universidade federal do cearÁ prÓ-reitoria de … · ... cujas aulas eram uma oportunidade única...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO FACULDADE DE MEDICINA MESTRADO EM SAÚDE PÚBLICA JOCÉLIA MARIA DE OLIVEIRA PROCESSO COMUNICATIVO DO AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE DURANTE A ABORDAGEM COM GESTANTES E PUÉRPERAS VIVENDO COM HIV FORTALEZA 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

FACULDADE DE MEDICINA

MESTRADO EM SADE PBLICA

JOCLIA MARIA DE OLIVEIRA

PROCESSO COMUNICATIVO DO AGENTE COMUNITRIO DE SADE

DURANTE A ABORDAGEM COM GESTANTES E PURPERAS

VIVENDO COM HIV

FORTALEZA

2013

JOCLIA MARIA DE OLIVEIRA

PROCESSO COMUNICATIVO DO AGENTE COMUNITRIO DE SADE

DURANTE A ABORDAGEM COM GESTANTES E PURPERAS

VIVENDO COM HIV

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

Graduao em Sade Pblica, da Faculdade de

Medicina da Universidade Federal do Cear,

como requisito parcial para a obteno do ttulo

de Mestre. rea de concentrao: Polticas,

Ambiente e Sociedade.

Orientadora: Prof.a Dr.a Mrcia Maria Tavares

Machado.

FORTALEZA

2013

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao

Universidade Federal do Cear

Biblioteca de Cincias da Sade

O47p Oliveira, Joclia Maria de. Processo comunicativo do agente comunitrio de sade durante a abordagem com gestantes e

purperas vivendo com HIV/ Joclia Maria de Oliveira. 2013.

105 f.

Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal do Cear. Faculdade de Medicina. Programa de Ps-Graduao em Sade Pblica, Fortaleza, 2013.

rea de Concentrao: Polticas, ambiente e sociedade.

Orientao: Prof.a Dr.a Mrcia Maria Tavares Machado.

1. Comunicao. 2. Agente Comunitrio de Sade. 3. Gestante. 4. HIV. I. Ttulo. CDD 362.1

Ao meu filho Edilson, por tudo o que significa

para mim, sentimento indescritivel com

palavras.

AGRADECIMENTOS

Para escrever os agradecimentos, consultei inmeras vezes minha memria e pude

recordar experincias vividas desde as etapas do processo seletivo do Mestrado em Sade

Pblica. importante dizer o quo prazeroso foi me aproximar dessas memrias que me

subsidiram a escrever, de forma afetuosa, estes agradecimentos:

A Deus, somente Ele sabe o quanto sonhamos, trabalhamos e lutamos para atingir

nossos objetivos. Obrigado por mais esta conquista!

Aos meus pais, Jos e Clia, por dedicarem suas vidas minha formao como ser

humano e profissional. Essa conquista tambm de vocs.

minha querida irm, Vernica, por sempre me estimular e me aproximar do

universo acadmico.

Ao Gustavo, meu amor, que acompanha distncia minha trajetria profissional e

me incentiva sua maneira nica de ser.

minha orientadora, professora doutora Mrcia Machado, exemplo de profissional e

de ser humano. Obrigada por suas valiosas contribuies na minha formao acadmica e

neste trabalho, mas, acima de tudo, agradeo imensamente por acreditar na minha capacidade.

professora doutora Alix Arajo e professora doutora Socorro Cavalcante, por

aceitarem gentilmente o convite para participar desta banca examinadora. Agradeo pelos

apontamentos e consideraes.

professora doutora Marli Galvo e ao professor doutor Alberto Novaes, pelas

contribuies durante a feitura deste objeto de estudo.

s agentes comunitrias de sade que particiram desta pesquisa, mulheres guerreiras

que contriburam com suas experincias do dia a dia vividos na comunidade.

A amiga Kellyane Abreu, pela disponibilidade em ajudar na fase inicial da coleta de

dados.

Secretaria Municipal de Sade de Canind, pela oportunidade de realizao deste

estudo.

A Coordenao do Mestrado, nas pessoas de Zenaide e Dominique. Obrigada pela

ateno e disponibilidade com que vocs gentilmente nos atendem.

A todos os professores do Mestrado em Sade Pblica, especialmente professora

doutora Maria Lcia Bosi e professor doutor Ricardo Pontes, cujas aulas eram uma

oportunidade nica de ampliar a esfera do ser.

Aos meus amigos queridos da turma do mestrado, obrigada pelas maravilhosas

experincias que vivemos juntos; j sinto saudades dos nossos encontros dirios.

Sou grata, especialmente, a minha amiga Luclia Saraiva, por todos os finais de tarde

que ensejavam reflexes acerca do projeto e das vivncias de nossa formao. Voc a irm

que eu pude escolher!

Ao grupo de pesquisa em Sade Materno-Infantil, conduzido pela professora doutora

Mrcia Machado, pelas oportunidades de debate e reflexo. Com vocs sinto-me abraada por

uma famlia.

Por fim, agradeo aos amigos e colegas de trabalho, com quem muitas vezes

partilhei as alegrias e desafios dessa maravilhosa experincia de adentrar o mundo da cincia.

A linguagem permite a emergncia do espirito

humano, necessrio a todas as operaes

cognitivas e prticas, inerente a toda

organizao social.

(MORIN, 2001)

RESUMO

O espao de atuao do agente comunitrio de sade (ACS) tem como foco principal o

acompanhamento de mulheres no ciclo gravdico-puerperal, cenrio em que desenvolve sua

ao comunicativa, cercado pelas relaes que demarcam a necessidade de articulao com a

gestante, comunidade e demais profissionais que compem a equipe da Estratgia Sade da

Famlia. O aumento da deteco de casos de HIV na vigncia da gestao evidencia a

necessidade de promover acompanhamento que garanta adeso ao tratamento e promova o

cuidado a essa gestante. Ante a complexidade dessa relao, teve-se como objetivo

compreender o processo comunicativo do ACS estabelecido durante a abordagem com

gestantes e purperas que vivem com o HIV, identificar as estratgias que utilizam nesse

processo, bem como suas facilidades e dificuldades. Estudo qualitativo, desenvolvido luz do

interacionismo simblico, entrevistando oito ACS que acompanharam gestantes e purperas

vivendo com o HIV, no perodo de janeiro de 2007 a julho de 2012, no Municpio de Canind-

CE. O corpus emprico foi categorizado em cinco categorias centrais: 1. Identificando

gestante/puerpra com HIV na comunidade; 2. Significado do HIV para a ACS; 3.

Acompanhamento realizado pela ACS; 4. Desvelando o processo comunicativo da ACS

durante a abordagem com gestantes e purperas vivendo com o HIV; 5. Interligaes com o

mundo da vida. Os resultados obtidos foram analisados conforme a tcnica de anlise do

discurso, com reflexes ancoradas no referencial terico de Habermas, Morin e literatura

especializada. Identificou-se o fato de que a gestante revela seu status sorolgico ACS em

razo do vnculo constitudo e da facilidade de acesso ao servio de sade. Por outro lado, o

acolhimento humanizado da ACS se relaciona ao sentimento de tristeza atribudo doena.

Apesar de buscarem conceituar tica como guardar sigilo, h um conflito entre comunicao e

tica na autocompreenso desse conceito na divulgao de informaes na equipe de sade.

Desenvolvem sua comunicao com as mulheres quando descrevem suas orientaes de forma

dinmica e ciclica, com base num agir estratgico mediante uma imposio disfarada,

induzindo a gestante/puerpra a aceitar sua convico como vlida. Apesar de ser uma

estratgia que foge do agir comunicativo proposto por Jurgen Habermas, as ACS se sentem

felizes por terem a confiana das mulheres e pelo fato de representarem uma referncia para a

comunidade, mas apontam como dificuldades a sobrecarga de trabalho, a ausncia de

capacitaes permanentes, a indefinio no seu papel e problemas de ordem socioeconmica

vivenciados pelas gestantes.

Palavras-chave: Comunicao. Agente Comunitrio de Sade. Gestante. HIV.

ABSTRACT

The performance space of the community health worker has as its main focus the monitoring

of women in pregnancy and childbirth, in that scenario develops his communicative action,

surrounded by relations that demarcate the need for coordination with patient, community and

other professionals who make up the staff of the Family Health Strategy. Increased detection

of HIV in the presence of pregnancy has shown the need for further monitoring to ensure

adherence to treatment and care will promote this pregnant. Given the complexity of this

relationship, we aimed to understand the communication process established during the

Community Health Worker approach with pregnant and postpartum women seropositive for

HIV, identify the strategies that you use this process, as well as their strengths and difficulties.

Qualitative study, developed in light of symbolic interactionism, interviewing eight

Community Health Worker accompanying pregnant and postpartum women seropositive for

HIV from January 2007 to July 2012 in the city of Canind-CE. The empirical corpus was

categorized into five main categories: 1. Identifying pregnant / postpartum women with HIV

in the community; 2. Meaning of HIV to ACS; 3. Monitoring conducted by Community

Health Worker; 4. Unveiling the communication process during the ACS approach with

pregnant and postpartum women seropositive for HIV; 5. Connections with the "life-world".

The results were analyzed according to the technique of discourse analysis, with reflections

grounded in the theoretical framework of Habermas, Morin and literature. We identify the

pregnant woman reveals his HIV status to Community Health Worker due to the bond built

and ease of access to health services. Moreover, the host of humanized Community Health

Worker relates to the feeling of sadness attributed to the disease. Despite seek conceptualize

ethics as secrecy, there is a conflict between communication and ethics in the self-

understanding of this concept in the disclosure of information in the health team. Develop

your communication with women when describing their orientations in a dynamic and cyclic,

based on a strategic action by a levy disguised, inducing pregnant / postpartum women to

accept his conviction as valid. Despite being a strategy that avoids the communicative action

proposed by Jurgen Habermas, the community health worker are happy to have the

confidence of women and because they represent a reference point for the community but the

difficulties as work overload, lack of training permanent uncertainty in its role and problems

of socio-economic order experienced by pregnant women.

Keywords: Communication. Community Health Worker. Pregnant. HIV.

LISTA DE ILUSTRAES

Figura 1 Comunicao em dois fluxos........................................................ 21

Figura 2 Interao Estratgica x Interao Comunicativa... 24

Figura 3 Modelo de Anlise........................................................ 52

Figura 4 Fluxo relacional de categorias .. 56

Figura 5 Comunicao como processo de mltiplas vias ... 84

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Caracterizao das ACS entrevistadas. 55

Quadro 2 Categorizao do corpus emprico 57

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACS Agente Comunitrio de Sade

AIDS Sndrome da Imunodeficincia Adquirida

AZT Zidovudina ou Azidotimidina

CAPS Centro de Ateno Psicossocial

CAPS A/D Centro de Ateno Psicossocial Alcool/Drogas

DST Doena Sexualmente Transmissvel

ESF Estratgia Sade da Famlia

EqSF Equipe Sade da Famlia

HIV Vrus da Imunodeficincia Humana

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica

IDH ndice de Desenvolvimento Humano

NASF Ncleo de Apoio ao Sade da Famlia

PAM Plano de Aes e Metas

PIB Produto Interno Bruto

SAE Servio Ambulatorial Especializado

SESP Servio Especial de Sade Pblica

SMX Sulfametoxazol

TARV Terapia Antirretroviral

TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

TMP Trimetoprima

TV Transmisso Vertical

SUMRIO

1 AS MOTIVAES PARA DESENVOLVIMENTO DO ESTUDO............ 14

2 INTRODUO ................................................................................................ 16

3 O PROCESSO COMUNICATIVO INTERLIGADO ABORDAGEM

COM GESTANTES E/OU PUERPRAS VIVENDO COM O

HIV......................................................................................................................

18

3.1 A comunicao no trabalho do agente comunitrio de sade ...................... 18

3.2 Fundamentao da Teoria da Ao Comunicativa, de Jurgen Habermas... 24

3.3 O trabalho do agente comunitrio de sade e sua formao ...... 27

3.4 Relao do agente comunitrio de sade com a comunidade . 33

3.5 Acompanhamento das mulheres no ciclo gravdico-puerperal pelo agente

comunitrio de sade ...

35

3.6 Acompanhamento de gestantes e purperas que vivem com o HIV pelo

agente comunitrio de sade.

36

3.7 Contextualizao da epidemia de HIV/AIDS...... 42

4 OBJETIVOS... 45

4.1 Objetivo Geral 45

4.2 Objetivos Especficos. 45

5 PERCURSO METODOLGICO... 46

5.1 Cenrio do estudo 47

5.2 Sujeitos da pesquisa... 48

5.3 Coleta de dados . 48

5.4 A anlise dos dados.... 52

5.5 Compromisso tico... 53

6 RESULTADOS E DISCUSSO.. 55

6.1 A gestante e puerpra com HIV na comunidade ... 58

6.2 Significado do HIV para a ACS .. 62

6.3 Acompanhamento realizado pela ACS ... 65

6.4 Descoberta do processo comunicativo da ACS durante a abordagem com

gestantes e puerpras soropositivas para HIV ...

78

6.5 Interligaes com o mundo da vida 85

7 CONSIDERAES FINAIS ... 90

REFERNCIAS ..................... 94

APNDICE A ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA. 101

APNDICE B - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E

ESCLARECIDO..

102

APNDICE C FICHA DE DOCUMENTAO.. 103

ANEXO A PARECER DO COMIT DE TICA E PESQUISA DA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR .

104

ANEXO B - DECLARAO DA ACADEMIA CEARENSE DA LNGUA

PORTUGUESA.......

105

14

1 AS MOTIVAES PARA DESENVOLVIMENTO DO ESTUDO

As pesquisas nascem de determinado tipo de insero no

real, ele encontrando razes e objetivos.

Ceclia Minayo (2011)

A aproximao com o objeto de estudo aqui exibido se deu por meio de nossa

vivncia num servio de vigilncia epidemiolgica de mbito municipal e na gesto da

Poltica de Incentivo s aes voltadas para HIV/AIDS, onde, medida que surgiam

notificaes de gestante soropositiva para HIV, nos inquietavam os relatos dos agentes

comunitrios de sade (ACS).

O cenrio de nossa pesquisa foi o Municpio de Canind, cidade que no Estado do

Cear evidencia fortemente seu cunho religioso voltado s romarias dedicadas a So Francisco

das Chagas, aglomerando pessoas procedentes de vrios estados do Pas durante os festejos do

Padroeiro. No ano de 2008, o Municpio foi beneficiado com o PAM (Plano de Aes e

Metas) pelo nmero de casos notificados de Aids, expressando a magnitude da epidemia no

territrio. O PAM uma poltica de incentivo financeiro que foi instituda em dezembro de

2002, por meio da Portaria Ministerial 2.313, e consiste em programar metas e aes

estratgicas que fortaleam a preveno e tratamento das Doenas Sexualmente

Transmissveis (DST)/HIV/Aids (BRASIL, 2002).

A implantao do PAM em Canind seguiu linhas de prioridades voltadas para a

ampliao da oferta de sorologia anti-hiv para 100% das gestantes, acompanhamento da

gestante e puerpra pela EqSF (Equipe de Sade da Famlia), capacitao de profissionais de

sade e campanhas de testagem de HIV para a populao.

Chamou-nos a ateno o envolvimento e o interesse do ACS no acompanhamento

das gestantes e puerpras que vivem com o HIV no seu territrio de trabalho. Em algumas

histrias que pudemos acompanhar, as mulheres buscavam apoio do ACS para tentar resolver

aspectos relacionados ao seu encaminhamento para servio especializado e orientaes,

independentemente se este profissional estava no seu horrio de trabalho ou no. Em outras

situaes, o status sorolgico dessa gestante no era informado ao ACS, que passava a fazer

suas visitas de acompanhamento pr-natal desconhecendo os motivos pelos quais a mulher

passou a realizar atendimentos em municpio de referncia, ou o porqu de a mulher no

amamentar aquela criana aps o parto.

15

Pudemos escutar, com base no relato de uma ACS, que uma puerpra amamentou

a criana mesmo conhecendo seu status sorolgico. Para a profissional, ela possuia o

conhecimento da conduta para no amamentar, pois, h algum tempo, estava sendo

acompanhada por unidade de referncia e fazia seguimento regular. Por isso, a ACS

acreditava que ela conhecia o risco da transmisso vertical.

O ACS desenvolve suas aes por meio de orientaes que possam promover

escolhas saudveis. Nesse sentido, percebamos que existia uma interao do ACS com as

gestantes e puerpras que vivem com HIV, mas, por outro lado, refletamos sobre como se

dava esse processo de comunicao. Assim, ante a complexidade dos aspectos que envolvem

o diagnstico de gestantes soropositivas para HIV durante o pr-natal, surgiam inquietaes

sobre: como o ACS desenvolve o processo comunicativo na abordagem com gestantes e

purperas que experienciam a infeco por HIV? Como se relacionam com as famlias dessas

mulheres e seus parceiros? Como orientam as mes que no devem amamentar, mas adotar

cuidados para uma correta alimentao de seu filho? Como lidam, como membro da

comunidade, com o sigilo das informaes? O ACS estaria preparado para trabalhar com as

purperas que convivem com o HIV?

Nessa perspectiva, pesquisar sobre o processo comunicativo do agente

comunitrio de sade durante a abordagem com gestantes e purperas que vivem com HIV

poderia apontar uma compreenso das relaes estabelecidas durante essa vivncia,

principalmente pelo fato de que o ACS o profissional que, dentro da equipe, assume o papel

de mediador da comunicao entre os usurios e a EqSF.

Considerando que o cenrio familiar atual exibe mudanas na sua dinmica, a

relevncia deste estudo est na possibilidade de desvelar a comunicao entre ACS e gestante

acerca de assuntos confidenciais, para que, com suporte nos resultados, seja possvel

promover aes factveis s necessidades das gestantes e puerpras que vivem com HIV.

16

2 INTRODUO

A palavra processo nos traz a ideia de mtodo ou forma com que se realiza alguma

coisa. Por outro lado, a comunicao a capacidade de debater ideias com vistas ao

entendimento entre as pessoas. Nesse sentido, definir comunicao , ao mesmo tempo,

associa-la a interao, pois a comunicao traz consigo uma interao marcadamente dialtica,

sendo estas essenciais e complementares.

Por discorrer sobre o processo comunicativo do ACS, buscamos inspirao na

Teoria de Ao Comunicativa, de Jurgen Habermas, ao descrever que os critrios e os fins da

ao humana (morais e ticos) necessitam de fundamentao racional pela impossibilidade de

serem deduzidos dos fatos, onde os aspectos do mundo social e da subjetividade, que antes

ficavam margem das decises racionais, passam ao mbito da crtica racional, j que so

possveis de entendimento intersubjetivo (BOUFLEUER, 2001).

A Teoria da Ao Comunicativa, de Jurgen Habermas, est ancorada na

concepo das funes da linguagem: representativa (o falar sobre algo no mundo), interativa

( o comunicar-se com o outro) e expressiva (expresso do que se tem em mente). Assim, as

funes da fala tm como fundamento esclarecer as condies que normalmente precisam ser

satisfeitas em qualquer ao comunicativa (MACHADO; LEITO; HOLANDA, 2005).

O desenho desse objeto de pesquisa conduz-nos a aprofundar temticas

relacionadas aos valores humanos, no apenas por abordar a perspectiva da ao

comunicativa, que est fortemente vinculada interao, mas, tambm, por adentrar assuntos

ntimos da vida das pessoas e que, muitas vezes, so considerados complexos. No caso de

nosso estudo, cuidamos da temtica de gestantes e puerpras vivendo com HIV. Assim,

buscamos fazer a vinculao aos pensamentos de Edgar Morin, quando trata da razo como

um dilogo que se mantm com um mundo exterior e da complexidade como o tecido de

acontecimentos, aes, interaes, retroaes, determinaes, acasos, que constituem nosso

mundo e que no devem ser dissociadas do contexto vivenciado pelo homem (MORIN,

2011).

O espao de atuao do ACS, local onde desenvolve sua ao comunicativa,

cercado de relaes, demarcando a necessidade de articulao com a comunidade e demais

profissionais que compem a EqSF para promover o cuidado gestante/puerpra que vive

com o HIV.

17

Cabe explicitar, ainda, o fato de que utilizamos alguns conceitos de comunicao,

delineados a seguir, para dar conta da complexidade que envolve o processo de comunicao

do ACS quando confrontado com a realidade da abordagem de gestantes e puerpras com

HIV. Dessa forma, descreveremos quem o ACS sob a tica do processo comunicativo e no

acompanhamento de gestantes e puerpras que vivem com o HIV.

A elaborao do estado da arte foi organizada em captulos para inserir o leitor nos

detalhes essenciais para compreenso do processo discursivo, constitudo ao final da

dissertao. Em seguida, adentramos o percurso metodolgico, revelando a trajetria que

subsidiou a feitura da anlise do discurso, apreendido por meio de entrevistas ao ACS.

Os resultados deste estudo visam a contribuir com as necessidades apontadas pelos

servios de sade e pelos segmentos sociais, com vistas a melhorar a qualidade de vida das

mulheres que experienciam a infeco por HIV na vigncia do ciclo gravdico-puerperal no

mbito da comunidade, e que so assistidas pela ateno bsica, com vistas a reduzir o

preconceito e o estigma, orientando o processo de educao permanente, em especial do ACS.

18

3 O PROCESSO COMUNICATIVO INTERLIGADO ABORDAGEM DE

GESTANTES E/OU PUERPRAS VIVENDO COM HIV

3.1 A comunicao no trabalho do agente comunitrio de sade

A comunicao um recurso que possibilita a transmisso de mensagens, tanto no

plano individual, como no coletivo. No mbito da comunicao em sade, essas mensagens se

delineiam em torno de orientaes e cuidados baseados, tambm, sob a gide da promoo em

sade. Para uma melhor compreenso da dinmica da comunicao, Waltzlawick et al (1967)

dividiram a comunicao em contedo e relacionamento. O contedo representado pelas

palavras, mensagens e informaes transmitidas, ao passo que o relacionamento sintetiza a

dinmica entre aqueles que se comunicam.

Teixeira (1996) define comunicao em sade como a utilizao de estratgias de

comunicao para transmitir informao e influenciar as decises de indivduos e

comunidades para promoo da sade. Percebe-se nesse conceito a amplitude de reas nas

quais a comunicao est inserida diretamente, onde se incluem mensagens que podem ter

vrias finalidades, desde uma simples educao em sade at informao sobre exames e

resultados. Dessa forma, trata-se de um assunto transversal presente em muitos contextos.

Na interdependncia do indivduo em relao ao seu meio est a troca de

informao, ou seja, a comunicao, e este sempre foi um campo imprescindvel

(WALTZLAWICK ET AL, 1967).

A comunicao pode ser entendida sob um duplo sentido. O primeiro, a partir da

origem da palavra, oriunda do latim comunicare, quer dizer comunho, estar com,

compartilhar de alguma coisa. O segundo, embora tambm seja derivado da mesma raiz etimolgica, entendido na perspectiva de dar conhecimento s pessoas, de

alguma coisa informar (OLIVEIRA, 2011).

Waltzlawick et al, (1967) consideram que o comportamento, numa circustncia de

interao, tem valor de mensagem, sendo, portanto, uma forma de comunicao. Assim, no

h possibilidade de no comunicar, pois a atividade, inatividade, as palavras e at mesmo o

silncio tm um valor de mensagem.

Assim, consideramos que a comunicao um processo essencial, intencional,

planejado, multidimensional, baseado nas trocas interpessoais e, por isso, est influenciada por

diversos fatores (CORCORAN, 2010).

19

Sobre o contedo das mensagens, Corcoran (2010) expressou que a comunicao

pode ser dividida em verbal e no verbal. A comunicao verbal representada pela

linguagem e o contedo lxico, que significa literalmente a palavra. O contedo lxico

importante, pois, desde o momento em que os profissionais de sade se utilizam da palavra

para transmitir as informaes, usar termos tcnicos pode confundir as mensagens e excluir a

populao que est, neste momento, como receptora desse contedo. Por outro lado, o uso de

repeties e palavras que possibilitem a compreenso influencia positivamente a disperso do

contedo das mensagens.

Outras caractersticas, como os elementos da prosdia, paralingustica, cinsica e

figura, tambm influenciam a comunicao verbal. Os elementos prosdicos so a entonao e

o ritmo com as mensagens so transmitidas, onde o emissor pode mudar o sentido da

mensagem de acordo com o ritmo em que essa informao transmitida. As caractersticas

paralingusticas abrangem as expresses vocais, que so elementos no verbais, mas que

podem mudar o sentido da mensagem que est sendo comunicada. Os elementos cinsicos

compreendem a linguagem corporal, o gesto, a postura, o contato visual, o que pode dar

margem a diferentes interpretaes de mensagens conforme as utilizamos. A figura est

relacionada aparncia, o que pode incluir as vestimentas, sexo, grupo tnico, alm de outros.

Considerando esses aspectos envolvidos no processo de comunicao, a forma

como transmitimos as mensagens tem importncia fundamental para que uma mensagem

chegue de uma forma adequada at seu receptor.

Com origem em um resgate da literatura, observamos que muitos estudos trazem a

comunicao no contexto de profissionais de sade de nvel superior, reproduzindo uma

hegemonia tcnica desvinculada da proposta de trabalho interdisciplinar. Sobre esse assunto,

Arajo (2009) refora a necessidade de investigaes que se ocupem da comunicao de

outras categorias profissionais que atuantes em sade, alm da incluso da perspectiva do

paciente e da dimenso socioemocional para complementar o olhar do profissional, muito

privilegiado at o momento.

O ACS atua como facilitador da comunicao que se estabelece na integrao dos

servios de sade com a comunidade (NUNES et al, 2002). Cardoso e Nascimento (2010), na

tentativa de identificar os principais interlocutores que influenciam na forma de comunicao

dos agentes comunitrios de sade, constatou que a prtica de atuao desses profissionais

ainda centrada no modelo de doena e avaliada por medidas prescritivas, consequncia do

modelo hierrquico do sistema de sade, fazendo com que as relaes dos agentes

20

comunitrios de sade tenham uma interao insuficiente, tanto com a equipe como com a

comunidade, revelando a importncia de refletir e avaliar o processo de trabalho e a formao

desses profissionais quanto centralidade do dilogo, das trocas e das negociaes com a

comunidade.

Os processos de informao e comunicao em sade tm importncia crtica e

estratgica, porque podem influenciar significativamente o comportamento e a avaliao que

os usurios dos servios fazem da qualidade dos cuidados de sade, a adaptao psicolgica

doena e os comportamentos, incluindo a adeso medicamentosa. Quando os usurios dos

servios de sade fazem uma avaliao da qualidade dos cuidados de sade prestados, grande

parte dessa avaliao baseada nas competncias comunicacionais dos profissionais com os

quais interagiram (TEIXEIRA, 1996).

Apesar da criao de espaos para participao social conforme os pressupostos do

SUS e do PSF, Cardoso e Nascimento (2010) concluem que:

A prtica da comunicao tradicional se repete, com as vozes dominantes

procurando manter seu lugar de fala, a valorizao de discursos verticalizados e

uma escuta ainda reduzida de outros segmentos sociais, sendo esta uma das grandes

dificuldades para avanarmos no processo de compreenso e de mudana efetiva nas dinmicas locais.

Por isso, a qualidade da comunicao pode determinar o sucesso de uma poltica

pblica, partindo do principio de que esta s se constitui, efetivamente, quando implementada

na prtica e passa a ser utilizada pela populao.

Historicamente, o componente educativo passou a compor as polticas de sade

criadas e consolidadas com a criao de servios em que na maioria das vezes necessitava de

alguma mudana de hbito da populao e interveno direta sobre seus costumes e prticas,

como, por exemplo o Servio Especial de Sade Pblica (SESP) e, mais recentemente, a

introduo de um mediador nesses programas, o ACS.

O ACS, conforme j descrito, tem como uma de suas atribuies o

acompanhamento de gestantes, purperas e recm-nascidos de sua rea adstrita, entre outras

atividades. Em relao s atividades de comunicao na assistncia pr-natal, Moura e

Rodrigues (2003) descrevem que estas devem ser priorizadas, pois o intercmbio de

informaes e experincias uma das melhores formas de orientar as gestantes, companheiros

e familiares. Efetivamente, o contexto no qual se insere a Estratgia Sade da Famlia (ESF)

favorece uma prtica efetiva da comunicao por atuar no espao em que ocorre a dinmica

21

dos fatores que influenciam a sade, ou seja, um espao vivo e que tem como ao prioritria

a educao em sade.

A educao em sade transmitida populao por via de informaes e

comunicao. A informao e comunicao esto interligadas, apesar de no serem

sinnimos. A informao est relacionada ao contedo ou assunto a ser repassado, enquanto a

comunicao circunscrita aos procedimentos aos quais a informao pode ser tratada e

transformada em saberes pelas pessoas e instituies (ARAJO; CARDOSO, 2007).

Essa prtica pode revelar a ideia de comunicao como informar ou dar

conhecimento de alguma coisa a algum numa relao hierarquizada, em que o emissor detm

o papel de selecionar e emitir mensagens, cabendo ao receptor a tarefa de interpret-las. Ou,

em outra perspectiva, a comunicao pode ocorrer num processo horizontal, onde o dilogo

sua principal caracterstica. Assim, os interlocutores podem emitir e receber mensagens,

interpret-las e reinterpret-las para constituio de um significado (OLIVEIRA, 2011).

A teoria do Two step flows, de Lazarsfeld e Elihu Katz, publicada em 1955 e

utilizada por Arajo e Cardoso (2007) em seu livro Comunicao e Sade remete a uma ideia

de comunicao unidirecional.

Figura 1 Comunicao em dois fluxos

Fonte: Adaptao do modelo da comunicao em dois fluxos (two step flows) de Lazarsfeld e Katz por Arajo e

Cardoso (2007).

Essa teoria reconhece que as pessoas pertencem a grupos sociais e que estes grupos

tm as prprias dinmicas, superando a ideia de transmissor e receptor que no levavam em

conta nenhum aspecto textual. Mantm, no entanto, linearidade, unidirecionalidade e a

concepo da linguagem como conjunto de cdigos transferveis. Dessa forma, grande parte

22

da comunicao que promovida, ou somos induzidos a promover, est relacionada posio

e hierarquia das pessoas nos grupos ou na sociedade (OLIVEIRA, 2011).

Provavelmente, por estes motivos, a sade incorporou estratgias de comunicao

em alguns programas estruturantes da ateno sade, entretanto, alguns conceitos da

situao comunicativa e suas variveis, que poderiam compor as limitaes da comunicao,

ficaram esquecidos e, assim, os mediadores passaram a se tornar os dispositivos mais

eficientes para codificao das mensagens, ou seja, um tradutor autorizado do conhecimento

cientfico para cdigos facilmente reconhecveis (ARAUJO, 2007).

Os mediadores so identificados na figura dos ACS, que devem possuir

habilidades sociais para o desenvolvimento de suas atividades. Lucca (2001) define

habilidades sociais como os comportamentos considerados desejveis para que uma pessoa

possa interagir com outra em que suas expectativas sejam satisfeitas. Esses comportamentos

so designados como assertividade, habilidades de comunicao, resoluo de problemas,

otimismo, empatia e defesa dos direitos (BOLSONI-SILVA, 2005).

No desempenho da funo de ACS e no contato com a populao, fazem-se

necessrias algumas atitudes importantes para conseguir estabelecer o vnculo: o respeito e a

credibilidade nas suas aes, a garantia da eficcia destas, empatia, capacidade de escuta,

acolhimento, tica, profissionalismo, saber abordar as pessoas e o comprometimento.

(PAIVA; DIAS, 2011).

A pesquisa de Paiva e Dias (2011) tambm revelou que a capacidade de escuta

parece ser um fator que diferencia o ACS do restante da equipe, pois h maior disponibilidade

de tempo para acolher e escutar as necessidades da populao. Nesta mesma investigao, os

ACS explicitaram que esta uma das suas principais contribuies, por no poderem

desenvolver procedimentos mais especializados na rea de sade. A postura tica tambm foi

apontada como diferencial para conquistar a credibilidade em relao ao seu trabalho, j que

se encontram na posio de vizinhos dos usurios; contudo, o trabalho em equipe foi apontado

pelos agentes comunitrios de sade como fundamental, mas consideraram como entrave para

a realizao de seu trabalho a limitao nos conhecimentos tcnicos, inibindo-os para opinar e

discutir com outros profissionais da equipe.

Este cenrio representa um contexto vertical de comunicao que pode ensejar

conflitos e desentendimentos na equipe, pela separao rgida de quem pode falar e mandar

naqueles que devem calar e obedecer. Nessa hierarquizao, alguns podem se julgar mais

competentes para falar e agir, no apenas pela competncia em si, mas tambm por se

23

julgarem detentores de um conhecimento ou poder que os separa dos demais. A consequncia

disto o silncio e a passividade das pessoas (OLIVEIRA, 2011).

A ateno sade privilegia a doena e no o doente, fazendo com que as aes e

cuidados a serem prestados se deem de forma fragmentada (MENDES; CALDAS JNIOR,

2001). No mbito das polticas para crianas filhas de mes infectadas com o HIV, as

orientaes so produzidas para evitar erros alimentares e prevenir a transmisso vertical pelo

leite materno (COUTSOUDIS; GOGA; ROLLINS, 2002). Fatores, porm, que interferem na

implementao do protocolo de aes para a reduo da transmisso vertical do HIV so a

falta e a baixa qualidade da assistncia pr-natal, acessibilidade e utilizao dos servios de

sade tambm no intra-parto e no ps-parto, profissionais capacitados para o aconselhamento,

condies scio-econmicas da mulher (CAVALCANTE et al, 2008).

Sabe-se que os programas de educao sanitria so muito tmidos e focalizados no

autocuidado de alguns grupos especficos, onde as informaes quanto ao potencial dos

servios, horrios e locais de atendimento aos usurios, quando existentes, so expressos de

modo inadequado ou muito precrio (MENDES; CALDAS JNIOR, 2001).

Sendo a comunicao um processo permeado por momentos que requerem uma

sistematizao para que se alcancem os objetivos aos quais se prope, apenas na prtica e no

cotidiano que o ACS vai desenvolver seu aprendizado, e descobrir como delicado trabalhar

com pessoas e a complexidade das situaes de vida, principalmente quando a abordagem

destas situaes acarreta sofrimento, impotncia e desgaste, que nem sempre estaro sob o

controle dos agentes comunitrios de sade ou da ESF de modo geral.

Por isso, importante que os profissionais tenham a sensibilidade necessria para

compreender que cada informao representa para as pessoas um sentido diferente, pois todos

so detentores de variadas histrias de vida e perfis sociais, culturais, profissionais,

ideolgicos e polticos; e que, apesar das boas intenes dos profissionais, as situaes de vida

se do num universo culturalmente estruturado, cheio de smbolos e representaes, e quando

h uma desorganizao desse universo as conseqncias so as mais variadas possveis

(OLIVEIRA, 2011).

O papel do ACS pode facilitar a relao da equipe com a comunidade, mas esse

papel cria uma estrutura de poder que pode inibir a comunidade, ensejando fragilidade na

relao com as pessoas (OLIVEIRA, 2011). Dessa forma, evidente a relevncia de estudar

os aspectos da comunicao no trabalho do ACS com gestantes ou purperas que vivem com o

HIV, para compreender e ajustar as aes de sade voltadas essas mulheres.

24

3.2 Fundamentao da Teoria da Ao Comunicativa, de Jurgen Habermas

Desde o momento em que conhecemos como acontece o fluxo de comunicao do

ACS, podemos aproxim-lo da Teoria da Ao Comunicativa, onde Habermas amplia o

conceito de racionalidade para reaver o potencial de crtico que emerge de contextos

interativos, pois, para ele, os homens no souberam resolver os problemas advindos da

convivncia, da tica, da justia social, desenvolvendo, assim, uma razo prtica.

O contexto em que se d o processo de comunicao do ACS o domiclio, onde,

mediante visitas frequentes, as gestantes e puerpras so trabalhadas de forma a receberem as

informaes de sade, orientaes e acompanhamentos, seguindo um fluxo unidirecional,

teorizado por Arajo e Cardoso (2007); ou seja, o ACS realiza aes individuais e/ou coletivas

com vistas compreenso por parte das pessoas da comunidade. Esta seria uma ao

intencional, onde dois ou mais sujeitos utilizam a linguagem para entendimento sobre

determinado assunto do contexto de que fazem parte (BOUFLEUER, 2001).

Para as atividades do ACS, toda ao constitui interao humana, pois requer no

mnimo uma pessoa para estabelecer seu trabalho. Habermas diferencia comportamento de

ao, pois o comportamento algo que pode ser observado e a ao um comportamento

intencional, que obedece regras determinadas por mecanismo de coordenao (MACHADO;

LITO; HOLANDA, 2005).

Habermas distingue dois mecanismos de coordenao e, respectivamente, dois

tipos de ao ou interao, representados no desenho esquemtico abaixo (Figura 2) para fins

de compreenso.

Figura 2 Interao Estratgica x Interao Comunicativa

Fonte: Adaptado pela autora. Extrado do texto Pedagogia da Ao Comunicativa, Boufleuer, 2011.

25

Alm dos mecanismos de coordenao das aes, Habermas define os modelos de

racionalidade para as categorias do agir estratgico e do agir comunicativo como um potencial

analtico. Os modelos de racionalidade esto ligados as suas relaes com a natureza (relao

de conhecimento e domnio) e relao com outros homens (interao simbolicamente

mediada), ou seja, interagindo pela fala ou agindo pela interveno na natureza, as pessoas

podem se comportar de forma mais ou menos racional (BOUFLEUER, 2011, p.28).

Dessa forma, a racionalidade diz respeito forma como so utilizados a linguagem

e o saber nas aes e manifestaes simblicas expressas pelos sujeitos. Com isso, define a

racionalidade cognitivo instrumental como a utilizao de regras e tcnicas, baseadas em

conhecimento emprico que determina as condies necessrias uma interveno. J a

racionalidade comunicativa aponta uma ao livre de coao e produo de consensos

mediante a fala argumentativa (HABERMAS, 2012).

Aparentemente, tanto a racionalidade comunicativa como a racionalidade

instrumental so indispensveis e comuns, mas normalmente ocorre que, nos relacionamentos

que exigem entendimento, prevalece o agir estratgico, com caractersticas de manipulao

(BOUFLEUER, 2001).

O agir comunicativo busca suas referncias nas teorias pragmticas da linguagem,

pois se interessa pelas relaes entre os sujeitos quando utilizam a linguagem para se referir ao

mundo. A pragmtica da comunicao composta pela parte performativa e parte

proposicional. A performativa situa a expresso lingustica num contexto ou situao social,

explicitando em que sentido esse contedo empregado, permitindo tornar uma fala como um

ato da fala. A parte proposicional verbaliza o contedo do enunciado, ou seja, o algo sobre o

que se busca entendimento. Portanto, o objeto de anlise sempre um ato de fala, que ocorre

quando a situao de fala puder ser descrita como um falante ao comunicar-se com um

ouvinte sobre algo, d expresso quilo que ele tem em mente (HABERMAS, 1929).

Assim, para o entendimento lingustico com algum sobre algo, esse algum deve

compreender e reconhecer que essa fala verdadeira e que, a partir disso, possvel solicitar

que o comportamento e relaes sejam de acordo com o dito; essa a validez do ato de fala. O

ato da fala tem sua transparncia na associao entre a inteno (querer), contedo (dizer) e a

ao (fazer). Essa a representao da funo da linguagem comunicativa:

[] dar expresso de aquilo que se tem em mente (funo expressiva) sobre algo no

mundo (funo representativa) para comunicar-se com o outro (funo interativa). A

presena simultnea dessas trs funes atuando numa unidade de sentido compe a

estrutura do ato da fala comunicativo. (HABERMAS, 2012, p.78).

26

A concepo dos atos das falas pode ser sintetizada pela ideia de que para se

chegar a um entendimento por meio da linguagem, duas pessoas ao se comunicarem

necessitam possuir um quadro de referncia em comum, especificando sentido aos seus atos

de fala (MACHADO; LEITO; HOLANDA, 2005).

Para Habermas, analisar a estrutura dos atos da fala permite identificar a

associao da comunicao lingustica com as estruturas simblicas do mundo da vida. As

funes dos atos da fala correspondem, respectivamente, aos componentes expressivo (funo

expressiva), proposicional (funo representativa) e ilocucionrio (interativa). O componente

expressivo diz respeito s vivncias, o componente proposicional est relacionado ao

conhecimento e por fim, o ilocucionrio se traduz sob a forma de obrigaes decorrentes dos

atos da fala (BOUFLEUER, 2011).

O conceito da ao comunicativa descrito como o mundo da vida, um saber

intuitivo que se domina por viver numa mesma cultura e compartilhar uma mesma

experincia. Ele um pano de fundo de coisas desde sempre sabidas, que torna possvel a

comunicao (MACHADO; LEITO; HOLANDA, 2005).

Os atos da fala se mostram como a validez de algo no mundo, referindo-se ao

mundo objetivo (ato de constatao fatual, com pretenso de verdade), mundo social (ato de

regulao normativa, com pretenso de correo ou de justia) e ao mundo subjetivo (ato de

expresso vivencial, com expresso de veracidade ou sinceridade). Cada mundo do ato da fala

possui uma pretenso, que pode ser usada concomitantemente, mesmo que em determinado

momento esta pretenso esteja em maior ou menor evidncia. Reconhecer essas pretenses de

validez a base do agir comunicativo, na qual os homens se entendem entre si e acerca do

mundo (BOUFLEUER, 2011).

Se em algum momento a interao deixa de ser consensual, por meio do

questionamento das pretenses de validez, o agir comunicativo passa ao discurso

argumentativo. No discurso argumentativo, os atores assumem papis de falantes e ouvintes,

com o objetivo de negociar um novo consenso sobre aquilo que se tornou problemtico. Uma

vez questionado, o proponente ter a oportunidade de defender seu ponto de vista, apontando

argumentos em favor de sua pretenso de validez. Assim, quando a busca de entendimento

envolve questes relativas ao mundo objetivo, temos um discurso terico. Quando o

entendimento envolve questes relativas ao mundo social, temos um discurso prtico. O

discurso terico requer condies essenciais como direitos iguais para argumentar e se

27

defender, ausncia de coero ou ameaa, se constituindo numa situao ideal de fala, cujo

resultado um discurso de entendimento racionalmente motivado (HABERMAS, 2012).

3.3 O trabalho do agente comunitrio de sade e sua formao

Conhecendo o percurso histrico do ACS, percebemos que seu trabalho est

voltado inteiramente para educao em sade no mbito da comunidade por meio de visita

casa a casa e por isso, quando pensamos nesse profissional, pensamos no seu trabalho como

elo entre as famlias e o PSF, assumindo um papel de tradutor e interlocutor da comunidade.

Dessa forma, necessria a reflexo acerca de como estabelecer um elo entre os diferentes

saberes que permeiam a prtica de trabalho do ACS, incluindo aqui seu conhecimento

emprico como membro da comunidade.

No cotidiano de muitas comunidades, as pessoas buscam o ACS antes de outros

profissionais da prpria unidade. Para manter um bom relacionamento com as pessoas, o ACS

deve saber trabalhar aspectos relacionados a preconceito, sigilo, tica profissional, ter

facilidade de comunicao, conseguir se integrar a equipe, para priorizar as aes e realizar a

cobertura sistemtica da rea, alm da capacidade de acompanhar grupos com maior

vulnerabilidade ao adoecimento e notificar a equipe de sade problemas identificados no

territrio (MARTINES; CHAVES, 2007).

Os treinamentos iniciais buscavam apropriar os agentes comunitrios de sade

sobre a prtica educativa e utilizava uma metodologia de discusso de sua prpria vivncia

para facilitar a participao ativa no processo educativo e no cuidado da sade, envolvendo

comunidade e agente (GIFFIN; SHIRAIWA, 1989).

Portanto, a origem do trabalho do ACS est nos conhecimentos produzidos pelo

trabalho na comunidade, que no so considerados como cientficos, e sim cotidianos.

Entretanto, esses saberes no so menos importante do que os conhecimentos produzidos pela

cincia. Pelo contrrio, provocam um questionamento aos prprios conhecimentos cientficos,

levando a cincia a se colocar novos problemas; ou eles devem ser refutados e, assim,

superados por conhecimentos e prticas validados pela cincia (RAMOS, 2007).

O conhecimento produzido por prticas cotidianas na comunidade parecem no ter

vlidade, exceto quando comprovados por um saber cientfico. Foi nesse contexto que o

trabalho do ACS adquiriu relevncia, ligando o saber popular e o saber adquirido como

28

cientfico e contribuiu para reduo da mortalidade infantil, estimulando o aleitamento

materno, por exemplo. Fica evidente que a formao desses profissionais deve possibilitar o

dilogo entre as necessidades da comunidade e as prticas e orientaes de sade.

O ACS no Brasil um trabalhador formal desde 2002, e suas atribuies ainda

esto definidas de forma ampla e, s vezes, imprecisas. As suas atividades incluem a

promoo de aes de educao nos planos individual e coletivo e participao em aes que

fortaleam o vnculo setor sade e as polticas que promovam a qualidade de vida. Outras

atribuies so bastante especficas, como cadastrar todas as pessoas de sua microrea e

manter os cadastros atualizados. Deve acompanhar no mximo 750 pessoas em relao as suas

condies de sade, realizando aes de preveno e educao, identificando e monitorando

as situaes de risco (GIUGLIANI et al, 2011).

Dessa forma, espera-se que o referencial curricular do ACS esteja direcionado para

a atuao junto s equipes no desenvolvimento dessas atividades no nvel individual e

coletivo, nos domiclios e na comunidade.

Antes de iniciar sua atuao, o ACS deve passar por uma qualificao bsica, com

carga horria de 80 horas, que prope o desenvolvimento de habilidades, conhecimentos e

atitudes necessrias sua atuao na ESF, como: territorializao e abordagem familiar, entre

outros. Este mdulo deve permitir ao trabalhador inserir-se no campo das prticas em sade e,

mediante a educao permanente em servio, os demais contedos necessrios so repassados.

As capacitaes devem acontecer preferencialmente no municpio onde o agente atua,

privilegiando uma metodologia que integre ensino e servio.

A formao dos agentes comunitrios de sade acontece em virtude das

multiplicidades e especificidades locais e regionais, respeitando a tica da territorializao em

sade. Como a implantao do PSF se deu de forma diversificada no Pas, a organizao das

equipes como prestao de servios e promoo da sade tambm era diversificada (LELO

NASCIMENTO; CORREA, 2008).

Tomaz (2002) constatou em seu estudo que o perfil, atribuies e competncias

dos agentes comunitrios de sade no eram definidos de maneira clara. Muitos estudos foram

feitos baseados nas atribuies e competncias, mas o perfil desse profissional no

especificado, partindo da prerrogativa, que consenso, de que se trata de um profissional que

se identifique com a comunidade. Reflexes acerca da escolaridade so pertinentes,

entretanto, quando nos dias atuais vemos a capacitao de muitos agentes comunitrios de

29

sade. Assim, percebemos que existem extremos entre agentes comunitrios de sade com

baixa escolaridade at aqueles que j possuem nvel superior.

Aps a implantao do PSF, o trabalho dos agentes comunitrios de sade saiu do

foco materno infantil para a famlia e a comunidade, exigindo maior campo de conhecimentos.

Para Tomaz (2002), esse um dos motivos que exige do ACS maior escolaridade para dar

conta desse papel. As diretrizes dos programas de qualificao do ACS eram resumidas em

identificar sinais e situaes de risco, orientar famlias e comunidades, orientar as famlias e

encaminhar/comunicar equipe os casos e situaes identificadas. Nesse sentido, o autor

complementa, dizendo que so notveis as tendncias de superheroizao e romantizao

do ACS.

O estudo de Martines e Chaves (2007) explora o significado de ser ACS e sua

percepo da organizao de trabalho. Os resultados mostraram a existncia de

vulnerabilidade dos agentes comunitrios de sade na prtica do trabalho, em razo de fatores

evidenciados pelas famlias e que esto alm do seu alcance resolv-los. Provavelmente, uma

dessas prticas a abordagem ao portador do vrus HIV, em especial, s gestantes.

Estudo de Santos et al (2011) aponta que houve um aumento da escolaridade dos

agentes comunitrios de sade. O aumento da escolaridade um fator essencial para estruturar

o processo de qualificao desses profissionais, mas tambm identificaram o fato de que a

responsabilidade e o aumento significativo do trabalho so desproporcionais s remuneraes

de outros profissionais da equipe, sendo considerado um ponto de insatisfao e

desvalorizao para a categoria. Por outro lado, muitas atividades tm como pano de fundo a

tica curativa por via da entrega de medicaes e marcao de consultas.

Em 2004, o Ministrio da Sade e o Ministrio da Educao publicaram o

Referencial Curricular do Curso Tcnico de Agente Comunitrio de Sade, que instituiu a

formao tcnica desses trabalhadores. A operacionalizao dessa formao constitui tarefa

complexa em virtude da prpria configurao de atividades do ACS, fragilidade de sua

identidade profissional, regulamentaes incipientes e necessidades de informao que

transcendem o setor sade. O trabalho da ACS lida com questes relativas cidadania,

poltica, condies de vida, organizaes dos grupos e suas relaes, incluindo nesses

contextos a famlia. Todos esses aspectos deveriam estar sistematizados na formao do ACS,

alm dos saberes especficos que perpassam sua atuao, pois so eixos estruturantes para

desenvolver um trabalho de qualidade (FONSECA; STAUFFER, 2007).

30

Os materiais didticos produzidos para os treinamentos dos agentes comunitrios

de sade no esto totalmente deslocados desta complexidade, mas so materiais que se

desenvolveram predominantemente em servio centrados nas atividades e atribuies

especficas desses trabalhadores. Essa aplicao justificada em circunstncias especficas de

qualificaes, mas simplifica e reduz o trabalho do agente comunitrio de sade a uma

dimenso operacional que no contempla a abrangncia requerida com uma formao tcnica

que seja inerente s diversas etapas de sua atuao profissional (FONSECA; STAUFFER,

2007).

Para Morin (2010), a fragmentao do saber por meio das disciplinas

compartimentalizadas, de um lado, e as realidades multidimensionais, de outro, se torna um

problema transversal e transdisciplinar pela inadequao das situaes em que nos leva a

separar no lugar de reunir aquilo que faz parte de um todo. Assim, os problemas so

fracionados, e, quanto mais complexo o problema, maior a incapacidade de pensar o

multidimensional, de encarar os contextos e o complexo.

A capacitao dos agentes comunitrios de sade deve ensejar a criao de

abordagens educativas capazes de relacionar-se com a realidade e as transformaes que

ocorrem na esfera da sade, assegurando o domnio de conhecimentos e habilidades para

desempenhar suas funes, j que este depara constantemente situaes complexas na sua

rotina de trabalho.

Para isso, o Ministrio da Sade (BRASIL, 1999) elencou sete competncias que

deveriam compor as capacitaes dos agentes comunitrios de sade: trabalho em equipe,

visita domiciliar, planejamento das aes de sade, promoo da sade, preveno e

monitoramento das situaes de risco e do meio ambiente, preveno e monitoramento dos

grupos especficos, preveno e monitoramento das doenas prevalentes, acompanhamento e

avaliao das aes de sade.

Ante tantas abordagens complexas, percebe-se que ao realizar aes e interaes, o

ACS depara uma srie de situaes para as quais a rea da sade ainda no desenvolveu um

saber sistematizado nem instrumentos adequados para dar suporte s situaes que

compreendem desde a abordagem das famlias at o posicionamento ante as situaes de vida

(SILVA; DALMASO, 2002).

A qualificao do ACS poderia estar associada ao que Grosser (2010) chama de

memria coletiva, que seria um conhecimento transmitido e tornou-se adquirido, ou seja, o

31

conhecimento que foi transmitido pela histria, pelas famlias, pela mdia, mas que poderia ter

sido transmitido de outras formas.

As capacitaes e qualificaes do ACS, entretanto, no devem criar uma distncia

em pertencer origem da comunidade ou desestimular o sentimento de pertena ao grupo. De

acordo com os conceitos de Grosser (2010), o desafio liberar sem desinteressar, pois se

esses sentimentos de pertena e identificao com a comunidade forem suprimidos, esses

profissionais estaro num espao social vazio, por terem rompido com seu elo. Assim, a

tentativa de distanciar a pertena seria no mnimo tentar ver de outra maneira os mesmos

fatos.

As dimenses tecnolgica, solidria e social esto presentes no trabalho do ACS,

sendo consideradas potenciais de conflitos. O dilema permanente do ACS est entre o

convvio da dimenso social com a tcnica assistencial do programa. Esse dilema fica

evidente na prtica cotidiana, quando escolhe seguir para uma ou outra dimenso. Dessa

forma, o dia a dia do ACS depara inmeras contradies sociais e por isso eles fazem

determinadas opes de acordo com as exigncias, as recompensas e suas referncias

(NOGUEIRA; RAMOS, 2011).

O ACS no dispe de instrumentos de tecnologia e saberes para as diferentes

dimenses esperadas do seu trabalho, e essa escassez faz com que ele trabalhe com o senso

comum, com a religio e, em outros casos, com os saberes e recursos das famlias e

comunidade. Existem alguns saberes da dimenso tcnica, outros considerados como

polticos, mas no h um trabalho consistente sobre o agir comunicativo (SILVA, 2001).

No trabalho do ACS, que envolve tantas interfaces, ele utiliza as tecnologias leves

que, para Merhy (2003), so aes presentes na humanizao, escuta solidria, acolhimento,

mediao das demandas e integrao com os demais profissionais do servio com a

comunidade.

Galavote et al (2011) constataram que h uma idealizao das competncias do

ACS e o lugar que ele ocupa na equipe, gerando sentimentos de impotncia e limitao diante

dos desafios de trabalhar com a abordagem das famlias.

Nota-se, entretanto, observa-se que a finalidade educativa foi ocultada pela

fragmentao disciplinar e pelas compartimentalizaes. As finalidades educativas para Morin

(2010) seriam a formao de espritos capazes de organizar seus conhecimentos em vez de

armazen-los, [...] ensinar a condio humana [...], ensinar a viver [...], refazer uma escola de

cidadania. A condio humana desintegrada em fragmentos desconjuntados no ensino

32

atual, mas os recentes desenvolvimentos das cincias naturais e da tradio mais relevante da

cultura humanista permitiram que todas as disciplinas convergissem para que cada um se

conscientizasse do significado de ser humano (MORIN, 2010).

A desintegrao e desmotivao dos ACS podem comprometer a qualidade de suas

aes na comunidade. Muitos fatos encontrados so reflexos de um contexto em que o papel

do ACS nem sempre compreendido e tampouco valorizado (SANTOS et al, 2011).

Em razo da existncia de muitas modalidades de contratao e com as

qualificaes sendo de responsabilidade dos municpios, pode haver pontos positivos no

sentido de que o cenrio do treinamento o mesmo da atuao. Ser difcil dimensionar;

porm, ou avaliar como ocorrem esses trabalhos em diversificadas realidades. A qualificao

dos profissionais a estratgia fundamental para que qualquer ao, plano ou poltica tenha

sucesso como prtica.

A integrao dos saberes do ACS passa pela necessidade de instituir um projeto de

educao permanente desses profissionais, que os sensibilize quanto atuao pelo prisma do

acolhimento, vinculo e responsabilizao. Para a religao dos saberes comuns a situaes

multivariadas, Rosnay (2010), enumera algumas caractersticas: as situaes complexas so

relacionadas com seu ambiente; tm uma grande variedade de elementos que esto em

interao permanente; esto inseridos em organizaes, possuem redes de comunicao nas

quais os agentes se comunicam para a troca de informaes; tem interdependncia; e seus

comportamentos no so lineares.

Aprender e ensinar por aprender e ensinar uma coisa. Aprender e ensinar para agir

outra. Aprender e ensinar para compreender os resultados e objetivos outra.

Mais do que levar acumulao permanente dos conhecimentos, a relao... deve

permitir a religao dos saberes num quadro de referncias mais amplo,

favorecendo o exerccio da anlise e da lgica. E no esse um dos objetivos

fundamentais da educao? (ROSNAY, 2010, p.498).

A capacitao do ACS no deve ser apenas um momento em que se transmitem

contedos, mas h de ser algo mais amplo em relao muldimensionalidade existente nas

comunidades, diante das mais variadas situaes, dando sentido do respeito ao outro e o

sentido da abertura de informaes que acontecem em cada casa como uma oportunidade para

desempenhar suas atribuies, j que a este profissional cabe a complexidade da constituio

de uma prtica de integrao.

33

3.4 Relao do agente comunitrio de sade com a comunidade

O ACS revela-se como protagonista dentro da EqSF, por articular as trocas de

experincias e favorecer o fortalecimento do vnculo com a comunidade. A representao

desse vnculo ocorre tanto com a comunidade como com a prpria equipe em que atua. Em

algumas situaes, a EqSF simplifica o papel do ACS, desconhecendo os avanos que sua

atuao proporcionou, em especial nas localidades onde no havia acesso algum a servios de

sade (GALAVOTE et al, 2011).

Por isso, uma das caractersticas marcantes da ESF a insero do ACS na equipe

como um mediador entre a comunidade e o servio de sade, mediante aes educativas,

preveno de agravos e de promoo e vigilncia da sade como agente social (GOMES et al,

2010).

Por outro lado, a definio do papel do ACS e suas particularidades, j descritas, o

deixam em uma situao de profissional sui generis por conviver com saberes e prticas

populares e conhecimentos cientficos (NOGUEIRA; RAMOS, 2011).

Outra caracterstica que esse profissional trabalha e reside na mesma rea, por

um aspecto estruturante: o papel de educador. Ele emerge da comunidade com pouco ou

nenhum conhecimento e se integra equipe da ESF com pouca bagagem tcnica especfica e

trabalha por meio do dilogo com a comunidade (JARDIM et al, 2009). A capacidade de

dialogo importante, tambm, para com a equipe da ESF.

Em algumas circunstncias, o ACS pode enfrentar resistncia da comunidade,

dificuldades de relacionamento, pois o domiclio um territrio privado e nem sempre seu

acesso evidente e fcil, por isso ele deve estabelecer relaes de vnculo e confiana. O

agente comunitrio adentra e conhece a intimidade dos usurios com permisso da famlia,

devendo zelar por essa privacidade e pela credibilidade que a famlia teve em expor sua vida.

Esse contato com as famlias gera envolvimento pessoal e s vezes, desgaste emocional do

agente (JARDIM, 2009).

Nesse contexto, o ACS nem sempre encontra um ambiente de dilogo com a EqSF

para expor essas situaes. Lunardelo (2004) discute que os espaos de escuta do cotidiano

das equipes, reunies de equipe e discusses de famlias, so insuficientes para oferecer

suporte e apoio ao trabalho do ACS. Assim, a no escuta esteve relacionada com a autonomia

do ACS, em especial quando a equipe no reconhece a importncia do seu papel no contexto

de trabalho. A autora complementa, ainda, dizendo que na busca da autonomia, o ACS

34

silencia, sendo incorporado como ator operacional que replica o modelo hegemnico

institudo (LUNARDELO, 2004).

As relaes entre profissionais dos servios de sade se tornam fragilizadas por

condies de trabalho inadequadas, capacitao profissional insuficiente, baixa remunerao,

relacionamento interpessoal conflituoso e concepo dos profissionais acerca do seu papel e

dos demais, repercurtindo no acesso da populao aos servios de sade, no atendimento

igualitrio e integral aos usurios (MENDES; CALDAS JNIOR, 2001).

O acompanhamento das famlias pelo ACS se d pela visita domiciliar, mas nem

toda ida ao domiclio pode ser considerada visita domiciliar, pois tal atividade compreende um

conjunto de aes sistematizadas que se iniciam antes e continuam aps a sada do domiclio

da famlia. Para realizar visita domiciliar, o ACS deve estar treinado no uso de tcnicas de

comunicao e observao sistematizadas. O ACS se v para a equipe como uma fonte de

informao, pois entrevistador e observador da comunidade (LUNARDELO, 2004).

Acompanhar as famlias em vrias situaes pode ser uma tarefa difcil, pois

algumas situaes exigem muita cautela para serem abordadas, como o caso de doenas

consideradas estigmatizantes, como AIDS, hansenase, tuberculose e outras. Por isso, a

comunicao com as famlias um desafio, pois existem tambm os momentos nos quais os

profissionais devem perceber que no o momento para realizar intervenes.

Como o trabalho do ACS supervisionado pela EqSF, h a necessidade de

integrao entre os profissionais, mas no estudo de Lunardelo (2004) os demais profissionais

de sade esto cada vez mais presos s atividades internas em razo das demandas, realizando

poucas atividades extramuros. Esse foi um dos pontos de insatisfao dos ACS que fazem um

trabalho de escuta de queixas, sofrimentos, desejos e carncias, e acabam levando outras

demandas aos servios, gerando reclamaes por parte de alguns profissionais. Assim, o ACS

que tem como meta visitar 100% das famlias de sua microrea esperava mais do trabalho em

equipe.

A relao com a comunidade formada pela credibilidade para que as famlias

abram as portas de suas casas e contem suas demandas de sade. Uma das formas de

conquistar a credibilidade assegurar que as informaes obtidas no sero utilizadas para

outros fins. Em alguns casos, os vizinhos mostram-se mais resistentes, sobretudo aqueles que

se encontram em situaes financeiras desfavorveis. As situaes encontradas so as mais

diversas: problemas de ordem emocional, relacionamento interpessoal, situaes de pobreza,

violncia, uso de drogas ilcitas. A vida social dos agentes acontece no mesmo ambiente de

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trabalho, com isso fica sendo conhecido por todos; dessa forma, o agente comunitrio sente

que sua privacidade tambm invadida quando moradores o procuram para saber sobre a vida

de outras pessoas, quando deparam usurios de drogas ou agressores que lhes ameaam e

envolvem seus familiares, quando so assediados em locais pblicos fora de seu horrio de

trabalho (JARDIM, 2009).

Quando o cliente no consegue resolver sua demanda, o ACS percebe que h uma

quebra na relao de confiana estabelecida. Assim, a falta de resolubilidade provoca

consequncias na operacionalizao do trabalho do agente, em particular porque os esforos

realizados so muitas vezes invisveis (JARDIM, 2009).

Em razo dos contextos de relacionamento do ACS com a comunidade,

necessrio discutir aspectos relacionados ao acompanhamento de mulheres que se descobrem

portadoras do HIV na vigncia da gravidez e puerprio, e que iro necessitar de

acompanhamento, alm do que j preconizado para gestantes soronegativas.

3.5 Acompanhamento das mulheres no ciclo gravdico-puerperal pelo agente

comunitrio de sade

Ao identificar uma gestante, o ACS deve compreender os significados da gestao

para aquela mulher e sua famlia, pois o contexto em que ocorre cada gravidez determina o

desenvolvimento da relao entre mulher, famlia e a criana. Essa relao pode interferir no

processo de amamentao e nos cuidados com a mulher e a criana. Quando os contextos so

harmoniosos, os vnculos familiares se solidificam. Quem acompanha o pr-natal deve ter

sensibilidade e percepo, e manter um dilogo franco, com escuta, sem julgamentos e

preconceitos, permitindo que a mulher fale de sua intimidade e dvidas (BRASIL, 2000).

O foco das aes do ACS sempre esteve relacionado com o acompanhamento de

gestantes e crianas, em especial aquelas na faixa etria de zero a dois anos. Essas aes eram

incorporadas de acordo com as necessidades da comunidade e mediante as capacitaes que

os agentes recebiam, permitindo que estes desenvolvessem habilidades pessoais que lhes

permitissem o desempenho dessas atividades (COELHO; ANDRADE, 2004).

Dentro do acompanhamento na assistncia mulher no ciclo gravdico-puerperal, o

ACS realiza visitas domiciliares na frequncia possvel para cada localidade, reforando o

vnculo estabelecido entre a gestante e a unidade bsica de sade (UBS), mas, sobretudo, essa

visita deve ter carter integral e abrangente sobre a famlia e seu contexto social. Assim, se

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forem observadas alteraes que sejam consideradas fatores de risco para a gestante, ou outro

membro da famlia, deve ser discutida com a equipe na unidade de sade (BRASIL, 2000).

As atribuies do ACS no acompanhamento pr-natal so: captar as gestantes no

inscritas no pr-natal, reconduzir gestantes faltosas ao pr-natal (especialmente as de risco,

uma vez que podem surgir complicaes), acompanhar a evoluo de alguns aspectos da

gestao, segundo orientao da unidade de sade (nos casos em que o deslocamento da

gestante unidade de sade seja desnecessrio), completar o trabalho educativo com a

gestante e seu grupo familiar, reavaliar, dar seguimento ou reorientar as pessoas visitadas

sobre aes desenvolvidas pela unidade de sade (BRASIL, 2000).

O foco desse acompanhamento por parte do ACS se faz na visita domiciliar, que

deve ser considerada como uma opo metodolgica de trabalho, que exige uma entrada

consentida no mundo existencial do outro, e por isso a prpria entrada do agente como o

registro de informaes, devem ser autorizados (SO PAULO, 2007).

A visita domiciliar gestante exige habilidade tcnica para a entrevista e critrios

ticos para a escuta da histria ou relato da mulher. O agente deve realizar essa visita sem

modelos de realidade preconcebidos, e com sensibilidade e curiosidade respeitosa,

conhecendo os limites de cada um. importante, tambm, que eles estejam prontos para

eventuais situaes novas, que sejam diferentes daquelas a que esto habituados, que algumas

vezes podem chocar, por serem vistas como algo diferente do seu padro de acompanhamento

(SO PAULO, 2007).

3.6 Acompanhamento de gestantes e puerpras que vivem com o HIV pelo ACS

O exame anti- HIV nas gestantes ofertado durante o pr-natal, para que haja

tempo hbil de realizar a quimioprofilaxia para preveno da TV, caso o resultado seja

positivo. Com a quimioprofilaxia, possvel diminuir as chances de transmisso para o beb

na gravidez e parto (BRASIL, 2003). O que acontece na prtica, no entanto, que um nmero

considervel de mulheres que recebem o diagnstico durante o pr-natal chega s

maternidades em trabalho de parto sem ter recebido o tratamento antirretroviral. Esse

problema decorrente da falta de cobertura adequada de testagem do HIV em gestantes na

ateno bsica (ARAJO, 2005).

Brito et al (2006) evidenciaram em seu estudo que um grande nmero de mulheres

chega maternidade sem ter recebido o tratamento antiretroviral, e essa falha foi associada

37

falta de cobertura da testagem HIV em gestantes na ateno bsica, o que refora a deficincia

para o acompanhamento dessas mulheres na ateno bsica.

A solicitao deste teste no pr-natal realizada por profissional por meio de

aconselhamento pr e ps-teste com o objetivo de cuidar dos aspectos emocionais com foco

na sade sexual e nas vulnerabilidades de cada um. O aconselhamento tem papel importante

na preveno e no diagnostico da infeco pelo HIV, contribuindo para a adoo de

comportamentos sexuais mais seguros; reduz o impacto da revelao do diagnostico, melhora

o autocuidado e a promoo da ateno integral, bem como no acompanhamento das pessoas

que vivem com HIV (BRASIL, 2010a).

Em grvidas que vivem com o HIV, o aconselhamento deve ser mantido durante

todo o pr-natal, pois as mudanas que surgem do ponto de vista emocional, familiar e social

podem dificultar o seguimento das recomendaes da profilaxia da Transmisso Vertical (TV)

(AGUIAR; SIMES-BARBOSA, 2006).

Outros componentes, como deficincias tcnicas, institucionais e de

relacionamento entre profissionais e usuria encontradas nos servios, mostram que existe um

despreparo dos profissionais que atuam na ateno bsica. Isso reflete no aconselhamento e no

seguimento da gestante que vive com o HIV, mesmo que ela passe a ser acompanhada por

uma unidade de referncia. Como a gestante enfrenta muitos desafios, algumas podem no

fazer um seguimento adequado (ARAJO, 2005).

Alm dos aspectos relacionados falha no seguimento, os sentimentos negativos

que podem surgir tambm se tornam um obstculo. Por isso, a famlia passa a ser um apoio

fundamental para o compartilhamento do diagnstico. Quando no h apoio necessrio da

famlia, as gestantes se tornam mais suscetveis a transtornos emocionais, que se exacerbam

quando este apoio tambm negado pelo parceiro sexual. Alm desses fatores, outros

aspectos podem influenciar na adeso ao tratamento, como: a ocorrncia de efeitos colaterais,

uso correto dos medicamentos at esconder os medicamentos dos vizinhos (ARAJO;

SILVEIRA; MELO, 2008).

Esses fatores, associados ao diagnostico tardio da infeco pelo HIV na gestao, a

baixa adeso s recomendaes tcnicas por parte dos servios de sade (a exemplo dos que

no oferecem a sorologia para o HIV durante o pr-natal nos perodos recomendados) e a

qualidade da assistncia, principalmente nas regies com menor cobertura de servios e menor

acesso rede de sade dificultam a adeso ao tratamento da transmisso vertical do HIV

(BRASIL, 2010b).

38

A gravidez uma fase em que a mulher vivencia sentimentos relacionados vida

e esperana, que se opem ideia de morte, a que a AIDS vinculada. Por isso, um

resultado positivo para o HIV acarreta impacto na vida das mulheres e os profissionais na

ateno bsica ainda no se sentem preparados para trabalhar o aconselhamento nestas

circunstncias. Consequentemente, no h um seguimento gestante vivendo com HIV,

independentemente de ela estar sendo acompanhada em uma unidade de referncia, o que

pode dificultar o seguimento em razo das muitas dificuldades individuais vivenciadas por

parte de cada mulher (ARAJO; SILVEIRA; MELO, 2008).

O estudo de Arajo, Silveira e Melo (2008) aponta que algumas das gestantes,

alm de se depararem com o diagnstico, sofrem muito pela falta de amparo familiar.

Marques et al (2006) identificaram que os familiares, em especial as mes, consideram

importante conhecer o diagnstico do HIV nas gestantes como forma de oferecer apoio no

enfrentamento das dificuldades. A famlia conforta e ajuda na adeso ao tratamento, por isso

eles tambm devem ser esclarecidos acerca da doena (FERACIN, 2002).

O preconceito faz com que pessoas que vivem ou convivem com o HIV/Aids se

sintam isoladas em razo dos mitos e crenas existentes na sociedade a respeito da doena.

Apesar da grande divulgao das formas de transmisso, as representaes sociais acerca do

HIV ainda enseja estigma e isolamento. No caso das gestantes, esses sentimentos so os

mesmos, e, de modo geral, compartilharam o resultado do teste, especialmente com a me,

que, em algumas situaes, demonstra interesse em ajudar e confortar (ARAJO; SILVEIRA;

MELO, 2008).

O aconselhamento por parte dos profissionais deve ser continuado durante o

puerprio, pois alguns aspectos podem no ter sido adequadamente trabalhados em funo da

fragilidade emocional que permeia essa situao, principalmente a avaliao da necessidade

de apoio para compartilhar o resultado com o parceiro, famlia ou algum que compe sua

rede social. Outro aspecto importante desse suporte que deve ser oferecido purpera a

nfase adeso, ao tratamento e profilaxia do recm-nascido exposto, observando a

representao das percepes da mulher a respeito do resultado positivo, seus sentimentos em

relao a seu estado sorolgico e em relao ao seu filho, bem como as dificuldades que ela

poder enfrentar na implementao dos cuidados com o recm-nascido (BRASIL, 2010b).

As purperas devem receber ateno especial em decorrncia da possibilidade de

depresso puerperal, que pode interferir na aderncia ao uso do antirretroviral (ARV), com a

consequente resistncia viral. Alm disso, toda me soropositiva para o HIV deve ser

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orientada a no amamentar e que ter direito a receber formula lctea infantil, pelo menos at

o seu filho completar seis meses de idade. Evidncias mostram que uma maneira efetiva para

evitar a amamentao natural comear a orientao para o aleitamento artificial durante o

pr-natal. A deciso e a comunicao purpera da importncia de no amamentar somente

aps o parto tardia, e trazem resultados insatisfatrios, pois, mesmo que ela seja

diagnosticada tardiamente ou at durante o trabalho de parto, gestantes e purperas devero

receber as orientaes adequadas acerca da no amamentao e do uso de inibidores da

lactao (BRASIL, 2010b)

O recm-nascido deve receber zidovudina (AZT), soluo oral, ainda na sala de

parto, logo aps os cuidados imediatos ou at 2 horas aps o nascimento, devendo ser mantido

o tratamento durante as primeiras seis semanas de vida (42 dias). recomendado que seja

realizado hemograma completo para avaliao prvia antes do inicio da profilaxia dada a

possibilidade de ocorrncia de anemia no recm-nascido em uso de AZT, com monitoramento

aps seis e 16 semanas. indicado que me e recm-nascido permaneam em alojamento

conjunto em perodo integral para estimular o vinculo me-filho, lembrando que o aleitamento

materno, aleitamento misto e aleitamento cruzado (amamentao da criana por outra nutriz)

so contraindicados (BRASIL, 2010b).

O recm-nascido j deve ter alta da maternidade com a consulta agendada em

servio especializado para seguimento de crianas expostas ao HIV. A data da primeira

consulta no deve ultrapassar 30 dias aps o nascimento. A partir de quatro a seis semanas de

vida at a definio do diagnstico da infeco pelo HIV, a criana deve receber

quimioprofilaxia para pneumonia pelo P. jiroveci, com sulfametoxazol (SMX) + trimetoprima

(TMP) divididos em duas doses dirias, trs vezes por semana, ou em dias alternados

(BRASIL, 2010b).

Cabe equipe de sade explicar e orientar acerca da administrao de

medicamentos e preparo da frmula infantil. O ideal que sejam acompanhados tambm no

ambiente domiciliar, considerando as grandes demandas dos servios de sade para um

acompanhamento mais prximo dessas famlias.

Vasconcelos e Hamann (2005) constataram que h falhas na implementao do uso

terapia antirretroviral (TARV) (AZT soluo oral) em recm-nascidos e crianas em torno

8%, mesmo com a existncia dos insumos nos servios de sade.

No estudo de Arajo, Silveira e Melo (2008), evidenciou-se a preocupao da me

em ter que administrar o xarope ao beb pelo fato de ter que ocultar os frascos de

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medicamentos por medo de que outras pessoas fossem tomar conhecimento da sua patologia.

O fato de optarem por no revelar sua condio sorolgica para evitar, pelo maior tempo e

da melhor maneira possvel, a discriminao por serem portadores do HIV (GALVO;

RAMOS; MACHADO, 2004). O parceiro sexual, entretanto, expressa uma maior tolerncia e

aceitao, pois oferece apoio mulher aps tomar conhecimento do diagnstico (ARAJO;

SILVEIRA; MELO, 2008).

Outra dificuldade que as mes enfrentam o fato de no poderem amamentar seus

filhos. A amamentao representa uma ligao me-filho, bastante incentivada nos discursos

dos profissionais como estratgia de reduo de doena e melhor qualidade de alimentao

para o beb. Isso pode repercutir em sofrimento para a me, tendo como conseqncia o

sentimento de inabilidade na responsabilidade com o cuidado do seu filho (ARAJO;

SILVEIRA; MELO, 2008).

Ento, perceptvel a importncia do fcil acesso das gestantes aos profissionais

de sade, caso deparem alguma dificuldade no seguimento. Esse acesso pode ocorrer por meio

de consultas de pr-natal sem intervalos longos, rigorosos e mensais, alm de ser

implementado um acompanhamento durante o puerprio.

Consoante Barroso et al (2009), a maioria das pesquisas se resume em analisar a

assistncia ao binmio me-recm-nascido exposto ao HIV at o ps-parto na maternidade.

Aps a alta da maternidade, a me assume todos os cuidados com o filho, incluindo a

continuidade de todas as medidas preventivas, especialmente a substituio do aleitamento

materno e medicamentos, convivendo com o sentimento de culpa e a espera de um resultado

que descarte a soropositividade na criana, para que possa brincar e crescer saudvel. Dessa

forma, espera-se que as mes sigam as orientaes dos profissionais (NEVES; GIR, 2006).

Estudo de Barroso et al (2009), que avaliou a condio de cuidado materno ao

filho exposto ao HIV aps alta da maternidade, evidenciou uma fragilidade dos

acompanhamentos, sugerindo que o seguimento diferente do que proposto pelo Programa

Nacional de AIDS e que as falhas esto centradas na falta de conhecimento das mes, no por

limitaes pessoais, mas pela falha dos profissionais e servios de sade. As falhas

identificadas em relao ao seguimento das crianas foram: erro na administrao do AZT

com uso por tempo prolongado, inicio tardio do acompanhamento especializado, agendamento

das consultas com intervalos diferentes do recomendado, inicio tardio da profilaxia da

pneumonia, aumentando o risco de infeco e mortalidade, diluio incorreta da frmula

41

infantil, introduo precoce de alimentao complementar, atraso no cumprimento do

calendrio vacinal, alm do uso de vacinas inadequadas (vacinas com vrus inativados).

Essas falhas apontadas no uso do AZT poderiam estar relacionadas com o fato de

que as crianas infectadas com HIV ou que vivem em uma casa onde um ou ambos os pais so

infectados com HIV ou, ainda, morreram em consequncia da AIDS, so de famlias de baixa

escolaridade e classe social (KERR et al, 2011).

O acompanhamento de crianas menores de um ano na ateno bsica contempla a

orientao quanto alimentao, quer seja aleitamento materno, artificial ou introduo de

alimentos complementares, caderneta de vacina, crescimento e desenvolvimento. Dessa

forma, a EqSF toma conhecimento da condio sorolgica dessas pacientes desde a entrega do

resultado do exame positivo durante o pr-natal. Nos municpios que no dispem de Servio

Especializado, essa realidade muito mais recorrente, pois a mulher busca ajuda nos

profissionais com quem tem maior vnculo.

O fato de que a Ateno Bsica e o PACS (Programa de Agentes Comunitrios de

Sade) comearam com foco na sade materno-infantil fez com que as redes de cuidado se

voltassem para os problemas de sade pblica que se expressavam com maior gravidade, em

especial, a mortalidade infantil. Estudo de Giugliane (2011) identificou no fato de que o

trabalho do ACS teve, no mnimo, efetividade parcial no acesso aos cuidados de sade, como

no rastreamento do cncer de colo de tero em mulheres, aleitamento materno exclusivo com

introduo tardia da mamadeira.

O ACS est muito prximo da realidade das famlias que acompanha e consegue

facilmente sua confiana. o elemento da EqSF que mais pode contribuir na competncia

cultural da comunidade, diminuindo barreiras; entretanto, h a necessidade de aperfeioar os

objetivos de trabalho do ACS e a formao qualificada, mas algumas conquistas j foram

alcanadas, como melhor remunerao e trabalho mais efetivo em equipe (GIUGLIANE,

2011).

Com o aumento da incidncia de casos de gestantes sendo diagnosticadas com

HIV, h lotao dos servios especializados e, assim, a ateno bsica deveria ser envolvida

em treinamentos que pudessem reforar e dar suporte ao trabalho dos servios especializados,

j que, de acordo com o cenrio atual, viver com HIV passa a ser uma condio cada vez mais

possvel. De acordo com estudo de Giugliane (2011), ainda existe uma lacuna acerca da

avaliao do trabalho do ACS, em que a maioria das evidncias demonstra sucesso na rea da

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sade maternoinfantil, sendo importante avaliar a utilidade do agente comunitrio no cuidado

s doenas crnicas.

Estudo de Cavalcante et al (2008) considera que a transmisso vertical do HIV

um desafio para a sade pblica e que h necessidade de estudos voltados para a ateno

bsica, nas maternidades que no so referncia para a infeco pelo HIV e das redes de

ateno gestante e parturiente. Considera, ainda, que as falhas na deteco do HIV durante o

pr-natal um dos fatores que limitam a chance de reduo da TV.

Estudo realizado em Malawi (KIM et al, 2012) identificou uma baixa adeso de

gestantes ao acompanhamento para a preveno da transmisso vertical do HIV. Nessa mesma

pesquisa, foi implementada uma interveno-piloto com ACS para estabelecer uma

continuidade de cuidados, desde o diagnstico do HIV no pr-natal at diagnstico final da

criana, melhorando a utilizao do servio e a adeso das mes e crianas. A gesto de casos

e apoio por ACS pde criar um cuidado continuo e reduziu a TV do HIV.

Portanto, importante que o trabalho voltado s gestantes com HIV seja

multiprofissional, acompanhado por um servio especializado, mas com suporte da EqSF.

3.7 Contextualizao da epidemia de HIV/AIDS

A epidemia de AIDS, que se iniciou na dcada de 1980, como uma doena

caracterizada pela transmisso homossexual masculina, continua repercutindo de forma

significativa na populao, principalmente por sua expanso em nmero de casos. Ocorreram,

porm, grandes avanos na teraputica e diagnstico, aumentando a sobrevida dos pacientes,

passando a ser considerada hoje uma pandemia crnica (BRASIL, 2006).

As estimativas mundiais evidenciam que mais de 30 milhes de pessoas j

morreram de AIDS, 33 milhes de pessoas vivem com HIV, mais de 16 milhes de crianas

passaram a ser rfs por causa da AIDS, sete mil novas infeces por HIV ocorrem todos os

dias e mais da metade dessas pessoas demora a descobrir que so portadoras do vrus

(ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 2011).

Esses dados acerca da transmisso da AIDS se traduzem, tambm, nos dados

registrados no Brasil entre 1980 e junho de 2010, com a notificao de 592.914 casos de

AIDS no Brasil, onde a maioria dos casos se concentra entre a faixa etria de 40 e 49 anos. A

faixa etria de 35 a 39 anos, entretanto, possui a maior taxa de deteco no Pas. O nmero de

gestantes notificadas com HIV entre os anos de 2000 e 2009 foi de 54.218 (BRASIL, 2010c).

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Em relao aos casos de AIDS em menores de cinco anos, observada uma

reduo desde 2002, porm esse decrscimo foi notado apenas nas regies Sudeste, Sul e

Centro-Oeste. O Norte e o Nordeste exibem aumento do nmero de casos nessa faixa etria. O

coeficiente de mortalidade por AIDS mostrou tendncia decrescente de 1997 a 2004, ano em

que esse coeficiente se estabilizou (BRASIL, 2010c).

Esses dados retratam o cenrio da epidemia da infeco por HIV, que, alm de

evoluir para a cronicidade, tem tendncias de feminizao, heterossexualizao, juvenilizao,

pauperizao e interiorizao (BRASIL, 2006).

Estudo de Souza Jnior et al (2004) evidenciou que a cobertura da oferta do teste

anti HIV para gestante no pr-natal era de mais de 90%, todavia, com a estratificao para

regies do Brasil, a cobertura do teste anti-HIV no pr-natal nos estados do Nordeste era de

apenas 24%. Apesar das dificuldades e das diferenas regionais identificadas, a incidncia de

AIDS em cria