando ele diz que nenhuma
palavra é nossa, é importante ressaltar que não estamos dizendo nada pela
primeira vez. Enfatizamos que nossas palavras já foram ditas por outras
pessoas em outros contextos, com outras finalidades ou mesmo com objetivo
semelhante ao nosso, ou seja, o de estudar a alfabetização. Nessa direção,
estamos nos apropriando de um discurso constituído por sujeitos que possuem
valores e crenças ideológicas e, dessa forma, tornando esse discurso também
nosso.
Contextualizamos a instrução primária na província do Espírito Santo,
considerando a situação da instrução da educação no Brasil. Tomamos como
base Saviani (2006 e 2008), Gontijo (2008), Oliveira (2008), Vidal e Filho
(2005), Cambi (1999), Coutinho (1993) e Holanda (1972) para fazer essa
contextualização. Ressaltamos que utilizamos também outros estudos de
extrema relevância, cujos autores serão mencionados ao longo deste texto.
Analisamos os documentos oficiais (relatórios dos presidentes) pertinentes à
instrução pública primária do Espírito Santo na década que nos propusemos a
estudar. Tentamos ler esses documentos cruzando-os com dados de outros
documentos manuscritos e com a leitura bibliográfica destacada anteriormente.
Vale mencionar que, ao analisarmos as fontes, procuramos não nos
aprisionarmos na contemporaneidade ou no passado, pois, como assinala
Bakhtin (2003, p. 362), “[...] Quando tentamos interpretar e explicar uma obra
apenas a partir das condições de sua época, ou apenas das condições da
época mais próxima, nunca penetramos nas profundezas de seus sentidos
[...]”.
A partir da citação de Bakhtin (2003), podemos concluir que os discursos são
entrelaçados ao contexto cultural do sujeito que com eles dialoga. As fronteiras
temporais são rompidas para que possa haver o encontro entre as vozes dos
sujeitos que escreveram as obras em séculos anteriores com as vozes dos
sujeitos que ora dialogam com os textos na contemporaneidade:
[...] As obras dissolvem as fronteiras da sua época, vivem nos séculos, isto é, no grande tempo, e, além disso, levam frequentemente (as grandes obras, sempre) uma vida mais intensa e plena que em sua atualidade [...] (BAKHTIN, 2003, p. 362).
Assim, como aponta Bakhtin, a obra possui uma vida intensa no contexto em
que foi produzida, mas rompe as fronteiras do tempo, instaurando diálogos que
nos permitem, certamente, compreender o presente e, também, como assinala
Graff (1987), pensar o futuro. Tendo em vista, ainda, a necessidade de
contextualizar a alfabetização no período por nós delimitado é que nos
propusemos a escrever este capítulo.
3.1 A INSTRUÇÃO PRIMÁRIA NO BRASIL E NO MUNICÍPIO DA CORTE
Discorrer sobre a instrução primária na década de 1870 significa, antes de
tudo, lembrar que, segundo Holanda (1972), oito décimos da população
brasileira não sabiam ler e escrever. Nesse período, há um amplo debate sobre
a instrução pública, mas as políticas públicas eram deficitárias. Esse autor
assinala que a Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro se reuniu, no dia 29
de maio de 1875, para discutir a reforma da educação. A discussão girava em
torno do voto dos analfabetos.
De acordo com Holanda (1972, p. 213-220), ao analisar a deficiência no ensino
brasileiro, um dos fatores que contribuíram para a inércia em relação à
instrução primária foi o próprio descaso com o quantitativo de pessoas que não
sabiam ler e escrever. Além disso, muitos políticos pareciam “desconhecer” o
número de analfabetos. Em um dos debates sobre a exclusão dos votos dos
analfabetos, no ano de 1871, alguns ministros do Império tratavam o assunto
sem perceberem a gravidade do problema do analfabetismo:
A crítica às tentativas de exclusão dos analfabetos não era novidade. Formulara-a até Francisco Otaviano, antes se batera por essa
exclusão, mas depois mudou de parecer, quando se lembrou, ou lembraram-lhe, de que só um oitavo da população do Império sabia ler e escrever. Tamanha ignorância parecia-lhe lamentável (HOLANDA, 1972, p. 213).
Na data de 6 de julho de 1871, o jornal O Espírito-Santense divulgou o número
de alunos matriculados nas escolas brasileiras. Os dados foram coletados no
censo de 1867. Analisando os resultados, percebemos que todas as províncias
enfrentavam dificuldades com relação aos altos índices de analfabetismo.
Províncias População livre Alunos Relação entre
alunos e a
população1ª Alagoas 250.000 5.234 1 aluno por 472ª Ceará 520.000 10.412 1 aluno por 493ª S. Catharina 190.000 3.474 1 aluno por 544ª S. Pedro do Rio
Grande do Sul 550.000 9.884 1 aluno por 565ª Pará 335.000 5.408 1 aluno por 616ª Sergipe 285.000 4.321 1 aluno por 657ª Paraná 110.000 1.571 1 aluno por 708ª Parayba 260.000 3.407 1 aluno por 769ª Maranhão 450.000 5.623 1 aluno por 80*10ª Pernambuco, Rio
de Janeiro e Corte *970.000 *11.189 *1 aluno por 8611ª Espírito Santo 90.000 986 1 aluno por 9112ª São Paulo 825.000 7.791 1 aluno por 10513ª Minas Gerais 1.440.000 13.079 1 aluno por 11614ª Bahia 1.170.000 10.016 1 aluno por 11615ª Rio G. do Norte 235.000 1.871 1 aluno por 12516ª Amazonas 95.000 740 1 aluno por 12817ª Mato Grosso 95.000 718 1 aluno por 13218ª Piauhy 230.000 1.199 1 aluno por 16119ª Goyaz 210.000 1.153 1 aluno por 208Figura 1- Mapa da instrução pública no Brasil apresentado no relatório do ministro do Império em 1870. Fonte: Jornal O
Espírito-Santense, 30 de junho de 1871.
De acordo com os dados, o Espírito Santo possuía 90.000 habitantes livres e
apenas 986 alunos. Ressaltamos que o referido mapa espelha apenas o ensino
escolarizado, mas, segundo Vidal e Filho (2005, p. 45-46), em Minas Gerais,
por exemplo, no século XVIII e XIX, existia uma rede de escolarização
doméstica 2 que foi se constituindo a partir da iniciativa dos pais, que, muitas
vezes, contratavam professores para lecionar para seus filhos. O contrato era
feito coletivamente com os demais chefes de família. Segundo os autores,
2 A rede de escolarização doméstica abrangia as crianças de famílias abastadas.
[...] têm-se indícios de que a rede de escolarização doméstica, ou seja, do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita e do cálculo, mas, sobretudo daquela primeira, atendia a um número de pessoas bem superior ao da rede pública estatal. Essas escolas (às vezes chamadas de particulares, outras vezes de domésticas), ao que tudo indica, superavam em número, bem avançado até o século XIX, àquelas escolas cujos professores mantinham vínculo direto com o Estado [...] (VIDAL E FILHO, 2005, p. 45).
No Espírito Santo, não conseguimos dados sobre essa rede doméstica, mas
sabemos que ela existiu. Porém não podemos dizer que, no século XIX, a sua
existência contribuiu significativamente para aumentar os índices de
alfabetismo na província. Os mapas apresentados por Marques (1878), autor
do Dicionário histórico geographico e estatistico da província do Espírito
Santo, pertinentes à instrução pública e outras atividades sociais na província,
evidenciam um grande número de sujeitos que não sabia ler e escrever ao final
da década de 1870. Além disso, essa rede era constituída somente por famílias
mais abastadas, que podiam oferecer esse tipo de ensino aos seus filhos. A
maior parte da população não se beneficiava do ensino doméstico, porque as
condições econômicas das pessoas eram deficitárias. Conforme evidenciam os
mapas que fazem parte do anexo 1, apresentados por Marques (1878),
pertinentes à atividade econômica da província, observamos um número muito
reduzido de pessoas que exerciam profissões remuneradas. A maior parte das
pessoas trabalhava na lavoura e nos serviços domésticos. As atividades
agrícolas não tinham outro fim, senão a própria subsistência das famílias.
Podemos afirmar que os problemas do analfabetismo no País, na década de
1870, resultaram, em grande medida, do desinteresse, por parte dos
governantes, pela educação da população brasileira. Desde 1549, momento da
chegada dos jesuítas, a falta de prédios escolares, a baixa remuneração dos
professores, a ausência de materiais e a adoção de metodologias de ensino
inconsistentes eram problemas recorrentes. Nem mesmo o período pombalino
perpassado pelos ideais iluministas conseguiu melhorar as condições da
educação. Pelo contrário, nesse período, as precárias iniciativas existentes
foram desmobilizadas.
Com a Independência, Dom Pedro I mencionou a necessidade de reorganizar a
instrução. Conforme aponta Saviani (2006), em junho de 1823, o imperador
convocou a Assembléia Nacional Constituinte e discursou sobre a importância
de construir uma legislação específica para a instrução pública. A Comissão de
Instrução Pública da Assembleia Nacional Constituinte não elaborou um projeto
de lei, mas instituiu um prêmio para quem apresentasse a melhor proposta
educacional a ser implantada no Brasil. Nos entremeios das discussões, Martin
Francisco de Andrada, membro da comissão, apresentou uma proposta.
Segundo Saviani (2006, p. 12), Andrada, baseando-se em Condorcet3,
apresentou um plano de ensino em que a instrução seria dividida em instrução
comum, ofertada às crianças de 9 a 12 anos; segundo grau, com duração de
seis anos, objetivando estudos básicos referentes às profissões; e, finalmente,
o terceiro grau, destinado à educação científica. A exemplo de Condorcet, a
proposta de Andrada não se valeu do termo pedagogia nem pedagogo. O "[...]
termo pedagogo assumia frequentemente um significado depreciativo de
mestre pedante, autoritário e pobre de espírito [...]" (SAVIANI, 2006, p. 13).
Numa outra vertente, Januário da Cunha Barbosa apresentou um plano
dividido em quatro etapas. Diferentemente de Andrada, Barbosa utiliza o termo
“pedagogia”. Segundo Saviani (2006, p. 13), "pedagogias" abrangeria os
conhecimentos elementares necessários a todos, independentemente da sua
situação social ou profissão. Esse termo estava sendo atribuído à escola de
primeiro grau, em que o discípulo aprenderia a ler, a escrever, a operar cálculo
de aritmética e aprenderia os preceitos morais, físicos e econômicos. No
segundo grau, os liceus4 se encarregariam da formação profissional, voltando o
ensino para a agricultura, a arte e o comércio. Nos ginásios, os discípulos
3 Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de Condorcet (1743-1794) foi um iluminista que acreditava no poder do conhecimento. A educação, para ele, mostrou-se marcada por um forte caráter político, capaz de ordenar uma nova moral de instrumentalizar o indivíduo para agir adequadamente na vida pública e aperfeiçoar, paulatinamente, a sociedade (COELHO, 2006, p.1).
4 O nome Liceu tem sua origem na Grécia, com Aristóteles, que, por não concordar com o ensino sofista e platônico difundido na época, fundou sua própria escola, em meados do século 4 a.C. Ao longo da história da Grécia antiga, o Liceu foi o nome dado aos ginásios que preparavam os cidadãos para a vida com uma formação completa, abrangendo exercícios físicos e intelectuais (VIEIRA, 2008, p.1).
teriam conhecimentos científicos e, por último, as academias seriam
encarregadas das ciências abstratas.
Nas duas propostas, há preocupação com a formação prática voltada para a
agricultura. Na proposta de Januário Barbosa, o termo pedagogia é utilizado,
mas é rejeitado na câmara, que preferiu continuar utilizando o termo escolas de
primeiras letras. De acordo com Saviani (2006, p. 12), a Comissão de Instrução
Pública não conseguiu organizar um plano geral para a instrução pública.
Dessa forma, somente em 15 de outubro de 1827, é promulgada a lei que cria
as escolas de primeiras letras. O termo pedagogia não se fazia presente no
texto da lei, mas indicava que o método de ensino mútuo seria utilizado nas
escolas. Assim,
[...] Proposto e difundido pelos ingleses Andrew Bell, pastor da Igreja Anglicana Joseph Lancaster, da seita dos Quakers, o método mútuo, também chamado de monitorial ou lancasteriano, baseava-se no aproveitamento dos alunos mais adiantados como auxiliares do professor no ensino de classes numerosas. Embora os alunos tivessem papel central na efetivação desse método pedagógico, o foco não era posto na atividade do aluno. Na verdade os alunos guindados à oposição de monitores eram investidos de função docente [...] (SAVIANI, 2006, p. 15).
Segundo Sucupira (2005, p. 59), a “[...] lei de 1827 falhou, entre outras causas,
por falta de professorado qualificado, não atraído pela remuneração que não
atingia o máximo fixado na lei [...]”. Com poucos investimentos nos salários e
na contratação de professores, restava o aproveitamento dos monitores para
as classes mais numerosas. A formação desses monitores também deixava a
desejar, pois, investidos da função docente ainda na condição de alunos, os
monitores aprendiam o ofício com mestres que também necessitavam de
qualificação. Os monitores trabalhavam nas classes, atuando diretamente com
os alunos, observando a disciplina e, ao mesmo tempo, lecionando as matérias
previstas nos regulamentos.
Os procedimentos adotados por essa lei se coadunam com os pressupostos
educacionais que permeavam as intenções pedagógicas do século XIX no
contexto mundial. Cambi (1999, p. 408) aponta que, naquele período, a
educação e a pedagogia se afirmaram como setores-chave do controle social
por toda a Europa. De acordo com Saviani (2006, p. 16),
O método supunha regras predeterminadas, rigorosa disciplina e a distribuição hierarquizada dos alunos sentados em bancos dispostos num salão único e bem amplo. De uma das extremidades do salão, o mestre, sentado numa cadeira alta, supervisionava toda a escola, especialmente os monitores. Avaliando continuamente o aproveitamento e o comportamento dos alunos, esse método erigia a competição em princípio ativo do funcionamento da escola. Os procedimentos didáticos tradicionais permaneciam intocados.
As bases da lei de 1827 estavam firmadas no iluminismo, principalmente, na
ideia de que a educação ou a escolarização da população produziria mudanças
importantes na sociedade e nos indivíduos. Assim, o governo decidiu autorizar
o ensino gratuito, com a previsão, no artigo 64, de que todos os pais e tutores
deveriam garantir, pela força da lei, pelo menos o primeiro grau para aqueles
que estivessem sob sua responsabilidade.
Indagamo-nos até que ponto os governantes estavam dispostos a garantir a
gratuidade do ensino e também o acesso à escola. Em um país onde as
crianças trabalhavam junto com seus pais na lavoura e, ainda, residiam em
localidades distantes das casas onde funcionavam as escolas, pensamos que
a escolarização da população estava muito distante de se concretizar. Além
disso, segundo Saviani (2006), apesar de garantir a gratuidade do ensino, o
artigo 69 da lei de 1827 explicitava claramente que não seria admitida matrícula
dos escravos.
A proibição da matrícula de escravos5 continuava a ser uma realidade na
província do Espírito Santo na década de 1870. Segundo os regulamentos de
1873 e 1877, os escravos não poderiam estudar. Somente a população livre
tinha direito à escolarização. Essa proibição perdurou por toda a década,
porque a Lei do Ventre Livre, que libertava os filhos de escravos, só foi
promulgada em 28 de setembro de 1871. Isso resultou num grande contingente
de escravos analfabetos. Segundo análises dos mapas disponibilizados na
obra de Marques (1878), para uma população de 5.900.401 escravos
5 Segundo dados apresentados na obra de Marques (1878), a população de escravos se constituía de indivíduos negros e pardos.
existentes na província, no ano de 18786, apenas um, que residia na Paróquia
de São José do Queimado, sabia ler e escrever, mesmo assim, segundo dados
apresentados no mapa, esse escravo não7 frequentava a escola.
Segundo Vidal e Filho (2005), apesar da não admissão de matrícula, alguns
escravos aprendiam a ler e a escrever de maneira informal, “[...] sobretudo, no
interior de um modelo mais familiar ou coletivo de escolarização [...]” (VIDAL E
FARIA, 2005, p. 46). Porém, assim como o fato de existir uma rede doméstica
de ensino não contribuiu para a melhoria dos índices de alfabetismo, o fato de
algumas crianças escravas aprenderem a ler e a escrever no interior de um
modelo familiar não alterou a situação da alfabetização dos escravos
brasileiros. Para nós, isso fica muito evidente no Espírito Santo, pois, como
evidenciam os mapas, apenas um escravo sabia ler.
O Governo Imperial não cumpriu o previsto no artigo 1º da lei de 1827 sobre a
criação de escolas em todas as cidades, vilas e vilarejos mais populosos.
Preferiu promulgar o ato adicional de 1834, transferindo a responsabilidade do
ensino primário e secundário para as províncias. Por seu lado, as províncias
desprovidas de recursos financeiros não conseguiram prover o ensino. Além
disso, o despreparo dos professores e a própria falta de espaço físico para a
aplicação do método mútuo pareciam ser problemas insolúveis:
[...] Os relatórios dos ministros do Império e dos presidentes de províncias ao longo do império evidenciam as carências do ensino, o que permite concluir que o Ato Adicional de 1834, ao descentralizar o ensino, transferindo para os governos provinciais a responsabilidade pela educação popular, apenas legalizou a omissão do poder central nessa matéria [...] (SAVIANI, 2006, p. 17).
Diante dos problemas com a escolarização da população, ao invés de prover a
educação com políticas públicas de atendimento à demanda populacional,
optava-se por “novas” reformas. Enquanto isso, os relatórios dos presidentes
6 Tomando como base a matrícula a partir da promulgação da Lei do Ventre Livre, compreendemos que as crianças nascidas ao final do ano de 1871 só seriam aceitas nas escolas a partir do final do ano de 1878, pois, de acordo com o regulamento de 1877, as matrículas só deveriam ser aceitas a partir dos sete anos de idade.7 Os mapas apresentados por Marques (1878) anexados nesse relatório evidenciam que o número de escravos coincidia com o número de alunos não matriculados.
da província apontavam que a educação não alcançava os resultados
esperados.
Segundo Saviani (2006, p. 18), em 17 de fevereiro de 1854, Luiz Pedreira do
Couto Ferraz baixou o decreto n.º 1.331, que aprovava o Regulamento para a
reforma da instrução primária e secundária da Corte. O novo regulamento
serviria de modelo para as outras províncias brasileiras. Saviani (2006)
assinala que, no documento, foram tratadas as seguintes questões:
• inspeção dos estabelecimentos públicos e particulares de instrução primária
e secundária;
• instrução pública secundária;
• ensino particular primário e secundário;
• faltas dos professores e diretores de estabelecimentos públicos e
particulares;
• condições para o exercício do magistério público;
• nomeação, demissão e vantagens dos professores;
• professores adjuntos e substituição nas escolas;
• condições e regimes da escola pública.
Saviani (2006, p. 19-20) ressalta a ênfase na instrução primária e na inspeção
escolar. O autor aponta, ainda, que o ministro tratou da regulação das escolas
particulares, regime disciplinar dos professores e diretores de escolas e
professores adjuntos das escolas primárias sem utilizar o termo pedagogia e o
adjetivo pedagógico, todavia, segundo o autor, isso não significava ausência de
concepção pedagógica.
Nas nossas reflexões, percebemos que, além da ausência do termo pedagogia,
existiu certa constância do termo estabelecimento no lugar de escola. Para
nós, a troca de um substantivo pelo outro representou muito bem o momento
educacional brasileiro do século XIX. Não tínhamos escolas. Existiam casas
alugadas que funcionavam como abrigo para as aulas. Pior ainda era o estado
de conservação desses locais. As correspondências enviadas pelos
professores e os presidentes da época indicam que as casas não tinham
espaços adequados para o funcionamento das aulas e, na maioria das vezes,
eram totalmente sem higiene, escuras.
Os prédios escolares viriam a ser construídos ao final do século XIX em
algumas províncias. Vidal e Filho (2005, p. 52) realizaram um estudo referente
a casas-escola no Brasil do século XVIII e XIX. Além de outros problemas, eles
apontaram que, nas casas, os professores misturavam suas atividades de
ensino com outras atividades profissionais. Os autores não mencionam quais
eram essas atividades, no entanto podemos concluir que se tratava de
comercialização de produtos, pois, no regulamento da instrução pública da
província do Espírito Santo de 1873, no artigo 104, proibia-se que os
professores públicos exercessem atividades comerciais ou outra atividade
industrial incompatível com o magistério.
Saviani (2006) assinala que, na reforma de Couto Ferraz, o ensino primário era
dividido em duas classes. Uma de primeiro grau, que daria conta da instrução
elementar. A outra, de segundo grau, que se destinava à instrução primária
superior. O ensino secundário ficaria por conta do Colégio Pedro II. A duração
do ensino secundário seria de sete anos, com aulas públicas avulsas. As aulas
se dariam por agrupamento em turmas. Pelo menos no plano discursivo, a
seriação inerente ao ensino simultâneo passava a fazer parte da organização
do sistema educacional. Gontijo (2008, p. 19-20) entende que o regulamento
de Couto Ferraz aprovado em 1854 era semelhante ao aprovado na Província
do Espírito Santo em 1848. Na ocasião em que Ferraz foi presidente da
província, ele também dividiu o ensino primário, porém utilizou os termos
primeira classe e segunda classe:
[...] Assim como no Regulamento do Município da Corte, a diferenciação entre as classes, na província do Espírito Santo, era feita pelos conteúdos a serem ensinados. No primeiro, nas de primeiro grau, além do ensino de bordados e trabalhos de agulha mais necessários e específicos para escolas do sexo feminino, seriam ministrados os conhecimentos indicados no Art. 47 [...] (GONTIJO, 2008, p. 19-20).
Nessa direção, o artigo 47 da reforma de Ferraz focaliza “A instrução moral e
religiosa, a leitura e escripta, as noções essenciais de gramática, princípios
elementares de Aritmética e o systema de pesos e medidas do município”. Na
parte destinada à instrução feminina, é acrescentado o trabalho de agulhas.
Quanto às escolas primárias de segundo grau da Corte, Saviani (2006) aponta
a seguinte organização:
[...] Esse currículo básico seria enriquecido nas escolas primárias de segundo grau com "o desenvolvimento da aritmética em suas aplicações práticas, a leitura explicada dos evangelhos e notícias da história sagrada, os elementos de história e geografia, principalmente do Brasil, os princípios das ciências físicas e da história natural aplicáveis ao uso da vida. Prosseguiria, ainda, com a geometria elementar, agrimensura, desenho linear, nomeações de música, exercícios de canto, ginástica e um estudo mais desenvolvido do sistema de pesos e medidas, não só do município da Corte, como das Províncias do Império, e das Nações com que o Brasil tem mais relações comerciais [...] (SAVIANI, 2006, p. 21).
A formação prática era um elemento presente na reforma de Ferraz. Alias, não
só ele como os demais governantes que o precederam deixaram essas marcas
nas reformas. O próprio Pombal8, no século XVIII, determinou aulas de
comércio nas escolas brasileiras. Segundo Saviani (2008, p. 103 -104), na
ocasião, o Marquês estava preocupado em sintonizar Portugal com o
desenvolvimento da cidade burguesa, centrada no modo de produção
capitalista. Em 1848, quase um século depois, as finalidades da educação
brasileira continuavam carregando essas marcas, voltando-se ao mercado
econômico.
Quanto aos materiais didáticos a serem utilizados nas escolas, ficou definido
que eles deveriam ser previamente autorizados pelo governo provincial.
Segundo Gontijo (2008, p. 20), a legislação estimulava a elaboração de livros
para uso nas escolas e permitia a tradução de obras estrangeiras para serem
8Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido como Marquês de Pombal ou Conde de Oeiras (Lisboa, 13 de maio de 1699 – Leiria, 8 de maio de 1782), foi um nobre e estadista português. A educação, em Portugal, desde muito cedo, foi dominada quase em exclusivo pela Companhia de Jesus ou dos Jesuítas e outras congregações. Em 1759, com a reforma pombalina, os jesuítas são expulsos de todo o território português, e Pombal manda publicar um alvará, que seria a solução para a situação em que se encontrava a educação em Portugal.
utilizadas nas aulas. Especialmente os compêndios com matéria de ensino
religioso deveriam passar anteriormente pela aprovação do bispo diocesano.
Na virada da década, no ano de 1879, entra em vigor a Reforma de Leôncio
Carvalho. Eram 174 itens com 29 artigos. A exemplo de Couto Ferraz, ela
mantém a gratuidade do ensino primário dos 7 aos 14 anos, a assistência aos
alunos pobres, a organização da escola primária em dois graus e o serviço de
inspeção. Inova, traçando o funcionamento da escola normal, apresentando,
inclusive, o currículo. Além disso, prevê a criação de jardins de infância para
crianças de 3 a 7 anos de idade. Outras medidas adotadas por Carvalho estão
listadas abaixo, para que possamos melhor visualizar o conteúdo da legislação:
• criação de caixa escolar;
• criação de bibliotecas e museus escolares;
• subvenção a instituições particulares;
• equiparação de escolas normais particulares às oficiais e de escolas
secundárias privadas ao Colégio Pedro II;
• criação de escolas profissionais;
• criação de bibliotecas populares e de museus pedagógicos nas localidades
onde existissem escolas normais;
• regulamentação do ensino superior;
• liberdade para o curso livre, com permissão para particulares utilizarem os
espaços públicos para esses cursos;
• possibilidade de abertura das faculdades de Direito e Medicina;
• permissão aos professores particulares para ministrar aulas de ensino
primário;
• criação de cursos de alfabetização de adultos;
• criação de escolas profissionais e de ensino de artes e ofícios nos locais
mais populosos;
• abertura de exames de preparatórios;
• inspeção dos estabelecimentos de instrução primária e secundária.
O termo pedagogia e o adjetivo pedagógico aparecem no texto legal de
Leôncio de Carvalho. A Pedagogia é utilizada para designar uma disciplina
curricular da escola normal. A reforma prevê, ainda, a adoção do método
intuitivo9. Segundo Saviani (2006, p. 27), “[...] É isso que se manifesta
explicitamente no enunciado da disciplina ‘Prática de ensino intuitivo ou lição
de coisas’ (artigo 9º) do currículo da escola normal, bem como no componente
curricular noção de coisas (artigo 4º)”.
A reforma de Leôncio de Carvalho regulamentou a Escola Normal. Apesar de
Couto Ferraz ter suprimido esse tipo de escola, em razão do professor adjunto,
formado pela prática, algumas províncias se organizaram antes de 1879,
abrindo essas instituições. Segundo Schwartz (2004, p. 48), “o rito” da
colocação da primeira pedra para a construção da instituição de ensino normal
na província do Espírito Santo aconteceu em 187310. Esse rito não tinha um
significado corriqueiro, mas objetivava reorganizar e substituir o ensino normal
ministrado no Liceu. O método intuitivo regulamentado também não foi uma
novidade. Apesar de as províncias ainda se utilizarem do método mútuo, já
existiam alguns debates e até mesmo reportagens jornalísticas referentes ao
método lição de coisas disseminadas no meio educacional. A própria província
do Espírito Santo recebeu, em 1873, livros de Hippeau (1803-1883)11, que
tratavam da instrução nos Estados Unidos e que, na época, já faziam menção
9 O uso do método intuitivo significava o declínio do ensino escolástico e a ascensão dos preceitos da pedagogia moderna, preconizados por Bacon, Comenius, Rabelais, Locke, Condilac, Rousseau, Pestalozzi, Basedow, Campe e Froebel, entre outros. Em contraposição ao ensino livresco, o ensino intuitivo parte da premissa de que toda a educação deve começar pela educação dos sentidos (HISTEDBR, 2006).10 Colocaram a pedra fundamental às dezessete horas do dia 23 de março de 1873. Congregaram-se as autoridades e as pessoas mais representativas da sociedade [...] (NOVAES, apud SCHWARTZ, 2004, p. 47).11 Hippeau relatou a instrução em alguns países. Nos anos de 1870, referendou o ensino nos Estados Unidos. Segundo Bastos (2003, p. 1), suas ideias de descentralização da educação, gratuidade, obrigatoriedade, sistema nacional de educação, escola normal, formação de professores, financiamento da educação, liberdade do ensino, coeducação, instrução pública, laicidade, etc. – destinadas a inspirar e orientar as reformas empreendidas na III República Francesa, a partir de 1870 - agradam à elite, mostrando as modernidades educacionais, as inovações pedagógicas e os progressos alcançados nos países mais desenvolvidos, nos quais deveríamos nos espelhar; autolegitimam as suas propostas para a educação brasileira.
ao método lição de coisas. O destino dos exemplares da referida obra seriam
as comarcas municipais. Por certo, uma das intenções era informar sobre o
ensino naquele país e, ao mesmo tempo, colocar os professores a par da
existência das metodologias utilizadas nas aulas de alfabetização.
Como podemos notar, as tentativas de organização do ensino não obtiveram
êxito, pois problemas como falta de instalações adequadas para as aulas,
escassez de materiais didáticos, deficiência na formação de professores e
baixos salários destes profissionais foram entraves que adentraram a
República, impedindo a população de aprender a ler, a escrever e a contar.
3.2 A INSTRUÇÃO PÚBLICA ELEMENTAR NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO
SANTO
Abordaremos, agora, o ensino primário na década de 1870 no Espírito Santo.
Para compreender melhor o período por nós delimitado, recorremos a textos
encontrados nos jornais Correio da Victória (1870 a 1872), O EspÍrito-Santense
(1870 a 1889), O Cachoeirano (1877 a 1878) e Gazeta do comércio (1876 a
1877). Esses jornais tanto trouxeram informações sobre o estado da educação
na província capixaba quanto informaram sobre a educação em outras
localidades do Brasil e do exterior. Além dessas fontes, fortalecemos nossas
reflexões com os relatórios dos presidentes da província, com documentos
manuscritos e com a leitura bibliográfica das obras de Coutinho (1993), Oliveira
(2008) e Saviani (2008). Examinamos, ainda, a legislação pertinente à década
de 1870. No inicio da década, o ensino deveria obedecer aos dispositivos do
regulamento de 1861 e do Regimento Interno das Aulas Públicas de Primeiras
Letras da Província do Espírito Santo, promulgado em 1871. No período de
1870, foram promulgadas duas reformas. Uma, no ano de 1873, e outra, no
ano de 1877. A primeira foi enviada à Câmara dos Deputados pelo presidente
Tomé da Silva, em 20 de fevereiro, mas só foi promulgada em 20 de maio de
1873. Já os textos da reforma de 1877 foram aprovados em 17 de dezembro
de 1877, porém entraram em vigor na data de 1º. de janeiro de 1878.
Os dois mais importantes jornais que nos propusemos a estudar foram o
Correio da Victória e O Espírito-Santense, porque trouxeram muitas notícias
referentes à instrução pública. Sobre Correio da Victória, Mattedi (2005, p. 14)
relata que esse foi, de fato, o primeiro jornal capixaba. Com a primeira
publicação em 1849, o periódico foi iniciado com duas folhas. Além disso, o
governo provincial se encarregava de fazer o pagamento de subsídio de dez
mil réis por cada tiragem. O seu proprietário, Pedro Antônio de Azeredo, firmou
um contrato com o governo para ocupar-se das comunicações oficiais num
período de dez anos. A concessão foi efetivada com a ressalva de que não
seriam feitas ofensas às autoridades constituídas. Assim, o jornal publicava
apenas notícias de interesse da classe política capixaba que estava no poder.
Em 1850, o governo não fez o repasse das verbas para o jornal e obteve como
resposta a proclamação de autonomia do periódico, que, a partir daquele ano,
abria suas portas para as publicações que achasse convenientes. Indisposto a
ver essa situação, o governo recua e, no ano seguinte, em 1851, o contrato é
refeito nos moldes anteriores, com relação às publicações. Em 1872, o jornal
passou a circular três vezes por semana. Nesse período, parece que o jornal
alcançou seu apogeu, no entanto o governo deixou de repassar as verbas, e
ele teve suas publicações cessadas.
Mattedi (2005, p. 15) argumenta que esse jornal teve forte influência na
segunda metade do século XIX. Era inteirado com os assuntos da Corte e
publicava textos históricos e literários. Verificamos, no exemplar divulgado no
dia 3 de outubro de 1871, uma página inteira sobre a instrução nos Estados
Unidos. Além disso, a imprensa de periódicos começava a se organizar para
tratar de assuntos educacionais, extrapolando o território nacional e o discurso
intermitente da necessidade de construção de escolas:
[...] os grupos de professores públicos discutiam não apenas questões relativas propriamente ao ensino — como direito a instrução pública primária, os significados da escola para a educação popular, o funcionamento e a modernização da escola, as condições de trabalho docente, os novos métodos pedagógicos, os objetivos do ensino, o público alvo das escolas, as disciplinas escolares —, mas, sobretudo, realizaram debates e propuseram saídas para buscar solucionar uma série de problemas que consideravam as urgentes
questões sociais educacionais de seu tempo [...] (SHUELER, 2002, p. 248).
A partir das afirmações de Shueler (2002), entendemos que qualquer jornal que
se prezasse na época não poderia deixar de noticiar, mesmo que em míseras
linhas, assuntos pertinentes à educação. Shueller (2006) enfatiza, ainda, que a
década de 1870 foi marcada por manifestações em prol da educação no
município da Corte. Nessa direção, por mais que os editores fossem
compromissados com a política conservadora e, portanto, com os poderes
políticos locais, era inevitável falar sobre a precariedade da instrução pública
no Brasil.
Ao cessar a circulação do Correio da Victória, o jornal O Espírito–Santense
passa a publicar as notícias oficiais do governo, fato que perdurou até 1889,
pois, nessa data, esse jornal também finalizou suas edições, e as notícias do
governo passaram, então, a ser publicadas pelo periódico A Província do
Espírito-Santo. Assim como o Correio da Victória, O Espírito-Santense
também se autointitulava noticioso e literário, porém apresentava uma
diferença: era científico. Assim, segundo Gontijo (2008, p. 29),
[...] além de ser scientífico, literário, o adjetivo noticioso qualificava o jornal como aquele que dá muitas notícias; que tem muitos conhecimentos. Esses adjetivos, se considerarmos o contexto de veiculação do jornal, produziram sentidos que colaboravam para a constituição de uma visão de neutralidade do Espírito-Santense [...] (GONTIJO, 2008, p. 29).
Os dois jornais veicularam, no entanto, ideologias que engendravam a escola
na década de 1870. Os dois trouxeram notícias que expressam os interesses
da classe política no poder e, também, daqueles que almejavam o poder pela
via da “democratização” da sociedade.12
12 De acordo com as informações coletadas no site do Arquivo Público Estadual, situado na cidade de Vitória, ES, Barzílio Carvalho Daemon (1834-1896) foi deputado na província do Espírito Santo na década de 1870. Fundou o jornal Itabira e redigiu o jornal O Estandarte, substituto do jornal Itabira. Segundo Cláudio (1912), “esse jornalista da política conservadora sustentou em seus jornais muitas polêmicas. Em Victória, a 10 de março de 1874 assumiu a redação do jornal O Espírito-Santense, que também era um jornal conservador.
3.2.1 O regulamento de 1861
Nos primeiros anos da década de 1870, os jornais trouxeram muitas notícias
referentes à educação. Nesse momento, havia uma constante discussão
acerca da necessidade de uma reforma na instrução capixaba. De acordo com
o que se noticiava no jornal O Espírito-Santense, a Câmara dos Deputados se
reuniu algumas vezes nos anos de 1870, 1871 e 1872 para dialogar sobre o
assunto. Alguns desses diálogos foram transcritos na íntegra pelo jornal e
ressaltavam que o funcionamento das escolas se dava segundo a legislação de
1861, mas que esse regulamento não atendia os anseios da década de 1870.
As observações estavam sendo feitas, inclusive, com relação à adoção do
método simultâneo, que era oficializado, mas não usado de maneira uniforme
na província e nas dificuldades de se ensinar o sistema métrico decimal nas
escolas.
Assim, segundo os parlamentares, dadas as semelhanças13 do atual
regulamento com o de 1848, ter a escola, nos anos de 1870, funcionando nos
moldes da legislação de 1848 trazia muitos problemas. Um dos problemas
apontados diz respeito ao currículo que não contemplava as necessidades da
educação prática dos anos 1870:
[...] Algumas dezenas de meninos que têm de sahir do collégio este anno vão ignorando algumas matérias que irão sabendo; o systema métrico que será definitivamente em 1872, ainda não é ensinado, ou só é em um ou outro colégio de 1ª classe, enfim, as escholas primárias ainda estão regidas pelas instruções de 20 de fevereiro de 1848 [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE, n. 13, p. 1).
Desse modo, o trecho acima aponta que o currículo previsto no regulamento de
1861 estava desatualizado e não contemplava as mudanças necessárias para
o atendimento das atividades comerciais. Lendo os artigos do referido
regulamento, percebemos que, de fato, ele não preenchia os anseios da
população com relação ao ensino do sistema métrico decimal. O regulamento
de 1848 compunha um programa um pouco mais amplo para as escolas de
primeira classe, apresentava a regulamentação do ensino das quatro
13 As semelhanças dizem respeito ao não ensino dos conteúdos matemáticos necessários à comercialização de produtos agropecuários.
operações e da geometria, porém também não contemplava o sistema métrico
decimal.
Em 1861, o currículo não mencionava o ensino das quatro operações para a
primeira classe. Considerando que a economia era de base agrária e que,
muitas vezes, a população deveria comercializar a produção originada do
trabalho agrícola e, ainda, executar tal tarefa em observância ao sistema de
pesos e medidas adotados pelo Império, era de se esperar que esses
conteúdos estivessem previstos no currículo oficial, que, na época, possuía
relações comerciais com os países da Europa. Os comerciantes esperavam
que a escola ensinasse aos alunos como operar os cálculos. As transcrições
que se seguem espelham o desejo da população. Observamos, no texto
transcrito, que existia uma espécie de portaria14 destinada ao ensino do
sistema de pesos e medidas francês, que deveria ser posta em prática no ano
de 1862, mas isso não estava acontecendo:
[...] Il.mo Dr. Inspector: Não me oponho ao que reclama a Comarca
Municipal da Villa da Barra de S. Matheus, acerca da confecção da
pauta dos preços dos gêneros e que serve para a cobrança do
imposto de exportações. Caminho dizer que o imposto tanto de
Victória como da dita localidade é a praça do Rio de Janeiro. Assim
pois estando a Victória mais perto do Rio do que São Matheus deve
ser visto isto com a finalidade de não haver monopólio da parte dos
negociantes daquela localidade. Ainda mais a medida de capacidade
para cereaes usados na Barra de S. Matheus é pelo menos 0,1 (um
décimo) mais do que Victória. Dois alqueires de São Matheus (oito
quartas) valem do alqueire de Victória 2 ¼ (nove quartas). Calculando
a diferença entre uma e outra localidade me parece que não há
diferença entre os preços da pauta da Victória. Dois alqueires em São
Matheus (8 quartas) valem do alqueire de Victória 2 ¼ (nove quartas).
14 Lendo os textos constituídos nos documentos pertinentes a instrução na província na década de 1870 observamos que existiram outros documentos além do regimento de 1871 e dos regulamentos de 1861, 1873 e 1877. Em diversos momentos são feitas algumas referências as medidas adotadas no ano de 1862, 1869 e no próprio regulamento de 1848. Compreendemos que isso acontecia porque o regulamento de 1861 fora posto em vigor em 1º de setembro de 1861, mas o Art. 85 esclarecia que alguns pontos deveriam ser previamente aprovados pela assembléia provincial para a devida execução. Nessa direção, compreendemos que algumas vezes a instrução era regida pelo regulamento de 1848 promulgado em 20 de fevereiro de 1848.
(ver repetições) Calculada a diferença entre uma e outra medida de
outra localidade me parece que não há grande diferença entre os
preços da pauta. E para evitar essas confusões de medida, que se
promulgue a Lei de 26 de junho de 1862 e convém que o governo
provincial promova com rigor o ensino do sistema métrico francês
como determina a Lei citada e não continuem a ser letra morta nesta
província as disposições da dita Lei (RELATÓRIO DA COMARCA DE
BARRA DE SÃO MATHEUS, 1871, p. 231).
Como mencionado, o regulamento de 1848 promulgado por Luiz Pedreira de
Couto Ferraz dividiu a instrução primária em primeira e segunda classes. De
acordo com o artigo 1.º, na primeira classe, os alunos aprenderiam leitura,
escrita, rudimentos de gramática da língua nacional, teoria e prática da
aritmética, noções gerais de geometria prática e doutrina da religião e do
estado. O artigo 2.º apresenta como conteúdo da 2.ª classe as mesmas
matérias da primeira classe, porém seria excluída a geometria, e a aritmética
seria limitada à teoria e à prática das quatro operações de números inteiros. As
aulas de 1.ª classe seriam instaladas em lugares mais populosos, as de 2.ª
classe dependeriam da existência de lugares com número maior que 20 alunos
em estado de aprender. Considerando os impedimentos para a matrícula
previstos no regulamento, compreendemos que alunos em estado de aprender
eram os livres, os que não estavam contagiados com moléstia grave, os que
não tinham idade superior a 14 anos. Imaginamos que não deve ter sido difícil
impedir a população de frequentar a 2.ª classe. Primeiro, porque uma grande
parte da população era escrava, segundo, porque havia surtos de varíola, febre
amarela e cólera. Muitos óbitos eram causados por essas doenças:
[...] Mais pavoroso que a varíola foi o surto de cólera que fez sua aparição na província em novembro de 1854 e levou ao túmulo milhares de pessoas. Já em fevereiro de 1855, um ofício do Barão de Itapemirim falava em mais de mil vítimas. A população foi tomada de justificado pavor e a província conheceu dias trágicos, inclusive porque a doença imobilizou inúmeros braços, acarretando a fome e a miséria [...] (OLIVEIRA, 2008, p. 369).
Aliado aos problemas das enfermidades, das distâncias entre as escolas e as
casas dos alunos e da baixa frequência dos meninos que ajudavam os pais na
colheita, muitas escolas eram fechadas, porque a legislação não contemplava
os anseios dos colonos imigrantes. Eles desejavam aprender a língua da
pátria15 natal, porém isso não era previsto no regulamento. Nessa direção,
muitos não enviavam seus filhos à escola. Um ofício do presidente Pedro Leão
Veloso ao ministro do Império, em 1859, ilustra muito bem essa situação:
[...] vendo que a escola não era frequentada, tive de remover o professor, devo, porém, dizer a V. Ex.ª que não vem aquilo somente da inaptidão dos professores; os colonos recusam a fazer aprender seus filhos a língua do país; pois que mostraram-se muito desejosos de que lhes desse um professor de alemão, o que lhes neguei formalmente, dizendo-lhes que o Estado não pagaria mestre, senão de língua portuguesa, a qual deviam aprender, visto como aceitaram o Brasil por nova Pátria, julgo que não há senão meio de obrigá-los a mandar seus filhos à escola, é tornar a instrução obrigatória, o que não estranharão; é uma disposição que deve vir no Regulamento de que muito necessita a colônia; ponto que peço licença a fim de chamar a atenção de V. Ex.ª [...] (VELOSO, 1859, p. 9).
Se, por um lado, havia a preocupação, por parte dos dirigentes da província, de
obrigar a aprendizagem da língua nacional por imigrantes alemães que viviam
em regiões menos populosas, por outro, eles também buscavam traduzir,
diante do governo central, os anseios da população:
[...] Impressiona e comove o volume da correspondência expedida pela Administração espírito-santense para o governo central, no decorrer da segunda metade do século passado. Ela traduz o anseio do povo em busca do aprimoramento intelectual da mocidade, incentivando os governantes a procurarem solução para o problema crônico de todo o Brasil [...] (OLIVEIRA, 2008, p. 376).
As respostas aos anseios da população eram dadas timidamente. De acordo
com Oliveira (2008, p. 377), com obstinação algumas coisas eram
conquistadas como “[...] o provimento das cadeiras; a ampliação do número de
matrículas, a implantação do ensino secundário, de aulas noturnas, inclusive
para adultos, escola normal [...]”. Nessa direção, o autor transcreve a fala de
Dionísio Álvaro Resendo diretor geral da Instrução Pública, dirigida ao
presidente da província Francisco Ferreira Correia, na data de 5 de fevereiro de
1872:
15 Segundo Pacheco (1998) que viveu de 1928 a 2004, na década de 1870, a província do Espírito Santo recebeu um grande número de imigrantes. Esses imigrantes desejavam instruir seus filhos na língua e na religião de suas pátrias.
[...] O estado da instrução pública na província não é satisfatório bem que o Governo Provincial tenha feito grandes sacrifícios para melhorá-la.Todavia pelo lado da freqüência dos alunos e habilitações dos professores parece que iremos melhorando graças às medidas enérgicas que julguei devia tomar.Existem na Província criadas 48 aulas(?) de ensino primário sendo 45 para o sexo masculino e três para o sexo feminino. Escolas particulares há apenas quatro sendo três para meninos e uma para meninas. Das quarenta e oito escolas públicas quarenta e duas estão providas e seis vagas. O número de alunos que no último trimestre freqüentaram as aulas elevou-se a 1040 sendo 987 do sexo masculino e 53 do feminino e, por conseguinte, a (v. original) mais 139 do que na ocasião em que abri a Assembléia Provincial em do ano próximo passado [...] (RELATÓRIOS DE PRESIDENTES DA PROVÍNCIA, 1872, p. 5).
Assim, se compararmos os dados contidos no trecho acima com os dados do
censo de 1867, podemos observar que a elevação do número de matrículas é
tímida. O trecho publicado no jornal O Espírito-Santense, no ano de 1870,
explica o que acontecia na época:
[...] A instrução pública, apezar de ser apregoada, em documentos officiaes, o alvo dos desvellos dos que nos governão ainda não tem sido tratada nesta província com zelo merecido e apregoado. E isto tem acontecido desde sempre, não por Pedro ou Paulo, sim pela maioria dos presidentes [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE, n. 13, 1870, p. 1).
No regulamento de 1861, as escolas primárias continuavam divididas em
primeira e segunda classes. A diferença era a inclusão das disciplinas
Geografia do Brasil, História e Geografia da Província, que seriam ministradas
apenas nas escolas da cidade, ou seja, na primeira classe. Para os alunos que
viviam em regiões menos populosas, restavam conhecimentos mínimos que
seriam leitura, escrita, rudimentos de gramática da língua nacional, teoria e
prática das quatro operações de números inteiros.
O ensino particular era previsto nos dois regulamentos, no entanto deveria ser
previamente autorizado pelo presidente da província. Os professores das
escolas particulares deveriam seguir os mesmos padrões de conduta moral dos
docentes públicos, devendo, inclusive, apresentar atestados de boa conduta
emitidos pelo pároco e pelo juiz de paz. Além disso, deveriam professar a fé
católica. Nas escolas particulares em que não houvesse professor católico, o
recurso seria a contratação de um professor de religião do Estado.
Percebemos que, em toda a organização curricular, não faltava o ensino
religioso. Fortalecendo essa organização, obrigavam-se os professores a
acompanhar os alunos às missas de domingos e dias santos.
O regulamento de 1861 previu serviços de inspeção. Trazia artigos que
responsabilizavam inspetores escolhidos, dentre os indivíduos graduados, para
verificar a instrução nas escolas da província. Todavia, por um conjunto de
adversidades, o sistema educacional continuava insatisfatório, apresentando os
mesmos problemas citados no tópico referente à instrução no Brasil.
O número de escolas da província, no ano de 1863, era de 41
estabelecimentos. Atendiam-se 696 alunos. Segundo o relatório, apresentado,
em 1864, pelo presidente Eduardo Pindahiba de Mattos à Assembleia
Legislativa, em sessão ordinária, existia uma quantidade considerável de
escolas, porém os professores eram pouco habilitados. A denúncia da falta de
habilitação de professores era constante. Ainda no ano de 1852, o presidente
José Bonifácio Nascentes de Azambuja se dirigiu à Assembleia Legislativa com
o seguinte pronunciamento:
[...] Muito atrasado se acha o ensino primário nesta Província: os professores, com raríssimas excepções, são homens, sem nenhuma instrução; não se ocupam pela maior parte exclusivamente do magistério pela razão de serem mal retribuídos, circunstância que os obriga a se empregarem simultaneamente em outros gêneros de indústria [...] (AZAMBUJA, 1852, p. 2)
Em 1864, o presidente Eduardo Pindahiba de Mattos se pronuncia, no relatório
mencionado, sobre as condições e o modo de funcionamento das escolas:
[...] Tenho visitado algumas aulas de ensino primário de dentro e de fora da capital, e, salvo, muito raras as excepções, são pouco habilitados os que há dirigem. E como assim não hade acontecer aquelles que mal sabem assignar sêo nome que não podem ler sem soletrar, que não sabem as mais ligeiras noções de gramática se apresentão com um surpreendente desembaraço ao preenchimento das primeiras vagas que se dão?! [...] (MATTOS, 1864, p. 52).
O quadro descrito por Mattos, em 1864, prevaleceu por toda a década de 1860.
O discurso por mudanças foi constante nos relatórios dos presidentes da
província. Esse e outros presidentes acreditavam que o quadro mudaria, se
fossem criadas escolas normais. Segundo o regulamento, os candidatos a
professores públicos eram avaliados por dois examinadores designados pelo
presidente da província. Segundo o artigo 33 do capítulo 4.º, a avaliação
versaria sobre as mesmas matérias que seriam ensinadas aos alunos no
momento da docência.
Porém muitos professores que eram aprovados plenamente16 não estavam
aptos para a função. Nessa direção, Shueller (2002, p. 384), comentando sobre
o periódico A instrução pública, publicado em setembro do ano de 1873, nos
diz que o professor Antônio Severino da Costa escreveu um artigo em que
denunciava o apadrinhamento entre mestres e alunos. Muitos candidatos eram
aprovados por serem amigos ou parentes dos professores:
[...] Os arranjos políticos para nomear familiares, não poucas vezes, garantiriam aos privilegiados e protegidos um lugar de adjunto nas escolas públicas primárias. O próprio Antônio Severino da Costa, que assinava a crítica ao recrutamento político aos docentes como já foi visto, apresentou várias solicitações ao governo para que seus filhos fossem nomeados adjuntos. De fato nas décadas de 1870 e 1880 conseguiram vaga no magistério público, três descendentes desse professor: Antônio Estevan da Costa Cunha, seu colega de redação na revista pedagógica, Eudoxia Brazilia da Costa e Jorge Eduardo da Costa [...] (SHUELLER, 2002, p. 386).
O jornal O Espírito-Santense divulgou, em 11 de novembro de 1870, um
diálogo ocorrido na Assembleia Provincial, cujo objetivo era a possibilidade de
aumento dos salários dos professores. Este, no entanto, teria que ser feito sem
aumento dos gastos públicos com a educação. Nesse sentido, a solução seria
a extinção de algumas escolas de 2.ª classe da província. Contudo a decisão
sobre quais escolas extinguir foi dificultada pelo fato de muitas delas terem sido
criadas como forma de pagamento de favores:
16 Segundo os ofícios reunidos nos livros de correspondência emitidos e recebidos entre as autoridades provinciais e as escolas da província, os candidatos a professores na década de 1870 eram avaliados quanto aos conteúdos a ser ensinados às crianças. Os resultados da avaliação registrados apresentavam os seguintes termos: “aprovados plenamente”, “aprovados simplesmente” e “reprovados”.
O Sr. Tito: — Disse eu nessa ocasião que em these me oppunha á existência de aulas de 2.ª classe, eu não podia sem máxima injustiça para com aquelles que para aqui me enviarão sem suma gratidão para com muitos aquém devo favores e favores de que toda vida hei de ter lembrança, não favores individuaes, mas favores políticos, não podia digo, deixar também de acompanhar e apresentar nessa ocasião meu projecto creando duas escolas, escolas que se achavão nas mesmas condições em que estão as outras da 2.ª classe, cuja conservação não as pagava.O Sr. Helidoro: — Não havemos de pagar favores políticos com a creação de empregos de 2.ª ordem. O Sr. Tito: — Quando fallo em favor político, excluo a minha individualidade; mas se levarmos a questão para o terreno de individualidade, talvez outros arreceiem-se della porque o próprio art 6.º do projecto combate a idéia que se me atribue pelo aparte. E este mesmo art. 4.º compreende umas poucas de aulas de 2.ª classe conservadas e outras combatidas e impugnadas pela casa [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE, 1870, n. 17, p. 3).
De acordo com o relato da sessão, havia uma comissão encarregada de
providenciar a reforma da instrução pública. A reforma já estava sendo
reclamada há algum tempo, mas, enquanto não se efetivava, muitas emendas
eram aprovadas arbitrariamente. Para que as escolas estabelecidas por meio
de apadrinhamentos não fossem desfeitas, o texto da emenda foi elaborado
com a afirmação de que seriam extintas apenas as escolas de 2.ª classe com
resultados insatisfatórios. Dessa forma, os deputados poderiam manter aquelas
que lhes fossem convenientes. Os registros não mencionam se os ordenados
dos professores foram aumentados, no entanto compreendemos que a
extinção de escolas, certamente, dificultaria o acesso de muitas crianças à
educação e, portanto, não melhoraria a situação da educação na província.
3.2.2 O regulamento de 1873
Em 1873, foi promulgado o novo regulamento da instrução pública com a
seguinte justificativa apresentada pelo então presidente João Thomé da Silva:
[...] mediante Resolução do Ex.mo Sr. Presidente da Província, Dr. João Thomé da Silva, que reformulou a instrução pública do Espírito Santo. No início do texto legal, esse Presidente justificou a necessidade de reformulação do Regulamento anterior, considerando dois fatores: a) o atraso e a precariedade da instrução primária e secundária; b) a necessidade de extirpar "os vícios, os defeitos e anomalias" do atual sistema de ensino e a necessidade de dar a esse ramo do serviço público "melhor direção". Os fatores mencionados pelo Presidente eram suficientes para justificar a reformulação da instrução pública na Província [...] (GONTIJO, 2008, p. 39).
O regulamento de 1873 também pretendeu tornar a educação elementar
obrigatória. Repetindo o discurso da lei de 1827, quanto à instalação de
escolas, Thomé da Silva almejou tornar o ensino obrigatório a partir da
construção de escolas de instrução primária elementar nas localidades mais
próximas às residências das crianças em idade escolar. Segundo o
regulamento, as escolas seriam classificadas em conformidade com a
localidade. O regulamento previa a construção e a classificação das escolas
em escolas de 1.ª, 2.ª e 3.ª entrância e em ensino de 1.º grau ou elementar e
2.º grau ou superior. De acordo com o regulamento, todas as crianças em
idade escolar deveriam ser matriculadas nas escolas de ensino elementar para
apropriação da leitura e da escrita. Assim, conforme escrito no artigo 40, “A
instrução primária elementar é obrigatória para todos os indivíduos livres,
maiores de seis anos e menores de quinze [...]” (REGULAMENTO DA
INSTRUÇÃO PÚBLICA DE 1873, p. 7).
Apesar do discurso proferido no regulamento, a obrigação em prover o ensino
era da família. Nessa direção, grande parte da população não se apropriou da
leitura e da escrita, porque não houve construção de escolas para todas as
crianças. Especialmente para as crianças residentes nas regiões do interior da
província, não houve iniciativa de provimento do ensino da língua.
A obrigatoriedade era um dos pilares no qual se assentava a educação mundial
no século XIX. No entanto Cambi (1999) assinala que o crescimento do número
de escolas na Europa, para atender as classes populares, foi lento. Ainda de
acordo com esse autor, na primeira metade do século, a mão de obra infantil foi
regulamentada na Inglaterra, fixando a idade mínima para o trabalho de
crianças a partir dos nove anos de idade. Com escolarização, ficaria mais fácil
disciplinar a população para o trabalho industrial, ao mesmo tempo em que a
aprendizagem da leitura e da escrita potencializaria os indivíduos para melhor
desempenho de suas funções:
[...] O crescimento social da escola oitocentista refere-se à sua extensão às classes inferiores aos filhos do povo: um crescimento lento que atinge a escola elementar e popular nos diversos sistemas
nacionais de instrução, do qual o Estado se torna organizador e fiador, embora submetendo-se às exigências locais (em matéria de horário, de frequência). Realiza-se uma escolarização das massas, por vezes através de vias muito empíricas e de validades muito duvidosas (como o ensino mútuo) que estendem, porém, rudimentos da instrução às classes que até então eram geralmente excluídas dela [...] (CAMBI, 1999, p. 493).
Nesse sentido, é importante lembrar que, no Espírito Santo, no ano de 1871, foi
aprovado o Regimento das Escolas de 1.as Letras. Esse regimento tratava da
organização das escolas, que se faria nos moldes do método mútuo. O
presidente Thomé da Silva também acreditava que a regulamentação do
ensino obrigatório contribuiria para o desenvolvimento da educação. Assim, de
acordo com ele,
[...] O ensino obrigatório, senhores, aquele que se acha introduzido na Alemanha, Áustria, Suécia, Portugal, Hespanha, Noruega, Dinamarca, Holanda, Turquia, Itália, Inglaterra, Suissa, Estados Unidos & justamente aquele em que o nosso paiz, poderá desenvolver a instrução [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE, n. 218 p. 2, 1873).
Na eloquência de seu discurso publicado no jornal O Espírito-Santense, em 8
de maio de 1873, Thomé da Silva expôs a situação de atraso educacional em
que se encontrava a província, para justificar sua adesão ao ensino obrigatório.
Ele destacou que a legislação em vigor, na província, era a de 1848:
[...] não é certamente sob o império de uma legislação caduca, (refiro-me ao Regulamento de 20 de fevereiro de 1848, que encontrei em vigor!) não hade ser por meio de outras disposições desencadeadas, e viciosas, pelas quaes mais de uma vez tem sido alterado este Regulamento, que o Espírito Santo há de dar incremento à obra (tão atrasada?) de sua instrução [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE, n.218 p. 1, 1873).
Sabemos que o regulamento de 1861 estava em vigor. É verdade que muitos o
consideravam tão ineficaz quanto o regulamento de 1848, mas este último “não
estava vigorando”. Porém, como dito, ele era consultado, e, por isso, o
presidente Thomé da Silva utilizava o regulamento de 1848 para enfatizar o
atraso educacional da província. Entretanto é importante acentuar que a
obrigatoriedade proclamada pelo presidente se restringia à frequência dos
alunos; em outros termos, os pais e os tutores teriam a obrigação de garantir a
frequência dos seus filhos nas escolas:
[...] É útil no mais elevado ponto, e mesmo necessário à sociedade, uma certa instrucção; logo a sociedade tem o direito e o dêver de velar que essa pouca instrucção , necessária à todos, não falte a ninguém. É contraditório proclamar a necessidade de instrucção universal e recusar acceitar o único meio de torná-la eficaz. A verdadeira liberdade não pode ser inimiga da civilização; pelo contrário serve-lhe de instrumento, e n'isso está o seu máximo valor, como o da liberdade no indivíduo está em concorrer Ella para o seu aperfeiçoamento. Estas razões levarão-me a consagrar o princípio do ensino obrigatório; e a julgar pela experiência attestada por alguns Paizes adianttados em instrucção como sejão a Alemanha, a Áustria, e parte dos Estados Unidos, só há a esperar os melhores fructos de sua adopção. Cumpre que a escola seja uma realidade n'esta província será um passo dado a este desinteratum o princípio da freqüência obrigatória. Se para os Paes e tutores, cuidadosos da sorte de seus filhos e tutellados, é esta medida dispensável, para outros, que forem desleixados (e infelizmente há tantos!) servirá de avizo ao cumprimento de seus deveres. Torna-se com effeito obrigatória a freqüência; faça-se effectiva a multa comunicada aos infractores, que as aulas encher-se-hão, e em próximo futuro terá a Província melhorado consideravelmente o Estado da instrucção [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE, n.218 p. 2, 1873).
Infelizmente, enquanto o Estado também não se tornava responsável por
garantir as condições para que as crianças pudessem frequentar a escola,
permanecia, na província, o déficit no atendimento. Além disso, as escolas do
interior ficaram aguardando a ordem do Conselho Central, que classificaria as
escolas para o funcionamento em conformidade com o regulamento. A esse
respeito, o jornal O Espírito-Santense, de 30 de setembro de 1873, trouxe a
seguinte informação:
[...] Apenas na Capital está em execução a nova Refórma quanto ao ensino obrigatório. Para as demais localidades, resôlveo o Dr. Inspector da Instrucção Pública, depois de prévia audiência do Conselho Central, sollicitar das Câmaras Municipais informações para a demarcação do perímetro, dentro do qual deve ser em relação á cada eschola, obrigatório o ensino, nos termos dos arts. 40 e 41 do Regulamento vigente, e as aguarda para resolver, como lhe cumpre, sobre a respectiva demarcação [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE, n.226 p. 1-2, 1873).
Em 9 de junho de 1873, o quadro de classificação e matrículas da instrução pública pode ser observado a partir do mapa que se segue:
Figura 2 – Mapa da classificação das escolas da província do Espírito Santo no ano de 1873.
Fonte: Jornal O Espírito-Santense, de 12 de junho de 1873.
A classificação das escolas primárias abandonava a divisão 1.ª e 2.ª classes. A
exemplo do regulamento de 1861, o ensino primário proposto por Thomé da
Silva, em 1873, foi dividido em elementar e superior. Este último era facultativo.
Nessa direção, existiam duas classes: 1.ª – escolas de instrução primária
elementar, denominadas escolas de 1.º grau; e 2.ª – escolas de instrução
primária superior, denominadas escolas de 2.º grau. No primeiro grau,
seguindo a prescrição do artigo 35, os alunos aprenderiam leitura e escrita,
gramática portuguesa, exercícios de correspondência epistolar, instrução moral
religiosa, princípios elementares de aritmética e suas operações fundamentais
em números inteiros e sistema legal de pesos e medidas.
Nas classes de instrução primária de 2.º grau, seria ensinada a aritmética e
suas aplicações práticas, quer em quebrados e decimais, quer em complexos e
proporções. Os alunos aprenderiam, também, os princípios de filosofia racional
e moral, elementos de história e geografia, especialmente do Brasil, noções de
história sagrada, princípios das ciências físicas aplicáveis aos usos da vida,
gramática elementar e agrimensura, desenho linear e noções de música.
Cabe ressaltar que o método privilegiado no regulamento era o misto. Esse
método era uma combinação do ensino simultâneo com o mútuo, porém o
Conselho Central poderia autorizar outro, conforme a conveniência do ensino.
Em nossas reflexões, consideramos que, ao regulamentar esse método, o
presidente da província apenas tornou oficial o que já se fazia na escola, pois
essa era uma prática comum nas aulas. Em 1871, o inspetor da escola de São
Mateus assim se pronunciava em relação aos regulamentos anteriores:
[...] O método recommendado pelo Regulamento é o simultâneo, tem elle as incontesttáveis vantagens de reunir os predicados da palavra e autoridade direta do professor, da emulação que se desperta entre as classes e da economia de tempo para o mestre, mas faltão-lhe aquella applicação contínua, aquellas disciplinas e inspeção que são inconvenientes ao méthodo que admitte os monitores: para suprir esses incovenientes os professores teem acrescentado ao méthodo simultâneo, os monitores do méthodo mútuo, que dirigem aos alumnos nos intervallos, formando assim uma espécie denominada método mixto [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE, n. 41, p. 1, 1871).
O termo mixto se refere, assim, à junção de dois métodos: o simultâneo e o
mútuo. Porém, conforme apontam Shwartz e Falcão (2005), muitos professores
se valiam, inclusive, do ensino individual no momento das aulas. As autoras
realizaram um estudo sobre o ensino da leitura no Espírito Santo na década de
1860, em que assinalam a mescla de métodos. Citando um relatório do
professor João Ortiz, enviado ao presidente da província em 1861, explicitam
que o ensino era realizado a partir da junção de três métodos: individual,
simultâneo e mútuo:
[...] O método que me tem ajudado a alcançar esses resultados que provão uma reforma na marcha seguida até aqui em todas as escolas da Província, é o eclético, porque é uma fusão ou amálgama dos três systemas de ensino, conhecidos com a denominação do mútuo, simultâneo e individual. Creio que não é possível uma boa eschola onde esses três sistemas dando se as mãos a propósito não sejam recursos incalculável alcance para o mestre que deseja dar e conservar sólida instrução aos seus discípulos. Por exemplo, para não deixar sahir da memória infantil os nomes das letras, as suas vinte e cinco formas tão variadas, as suas inúmeras combinações produzidas as sillabas, é de mister que o menino nunca cesse de repetir o que um dia aprendeu; para repetir com proveito seu e alheio acatando a sentença — docendo docetur — deve tomar a outrem a lição em que quer ficar mestre. N'este exercício que multiplica o tempo do professor e fructifica no infinito do seo trabalho; está a prova de faso do ensino mútuo, mas sem esquecer de velar muito, a fim de que o aluno mestre passe ao aluno discípulo a instrução tal qual a do mesmo modo que recebeo do professor em chefe. O
simultâneo, o individual e o mútuo tornão-se alternativa ou simultaneamente solidários todas as vezes que tomo lição commum de muitos alunos: simultâneo quando explico a todos os da mesma lião de leitura, por exemplo, individual e simultâneo, quando cada discípulo lê seu tártio, ao passo que todos os demais estão atentos seguindo com os olhos a leitura que aquele faz com a minha aprovação; torna-se o ensino mútuo, quando por ocasião de algum erro cometido por um leitor, eu, em vez de dizer-lhe logo em que consiste o erro e o modo de emendar, mando que reconsidere; o senão ache por si mesmo o acerto, passo a outro essa incubência, até que passe aos mais. Quando nenhuma aceitou, tomo a mim a questão e ahi aparece outra vez o ensino simultâneo [...] (RELATÓRIO DE PRESIDENTES DA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO, 1861, apud SHWARTZ e FALCÃO, 2006, p. 60).
Segundo Shwartz e Falcão (2005, p. 9), a prática do professor foi referendada
pelo presidente da província, na época em que solicitou aos demais docentes
que assistissem às aulas do referido professor. A intenção era uniformizar o
método. Assim, conforme apontamos, a adoção do método misto, em 1873,
referenda práticas em que os métodos individual, simultâneo e mútuo eram
utilizados simultaneamente.
No artigo 105 do regulamento de 1873, estavam prescritos tipos de estímulos e
punições que poderiam ser aplicados aos alunos. Ressaltamos que, embora as
prescrições estejam escritas separadamente, as duas fazem parte do mesmo
artigo:
[...] S 1.º Elogio.S 2.º Cartão de boas notas.S 3.º Bilhetes de satisfação.S 4.º Logar de distinção.S 5.º Prêmios.Art. 105 – Com correctivo, ou punição às faltas empregarão: S 1.º Repreensão.S 2.º Perda de boas notas e bilhetes de satisfação.S 3.º Estudo em pé por espaço de cinco a vinte minutos.S 4.º Braços cruzados, por dez a trinta minutos.S 5.º Perda de prêmios.S 6.º Avizo aos páes, ou tutores para maior castigo.S 7.º Expulsão da escola. [...] (REGULAMENTO DA INSTRUÇÃO PÚBLICA DE 1873, p. 16-17).
Para as autoridades, a disciplina era uma necessidade da escola. No século
XIX, isso era exigido dos profissionais da educação de todo o mundo. A escola
esboçou modelos de indivíduos cultos segundo o seu padrão e, ao mesmo
tempo, disciplinados para o mercado de trabalho. Segundo Gumperz (1987), no
século XIX, um dos objetivos da escolarização em massa era o controle, ou
seja, o “[...] treinamento social para transformar os trabalhadores domésticos
ou rurais em força de trabalho operário [...]” (GUMPERZ, 1987, p. 40).
As práticas pedagógicas do século XIX eram sempre engendradas pelo
sistema de disciplina. É interessante observar que, na perspectiva de Cambi
(1999), o Estado tinha o professor como uma autoridade que se encarregava
também de fazer valer as normas jurídicas da escola. Segundo o autor, até
mesmo os programas, os livros-texto e os calendários cuidavam de regular não
só o aluno, mas também o professor. Fundamentando-se em Foucault, assim
se expressa:
[...] Toda vida na escola, como bem viu Foucault falando de séculos
anteriores, é submetida a um processo de racionalização que assume,
no seu disciplinarismo, o modelo do "vigiar e punir", dando lugar a uma
práxis escolar em geral autoritária. Conformista e repressiva [...]
(CAMBI, 1999, p. 497).
Apropriando-nos das reflexões de Cambi (1999), quando evidencia as ideias de
Foucault, compreendemos que o sistema de recompensas e punições adotado
nas escolas capixabas em 1873 e em toda a década de 1870 tinha o objetivo
de tornar os corpos dóceis, obedientes aos comandos, adaptados aos
interesses do Império, ou seja, submissos às privações e à falta de políticas
voltadas aos interesses da população. Isso conformava as pessoas até mesmo
a conviver com a escola na forma como estava organizada. De acordo com
Foucault (1989), ao serem docilizados coletivamente, os corpos se tornam
obedientes. Nessa direção, também entendemos que, ao tomar para si a tarefa
do ensino da leitura, a escola propôs um sistema rígido de disciplina a partir de
um sistema de recompensas e punições que visava ao controle dos corpos.
Nesse sentido, o ensino capixaba dividia os sujeitos em civilizados e não
civilizados. Nessa direção, dizemos que os não civilizados eram aqueles que
não eram “reconhecidos” como capazes de receber os prêmios. Segundo
Gumperz (1987, p.40), com um currículo organizado, as instituições de ensino
controlavam os indivíduos e, ao mesmo tempo, dividiam a sociedade entre
educados e não educados. A autora se posiciona dizendo que isso era “[...]
uma nova forma de controle social cada vez mais poderoso que podia ser
exercido através do currículo [...]” (Gumperz, 1987, p. 40).
O inspetor das escolas da cidade de São Mateus, Leônidas Marcondes de
Toledo Lessor, escreveu um relatório referente à instrução pública em seu
município. O relatório foi publicado no jornal O Espírito-Santense, de 10 de
março de 1871. Ele apontou seis ordens que deveriam fazer parte do sistema
de ensino. Não tivemos acesso à primeira ordem. Dialogamos com o seu texto
a partir da segunda ordem, para explicitar que a quarta ordem de suas ideias
reflete um modelo de educação atrelado à disciplina escolar.
Na perspectiva do inspetor, na segunda ordem, o desenvolvimento físico era
tão importante quanto o intelectual. Nesse sentido, expôs a necessidade de
atividades de ginástica para suavizar os trabalhos escolares. Na sua
percepção, o exercício físico evitaria que a imaginação desse lugar ao
sofrimento e, ao mesmo tempo, faria bem para a saúde. Fazia parte da
segunda ordem o ensino dos deveres do homem na sociedade, de acordo com
os preceitos do Império, que, na época, estava ancorado nos princípios da
religião católica. O inspetor capixaba aconselhava o seguinte procedimento:
“[...] fallar-se-há da alma, e da imortalidade, e juntar-se-á a cada uma destas
lições explicações sobre os deveres do homem e do menino [...]” (O
ESPÍRITO-SANTENSE, n.36 p. 1, 1871). Como elemento imprescindível na
segunda ordem, ele ainda enfatizou a prática de aulas de recitação e
declamação durante o ensino da leitura.
Retomando o que dissemos a respeito do sistema de recompensas e punições
e analisando os conselhos do inspetor quanto à observância à exposição dos
conteúdos referentes aos deveres do homem e à imortalidade da alma,
dizemos que, além de dividir os sujeitos em civilizados e não civilizados, a
escolarização da alfabetização nas escolas capixabas também procurava
inculcar preceitos morais e religiosos da igreja católica.
Na terceira ordem, evidenciou o ensino a partir da dissolução dos conteúdos
por disciplina e com utilização de métodos e livros previamente estabelecidos.
Na quarta ordem, ele se referiu à necessidade de se manter a boa conduta dos
alunos e a organização do tempo cronológico destinado às aulas e da disciplina
na escola. Quando se referiu à quinta ordem, observou a importância do
provimento de instalações prediais, recursos didáticos adequados para as
aulas e um livro de registro que deveria conter, além da matrícula, as
observações referentes à vida escolar de cada aluno. Na sexta e última ordem
do sistema escolar, explicita a obrigatoriedade e a liberdade de ensino
particular. Em sua opinião, a obrigatoriedade deveria ser estabelecida com
cautela, observando-se as circunstâncias do País. Nas suas considerações,
organizar a instrução pública na forma proposta significava plantar uma árvore
num terreno fértil que logo daria bons frutos.
Retomando a quarta ordem das ideias, observamos a proposta de uma escola
baseada numa disciplina totalmente rígida, fortalecida pelas autoridades e por
outros segmentos da sociedade. Observamos que as punições descritas no
artigo 105 do regulamento de 1873 foram declaradas no discurso do inspetor:
[...] A quarta ordem das idéias que entrão na composição da escola referem-se aos meios da disciplina, de moralidade, de comducta dos alumnos. Os diversos elementos que até aqui havemos percorrido dirigem-se a todos imediatamente á intelligência dos alunos, destinão-se ao ensino directamente; estes encaminhão-se antes á alma, e teem por alvo á educação... é preciso um systema bem combinado de recompensas e de penas, despertando viva emulação entre os alumnos, mantenha constantemente entre elles o esforço de excederem-se em aproveitamento e em conductas este meio, além do aproveitamento que favoneia, planta no espírito do menino a actividade, o hábito de obedecer espontaneamente aos conselhos do seu interesse racional, o amor, a prosperidade, e a coragem e iniciativa de promovel-a [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE, n. 118, p. 1, 1871).
Dos professores, também eram exigidas boa conduta e educação. Porém,
como apontado, os concursos para o ingresso no magistério eram realizados
de acordo com interesses estranhos ao proposto na legislação. A má conduta
de muitos profissionais foi denunciada nos livros de registro do Império. Alguns
respondiam administrativamente, porque se envolviam sentimentalmente em
relações extraconjugais, outros porque não cumpriam com seus compromissos
em lecionar nos dias previstos.
O regulamento de 1873 hierarquizou o ensino. A esse respeito, Gontijo (2008)
faz o seguinte comentário:
[...] Assim, o Regulamento de 1873 deu ao ensino uma organização hierarquizada composta por um inspector Geral da Instrução, submetidos diretamente ao Presidente da Província. Esses, por sua vez, tinham como auxiliares os Delegados Literários e os Conselhos Parochiaes de Instrução, cujos nomes deviam ser indicados pelo Inspetor-Geral da Instrução. O nome deste, juntamente com o dos que comporiam o Conselho Central de Instrução, seria indicado pelo Presidente da Província [...] (GONTIJO, 2008, p. 40).
Além disso, o regulamento de 1873 criou a Secretaria de Instrução, que, até
então, não existia como pasta independente. A inspeção, que já havia sido
prevista nos regulamentos anteriores, foi mais estruturada, nomeando-se as
atribuições de cada segmento.
Era previsto que o Conselho Central se reunisse mensalmente na presença do
Inspetor Geral. A ele cabiam o exame dos melhores métodos de ensino, a
revisão e a adoção dos compêndios e livros para as aulas e a criação de
escolas. Esse conselho cuidava também do sistema de contratação de
docentes, fazendo parte da banca examinadora e/ou designando indivíduos
para essa função. Observando as atribuições do conselho, analisamos que,
muitas vezes, ele executava uma espécie de função semelhante à dos
conselhos estaduais de educação da atualidade, porém numa atividade mais
intensa de inspeção pedagógica, pois atuava também no julgamento de
infrações de professores:
[...] O Conselho Central será, em geral, ouvido sobre quaesquer assumptos, que interessem à instrução primária e secundária, cujo desenvolvimento e progresso deverá promover, auxiliando, assim, ao Inspetor Geral [...] (REGULAMENTO DA INSTRUÇÃO PÚBLICA, 1873, p. 4).
As funções dos delegados literários eram bem significativas. Eles
inspecionavam todo o funcionamento prático das escolas. Questões como
regularidade das aulas, garantia dos preceitos morais nas instituições, posse
de professores, matrícula de alunos pobres, visitas às escolas, exames dos
alunos nas escolas públicas primárias, e subvencionadas, nomeação e
advertência de professores eram da competência desses delegados.
Um dos problemas apresentados pelos jornais e pelos relatórios de presidentes
de província diz respeito ao fato de os discípulos não dominarem a leitura e a
escrita. Por muitas vezes, foi solicitada a abertura de uma escola normal para
solucionar o problema da falta de formação dos professores, que, por sua vez,
contribuía para a falta de domínio desses conhecimentos. O regulamento de
1873 organizou essa modalidade de ensino:
[...] Art. 157 – Haverá na capital uma Escola Normal, destinada a formar o pessoal dos Professores de Instrução primária, por meio de ensino methodico, e educação exemplar [...] (REGULAMENTO DA INSTRUÇÃO PÚBLICA DE 1873, p. 23).
O texto da criação da escola anunciou que a preocupação era o ensino
primário. As matérias a serem aprendidas na instituição eram aquelas que
seriam ensinadas nas escolas primárias e cobradas nos concursos. Alguns
acréscimos de conteúdos foram feitos com relação à escrita da redação, do
conhecimento da legislação e administração do ensino, do desenho linear,
geometria plana, agrimensura, noções de filosofia e ideias fundamentais da
moral e do direito natural. Nessa direção, o ensino da escola normal foi
dividido:
[...] Primeira cadeira:• Leitura de prosa e verso.• Calligrafia.• Princípios elementares de Grammatica geral; conhecimento racional e prático da língua portugueza; redação.
Segunda cadeira:• Princípios elementares de aritmética, suas operações
fundamentais sobre números inteiros.• Sistema legal de pesos e medidas.S 2.º O segundo anno comprehenderá o ensino das seguintes matérias, dividido, igualmente, em duas cadeiras:Primeira cadeira:• Noções sumárias de geographia, especialmente do Brazil.• Noções de História Universal; História pátria.• Doutrina christã; noções de História Sagrada.Segunda cadeira:
• Pedagogia; conhecimento da legislação e administração do ensino.
• Desenho linear; geometria plana e agrimensura.
• Noções de philosophia, comprehendendo as idéias fundamentaes da moral e do Direito Natural [...] (REGULAMENTO DA INSTRUÇÃO PÚBLICA, 1873, p. 23).
A escola normal seria ofertada a homens e mulheres. Para serem admitidos na
instituição, precisariam saber ler, escrever e contar. Esses conhecimentos
eram requisitos mínimos. Ainda poderiam ser admitidos os indivíduos que
apresentassem titulação em humanidades pelo Atheneu Provincial, os titulados
em graus científicos e literários pelas faculdades do Império ou pelo Colégio
Pedro II.
A prática de ensino era uma das preocupações da escola normal. Por esse
motivo, o artigo 166 previu duas escolas primárias anexas à instituição.
Ressaltamos que o número de dois anexos se justificava pelo fato de existirem
aulas práticas para o sexo feminino e para o sexo masculino. Nesse sentido,
cabe observar que, para o ensino normal, também existia a divisão do ensino
por sexo. As mulheres poderiam iniciar seus estudos como alunas mestras aos
12 anos de idade, e os homens, aos 16. Desse modo, considerando que o
curso tinha a previsão de durar dois anos, é provável que muitas “meninas”
tenham se tornado professoras entre 14 e 15 anos.
O regulamento de 1873 foi muito importante porque pretendeu reorganizar o
ensino na escola normal, tentou organizar o serviço de inspeção e iniciou a
regulamentação da gratuidade no ensino escolarizado. Em relatório referente à
instrução pública em 1896, José Carvalho Moniz Freire se pronunciou a
respeito dos regulamentos de 1873 e 1882. Na ocasião, ele disse que tais
reformas não avançaram com resultados satisfatórios, elas foram infrutíferas,
servindo apenas para atestar os esforços dos administradores da época:
[...] O seu defeito principal foi não concentrarem todos os cuidados dos poderes públicos em melhorar a instrução primária e se haverem preoccupado muito com a organização do ensino secundário. Abordaram o problema fundamental, mas deixaram brecha para que esse fosse afinal sacrificado ao lado menos essencial dos regulamentos. Uma e outra procuraram elevar o nível do ensino, estabelecendo garantias ao magistério, alargando os programmas
das escolas, e exigindo a capacidade profissional, mas ambas foram infelizes em confundir sob os mesmos tectos e nas mesmas pessoas lentes e cadeiras dos candidatos ao magistério, e dos candidatos de exames de preparatórios. O resultado foi que a politicagem de um lado tendo interesse em fazer das nomeações para o professorado uma arma constante de partidos e do outro a falta de estímulos para a mocidade, geraram a maior indiferença pela execução da parte capital das reformas [...] (RELATÓRIOS DE PRESIDENTES DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, 1896, p. 122-123).
No mesmo relatório, o presidente Moniz Freire assinala que o ensino
ministrado no Atheneu Provincial para os meninos e no Colégio Nossa Senhora
da Penha para meninas era deficitário, considerando-se a especificidade
dessas escolas, que eram institutos de ensino normal:
[...] O estabelecimento masculino nunca passou de um collégio de preparatórios, onde os raros moços se habilitaram para os cursos superiores, e outros freqüentaram apenas duas ou três aulas para irem depois pretender empregos públicos; o feminino apesar de mais incompleto, foi, entretanto o que pôde fornecer maior número de candidatos, com preparo mediano, às cadeiras do ensino primário [...] (RELATÓRIOS DE PRESIDENTES DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, 1896, p. 122-123).
Considerando as colocações do presidente nas duas citações acima,
assinalamos que a reforma de 1873 não ultrapassou o plano legal. No mesmo
relatório de Moniz Freire, em 1896, encontramos, ainda, as seguintes
ponderações:
[...] A conseqüência de todos esses insucessos é que, ainda hoje decorridos vinte e três anos da primeira reforma em que se cogitou crear um pessoal apto para a carreira do magistério, a administração pública sente-se na neccessidade, irremediável de prover em quase todas as escolas, homens sem tirocínio algum, pouco mais podendo exigir-lhes do que a prova de saberem ler e escrever [...] (RELATÓRIOS DE PRESIDENTES DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, 1896, p. 123).
Como dito, o presidente Thomé da Silva defendia a gratuidade e a
obrigatoriedade do ensino primário elementar e, nesse sentido, fez algumas
tentativas de obrigar as crianças a frequentar as escolas. Uma das iniciativas
foi a constituição de artigos dentro do regulamento, tratando da obrigatoriedade
dos pais de matricularem seus filhos e da criação de escolas elementares em
cada paróquia. De acordo com o artigo 44, haveria pelo menos uma escola
elementar em cada paróquia. Lendo o artigo 41, observamos que o então
presidente estabeleceu multas de trinta a cem mil réis para serem cobradas
aos responsáveis que não enviassem seus filhos à escola. Além das medidas
mencionadas, Thomé da Silva proferiu um discurso em que expressava a
necessidade de provimento do ensino público por parte do governo imperial.
Em discurso eloqüente, reforçou a ideia de que o ensino deveria ser provido às
custas dos cofres públicos. Esse discurso foi publicado no jornal O Espírito-
Santense de 6 de maio de 1873. As palavras do então presidente foram bem
ousadas para a época. Quando mencionou a necessidade de se angariar
recursos para a gratuidade, disse que, sobre o assunto, não deveria haver
embaraços. Pressupor gastos para uma câmara de deputados que falava em
economia de recursos e supressão de escolas significava tentar romper com
obstáculos que até então eram tidos como intransponíveis.
Na perspectiva do presidente Thomé da Silva, a escola deveria dar conta de
prover a instrução, e os indivíduos instruídos teriam as oportunidades de
alcançar êxito na vida econômica, escapando da miséria. Ter o ensino
escolarizado significava trabalhar nas repartições públicas. Essa forma de
pensar esteve presente durante a toda a década de 1870. Porém, assim como
hoje, essas ideias têm caráter ideológico. Conforme dissemos anteriormente,
nossa economia era de base agrária que não exigia mão de obra alfabetizada.
Segundo Gondra (2002), o ensino no Brasil buscou referências na Europa.
Essas referências eram mais procuradas na Inglaterra e na França. O
pesquisador assinala que as referências eram buscadas por motivos diferentes.
Na Inglaterra, estava presente a “ideia” de que a industrialização ofereceria
“possibilidades infinitas”. A França atraía pelos aspectos culturais como a “[...]
pintura, teatro, música, literatura, culinária e da ‘boa’ moda, por exemplo [...]”
GONDRA (2002, p.). Analisando as colocações de Gondra e comparando-as
aos artigos publicados nos jornais de maior circulação no Espírito Santo, na
década de 1870, observamos que, de fato, as referências aos modelos
educacionais constituídos nesses países eram constantes. Os artigos
veiculados pelos jornais atribuíam o sucesso econômico daqueles países à
organização do ensino.
Segundo Gondra (2002), os responsáveis pela organização do ensino francês
buscavam conhecer práticas pedagógicas inovadoras para implantar nas
escolas francesas, objetivando melhorar o ensino elementar. Bastos (2003) diz
que era uma prática nesse país realizar viagens pedagógicas em busca de
inovações. Algumas dessas viagens foram realizadas por Celestin Hippeau e
relatadas sob a forma de livros impressos pelo próprio viajante. Uma das
viagens pedagógicas mais significativas realizadas por Hippeau foi às escolas
dos Estados Unidos. Segundo esse autor, as práticas de ensino desse país
eram inovadoras. Em 1871, o Espírito Santo recebeu um exemplar desse
material, que havia sido traduzido pela Tipografia Nacional, no Rio de Janeiro.
[...] Il.mo e Ex.mo Sr. do Palácio do Governo em 31 de agosto tenho a
honra de acusar o recebimento de aviso de V. Ex.a com data de 5 de
janeiro do próximo pretérito acompanhando para a devida distribuição
treze exemplares da obra de C. Hippeau sobre a instrução nos
Estados Unidos, os quaes tiverão o destino recomendado no citado
aviso cumprindo-me significar que são treze as comarcas municipaes
da província havendo sido contempladas um número de onze
comarcas. Deos o guarde. Conselheiro João Alfredo Correa de
Oliveira. Ministro e Secretário dos Negócios do Império (LIVRO N. 75,
SÉRIE 751, p. 190, 1871).
Para nós, a citação acima é muito significativa, primeiro, porque confirma que,
na década de 1870, muitas informações pedagógicas vinham da França. Esse
é um dado muito importante, pois permite concluir sobre as influências
francesas na educação brasileira e no Espírito Santo. Além disso, Hippeau
valorizava o modelo educacional americano e dizia que era o mais perfeito, o
que nos leva a acreditar que as autoridades espírito-santenses podem ter sido
influenciadas a buscar adotar esse modelo no Espírito Santo, ou, mais
especificamente, que o regulamento de 1873, escrito por Thomé da Silva, foi
influenciado pelas ideias relatadas por Hippeau sobre a educação nos Estados
Unidos. Segundo Bastos (2003), muitas propostas constituídas no livro de
Hippeau (1873) com referência à instrução nos Estados Unidos foram
“legitimadas” na constituição de regulamentos referentes ao funcionamento da
educação brasileira. Desse modo, as ponderações da autora fortalecem a
nossa hipótese de que as propostas americanas inspiraram os conteúdos da
reforma do presidente Thomé da Silva.
No regulamento de 1873, Thomé da Silva estabeleceu a gratuidade do ensino
elementar. A exemplo do que foi feito nos Estados Unidos, o presidente da
província tratou, inclusive, de fornecer pensionato aos alunos pobres nas
escolas. Essa particularidade pode ser observada no artigo 201 do
regulamento de 1873, que tratava da oferta de pensionato aos alunos pobres
no Colégio Atheneu:
O presidente da província manda admittir ao Instituto as custas dos
Cofres Provinciaes, quatro meninos pobres como alumnos
pensionistas, seis como meio pensionistas, e dez como externos,
uma vez que sejão de reconhecida inteligência, e de família honesta.
(Jornal O Espírito-Santense, Vitória, n. 273, p. 1873).
As semelhanças entre o conteúdo disposto no regulamento de Thomé da Silva
quanto à gratuidade do ensino elementar e a gratuidade do ensino americano
relatado por Hippeau não se restringem ao fornecimento de pensões, mas são
extensivas à forma de provimento da gratuidade. Se, nos Estados Unidos,
havia previsão de instalar escolas onde residisse um grupo de 50 famílias, para
que os indivíduos maiores de 5 anos e menores de 18 pudessem estudar, no
Espírito Santo, o artigo 44 da legislação de 1873 previa que haveria uma
escola em cada paróquia. Compreendemos que a legislação da instrução
pública de 1827, referente à instrução pública no Brasil, já trazia esse discurso
sobre a criação de escolas para toda a população, no entanto compreendemos
que o modelo de organização educacional relatado por Hippeau (1873) pode
ter fortalecido o então presidente da província a escrever os artigos referentes
à instalação das escolas capixabas na década de 1870.
O regulamento também previa, no artigo 29, a liberdade de ensino. Assim, “[...]
É livre o ensino particular, primário ou secundário [...]” (REGULAMENTO DA
INSTRUÇÃO PÚBLICA DE 1873, p. 6). Quando o presidente promulgou o
regulamento, nos Estados Unidos, o ensino privado já acontecia. Segundo
Hippeau (1871, p. 65), “[...] A liberdade de ensino em todos os seus graos salva
os direitos das famílias [...]”.
Outro ponto que pode ser destacado se refere ao método de ensino da leitura.
Segundo Hippeau, as escolas americanas utilizavam o método da soletração.
De acordo com ele, “[...] Lê-se, soletra-se; e á força de soletrar aprende-se a
ortographia [...]” (HIPPEAU, 1871, p.45). No Espírito Santo, a prática do
método da soletração vinha acontecendo pelo menos desde a década de 1860,
com a utilização do livro de Luis Francisco Midosi e das Cartas do A B C, mas
foi no governo de Thomé da Silva que essa prática foi regulamentada e devia
ser utilizada na escola de instrução primária anexa ao Colégio Atheneu, onde
funcionavam as aulas práticas da escola normal.
Outro ponto bastante instigante nas propostas americanas está relacionado
aos castigos. Os relatos de Hippeau não evidenciam o uso da palmatória, pois
acreditamos que o uso desse objeto não estava sendo mais aceito com tanta
naturalidade. Segundo o escritor francês, nas escolas americanas, havia a
figura de um funcionário denominado “principal”, que cuidava de observar a
disciplina dos alunos. Nas escolas capixabas, esse funcionário era o “censor”.
Ele deveria fazer funcionar as classes do Colégio Atheneu no maior silêncio.
Conforme já evidenciamos, até na hora das refeições, esse profissional
controlava os alunos.
Analisamos que, ao promulgar os artigos do regulamento de 1873 “inspirado”
nas ideias americanas relatadas por Hippeau quanto à gratuidade, à liberdade
de ensino e ao método de ensino da língua, o presidente Thomé da Silva
(re)iniciou uma nova organização nas escolas de ensino primário na província
do Espírito Santo, e isso incidiria diretamente sobre as práticas pedagógicas de
ensino da língua.
A gratuidade e a obrigatoriedade do ensino resultaram na presença de crianças
com seis anos na escola. Grosso modo, pensamos que ofertar vagas para
crianças nessa faixa etária implicaria prover as classes de alfabetização com
mais materiais para o ensino e aprendizagem. Considerando-se que as
práticas de ensino da língua privilegiavam o perfeito traslado das letras, seria
necessário comprar mais tabuinhas, taboletas, ardósias e lápis de gesso, pois
esses materiais eram utilizados por crianças de menos idade nas aulas de
caligrafia. Além da necessidade de provimento de mais recursos, as salas de
aula precisariam ser mais espaçosas, pois o número de matrículas seria
ampliado. Outro aspecto a ser apontado está relacionado à regulamentação da
função do preceptor. Ao se admitir que o ensino doméstico fosse aceito, o
regulamento praticamente oficializava essa profissão.
Quanto à liberdade de ensino, consideramos que os pais das crianças mais
abastadas poderiam “escolher” onde matricular seus filhos, se na escola
pública ou particular. Isso também incidiria diretamente sobre as práticas de
ensino, pois, se eram abastadas economicamente, as crianças da rede privada
teriam condições de comprar os materiais, já as crianças da rede pública
continuariam valendo-se de recursos improvisados como as cartas manuscritas
utilizadas nas aulas de caligrafia. Nessa direção, numa mesma província,
passávamos a ter metodologias distintas, pois a rede particular poderia planejar
as atividades com o uso de livros por todos os alunos, enquanto a rede pública
continuaria a pensar em aulas em que alguns alunos possuiriam livros, papéis,
lápis, e outros não. Nessa direção, dizemos que a organização do ensino
escolarizado nos moldes do ensino americano acirrava a “divisão de classes”.
No que se refere à oficialização do método da soletração, compreendemos que
muitas escolas não alterariam suas práticas, porque esse método já estava
sendo aplicado a partir da utilização do livro de Luis Francisco Midosi, mas, por
outro lado, os professores e preceptores que já ensinavam pelo método da
soletração ficariam mais à vontade para dar continuidade a essa prática. Esse
é um dado muito importante, pois nos faz analisar que as práticas de ensino a
partir do método analítico ou analítico-sintético não seriam aceitas com tanta
naturalidade, incidindo, inclusive, na “rejeição de métodos como o bacadafá,
que foi enviado à província para divulgação, mas não foi oficializado.
Conforme se observa, as viagens de Hippeau e o envio de seu relato a respeito
da educação nos Estados Unidos às comarcas da província, na década de
1870, não podem ser vistos como fatos corriqueiros, pois foram decisivos para
tornar oficial um método de leitura já instituído.
Apesar das supostas tentativas do presidente Thomé da Silva em prover o
ensino, no ano de 1874, na data de 20 de setembro, o jornal O Espírito-
Santense publicava que o ensino gratuito ainda não atendia a todas as
crianças em idade escolar. O discurso publicado no jornal destacou a baixa
remuneração dos professores como um impedimento para o provimento do
ensino:
[...] Vejamos. O ensino primário oficial, embora gratuito como está constituído entre nós não aproveita ninguém. É impossível ao professor e inútil ao aluno. A retribuição que o governo concede ao primeiro é verdadeiramente um passaporte de miséria e humilhação. Quem é que com 600 ou 800 réis anuaes pode pagar aluguel de casa, sustentar-se e desempenhar conscientemente a o encargo de preceptor? É o mesmo que dizer a um infeliz: curte fome, mora em uma espelunca e dispõe das melhores horas do dia e da noite em benefício do estado que te esquece como o mais humilde, o mais obscuro de seus servidores! Um professor nestas circunstâncias nem ao menos poderá rodeiar-se de prestígio religioso. Será naturalmente um ignorante, um louco. Que respeito poderá infundir em seos educandos? O estado de dependência que a aceitação de seo cargo lhe creou, despoja-o da autoridade e da força moral, sem as quais a sua influencia se torna completamente nulla. As crianças frequentão por longos meses uma destas aulas e saem por fim de lá como entrarão. Os pais, os parentes, não menos ignorantes que os seus tutelados, descrêem facilmente da utilidade e vantagens do ensino. Assim, voltão para casa e são logo empregados nos mais rudes trabalhos domésticos. Cá fora, no interior, na roça, na matta, vão feitorear os escravos, cortar lenha, pegar os animais no pasto e sahen aos domingos, armados de uma espingarda ou de uma tramóia a caçar rolas ou apanhar sabiás que no fim das contas tem tanto direito quanto ele a liberdade. Eis aqui em que consome a actividade infantil dos filhos do povo, enquanto a venda, o jogo e muitas vezes o crime não completão tão deplorável noviciado [...]. (Jornal O Espírito-Santense, Vitória, 20 de setembro de 1874.
As observações expostas no jornal O Espírito-Santense, mais uma vez,
evidenciam as péssimas condições do ensino público e ainda assinalam a
presença de preceptor ensinando na província na década de 1870. Esse é um
dado muito importante, pois nos faz analisar que, embora os artigos do
regulamento de 1873 não tivessem explicitado a imagem desse profissional, o
próprio presidente admitia sua presença e tinha consciência de que nem todos
os indivíduos em idade escolar frequentariam as escolas públicas. Muitos
estudariam nas suas casas, e seus responsáveis ficariam livres das multas.
Nessa direção, o artigo 42 trazia, no terceiro parágrafo, um texto que,
praticamente, legalizava a prática do ensino por meio dos preceptores. Esse
parágrafo isentava os pais dos menores que recebessem ensino domiciliar ao
pagamento da multa.
Como dito, as ideias postas no regulamento de 1873 não deram conta de
solucionar os problemas educacionais. Analisando os mapas dispostos no já
mencionado Dicionário histórico geográphiico e estatístico escrito por Cezar
Augusto Marques, no ano de 1878, pertinentes às atividades sociais e
profissionais existentes na província entre os anos de 1873 e 1877,
visualizamos que, na realidade, algumas paróquias não tinham sequer um
professor. Os presidentes que sucederam Thomé da Silva relataram as
péssimas condições da instrução pública primária na província. Em 1875, dois
anos após a promulgação da lei de 1873, em meio às práticas do método
misto, o presidente Domingos Monteiro Peixoto relatava que ainda não
havíamos avançado em termos de ensino da língua:
[...] A instrucção pública deve continuar a merecer-vos séria
attenção. A felicidade do povo depende de sua difusão. A província
despende quase um terço de sua importante receita com este
importante ramo do serviço público, porém é forçoso confessarmos
os resultados não estão na proporção dos sacrifícios a que se têm
imposto. Foi um passo de grande alcance as reformas que se
realizarão e que lembrarão sempre o nome d'aquele que as iniciou;
mas a experiência tem mostrado que há n'elas necessidade de
alguns retoques e modificações de maneira à se conseguir o fim que
se teve em vista sem comprometer os escassos recursos da
província, que tem muitas outras exigências a satisfazer [...]
(RELATÓRIO DA INSTRUÇÃO PÚBLICA, 1876, p. 1).
Em 1878, o número de crianças em idade escolar fora das escolas ainda era
muito grande. Pior era o quantitativo de pessoas analfabetas. Para uma
população de 94.183 pessoas, havia 78.492 analfabetas. A situação deficitária
da instrução na província perdurou por toda a década, já que os métodos de
ensino aprendidos nas escolas normais não deram conta de resolver o
problema do analfabetismo na província.
3.2.3 O regulamento de 1877
Em 1877, outro regulamento é promulgado, com poucas mudanças. O novo
modelo extinguiu os conselhos paroquiais. Os delegados literários ocuparam
esse espaço, passando a auxiliar o Presidente da Província e o Inspetor Geral
na inspeção do ensino. A obrigatoriedade do ensino elementar continuou a
existir, porém a idade para a gratuidade foi alterada, retornando de 7 a 14
anos, como era prescrito na legislação imperial.
A classificação das escolas públicas era feita a partir da divisão por entrâncias
e dependia da aprovação do Presidente da Província. Em 1877, as escolas
continuaram a ser classificadas segundo a localidade em que eram instaladas:
[...] Art. 28. - As escolas de primeiras letras para os dois sexos são classificadas do seguinte modo:1.ª _ Entrância - as das freguesias e districtos.2.ª _ Entrância - as das sedes das vilas.3.ª – Entrância - as das cidades. (Art. 4º da lei n. 12 de 9 de agosto de 1877 e Art. 3º da de n. 37 de 1874) (REGULAMENTO DA INSTRUÇÃO PÚBLICA DE 1877, p. 6).
As matérias lecionadas nas escolas de ensino primário também tiveram uma
pequena alteração. Foram incluídos os exercícios de correspondência
epistolar. Para as meninas, aconteceu o retorno das aulas de costura e
trabalhos de agulhas, nos mesmos moldes da Reforma de Couto Ferraz em
1848. O método de ensino era o misto ou simultâneo. No método misto, se
congregava a mescla do ensino simultâneo com o mútuo. Notamos que o
método mútuo sempre esteve presente, mesmo contrariando a posição de
alguns governantes. Sucupira (2005, p. 59) relata que o Ministério do Império
apontava insatisfação com relação ao método, em 1833. Na ocasião, o ministro
disse que os resultados alcançados com o método, no Brasil, não
apresentavam o mesmo sucesso dos outros países onde o método foi adotado,
e que, por esse motivo, era mais pertinente não multiplicá-lo em outras escolas
até que as escolas que o utilizavam se aperfeiçoassem no uso.
Seguindo os princípios dos regulamentos anteriores, a legislação de 1877
também utilizou o sistema de recompensas e punições aos alunos. Esse
sistema seria empregado para estimular os alunos a realizar as atividades
propostas pela escola:
Art. 174. Os professores públicos empregarão para estimular os
alumnos no cumprimento de seus deveres os seguintes meios
disciplinares:
1.º Elogio.
2.º Cartão de boas notas.
3.º Bilhetes de satisfação.
4.º Lugar de distinção.
5.º Prêmios.
Art. 75. Como corretivo e punição às faltas se empregarão:
1.º Advertências.
2.º Reprehensão particular ou pública.
3.º Perda de boas notas ou bilhete de satisfação.
4.º Castigo corporal que excite o vexame.
5.º Perda de prêmios conferidos.
6.º Aviso aos pais e aos encarregados dos alunos.
7.º Expulsão da escola. (REGULAMENTO DE 1877, p. 16).
Segundo o artigo 127, parágrafo 3.º, na escola Nossa Senhora da Penha seria
a diretora do colégio quem aplicaria as punições e daria os prêmios.
Analisando a redação do texto referente aos prêmios e castigos, observamos
que não havia preocupação com a mediação do conhecimento para que o
aluno alcançasse um melhor aproveitamento dos conteúdos ensinados. No
lugar da mediação, a legislação aplicava penalidades ou conferia prêmios. A
palmatória foi abolida na legislação de 1873, mas os alunos continuavam
sendo alvo de repressões quando não conseguiam aprender o que estava
sendo ensinado.
Além de receberem recompensas e punições nos momentos das aulas, os
alunos da instrução primária seriam avaliados ao final de cada ano letivo. Até
mesmo os trabalhos de agulha das meninas seriam avaliados por uma banca
presidida por uma professora da escola primária da terceira entrância. De
acordo com o regulamento, o exame17 começaria no dia 15 de novembro de
cada ano. Primeiro, seriam examinados os meninos do Colégio Atheneu e,
depois, as meninas do Colégio Nossa Senhora da Penha. De acordo com o
artigo 159, quem presidiria esses exames seria o próprio inspetor geral da
instrução pública. Esses exames eram previamente marcados com os nomes
de alunos que seriam examinados. Nos dois colégios citados acima, a
responsabilidade de enviar os nomes dos alunos para a avaliação eram os
diretores. Nas escolas pertencentes aos outros distritos, essa responsabilidade
ficava a cargo dos delegados literários. Eles presidiriam a banca examinadora
composta por pessoas residentes no próprio distrito.
Cabe ressaltar que a presença dos delegados literários nas escolas não
acontecia apenas nos momentos de encaminhar os alunos aos exames. As
escolas eram acompanhadas por visitas realizadas pelos delegados literários
pelo menos uma vez por mês. Segundo o artigo 21 do regulamento de 1877,
aos delegados caberia:
§ 1.º Inspecionar as escolas públicas dos respectivos distritos,
observando se as mesmas funcionarão com regularidade e conforme
as instruções das ordens superiores.
Inspecionar se as aulas funcionavam com regularidade era um aspecto muito
relevante, pois existiram muitos registros de pais de alunos das escolas da
província reclamando da irregularidade de funcionamento das escolas. Muitos
professores não compareciam ao trabalho, o que gerava um incômodo nos
pais, que denunciavam o fato às autoridades. Essas denúncias estão
registradas nos livros de correspondências entre as escolas e a província. 17 A prática de examinar os alunos nas matérias adentrou pela República. “Era, portanto, o professor quem, conhecendo as condições de aproveitamento do discípulo, o escalava para o exame. Não existindo classes, não havia promoções. Só o professor era juiz, para permitir que o aluno avançasse na esfera do aprendizado de modo a poder fazer as provas que o retirassem do curso de primeiras letras” (HORTA, 2007, p. 29).
Existia uma punição prevista no quarto parágrafo para os professores que
negligenciassem. Primeiro, eles seriam advertidos pelos próprios delegados
literários e, depois, poderiam ser multados. Além de observar o funcionamento
das escolas, os delegados também deveriam declarar o número de alunos. A
visita era lavrada num livro especial, rubricado e numerado pelo inspetor geral.
Por essas visitas, o inspetor tomava ciência não só do número de alunos, mas
também da constatação de que o rendimento da classe era satisfatório ou não
e de que os materiais estavam ou não sendo utilizados em conformidade com
aquilo que estava determinado na legislação:
[...] Art. 22. Os delegados literários, nas visitas que fizerem às escolas públicas deverão declarar no livro de visitas, não só o número de alumnos que encontrarão, como o estado da mesma escola, dando de tudo parte ao Inspetor Geral [...] (REGULAMENTO DA INSTRUÇÃO PÚBLICA DE 1877, p. 4).
O regulamento de 1877 também deu continuidade ao processo de gratuidade
do ensino elementar iniciado pelo presidente Thomé da Silva no ano de 1873.
Assim como no regulamento de 1873, em 1877, havia determinação da
obrigatoriedade a partir de um perímetro de distância. Na legislação de 1877,
esse perímetro era de 14 quilômetros da residência do aluno em relação á
escola. Isso estava determinado pelo artigo 29. Não enviar os filhos à escola
significava pagar multas, salvo nas situações de indigência e de ensino
domiciliar.
Analisando os artigos referentes à gratuidade, observamos que existiu a
presença do preceptor. Diferentemente do regulamento de 1873, a legislação
de 1877 definia legalmente que os responsáveis pelas crianças deveriam
entregar documento comprobatório de ensino aos preceptores. Isso pode ser
observado no parágrafo 3.º. Segundo esse parágrafo, se o pai entregasse
atestado assinado por um professor, dizendo que seu filho estava tendo aulas
no domicílio, poderia ficar isento da multa.
Apesar de mencionar a gratuidade, o regulamento também impedia que as
crianças estudassem. Segundo o artigo 32, as escolas com menos de 10
alunos seriam fechadas. Existiu a previsão da admissão de alunos pensionistas
e meio pensionistas nos institutos de ensino às custas dos cofres provinciais,
no entanto, para ter esse benefício, essas crianças teriam que ser maiores de
oito anos e apresentar alguns pré-requisitos como a boa conduta:
[...] Art. 118. O presidente da província póde mandar admitir em cada um dos institutos, a custa dos cofres provinciaes, quatro meninos pobres commo alumnos pensionistas, seis como meio pensionistas e dez como externos, uma vez que sejão de reconhecida inteligência e de boa conducta, dando em todo o caso preferência aos filhos de empregados públicos provinciaes, que tenhaão se distinguido pelo bom desempenho de seu cargo.Art. 119. Os alumnos pensionistas, inclusive os da província, contribuirão com a mensalidade de 25$000, e os meio pensionistas com a de 15$000. (Art. 17 da Lei n. 33 de 1876). Art. 120. Estas mensalidades deverão ser pagas aos respectivos diretores que darão aos alunos alimentação necessária, e farão as mais despezas com o costeio dos estabelecimentos, exceptuando o aluguel dos prédios os vencimentos dos funcionários [...] (REGULAMENTO DA INSTRUÇÃO PÚBLICA DE 1877, p. 15).
Os artigos 118, 119 e 120 explicitam três aspectos que merecem ser
mencionados. O primeiro é o de que as crianças que não fossem filhas de
funcionários públicos não seriam contempladas com a matrícula nessas
instituições, porque a preferência para recebimento desse benefício seria para
os filhos das pessoas que trabalhavam nas repartições públicas. O segundo
aponta que a gratuidade não seria total, pois os pais deveriam dispor de uma
quantia para a alimentação. O terceiro é o de que a opção por admitir filhos de
funcionários públicos pode estar atrelada à garantia do recebimento das
quantias determinadas na lei, pois o funcionário público era um sujeito que
possuía certa garantia de recebimento de vencimentos.
Podemos dizer que, apesar de o regulamento de 1877 ter repetido quase todas
as normas de 1873, foi menos ousado, chegando, inclusive, a retroceder na
idade da obrigatoriedade do ensino. Na reforma de 1873, previa-se que as
crianças seriam obrigadas a frequentar escolas a partir dos seis anos, sendo
finalizada essa obrigatoriedade após os 15 anos.
A reforma de 1877 adentrou a República. Apresentou as configurações das
propostas conservadoras de Couto Ferraz, sem descartar os artigos
promulgados em 1873. Tivemos outro regulamento em 1882, todavia ele foi
suspenso em 1884 pelo presidente Miguel Bernardo Vieira de Amorim.
Segundo Gontijo (2008, p. 32), o presidente alegou não acreditar nas doutrinas
nele contidas. A autora explicita, ainda, que, em 1884, o regulamento de 1877
passou a vigorar novamente apresentando pequenas alterações contidas na
Resolução n.º 86, de 19 de maio de 1884.
Nas reformas do século XIX, verificamos que, oficialmente, existia uma recusa
ao fracasso da instrução pública primária. Nos quase 30 anos que se passaram
da Reforma de Couto Ferraz à Reforma de 1877, a instrução pública no
Espírito Santo passou por três métodos de ensino. Por ultimo, foi oficializado o
método misto e simultâneo. Consideramos que a permissão para a alternância
metodológica era oriunda de dois fatores. O primeiro é que os debates
pertinentes à implantação de métodos estava em plena efervescência, pois a
sociedade cobrava resultados. Isso levava as autoridades a propor alternativas
de um funcionamento mais eficaz da escola.
O segundo diz respeito à precariedade na formação de professores, das más
instalações dos prédios escolares e da falta de recursos didáticos. Com a falta
de recursos didáticos, aliada à precária formação de professores e à existência
de prédios que, muitas vezes, não permitiam as acomodações necessárias
para o abrigo dos professores e alunos e o bom desenvolvimento das aulas, a
saída era permitir que fosse adotada mais de uma proposta, a fim de que os
professores utilizassem aquela que fosse mais conveniente.
No final da década de 1870, o ensino na Província do Espírito Santo era
precário, com um número de matrículas bem menor do que o necessário. Ao
final do ano de 1878, o deputado Manoel da Silva Mafra ainda declarava ao
jornal O Espírito-Santense que o número das escolas em funcionamento, para
uma população de 82.123 pessoas, era de oitenta. Nessa direção,
compreendemos que, segundo a proporção, para cada 1.026 pessoas existia
uma escola. Em 9 de março de 1880, o mesmo deputado assim se pronunciava
com relação à precariedade no sistema de ensino: “[...] Isto não é um vício
exclusivo d'esta Província, porém infelizmente de todo o Paiz, onde o ensino
primário, seja dito com franqueza, está ainda por criar [...]” (RELATÓRIOS DE
PRESIDENTES DA PROVÍNCIA, 1880, p. 4).
4 RECONSTRUINDO A HISTÓRIA DA ALFABETIZAÇÃO NA PROVÍNCIA
DO ESPÍRITO SANTO NA DÉCADA DE 1870: DIALOGANDO COM OS
TEXTOS E MÉTODOS DE ENSINO
Nossa proposta, neste capítulo, é reconstruir a história do ensino da leitura e
da escrita nas classes de ensino primário da província do Espírito Santo, na
década de 1870. Procuramos analisar os programas de ensino, os métodos e
os materiais impressos utilizados nas escolas de primeiras letras. Iniciamos
nossas análises pelos métodos propostos em documentos oficiais para regular
as práticas de ensino, buscando contextualizar o que foi proposto em termos
desse ensino com os textos extraídos dos documentos que regulamentaram a
instrução pública e o que era aprendido pelos normalistas, porque
consideramos que as práticas de ensino eram iniciadas nas escolas normais
da província. Essas instituições foram aliadas dos regulamentos de instrução
primária e contribuíram para difundir práticas de ensino no Espírito Santo na
década de 1870. Finalizamos o capítulo, analisando livros didáticos que
circularam na província.
Nossas análises estão fundamentadas nas leituras bibliográficas de Monroe
(1987), Faria Filho (2000), Souza (2006), Saviani (2007), Gontijo (2008) e
outros. As contribuições desses autores foram muito importantes porque
explicitaram o funcionamento das escolas de ensino elementar no século XIX.
A leitura da obra de Monroe possibilitou a visualização da organização do
ensino elementar em outros países, o que nos permitiu contextualizar os
modos de ensino praticados na província com o funcionamento das escolas de
outras localidades. As leituras das obras de Faria Filho, Souza e Saviani
contribuíram na medida em que trouxeram reflexões acerca da instrução
pública nas escolas de primeiras letras brasileiras. Nessa direção,
possibilitaram contextualizar e analisar os dados pertinentes à instrução
pública na província do Espírito Santo com os fatos ocorridos nas demais
províncias brasileiras. Finalmente, as análises de Gontijo trouxeram reflexões
acerca da instrução do ensino primário na província do Espírito Santo na
década de 1870. Dialogando com esses autores, pudemos compor este
capítulo, tentando capturar detalhes da estrutura de funcionamento da escola
de instrução primária do Espírito Santo na década de 1870.
4.1 O MÉTODO SIMULTÂNEO
Segundo Miguel (2007, p. 46), o método simultâneo foi introduzido pelo francês
Jean Baptiste de La Salle. Ele idealizou uma escola de formação de
professores em Paris, porém não obteve êxito. De acordo com Filho (2000), o
método simultâneo colaborou para uma nova organização do tempo escolar.
Diferentemente do método mútuo, na proposta do ensino simultâneo, o
programa de estudos era unificado e graduado, “[...] permitindo a ação do
professor sobre vários alunos simultaneamente” (RAZZINI 2004, p. 3) fortalece
as afirmações de Filho (2000), explicitando que essa organização colaborou
para que as classes se tornassem mais homogêneas. Também acrescenta que
tal “[...] forma de organização se opunha ao ensino individual [...]” (RAZZINI,
2004, p. 3).
Para Monteverde (1869, p. 5), o método simultâneo consistia em dividir os
discípulos em classes ou turmas para que os conteúdos escolares fossem
ministrados a todos num só tempo. Até mesmo a leitura seguiria esse ritmo. No
método individual, o conteúdo era ministrado a um aluno de cada vez. Sobre o
ensino simultâneo, ele aponta:
[...] o Professor manda ler a cada um em voz alta, e os outros vão
seguindo com seus livros ou cadernos. O professor passa
sucessivamente de uma a outra classe, tendo o cuidado em que
estejão empregadas em alguma cousa aquellas a que não assiste
neste intervalo [...] (MONTEVERDE, 1869, p. 5).
Monroe (1987), citando Diesterweg transcreveu uma das características do
ensino individual. Comparando-o com o método simultâneo, observamos as
diferenças entre os dois sistemas:
[...] Cada criança lê sozinha, o método simultâneo não era
conhecido. Uma após outra encaminhava-se para a mesa que está
sentado o professor. Este aponta uma letra de cada vez e a nomeia
a criança repete depois dele, então exercita a criança em reconhecer
e exercitar cada letra [...] (DIESTERWEG, apud MONROE, 1987, p.
256).
Souza (2006, p. 37) compreende que o método individual cedeu lugar ao
ensino simultâneo: “[...] A escola unitária foi paulatinamente substituída pela
escola de várias classes e vários professores [...]” (SOUZA, 2006, p. 37).
Analisando as afirmações de Monteverde (1869), consideramos que o ensino
simultâneo iniciou o que, hoje, denominamos de salas seriadas, porém essas
classes ainda não eram separadas por série, o que existia era uma espécie de
escolas unidocentes18, que prevaleceram no Brasil por quase todo o século
XIX. Segundo Monteverde (1869, p. 6), “[...] Sucede muitas vezes que um
18 Na década de 1870, no Espírito Santo, muitas escolas funcionaram com uma única classe. Os professores lecionaram para uma classe heterogênea num mesmo espaço e horário. Segundo Pereira (2000), no século XX, especificamente em 1930, sob a justificativa de densidade demográfica das áreas rurais, alguns professores continuavam lecionando para alunos de diferentes níveis, idades e habilidades.
único professor não basta para as diversas classes, principalmente se o
número de alunos é considerável [...]”. Nessa direção, entendemos que, dentro
de uma mesma sala de aula, existiam alunos com vários níveis de
conhecimento. Os apontamentos do autor revelam, ainda, que, nas classes
seriadas, os professores precisavam de ajudantes. Na escola capixaba da
década de 1870, as dificuldades na adoção do método simultâneo levaram à
utilização do método misto, que consiste numa espécie de mescla dos três
métodos conhecidos: o simultâneo, o mútuo e o individual.
Considerando que as práticas de ensino constituídas no Brasil refletem as
configurações do ensino em outros países, compreendemos que o método
simultâneo, a exemplo do ensino mútuo, também objetivou a escolarização de
um quantitativo maior de pessoas a custos baixos para os governos das
províncias. Segundo Souza (2006, p. 36), um dos grandes desafios da escola
do século XIX foi o de implantar o método simultâneo para difundir a
escolarização das massas.
Souza (2006) analisa os estudos de Giolito (2006) e assinala a existência de
um dicionário referente à educação. Esse dicionário teve uma edição no ano de
1911 e trazia informações importantes sobre o que foi pensado em matéria de
renovação pedagógica no século XIX. De acordo com as ponderações feitas
nesse material, Souza (2006, p. 38) transcreveu um pouco sobre a prática do
ensino na França em 1874 (ano de publicação da primeira edição do referido
dicionário). Nas transcrições que se seguem, observamos a existência da
aplicação do método simultâneo. O dicionário intitulado Dicionário de las
ciências de la educación enfatiza:
[...] Sistema de organização vertical do ensino por cursos ou níveis
que sucedem. As características principais da escola graduada são:
a – agrupamento dos alunos segundo um critério nivelador pelo geral
e a idade cronológica para obter grupos homogêneos; b –
professores designados a cada grau; c – equivalência entre um ano
escolar do aluno e um ano de progresso instrutivo; determinação
prévia dos conteúdos das diferentes matérias para cada grau; e o
aproveitamento do rendimento do aluno é determinado em função do
nível de estabelecido para o grupo e o nível em que se encontra; f –
promoção rígida e inflexível dos alunos grau a grau [...] (GIOLITO,
2006, apud SOUZA, 2006, p. 37).
Tentamos evidenciar, nas ponderações acima registradas, como a escola
simultânea trouxe contribuições para um ensino graduado que se configurou na
organização de nosso modelo de ensino na atualidade. E mais:
[...] A classificação igualitária (homogênea) dos alunos constitui-se
numa das grandes revoluções na organização da escola elementar,
considerada a essência da escola graduada. Juntamente com ela
surgem as noções de classe e série [...] (SOUZA, 2006, p. 38).
Os estudos de Souza (2006, p.39), baseando-se em Hamilton (1989),
demonstram, ainda, que o ensino simultâneo passou por revisões pedagógicas
ao longo do século XIX. Entre 1820 e 1830, significava ensinar leitura e escrita
e a prática de repetição de lições de forma uníssona. Em 1830, o uso dessa
metodologia significava o comando do professor e a obtenção de atenção
simultânea de todos os alunos da classe. Ainda citando o mesmo autor, a
pesquisadora ressalta um grande interesse por parte dos professores quanto à
utilização do sistema de ensino simultâneo, no entanto o número de escolas de
ensino mútuo era um obstáculo. No Espírito Santo, esse obstáculo não estava
relacionado apenas ao número de escolas, ou seja, havia, por parte dos
educadores, o receio de perder o controle da disciplina. Sobre a avaliação do
uso do método simultâneo, um dos inspetores da província do Espírito Santo
relatou: “[...] faltão-lhe aquela disciplina e inspeção inerentes ao méthodo que
admite monitores [...]” (O ESPÍRITO-SANTENSE, n.41 p. 1 1871).
Além disso, segundo Souza (2006), faltavam professores preparados para
atuar com o método simultâneo, as aulas existentes eram ministradas por
monitores, que ainda utilizavam o método individual. Nos outros países, as
dificuldades não anulavam as tentativas de uso desse sistema. Na Inglaterra,
por exemplo, “[...] os grupos de alunos mesclavam-se em seções ou divisões
para ser trabalhada a instrução simultânea em galerias [...]” (SOUZA, 2006, p.
39).
A partir de 1860, o termo ensino simultâneo passou por mudanças. Assim, de
acordo com Souza (2006, p. 40), instrução simultânea e ensino de classes
passaram a ter o mesmo significado de ensino simultâneo. Segundo os
estudos da autora, um manual escrito em 1869, intitulado The teacher’s
manual of method and organization, recomendava que a palavra classe deveria
ser aplicada a qualquer agrupamento de crianças a cargo de um professor
recebendo a mesma matéria (SOUZA, 2006, p.40). O trabalho desse
pesquisador revela que, nesse período, os debates concernentes à educação
pública giravam em torno da organização do ensino e das escolas, ou seja, se
as aulas deviam ser ministradas “[...] em salas comuns ou separadas – quem
deveria ensiná-las – se um professor ajudante ou titular [...]” (SOUZA, 2006, p.
40). O resultado dos debates foi a construção de escolas com classes seriadas
na Inglaterra ainda nos anos de 1870.
De acordo com o regulamento de 1877, adotado no Espírito Santo, o
presidente Afonso Peixoto de Abreu Lima também pretendeu construir edifícios
para o funcionamento das aulas, mas não obteve êxito. Nessa direção, muitas
escolas continuaram funcionando em casas alugadas. O artigo 34 endossava a
existência de casas para funcionamento das aulas no lugar dos edifícios
próprios para esse fim:
[...] Art.34. – As escolas devem funcionar em edifícios próprios,
especialmente construídos para este fim.
Na falta alugar-se-há provisoriamente casas particulares, que tenhão
as precisas acomodações [...] (REGULAMENTO DA INSTRUÇÃO
PÚBLICA DE 1877, p. 6).
Souza (2006) também analisou as pesquisas de Giolitto (1983) no que se
refere à educação na França no período de 1815 a 1882 e ressaltou que,
nesse país, o método simultâneo trouxe a necessidade de dividir as escolas.
Nesse contexto, tal divisão implicou rever idades e séries dos alunos, as séries
a serem cursadas, a duração dos estudos considerados elementares (básicos)
e a estruturação dos programas de ensino.
Na província do Espírito Santo, o método simultâneo foi concretizado
oficialmente a partir de 1848 e, em 1861, o regulamento da instrução pública
reforça sua utilização, explicitando, no artigo 62:
[...] O método de ensino será em geral o simultâneo podendo-se
adoptar outro por ordem da presidência sob informação do inspetor
de districto, o qual informará acerca dos livros que devão ser
admitidos nas aulas, sendo a tal respeito ouvidos os demais
inspetores de sorte que a presidência possa escolher as obras mais
idôneas para o ensino em toda a província [...] (REGULAMENTO DA
INSTRUÇÃO PÚBLICA DE 1861, p. 6).
No capítulo pertinente à situação do ensino público no Espírito Santo na
década de 1870, assinalamos que as autoridades imperiais desejavam
uniformizar os modos de ensino da língua, mas também tinham conhecimento
da precariedade do estado da educação pública. Por esse motivo, garantiam
a possibilidade de escolha de metodologias diferentes do ensino simultâneo,
caso fossem necessárias. De fato, escolhas diversas ocorriam, no entanto
não se davam somente por conta da precariedade das condições de ensino
na província, mas também pelos objetivos educacionais que perpassavam as
práticas. Apesar de o método simultâneo ter sido oficializado na província, ele
encontrou dificuldades para utilização efetiva, principalmente, porque os
professores da província possuíam, de certa forma, autorização para utilizar
outros métodos, de acordo com a necessidade de cada escola.
Dessa maneira, muitas vezes, o método simultâneo era amalgamado ao
mútuo não somente pelo fato de se pensar na aprendizagem do aluno, mas
também para garantir a manutenção do silêncio nas classes. Nas escolas, só
eram permitidas as movimentações dadas por ordem de comando: leia,
escreva, repita o texto em voz alta, movimente apenas os olhos para
acompanhar a leitura. O texto extraído da imprensa, na década de 1870,
permite visualizar quão difícil era ser criança num tempo em que os
movimentos corporais eram regidos pela vontade dos adultos em fabricar
sujeitos passivos:
[...] O modo por que nós hoje criamos nossos filhos, é muito
differente do que era na antiguidade. Quando devíamos ser mais
previstos e mais experientes, porque nos dizemos mais civilizados,
não o somos. O resultado é termos homens débeis em vez de
homens robustos e fortes. Conforme as leis de Minos, a vida das
crianças de certa idade devia ser dura e sóbria. Isto é costumavam-
se a contentar-se com pouco, a sofrer o calor e o frio. A caminhar
sobre o chão áspero e pedregoso, e vestiam-na com vestidura
simples, larga e ligeira, tanto no inverno como no verão. Os bons
educadores aconselham que as crianças se dê uma cama dura, quer
dizer apenas um enxergão, que concorrerá para lhes dar força e
robustez. Não se tema que não durma uma criança, dorme até sobre
pedras. Se a quereis enfraquecer dai-lhes cama macia. Bom é
também que elas se habituem a suportar algumas privações como,
por exemplo, a fome e a sede. Deste modo saberão que o apetite é o
melhor cozinheiro. Looke diz as mães de família: “Se o vosso filho te
pedir de comer entre as horas para isso destinadas, não lhe deis
mais que um pedaço de pão seco. Se for por ter fome comei o
alimento muito bem. Se for por vício ou gulodice, pouco importa que
não o coma”. E também conveniente proporcionar-lhes o exercício
que esteja em harmonia com suas forças. Uma criança gosta de
brincar, correr e saltar, porque a natureza lho pede. Goldsmith diz
que o exercício e a temperança são os dois pólos sobre o que
repousa a educação corporal da infância. São esses entre os outros
meios que contribuem para fortificar-lhes os órgãos e assegurar-lhes
a saúde. Bem basta o que nos colégios e liceos têm depois de
sofrer, em desconto do vigor e talvez da vida [...] (CORREIO DA
VICTÓRIA, 1871, n. 81, p. 2).
Essa visão de como a criança deve ser educada influencia a proposição nos
regulamentos da instrução pública capixaba de penalidades e prêmios que
devem ser aplicados, respectivamente, aos maus e aos bons alunos.
Porém é importante ressaltar um aspecto que chamou nossa atenção no
período investigado e que, também, pode ser considerado em outros
momentos da história da alfabetização. Os materiais impressos que serviam de
base para o ensino da leitura e da escrita, independentemente do método de
ensino adotado oficialmente, enfatizavam quase sempre os mesmos
conteúdos. Esses materiais traziam lições de cunho moralizante, que tinham
por finalidade apontar para os malefícios da indisciplina. As leituras constituíam
verdadeiros tratados de regras de comportamento. Como exemplo,
apresentamos uma das propostas de leitura de Luis Francisco Midosi.
A obra desse autor, que será analisada posteriormente de forma mais
detalhada, circulou na província do Espírito Santo durante o século XIX,
especialmente, nas décadas de 1860 e 1870. Ao visualizar a imagem que se
segue de uma das páginas do livro do autor, percebemos como os textos
tinham a finalidade de incentivar a disciplina. Assim, antes do texto, intitulado
“Funestos efeitos da falta de cautela”, está escrita a seguinte mensagem: “−
Meninos, sede attentos e quietos; e jámais vos chegueis perto do lume”
(MIDOSI, 1877, p. 39). A imagem, no início da página, ajuda a construir os
sentidos do texto: devido à falta de cautela, a menina teve a pior pena. Ela
morreu queimada ao brincar com fogo.
Figura 3 – Página do livro de Luis Francisco Midosi.
Fonte: Arquivo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Nas práticas do ensino simultâneo, as leituras poderiam ser feitas em voz
audível por toda a classe. Desse modo, os comportamentos e as normas de
conduta valorizados na sociedade poderiam ser apropriados de forma coletiva.
Nessa direção, o ensino simultâneo, com a ajuda de alguns livros, como os de
Luis Francisco Midosi, era fundamental, pois, ao realizarem a leitura coletiva,
os alunos aprenderiam a um só tempo sobre as normas de comportamento.
No regulamento de 1861, artigo 4.º, parágrafo 1.º, previa-se a inspeção das
práticas dos professores sobre a conduta dos alunos. Os inspetores deviam,
nas suas visitas, verificar:
§ 1.º Se os professores cumprem as obrigações, não somente pelo
que respeita ao ensino, como também a educação dos alumnos [...]
(REGULAMENTO DA INSTRUÇÃO PÚBLICA NO ESPÍRITO SANTO,
1862, p. 6).
O relatório do presidente José Fernandes da Costa, já mencionado neste
trabalho, ao tratar da instrução pública na província, em 1861, apresenta uma
descrição da prática de ensino do professor João Ortiz quanto ao método
simultâneo. A descrição evidencia que os alunos desse professor liam
coletivamente um mesmo texto e, ao mesmo tempo, registra que a leitura
correta de um dos integrantes da classe ajudava outros alunos a aperfeiçoarem
a leitura, pois, enquanto um aluno efetuava a leitura, os demais deveriam
acompanhar o texto com os olhos. Schwartz e Falcão (2006, p. 8), ao
analisarem as práticas de leitura do ensino simultâneo, transcreveram algumas
especificidades desse método. Assim, “[...] cada discípulo lê a seu turno, ao
passo que os mais estão attentos seguindo com os olhos a leitura que aquele
faz com a minha aprovação [...]” (ORTIZ, apud SCHWARTZ & FALCÃO, 2006,
p. 8).
Um aspecto que chama a atenção, na fala do professor João Ortiz, diz respeito
aos níveis de desenvolvimento dos alunos. Ela indica que, mesmo que as
pretensões dos métodos de ensino fossem a homogeneidade, as classes não
eram homogêneas. Além disso, podemos considerar que a homogeneidade,
em termos de aprendizagem e desenvolvimento, era quase impossível, devido
a vários fatores. Dentre eles, a idade dos alunos que variava muito. Na década
de 1860, eles poderiam ser matriculados na escola pública dos 6 aos 15 anos.
É possível que muitos desses alunos tenham iniciado seus estudos em
momentos diferenciados.
Na legislação de 1877, podemos observar a adoção de mais um método de
ensino e a abertura para a adoção de outros métodos. Consideramos que essa
abertura pode ser devida à falta de livros e papéis para que todos estivessem
realizando a mesma lição simultaneamente, ou seja, a dificuldade de prover as
escolas com materiais apropriados ao método simultâneo:
[...] O méthodo do ensino será, em geral, o misto ou simultâneo;
poderá todavia o Inspetor Geral, ouvindo o Conselho Diretor, e
precedendo informações dos Delegados, determinar, quando julgar
conveniente, que se adopte outro em quaesquer escolas, conforme
os recursos e necessidades [...] (REGULAMENTO DA INSTRUÇÃO
PÚBLICA, 1877, p. 7).
O artigo 27 determinava as matérias que seriam ensinadas nas escolas de
ensino primário. Observando a listagem dos conteúdos, concluímos que o
programa de ensino continuava seguindo a mesma direção das propostas do
Regimento das Escolas de Primeiras Letras de 1871, que regulamentou o
método mútuo, e do regulamento de 1873, que regulamentou o método misto.
O ensino da língua continuou priorizando a caligrafia e a leitura de textos
religiosos. Segundo os parágrafos do referido artigo, as escolas ensinariam
leitura e caligrafia, elementos de gramática portugueza, exercício de
correspondência epistolar, doutrina cristã e elementos da história sagrada,
elementos de história e geografia pátria, “principalmente da província”,
elementos de aritmética e suas aplicações em números inteiros quebrados e
complexos, sistema legal de pesos e medidas, costuras e trabalhos de agulha
mais necessários ao sexo feminino.
É importante destacar que o regulamento de 1877 ainda previa que os
professores fariam exames dessas disciplinas para serem contratados para
lecionar. No momento do exame, os professores também fariam exames
pertinentes aos métodos de ensino:
Art. 51. Versará este concurso ou exame não só sobre as matérias de
que trata o Art. 27, como também sobre o systema e méthodo do
ensino, guardando-se a respeito as instruções que forem dadas pelo
Presidente da província, sob a proposta do inspetor geral.
(REGULAMENTO DA INSTRUÇÃO PÚBLICA, 1877, p. 8).
Os livros escolares, conforme o artigo 16, parágrafo 2.º, do regulamento de
1877, deveriam passar pela revisão do Conselho Central que, também, era
responsável pela adoção dos compêndios e livros para as escolas. O artigo 35
complementava que “[...] Não serão admittidos livros ou compêndios que não
tenham sido competentemente autorizados pelo Conselho Central [...]”
(REGULAMENTO DA INSTRUÇÃO PÚBLICA DE 1877, p. 7).
De acordo com as listagens de solicitações de livros feitas pelos professores,
observamos que estes continuaram solicitando os livros de Emílio Achilles
Monteverde e Abílio César Borges. Conforme já dito, isso significa que a
adoção oficial desse ou daquele método não provocava mudanças
significativas nas práticas de ensino da leitura e da escrita, pois as obras
traziam os mesmos conteúdos, ou seja, continuaria existindo a primazia de
textos que enfatizavam valores morais, religiosos e de boa conduta, além de
aspectos específicos do ensino da língua, que serão analisados
posteriormente.
Os registros localizados no livro de número 358 evidenciam que o ensino da
língua também continuava priorizando a cópia e a gramática. Dizemos isso
porque, na página 21, no ofício de número 112, datado de 6 de outubro de
1878, o professor da paróquia de São Mateus estava marcando exames de
caligrafia e ortografia de seus alunos.
Outro aspecto que nos leva a perceber que, independentemente do método
adotado oficialmente, as práticas de ensino não foram alteradas foi a
solicitação do conserto de “taboletas” para as aulas de primeiras letras A
leitura da página 24 do livro de número 358, da série 751, localizado no Arquivo
Público Estadual do Espírito Santo, evidencia o uso desse material. Segundo
pesquisas de Faria Filho (2008), essas “taboletas” se constituíam de pequenas
mesas cercadas de umas “taboletas” cheias de areia bem lisa e serviam para
que as crianças realizassem suas atividades de escrita. Segundo o autor,
essas “taboletas” substituíam o uso dos papéis e das lousas. Ao analisar a
utilidade desse material, observamos que eram muito semelhantes aos usos
das tabuinhas e dos areeiros que constituíam as práticas de ensino no método
mútuo e misto.
4.2 O MÉTODO MÚTUO
Mencionamos, no tópico referente à organização da instrução primária no
Brasil, que o governo imperial promulgou a lei de 15 de outubro de 1827,
definindo que o método oficial deveria ser o mútuo. O artigo 5.º dessa lei
tratava do provimento dos recursos para o funcionamento das escolas:
Para as escolas do ensino mútuo se aplicarão os edifícios, que
couberem com a suficiência nos lugares delas, arranjando-se com os
utensílios necessários à custa da Fazenda Pública e os professores
que não tiverem a necessária instrução deste ensino, irão instruir-se
em curto prazo e a custa dos seus ordenados nas escolas das
capitais.
A legislação de 1827 só foi conclamada oficialmente na província capixaba em
1828. Nas comemorações do centenário da instrução pública no Brasil, em
1927, Archimino Mattos evidenciou a “execução” da referida lei na câmara dos
deputados:
[...] Aos quinze de fevereiro de 1828 nesta cidade de Victória Capital
da Província do Espírito Santo no Palácio do Governo reunido o
Conselho do mesmo governo, em uma das salas de suas secções,
pelo Ex.mo Presidente da Província foi apresentada a Carta da Lei de
15 de outubro de 1827 a cerca da creação de escolas de primeiras
letras a qual ao depois de lida resolveu o Conselho se escrever a
todas as Câmaras para cumprimento do artigo 2.º da mesma Lei,
que manda que o presidente da Província em Conselho e com
audiência das respectivas Câmaras enquanto não estiverem em
exercício os Conselhos Geraes, marcarão um número e localidades
das escolas podendo extinguir as que existem em logares pouco
populosos e remover os professores dellas para crearem dando
conta a Assembléia Geral para final resolução; e que em
observância do artigo 15, chamem-se os actuaes professores para
se instruírem no método Lancaster [...] (MATTOS, 1927, p.12).
Observamos que a província acatou a recomendação de utilização do método
mútuo. Segundo Saviani (2007), ao adotar esse método, o governo imperial
almejou ampliar a oferta de escolarização a custos baixos. Monroe (1978, p.
348) considera que o método lancasteriano se prestou a educar as massas.
Nessa direção, o ensino mútuo possuía os mesmos objetivos do método
simultâneo. Considerando que, com esse método, os investimentos eram
menores, o Império tratou de se apropriar desse recurso para cumprir, mesmo
que precariamente, sua função de escolarizar a população. Segundo Saviani
(2008, p. 129), não existe elogio ao método mútuo. Citando Vilella (1999), o
autor diz que o mais importante nesse processo era o quantitativo de pessoas
que poderiam ser atendidas. Porém o método mútuo é adotado no Espírito
Santo, na década de 1870, pelo Regimento Interno das Escolas de Primeiras
Letras. É importante observar que não havia indicação explícita de sua
utilização nos regulamentos da instrução pública que vigoraram nesse período.
Porém, conforme mencionamos, o método misto era concebido como a
possibilidade de utilização de três métodos simultaneamente (individual,
simultâneo e misto). Assim, podemos pensar que, para os gestores da
educação, na época, não havia diferenças conceituais significativas entre os
métodos.
Na concepção iluminista, não era mais possível a ignorância intelectual. O
método mútuo ensinaria os conteúdos escolares com muita disciplina e de
forma gradual. Leitura, escrita e aritmética seriam ensinadas às crianças com a
formalidade requerida pela escola. Além disso, a educação doméstica seria
substituída pela educação das massas:
[...] O grande serviço que o sistema lancasteriano prestou aos
Estados Unidos foi o de acostumar o povo às escolas para as suas
massas, a contribuir para a manutenção delas individualmente e,
gradualmente educar o povo para considerar a educação como uma
função do Estado. Além disto, introduziu um melhor sistema de
graduação, pois todas as escolas lancasterianas eram rigorosamente
graduadas à base do trabalho de aritmética e também da ortografia e
da leitura. Daí a promoção ser possível numa só matéria mesmo
quando não era em outra. Isso trouxe um melhor arranjo e
classificação do material e uma melhor organização e disciplina
escolares [...] (MONROE, 1978, p. 348).
Gontijo (2008) ressalta que o método mútuo já vinha sendo utilizado no Brasil
desde 1808 e só em 1827 ele foi oficializado. Citando Manacorda (1995), a
pesquisadora afirma que, nos anos da Revolução Francesa, adolescentes
eram instruídos pelo mestre e por monitores. Estranhamente, atualmente e em
pleno século XXI, esse tipo de ensino ganha força novamente no Brasil com a
adoção de um modelo precário de educação a distância.
De acordo com Monroe (1978), o ensino mútuo é oriundo dos movimentos
filantrópicos religiosos. Segundo esse autor, esses movimentos entraram como
elementos constituintes na formação do sistema de escolas públicas. De
acordo com o autor, os movimentos filantrópicos religiosos foram responsáveis
pela expansão dos sistemas de escolas públicas, pois as escolas filantrópicas
“[...] eram mantidas por organizações privadas, principalmente por empresas
voluntárias fundadas por movimentos religiosos e filantrópicos [...]” (MONROE,
1978, p.46), mas a sua manutenção era de responsabilidade do Estado. Ainda
conforme aponta o autor, existia também a filantropia em que o próprio Estado
reconhecia e aceitava toda a responsabilidade pela educação do povo. Era
uma espécie de gratuidade fundamentada na generosidade, ocupando o lugar
da gratuidade e da obrigatoriedade do ensino a pequenas parcelas da
população, pois nem todos tinham acesso à escola.
O sistema monitorial de Bell Lancaster empregava meninos mais velhos para
instruir os mais jovens. Lancaster seguiu esse modelo na Inglaterra conforme
fizera anteriormente no asilo de órfãos. Segundo Monroe (1987, p. 348), o
sistema de ensino lancasteriano se tornara substituto do sistema de escolas
estruturadas pelo Estado. No entanto o autor esclarece que o fato de esse
método ter tido relações com as escolas das igrejas inglesas resultou em
recusas quanto à sua utilização, especificamente, em algumas escolas da
América.
No Espírito Santo, o método mútuo foi concretizado no Regimento das Escolas
de Primeiras Letras em 1871. É interessante observar que, em 1870, a Câmara
dos Deputados discutiu sobre a questão da responsabilidade da Igreja com a
educação. O jornal O Espírito-Santense, de 11 de novembro de 1870, publicou
o texto da seção na Câmara dos Deputados ocorrida no dia 5 de novembro de
1870, que discutiu essa questão. Vejamos parte do diálogo:
[...] O Sr. Cintra: − Não preciso mais que a supressão de 11 escolas
para poder dar aos professores um ordenado maior de 600$000 e
aos párochos uma gratificação é mais do que suficiente. É na
Inglaterra, Sr. Presidente, que a educação é confiada a igreja; é
nesse paiz que todos nós invocamos como norma do systema
representativo que a instrução pública é confiada aos ministros de
Deus. Porém não desejo nem de leve introduzir na província o
systema completo da instrucção primária da Inglaterra. Entendo
todavia que nesse systema mais coisa que nos pode ser útil. Essa
idéia dos vigários serem também professores seria muito
conveniente debaixo dos dois pontos de vista [...].
[...] O Sr. Paiva: − Todos nós deveríamos querer que o alphabeto
fosse penetrasse nos pontos mais remotos da província.
O Sr. Cintra: − Mas não com esse systema [...]. (O ESPÍRITO-
SANTENSE, n.13 p. 1, 1870).
Podemos avaliar, considerando o contexto da época, que entregar a educação
ao cargo de religiosos poderia representar uma espécie de declaração de
impotência do Estado em prover esse importante serviço. O governo imperial
precisava demonstrar sua eficiência, porque, nesse período, o discurso
republicano estava em plena efervescência.
O Regulamento das Escolas de Primeiras Letras do Espírito Santo estabelecia
sobre todos os aspectos da organização dessas aulas. Segundo Gontijo
(2008), entre os 17 títulos da lei de 1871, constavam os materiais de ensino. O
artigo 90 tratava especificamente dos artefatos a serem utilizados nas escolas.
Assim, cada classe deveria ter a imagem do Senhor Crucificado, a cadeira do
professor, bancos e escrivaninhas, tinteiros fixos, um relógio, um quadro
pintado de preto, esponja e giz, ardósia, papel, tinta, lápis, livros para meninos
pobres, modelos de escritas ou traslados, dois quadros, um branco com
moldura dourada para lançar os nomes dos meninos ótimos e um quadro preto
para lançar os nomes dos meninos “máos”. Para cada aula, deveria haver
ainda o regulamento e o regimento.
O jornal Correio da Victória, de 9 de abril de 1872, publicou uma lista de
materiais que estavam sendo solicitados por uma das escolas da província.
Comparando a listagem publicada no periódico com os materiais listados no
Regimento das Escolas de Primeiras Letras, observamos que, muitos materiais
solicitados eram também listados no Regimento. Vejamos:
[...] De ordem do Il.mo Sr. Inspetor desta tesouraria faço público que
por determinação da província tem esta repartição de contratar o
fornecimento dos seguintes objetos necessários à aula de primeiras
letras da colônia do Rio Novo do Sul, a saber:
1 Imagem do Senhor crucificado.
1 Relógio de parede.
2 Livros em branco de 50 folhas de papel almaço.
25 ardósias.
50 lápis para as mesmas.
1 escrivaninha de metal.
6 dúzias de lápis de páo.
2 Ditas canetas.
1 canivete fino.
1 copo de folha.
4 resmas de papel machina liso e pautado.
3 garrafas com tintas.
12 exemplares do método facílimo de Monteverde.
12 compêndios de Catecismo da doutrina cristã pelo Cônego
Pinheiro.
6 Compêndios de caligrafia por Parcker.
12 ditos de compêndio de aritmética por Coruja.
12 modelos de escrita completos.
12 libras de giz.
½ quarto de esponja de giz. (CORREIO DA VICTÓRIA, n. 39, p. 4,
1872).
Segundo Gontijo (2008), a imagem de Nosso Senhor era colocada na parede
por cima da cadeira do professor, num santuário, o que nós, hoje,
denominamos oratório. Os bancos e escrivaninhas eram inclinados com
tinteiros fixos colocados em frente ou ao lado do professor, o relógio também
ficava em frente do professor, pois o ajudava na regulação dos tempos de cada
aula.
A campainha, o tinteiro, o areeiro, o lápis, a régua e o canivete ficavam sobre a
mesa do professor. Convém ressaltar que a orientação para a utilização dos
materiais era extensiva à disposição do mobiliário. Dessa maneira, “[...] Os
bancos e as escrivaninhas deveriam ser dispostos na frente ou ao lado do
professor, de modo que este de sua cadeira, colocado em um tablado mais
alto, pudesse observar o que se passava na sala, mesmo nos lugares mais
distantes [...]” (GONTIJO, 2008, p. 81).
Lendo os trabalhos de Inácio (2006) sobre o ensino da língua na província de
Minas Gerais, conseguimos capturar alguns detalhes sobre o areeiro
explicitado por Gontijo (2008). Segundo Inácio (2006), o areeiro era uma caixa
com areia onde os alunos, principalmente os mais novos, treinavam a escrita
antes de passarem ao uso do papel.
Também encontramos documentos solicitando penas e tinteiros. O livro de
número 239 da série de 751 livros que guardavam os ofícios remetidos pelas
autoridades imperiais aos presidentes da província do Espírito Santo evidencia
que alguns professores solicitavam esses objetos. Alguns ofícios do livro
denominado Fundo de Educação de número 69 também explicitaram pedidos
de envio de tabuinhas. Segundo Silva (2006, p.12), as tabuinhas tinham a
mesma função do areeiro. De acordo com a autora, num artigo referente à
apropriação do método mútuo no Brasil, as crianças recebiam uma tábua com
areia onde escreviam com o dedo as lições. Não podemos inferir que esse
procedimento também era utilizado no Espírito Santo, mas podemos dizer que
esse era um dos suportes que também foram utilizados no momento da escrita,
pois encontramos muitas solicitações desses materiais.
A aquisição dos materiais solicitados não era fácil. A lista requerida pela escola
de primeiras letras de Rio Novo do Sul, por exemplo, não seria enviada de
qualquer maneira. Segundo informações do mesmo jornal que a publicou,
haveria uma espécie de licitação. Sobre a compra dos materiais listados, o
jornal noticiou que venceria a melhor proposta: “[...] As pessoas a quem convier
este fornecimento deverão apresentar suas propostas em carta fechada, até o
dia 17 do corrente mês, preferindo-se aquela que maiores vantagens oferecer à
Fazenda Nacional [...]” (CORREIO DA VICTÓRIA, n. 29, p. 4, 1871). As
licitações também seriam feitas para a compra de mobiliário. De acordo com a
Resolução de número 61, publicada no jornal Correio da Victória, de 15 de abril
de 1871, antes da compra sempre deveria haver a “proposta do licitante”.
Na maior parte das vezes, as solicitações não eram atendidas. Quatro anos
após a aprovação do Regimento das Escolas de Primeiras Letras de 1871,
percebemos a ausência de materiais para a prática do método mútuo:
[...] O relatório apresentado ao presidente da Província, Domingos
Peixoto, pelo inspetor-geral da Instrução Pública, Joaquim Gomes da
Silva Neto, em junho de 1875, informava que não existiam em
nenhuma escola da Província, os materiais e utensílios
imprescindíveis às Escolas de primeiras letras previstos no
Regimento e que o estado das escolas era lamentável [...]
(GONTIJO, 2008, p. 81).
A fala do presidente transcrita por Gontijo (2008) espelha a raridade de
materiais nas escolas de primeiras letras da província na década de 1870. É
importante considerarmos que a solicitação de materiais deveria ser feita em
conformidade com o regimento de 12 de abril de 1871. Era preciso que os
professores solicitassem os materiais e os livros didáticos para uso dos alunos,
observando uma tabela pré-fixada que determinava a quantidade de objetos e
o valor destinado a cada escola. Com essa tabela, a quantidade de livros que
chegava às escolas não era suficiente para todos. Além disso, alguns desses
impressos eram vendidos, e uma quantidade bem insignificante era doada aos
desfavorecidos economicamente, preferencialmente, aos que apresentassem
por escrito condições de extrema miséria.
Se adquirir os livros por meio dos atestados de pobreza era difícil, comprá-los
também não era muito fácil. Em 1872, o diretor da instrução pública, Joaquim
José Fernandes Maciel, enviava um relatório ao presidente da província, Dr.
Antônio Gabriel de Paula Fonseca, reclamando que os livros e compêndios
eram vendidos a preços muito elevados:
[...] É também precioso pôr-se termo ao vexame introduzido na
província de se obrigar os pais ou tutores a comprarem para
compêndios livros de preço elevado, quando pelo $ 4.º do art. 21 do
regulamento de 20 de fevereiro de 1848 os compêndios devem ser
accommodados à economia e necessidade das localidades [...] (O
ESPÍRITO-SANTENSE, n. 218, p. 3, 1873).
Quanto à aplicação dos objetos solicitados pelos professores, não encontramos
relatos. Os documentos analisados remeteram apenas às listagens de
solicitações e envios. Temos apenas algumas suposições abstraídas a partir
das leituras dos próprios documentos e textos de jornais que nos foram
disponibilizados para análise. Nessa direção, retomamos a primeira listagem
referente aos pedidos da escola de Rio Novo do Sul. Uma das primeiras coisas
que percebemos é a existência de dois tipos de lápis, um para escrita na
ardósia e outro denominado lápis de páo. Segundo Inácio (2006), de fato
existiram os lápis de gesso, que eram próprios para escrever em ardósias.
Esse é um dado muito interessante e nos permite visualizar que, na província
do Espírito Santo, o professor utilizava, pelo menos, dois recursos para as
atividades de escrita dos alunos. A ação do professor em discriminar os dois
objetos significa que havia abertura na legislação para que os dois materiais
fossem solicitados. O pedido do giz é indicativo de que os conteúdos não eram
aprendidos somente no livro didático, mas o professor também passava
conteúdos no quadro pintado de preto. A solicitação dos compêndios de
caligrafia por Parker e dos modelos de escrita são indicativos de que, na escola
de Rio Novo do Sul, havia aulas de escrita, e as crianças utilizavam os modelos
de letras também constituídos nesses materiais. A solicitação do livro de Emílio
Achilles Monteverde é indicativo de que o professor adotava o mecanismo da
memorização, pois, conforme nos aponta Corrêa (1999, p. 6), Monteverde
indicava a metodologia da memorização dos conteúdos.
Os livros de leitura e de caligrafia e os compêndios mencionados nas listagens
eram úteis à leitura e, também, à cópia de lições, objetivando o perfeito
traslado das letras. O “méthodo” facílimo de aprender a ler de Emílio Achilles
Monteverde e a obra de Luis Francisco Midosi, também adotada na província,
eram constituídos por lições que se prestavam também a esse fim, chegando a
apresentar, na mesma página, textos religiosos com modelos de letras
distintos, para que as crianças pudessem memorizar e copiar.
Ao analisar o regimento de 1871, Gontijo (2008, p. 79) expressa que “[...] o
professor tinha o dever de cultivar nos seus alunos a inteligência, a memória, o
respeito a Deus, à pátria, à família e a si mesmo”. As colocações da autora são
pertinentes, porque, além do anúncio de compra de compêndios citados no
jornal O Espírito-Santense, encontramos várias relações de envio desses
materiais relacionados ao ensino da religião, no livro de número 69 do Fundo
de Educação, referente à instrução pública na província do Espírito Santo na
década de 1870, localizado no Arquivo Público Estadual da cidade de Vitória,
ES.
Retomando a leitura da solicitação feita pela escola de Rio Novo do Sul,
percebemos o quanto os conteúdos religiosos eram priorizados na década de
1870. Ao solicitar o livro de Emílio Achilles Monteverde e o Catecismo da
Doutrina Cristã pelo Cônego Pinheiro, a escola estava fortalecendo esse
ensino, já que a obra de Monteverde também trazia lições de cunho religioso.
Conforme mencionamos anteriormente, quando falávamos a respeito do
método simultâneo, na maioria das vezes, as escritas transcritas dos livros e de
outros impressos eram feitas em pedras de ardósia. Assim, na prática do
método mútuo, quando os alunos não escreviam em ardósias, tabuletas ou
tabuinhas, eles escreviam em folhas, utilizando as penas, a caneta ou o lápis.
Mesmo assim, esses materiais não eram artefatos comuns a todos. Os alunos
pobres, por exemplo, só teriam acesso se os recebessem como objeto de
doação por parte da Secretaria de Instrução Pública. Os professores
solicitavam esses materiais, mas muitas vezes esses não eram
disponibilizados:
[...] Diretoria de 10 de dezembro de 1872, expedindo o seo offício de
15 do mez do findo no qual acompanhou um pedido de papel, penas,
tinta, lápis e canetas para serem distribuídos pelos alumnos pobres
que freqüentam a eschola a sua casa não podem ter lugar a sua
requisição [...] (LIVRO DE REGISTRO DA EXPEDIÇÃO DE
OFFÍCIOS DA SECRETARIA DE INSTRUÇÃO PÚBLICA DE 1872,
p. 98).
Nas reflexões postas até aqui, elencamos alguns impressos que foram
solicitados pelas escolas e enviados pela Secretaria de Instrução Pública, com
a devida autorização da Tesouraria provincial, mas ressaltamos que outros
materiais constituíram as práticas de ensino do método mútuo das escolas da
província na década por nós delimitada. Especialmente nos três primeiros anos
da década de 1870, existiu a comercialização de impressos numa dita
typografia, localizada na Ladeira do Sacramento, número 8, em Vitória. Dentre
os materiais comercializados, encontravam-se os livros de Emílio Achilles
Monteverde, os Cathecismos da Agricultura, manuais e eclesiásticos e a
Selecta Brasiliense escrita por José Marcelino Pereira de Vasconcellos, muito
utilizada nas escolas públicas, e outros materiais como as Cartas do A B C e as
fábulas de La Fontaine. Esses dois últimos materiais não foram mencionados
no registro de solicitação e envio de materiais, mas supomos que foram
utilizados na instrução doméstica ou escolar, pois a comercialização se deu
com intensidade. Os jornais Correio da Victória e O Espírito-Santense
apresentavam diariamente a propaganda desses materiais.
É importante ressaltar que a constituição dos materiais estava totalmente de
acordo com o regulamento, mas isso não significava que os resultados eram
satisfatórios, nem que os livros eram condizentes com as classes a que se
destinavam. Sobre os livros utilizados nas escolas da província, o diretor da
instrução pública, Joaquim José Fernandes Maciel, também disse, ao final do
ano de 1872:
[...] Esta multidão de livros dispendiosos e que não estão ao alcance
da inteligência da criança não tem outro fim senão favorecer aos seos
autores a extracção delles. Sobrecarregando aos pais ou tutores dos
alumnos [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE, n. 168 p. 3, 1873).
Não encontramos legislações proibindo que, nas práticas do método mútuo,
fossem utilizadas as Cartas do A B C, mas é de nosso conhecimento que o Dr.
Abílio, que doava seus livros para as províncias brasileiras, não era favorável à
utilização delas. Talvez, isso coibisse as autoridades de utilizar esse material
nas escolas. O então escritor era terminantemente contra a utilização dessas
cartas e deixava isso bem claro na apresentação de seus livros. Já na
introdução, mencionava sua opinião:
[...] Defeitos do ensino primário: Em nossas escholas quase sem
excepção, o método pelo qual se ensina a leitura, é ao mesmo passo
que o mesmo segundo à natureza e a razão, o mais penoso as
creanças. Mette-se nas mãos de um menino de 5 anos de idade uma
carta de a, b, c à cuja composição não presídio Idea alguma de
systema e nella ao turno de três, quatro e maiz longos meses de um
trabalho enfadonho e deprimente, a quase sempre a custa de bem
dores e lágrimas aprende ele a conhecer e nomear as letras e
liga'las em síllabas eternas, vasia de sentido, a combinar as mesmas
em palavras, chegando afinal a ler corretamente, mas como um
papagaio sem consciência do que faz e sempre sem o mínimo de
interesse pela leitura, por não compreender a significação das
palavras, e portanto sem vantagem para o seu desenvolvimento
intelectual. Ao mesmo tempo as cartas do a,b, c metem-se naquelas
mãozinhas tão pequenas e tão incapazes de movimentos seguros e
regulares, em umma Penna e um lápis, e manda-se-lhe que escreva!
Novo martírio, novas dores, novas lágrimas. E sempre a perspectiva
medonha da palmatória a amargar-lhe os camndidos e inocentes
dias da infância e a fazer-lhes odiosos os mestres, a escola e o
estudo!! [...] (BORGES, 1870, p. 3-4).
Algumas ponderações do escritor são muito pertinentes. De fato, precisar
memorizar as letras e as sílabas contidas naquelas cartas não era nada fácil.
Segundo Cagliari (2002, p. 122), as letras têm um valor funcional. Esses
valores são “[...] fixados pela história das letras, pelo processo de adaptação a
uma determinada língua e, principalmente, pela ortografia das palavras [...]”.
Isso não era levado em conta no ensino a partir das cartas. Quanto às
afirmações do Barão de Macahúbas, cremos que seus questionamentos tinham
relação com o fato de ele querer defender o uso de suas próprias obras.
Quanto menos as cartas fossem utilizadas, mais espaço haveria para a
utilização de seus livros. Era muito comum que os autores defendessem seus
materiais. Além de ganhos financeiros, isso representava prestígio. Dizemos
isso, porque a prática de ensino proposta pelo Dr. Abílio não se distanciava do
ensino mecânico. Pelo menos, no seu terceiro livro de leitura, ao qual nós
tivemos acesso, o autor apresentou uma sequência de textos pertinentes à
leitura para a aprendizagem dos conteúdos de ciências, história e moral nada
próximos da compreensão da criança. Por certo, esse era um material
destinado às crianças que já dominavam a leitura, mas denota a compreensão
de ensino abarcada pelo barão.
Para além dos materiais, a prática do ensino mútuo na década de 1870 não era
uma atividade corriqueira. Da mesma maneira que os materiais, os conteúdos
escolares também estavam submissos à legislação. A organização do ensino
previa horários para o ensino dos conteúdos e o programa de cada matéria.
Segundo análises de Gontijo (2008), o horário destinado às aulas era de cinco
horas e meia:
[...] O tempo de cada matéria, em cada dia da semana, foi
rigorosamente distribuído. Assim, por exemplo, na segunda-feira,
das 8h30min às 9h30min, nas classes dos meninos, seria trabalhada
a escrita e, nas classes das meninas, a escrita e a leitura em prosa.
Das 9h30min às 10h30min para os meninos seria trabalhada a
leitura e, para as meninas, a leitura em versos. Das 10h30min às
11h30min, os meninos e as meninas estudariam gramática. Das
11h30min às 12h, seria ensinada aritmética para as meninas e
leitura para os meninos. Exceto nas quintas-feiras, em que era
ensinada aritmética, no ultimo horário, nas classes do sexo feminino,
deveriam ser ensinados costura e outros trabalhos de agulha [...]
(GONTIJO, 2008, p. 81).
Ressaltamos que a organização do horário descrita por Gontijo não era
inflexível, pois o importante era o cumprimento da carga horária e das
respectivas matérias, e algumas escolas se organizavam com horários de
entrada e saída distintos. Segundo notícias publicadas no dia 16 de janeiro de
1871, no jornal O Espírito-Santense, o Colégio Nossa Senhora da Penha, onde
estudavam as meninas, distribuía as disciplinas de leitura, escrita, aritmética,
história sagrada e doutrina cristã pela manhã, das 9h ao meio-dia. A parte da
tarde era destinada aos trabalhos de agulha.
É interessante analisar que as aulas destinadas aos trabalhos de agulha
assumiam uma prática social de cunho mercadológico muito importante na
província. A primeira atividade econômica mais desenvolvida era a agrária, a
segunda era a de costura. Nos mapas da província anexados ao Dicionário
histórico, geográfico e estatístico do Espírito Santo, publicado no ano de 1878,
há registros da intensidade desse trabalho. Mesmo as paróquias mais distantes
da capital possuíam um grande número de mulheres que realizava esse ofício.
Nessa direção, aprender os trabalhos de agulha não estava ligado apenas às
atividades domésticas, visando servir aos esposos.
Os alunos eram avaliados quanto aos aspectos da caligrafia e da ortografia.
Segundo o artigo 89 da lei de 1871, eles deveriam escrever um trecho de
algum texto, de forma que a primeira linha fosse escrita em letra maiúscula, e
as demais linhas, em letra cursiva. É importante observar que a avaliação não
servia somente para aprovar ou reprovar, mas também para classificar os
sujeitos em capazes e incapazes: “[...] A classificação dos alunos era feita
semanalmente e atuava como mecanismo que, certamente, proporcionava
competição entre eles [...]” (GONTIJO, 2008, p. 82). Os trabalhos de Gumperz
(1987) explicitam o caráter classificatório e seletivo da escolarização da leitura
e da escrita no século XIX. Segundo esse autor, a escola passou a ser um
lugar de testagem, um lugar de diferenciação dos sujeitos:
[...] O desenvolvimento sistemático da alfabetização e escolarização
significou uma nova divisão na sociedade, entre os educados e os
não educados (ou escolarizados e não escolarizados) e uma nova
forma de controle social cada vez mais poderoso que podia ser
exercitado através do currículo [...] (GUMPERZ, 1987, p. 40).
Ao observar o artigo 12 do Regimento das Escolas de Primeiras Letras de
1871, percebemos que professor e aluno passavam por um verdadeiro ritual no
momento da aula. Tudo se iniciava a partir dos resultados de cada avaliação.
Era um ritual coletivo em que todos participavam observando a hierarquia. Os
chefes de sala e os monitores auxiliavam o professor na realização das
atividades em sala de aula. Essa era uma forma de dividir as tarefas e fazer
funcionar o método mútuo seguindo as prescrições do regimento:
[...] Ao chegarem à classe, os alunos deveriam tomar seus lugares,
indicados de acordo com a classificação que tivessem nessa
matéria. Dez minutos após o começo das aulas, atendendo a um
sinal de campainha do professor, deveriam ficar de pé para fazer
uma pequena oração, que era recitada pelo professor e repetida
pelos alunos de uma só vez (Art. 12). Após a oração e mediante um
sinal do professor, os chefes das classes, alunos mais adiantados
em caligrafia – deveriam encaminhar-se à mesa do professor para
receberem papel, penas, exemplares e outros materiais necessários
às aulas e distribuí-los entre os colegas. Cada aula poderia ter até
oito classes. Após a distribuição, eles tomariam seus lugares nas
classes que lhes fossem designadas para realizar os trabalhos
“debaixo do maior silêncio”. Durante o tempo em que os alunos
escreviam, o professor e o monitor deviam percorrer as classes para
verificar e corrigir a posição de seus corpos “e o modo defeituoso de
pegar a penna” (Art. 16). Somente à medida que todos os alunos iam
terminando, o chefe da classe tomava o seu lugar para fazer sua
prova de caligafia. Quando o monitor percebia que as classes
estavam concluindo a prova, comunicava esse fato ao professor,
que, ao sinal da campainha, anunciava o início da correção das
provas caligráficas, começando nas classes mais atrasadas. Diante
da mesa do professor, as provas feitas pelos alunos eram entregues
pelo chefe da classe por ordem de adiantamento dos alunos. O
professor fazia, então minuciosamente, a correção de uma escrita
para que toda a classe aproveitasse, e apontava ligeiramente, nos
outros trabalhos, os "defeitos mais salientes" (Art.20). Ele devia
observar o tempo, para que a correção não ultrapassasse uma hora,
e devia cuidar, ainda, para compensar, no dia seguinte, a correção
que foi abreviada em decorrência do tempo. A correção dos
trabalhos de caligrafia deveria ser feita individualmente pelo
professor [...] (GONTIJO, 2008, P. 83).
Escrever exigia critérios. Era uma prática que regulava o modo de pegar na
pena e também o corte desse objeto. Escrever nas formas prescritas exigia dos
monitores e do professor um trabalho de observação dessa atividade.
A realização de todo o trabalho na sala de aula com a ajuda dos monitores era
um preceito adotado pelo seu divulgador Joseph Lancaster. De igual modo, a
presença dos chefes de classe também colaborava com as práticas em sala de
aula. Quando finalizavam as tarefas de auxiliar os alunos, os monitores e os
chefes de classe iam realizar suas atividades escolares. Nesse momento, eles
realizavam, inclusive, as avaliações, não eram poupados em nada, suas
avaliações tinham o mesmo peso dos demais alunos.
O parágrafo 16 do Regimento das Escolas de Primeiras Letras era bem claro
quanto às atividades de escrita durante as aulas. O professor deveria explicar
aos alunos a forma das letras, observando inclusive as inclinações e a largura
de cada uma. O ato de escrever consistia numa atividade mecânica com
critérios previamente prescritos legalmente. Os estudos de Gontijo (2008)
esclarecem que, também, era feito o uso de tabelas para que os professores
trabalhassem a escrita na sala de aula. A pesquisadora salienta que esse
conteúdo era trabalhado observando-se o grau de dificuldade:
1.º Linhas rectas e curvas.
2.º Outras formas de linhas primitivas.
3.º Linhas superiores e inferiores.
4.º Em papel A B C em letras maiúsculas.
5.º A B C em letras minúsculas.
6.º Sentença em cursivo de exemplares ou dictadas.
As atividades referentes à leitura também não escapavam do mecanicismo.
Gontijo (2008), ao analisar o parágrafo 14 do Regimento das Escolas de
Primeiras Letras de 1871, percebeu um ensino da leitura voltado para a
pronúncia das palavras. As práticas referendadas pelo regimento de 1871 não
foram modificadas nos anos subsequentes à década:
[...] o trabalho com a leitura compreendia a pronúncia clara e exata dos
sons consonantais e vocálicos, a aprendizagem de que as letras têm
vários sons, o entendimento dos textos lidos, a distinção dos
elementos de uma frase, além do que poderíamos chamar de leitura
fluente. Assim podemos observar no Regimento a tentativa de
conciliar, no ensino da leitura, elementos de decifração da escrita e de
entendimentos do texto [...] (GONTIJO, 2008 p. 84).
Para ensinar a leitura, os professores obedeciam a regras. Novamente o início
dependia de avaliações, pois tudo começava pelas classes mais adiantadas:
[...] Os alunos das classes mais adiantadas deveriam ler em prosa e
verso em dias alternados e letra manuscrita uma vez por semana. O
professor só deveria passar para a leitura de versos após os alunos
aprenderem a ler corretamente. Dessa forma o professor só tomava
a leitura das classes mais adiantadas: primeira e segunda. Nas
demais, o trabalho deveria ser feito pelo chefe de classe. Ele tomaria
a lição dos discípulos “a meia voz” para não perturbar aos outros
alunos. Ao professor caberia, nesse momento, circular pelas classes
para verificar o cumprimento do dever pelos chefes das classes.
Após terminar o trabalho, o chefe de classe deveria ficar de pé diante
da classe, cuidando para que fosse cultivado o silêncio. Nesse
contexto é importante acentuar que o trabalho inicial com a leitura
ficava a cargo dos chefes das classes. O monitor deveria comunicar
ao professor o término dos trabalhos de leitura. Ao sinal da
campainha do professor os chefes, começando pelas classes mais
atrasadas, deviam dar parte dos “alunnos” que não “souberão” as
lições, a fim de serem castigados ou “repreendidos”. Os castigos e
as repreensões também foram previstos no Regimento [...]
(GONTIJO, 2008 p. 85).
A punição daqueles que não alcançavam resultados satisfatórios poderia variar
da expulsão da escola a ficar de joelhos em cima do banco. Essas espécies de
torturas prescritas não foram únicas. Segundo relatos do Barão de Macahúbas
(1870), a palmatória também era utilizada. Conforme explicitamos na exposição
do método simultâneo, esse tipo de emulação só foi proibido legalmente no
regulamento de 1873.
Conforme mencionamos no início deste tópico, existiu um esforço das
autoridades em potencializar a utilização do método mútuo com a formação de
professores. Na década de 1870, a província do Espírito Santo também se
preocupou em dar continuidade às práticas de ensino da leitura e da escrita
pelas vias do método mútuo. Para alcançar esse objetivo, em 18 de outubro de
1872, a câmara dos deputados aprovou a criação de uma escola normal com a
finalidade de fortalecer a instrução primária. Antes dessa escola, existia um
“Lyceo”, que se encarregava de instrumentalizar os professores, no entanto os
parlamentares compreendiam que a dita instituição não estava cumprindo essa
função:
[...] É preciso meus senhores que o indiferentismo não tenha mais
tempo e guarida. Porque a êlle bem se póde attribuir o estado infelliz
da instrucção pública nesta província.
O Sr. Heliodoro: — O nobre deputado sabe que, mesmo a respeito
da escola normal, já se fez tentativas.
O Sr. Presidente: — Attenção! O Sr. A. Pires. Entendo Sr. presidente
que a creação de uma escola normal será um dos melhores meios
para engrandecimento da moral da província do Espírito Santo.
O Sr. Heliodoro: — Mas já existe uma escola normal...
O Sr. C. Daemon: — Mas temos um lycêo.
O Sr. Pires: — O Sr. Presidente acha conveniente e de intuitiva
necessidade preparar, desde já os mestres de modo, que possão de
futuro instruir e dirigir os sôs discípulos, fazendo-os dignos de si. Não
peço meos senhores que qualquer auctoridade forme e nomeie
professores; o que quero é que se funde uma escola normal onde
elles se habillitem de modo, a poderem bem desempenhar o sêo
ministério.
O Sr. B. Freire: — Apoiado. [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE, n. 135, p.
2, 1872).
De acordo com as ponderações dos parlamentares, a escola normal seria
muito importante. Prepararia os mestres "para o futuro". Na perspectiva dos
deputados, esse futuro era o método mútuo, mas essa prática exigia
preparação dos professores em longo prazo. Nesse contexto, a Assembleia
Provincial redigiu os artigos da "nova" instituição de formação de professores.
Foram 47 artigos, que evidenciaram a prática de ensino do método mútuo. A
escola normal ficaria localizada na capital e se encarregaria de ensinar aos
futuros mestres a prática do método mútuo, denominado na lei de método
elementar. Na instituição, os(as) normalistas aprenderiam conteúdos a serem
ensinados aos alunos nas aulas da instrução primária:
[...] Art. 2.º: Esta escola compreenderá duas cadeiras, uma na qual
se ensinará praticamente o método de ensino elementar,
compreendendo a leitura, escripta, ortographia, elementos da
gramátyca portugueza, princípios da dotrina cristã, as quatro
operações da aritmética, prática de quebrados, decimais e
proporções. – Outra em que se ensinará calligraphia, desenho linear,
gramática philosóphica da língua portugueza, com anályse e
imitação dos nossos clássicos [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE, n. 135,
p. 2, 1872)
Analisando o programa de ensino da escola normal, observamos que os
conteúdos eram semelhantes aos da escola de instrução primária. De igual
modo, a prática a ser ensinada nessa instituição continuaria privilegiando a
cópia nas aulas destinadas à escrita, e, mais uma vez, os conteúdos referentes
à doutrina cristã eram regulamentados. Convêm ressaltar que os artigos que
regulamentaram o ensino na escola normal também regulavam as matérias
indicadas para serem lecionadas nas aulas da instrução primária naquele
período:
[...] Art. 15: Os professores das aulas de instrução primária ensinarão
a ler, escrever, as quatro operações de aritmética prática, de
quebrados, decimais e proporções, elementos de gramática
portugueza, princípios do desenho linear e doutrina cristã [...] (O
ESPÍRITO-SANTENSE, n. 135 p. 3, 1872).
É interessante analisar que a escola normal também seria encarregada de
apresentar a literatura clássica. Isso é indicativo de que os estudantes da
instrução primária também poderiam ter tido os clássicos portugueses como
referência de leitura e também de escrita, pois seus futuros mestres
aprenderiam a analisar e a imitar essa literatura, o que, com certeza, refletiria
nas práticas de ensino das classes de alfabetização.
Diante das ações das autoridades provinciais em organizar o ensino pelas vias
do método mútuo, o resultado foi a utilização desse modelo durante toda a
década de 1870, pois a adoção do método misto, em 1873, e a sua
manutenção no regulamento de 1877, juntamente com o método simultâneo,
indicam a possibilidade de o sistema de monitoria continuar a ser utilizado nas
escolas para garantir a disciplina na classe, já que uma das grandes
dificuldades para a utilização do método simultâneo estava ligada ao receio dos
professores em não conseguirem manter a disciplina.
Queremos ressaltar que o ensino da língua não alcançou êxito com a prática
do método mútuo. Mesmo depois de tentar uniformizar a prática, com a criação
de escolas de formação de professores, os problemas persistiam, porque,
assim como no presente, no passado, a melhoria da educação e,
consequentemente, dos índices de alfabetismo não é exclusivamente uma
questão de métodos.
4.3 O MÉTODO MISTO
Para Thomé da Silva, presidente da província no período de 1872 a 1873,
organizar a instrução pública significava, entre outras coisas, prover as
camadas populares do ensino da leitura e da escrita, uniformizando os
métodos de ensino. Nessa direção, dizemos que Thomé da Silva também
acreditava que o ensino pudesse ser organizado a partir da formação de
professores:
[...] Apesar de deficiente como era, e já tive ocasião de dizer-vos, a
authorização, que já havíeis conferido à presidência para reformar a
instrução pública julgando todavia, de maior necessidade a creação
de uma Escola Normal, creei-a como tereis de ver, sob a forma
modesta de um simples internato. Tanto basta para se começar a
preparar os Professores e uniformisar na província a instrução
pública [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE, n.218 p. 1, 1873).
A escola normal pensada na administração de Thomé da Silva foi aprovada em
20 de maio de 1873, trazendo para si a responsabilidade de habilitar sujeitos
para o exercício do magistério. Um dos maiores desafios da instituição
consistia em aprimorar as práticas de ensino na escola primária. Uma das
características do século XIX foi o interesse pela escola elementar. O artigo 1.º
trouxe a seguinte redação:
[...] O fim da escola normal da cidade da Victória é dotar a Província
com um pessoal de professores habilitados para o ensino da
instrução primária por meio methódico e educação exemplar [...] (O
ESPÍRITO-SANTENSE, n.218, p. 1, 1873).
Considerando os dados coletados nos jornais da província da década de 1870,
entendemos que a escola normal instalada em 1873 ensinava os métodos de
ensino existentes e, ao mesmo tempo, instruía os(as) normalistas quanto aos
conteúdos que seriam ensinados nas classes de alfabetização. Segundo o
jornal O Espírito-Santense, de 24 de junho de 1873, a escola normal instalada
no Atheneu Provincial contava com salas de aula do ensino primário19 anexas
ao seu “prédio”, e essas salas de aula eram classes de aplicação prática dos
conteúdos ensinados com a utilização do método misto. As aulas de ensino
prático dos normalistas eram fundamentadas pela disciplina denominada
Pedagogia, aprendida no segundo ano. Nessa disciplina, os alunos mestres 19 Nas classes de instrução primária anexas ao Colégio Ateneu, os normalistas praticavam o ensino que deveria ser ministrado nas demais escolas da província, pois essa instituição funcionava como uma escola modelo.
passariam os ideários pretendidos pelo regime imperial, pois era também, no
segundo ano, que os normalistas estudavam as noções de filosofia que
engendrariam suas práticas:
[...] Pedagogia, este ensino se dividirá em três partes: 1.ª da
educação em geral e da educação escolar; 2.ª dos méthodos de
ensino e da disciplina escholar; 3.ª dos caracteres que distinguem o
mestre escola e de seos deveres. O aluno mestre depois de ouvir as
lições do professor as porá em prática na escchola anexa,
encarregando-se da regência de uma classe sob a direção do
professor; ao depois tomará como professor e enquanto um aluno
dirige a escola, os outros dirigem a classe [...] (O ESPÍRITO-
SANTENSE, n. 219, p. 1, 1873).
Analisamos que, no ensino dos métodos, na escola normal, e na prática do
método misto, na escola de instrução primária anexa a essa instituição, existia
uma prática fundamentada no ensino da leitura a partir da soletração. O jornal
O Espírito-Santense retrata essa informação, em 24 de junho de 1873, quando
descreve os conteúdos a serem ensinados na escola primária localizada no
Colégio Ateneu e, também, nas demais escolas da província. Ressaltava-se
que a lei deveria ser seguida com rigor. Havia uma carga horária fixa para a
aplicação do programa curricular. A legislação priorizava a cópia,
preferencialmente, da letra cursiva, pois, no século XIX, escrever em letra
cursiva ampliava as oportunidades de colocação no mercado de trabalho:
[...] Escripta; Este ensino compreenderá linhas e os caracteres das
letras maiúsculas, bastardo, bastardinho e cursiva, sendo este mais
cultivado por ser de mais uso devendo o professor explicar aos
allumnos e por em prática todas as regras de calligrafia:
Orthographia, sendo o exercício verbal o dictado.
Leitura: Este ensino compreenderá o abecedário, soletração, leitura
corrente, fazendo o professor com que os alumnos entenderão o que
lêem, adquirão boa pronúncia ouvindo dos preceitos o exemplo,
gastando-se n'este ensino ¼ da hora para a 1.ª classe, ½ hora para
a segunda, ¾ para a terceira, e uma hora para a 4.ª classe (a dos
pensionistas) [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE, n. 232, p. 2, 1873).
A prática de ensino do método misto também previa a dissociação da leitura e
da escrita, determinando pouco tempo para a leitura. As classes iniciantes
possuíam um tempo bem menor para a aprendizagem desse ensino. A
gramática também seria ensinada, dando-se prioridade a “[...] aplicações de
suas regras; anályses gramatical [...]” (O ESPÍRITO-SANTENSE, n. 232, p. 2,
1873).
O programa de ensino de História do Brasil preocupava-se em ensinar
aspectos pertinentes a geografia e história geral e do Brasil. É importante
analisar que tudo isso deveria ser ensinado pela memorização. A exemplo dos
outros regulamentos, no regulamento de 1873, o ensino moral e religioso foi
lembrado:
[...] Educação moral e religiosa: o professor deve manter ou crear no
coração de seos alumnos as virtudes Moraes propriamente ditas e
religiosas; e para isto conseguir o professor servir-se-há do exemplo
que deve dar elle mesmo; contos Moraes, exercícios religiosos; o
cathecismo, história santa, e consideração das maravilhas da
natureza [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE, n. 232, p. 2, 1873).
Em nossas considerações, as práticas voltadas para o ensino da moral e da
religião utilizaram as fábulas de La Fontaine. Dizemos isso, porque esse ensino
mencionava a leitura de contos morais, e essas fábulas foram comercializadas
na tipografia localizada na capital, já mencionada neste capítulo. O conteúdo
dessas fábulas são lições que ensinam normas de conduta. Além dessas
fábulas, não poderíamos deixar de registrar a circulação da obra O adolescente
educado e instruído na sciência, na moral e na indústria. Não tivemos acesso a
esse material, porém o título nos induz a pensar que a utilização desses
materiais reforçava a educação voltada para a submissão às regras do mercado
de trabalho. Observemos que as leituras dessas obras visavam alcançar o
objetivo de "crear no coração dos alumnos as virtudes moraes", mencionadas na
lei.
As leituras eram complementadas pelo sistema de punições e recompensas
semelhantes às estabelecidas no método simultâneo e mútuo. Esse sistema
seria utilizado tanto para as normalistas quanto para os alunos da instrução
primária. Quanto à “modelagem” dos alunos, a submissão às propostas de
Thomé da Silva foi bem estruturada. Aboliram-se os castigos corporais,
incluindo-se um programa bem fundamentado: ”[...] Os professores não poderão
castigar com palmatória, porquanto o espírito não se rege fazendo-se padecer o
corpo [...]” (O ESPÍRITO-SANTENSE, n. 232, p. 3, 1876). Pressupunha-se que
os corpos não padeceriam durante as aulas, mas, em longo prazo, ficariam ainda
mais conformados com o sistema de divisão de classes e com suas péssimas
condições de trabalho.
Como dito anteriormente, todo o conteúdo era ensinado debaixo do silêncio, mas
ressaltamos que as matérias constituídas no programa do regulamento de 1873
não foram as únicas responsáveis pelo treinamento da boa conduta dos alunos.
No Colégio Ateneu, nas salas de aula, os professores da instrução primária
também cobravam o silêncio. Essa era uma exigência prescrita no parágrafo 7.º
do artigo 22. Fora das salas de aula, existia a imagem física do censor. Este
sujeito cuidava de toda a disciplina da escola. Nesse sentido, era encarregado
de vigiar os normalistas e os alunos matriculados na escola anexa onde
funcionava a escola de instrução primária. O censor deveria residir na própria
instituição. A ele competia manter todo o silêncio. Conforme podemos concluir, a
presença do censor no Colégio Ateneu indica que a disciplina rígida requerida,
nas práticas do método mútuo, continuaria a existir por muito mais tempo nas
escolas da província, pois os alunos aprendizes e alunos mestres estavam
vivenciando esse modelo durante toda a permanência na instituição. Valendo-se
de sons emitidos pela mesma sineta que era utilizada no método mútuo, esse
profissional vigiava e punia por quase 24 horas diárias. Nada passava
despercebido a esse censor. Suas interferências estavam presentes também no
horário de dormir. O artigo 16, que regulamentava o ensino no Colégio Ateneu,
explicita suas funções. Observamos que as crianças eram vigiadas até na hora
do banho. Ao censor caberia:
[...] § 2.º A disciplina, políciamento e economia interna.
§ 3.º Velar que os professores cumpram com os seos deveres,
dando parte ao director das faltas commetidas.
§ 4.º Ter toda vigilância em que nas aulas e no estabelecimento se
mantenha o maior silêncio.
§ 5.º Acompanhar os alumnos pensionistas e meio-pensionistas ao
jantar à uma hora da tarde, sentando-se no lugar competente; e
quando terminar a comida deverá sahir com elles para o lugar
marcado, onde se observará até que a signeta dê signal das aulas.
§ 6.º Às cinco horas da tarde vigiar aos alumnos no recreio, até o
toque de estudo à noite.
§ 7.º Às 9 horas da noite acompanhará os alumnos pensionistas ao
chá; finda a ceia subirá para o dormitório, assistirá ao fechamento
das portas; e só então se retirará para o seo aposento.
§ 8.º Às cinco horas da manhã pelo verão e às seis no inverno
vigiará o alumno na lavagem e no estudo, observando se estão
decentemente vestidos e calçados; feito o que acompanhará os
meninos às 7 ½ horas para o almoço; tudo como para o jantar.
§ 9.º Acompanhar os alumnos à missa nos domingos e à tarde ao
passeio.
§ 10.º Tanto no refeitório como no silêncio, no recreio, ou no passeio,
deverá usar de moderação em seos actos e palavras repreendendo
os alumnos [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE, n. 230, p. 1, 1873).
Estudar nas escolas de ensino misto de 1873 também significava aprender o
ensino prático de geometria, desenho linear e canto:
[...] para quem também terá lugar dois dias da semana, o ensino de
desenho linear prático, suas definições decoradas, mandando o
professor fazer o alumno traçar à mão qualquer espécie de linhas e
figuras de geometria e copiar, à mão com instrumentos modelos de
objetos úteis, planos de construção, etc. Dando-lhes as convenientes
explicações; e bem assim música vocal [...] (O ESPÍRITO-
SANTENSE, n. 232, p. 3, 1876).
Comparando-se os conteúdos estudados pelos alunos na escola de instrução
primária com os conteúdos ensinados na escola normal, concluímos que houve
uma tendência em repassar aos normalistas os mesmos conteúdos que estes
lecionariam nas escolas de instrução primária nos momentos do ensino da
língua. Logo no primeiro ano, ensinava-se a leitura, objetivando que os
normalistas observassem as regras de pontuação, a pronúncia correta das
palavras e a compreensão do texto. Para ensinar aos alunos nas escolas,
também era preciso traçar as letras da mesma forma como os aprendizes da
língua deveriam aprender. Nesse sentido, aos normalistas cabia aprender os
mesmos modelos de letras das crianças. Quanto aos conteúdos da gramática
na escola normal, a prioridade estava fundamentada na gramática normativa.
Para melhor visualização do que estamos analisando, transcrevemos parte do
regulamento do funcionamento das aulas da escola normal:
[...] Art. 10. – No curso dos estudos da escola normal será observado
o seguinte programa empregando os professores uma hora em cada
dia o no ensino das matérias, que formão o referido curso: 1.º Anno,
1.ª cadeira: Leitura: deverá o professor fazer, com que o alumno
observe com exatidão as regras da pontuação, tenha uma pronúncia
fácil, correcta, e compreenda o que lê. Escripta: Este ensino
compreenderá os caracteres de letras maiúsculas bastardo,
bastardinho e cursivo, sendo este mais cultivado, por ser de uso
mais geral; devendo o professor explicar e por em prática o melhor
méthodo de ensino da escripta. Gramática e língua nacional: n'este
ensino o professor fará os alumnos aplicarem-se as regras de
syntaxe e annályse gramatical e lógica; a escripta corrigida pelo
próprio professor ou pelos próprios alunos sob sua direção. Ao
alumnos que forem mais adiantados farão os exercícios de
redacção, extractando ou resumindo o que tiverem lido, e de
composição sobre assumptos usuaes [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE,
n. 219, p. 1, 1873).
Após a listagem dos conteúdos a serem aprendidos na escola normal de 1873,
ficou evidente que os normalistas não eram instrumentalizados para refletir
sobre suas práticas de ensino durante os momentos de ensino da língua,
porque as aulas se constituíam num verdadeiro treinamento. E não nos
esqueçamos de que o treino tinha bases filosóficas muito bem estruturadas,
aprendidas também no segundo ano do ensino normal. Essas bases eram
muito próximas do ensino moral proposto nas escolas de primeiras letras:
[...] Noções de philosophia: objecto da moral; dos diversos motivos
das nossas acções e qual a sua importância relativa; os
phenômenos Moraes, consciência moral, sentimento ou noção do
dever; distinção do bem e do mal; obrigação moral, divisão dos
deveres do homem para consigo mesmo e para com os seos
semelhanttes e para com o Estado; moral religiosa ou deveres para
com Deos; destino do homem [...] (O ESPÍRITO-SANTENSE,
n. 219, p. 1, 1873).
A transcrição das matérias aprendidas na escola normal e ensinadas nas
escolas de instrução primária da província nos leva a analisar que os materiais
utilizados nas escolas de primeiras letras eram conhecidos pelos normalistas.
Dizemos isso porque o maior objetivo da criação da escola normal foi
uniformizar o ensino primário. Nessa direção, compreendemos que os livros de
Emílio Achilles Monteverde, Luis Francisco Midosi e do Dr. Abílio Cesar
Borges, que atendiam muito bem às propostas das instituições de ensino
primário, provavelmente estiveram muito presentes nas aulas da escola normal
para que os normalistas aprendessem a ensinar por eles de forma apropriada.
Nossas análises também se fundamentam na forma de organização curricular
da escola normal. Conforme já dito, naquelas instituições, existia a
obrigatoriedade de que cada normalista praticasse a profissão na escola de
instrução primária anexa à instituição de ensino normal, a partir do segundo
ano. O ensino teórico-prático estava previsto pelo artigo 166, do regulamento
de 1873. Esse aspecto implicava o conhecimento dos materiais que estavam
sendo utilizados nas escolas de primeiras letras, pois, se iriam ensinar os
normalistas, também precisariam conhecer os materiais que estavam sendo
utilizados.
Os materiais listados no parágrafo acima eram constituídos por textos da
doutrina cristã, da história sagrada, da história universal, sem entrar na
particularidade de cada povo, e, ainda, apresentavam toda a escrita desses
conteúdos nos modelos de letras exigidos no programa. Esse é um dado
interessante, pois nos esclarece também sobre a não utilização de outros
materiais nas classes de alfabetização como o método Bacadafá, escrito por
Antônio Pinheiro de Aguiar.
Segundo registro encontrado no livro denominado Negócios do Império,
datado de 13 de dezembro de 1871, o método era destinado ao ensino da
leitura e da escrita. É importante salientar que o Secretário desse Ministério
comunicou ao Palácio do Governo o recebimento do método e que este foi
enviado pelo seu autor:
[...] Palácio do Governo em 13 de dezembro de 1871 Il.mo e Ex.mo Sr.
Tenho a honra de acusar o recebimento de offício que V.Ex.a me
dirigio em data de 21 do mez findo no qual acompanhou um
exemplar das cartas e taboadas para o ensino primário pelo método
denominado bacadafá oferecido pelo seo autor Antônio Pinheiro de
Aguiar, cumprindo-me significar a V. Ex.a que serei solícito fazendo
conhecido e vulgarizado sobre o dito método nesta província [...]
(OFÍCIOS EXPEDIDOS PELO SECRETÁRIO DE NEGÓCIOS DO
IMPÉRIO NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO, 1871, p. 198-
199).
Segundo Shueler (2007), o autor do método Bacadafá era professor e
propagava que a utilização desse material possibilitaria a leitura em apenas 20
dias. Ele lecionava na escola pública como professor de instrução primária da
3.ª classe e recebeu autorização para experimentar a ideia em sua classe.
Dessa forma, ensinava aos alunos pelo método de sua autoria. Era seu desejo
ver seu método divulgado. Nesse sentido, enquanto ensinava aos alunos,
também ensinava aos seus adjuntos. Entretanto seu maior divulgador foi o
professor Antônio Estevam da Costa e Cunha. Esse professor foi avaliador do
método Bacadafá na classe em que seu autor lecionava. Na ocasião, Antônio
Estevam da Costa e Cunha aprendeu a ministrar o método Bacadafá,
atestando seu bom resultado. A partir daquele momento, foi nomeado pelas
autoridades da instrução pública da Corte para ser o divulgador daquele
material que considerava genuinamente nacional.
Analisando o prólogo de um exemplar da obra de Antônio Pinheiro de Aguiar
editada em 1877, percebemos que a publicação do material ocorreu na década
de 1870, mas, em 1858, o autor já havia participado de uma exposição, em que
apresentou sua metodologia. Já na década de 1850, o autor fora aprovado de
forma extraoficial com relação ao seu trabalho. Assim, “[...] foi no dia 7 de
novembro de 1858 que em uma exposição pública, em São Cristovão, provou
que em vinte lições os meninos conseguirão ler em leitura corrente [...]”.
Segundo o próprio autor, ele expôs seu material em outras ocasiões e, em
nenhum momento, foi contestado quanto às propostas de ensino da língua
constituídas em seu livro. Diante das aprovações, as publicações foram
iniciadas com a devida autorização das autoridades provinciais. Sobre os
propósitos de sua prática, o autor evidenciou a pretensão de reorganizar o
ensino primário para além do ensino da leitura e da escrita:
[...] Dessa forma, viabilizava, simultaneamente, os processos de
aprendizagem de três ramos: escrita e leitura (também chamados
“ramos literários”), desenho e música (referidos como “ramo
artístico”) e aritmética (a “contabilidade”), que continuaria a ser
ensinada pelo clássico recurso das tabuadas, sempre cantadas em
voz alta, individual e/ou coletivamente, de “cor e salteado”. Com isso,
o objetivo era proporcionar a prática destes saberes de forma ligeira,
num processo crescente de dificuldade, em que incluíam-se
progressivamente a aprendizagem de sílabas e letras, a leitura
vagarosa, corrente ou ligeira e expressiva ou analítica, além das
regras escriturais de sintaxe, gramática, ortografia e fonética
(entoação de voz em “leitura alta e baixa”) [...] (SHUELER, 2007, p.
102).
Tivemos acesso somente às páginas do livro de Antônio Pinheiro de Aguiar
referentes ao ensino da leitura e da escrita. Todavia a explanação de Shuller
(2007) nos deixa à vontade para dizer que seu livro também contemplou
conteúdos de Matemática. Além disso, a própria divulgação feita no Espírito
Santo dizia que um dos conteúdos era a tabuada.
O método Bacadafá apresentava momentos em que as crianças eram levadas
a pensar nos sons das sílabas. Segundo Mortatti (2000), a própria fonética
começa a ser pensada na metade do século XIX, passando a auxiliar o estudo
biológico da linguagem. Era o início de uma época que se pensava sobre a
fisiologia humana que envolvia a produção da fala.
Analisando as páginas do livro referente ao ensino da leitura e da escrita,
encontramos uma prática que conjugava elementos da silabação e da
palavração. Utilizando nomes de uma família de quatro personagens indígenas,
Antônio Pinheiro de Aguiar iniciava a alfabetização das crianças contando uma
“historieta” em que eram mencionadas pequenas sentenças formadas por duas
vogais:
[...] Para conhecimento das vogais estabeleceu-se a historieta
seguinte: O índio pai achando-se doente gemia constantemente
desse modo ai, ai, ai. Um carreiro passando pela porta, ouvindo esse
gemido fez parar o carro com esse gemido ô, ô, ô para o boi parar e
perguntou: Quem está gemendo? Eu, eu, respondeu o doente. Eis
aqui os sons das cinco vogais. a i e u o [...] (AGUIAR, 1877, p.10).
Após o ensino das cinco vogais, o autor ensinava as outras dezesseis letras do
alfabeto (as consoantes), que constituíam os nomes dos personagens
indígenas: O pai (Bacadafá), a mãe (Gajalamá), a filha (Naparasa) e o filho
(Tavaxaza). As consoantes utilizadas nos nomes dos personagens indígenas
seriam as bases da constituição das sílabas formadas por consoantes e vogais.
Figura 3 – Método bacadafá ou leitura abreviada de Antônio Pinheiro de Aguiar.
Fonte: Acervo do Arquivo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Considerando a exposição do autor, evidenciada na imagem acima, Shueler
(2007, p. 106) assinala que o ensino da língua consistia em partir do concreto
para o abstrato:
Acerca desta consideração, o próprio autor explica que, no seu
programa, as crianças aprendiam a ler e a escrever do “mais
elementar ao mais complexo”, do concreto ao abstrato, misturando,
sucessivamente, a percepção gráfica, fonética e semântica de letras,
sílabas, palavras e frases.
Compreendemos que Aguiar (1877) concebia que a apropriação da leitura por
parte da criança acontecia de forma gradual. Esse é um dado muito importante,
pois deixa transparecer que ele também se apropriou das concepções de
ensino concretizadas em livros que foram amplamente utilizados no Espírito
Santo. Isso poderia nos levar a analisar que a proposta de ensino desse autor
deveria ter sido aceita sem reservas para utilização nas escolas de primeiras
letras da província, no entanto isso não aconteceu. Não encontramos
documentos que pudessem indicar a sua adoção ou uso financiado pelos
cofres públicos.
Na época em que a província do Espírito Santo recebeu o método bacadafá
para divulgação, a escola pública de instrução primária estava regulamentada
pelo Regimento das Escolas de Primeiras Letras. É importante destacar que,
de acordo com esse documento, o ensino se daria pelas vias do método
mútuo, e as práticas de ensino da escrita pressupunham uma rotina
determinada, com horários fixos para os exercícios de caligrafia. O método
bacadafá não priorizava as cópias, nem o traslado das letras no momento
inicial do ensino da língua. Além disso, apresentava apenas letras na forma de
imprensa. Não encontramos páginas em letras cursivas destinadas a cópia.
Segundo Shueler (2007), a ausência desse tipo de atividade num livro
destinado ao ensino da leitura representava uma inovação, pois os demais
autores enfatizavam muito o uso da letra cursiva. Porém, considerando o
currículo previsto nos regulamentos da instrução pública e no Regimento das
Escolas de Primeiras Letras, esse material não era adequado. Schueler (2007,
p. 107) aponta:
[...] Quanto às inovações desta proposta, são apontadas pela ruptura
com práticas tradicionais de ensino da escrita nas escolas primárias,
que, segundo Antonio Aguiar, enfatizavam a arte da caligrafia, ou
seja, a aprendizagem de uma escritura manuscrita de acordo com
regras e modelos formais, e, ao se preocuparem demasiadamente
com o formalismo estético traziam sérios problemas ao ensino da
leitura e da escrita, pois acarretava longa demora e, muitas vezes, a
saída das crianças da escola sem que tivessem adquirido as
habilidades elementares do escrever [...].
A publicação do método bacadafá se deu em um momento em que a educação
era debatida intensamente. Os periódicos ampliaram o debate e fizeram
denúncias de que a educação escolarizada não estava cumprindo sua função
de prover o ensino das classes populares. Cada vez mais eram cobrados os
resultados no ensino da língua. Na província do Espírito Santo, os mapas
mostraram um grande número de pessoas analfabetas. Diante desse contexto,
era de se esperar que um método como o de Aguiar, que prometia alfabetizar
em 20 dias, fosse oficializado. No entanto isso não aconteceu. Apesar de não
ter, conforme assinala o autor, encontrado opositores, o livro não foi adotado
oficialmente nas províncias.
Shueler (2007) analisa que a prática de ensino da língua proposta por Aguiar
era uma mescla do método sintético com o analítico, porque o autor conjugava
o ensino das sílabas e das letras com a palavração. Isso também contradizia
as propostas de ensino pela soletração, pois essa prática parte unicamente das
unidades menores da língua:
[...] Entretanto, este programa apresentava-se como uma metodologia
intermediária entre os “tradicionais” métodos sintéticos (que incluíam
tanto a denominada soletração do alfabeto, a começar pelas vogais,
quanto a silabação: o b-a - ba) e os “modernos” métodos analíticos,
nos quais predominavam a palavração e a análise de frases, onde a
aprendizagem da leitura se realizava por intermédio da representação
gráfica e fonética das palavras, e de pequenas orações delas
derivadas, mas, sobretudo, de sua decodificação semântica. Nestas
últimas, enfatizavam-se os processos de cognição, interpretação e
produção de sentidos no uso da língua e da linguagem [...]
(SHUELER, 2006, p. 103).
Apesar de ser um livro de publicação nacional, outro fator que pode ter
contribuído para a não utilização desse material é a presença de um ensino da
leitura e da escrita pautado em nomes de personagens indígenas. Ensinar por
sílabas, que constituíam nomes de personagens indígenas, significava falar da
história desses sujeitos. De acordo com o regulamento de 1873, nas aulas de
História, os normalistas deveriam aprender:
[...] Noções de história universal, e história do Brasil: N’este ensino o
professor deve tractar dos grandes agradecimentos dos diversos
impérios, dos progressos notáveis nas sciências e nas artes sem
contudo, entrar com a particularidade sobre a história de cada povo,
devendo pelo contrário, estender-se sobre a história sagrada, que
compreenderá o Antigo e o Novo Testamento, a história Nacional e
com a particularidade a da Província do Espírito Santo [...] (O
ESPÍRITO-SANTENSE, n. 219, p. 1, 1873).
Como já dito, o objetivo da escola normal era uniformizar o ensino primário.
Nesse sentido, se os normalistas não aprendiam nada sobre outros povos,
também não poderiam ensinar. Assim, o artigo transcrito anteriormente nos
ajuda a compreender, dentre outros, a utilização do livro de Emílio Achilles
Monteverde nas escolas, ao invés do método bacadafá. O primeiro trazia rezas
e, também, ensinava os grandes feitos dos europeus. Assim, as propostas de
Monteverde estavam em harmonia com as orientações do regulamento de
1873. Vejamos as páginas do livro de Monteverde que se seguem:
Figura 4 - Páginas 118 e 119 do Méthodo facílimo para aprender a ler tanto letra redonda como a manuscrypta no mais curto epaço de tmpo possível.Fonte: HTTP:// WWW.redalfa.estudiantesunlu.com.ar/galerias/portugal/galculturamaterial/in dex.php?list=2
Figura 5 - Páginas 118 e 119 do Méthodo facílimo para aprender a ler tanto letra redonda como a manuscrypta no mais curto epaço de tmpo possível.Fonte: HTTP:// WWW.redalfa.estudiantesunlu.com.ar/galerias/portugal/galculturamaterial/index.php?list=2
Ressaltamos que, apesar de as páginas que reproduzimos para visualização
não trazerem conteúdos pertinentes à alfabetização e sim ao ensino de história
e religião, consideramos oportuno disponibilizá-las para ilustrar a nossa
análise, porque essas páginas também poderiam servir como instrumento de
leitura. E pensemos que era uma leitura cuja base estava fundamentada na
memorização. Retomando as pesquisas de Corrêa (1999, p. 6), lembramos que
a obra desse autor era constituída por um conjunto de perguntas e respostas
que permitia ao leitor, frequentador da escola ou não, realizar as leituras,
responder às questões e, depois, conferir suas próprias respostas. Segundo
esse autor, “[...] a arquitetura do texto no formato de perguntas e respostas
remete a um modelo de ensino centrado na leitura, memorização e repetição dos
conteúdos lidos [...]” (CORRÊA, 1999, p. 6).
As práticas de ensino do método misto também abarcavam um sistema de
testagem que já vinha sendo utilizado no método mútuo. Se, nas práticas do
método mútuo, regulamentadas pelo Regimento das Escolas de Primeiras
Letras, as atividades tinham seu início após o resultado das avaliações, no
regulamento de 1873, os professores eram obrigados a avaliar seus alunos e,
portanto, conforme prescrevia o parágrafo 6.º, a “[...] Marcar sabattinas com
regularidade [...]” (O ESPÍRITO-SANTENSE, n. 230, p. 2, 1873). O parágrafo
8.º, por sua vez, previa que o professor devia “[...] Examinar por meio de
perguntas, e chamando os alumnos à lição se estudaram ou não [...]” (O
ESPÍRITO-SANTENSE, n. 230, p. 2, 1873). Conforme estamos explicitando,
existia a arguição sobre os conteúdos. Esse era o único momento em que as
crianças podiam falar na sala de aula. E era um momento difícil, pois seriam
impressas as marcas de fracasso, caso não fossem bem sucedidas.
Conforme já mencionamos neste tópico, os materiais utilizados para as práticas
de ensino da língua, anteriores à regulamentação do método misto, não foram
modificados. Encontramos várias solicitações de materiais que já vinham sendo
utilizados ao longo das práticas do método mútuo. De igual modo, o comércio
não foi alterado com a oferta de outros impressos. Isso significa que os
sentidos atribuídos ao ensino da língua também não foram alterados. A
exemplo do método mútuo e do método simultâneo, o ensino da língua
privilegiou o ensino mecânico dos sons e das letras. O ensino era centrado no
professor. A criança não era compreendida como sujeito social. As práticas de
ensino não consideravam as relações dialógicas existentes na linguagem. A
forma como estava organizado o conteúdo de leitura e escrita deixa
transparecer que, na província do Espírito Santo, os horários destinados ao
ensino da língua continuavam a ser momentos constituídos por atividades que
privilegiavam a cópia de textos.
4.4 OS MATERIAIS IMPRESSOS DESTINADOS AO ENSINO DA LÍNGUA
QUE CIRCULARAM NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO NA DÉCADA DE
1870
O objetivo deste tópico é analisar as cartilhas e os livros de leitura que
circularam na província do Espírito Santo na década de 1870. Iniciamos nossas
observações ressaltando que, com exceção do método bacadafá, de autoria de
Antônio Pinheiro de Aguiar, esses materiais nortearam as práticas pedagógicas
a partir dos métodos marcha sintética. Nessas circunstâncias, o ensino da
língua privilegiou a soletração e a silabação. Esses materiais estiveram
atrelados à prática dos métodos mútuo, simultâneo e misto, regulamentados na
província do Espírito Santo, e reforçam a ideia de que a mudança dos métodos
de ensino não levou a mudanças importantes nas práticas de ensino.
Ressaltamos que os livros adotados na província do Espírito Santo no período
em que nos propusemos a estudar foram os livros de Abílio César Borges, o
Méthodo Facílimo para Aprender a Ler tanto Letra Redonda como a
Manuscrypta no mais Curto Espaço de Tempo Possível, de autoria de Emílio
Achilles Monteverde, e a obra intitulada o Expositor portuguêz ou rudimentos
de ensino da língua materna, de autoria de Luis Francisco Midosi. O terceiro
livro de leitura do professor Abílio e o livro de Luis Francisco Midosi foram
localizados nos arquivos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, sendo que a
obra completa de autoria de Luis Francisco Midosi também pode ser
encontrada nas páginas da internet. A obra de Monteverde não foi
disponibilizada na sua totalidade, encontramos somente algumas páginas na
internet. Em decorrência da impossibilidade de localização da obra completa
desse autor, não a analisamos neste capítulo. Ressaltamos que estamos
analisando apenas as páginas introdutórias do livro do professor Abílio, em que
o autor evidencia suas concepções de ensino da língua, e a totalidade da obra
de Midosi.
Para discutir as propostas de ensino constituídas nos impressos, utilizamos os
trabalhos de Chartier (2007), Shueler (2006), Gondra (2002), Saviani (2007),
Gontijo (2008) e Cagliari (1999). O primeiro trabalho faz referência aos
impressos que tinham como prática o ensino graduado. Nessa direção, ele
possibilitou uma análise mais consistente do material de leitura proposto por
Midosi. Os trabalhos de Gondra e Saviani nos permitiram analisar as propostas
do professor Abílio Cesar Borges a partir do contexto político e ideológico que
engendravam as práticas pedagógicas no Espírito Santo e no Brasil na década
de 1870. A leitura do trabalho de Shuller (2007) contribuiu para analisar o
conteúdo da proposta de ensino constituída no método de ensino bacadafá, ao
mesmo tempo em que nos propiciou compreender por que da não adoção
oficial desse material na província do Espírito Santo. As leituras das pesquisas
de Gontijo possibilitaram a análise dos impressos a partir da própria
historiografia da alfabetização na província do Espírito Santo, pois, como já
dito, na contextualização desta pesquisa, essa autora apresenta dados
pertinentes ao ensino da língua na província na década de 1870. Finalmente,
os estudos de Cagliari nos ajudaram a analisar os impressos, considerando os
equívocos que podem ter sido cometidos nos momentos do ensino da leitura e
da escrita nas escolas da província.
Os livros que circularam na província foram listados no início deste tópico.
Esses livros têm especificidades quanto a sua edição. O livro de Midosi, que
será analisado, data de 1831 e foi publicado em Londres. Saber a origem das
publicações nos auxilia a compreender os aspectos ideológicos que
perpassaram as práticas de ensino constituídas nos impressos. As propostas
de Abílio Cesar Borges fizeram parte de uma produção nacional de livros
didáticos, mas foram publicadas em Bruxelas.
O ensino da leitura e da escrita é influenciado por interesses políticos de uma
dada época. No Brasil, o controle dos portugueses impediu, por muito tempo, a
publicação de livros nacionais e até mesmo a aquisição de outros materiais
impressos. Segundo Hallewell (1985, p. 5), os portugueses desenvolveram a
tipografia em outras colônias, mas, no Brasil, impediram a sua existência. Esse
é um dos fatores que pode explicar a utilização de impressos produzidos em
outros países. Ainda de acordo com o autor,
[...] Tais diferenças foram determinadas em parte, pelas
necessidades do controle político. Nos lugares em que os governos
gozavam de um grau considerável de autonomia, eles eram
encarregados de regulamentar o trabalho das tipografias locais [...]
(HALLEWELL, 1985, p. 5).
Segundo Hallewell (1985, p. 21), em 1875, foram proibidas todas as
manufaturas no Brasil. Em 1720, um alvará proibiu as letras impressas em todo
o território. A proibição “[...] implica que devia haver alguém em algum lugar,
que precisava ser impedido de imprimir na colônia, naquela época”
(HALLEWELL, 1985, p.21). As restrições portuguesas eram um empecilho para
que qualquer artefato entrasse na colônia. Outros produtos também eram
retidos em decorrência da severidade das leis. Independentemente da classe
social, todos eram atingidos pelos obstáculos, ou seja, “[...] Um rico fazendeiro
podia não ter como oferecer a cada um de seus hóspedes uma faca à mesa.
Às vezes um único copo circulava entre todos os comensais [...]”
(HALLEWELL, 1985, p. 21). Dessa forma, conforme aponta o autor, de um
regime que não se preocupava com satisfação de necessidades do dia a dia,
“[...] não se poderia esperar qualquer preocupação com suas necessidades
literárias: em tais circunstâncias, dificilmente se poderia pensar que houvesse
suprimento maior de livros do que facas ou copos [...]” (HALLEWELL, 1985, p.
21).
Assim, conforme exposto, as privações de ordem material eram acompanhadas
de outras de ordem intelectual. Como comunidade de base agrária e com
poucos habitantes, no Brasil Colônia, a tipografia praticamente inexistiu neste
País. Os poucos materiais impressos eram importados da Europa. Nesse
sentido, Hallewell (1985, p. 15) ressalta que a escassez de produtos
manufaturados, os altos preços desses materiais, a ausência quase total de
trabalhador qualificado (alfabetizado) para a produção na tipografia e o alto
preço dos equipamentos obrigavam a importação de impressos. Sendo assim,
“[...] o material impresso local jamais poderia competir, em preço, com o trazido
da Europa [...]” (HALLEWELL, 1985, p. 20). Nesse contexto, as publicações e
outros materiais como o próprio papel era uma raridade nas escolas do País.
Além das dificuldades já mencionadas, existia ainda a morosidade nas
publicações. Muitas vezes, se conhecia uma obra muito tempo depois de sua
escrita. Segundo Hallewell (1985), qualquer escrito produzido no Brasil deveria
ser, forçosamente, publicado na Europa ou permanecer manuscrito. A
publicação de um manuscrito podia não ocorrer, também, devido à censura,
“[...] que podia proibir um livro tanto por não se adaptar aos cânones literários
aceitos do gosto literário quanto por seu conteúdo de idéias [...]” (HALLEWELL,
1985, p. 22). Num contexto, a escola de primeiras letras, no Brasil, foi se
constituindo, fazendo uso de impressos publicados na Europa. Nesse sentido,
podemos dizer que os impressos apresentavam ideários educacionais que
circulavam na Europa.
4.4.1 As propostas de Abílio César Borges
Abílio Cesar Borges, também conhecido como Barão de Macahúbas, foi um
renomado escritor de livros e compêndios destinados ao ensino escolarizado.
Seus livros circularam pelas províncias brasileiras na década de 1870. A partir
de doações substanciais de seus livros, o autor foi um dos maiores
propagadores de suas obras. Na província do Espírito Santo, eram constantes
as solicitações de livros desse autor nas décadas de 1870 e de 1880. Em 1876,
o autor fez uma de suas maiores doações à província capixaba. Sobre essa
doação, o presidente da província, Antônio Joaquim de Miranda, relatou, em 3
de março de 1877:
[...] Por esta ocasião cabe-nos a satisfação de comunicar-vos o
valioso oferecimento que fez o Sr. Dr. Abílio César Borges esforçado
e incançavel propugnador da instrucção popular de 3.000
exemplares de seus livros escolares para as escolas desta província,
aos quaes já forão recebidos e estão sendo distribuídos [...]
(RELATÓRIOS DE PRESIDENTES DA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO
SANTO, 1877, p. 7).
De acordo com Gondra (2002), na biografia que elaborou sobre o autor, o
Barão de Macahúbas tem nacionalidade brasileira e naturalidade baiana. Ele
exerceu atividades relacionadas à medicina num momento anterior ao exercício
do magistério. Falava cinco idiomas e fazia viagens à Europa com a finalidade
de conhecer as inovações pedagógicas. A convite do imperador, ele foi
membro do Conselho de Instrução do município da Corte no período de 1872 a
1877. Segundo Saviani (2008), a proximidade com o imperador é denotativo de
que as ideias pedagógicas do Barão eram as ideias extraoficiais do monarca.
Gontijo (2008) considera que os livros de Abílio César Borges acompanharam
o movimento de nacionalização dos livros escolares no Brasil e que a produção
do autor foi influenciada pelas práticas pedagógicas constituídas na Europa. O
autor publicou uma série graduada de livros de leitura e, segundo Corrêa
(1999, p. 12),
[...] Cada série graduada era resultante do trabalho de uma mesma
autoria e, tal como o nome sugere, consistia em uma coleção de
livros (composta com 3 ou até 6 volumes) destinados aos diferentes
estágios do aprendizados da leitura. A coleção apresenta uma forma
de organização onde as lições e temas a serem ensinados ao longo
de todo o ensino primário são gradualmente distribuídos nos
diferentes volumes. Desta maneira teríamos um livro de leitura para
cada ano letivo. Essa graduação era realizada a partir de operações
que buscavam ajustar a grafia e a extensão dos textos, bem como a
complexidade dos assuntos, aos diferentes segmentos de alunos.
Para alunos iniciantes, pequenos textos e assuntos mais amenos;
para as classes mais avançadas, assuntos mais densos e textos
mais longos. Em geral o primeiro volume destas séries graduadas
traz orientações para o aprendizado inicial da leitura, e exerceriam
um papel equivalente ao das cartilhas [...].
Quanto à organização de seus livros para atendimento ao ensino gradual,
Gontijo (2008, p. 142-143), citando Filho (1999, p. 4), esclarece que existiu um
4.º livro do Barão de Macahúbas organizado em quatro partes. Uma primeira
parte “[...] voltada para o ensino das primeiras letras incluindo o alfabeto e as
vogais, acompanhado de um conjunto de sílabas, cuja intenção era a formação
de palavras, frases e sílabas [...]” (GONTIJO, 2008, p. 143).
Segundo Gondra (2002), os escritos de Abílio César Borges evidenciam que o
referido professor dedicou-se à causa educacional, deixando transparecer, pelo
menos no discurso, o desejo de presenciar reformas educacionais:
[...] A reforma pretendida para a escola era ampla, compreendendo
os aspectos estruturais, teóricos, metodológicos, didáticos,
disciplinares, morais e religiosos para os quais apresentou projetos,
em diferentes momentos de sua trajetória, conforme se pode verificar
na sua produção escrita [...] (GONDRA, 2002, p. 36).
Conforme Gondra (2002, p. 36), algumas inovações pretendidas por Abílio
Cesar Borges foram postas em prática por causa das posições por ele
ocupadas e, também, pelas estratégias traçadas. Gondra destaca que uma das
estratégias foi a produção de regras para a instrução no Brasil. Quanto às
posições ocupadas por Macahúbas, o pesquisador ressalta:
[...] Em função disso, é oportuno um comentário sobre a sua
presença em quatro cenários: na condição de Diretor da Instrução
Pública da Bahia, bem como na de fundador e Diretor do Ginásio
Baiano, do Colégio do Abílio da Corte e do Colégio Abílio de
Barbacena [...] (GONDRA, 2002, p. 37).
Algumas questões formuladas por Abílio abarcavam melhorias na qualidade do
ensino, outras, no entanto, eram arcaicas. Com relação às ideias de cunho
reformista, Saviani (2008) assinala que ele se posicionou com relação à
formação de professores e às condições de precariedade da educação. Ele
defendeu, ainda, a instituição de escolas normais, a distribuição gratuita de
periódicos para professores, a construção de prédios escolares separados da
residência dos professores, a autorização para alocação de recursos para a
construção de escolas por meio da loteria, a liberdade do ensino particular e a
criação do Ministério Nacional da Instrução. É interessante notar que, no
Espírito Santo, na década de 1870, as escolas recebiam as revistas intituladas
A escola e A instrução pública, esta última também denominada de Jornal da
instrução pública.
De acordo com Gondra (2002), os aspectos listados permitem que se
compreenda o seu pensamento reformista. Exemplificando sua fala, o
pesquisador destaca, com referência à escola normal, que
[...] A preocupação do Dr. Abílio com a formação dos professores foi
uma constante em seu discurso e ganhou uma visibilidade no
Congresso Pedagógico de Buenos Aires, no qual apresentou uma
tese sobre esse problema e a viu aprovada ao final do mesmo. Nesse
congresso foram discutidos dois temas: a influência dos internatos
normais sobre o melhoramento e a difusão da instrução primária e os
melhores meios de, nas escolas, sustentar a disciplina e fomentar,
nos meninos o gosto pela instrução. No projeto de resolução do
referido evento foi aprovado: 1. Que os Estados não poderiam obter
os mestres e bens que necessitavam para a regência das escolas,
sem que fundassem internatos normais [...] (GONDRA, 1856, p. 38).
Quanto à formação de professores pretendida por Abílio César Borges, Gondra
(2002, p. 38) ainda comenta que, de acordo com o discurso do referido
professor, o magistério deveria ter uma formação especial. Nessa direção,
Gondra evidencia que ele também defendia a formação prática dos normalistas
acompanhada de “[...] lições da Cadeira Teórica [...]” (GONDRA, 2002, p. 38).
Além disso, de acordo com esse autor, o professor Abílio achava pertinente
que os candidatos ao preenchimento das vagas do ensino normal fossem
examinados nos conhecimentos de Português, Francês e Latim, e, do total de
vagas oferecido pela instituição de ensino normal, dois terços fossem ofertados
às moças, e o terço restante, para os rapazes. Ressalta-se que o ensino nas
escolas normais seria estruturado sob a forma de internato:
[...] Afora estas vantagens, senhores, têm os internatos a de
afugentar dos templos desatinados à formação dos futuros mestres
essa turba de profanos, que inteiramente, desprovidos do fogo
sagrado, tomam os lugares dos verdadeiros apóstolos do ensino, e
não são mais que flagelos das frágeis crianças, quando o espírito
abatem, quando o não correspondem e envilecem [...] (MACAHÚBAS,
apud GONDRA, 2002, p. 38).
Analisando o discurso do professor Abílio César Borges, percebemos uma
preocupação com o ensino da língua nas escolas de primeiras letras, pois o
fato de propor os exames pertinentes ao ensino da língua é indicativo de que
esses profissionais deveriam ter um conhecimento mínimo da língua para
poder ensinar. Como já dito, sabemos que, muitas vezes, esses exames foram
barganhados por apadrinhamentos, mas a ideia era positiva.
Com relação ao caráter não reformista das ideias de Abílio César Borges,
citamos o sistema de internato pretendido para a instrução de ensino normal,
pois essa ação resultaria em impedimentos para que muitas pessoas
cursassem essa modalidade de ensino. Segundo Gondra (2002, p. 38), a
frequência a essas instituições dependeria da indicação das autoridades
provinciais. Portanto essa modalidade de ensino não era accessível a todos
que desejassem. A abertura para a rede privada eximia o governo imperial de
uma parte da responsabilidade com a instrução pública. Além disso, apenas
uma parte da população teria acesso a esse tipo de instituição, pois a maior
parte das famílias não possuía renda suficiente para o custeio.
Gondra (2002) aponta ainda, de acordo com as ideias de Macahúbas, a
obrigatoriedade dos professores em acompanhar os alunos às missas. Esse
preceito também foi adotado na província do Espírito Santo. Segundo os
regulamentos de 1862 e 1871, os professores eram incumbidos de levar os
alunos à missa. No ano de 1873, as alunas do Colégio Ateneu iam à missa aos
domingos acompanhadas do profissional denominado censor.
Outros temas abordados por Macahúbas foram os castigos e as recompensas
muito utilizados no Espírito Santo e nas demais províncias brasileiras na
década de 1870. Os estudos de Saviani (2008) também explicitam que, em seu
discurso, o professor Abílio era contrário ao sistema de recompensas e de
punições adotadas nas instituições educacionais das províncias, pois ele havia
se convencido “[...] de sua inteira inutilidade e, mais que isso, da danosa
influência que exerciam sobre o espírito da criança [...]” (SAVIANI, 2008, p.
147). O referido pesquisador ainda ressalta que Abílio César Borges confessou
ter distribuído entre os alunos prêmios por 16 anos, mas, em 1875, “aboliu”
essa prática por considerar que tanto os alunos premiados quanto aqueles que
sofriam punições não alteravam o rendimento. Os alunos punidos não
conseguiam se sobressair na aprendizagem após serem castigados:
[...] Com efeito, observou ele que tanto os premiados como os que
nenhum prêmio recebiam continuavam com o mesmo comportamento
e a mesma aplicação nos estudos, com uma diferença, porém: “os
primeiros se tornavam cada vez mais orgulhosos e vaidosos, e
portanto menos tratáveis, e os outros, ou desanimavam, ou tornavam-
se piores, enfezados pela humilhação sofrida diante de seus colegas
e de seus pais e parentes” [...] (SAVIANI, 2007, p. 147).
Concordamos com o autor, pois, de fato, as punições imprimiam marcas de
fracasso, especialmente, porque essas eram aplicadas em público, diante de
toda a classe, e ocorriam, também, nos momentos em que os alunos não
apresentavam rendimentos satisfatórios em relação à aprendizagem dos
conteúdos.
Ainda segundo Saviani (2007), Abílio concebia a criança como um ser
pensante, com paixões e afetos que deveriam ser regulados, mas não
violentados; a alma do homem deveria ser sempre alimentada com o ensino
moral. Ele criticava os sermões dos padres, porque entendia que os preceitos
da moral seriam aprendidos com exemplos vivos. Saviani (2007) compreende
que o pensamento de Abílio era eclético, não se fundamentava apenas na
religião, ele também tinha bases nos estudos de filosofia cursados na
faculdade de Medicina. Sendo assim, educação e ensino moral se constituíam
no pão do espírito necessário para que a criança se enquadrasse na sociedade
esperada pela escola.
Quanto à organização estrutural do ensino brasileiro, Saviani (2007) esclarece
que o Barão de Macahúbas percebia a necessidade de um ensino mais
consistente dos conteúdos referentes às matérias de ciências naturais. Além
disso, entre 1866 e 1868, o barão compreendia que as matérias Língua e
Literatura Nacional, Matemática, História e Geografia Pátrias deveriam ocupar
boa parte do currículo. Com exceção do ensino de Ciências Naturais, essas
ideias foram apropriadas na forma de regulamento no ano de 1877, na
província do Espírito Santo, pois esse regulamento trazia propostas de ensino
dessas disciplinas. Em relação à escola elementar, “[...] o objetivo era a leitura
corrente, combinada com cópias, ditados, conjugações, problemas e lições de
História, Geografia e Ciências, que exercitavam também a leitura [...]”
(CHARTIER, 2007, p. 119).
Segundo Gondra (2002), os alunos que cursavam as escolas criadas por Abílio
eram meninos bem abastados que podiam "comer o pão do espírito". Os
estudos de Saviani explicitam que ele era favorável a um ensino mais
prazeroso e elogiava uma escola mais ativa, no entanto, ao mesmo tempo, se
dizia favorável aos métodos mais antigos:
[...] Quanto a mim o método antigo, se razoavelmente modificado,
isto é, descarregado daquela infinidade indigesta de sílabas soltas e
vãs, é ainda preferível, pela razão de não exigir propagadores
especiais para ser explicado. Todos os mestres, ainda os mais
ignorantes, podem aplicá-lo, começando pelas mães, que devem ser
os primeiros mestres de leitura dos meninos [...] (MACAHÚBAS,
apud SAVIANI, 2007, p. 156).
Assim, podemos concluir, de acordo com Gondra (2002) e com Saviani (2007),
que o Barão de Macahúbas não avançou em suas propostas. Isso pode ser
observado na própria organização de seu terceiro livro de leitura, a que
também tivemos acesso. Ressaltamos que esse foi o único exemplar do autor
que encontramos para análise. Embora não seja um exemplar destinado às
aulas de ensino da leitura e da escrita, lemos as páginas iniciais referentes à
apresentação do material, porque elas tratam da metodologia de ensino da
língua. Percebemos que, quanto ao ensino da leitura e da escrita, ele também
propunha a cópia e a leitura de textos que tratavam da moral e da boa conduta.
Conforme já anunciamos neste capitulo, quando mencionamos os métodos de
ensino que constituíram as práticas de ensino no Espírito Santo na década de
1870, o Barão de Macahúbas era contrário ao uso das Cartas do A B C. Para
ele, usar essas cartas no ensino da língua era o mesmo que fazer uma opção
por uma prática "vazia de sentido". Trindade (2002), citando Pfromm Neto,
Rosamilha e Dib (1974, p. 171), ressalta que as publicações dos livros de
leitura escritos por Abílio César Borges representaram um avanço para a época
de suas edições. A pesquisadora expressa que, antes dessas publicações, a
aprendizagem da leitura no Brasil se dava pelos abecedários, papéis de
cartório e "toscas cartilhas”. Ela ressalta que a publicação do referido professor
se opunha a esses outros materiais, porque não era favorável à soletração de
sílabas sem sentido.
De posse do conhecimento das restrições do Barão de Macahúbas ao método
da soletração, analisamos as propostas metodológicas do livro. Indagamo-nos
sobre os sentidos de sua prática. Percorremos suas explicações na tentativa de
capturar detalhes metodológicos. Relacionando seu discurso reformador com o
discurso escrito no prólogo de seu terceiro livro de leitura, percebemos que
Gondra (2002) analisou apropriadamente a trajetória desse intelectual. Se, na
fala de Gondra (2002), ele reformava o particular para manter o geral, em
nossas análises também percebemos que, na escrita do prólogo de seu
terceiro livro, ele mantinha práticas muito semelhantes aos antigos métodos.
Quanto aos preceitos morais, eram semelhantes aos que já vinham sendo
abordados por Luis Francisco Midosi, autor da obra O expositor portuguêz ou
rudimentos de ensino da língua materna, também utilizada no ensino da língua
na província do Espírito Santo, na década de 1870.
Como dito, uma das primeiras falhas que Abílio César Borges apontava no
ensino brasileiro era a soletração. Ele dizia que as crianças liam como um
papagaio, sem entendimento, sem interesse pela leitura e sem compreensão
das palavras, o que não promovia o “[...] desenvolvimento intelectual [...]”
(BORGES, 1870, p. 4). Concordamos com o escritor, pois, de fato, a leitura
requer uma produção de sentidos do que está sendo lido, no entanto
ressaltamos que não encontramos, na organização do terceiro livro do
professor Abílio, a possibilidade para que isso acontecesse.
Esse livro consistia numa exposição de conteúdos de Ciências e História
totalmente descontextualizados da vivência dos alunos. Como as crianças
poderiam desenvolver o intelecto sem contextualização do que estava sendo
lido? Outra ambiguidade na fala e na proposta do autor pode ser percebida
pela forma como ele propunha a leitura: “[...] Para fazer boa leitura deve o leitor
ler com moderação, mudando o tom de voz, e dando as pausas
convenientemente segundo requerem o objeto de leitura e os diferentes sinaes
de pontuação [...]” (BORGES, 1870, p 6). Ressaltamos que ler moderadamente
também significava, na perspectiva de Borges, ler por frases, observando-se a
pontuação:
[...] Vou dar-vos exemplos de tudo isto, queridos meninos: continuai
a ler-me com muita atenção: – Não é por certo bom filho/ o menino
que não é dócil/ nem amigo da verdade/ e que/ além disto/ não se
esforça em cumprir seus deveres [...] (BORGES, 1870, p. 6).
O livro do Barão de Macahúbas evidencia, ainda, a continuidade dos exercícios
de caligrafia e nos faz retomar uma de suas falas transcritas por Saviani
(2007), quando se refere aos métodos de ensino. Ele concordava que fossem
utilizados os métodos mais antigos, porque não haveria necessidade de formar
professores para aplicá-los, e até mesmo as mães poderiam iniciar o ensino
das letras com seus filhos. A alusão à proposta de que o método antigo poderia
ser ensinado pelas mães torna explícito que Borges não considerava os dados
da realidade brasileira, pois era grande o número de mães analfabetas. Se as
mulheres não tiveram grandes oportunidades de se apropriar da cultura
escolarizada, como iriam ensinar?
Nas últimas páginas, o autor apresentou alguns textos referentes à conduta
moral para serem copiados pelos alunos. Essas cópias nos levam a perceber
que o autor concordava com a continuidade do modo como estava organizada
a aula de caligrafia nas escolas de primeiras letras. Pelo menos, na província
do Espírito Santo, era essencial não descuidar das cópias. Haja vista que
materiais como o areeiro, as tabuinhas e as tabuletas estiveram presentes nos
momentos de ensino da língua na década de 1870. O professor Borges era
bem enfático quanto à aceitação da ideia de que as crianças precisavam
apresentar uma boa caligrafia: “[...] aconselho-vos meus amiguinhos e muito
vos recomendo que dos vossos traslados não tireis os olhos [...]” (BORGES,
1870, p. 6). As propostas do referido professor encontraram terreno fértil na
província do Espírito Santo, pois, nos regulamentos que tratavam da instrução
pública na década de 1870, estiveram presentes artigos e parágrafos que
regulamentaram o ensino da leitura e da escrita.
Conforme já anunciamos, algumas ideias propostas por Macahúbas foram
muito importantes. Reconhecemos que conquistas como a implantação do
ensino da Língua e da Literatura Nacional nos regulamentos das províncias
brasileiras foram importantes, porque nos colocava em contato com uma
produção nacional, mas, do ponto de vista prático, o ensino da leitura e da
escrita defendido pelo barão não se diferenciava das propostas que vigoravam
na época. Segundo nossas análises, concordar com o método antigo, por ser
mais conhecido e por facilitar as mães, significa concordar com práticas por ele
mesmo criticadas de ensino da língua.
4.4.2 O expositor portuguêz, ou rudimentos de ensino da língua materna
Iniciamos nossas reflexões sobre os impressos utilizados na província do
Espírito Santo pela obra de Midosi (1831), cuja primeira página é apresentada
em seguida.
Figura 6 – Primeira folha do livro O expositor portuguêz ouou rudimentos de ensino da língua de Luis Francisco Midosi. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Nas páginas iniciais de sua obra, o autor inicia as explicações referentes à
metodologia. Na apresentação da obra, intitulada “Advertência”, Midosi (1831,
p. 4) explicita que o sistema de ensino por ele adotado era apropriado às
crianças. Nessa direção, ressaltou que o “sistema de marcar e dividir”, “cada
uma das lições” parecia-lhe o mais natural para a inteligência e
desenvolvimento dos meninos.
Um aspecto que chama a atenção na obra de Midosi é a imponência com que
realiza seu projeto. Suas considerações se constituíam numa propaganda para
fazer o leitor pensar que seu trabalho era eficaz e, por esse motivo, deveria ser
adotado pelos professores. Assim, assinala: “[...] Julgo que meu trabalho será
de algum proveito, principalmente se houver à testa de alguns
estabelecimentos de ensino não simples mercenários ignorantes, porém
mestres zelosos e inteligentes [...]” (MIDOSI, 1831, p. 5).
Uma das bandeiras que a escola do século XIX pretendia hastear era a
eficiência no ato de ensinar a ler e escrever. No entanto, segundo aponta
Midosi (1831, p. 4), isso não acontecia. Na apresentação de seu livro, o autor
explicita que as crianças encontravam dificuldades para aprender a ler e a
escrever. Na concepção do autor, essas dificuldades poderiam ser sanadas se
as crianças tivessem acesso aos livros e se fosse utilizado um método. Ele
ressaltou que, ao visitar mais de 200 escolas em Londres, não viu crianças que
não conseguissem progresso na aprendizagem da língua. Segundo Midosi
(1831), o sucesso era oriundo de práticas de ensino fortalecidas pelo uso de
livros e de um método de ensino. Assim se posiciona o autor:
[...] Tendo visitado muitos dos melhores estabelecimentos de ensino
de educação neste reino, já na capital, já nas províncias, cessou a
minha admiração pelos rápidos progressos que os meninos aqui
fazem nos primeiros conhecimentos da sua língua, a respeito do
modo de fallar e de escrever, bem como da facilidade com que
passam ainda em tenros annos para estudos de maior importância.
Os livros elementares, ou cartilhas, assim como o método mais
aperfeiçoado de facilitar o ensino são a causa única destes
extraordinários progressos. Posso afirmar que não vi, apesar de
muitas diligências que fiz (em mais de 200 escolas) um só menino,
que pudesse dizer propriamente que fosse estúpido: ainda mais as
diferenças entre a disposição ou talento de uns e outros, eram tão
pequenas, insignificantes que apenas pelo decurso do tempo os
mestres podiam marcar [...] (MIDOSI, 1831, p. 4).
A proposição de Midosi retrata uma ideia que parecia muito presente no
discurso educacional do século XIX. Essa ideia era a exaltação ao livro e aos
métodos de ensino. Consideramos que essa primeira ideia era desdobrada
numa segunda ideia, muito presente no referido século: a valorização da
cultura escolarizada. Conforme Graf (1987) e Gumperz (1987), no século XIX,
a aprendizagem escolarizada ganhou status e superioridade. Esse status
conferiu à escola a incumbência de organizar didaticamente os programas de
ensino e, ao mesmo tempo, cuidar para que os conteúdos curriculares fossem
dispostos em materiais impressos como livros e cartilhas. Observemos, na
transcrição de sua fala, que até a desenvoltura da linguagem oral era atribuída
ao ensino livresco. As concepções de Midosi a respeito da superioridade do
conteúdo livresco também foram comungadas pela imprensa capixaba. O jornal
O Espírito-Santense publicou um artigo, em 4 de fevereiro de 1871, exaltando o
livro: ”[...] É o livro esse amigo fiel, esse companheiro das nossas dores, essa
luz que refletindo no âmago do nosso peito, o acorda ou consola [...]”.
Midosi organiza o trabalho de ensino da leitura e da escrita embasado,
inicialmente, na prática da soletração. Na quarta seção de seu livro, a partir da
página 76, o autor inicia suas explicações sobre a sua concepção de
linguagem. As explicações são feitas a partir de um questionário constituído de
perguntas e respostas. No início, o autor explicita o que é linguagem e quais os
elementos que a constituem:
[...] P. Que entendeis por linguagem?
R. Entendo por certo número de sons, ou sinaes, pelos quaes
exprimimos as nossas ideas.
P. Que entendeis por sons?
R. As articulações que proferimos, quando fallamos.
P. E por sinaes?
R. As figuras convencionadas com que escrevemos.
P. Que é o que constitue a linguagem?
R. São as letras, syllabas, palavras, sentenças [...] (MIDOSI, 1831, p.
76).
Desse modo, Midosi considera que a linguagem é constituída das unidades
menores da língua oral (sons) e da língua escrita (sinais). Por meio dessas
unidades, segundo o autor, exprimimos nossas ideias. Nesse sentido, podemos
notar que a linguagem é pensada como um código que permite a expressão do
pensamento ou das ideias.
Ao expor sua concepção de linguagem, o autor evidencia que a escola deveria
ensinar, em primeiro lugar, os constituintes da linguagem. De modo geral, o
processo ensino-aprendizagem deveria ser graduado, considerando-se os
elementos que constituem a linguagem, ou seja, as letras, as sílabas, as
palavras e as sentenças.
Assim, de acordo com sua concepção de linguagem, o autor propõe,
inicialmente, o ensino das letras e seus respectivos sons. Para isso, em cada
página, dispôs um conjunto de quatro letras. Cada letra, nas formas maiúscula
e minúscula, foi inserida em um quadrado que contém, ainda, a imagem de um
objeto cujo som inicial é o da letra apresentada e a palavra escrita dividida em
sílabas. Desse modo, o autor concretiza a sua concepção de linguagem,
ensinando cada letra e o som correspondente, ou seja, os elementos que
constituem a linguagem.
Entendemos que o uso da imagem e da palavra para ensinar as letras e seus
respectivos sons representa um avanço para a época, porque os antigos
métodos de soletração não tinham essa preocupação. Justificamos nossa
proposição lendo o trabalho de Mortatti (2000, p. 53), pertinente ao ensino da
língua, na província de São Paulo. Essa pesquisadora transcreveu a fala do
professor Pedro Canto, explicitada em 24 de janeiro de 1876. Na fala do
professor, percebemos que os métodos de ensino em voga não propunham
práticas que fizessem a relação entre as letras e os sons, ou entre as imagens
e as palavras:
[...] Método antigo – este método tem por fim o ensino do alphabeto
na sua ordem lexiccográfica, em seguida o sylabário, cartas de
nomes e leitura corrente. Segundo este as consonâncias são
precedidas de – um – e – mudo e as palavras soletrão da maneira
seguinte e – me – esse= mes = te – erre – e= ter= mestre. Como se
vê é baldo de harmonia e não há ligação entre os sons elementares e
os silábicos de que são formadas as palavras [...] (CANTO, apud
MORTATTI, 1876, p. 53).
Além da descrição metodológica do professor Pedro Canto, também queremos
ressaltar que as Cartas do A B C, comercializadas na tipografia da província,
não possibilitavam que a criança fizesse a relação som e letra/letra e som nos
momentos de ensino da língua. Essa afirmação pode ser confirmada por
Ariobaldo Léllis Horta, na crônica intitulada “Como era o ensino”. O referido
cronista escreveu algumas crônicas fazendo alusão à cidade de Vitória – ES.
Ariobaldo Lellis Horta foi estudante do ensino primário na província, no final da
década de 1880, e descreveu o ensino pelas Cartas do A B C. Segundo sua
exposição, percebemos que, de fato, o ensino da língua idealizado por Luis
Francisco Midosi se constituiria numa inovação pelo menos até a década de
1880, pois, no Espírito Santo, ao final dessa década, ainda eram utilizadas as
cartas que não faziam relação entre as letras e seus respectivos sons, mas
levavam o aluno a memorizar, primeiro, as letras do alfabeto, isoladamente, e,
depois, as sílabas:
[...] O curso primário se fazia no mínimo, em três anos, cabendo a um
só professor ensinar ao aluno desde o abecedário até o fim. Não
havia, portanto, classes com distribuição das mesmas por vários
professores. Os alunos mais adiantados eram monitores,
encarregando-se de tomar lições dos mais atrasados, dos que
estavam ainda no primeiro livro, chamado vulgarmente “Carta de A B
C”, e dos que estavam no segundo, de leitura corrente por cima, não
obrigada a soletração. Começávamos por decorar o abecedário,
gravando na memória, ao mesmo tempo, o nome e a forma da letra.
Nesta primeira fase, perguntava-se ao aprendiz quais as letras
indicadas, só se passando para a segunda, quando o aluno
respondia, com facilidade e certeza, quais os símbolos. Uma vez
familiarizado com o alfabeto, reconhecendo prontamente as letras, ia-
se adiante. A segunda consistia na associação de duas vogais, ou de
uma consoante com uma vogal, para a formação dos ditongos e das
sílabas. Feita esta aprendizagem, passava-se a terceira fase, a
formação das palavras, a princípio de duas sílabas, depois de três
sílabas, até que o discípulo soubesse ler por cima, isto é, sem
precisar soletrar. Na formação das palavras, as sílabas eram sempre
separadas, a fim de facilitar o principiante a soletração, para a
formação do vocábulo [...] (HORTA, 1951, p. 28-29).
Vejamos, nas imagens das páginas do livro de Midosi, como ele organizava o
ensino dos constituintes da linguagem:
Figura 7 – Página do livro O expositor portuguêz ourudimentos de ensino da lingua, do autor Luiz Francisco Midosi.Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Figura 8 – Página do livro O expositor portuguêz ourudimentos de ensino da lingua, do autor Luiz Francisco Midosi.Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Figura 9 – Página 9 do livro O expositor portuguêz ourudimentos de ensino da lingua, do autor Luiz Francisco Midosi.Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Figura 10 – Página 9 do livro O expositor portuguêz ourudimentos de ensino da lingua, do autor Luiz Francisco Midosi.Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Figura 11 – Página 10 do livro O expositor portuguêz ourudimentos de ensino da lingua, do autor Luiz Francisco Midosi.Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Figura 12 – Página 11 do livro O expositor portuguêz ourudimentos de ensino da lingua, do autor Luiz Francisco Midosi.Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Figura 13 – Página 12 do livro O expositor portuguêz ourudimentos de ensino da lingua, do autor Luis Francisco Midosi.Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Após a exposição dos elementos constitutivos da linguagem, o autor explicita
suas concepções acerca da constituição da palavra escrita. Para alcançar seu
objetivo, ele explica o que é a letra e de que maneira as letras podem formar as
sílabas e, por conseguinte, as palavras. A formação das palavras se daria com
a junção de vogais e de vogais com as consoantes:
[...] P. Que cousa é a letra?R. Letra é a primeira coisa para a existência de uma palavra.P. Quantas letras há?R. Vinte e cinco, a que chamamos alfabeto.
P. Dizei-vos quaes ellas são.R. A, b, c, d, e, f, g, h, i, j, k, l, m, n, o, p, q, r, s, t, u, v, x, y, z.P. Como se dividem essas letras?R. Em vogaes e consoantes.P. Quais são as vogaes?R. A, e, i, o, u, y.P. Quais são as consoantes?R. B, c, d, f, g, h, j, k, l, m, n, p, q, r, s, t, x, z.P. Que coisa é a vogal?R. Vogal é toda letra, que por si só forma som perfeito, sem necessitar ajuda de qualquer outra.P. O que é uma consoante?R. Consoante é toda letra que por si só não se pode pronunciar e precisa do auxílio da vogal.P. Que coisa é a síllaba?R. É o som de uma ou mais vogaes, com auxílio de outras letras ou sem elle.P. Uma sílaba tem sempre vogaes?R. Sim, pois nenhum som se pode formar sem vogal [...] (MIDOSI, 1831, p. 77).
Analisando as explicações do autor, percebemos que ele acreditava que o
sucesso da aprendizagem da língua dependia do conhecimento das unidades
menores da língua e, por isso, esse aprendizado deveria ser iniciado pelo
conhecimento das letras. Ele concretiza as suas concepções sobre o que são
vogais e consoantes em uma página:
Figura 14 – Página do livro O expositor portuguêz ourudimentos de ensino da lingua, de Luis Francisco Midosi. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Como pode ser observado, no alto da página, estão as vogais em letras
maiúsculas. Em seguida, as consoantes são apresentadas usando-se o mesmo
tipo de letra. Após apresentar as vogais e as consoantes separadamente, o
autor apresenta o abecedário em letra pequena ou minúscula, que se segue da
apresentação das vogais e consoantes com o mesmo tipo de letra. Por fim, é
apresentado o abecedário itálico ou grifo. Segundo explicações do autor, era
necessário que a criança aprendesse sobre as diferenças entre letras
maiúsculas e minúsculas, pois essas possuíam funções distintas no momento
da escrita das sentenças. As letras maiúsculas serviriam para escrever os
substantivos próprios e iniciar as frases:
Figura 15 – Página do livro O expositor portuguêz ou rudimentos de ensino da lingua, de Luis Francisco Midosi.
Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
As explicações do autor são superficiais, se considerarmos que as letras
maiúsculas não servem apenas para escrever nomes próprios e iniciar as
frases depois do ponto final. Na escrita, as letras maiúsculas também podem
aparecer depois dos outros sinais de pontuação como o ponto de interrogação
e o ponto de exclamação.
Na página seguinte do livro de Midosi, são apresentadas as vogais e as
consoantes do tipo itálico ou grifo:
Figura 16 – Página do livro O expositor portuguez ou rudimentos de
ensino da língua, do autor Luis Francisco Midosi. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Como pode ser verificado, na página do livro, também é apresentado o
abecedário grande ou maiúsculo de letra de mão. Na página seguinte, o autor
expõe o alfabeto pequeno. Assim, a apresentação dos tipos de alfabeto segue
sempre a mesma ordem:
Figura 17 – Página do livro O expositor portuguez ou rudimentos de
ensino da língua, do autor Luis Francisco Midosi. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Desse modo, as três páginas expostas anteriormente demonstram a
preocupação do autor do livro em ensinar os tipos de alfabeto. Ressaltamos
que essa preocupação é coerente com o que tem sido discutido na atualidade.
Segundo Cagliari (1999), é muito importante que as crianças aprendam sobre a
categorização gráfica das letras. Segundo esse autor, a categorização gráfica
se refere às variedades e aos estilos das formas gráficas das letras. Ele
ressalta que as letras seguem um padrão estético (design). O padrão estético
ou design que cada letra apresenta não altera suas características mais
comuns. Essa reflexão é muito importante, pois, segundo o referido autor, não
existe um único alfabeto, mas diversos alfabetos, porque existem vários estilos
para cada letra. É muito importante que as crianças consigam perceber essa
especificidade e sejam ensinadas a reconhecer e a grafar os diferentes
alfabetos, para que, dessa forma, possam se apropriar da leitura e da escrita.
O não reconhecimento dos diversos estilos dificulta o processo de
alfabetização, pois, não conhecendo os aspectos gráficos das letras, a criança
também não consegue estabelecer a relação dessas letras com os sons que
elas podem representar.
Ressaltamos que o desconhecimento desse detalhe referente à categorização
gráfica das letras por parte dos professores e de alguns editores ou escritores
de livros didáticos destinados à alfabetização pode gerar alguns equívocos no
momento do ensino da língua. Lendo as considerações de Cagliari (1999, p.57)
a respeito do emprego das letras maiúsculas e minúsculas, compreendemos
que Midosi cometeu um desses equívocos ao dizer que as letras minúsculas
são pequenas e as maiúsculas grandes. Explicações como esta são
subterfúgios inconsistentes, pois tanto as letras maiúsculas como as
minúsculas podem apresentar tamanhos variados, já que os adjetivos podem
ter um sentido relativo, quando são restritivos, pois é preciso haver parâmetros
referenciais:
[...] Além disso, é importante acabar com o uso quase etimológico das
definições de letra maiúscula (como letra grande) e letra minúscula
(pequena), uma vez que os usos que delas fazemos em nossa
sociedade mostram que, muitas vezes, uma letra minúscula pode ser
maior em tamanho do que uma letra maiúscula [...] (CAGLIARI, 1999,
p. 57).
É importante ressaltar que o conhecimento referente à forma gráfica das letras
também foi abordado nas páginas finais do livro de Midosi, pois o autor
disponibilizou algumas palavras polissílabas em letra cursiva, para que os
aprendizes pudessem copiar. O autor justificava a inclusão desse conteúdo no
livro, dizendo que os outros manuscritos apresentados às crianças na escola
não eram convenientes:
Figura 18 – Página do livro O expositor portuguez ou rudimentos de ensino da língua, de Luis Francisco Midosi.
Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Subentendemos que o autor considerava que tais manuscritos indicados pela
escola não eram bem apresentados graficamente. Dizemos isso,
fundamentando-nos no conhecimento dos recursos utilizados nas aulas de
caligrafia das escolas de primeiras letras da província do Espírito Santo. Como
dito, muitas vezes, os professores utilizavam cartas manuscritas para que os
alunos pudessem copiar e aprender o traslado da letra cursiva.
Como apontamos, as letras e os sons, na perspectiva de Midosi, são os
constituintes da linguagem. Desse modo, a aprendizagem das letras e a sua
distinção entre vogais e consoantes possibilita a passagem para o ensino das
sílabas. O ensino das sílabas é graduado, considerando-se, principalmente, o
número de letras que ela possui. As páginas em seguida evidenciam a
organização do ensino pensado pelo autor:
Figura 19 – Página do livro O expositor portuguêz ou rudimentos de ensino da língua, de Luis Francisco Midosi.
Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Figura 20 – Página do livro O expositor portuguêz ou rudimentos de ensino da língua, de Luis Francisco Midosi.
Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Sendo assim, de acordo com a primeira seção, o ensino das sílabas era
iniciado com as sílabas de duas letras b, ç e c, d, f, g, h, j, k, e l. Logo após a
apresentação dessa sequência, as crianças aprenderiam as sílabas formadas
pelas letras m, n, p, r, s, t, v, x e z. Inicialmente, vogais seriam unidas às
consoantes. Num primeiro momento, obedeceriam à ordem consoante +
vogal (ba-be-bi-bo-bu). Logo após, seriam ensinadas as sílabas formadas por
vogal + consoante (ab, ic, of, al, is, etc.). Como dito, a apresentação das
sílabas obedece a um quantitativo crescente do número de letras que as
constituíam: sílabas de duas letras, sílabas de três letras e sílabas de
quatro letras. Midosi justificava essa organização:
[...] Para isto se conseguir é sem dúvida necessário em primeiro logar
tornar fácil e gradual o trabalho de aprender. Digo gradual, por quanto
marchando das noções do mais simples às mais compostas;
classificando as matérias para effeito de remover toda a confusão,
fica ao depois fácil de praticar qualquer método aperfeiçoado, que se
escolha; e que será tanto melhor quanto mais singelo [...] (MIDOSI,
1831, p. 4).
Analisando os conteúdos referentes à primeira seção, observamos que a
criança não pensava sobre o processo de apropriação da leitura e da escrita.
Com uma prática de ensino da língua mecânica, o aprendiz deveria memorizar
as sílabas para que, numa etapa posterior, pudesse ler palavras soletrando.
Midosi explicita como compreende o que é a sílaba nas explicações que se
seguem:
Figura 21 – Página do livro O expositor portuguêz ou rudimentos de ensino da língua, de Luis Francisco Midosi.Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
De acordo com essas explicações, o autor graduava o ensino das sílabas,
propondo, primeiro, palavras compostas de consoantes e de ditongos:
Figura 22 – Página do livro O expositor portuguêz ou rudimentos de ensino da língua, de Luis Francisco Midosi.Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Na apresentação dos monossílabos, algumas palavras já constituíam um
substantivo, um verbo, ou um pronome. Percebemos isso na escrita das
sílabas mão e vou transcritas nas sílabas abaixo. A primeira é um substantivo,
e a segunda, um verbo. Outro aspecto a ser analisado é que os monossílabos
foram todos finalizados por ditongo. Alguns desses ditongos têm sons
nasalizados e outros finalizados com a letra u. Ressaltamos que, também para
os ditongos, existia uma explicação: por ditongo o autor compreendia que eram
duas vogais juntas, no entanto não explicitou quais seriam essas vogais.
Sendo coerente com suas explicações, o autor apresentou três sílabas
formadas por vogais: – eu, ou e ão. Segundo o autor, formar sílabas por vogais
era uma coisa possível, pois a vogal forma um som perfeito, sem precisar de
ajuda de qualquer outra letra.
Após essa primeira apresentação, Midosi expôs uma outra sequência de
monossílabos. Novamente ocorreu a preocupação em graduar o ensino.
Primeiro, monossílabos de duas letras: formados apenas por vogais, por
consoante e vogal e por vogal e consoante. Nessa exposição, observamos que
alguns monossílabos foram acentuados, e a maioria foi finalizada por vogal.
Quanto aos acentos, ressaltamos que, para Midosi, eles eram utilizados para
marcar as sílabas que deveriam ser pronunciadas com mais força: “[...] Que
entendeis por acento? R: Entendo um certo sinal que se põe sobre as vogaes
para que se faça pronunciar com mais força [...]” (MIDOSI, 1831, p. 81).
Na segunda exposição, o autor destacou monossílabos constituídos por três
letras, finalizados, em sua maioria, por consoantes. Na terceira sequência, a
preocupação foram os monossílabos formados por quatro letras, porém, nessa
sequência, a prioridade foi a apresentação de monossílabos finalizados por
consoantes. Ressaltamos que, nas lições XII, XIII e XIV, as sílabas formadas
se constituíam em substantivos, verbos e pronomes. Supomos que uma das
intenções do autor pode ter sido a de fazer com que o aluno memorizasse
essas palavras para poder aplicá-las na escrita dos textos:
Figura 23 – Página do livro O expositor portuguêz ou rudimentos de ensino da língua, de Luis Francisco Midosi.Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Após a apresentação dos monossílabos, é proposto o ensino dos dissílabos.
Analisando essa exposição, observamos que, primeiro, ele se preocupou em
evidenciar os vocábulos iniciados e finalizados por vogais, sendo que essas
vogais iniciais já se constituíam numa sílaba (A-ba, U-va). Especificamente na
lição XV, as palavras se constituíam por vogal, consoante e vogal. (U = vogal, v
= consoante, a = vogal = Uva). Num segundo momento, ocorreu uma mescla
de palavras escritas por uma vogal, duas consoantes e uma vogal (A-bra=
Abra), uma vogal, uma consoante, uma consoante e uma vogal (Ar-ma=
Arma), uma vogal, uma consoante, uma consoante e uma vogal (As-no=Asno),
uma vogal, uma consoante, uma consoante e uma vogal (A-pto=Apto), uma
consoante, uma vogal, uma consoante e uma vogal (Ca-pa=Capa) e,
finalmente, as palavras escritas por vogal, consoante, vogal e consoante (A-
nil= Anil). Essa preocupação do autor em detalhar bem as sílabas era
primordial para que seu método fosse seguido, pois, a partir das divisões das
sílabas, o aprendiz poderia soletrar os textos por sílabas até aprender a ler por
períodos. Isso estava bem explícito nas lições do autor quanto à aprendizagem
da leitura:
Figura 24 – Página do livro O expositor portuguêz ou rudimentos de ensino da língua, de Luis Francisco Midosi.Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Analisando a representação gráfica da escrita das palavras divididas em
sílabas, observamos que todos os vocábulos foram escritos com as letras
iniciais maiúsculas. Diante das orientações do autor de que as letras
maiúsculas serviam para iniciar frases, compreendemos que, ao apresentar as
palavras com as iniciais maiúsculas, ele também estava pretendendo
evidenciar que essas palavras poderiam ser utilizadas no início das frases:
Figura 25 – Página do livro O expositor portuguêz ou rudimentos de ensino da língua, de Luis Francisco Midosi.Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Na segunda seção do livro de Midosi, a proposta objetivava mais do que ler
textos soletrados. Essa atividade se constituía na apresentação de 10 lições
em que os alunos aprenderiam a juntar as sílabas estudadas e, ao mesmo
tempo, se apropriariam de conceitos morais e normas disciplinares. No texto
abaixo, por exemplo, o autor apresentou dois personagens, um dos quais era
um cachorro. O texto salienta que até mesmo esse animal devia obediência ao
seu dono, pois carregava a carne na alcofa para entregá-la em tempo hábil.
Essa atitude do cachorro, ainda que fictícia, poderia levar a criança a imaginar
que, se até um cão era disciplinado, ela também deveria ser:
Figura 26 – Página do livro O expositor portuguêz ou rudimentos de ensino da língua, de Luis Francisco Midosi.Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Chartier (2007, p. 100) nos leva a considerar que essa forma de ensinar a
leitura fazia parte do modelo francês baseado na tradição do ensino cristão:
“[...] letras, sílabas, textos silabados, com palavras divididas em sílabas, textos
não silabados, sem listas de palavras entre as sílabas [...]”. Analisando a
proposta de ensino de Midosi, percebemos que ele seguia parte dessa
trajetória. Primeiro, os textos silabados para soletração das sílabas, depois, os
textos sem divisão silábica. Essa prática do autor também era semelhante à do
francês Jean-Baptiste de la Salle: “[...] o aluno passava diretamente das sílabas
ao texto silábico, o abecedário introduzia as palavras isoladas, classificadas em
função de seu tamanho ou do seu traço fonético [...]” (CHARTIER, 2007, p. 88).
Segundo Chartier (2007), quando essa proposta de ensinar textos pelas vias
da silabação foi adotada, teria sido necessário que fossem realizados
exercícios de viva voz, com duração de três a quatro horas diárias, com
professores em tempo integral para principiantes. Remetendo-nos ao ensino na
província do Espírito Santo na década de 1870, podemos dizer que isso era
quase impossível. Primeiro, porque os regulamentos da instrução pública
primária não previam professores particulares em tempo integral para nenhum
grupo específico com ônus para o governo. Existiam grupos que tinham suas
aulas com preceptores, mas esses grupos não eram pagos com dinheiro dos
cofres públicos. Segundo, porque, na província, não existiam grupos
específicos de alunos iniciantes. Conforme já explicitamos, as matrículas
abarcavam alunos de diferentes idades, e até mesmo os alunos repetentes
ficavam numa mesma classe junto aos iniciantes. As turmas eram mescladas.
Na terceira seção, os alunos aprenderiam a ler os textos por sentenças.
Segundo Midosi (1831), isso significava ler por período. O autor disponibilizou
13 textos para esse fim. Esse bloco de textos não apresentava mais a leitura
soletrada por sílabas, no entanto pressupunha a continuidade da soletração,
pois, após a exposição desses textos, o autor explicitava que o aluno poderia
continuar soletrando para alcançar uma leitura mais fluente, pois o simples fato
de saber soletrar já era indicativo de domínio da leitura.
Ao apresentar o texto “Lições de ler em períodos”, Midosi estava, também,
prescrevendo um modo de ler, aplicando as explicações dadas por ele próprio
no questionário de perguntas e respostas referentes ao ensino da língua. O
próprio título do texto, “Lições de ler em períodos”, já remetia o leitor a buscar
respostas ou a relembrar as questões postas no questionário, pois o autor
explicitava esse assunto nas páginas 82 e 83, quando também ensinava sobre
o que era pontuação:
[...] P. Que é necessário entender para bem entender a pontuação?
R. É necessário primeiro que tudo, saber o que é frase, o que é
período.
P. Que cousa é a frase?
R. É uma união de palavras que formam entre si um sentido
completo, se bem que dependentes de outras para os tornar perfeito.
P. Que cousa é um período?
R. É a união de diversas frases dependentes umas das outras,
ligadas entre si para formarem um sentido perfeito [...] (MIDOSI,
1831, p. 83).
Uma das preocupações do autor era explicar que a compreensão de um texto
dependia diretamente da constituição de suas frases. Esse era um aspecto
muito relevante, pois, se bem trabalhado, levaria o aluno a pensar que, na
leitura ou na escrita de um texto, não se poderia descuidar de relacionar as
frases para que o texto tivesse um sentido:
Figura 27 – Página do livro O expositor portuguêz ou rudimentos de ensino da língua, de Luis Francisco Midosi.Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Além das perguntas pertinentes à constituição das frases, o autor propunha
outras explicações quanto ao uso dos sinais de pontuação. Por certo, Midosi
esperava que, com o auxílio de suas explicações, o professor pudesse aplicar
o método por ele proposto.
Consideramos que as propostas de alfabetização constituídas no livro de
Midosi (1831) se adequavam aos programas de ensino dos regulamentos da
província na década de 1870. Além de apresentar os textos de base religiosa, a
obra ainda trazia textos e palavras para serem copiados nas aulas de caligrafia
e ainda focava o ensino da leitura e da escrita pelo método da soletração,
oficializado no ano de 1873.
O contexto educacional vivenciado por Midosi não abria mão de disciplinar os
sujeitos que frequentavam as escolas e acreditava no êxito do ensino da leitura
e da escrita pelas vias das unidades menores da língua. Concluir as análises
de suas propostas a partir dos estudos de Gontijo (2005) nos possibilita
evidenciar que as crianças da década de 1870 que foram alfabetizadas nessa
proposta não ultrapassaram a leitura mecânica dos textos. Infelizmente, as
crianças da década de 1870 não foram as únicas a serem privadas desse
benefício, pois, nos dias atuais, no Estado do Espírito Santo, muitas escolas
ainda adotam livros que partem das unidades menores do ensino da língua
para as aulas de alfabetização.
Finalizando as análises dos materiais e dos métodos de ensino que circularam
no Espírito Santo na década de 1870, concluímos que, apesar de ser corrente,
na década de 1879, o discurso sobre grandes inovações pedagógicas, as
práticas de ensino da língua não foram alteradas. Os livros de leitura utilizados
e os currículos previstos nos regulamentos demonstram também que as
mudanças nos métodos oficiais não implicaram modificações no ensino da
leitura e da escrita. As listagens de solicitação e envio de materiais
demonstram que havia uma prioridade em levar o aluno a copiar textos e letras,
objetivando uma boa caligrafia, pois, ao longo da década, materiais como
tabuinhas continuavam a fazer parte das listas de solicitações dos professores.
Desse modo, percebemos uma tendência em privilegiar o ensino pelo método
de marcha sintética. A não oficialização da proposta do método bacadafá, que
mesclava o método sintético e analítico, por si só, representa que, apesar do
discurso reformista, as práticas de ensino da leitura e da escrita não foram
alteradas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dialogando com os trabalhos de Graff (1111) e Gumperz (1111) percebemos
que durante o século XIX, a alfabetização foi concebida como instrumento
medidor da saúde social. De acordo com as análises constituídas no corpus
desse trabalho a população deveria ser escolarizada para que a ignorância
intelectual não ocasionasse situações de pobreza e criminalidade. Nessa
direção, a década de 1870, período por nós eleito para análise do ensino da
leitura e da escrita no Espírito Santo, também esteve permeada pelos ideários
iluministas.
De acordo com as colocações dos dois autores citados no parágrafo anterior
concluímos que o ensino da língua passou a ser promovido pela escola, sendo
organizado numa estrutura curricular que pressupunha a realização de testes
como instrumentos medidores da capacidade intelectual dos sujeitos. Nessa
direção, a escola passou a preparar os testes e a listar os materiais
necessários ao ensino. Sendo designada para organizar o currículo a escola
também passou a listar os materiais necessários as práticas de ensino e a
propor a uniformidade de metodologias que incidissem em práticas
pedagógicas mais satisfatórias. Essas peculiaridades da busca pelo ensino
metodologicamente uniformizado podem ser percebidas nos discursos das
autoridades imperiais quanto a instrução pública primária nas escolas de
primeiras letras brasileiras. Os trabalhos de Mortatti (2000) e Trindade (2002)
apontam a ocorrência de intensos debates em prol a metodização do ensino da
língua. Nas discussões não faltaram à ânsia por metodologias que de fato
dessem conta de alfabetizar um maior número de sujeitos e de programas que
atendessem as exigências dos ideais iluministas, que na época objetivavam
ensinar a ler, escrever e contar. Era grande o número de pessoas analfabetas.
Na província do Espírito Santo, no século XIX, os ideários pedagógicos
também objetivavam disseminar as luzes sobre toda a população. A
efervescência de discursos reformistas visando a melhoria das práticas de
ensino da leitura e da escrita foram recorrentes. Especificamente na década de
1870, os jornais transcreveram as falas dos inspetores da instrução pública
primária e demais autoridades evidenciando a necessidade de reformas na
instrução em detrimento da melhoria do ensino. Esses discursos reformistas
não partiam exclusivamente de autoridades como os inspetores, mas também
eram originados das falas dos deputados nas ocasiões em que esses
parlamentares se reuniam para tratar das políticas públicas pertinentes a
educação primária. Os presidentes da província também se enunciaram em
seus relatórios deixando transparecer a necessidade de reformar a instrução
pública.
Como dito em nosso estudo a instrução pública capixaba passou por três
regulamentos e um regimento ao longo da década de 1870. É importante
salientar que essas quatro propostas buscaram entre outras coisas metodizar
oficialmente o ensino e ao mesmo prescrever os programas de ensino
destinados ao ensino da leitura e da escrita. Ao longo do período tivemos a
oficialização do método mútuo, do método simultâneo, do misto e até mesmo
da autorização para a mescla de métodos. O método misto e o simultâneo
eram considerados mais modernos, a utilização do primeiro garantia a
continuidade de métodos antigos como o mútuo e o individual. Isso nos leva a
analisar que apesar do discurso reformista a utilização do método misto tem a
demonstrar que as práticas não eram modificadas, pois se esse método
congregava elementos de métodos mais antigos constituindo-se em práticas
conservadoras já instituídas não haveria mesmo modificação no ensino da
leitura e da escrita.
Em curto período tivemos uma verdadeira oscilação metodológica que vinha
sempre acompanhada do desejo de melhoria do ensino, mas apesar da
eloqüência dos discursos reformistas, isso não aconteceu, porque políticas
públicas de alfabetização fortalecedoras de práticas de ensino promotoras da
aprendizagem da leitura e da escrita precisam ser pensadas para além da
economia de recursos, e na verdade tanto o método simultâneo como o
método misto não tinham outra finalidade, senão a de prover a alfabetização
com parcos recursos, mantendo-se os espaços físicos escolares em péssimas
condições e uma ausência de provimento da formação de professores.
Reformas educacionais que não tem clareza de seus objetivos ou que não
estejam voltadas para a formação da consciência crítica do sujeito não podem
resultar em melhoria na qualidade do ensino. Além disso, a oficialização de
metodologias não basta para resolver problemas de analfabetismo, entre
outras coisas, e preciso prover a formação e a remuneração dos profissionais
da educação, o número de escolas suficientes para os alunos e as condições
adequadas de funcionamento das escolas. Infelizmente, essa não era uma
realidade da província, desde o início da década de 1870, na oficialização do
método mútuo, se pensava em escolarizar um grande quantitativo de pessoas,
mas não existiam escolas suficientes e sem utilização dos recursos dos cofres
públicos esse serviço ficava inviável.
Com programas que se destinavam a ensinar a ler, escrever e contar, se
pensava em ensinar alguns rudimentos de gramática a partir de impressos de
marcha sintética sem considerar aspectos como a relação sons e letras e da
relevância do trabalho da produção de textos orais e escritos discutidos por
Gontijo (2005). Estranhamente estamos há uma distância cronológica de pelo
menos 140 anos da década de 1870, e ainda não vislumbramos mudanças. As
políticas públicas de alfabetização ainda são inconsistentes, imediatistas e por
mais curioso que possa parecer, o governo do Estado do Espírito Santo ainda
usa como marketing da Secretária de Estado da Educação e Cultura, um
projeto de ensino intitulado “Ler, escrever e contar”. Ainda estamos em busca
dessa conquista.
Vale a pena ressaltar que a concepção que orientou os programas de ensino e
os materiais impressos utilizados na província do privilegiou o estudo das
unidades menores. A decomposição do ensino em sílabas, palavras e frases
visava alcançar a leitura de textos que inicialmente também eram decompostos
em sílabas e depois em frases, no entanto esse procedimento não trazia bons
resultados, os relatos das autoridades provinciais deixaram transparecer que
as crianças não aprendiam a ler, e ainda eram constrangidas por torturas
físicas e psicológicas por não aprender, e mesmo assim não conseguiam bons
resultados. Refletir sobre esses aspectos é muito importante, e nos leva a
perceber que as punições não podem gerar aprendizado. Fortalecidos em
Vigotski (1111) dizemos que a cultura é o resultado da prática social do
indivíduo. Nessa direção dizemos que a linguagem escrita que também é
resultado dessa prática social precisa ser ensinada a partir da mediação. É
necessária uma prática de ensino que faça a criança refletir sobre aspectos
relevantes da língua. Essa reflexão precisa ser orientada por um trabalho
pedagógico contextualizado a partir de textos que instiguem a problematização
sobre aquilo que está sendo lido.
Infelizmente as práticas de ensino que se constituíram na província na década
de 1870 não levaram em conta a problematização dos textos, a ênfase do
ensino estava voltada para a cópia e a memorização. As crianças decifravam
letras e textos, e não esqueçamos que tudo era feito sem que o aluno pudesse
se expressar oralmente. O silêncio era uma marca registrada do século XIX e
foi traçado como metodologia no método mútuo acompanhando o percurso
trilhado pelo método simultâneo e o misto. Isso também nos traz reflexões
muito instigantes e nos leva a perceber que embora o sujeito tivesse uma
responsividade ou dúvida acerca do conteúdo não poderia expressar. Isso
gerava um desconforto que não seria rompido.
Ao finalizar é importante destacar que os problemas apontados nesse relatório
romperam a década de 1870. Não ocorreram mudanças de qualquer ordem. As
escolas continuaram funcionando em condições de precariedade, os
professores não obtiveram formação adequada e os materiais de ensino não
foram suportes que facilitaram a aprendizagem da língua, mas também não
foram substituídos por materiais mais modernos. Parece que as falas
reformistas, não romperam o plano discursivo. Até mesmo a gratuidade tão
defendida pelo presidente Tomé da Silva em 1873 logrou êxitos. Sobre esse
quadro de dificuldades no ensino da língua na década de 1870, temos a dizer
que não foi modificado. Temos um grande número de crianças que não
conseguem aprender, ainda não há vaga para todos e curiosamente, segundo
dados apresentados pelo NEPALES, o material impresso mais solicitado para
as aulas de ensino da língua no Espírito Santo também não privilegia a
produção de textos orais e escritos e não trabalha na perspectiva do
desenvolvimento da consciência crítica. Estamos novamente falando na
necessidade de mudanças nas práticas, mas estamos caminhando na direção
contrária.
6 REFERÊNCIAS
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