universidade federal do cearÁ instituto de arte e … · os diversos espaços lógicos..... 84 3....

113
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E CULTURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA JORGE HENRIQUE LIMA MOREIRA WITTGENSTEIN: A TRANSIÇÃO DO ATOMISMO LÓGICO PARA O HOLISMO SEMÂNTICO Fortaleza 2009

Upload: lenhan

Post on 30-Nov-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

INSTITUTO DE ARTE E CULTURA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

JORGE HENRIQUE LIMA MOREIRA

WITTGENSTEIN: A TRANSIÇÃO DO

ATOMISMO LÓGICO PARA O HOLISMO SEMÂNTICO

Fortaleza

2009

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

ii

JORGE HENRIQUE LIMA MOREIRA

WITTGENSTEIN: A TRANSIÇÃO DO ATOMISMO LÓGICO PARA O HOLISMO SEMÂNTICO

Dissertação submetida à Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Área de Concentração: Lógica e Filosofia da Linguagem.

Orientador: Profª. Drª. Maria Aparecida de Paiva Montenegro

Fortaleza

2009

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

“Lecturis salutem”

Ficha Catalográfica elaborada por Telma Regina Abreu Camboim – Bibliotecária – CRB-3/593 [email protected] Biblioteca de Ciências Humanas – UFC

M837w Moreira, Jorge Henrique Lima. Wittgenstein [manuscrito] : a transição do atomismo lógico para o

holismo semântico / por Jorge Henrique Lima Moreira. – 2009. 113f. : il. ; 31 cm. Cópia de computador (printout(s)). Dissertação(Mestrado) – Universidade Federal do Ceará,Centro de

Humanidades,Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Fortaleza(CE),03/11/2009.

Orientação: Profª. Drª. Maria Aparecida de Paiva Montenegro. Inclui bibliografia. 1-WITTGENSTEIN,LUDWIG,1889-1951 - CRÍTICA E INTERPRETAÇÃO. 2-ATOMISMO LÓGICO.3-HOLISMO.4-SEMÂNTICA(FILOSOFIA).I-Montenegro, Maria Aparecida de Paiva,orientador. II-Universidade Federal do Ceará. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. III-Título. CDD(22ª ed.) 193 07/10

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

iii

AGRADECIMENTOS

Agradeço à professora Maria Aparecida, minha orientadora atual, pelos

ensinamentos, pela confiança e pelo incentivo à pesquisa e à redação final desse estudo.

Sua aceitação foi muito importante para mim, pois em um determinado momento me vi

sem rumo algum, quando então ela me deu apoio e direcionamento.

Ao prof. Guido Imaguire, meu primeiro orientador, pela crítica constante e

motivadora, pelo apoio dado ao meu projeto de pesquisa e por sua observância de

detalhes de minha dissertação que precisaram ser melhorados. Também o agradeço por

ter me fornecido um material que ele traduzira, embora ainda não tenha sido publicado.

Agradeço à Maria Elenice, uma amiga que nunca deixou de me incentivar em

minha jornada no mestrado.

Agradeço à Ana Angélica e a Júlio César, respectivamente minha amiga e meu

irmão, que me ajudara na correção ortográfica e gramatical de meu texto.

Por fim, agradeço à minha mãe e irmãos por terem incentivado meus estudos,

não me deixando esmorecer nas horas difíceis.

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

iv

Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa.

(Tractatus, 6.52)

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

v

RESUMO

Este presente estudo examina a mudança paradigmática da filosofia de Wittgenstein. Tal mudança ocorre quando o filósofo percebe que sua concepção atomista contém erros irrecusáveis. O ponto de dissolução dessa concepção foi a mudança quanto à concepção de proposição elementar/estado de coisas, a saber, quando Wittgenstein percebe que não é mais possível concebê-los atomicamente. O artigo Algumas Observações sobre a Forma Lógica apresenta esse momento de ruptura, levando o filósofo a repensar sua concepção filosófica. Em um primeiro momento o filósofo vienense apoia-se em uma concepção de linguagem fenomenológica, chegando a negá-la pouco tempo depois. Por fim, o estudo aponta para uma ruptura com essa concepção fenomenológica, quando Wittgenstein então parecerá defender uma concepção de linguagem como a da física, i. e., hipotética.

Palavras-chave: atomismo lógico, independência lógica, espaço lógico, linguagem fenomenológica e linguagem hipotética.

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

vi

ABSTRACT

The present study examines the paradigmatic change of Wittgenstein’s philosophy. Such a change takes place when the philosopher realizes that his atomistic approach has unsolving problems. The dissolution point of that conception concerns the change regarding the notion of elementary proposition/state of things, that is to say, when Wittgenstein realizes that it is no more reasonable conceiving them as logical atoms. His paper Some remarks on logical forms presents this breaking point and leads him to reevaluate his philosophical conception. Firstly, he is based on a phenomenological conception of language, but afterwords he negates it. Then, this study focuses on that break regarding his phenomenological conception, when Wittgenstein comes to defend a hypothetical conception of language, such as the Physics.

Key-words: Logical Atomism; Logical Independency; Logical Space; Phenomenological language; Hypothetical language.

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

vii

SUMÁRIO

Introdução 1

Unidade 1:

Cap. I: Forma Lógica........................................................................ 8

Cap. II: O Atomismo Lógico............................................................ 19

Cap. III: Teoria da Figuração............................................................ 27

Cap. IV: Proposição Elementar......................................................... 30

Cap. V: Estados de Coisas................................................................. 38

Cap. VI: Objetos................................................................................ 47

Cap. VII: Nomes................................................................................ 56

Cap. VIII: Análise Lógica................................................................. 62

Unidade 2:

Cap. I: Mudança de Paradigma.......................................................... 68

Cap. II: Algumas Observações sobre a Forma Lógica....................... 72

Cap. III: Observações Filosóficas....................................................... 78

1. Linguagem Fenomenológica............................................................ 78

2. Os Diversos Espaços Lógicos.......................................................... 84

3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica................. 89

Conclusão............................................................................................ 98

Referências Bibliográficas................................................................ 103

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

1

Introdução

Minha proposta nesta dissertação é examinar dois momentos distintos da obra de

Wittgenstein. O primeiro momento é o período do atomismo lógico, que constitui o eixo

sobre o qual se erige o seu Tractatus Logico-Philosophicus. O segundo momento é o

período de transição de sua obra que ocorre a partir do ano de 1929, quando ele faz uma

crítica ao seu atomismo.

Muitos leitores e críticos do filósofo sempre estiveram às voltas com a seguinte

questão: afinal de contas, são dois Wittgenstein(s) ou apenas um? Essa questão sempre

me intrigou, por isso o motivo deste estudo. A idéia motivadora é apresentar uma versão

particular, a minha. Longe de mim desprezar inúmeros trabalhos realizados por

estudiosos muito mais competentes, que detidamente se debruçaram sobre a questão,

como é o caso de alguns: Merrill e Jaakko Hintikka, Bento Prado Neto, João Carlos

Salles Pires da Silva, dentre outros. Contudo, eu alimentava o desejo de fazer minha

própria análise, uma vez que não queria, no âmbito de minha pesquisa de mestrado, ser

tão influenciado pelas vertentes interpretativas mais proeminentes, que podem ser

divididos em dois grandes grupos: 1) aqueles de filiação logicista, para quem

Wittgenstein teria abandonado seu projeto inicial, supostamente mais profícuo; 2)

aqueles que identificam uma certa continuidade entre as duas fases do pensamento do

filósofo. Decidi, por conseguinte, reservar para uma etapa posterior a este estudo o

momento de adentrar no exame da bibliografia secundária mais especializada,

esperando me sentir menos suscetível às influências de um e de outro grupo de

intérpretes. Como resultado de minha investigação assumidamente incipiente, pude

depreender o seguinte: Wittgenstein de fato percebe importantes entraves em seu

projeto inicial, de modo a reformular suas concepções, mediante uma crítica ao

atomismo lógico. No entanto, sua preocupação permanece a mesma, isto é, examinar as

condições e as relações de significação.

Como é bem sabido, no TLP Wittgenstein1 supunha haver resolvido todos os

problemas da filosofia. Contudo, tal resolução consistia em negar a pertinência da

maioria dos supostos problemas. Muitos desses problemas não poderiam sequer ser

formulados. Por conseguinte, o projeto de Wittgenstein implicava, antes de tudo, em

1 Ver nota na p. 9.

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

2

mostrar que a filosofia havia criado, em grande parte, pseudo-problemas, cuja solução

consistia justamente em varrê-los do domínio filosófico.

O Tractatus estabelece os limites para o pensar, e, consequentemente, para o que

pode ser descrito na linguagem. Esta é a esfera do lógico, na qual se inscreve tudo o que

pode ser pensado/dito. O mundo que concebemos é um composto de possibilidades do

espaço lógico. Tudo o que é fato já estava no âmbito de possibilidades do espaço lógico.

Aquilo que está fora deste espaço não pode sequer ser pensado, portanto não pode ser

descrito de um modo significativo. Essa tentativa de falar do que está fora dos limites

do lógico constitui-se como contrasensos.

O mundo é um mundo essencialmente lógico. É por esse motivo que o filósofo

enuncia no aforismo 7: “Sobre o que não se pode falar, deve-se calar” (TLP, pág. 281).

Esta parece ser uma afirmação radical, mas na verdade é apenas uma conclusão coerente

com a concepção lógica de Wittgenstein. Por outro lado, isto não quer dizer que não

haja nada fora dos limites da lógica, mas apenas que não é possível falar acerca dessas

coisas. Nós precisaríamos estar do lado de fora para podermos falar dos mesmos. No

entanto, não estamos; estamos dentro dos limites da lógica, por isso a recomendação de

silêncio diante de tais questões2.

Quanto a este predomínio do lógico, outros autores concordariam com ele. Mas

daí surge um problema: como somos capazes de identificar o que de fato é lógico?

Russell3 havia proposto uma solução: através da forma lógica. Ele desenvolveu uma

teoria do juízo que dizia que o sujeito tem uma relação de familiaridade com todos os

componentes do juízo, inclusive com a forma lógica. Nesse sentido, é a forma lógica

quem garante a logicidade das proposições enunciadas sobre o mundo.

Wittgenstein concorda parcialmente com Russell, mas identifica aí um outro

problema: essa teoria de Russell não é capaz de evitar contrasensos; ela é permissiva

demais. Wittgenstein permanece com a idéia de que a forma lógica é a garantia dessa

logicidade, porém com uma diferença fundamental: ele resolve os problemas da teoria

russelliana a partir da concepção de que aquilo que não pode ser dito pode, no entanto,

ser mostrado, donde concluiu que a forma lógica é algo que se pode mostrar. A forma

2 O silêncio que atribuo aqui é o silêncio sobre as questões que estão fora dos limites lógicos, como a

ética, a estética, o místico e a própria lógica. 3 Apud. SANTOS, L.H.S. (2001).

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

3

lógica é algo que condiciona a linguagem e o mundo, porém ela não é algo sobre o qual

se possa fornecer explicações. Ela vai se mostrar na relação entre as proposições e os

fatos/estados de coisas. Assim, ela é auto-evidente, é o que há de comum entre as duas

estruturas, linguagem e mundo. Só poderíamos falar apropriadamente da lógica caso

fosse possível transpor os limites apontados pelo filósofo. Teria que ser possível uma

metalógica, o que não é o caso para Wittgenstein. Qualquer tentativa dessa natureza é

frustrada a priori, pois implicaria em proposições contrasensuais.

Na primeira parte da dissertação apresentaremos as concepções centrais da tese

atomista. Nessa unidade proponho uma exposição dos pontos mais importantes da

mesma, aqueles que se mostram fundamentais para entendermos o atomismo lógico

wittgensteiniano.

No capítulo I falarei da forma lógica, sobretudo acerca das questões acima

aludidas. O ponto importante desse capítulo é mostrar como o projeto de Wittgenstein

se reveste de uma roupagem exclusivamente lógica. A lógica deve cuidar de si mesma

(s.n.t.): esta é a mensagem central desse capítulo. Para tanto, alguns tópicos da teoria de

Russell serão citados, haja vista Wittgenstein fazer uma crítica do mesmo, vindo a

ampliar sua teoria4. A diferença fundamental entre as duas concepções é que a de

Russell parece ter-se preocupado demais com questões epistemológicas.

O capítulo II apresenta os pontos principais da estrutura atomista do Tractatus.

A idéia é expor de forma sucinta os conceitos principais desse arcabouço lógico, no qual

os átomos serão na verdade compostos (proposições elementares e estados de coisas),

cujos constituintes (objetos e nomes) são a essência do mundo e da linguagem. O

capítulo apresenta a estrutura atomista didaticamente em três tópicos: figuração, a

necessidade dos simpless e a independência dos estados de coisas.

No capítulo III a intenção é apresentar o conceito tractariano de figuração. O

mundo é afigurado na linguagem, tal que esta possa ser pensada como um modelo da

realidade. Em outros termos: a linguagem afigura o mundo logicamente, pois tem uma

forma de figuração que é lógica. O exemplo de Wittgenstein é um acidente de trânsito.

4 A respeito da menção à teoria de Russell, bem como de outros autores, como Frege, Kant, Locke, dentre

outros citados ao longo do presente estudo, cumpre ressaltar que não procede fazer um exame

aprofundado dos conceitos formulados pelos mesmos, cabendo-nos tão somente mantermo-nos na

superfície de seus respectivos projetos.

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

4

O acidente é um modelo, que pode ou não de fato ter ocorrido como está representado

na maquete. Entretanto, algo de inegável ocorre: sendo ou não verdadeira a

representação, ela se apresenta como uma representação plausível. Isso ocorre por que a

figura captou a forma lógica5 do fato afigurado. Assim, toda figuração tem sentido

desde que descreva corretamente um estado de coisas, um fato possível do mundo. E

isso é tudo o que uma proposição precisa para se dizer que ela tem sentido.

Do capítulo IV ao VII faremos uma apresentação dos elementos da estrutura

atomista de forma mais detalhada. Nós já sabemos que a lógica é que viabiliza a relação

entre a linguagem e a ontologia. No entanto, precisamos conhecer os componentes

dessas duas subestruturas do atomismo, pois a rigor é nelas que estão circunscritas as

coisas sobre as quais se pode falar. No âmbito da linguagem temos as proposições

elementares e os nomes; já no âmbito da ontologia temos os estados de coisas e os

objetos. As proposições elementares correspondem aos átomos no âmbito da linguagem.

No âmbito da ontologia os átomos são os estados de coisas. Estes são constituídos por

objetos, enquanto que aqueles são constituídos por nomes. As proposições elementares

descrevem os estados de coisas, enquanto que os nomes nomeiam os objetos. Nesses

capítulos discutiremos acerca de possíveis interpretações desses conceitos do atomismo,

onde aproveito para apresentar uma leitura que é oriunda de meus próprios estudos da

obra wittgensteiniana.

O capítulo VIII fala da análise lógica. O mundo é constituído de fatos, que são

descritos por proposições complexas. Para que entendamos bem o que são esses

componentes precisamos analisá-los a fim de obtermos os constituintes últimos, seus

respectivos átomos. Esse trabalho de análise, todavia, depende da apreensão da forma

lógica das proposições. A análise, nesse sentido, faz-se necessária, pois assim

poderemos aprofundar a discussão aqui proposta. A análise é um elemento que ajuda a

compreender o sentido das proposições, embora Wittgenstein nunca tenha mostrado

como proceder em tal análise.

Wittgenstein (2001) concorda com Russell quando diz que a forma gramatical

das proposições nem sempre é sua forma lógica real. No entanto, discorda quanto à falta

de significatividade da linguagem ordinária, embora esta atenda aos desígnios da

5 Ver a respeito da forma lógica no cap. 1 do presente estudo.

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

5

comunicação cotidiana. Entretanto, a formalização ajuda a revelar a estrutura formal da

linguagem, pois na linguagem ordinária essa não transparece. No âmbito das ciências a

linguagem ordinária não é precisa, pois se deixa invadir por imprecisões e

ambigüidades. A formalização atende a essas exigências da ciência, pois claramente a

linguagem ordinária não pode servir de parâmetro para esta.

A unidade II da dissertação apresenta o momento de transição do pensamento

wittgensteiniano. Esta transição refere-se à crítica ao atomismo lógico face ao holismo

semântico. Em 1929, Wittgenstein escreveu um artigo na sua volta para Cambridge. O

artigo foi denominado “Algumas Observações sobre a Forma Lógica”. Nesse artigo,

Wittgenstein ainda usa um linguajar próximo ao do Tractatus. Porém, uma novidade

surge: ele percebe que cometera um erro em sua concepção de proposição elementar, à

medida que supusera que proposições com numerais seriam moleculares. Nessa

perspectiva, os números seriam um sinal de que a proposição não se encontrava

totalmente analisada, devendo-se fragmentá-la ainda mais. Talvez essa concepção se

deva ao seu projeto atomista, pois o atomismo engessava a análise num ambiente

puramente lógico, não se levando em conta o conteúdo expresso nas proposições. Todo

o arcabouço tractariano é construído em roupagens formais, e talvez por isso mesmo

Wittgenstein nunca tenha proposto dar exemplos de proposições elementares ou mesmo

de como proceder numa análise a fim de encontrá-las.

O que aconteceu foi que ele começou a pensar mais no conteúdo descritivo das

proposições a partir do período de transição. Ao se deparar com estas questões ele

percebeu uma falha incontornável em seu atomismo. A independência das proposições

elementares fora um erro. E a prova estava ali: proposições com numerais revelaram a

dependência que existe entre as proposições elementares.

Quando digo que “Francisco tem 2 metros de altura” estou dizendo

concomitantemente que ele não tem 1.90, 1.85 ou as demais medidas de comprimento

possíveis. Há uma dependência entre estas proposições. Todas as proposições do

mesmo espaço lógico6 são comparadas com a realidade. Daqui, surgem duas

conclusões: 1) os números fazem parte das proposições elementares, não podendo ser

6 Ver a esse respeito a unidade II, cap. 3.

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

6

decompostas; 2) as proposições elementares não são independentes, i.e., existe uma

relação de dependência entre proposições do mesmo grupo.

Nos capítulos I e II desta unidade abordaremos a discussão que levou à mudança

no pensamento de Wittgenstein.

O capítulo III se reporta ao livro Observações Filosóficas de Wittgenstein,

editado por Rush Rhees (2005). O livro é composto por anotações de Wittgenstein que

foram escritas posteriormente ao artigo de 1929. Nesse texto, Wittgenstein desenvolve

muitas idéias, embora não haja propriamente uma sequência metodológica na

organização do livro. O que tento mostrar no referido capítulo é o desenvolvimento

daquilo que começara em 1929. Um ponto fundamental é a idéia de que proposições

que pertencem ao mesmo espaço lógico são dependentes entre si. Na concepção antiga,

cada proposição elementar se conectava diretamente ao seu estado de coisas

correspondente, sendo possível pensar em algo além do que era dito pela proposição. Na

concepção reformulada cada proposição elementar traz junto a si um conjunto de

proposições que fazem parte do mesmo espaço lógico. Dizer que “a parede é verde” é

dizer que ela não é de nenhuma outra cor.

A princípio, estas considerações desvirtuam em parte o objetivo do estudo, pois

é defendido aqui que o ponto alto é a superação da idéia de que as proposições

elementares/estados de coisas são independentes logicamente. Apesar disso, entendo

que a leitura das Observações se torna importante na percepção da mudança de

paradigma de Wittgenstein. A introdução do tema da linguagem fenomenológica se

deve ao fato de o próprio Wittgenstein começar o texto dizendo que essa linguagem não

é mais a linguagem predominante em sua fase posterior. Assim, defendo que examinar o

que vem a ser essa linguagem fenomenológica é muito importante, pois é uma pista que

o próprio autor deixa manifestar. Alguns autores defendem que tal linguagem é inerente

ao TLP, mas há também uma parcela de autores que recusam aceitar tal leitura.

Particularmente, defendo que no Tractatus não é possível fazer uma leitura

fenomenológica do livro, pois acredito haver uma confusão. O filósofo tem uma postura

estritamente lógica no Tractatus, não apresentando uma maneira de realizarmos a

análise da linguagem. Entretanto, seguindo os próprios passos do filósofo, devemos

reconhecer sua empreitada de uma linguagem fenomenológica, que só podemos

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

7

reconhecer em um momento intermediário do pensamento wittgensteiniano,

sabidamente quando do seu retorno a Cambridge.

Portanto, essa mudança de paradigma leva Wittgenstein a pôr em xeque o

modelo puramente lógico construído no Tractatus. Ainda no mesmo capítulo trataremos

de três pontos importantes no que tange a essas reformulações: 1) Linguagem

Fenomenológica; 2) Os diversos Espaços Lógicos; 3) A Impossibilidade de uma

Linguagem Fenomenológica.

Nas Observações filosóficas, Wittgenstein passa a tratar acerca de uma

linguagem de caráter fenomenológico. Dessa maneira, expõe essa linguagem em

oposição ao novo modelo lingüístico apresentado nesse momento de sua vida. A

linguagem das Observações tem um viés muito mais hipotético, como atesta a análise

do tempo. O tempo não pode ser afigurado definitivamente. No contexto de uma

linguagem fenomenológica parece possível algo como tirar fotografias dos fatos, tal que

pudéssemos assim captar o sentido das figuras sempre que a olhássemos.

A linguagem hipotética é uma linguagem próxima à linguagem cotidiana, que

nunca tem seu sentido demarcado definitivamente. Cada vez que se observa uma figura

novas análises poderão surgir. E essa é a mudança fundamental. Por fim, o texto fala da

impossibilidade de se manter uma linguagem fenomenológica. Ela não passa a ser

impossível, mas deve ser uma opção dentre muitas maneiras de enunciar o mundo.

O presente estudo, apesar de encerrar aí a questão, pretende, num futuro

próximo, dar continuidade à investigação sobre o período maduro da obra

wittgensteiniana e suas implicações na filosofia contemporânea.

Por hora, acredito que o trabalho tenha algum valor devido às carências de

estudos sobre o período de transição do pensamento de Wittgenstein. As pesquisas

geralmente apontam para duas fases distintas na obra do filósofo. Desse modo, ou se

fixam no 1º Wittgenstein ou então no 2º. Meu trabalho analisa o atomismo, portanto a

primeira fase de sua obra, mas não se encerra aí. Também busca entender o que ocorreu

no período de transição do pensamento wittgensteiniano, apontando para continuísmos,

mas também para mudanças paradigmáticas em sua obra.

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

8

Unidade I

I. Forma Lógica

Wittgenstein é um pensador que influenciou de modo significativo a filosofia do

século XX, sobretudo porque foi protagonista nos dois momentos do movimento

filosófico consagrado como reviravolta lingüística, a saber, o atomismo lógico e o

holismo semântico. Assim, sua filosofia também costuma ser dividida pelos críticos em

duas fases: a primeira corresponde ao que conhecemos como sua fase logicista, na qual

ele desenvolve sua própria versão do atomismo lógico, a partir do que herdara de Frege

e Russell. Esse arcabouço lógico é apresentado em sua obra magna, o Tractatus Logico-

Philosophicus. A segunda fase corresponde ao já aludido holismo semântico, que tem

seu ápice com a publicação póstuma de sua outra grande obra, Investigações

Filosóficas.

O Tractatus foi escrito durante a primeira guerra mundial, mas sua publicação

ocorreu somente em 1921. Nesse livro, Wittgenstein reúne um conjunto de aforismos

que tratava de lógica, epistemologia, ontologia, linguagem, ética, estética e mística. Ele

acredita que a filosofia tradicional sempre trilhou por caminhos errantes, à medida em

que propõe teses contra-sensuais. Desse modo, tem-se que, em Wittgenstein, os

problemas filosóficos consistem, antes de tudo, em problemas de linguagem. Quando

Wittgenstein fala de contra-sensos ele visa principalmente a metafísica, que é a área da

filosofia que pretende teorizar sobre a essência da realidade projetada em um plano que

extrapola o âmbito do meramente físico e organiza um quadro conceitual que abrange

formulações de caráter ético, estético, lógico e o conhecimento do místico. Mas no que

consiste mesmo um contra-senso? Para Wittgenstein, um contra-senso é uma tentativa

de dizer algo sobre o qual não se pode dizer, uma vez que se trata justamente daquilo

que condiciona o que pode ser dito. É a tentativa de falar daquilo que está fora dos

limites do mundo, ou ainda, daquilo que está fora dos limites da linguagem, daquilo que

não cabe numa teoria. Proposições contrasensuais são proposições nas quais alguns de

seus constituintes não correspondem a nada no espaço lógico. Wittgenstein explica isso

no prefácio de seu livro (2001):

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

9

O livro pretende, pois, traçar um limite para o pensar, ou melhor – não

para o pensar, mas para a expressão dos pensamentos: a fim de traçar um

limite para o pensar, deveríamos poder pensar os dois lados desse limite

(deveríamos, portanto, poder pensar o que não pode ser pensado).

O limite só poderá, pois, ser traçado na linguagem, e o que estiver

além do limite será simplesmente um contra-senso.

Desta maneira Wittgenstein acredita que seu projeto filosófico é propedêutico,

pois faz uma limpeza no vasto domínio da filosofia, restringindo-a ao domínio do

factível, ou melhor, daquilo que é dizível com sentido. Ele acreditava que grande parte

dos problemas filosóficos eram na verdade pseudoproblemas, pois tentavam dar conta

do que não se pode dar conta. Isso quer dizer que a filosofia patinou durante muito

tempo se utilizando de proposições contrasensuais como se fossem proposições com

sentido. O Tractatus objetiva mostrar o que são contra-sensos, pois assim poderemos

evitar a maioria dos problemas oriundos da filosofia. Aliás, essa é uma das críticas que

ele faz ao projeto russeliano, a saber, que a teoria do juízo de Russell não conseguia

evitar que proposições contrasensuais fossem tomadas como proposições legítimas.

Wittgenstein acreditava que teria resolvido assim todos os problemas filosóficos.

Para tanto, ele não precisou construir uma teoria crítica que abordasse as teorias

tradicionais. Ele só precisou estabelecer os limites do pensamento e do mundo,

reduzindo as teorias metafísicas existentes à condição de contra-sensos, ou seja, ele

apenas rejeitou as teorias que falavam daquilo que está fora dos limites do mundo e da

linguagem. Sobre a resolução dos problemas em filosofia, ele diz no prefácio:

... a verdade dos pensamentos aqui comunicados parece-me intocável

e definitiva. Portanto, é minha opinião que, no essencial, resolvi de vez os

problemas.

Wittgenstein tem como ponto de partida muitas teorias, embora não sejam

mencionadas por ele. Muitos comentadores encontram pontos de interseção com outros

autores, mas Wittgenstein parece não estar preocupado em não ser original. É claro que

dizer isso é um pouco forçado, pois é notória a originalidade da proposta de

Wittgenstein. Dois autores que ele não deixa de mencionar são Frege e Russell, na

filosofia dos quais encontramos grandes projetos lógicos. Para entendermos o caminho

desenvolvido por Wittgenstein precisamos conhecer, ainda que minimamente, os pontos

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

10

de partida dele. Por isso, temos que abordar alguns detalhes da filosofia que o

antecedeu, principalmente a de Russell, pois este também defendeu uma teoria atomista.

A questão de Russell7 parece ser a de como a lógica possibilita o conhecimento.

Para tanto, era necessário investigar a natureza da linguagem, já que é a linguagem que

faz a mediação entre o sujeito e o mundo. A proposição então tem o status de principal

elemento de investigação lógica, tornando necessárias as definições de seus elementos

constituintes. Esses elementos podem ser tomados como as relações, os predicados, os

termos e a(s) forma(s) lógica(s). Tais elementos se relacionam entre si possibilitando

que a linguagem descreva significativamente o mundo. Essa relação só é possível em

virtude de alguma coisa que garanta a relação especular entre a linguagem e o mundo:

essa coisa em comum é a forma lógica. Assim, tudo se organiza em torno da forma

lógica. Russell acredita que é possível identificar proposições logicamente verdadeiras e

as inferências logicamente válidas apenas observando suas respectivas formas lógicas.

A forma lógica garante o sentido de uma proposição. Isso se evidencia

claramente ao tomarmos uma mera lista de nomes e constatarmos que essa listagem não

tem sentido algum. Parece redundante o que estou dizendo, mas apenas quero

evidenciar que o que torna uma listagem de nomes significativa é a sua forma lógica.

Portanto, podemos dizer que a forma lógica é responsável pelo sentido proposicional.

Uma sentença como “amanhã sempre hoje Fortaleza” não faz o menor sentido para

ninguém. O que garante o sentido de uma proposição é algo que lhe é inerente e que

Russell tomou como sendo a forma lógica. Russell teve uma influência filosófica

significativa da filosofia de Meinong em sua vida. Russell defendia que o sentido de

uma proposição era um composto dos significados de suas partes. Para uma proposição

ter sentido, pensava Russell, bastava que ela representasse algo, não importando que

este algo existisse ou não. Proposições verdadeiras e proposições falsas tinham ambas

sentido, já que ambas representavam algo no universo (espaço lógico). Desse modo, não

havia uma predileção por proposições verdadeiras. Essa postura de Russell se deve ao

fato de que, assim como Meinong defendeu, havia objetos existentes e os subsistentes.

Os subsistentes eram objetos que existiam em alguma esfera do espaço lógico, mesmo

que esta subsistência não fosse no mundo empírico. Portanto, ser verdadeira ou falsa

uma proposição não importava muito, pois ambos os tipos de proposições

7 A esse respeito, cf. SANTOS, L.H.L. (2001).

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

11

representavam significativamente uma parcela da realidade. Não há, ao menos nesse

primeiro instante, uma predileção por proposições verdadeiras como sendo mais

representativas que as falsas.

No entanto, Russell muda sua posição, ao privilegiar as proposições verdadeiras.

Isso é fruto da mudança da sua concepção de sentido. Sua concepção anteriormente

descrita defende que ter sentido é simbolizar algo, mesmo que estas coisas não sejam

factíveis, como por exemplo, “o unicórnio é um eqüino”, “Papai Noel é um bom

velhinho” e etc. A concepção do Russell mais maduro é a de que ter sentido é

simbolizar constituintes possíveis de um complexo. Essas proposições exemplificadas

não se encaixam nessa nova concepção, pois tratam de fatos que não se apresentam

como possíveis na realidade. Se tal complexo existir, então a proposição é verdadeira, se

não existir, então ela é falsa. Desta maneira, para que representações sejam possíveis, as

proposições verdadeiras serão necessárias, ou seja, só é possível representar por meio de

proposições verdadeiras. Dito isto, fica evidente que para Russell proposições falsas não

representam nada, embora elas tenham sentido.

Essa mudança de concepção de Russell se depara com duas grandes

dificuldades. Em primeiro lugar se põe a questão dos nomes constituintes de uma

expressão. Parece que Frege entendeu o sentido de uma proposição como a composição

dos conteúdos descritivos de seus respectivos constituintes, os nomes e os predicados.

Então Russell se deparou com a questão dos conteúdos descritivos desses nomes,

tentando resolvê-la na teoria das DD8. Em segundo lugar, nos perguntamos sobre o

seguinte: o que faz da proposição um complexo com sentido e não um agregado

qualquer de símbolos? Um amontoado de termos ou nomes não torna a proposição

significativa. Existe algo que torna uma proposição significativa ou não. Essa

dificuldade Russell irá tratar na teoria do juízo.

A primeira questão é tratada por Russell (1974) no âmbito da teoria das

descrições definidas, que estabelece que nomes são apenas abreviações ou rótulos de

tais descrições. Para Frege9, a introdução de um artigo definido caracterizava um

argumento proposicional como um nome, como por exemplo, “o autor de Waverley”, “o

rei da França”, “o presidente do Brasil” e “o camisa 10 da seleção brasileira”. Frege,

8 Em alguns momentos do texto usarei essa abreviatura para designar as Descrições Definidas de Russell.

9 Cf. Sobre O Conceito e o Objeto, 1978.

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

12

que tinha uma concepção sintática para definir o que era um nome, consideraria tais

exemplos como autênticos nomes lógicos. Russell discordaria de tal concepção. Ele

defendeu que tais nomes (como defendidos por Frege), eram na verdade descrições

definidas. Assim, uma sentença como “o presidente do Brasil é barbudo” não poderia

ser traduzida para uma linguagem formal como sendo “Fx” (sujeito-predicado), de

acordo com a teoria fregeana, mas teria de ser traduzida em pelo menos três sentenças

diferentes: “existe pelo menos um x que é presidente do Brasil”, “Há um único x que é

presidente do Brasil” e “x é barbudo”. Neste caso, a sentença é verdadeira, já que é

verdade que existe um presidente do Brasil e que ele é barbudo.

No entanto, em Sentido e Referência (1978), Frege defendeu que, para que uma

proposição tenha sentido, não é necessário que ela denote algo. Ela não precisa ter valor

de verdade para expressar um sentido. Mas Russell defendeu que toda proposição tem

um valor de verdade intrínseco. Proposições como “o rei da França é careca” são falsas,

mas também têm sentido. O que acontece com a teoria de Frege é que sua análise se

torna semelhante à de Meinong, pois defende uma espécie de reino platônico de

existência. Ao defender isso, fica difícil negar a existência de objetos denotados por

descrições definidas10

. Além disso, apesar de uma ontologia exuberante, sua filosofia se

distingue da de Meinong, pois claramente este não concebe nomes sem denotação.

Russell estava preocupado com essa concepção, além da concepção meinonguiana,

como por exemplo, combater a significatividade de sentenças como “o quadrado

redondo existe”.

Esses componentes da sentença, que foram considerados como nomes por Frege,

serão tratados por Russell como símbolos incompletos. Os nomes próprios lógicos têm

significados em si mesmos, o que não é o caso das descrições definidas. Elas são

símbolos incompletos, pois o significado delas depende do uso delas. Isso quer dizer

que um símbolo incompleto não pode ser retirado de seu contexto, pois caso contrário

ele deixará de denotar o que denotava no respectivo contexto. Russell acreditava que um

nome ordinário é um símbolo incompleto porque ele não denota um objeto, mas é uma

abreviação de descrições definidas.

10

No entanto, para Frege nem toda descrição definida tem denotação, pois claramente existem as

descrições que denotam o conjunto vazio. Isto o torna diferente de Meinong, embora mantenha algumas

semelhanças ainda.

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

13

Essa seria a maneira de Russell evitar a admissão de entidades duvidosas, como

fizeram Frege e Meinong. Uma característica da análise defendida por ele em Da

Denotação é mostrar que, numa sentença analisada, a descrição em questão perde o

status de sujeito gramatical. Isso mostra que tal descrição não é de fato um nome

próprio lógico. Para Russell, nem mesmo nomes como “Kant”, “Einstein” e “Romário”

são nomes próprios logicamente, mas sim uma abreviação de um feixe de descrições.

Para ser um nome próprio lógico, o particular11

em questão denotado tem que estar

presente no momento da asserção.

A segunda questão pode ser respondida a partir da teoria do juízo como relação

múltipla. A teoria do juízo de Russell defenderá que uma proposição é um símbolo

indeterminado, ou melhor, é um símbolo incompleto. As proposições se tornam

completas no momento em que são asseridas por alguém, por um sujeito. Há uma

relação entre o sujeito e o significado das partes constituintes como defende Santos

(2001):

A existência dessa relação é um fato, um complexo constituído pelo

sujeito do juízo, pelos significados das partes proposicionais e pela relação

mental que os enlaça12

.

O juízo é uma espécie de função intensional. A proposição é uma espécie de função

extensional. O juízo é considerado intencional porque ele é dependente do sujeito que o

profere. O sujeito que o profere tem uma familiaridade com suas partes, além do que ele

profere uma sentença num determinado contexto. A distinção entre ambas as funções

pode ser exemplificada. As funções “x é humano” e “x é um bípede implume” são

equivalentes, pois têm a mesma extensão. Mas “x pensa em seres humanos” e “x pensa

em bípedes implumes” não são equivalentes, pois essas funções levam em conta o

sujeito que as profere. O sujeito x que as profere pode não pensar em seres humanos

quando profere “bípedes implumes”. Nessa relação de elementos num juízo, podemos

dizer que este é verdadeiro se ocorrer de fato, e falso se não ocorrer.

Os elementos constituintes da proposição são os particulares (objetos), os

predicados (qualidades) e as relações. Portanto, num juízo o sujeito se relaciona com os

11

Esses particulares em questão para Russell são os seus objetos de familiaridade. 12

SANTOS, LUIZ HENRIQUE LOPES DOS. A Essência da Proposição e a Essência do Mundo. In:

WITTGENSTEIN, L. Tractatus, pág 50.

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

14

significados de tais elementos. Por exemplo, em m é mais alto que n, o sujeito se

relaciona com os significados de m e n e com o significado de é mais alto que. Mas um

problema surge daí: ao defender o que foi apresentado acima, se dá margem para se

defender que n é mais alto que m também é possível13

. Dados os mesmos objetos

podemos formular duas sentenças com sentido. Isto não fere o requisito de que estes

constituintes descritos têm que se relacionar com o sujeito em questão. O problema não

está no fato de que podemos construir duas proposições significativas, mas sim poder

constatar o sentido preciso da proposição enunciada. A questão é exatamente como

sabemos qual o sentido proposicional.

Russell se dá conta desta problemática e, em 1913, ele ensaia uma solução em

seu escrito Theory of knowledge (1984). Neste texto ele sugere que o que garante a

direção da proposição é a forma lógica. Com isso, Russell introduz um novo elemento

em sua teoria. Para ele, um juízo seria agora caracterizado pela relação entre um sujeito,

os significados dos elementos proposicionais e a forma lógica. Desta maneira, a forma

lógica se tornou um elemento constituinte do complexo, garantindo a direção da

proposição. A direção é o elemento que garante a ordem da seqüência dos elementos na

proposição. Digamos o seguinte, a direção é algo como “x ama y”, que é diferente de “y

ama x”; ou seja, temos aqui duas direções diferentes, ou ainda, a direção é uma

configuração possível de alguns elementos proposicionais dados.

Tomemos como exemplo o já mencionado acima, qual seja, m é mais alto que n.

A forma do juízo seria então C(S, m, A, n e β). O sinal C significa “crença”, que é o

resultado da relação múltipla de um juízo; S significa o sujeito que entende a

proposição; m e n são sinais de nomes próprios de particulares; A é um sinal que

significa uma relação e β significa a forma lógica do juízo. Essa seria então a forma do

juízo em questão. O entendimento de um juízo é uma relação múltipla entre o sujeito e

todos os constituintes do complexo, incluindo-se a forma lógica.

Também deve ser salientado que a relação de um juízo não é entre um sujeito e

um complexo, mas na verdade é entre um sujeito e cada um dos constituintes do

complexo. Essa relação é uma relação de familiaridade com cada um dos constituintes

13

Em princípio, quando tomamos os componentes do juízo isoladamente não podemos dizer qual a

direção correta, pois podemos tomar mais de uma direção com sentido.

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

15

do complexo. Esses constituintes da proposição representam os objetos na realidade.

Particulares, predicados, relações e a(s) forma(s) lógica(s) são todos considerados

objetos por Russell. Desta maneira, Russell se vê forçado a admitir até mesmo a forma

lógica como objeto de familiaridade. Esse será um problema que abordaremos no texto,

mas que, no presente momento, não nos interessa aqui dar mais detalhes, sobretudo no

que diz respeito à crítica apresentada por Wittgenstein.

O problema que nos interessa no momento é outro. Ele pode ser dividido em

duas partes. 1) se a forma lógica é parte constituinte do complexo ela não pode ser a

relação que relaciona os demais constituintes a fim de determinar a direção

proposicional; e 2) se a forma lógica é a relação que relaciona os constituintes do

complexo, então estes constituintes do complexo se relacionam como se relacionam na

realidade para que a proposição seja verdadeira. Isso equivale a dizer que o complexo é

desvinculado do juízo, não havendo uma relação múltipla, mas uma relação entre o

sujeito e o complexo. Além do mais, isso contraria a tese de que toda proposição é um

símbolo incompleto. Se a proposição é um símbolo incompleto isso quer dizer que ela

só se torna completa no contexto do juízo proferido, quer dizer, não se pode abrir mão

das características intensionais do juízo.

Essa aporia coloca em xeque a teoria do juízo de Russell, principalmente depois

da crítica reprovadora de Wittgenstein a tal teoria. Russell paralisa a obra Theory of

Knowledge e esta continuará inacabada. Podemos perceber o efeito da crítica de

Wittgenstein, feita a ele por meio de uma carta:

Lamento muito saber que a minha objeção à tua teoria do juízo te

paralisou. Penso que apenas poderá ser removida através de uma correta

teoria das proposições14

.

Wittgenstein então dará seqüência ao trabalho de Russell com sua própria versão do

atomismo.

O problema que motivou Wittgenstein foi o que foi deixado por Russell, isto é, o

problema de saber como a forma lógica passa a fazer parte da proposição (ou do juízo).

O trabalho filosófico de Wittgenstein se concentrará então em torno da questão lógica.

14

Carta 9: Hochreit: Post Hohenberg, Nieder-Österreich, 22.7.13. Cit. Em Griffin, O Atomismo Lógico de

Wittgenstein, pág. 155.

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

16

Russell esclarecerá (em parte) seus problemas com a introdução da forma lógica como

constituinte na relação múltipla do juízo. O problema é que não fica claro como esta

forma se torna uma parte constituinte do juízo. A resolução do problema deve se dar no

âmbito estritamente lógico, como salienta o próprio Wittgenstein nos Cadernos no dia

2.9.14:

A lógica deve cuidar de si mesma. Isso é um conhecimento altamente

profundo e importante.

Podemos iniciar a análise da idéia de forma lógica com o aforismo 4.121d do

Tractatus:

A proposição mostra a forma lógica da realidade.

A forma lógica aparece na proposição. Uma proposição, pode-se dizer, tem sentido na

medida em que é lógica ou é lógica na medida em que tem sentido. Assim, podemos

dizer que a forma lógica se mostra em proposições com sentido. James Griffin (1998)

fala acerca desta tese do mostrar:

... a doutrina do Mostrar pode ser expressa deste modo: o que pode ser dito na

linguagem é que este objeto tem, de fato, esta propriedade ou está, de fato,

nesta relação com este outro objeto, todavia, nada se pode dizer relativamente

às propriedades formais dos objetos ou dos estados de coisas; propriedades e

relações formais mostram-se15

.

O sentido é garantido quando uma proposição descreve uma possibilidade no

espaço lógico. O sentido é determinado quando uma proposição descreve um fato que

pode ser ou não verdadeiro, que pode ou não ser o caso. O que eu quero trazer à tona

aqui é que uma proposição com sentido é uma proposição regida pelo princípio da

bipolaridade. A bipolaridade garante a logicidade de uma proposição. Esse princípio

exclui uma terceira opção, ou seja, ele determina também o princípio do terceiro

excluído. A bipolaridade diz que uma proposição pode ser verdadeira e pode ser falsa,

quer dizer, qualquer proposição pode ser verdadeira ou falsa. A bipolaridade expressa a

contingencialidade das proposições com sentido. Wittgenstein tem na bipolaridade das

proposições uma peça fundamental de seu quebra-cabeça no Tractatus. Ele defendia que

a bipolaridade é a essência da proposição.

15

Griffin, pág. 55.

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

17

A tese da bipolaridade se conecta à tese da independência do sentido das

proposições elementares. Uma proposição elementar não tem nenhuma dependência em

relação a uma outra para ter sentido. Seu sentido é garantido por meio de sua

bipolaridade, ou melhor, porque ela descreve um estado de coisas, e isto lhe basta, não

havendo nenhum tipo de dependência de outras proposições. Essa independência não é

apenas em relação às demais proposições, mas também do mundo factual.

A teoria da bipolaridade mostrou que uma lei lógica não pode ser afigurada, mas

que ela existe de fato. As leis lógicas são propriedades internas, daí não poderem ser

afiguradas. Apenas propriedades externas podem ser afiguradas. A forma lógica

também não pode ser afigurada. Ela é o que é comum à linguagem e à realidade,

conforme o aforismo 2.18 do Tractatus:

O que toda figuração, qualquer que seja sua forma, deve ter em

comum com a realidade para poder de algum modo – correta ou falsamente –

afigurá-la é a forma lógica, i.e., a forma da realidade.

Essa forma, no entanto, se mostra, não sendo possível afigurá-la. Ela é uma

propriedade interna da figuração. Ela pertence a um tipo lógico que se mostra. Desta

forma, não é possível defender uma teoria dos Tipos como a de Russell. Griffin (1998)

fala a respeito disso:

... a teoria dos tipos é impossível e supérflua. Em primeiro lugar, tenta dizer o

que não pode ser dito; em segundo lugar, o que pretende dizer mostra-se no

simbolismo16

.

A teoria lógica não poderia ter proposições lógicas, pois elas não representam fatos. Daí

que toda tentativa de teorizar acerca da lógica incorrerá em pseudoproposições. A lógica

possibilita o conhecimento das formas, propriedades e relações formais das proposições.

No entanto, o que iniciou todo este projeto foi a problemática acerca da forma lógica.

Assim, pretensas proposições lógicas são produzidas para se tentar esclarecer o

problema.

A crítica de Wittgenstein é sobre como a forma lógica passa a fazer parte de uma

proposição. Ele questiona isso na teoria de Russell, e mais ainda: que a teoria do juízo

de Russell não é capaz de evitar contrasensos. O juízo “A acredita que João ama Maria”

16

Griffin, pág. 51.

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

18

pressupõe o sentido da proposição. Sua teoria não consegue prever um contrasenso no

juízo, como poderia ser o caso de “João amar triângulos”. A teoria não tem como

considerar impossível tal articulação. Ela não pode assumir que um dos nomes da

proposição não tenha significado. Russell não assume a possibilidade de contra-sensos

na linguagem ordinária. Afinal de contas, como dizer que “João ama Maria” é

significativo e “João ama triângulos” não é? Proposições contrasensuais ferem o

princípio de bipolaridade, já que são constituídas por alguns elementos que não tocam a

realidade. A lógica tem que ser capaz de solucionar este problema.

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

19

II. Atomismo Lógico

Começo este capítulo com a pergunta fundamental: o que é o atomismo lógico?

Não é necessário dizer que a resposta não é fácil, mas, todavia, é possível de ser dada. O

meu texto pretende analisar o atomismo lógico de Wittgenstein a partir do interior de

sua obra, principalmente em seu Tractatus Logico-Philosophicus. Esta obra de

Wittgenstein é uma tentativa de mostrar como é possível representar o mundo. Essa

representação do mundo se dá no nível da linguagem. Seria possível questionar isso

dizendo que representação é uma categoria psicológica, daí poderia parecer que a obra

fosse um solipsismo radical, enquanto oposição de uma tese realista.

Kant [1781(1999)] postula que o conhecimento é constituído por

verdades de tipos distintos, como os juízos sintéticos a priori, sintéticos a posteriori e

analíticos a priori. Superficialmente falando, o que Kant quer dizer é que o

conhecimento é conhecimento do mundo fenomênico, mas que, entretanto, ele não pode

ocorrer sem o intermédio das formas puras da sensibilidade e das categorias do

entendimento. Essas formas e categorias são apriorísticas, propriedades internas do

sujeito transcendental que lhe possibilitam conhecer o mundo através de intuições

sensíveis. Uma conseqüência dessa filosofia transcendental é a demarcação dos limites

do conhecimento humano. Tal concepção é proveniente da idéia de que só podemos

conhecer fenômenos. Daí que aquilo que não pode ser enquadrado como tal não é

abarcado por esse sistema transcendental. Aqui fica estabelecido que a razão têm

limites, e para além deles não é possível avançar. Em outras palavras, Kant estabelece

limites para o pensar racional. O que se pode pensar é aquilo que está dentro do

conjunto-domínio do sujeito transcendental. Por fim, essa demarcação dos limites do

que pode ser conhecido demarca também aquilo que é o conhecimento científico. Isso

não quer dizer que o que está para além dos limites da razão não tenha uma

significatividade, mas apenas que não é possível apreender através de uma atividade

cognoscitiva. Penso que este esboço superficial da teoria crítica de Kant é importante,

pois nos ajuda a entender o desenvolvimento teórico de Wittgenstein. Não que

Wittgenstein tenha bebido diretamente da fonte kantiana, mas que ele é fruto de uma

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

20

época sucessora à de Kant. Isso nos dá o direito de fazermos uma leitura da obra de

Wittgenstein levando em conta as possíveis semelhanças com o projeto kantiano 17

.

Wittgenstein escreve no prefácio do Tractatus algo que demonstra sua intenção

de também fazer uma crítica do pensamento. Ele também busca, assim como Kant,

mostrar os limites para o pensamento, caracterizando desse modo aquilo que está fora

de tais limites. A diferença é que Wittgenstein não concebe um sujeito transcendental na

demarcação do limite. Pensamento, a rigor, não terá nenhuma característica subjetivista,

mas será identificado com a estrutura lógica da linguagem. A linguagem será a maneira

de avaliar o pensamento. Wittgenstein tratará como idênticas as duas estruturas. Aquilo

que é pensável é também dizível e o que é dizível é também pensável, não havendo

nenhum tipo de pensamento que não possa ser manifestado na linguagem. No prefácio

encontramos o seguinte excerto:

O livro pretende, pois, traçar um limite para o pensar, ou melhor – não

para o pensar, mas para a expressão dos pensamentos: a fim de traçar um

limite para o pensar, deveríamos poder pensar os dois lados desse limite

(deveríamos, portanto, poder pensar o que não pode ser pensado).

O limite só poderá, pois, ser traçado na linguagem, e o que estiver

além do limite será simplesmente um contra-senso18

.

Fica clara a identificação entre pensamento e linguagem. Partindo disso,

podemos compreender que a relação pensamento-mundo passa a ser de uma outra

natureza, que é a da relação linguagem-mundo. Os limites agora serão demarcados pela

linguagem que representa o mundo. Representar quer dizer que a linguagem é um

substituto do mundo, ou melhor, que os elementos da linguagem substituem

satisfatoriamente os elementos do mundo. Isso quer dizer que, para conhecermos o

mundo, só precisamos ter contato com as proposições lingüísticas, já que elas

representam o mundo.

Essa representação do mundo é chamada por Wittgenstein de figuração do

mundo. Quer dizer que a linguagem tem uma característica de afigurar os elementos do

mundo. No caso do Tractatus, esse mundo consiste em fatos. Assim, proposições

afiguram fatos. Cada proposição é uma figura ou modelo desse mundo, ou ainda, da

17

A esse respeito, ler a introdução de PEARS (1973). 18

Tractatus, pág. 131.

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

21

realidade. A figuração só é possível porque ocorre uma relação de um-a-um entre os

elementos da figura e os elementos da realidade; é uma relação de equinumeracidade

entre a figura e a realidade. Essa afiguração só é possível devido a uma estrutura lógica

comum tanto à linguagem quanto ao mundo. Essa estrutura lógica partilhada por ambos

é a forma lógica. Por conta desta podemos afirmar que existe uma isomorfia entre

ambas as estruturas. As proposições são substitutas dos possíveis fatos da realidade.

Elas são figurações da realidade.

Essa capacidade afiguradora da linguagem, todavia, é dependente da

possibilidade de ocorrência dos fatos afigurados por ela. Essa possibilidade de

ocorrência dos fatos é condição necessária para que tais proposições tenham sentido. Se

não fosse assim, as proposições seriam simplesmente sinais destituídos de qualquer

significação. Mas uma linguagem dependente da ocorrência efetiva de tais fatos é uma

linguagem fisicalista, seus significados seriam dependentes da ocorrência empírica dos

fatos no mundo. Isso privilegiaria uma ontologia para a constituição da linguagem. Mas

aí teríamos um problema para a lógica, pois esta não cuidaria mais de si mesma, pois

não seria mais capaz de determinar as condições a priori para que a linguagem pudesse

afigurar a realidade.

O projeto lógico no Tractatus de Wittgenstein não é esse. A intenção dele não é

simplesmente dizer que a linguagem só pode afirmar o que pode ser verificado

empiricamente. Seu projeto busca tratar das condições a priori de qualquer linguagem

afigurar o mundo. Por esse motivo, o projeto wittgensteiniano é considerado lógico,

pois intenciona mostrar quais são essas condições necessárias a priori. O mundo factual

é um mundo de possibilidades contingentes. David Pears (1973) também entende assim:

...a lógica abrange tudo que é a priori. É por exemplo contingente o fato de a

lua ser menor do que a Terra e foi necessário recorrer à experiência para

determiná-lo; contudo, é um a priori, ou verdade necessária, que a Lua ou é

ou não é menor do que a Terra – e isso poderá ser antecipadamente

afirmado19

.

O projeto tractariano não é apontar para uma linguagem dependente da verificação

empírica, mas para a constituição de qualquer linguagem que obedeça às leis lógicas.

19

PEARS, D. (1973). pág. 48.

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

22

Russell entendeu que Wittgenstein queria criar uma linguagem simbólica perfeita,

prescindindo da linguagem ordinariamente falada, assim como parece ter sido o projeto

do próprio Russell. Ele diz isso na introdução que escreve ao Tractatus de Wittgenstein

(p. 113-128). Pelo que já foi dito, podemos refutar essa tese de Russell dizendo que a

intenção de Wittgenstein era a de estabelecer as condições a priori para a representação,

não se ocupando em criar uma notação ideal perfeita.

Wittgenstein então pensou que, para que uma figuração fosse de fato possível,

algo de substancial tinha que existir. Esse algo de substancial tinha que ser algo

irrecusável, sob risco de uma figuração não figurar nada; ou ainda, que o sentido de uma

figura fosse dependente do sentido de outra figura. Então Wittgenstein pensou que algo

teria que ser esta substância. Os fatos não poderiam ser, pois eles são todos

contingentes. Mas aí vem a grande saída. Os fatos são mesmo contingentes, mas suas

partes constituintes, estas são comuns a muitos outros fatos. Se tomarmos todos os fatos

do mundo (supondo que seria possível), notaremos que alguns constituintes desses fatos

são comuns a muitos fatos, alterando apenas a configuração destes elementos comuns e

constituintes. Esses constituintes últimos, portanto, são o que ele pode aceitar como

substância do mundo. Tais constituintes últimos serão considerados o fundamento do

arcabouço lógico de Wittgenstein. Ele os denomina objetos simples. No entanto, é

importante ressaltar que não se pode conhecer os simples enquanto tais, a não ser no

interior daquilo que eles constituem. Os fatos têm como seus constituintes últimos os

objetos. As proposições, todavia, também têm constituintes últimos, pois elas

representam isomorficamente os fatos. Os elementos simples das proposições são os

nomes. Aqui temos o pressuposto fundamental da tese de Wittgenstein, a saber, a

existência necessária de elementos simples. Os fatos e as proposições que os afiguram

são considerados complexos, constituídos por partes mais simples. Essas partes mais

simples são, a rigor, os objetos e nomes, respectivamente. Um fato complexo é

decomposto por fatos elementares, atômicos. Esses fatos atômicos são o que

Wittgenstein denominou estados de coisas (Sachverhalt)20

. Um fato é composto de n

estados de coisas. Esses, por sua vez, são compostos de objetos. Do lado da linguagem

temos a mesma estrutura. Uma proposição complexa (molecular) é composta de n

proposições atômicas, denominadas de proposições elementares. Essas, por sua vez, são

20

Pelo menos é a tradução aprovada por Wittgenstein de Ogden, que foi o primeiro tradutor do Tractatus

para a língua inglesa.

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

23

compostas de nomes. Wittgenstein quer com isso defender que uma proposição tem

sentido caso ela afigure um estado de coisas. Um estado de coisas é um fato possível

dentro do espaço lógico, subsistindo ou não no mundo. Assim, não é porque uma

proposição elementar descreva um estado de coisas que ele então subsista. Um estado

de coisas é um conjunto de objetos ordenados sob determinada configuração. Para uma

proposição ter sentido, o seu valor de verdade não importa. O que garante significado a

estas proposições é a existência dos objetos simples. Uma proposição elementar, que é

composta de nomes, tem seu sentido garantido pelo fato de que cada nome presente nela

nomeia diretamente um objeto21

. Ou melhor, um nome tem seu significado pelo fato de

ser sucedâneo do objeto que nomeia. Logo, atribui-se sentido às proposições e

significado aos nomes. E os significados dos nomes são a condição para que as

proposições tenham sentido.

Essa constatação da necessidade lógica dos simples é o fundamento da tese

intitulada como atomismo lógico22

. Portanto, podemos afirmar o seguinte: o atomismo

lógico é a concepção que defende a necessidade lógica da existência dos simples. Como

estamos lidando com o conceito de existência, então estamos postulando uma teoria

ontológica, estamos assumindo que irrefutavelmente algo é. Nessa ontologia teremos os

chamados objetos como seus simples. A linguagem, que afigura o mundo, vai ter como

seus simples os nomes. Estes têm a função de nomear ou denotar os objetos. Logo, o

que iremos assumir aqui é que o atomismo lógico é a concepção que pressupõe como

seus constituintes últimos os objetos simples. Eles é que são a substância do mundo,

pois eles são a condição para que os nomes os possam nomear. Como esses objetos

constituem a substância do mundo, então eles não podem ser passíveis de mudança,

tampouco suscetíveis de não serem existentes. Assim temos que assumir

necessariamente que estes objetos são imutáveis e indestrutíveis, pois do contrário o

conceito de substância de Wittgenstein ficaria prejudicado. Didaticamente, a concepção

atomista de Wittgenstein pode ser resumida em três quesitos:

1) Figuração: Wittgenstein assume como pressuposto que podemos ter pensamentos

corretos sobre o mundo. O ponto é: somos capazes de representar o mundo via

pensamentos. Acontece que ele identifica esse conceito cambiante de pensamento ao

21

Essa é a primeira condição; a outra é a de que os nomes estejam configurados corretamente. 22

Cf. GRIFFIN, J. (1998).

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

24

conceito cambiante de linguagem. Portanto, todo pensamento é manifestado

linguisticamente; e não há outro meio para termos acesso aos pensamentos.

Simplificando: só é pensável aquilo que é dizível, não podendo ser pensado o que está

para além dos limites da lógica. Isso quer dizer que não se pode pensar algo que seja

ilógico, pois o pensamento se limita ao que faz parte do espaço lógico. A figuração só

afigura àquilo que está dentro dos limites da lógica. Aliás, Wittgenstein alude aos erros

em filosofia, que consistem em tentar dizer aquilo que é indizível, ou seja, tudo o que

está para além dos limites da lógica são as coisas que são da esfera do inefável. Toda

tentativa de descrever o que está fora do limite cai em contra-senso. Isso não quer dizer

que não haja nada para além desses limites. O problema é que nossa estrutura lingüística

é incapaz de dizer o que há do lado de lá. Wittgenstein defende que estas coisas são

indizíveis, embora sejam experimentáveis. Mas afinal de contas, o que é uma figuração?

Conforme o aforismo 2.1223

de TLP24

, uma figuração é uma descrição da realidade,

quer dizer, ela afigura estados de coisas que podem ou não se atualizar. A figuração só

pode afigurar o que potencialmente seja um fato. Como o que é indizível não pode

descrever um fato possível, assim sustento que o que é indizível ou é contra-senso ou

sem sentido. Uma figuração tem uma estrutura e uma forma de afiguração. A estrutura é

a maneira que os elementos da figuração se encontram tal qual na realidade. A sua

forma é a possibilidade desses elementos estarem tal como as coisas se encontram na

realidade.

2) A necessidade dos objetos simples: Essa necessidade dos objetos simples é lógica,

pois eles consistem na substância do mundo. Os elementos últimos do Tractatus são os

objetos simples, a garantia dos significados dos nomes, componentes das proposições

elementares. Se não houvesse objetos, o sentido das proposições em geral estaria

ameaçado. Uma reflexão interessante é acerca de como conseguimos entender

proposições que nunca tínhamos escutado antes. O motivo é esse; porque existem esses

elementos simples indefiníveis que constituem todos os estados de coisas. Os objetos

são eternos e imutáveis, não sendo criados objetos diferentes ao longo do tempo. O que

ocorre é uma reorganização destes objetos em estados de coisas, que por sua vez, são

23

A figuração é um modelo da realidade. 24

Em alguns momentos do texto vou usar essa abreviatura para designar o Tractatus Lógico-

Philosophicus de Wittgenstein.

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

25

espelhados pelas proposições elementares. Wittgenstein anota o seguinte em suas Notas

Lógicas:

Devemos poder compreender as proposições que não tenhamos

ouvido antes. Todavia cada proposição é um novo símbolo. Daí que nós

devemos ter símbolos gerais indefiníveis; estes são inevitáveis se as

proposições não forem todas indefiníveis25

.

Por fim, podemos dizer que os objetos são os constituintes últimos dos complexos,

garantindo o sentido das proposições afirmadas sobre o mundo. Eles são indefiníveis e

são o fundamento de toda e qualquer figuração.

3) Independência dos Estados de Coisas: Esta independência ainda não foi

mencionada antes, mas é algo fundamental na concepção atomista. A idéia de

Wittgenstein era que as proposições atômicas dependiam unicamente da confirmação

pelos respectivos estados de coisas. Essa confirmação se reveste do conceito de

bipolaridade, que deve ser considerada como a essência da proposição. Segundo este

conceito, uma proposição pode ser verdadeira e também pode ser falsa. O que vai

determinar o valor de verdade de tais proposições são os estados de coisas descritos por

elas. Uma proposição elementar é totalmente independente das demais, restringindo-se

apenas ao fato de afigurar determinado estado de coisas. A dita proposição só é

independente pelo fato de o estado de coisas descrito por ela ser independente dos

demais estados de coisas. Os aforismos 2.061 e 2.062 atestam essa independência dos

estados de coisas:

Os estados de coisas são independentes uns dos outros (2.061).

Da existência ou inexistência de um estado de coisas não se pode concluir a

existência ou inexistência de um outro (2.062).

O aforismo 2.062 diz que a partir da existência de um estado de coisas não podemos

concluir a existência ou a inexistência de um outro estado de coisas. Exemplificando: o

fato de Antônio ser o pai de João é totalmente independente do fato de Antônio ser mais

velho que João. Estes fatos (levando-se em conta que possam ser estados de coisas) são

inteiramente independentes um do outro. A independência lógica entre estados de coisas

nega qualquer relação de dependência ou implicação lógica entre tais estados de coisas.

25

Notes on Logic II, pág. 13-16. Apud. GRIFFIN, J. O Atomismo Lógico de Wittgenstein, pág. 35.

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

26

Como vimos, o atomismo é uma concepção semântico-lógico-ontológica, pois

estas três estruturas estão relacionadas, quer dizer, a lógica faz a mediação entre a

linguagem e a ontologia. O Tractatus se caracteriza como uma teoria essencialista da

linguagem, pois acredita que existe uma forma geral única da proposição. Para tanto,

não basta afirmarmos isso, pois isso se apresenta por demais generalizado. É necessário

especificarmos essa generalidade nas suas partes constituintes, analisando cada um dos

elementos importantes para a compreensão da totalidade da teoria. A seguir,

analisaremos as partes constituintes do Tractatus que se remetem a essa concepção

atomista.

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

27

III. Teoria da Figuração

Havia uma preocupação anteriormente citada, que era a de saber como

representamos o mundo. A resposta a esta questão é: através da linguagem. E esta se

alicerça numa idéia de afiguração. Esta é uma característica essencial da linguagem.

Wittgenstein considera a capacidade figurativa da linguagem algo fundamental na

representação do mundo.

Uma figuração é algo como a imagem de um estado de coisas, algo como uma

fotografia. Wittgenstein pensou exatamente assim, quer dizer, que a linguagem

consegue afigurar significativamente o mundo. Ele usa como metáfora um caso que

aconteceu em Paris, quando foi feita uma maquete com bonecas para representar um

acidente de carro que aconteceu lá:

Na proposição é montado um mundo para teste. (Como no tribunal de

Paris quando um acidente de automóveis é representado com bonecas e

etc.)26

Aqui claramente ele está dotando a linguagem de uma capacidade afiguradora. Outros

exemplos de afigurações seriam mapas geográficos, partituras musicais, pinturas,

ideogramas, etc. Cada um destes exemplos mostra um tipo de figuração de um fato real,

o que não quer dizer um fato empírico. Uma partitura musical é uma figura de algo que

pode ser considerado abstrato, como é a música, mas que ninguém duvida da ocorrência

dela na realidade. Uma figura é um substituto do fato, é algo idêntico ao fato na

realidade. A introdução desta idéia em sua teoria será fundamental na explicação do

problema relativo à noção de forma lógica.

Para que uma figuração seja uma imagem da realidade é necessário que

figuração e afigurado tenham certa identidade entre eles. Melhor seria dizer que eles

teriam que ter algo em comum. Esse algo em comum é a forma lógica, como dirá

Wittgenstein. É devido a ela que ambas têm uma certa semelhança. Elas são, portanto,

isomórficas, i.e., têm a mesma forma lógica. Desta maneira, uma afiguração sempre

afigura a realidade, como diz Wittgenstein no aforismo 2.12:

A figuração é um modelo da realidade.

26

Diários, 29.9.14

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

28

Para tanto, duas características têm que ser observadas. A primeira é que os elementos

da figuração devem substituir os objetos, como diz 2.13:

Aos objetos correspondem, na figuração, os elementos da figuração.

Inclusive devem ter a mesma quantidade. A figura e o afigurado devem ter a mesma

quantidade de constituintes. A segunda é que a figuração não seja um simples

ajuntamento de constituintes, mas também que estes estejam de uma determinada

maneira. Se os objetos estão numa determinada configuração nos estados de coisas,

então as proposições (figuras) também têm que afigurar esta configuração dos

constituintes. Isso se evidencia no aforismo 2.14:

A figuração consiste em estarem seus elementos uns para os outros de

uma determinada maneira.

Proposições afiguram fatos. Toda proposição tem uma forma de afiguração. Essa

forma de afiguração espelha a forma do afigurado. Podemos até dizer que toda forma de

afiguração é uma forma de afiguração lógica, pois ela se assemelha à forma do

afigurado. Destarte, podemos assumir que toda figuração é uma figuração lógica27

. Ela

afigura sempre a realidade, podendo ser verdadeira ou falsa. A figuratividade é

independente da ocorrência empírica do fato afigurado. Essa é uma garantia já

anteriormente anunciada, a da bipolaridade; e para ter sentido basta que a proposição

descreva um fato possível. Assim, podemos concluir que a bipolaridade também é a

essência da figuração, já que toda figura é uma proposição e vice-versa.

A teoria da figuração quer nos mostrar como é possível representar o mundo.

Com ela se pode inferir como podemos enunciar proposições significativas, mesmo que

estas sejam inéditas. Wittgenstein queria de fato entender como uma linguagem

qualquer pode descrever o mundo. Ele fez isso tratando do problema num plano

estritamente lógico, caracterizando uma proposição como figuração lógica. Wittgenstein

resolveu assim os problemas oriundos da teoria de Russell, ao tratar a forma lógica

como forma da figuração, i.e., a maneira como os elementos devem se articular numa

proposição. Desta maneira, a forma lógica não precisava ser simbolizada, ela não

precisava ser tomada como um objeto de familiaridade assim como os outros

constituintes do juízo. Isto evitaria o problema de explicar como ela entraria como

27

“Toda figuração é também uma figuração lógica” (Tractatus 2.182).

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

29

constituinte da proposição. Ela também garantiria que todos os elementos da proposição

estariam relacionados com os elementos da realidade, evitando os contra-sensos.

A teoria também desbancou a teoria do juízo de Russell, que defendia que o

sentido proposicional só era possível quando ocorresse uma relação entre o sujeito e os

elementos proposicionais. O sentido da figuração lógica é garantido por sua

bipolaridade, que a possibilita descrever fatos possíveis ou estados de coisas. As

proposições descrevem fatos ou estados de coisas, e os nomes nomeiam os objetos. No

entanto, neste momento não iremos tratar destes constituintes, mas apenas mostraremos

que eles estão na base do modelo atomista. A tese de Wittgenstein procura mostrar que

toda figuração está indissociavelmente ligada ao mundo, mas que vai depender da

existência necessária dos objetos simples.

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

30

IV.Proposição Elementar

No Tractatus encontramos comumente o termo Satz, que, em alemão, pode

significar tanto a sentença como a proposição. A sentença é a manifestação gráfica na

linguagem, enquanto que a proposição é uma sentença mais o pensamento contido nela,

ou seja, ela é uma sentença com sentido. Essa explicação é importante, já que

Wittgenstein identifica linguagem a pensamento. De acordo com o aforismo 4 (O

pensamento é a proposição com sentido), o pensamento nada mais é que uma sentença-

em-uso expressa por meio de um signo proposicional. Quando digo em uso, quero dizer

que este signo proposicional não é apenas um “signo”, mas, sobretudo um “símbolo”.

Um símbolo é um signo proposicional em sua relação projetiva com a realidade.

Símbolo equivale à proposição. Logo, podemos concluir que a linguagem do Tractatus

expressa o pensamento. Isso se mostra no aforismo 3.12:

O sinal por meio do que exprimimos o pensamento, chamo de sinal

proposicional. E a proposição é o sinal proposicional em sua relação projetiva

com o mundo.

Um sinal proposicional só se torna proposição quando afigura a realidade, i.e., quando

entra numa relação projetiva com esta. Em Algumas Observações sobre a forma lógica,

Wittgenstein explica o que ele entendia por projeção. Imaginemos um plano com

algumas figuras geométricas e que queiramos projetá-las num outro plano. Iremos

representar estas figuras com outras em um segundo plano. Como exemplo, podemos

pegar círculos e quadrados no primeiro plano e representá-los com elipses e retângulos

no segundo plano. Com isso teremos uma representação do primeiro plano no segundo

plano. O sinal proposicional de uma proposição é sua face manifestada, sensível,

enquanto que o pensamento é sua face oculta. Uma projeção, nesta medida, tenta

representar o sentido da proposição.

Proposições moleculares são complexas e descrevem fatos complexos. Parece

que tal proposição tem tal fato como seu referente. Wittgenstein, no entanto, nega esta

tese. Para ele apenas os nomes têm referência (significado). As proposições têm apenas

sentido. Por analogia, podemos dizer que os nomes são como pontos enquanto que as

proposições são como flechas. Isso quer dizer que, para que eu compreenda um nome, é

preciso conhecer o objeto que ele nomeia, mas o mesmo não ocorre com a proposição.

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

31

Para compreender uma proposição não preciso saber se ela é verdadeira ou falsa, mas

simplesmente saber o que seria o caso se ela fosse verdadeira. Em outras palavras, para

que uma proposição tenha sentido é necessário que seja possível a ela ser tanto

verdadeira como falsa. A verdade ou falsidade de uma proposição é uma questão

contingente, o que não influencia em nada na determinação de seu sentido. A rigor, o

sentido de uma proposição é demarcado pelo fato de ela descrever um estado de coisas.

As proposições da linguagem ordinária são complexas, moleculares. Proposições

complexas precisam ser analisadas para que seu sentido se torne claro. A análise destas

proposições deverá revelar o seu sentido, quer dizer, deverá ser capaz de revelar as

proposições elementares em concordância com os seus respectivos estados de coisas.

Ao pensar na constatação do sentido da proposição por meio da análise, Wittgenstein

percebeu que as frases consideradas simples eram, na verdade, moleculares. Frases

como “o céu é azul”, “Fortaleza é linda” e “José é alagoano” eram consideradas pela

tradição como frases do tipo sujeito-predicado. No entanto, na teoria atomista percebeu-

se que estas frases não eram simples, mas de fato moleculares. Esta afirmação leva à

conclusão de que estas frases são compostas de componentes mais simples,

denominadas proposições elementares. As proposições moleculares são funções de

proposições elementares. Com isso chegamos a duas conclusões: 1) para que o sentido

das proposições seja determinado é necessário que elas (as proposições moleculares)

sejam compostas de proposições elementares; 2) que não haja nada mais simples que as

proposições elementares.

As proposições elementares são o que há de mais simples na linguagem. Elas

são o que podemos chamar de átomos lingüísticos. Elas precisam existir para que a

análise não se estenda infinitamente, pois com isso haveria uma fenda na determinação

do sentido. Se não existirem as proposições elementares, ou atômicas, então o sentido

careceria de determinação, pois nunca seria possível afirmá-lo na análise28

.

Podemos apontar três pontos importantes para pensarmos nas proposições

elementares:

28

É claro que alguém poderá dizer que existem os nomes simples, que, portanto, são mais simples que as

proposições elementares. O que acontece é que os nomes são constituintes das proposições elementares,

mas que não subsistem sozinhos no domínio da linguagem. Os nomes só podem ser considerados como

tal no interior das ditas proposições.

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

32

1) Figurações: as proposições elementares são figurações da realidade. Elas

afiguram estados de coisas, que são os átomos da realidade. Como figurações dos

estados de coisas, iremos considerá-las átomos da linguagem. Sendo atômicas elas são

as estruturas mais simples com sentido. Não é possível que haja estruturas mais simples

no âmbito da linguagem.

Uma proposição elementar descreve a estrutura de um estado de coisas. Quer

dizer que a estrutura dos nomes na proposição elementar descreve o encadeamento dos

objetos no estado de coisas. Em 2.15 temos:

Que os elementos da figuração estejam uns para os outros de uma

determinada maneira representa que as coisas assim estão umas para as

outras.

E em 2.1512:

Ela é como uma régua aposta à realidade.

As proposições afiguram os estados de coisas, ou seja, elas afiguram com

sentido fatos possíveis. Afigurar fatos possíveis também significa que elas afiguram o

que é logicamente possível, pois não é possível afigurar o que é ilógico. As proposições

elementares têm sentido independentemente de sua constatação empírica. Isto se deve à

sua essência, qual seja, a bipolaridade. Uma proposição bem formada, quer dizer, uma

proposição que é uma figuração lógica tem seu sentido determinado. A ocorrência dos

fatos no mundo não é uma condição de significatividade das proposições elementares.

Como unidades mais simples da linguagem, as proposições elementares são os

átomos da linguagem. Assim, toda proposição molecular será um agregado de

proposições elementares. Se temos as proposições moleculares afigurando os fatos do

mundo, então teremos como seus átomos as proposições elementares afigurando os

respectivos estados de coisas.

2) Nomes: as proposições elementares são compostas de nomes. Estes nomes

são constituintes das proposições elementares. Os nomes estão numa relação direta com

os objetos simples. Os nomes são sucedâneos dos objetos, ou seja, os nomes nomeiam

os objetos.

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

33

As proposições elementares são átomos da linguagem. No entanto, isso só ocorre

porque seus constituintes, os nomes, são sucedâneos dos objetos. Isso quer dizer que os

objetos são os significados dos nomes, daí que as proposições elementares só têm

sentido porque seus nomes têm significados. As proposições elementares são

logicamente dependentes dos objetos. Em 5.123 temos:

Se um deus cria um mundo em que certas proposições são

verdadeiras, com isso já está também criando um mundo em que todas as

suas conseqüências procedem. E, analogamente, não poderia criar um mundo

em que a proposição “p” fosse verdadeira sem criar todos os objetos dela.

Mas o que isto sugere? Que os nomes é que são os átomos lingüísticos? Na

verdade não. O mal-entendido se dá por se achar que os nomes são autônomos, que

podem subsistir independentemente das proposições elementares. Ao contrário disso, o

que acontece é o seguinte: os nomes é que dependem das proposições elementares, pois

eles só podem designar objetos no interior das proposições. Essa determinação diz que

os nomes só significam no contexto de uma proposição, i.e., o uso que se faz deles é que

determina seus significados.

Então, ao invés de defendermos que a análise desemboca nos nomes, devemos

defender que ela desemboca nas proposições elementares. Não devemos achar que a

análise desmembrará proposições moleculares em proposições elementares, e daí

desmembrá-las em nomes. O que acontece, na verdade, é que a análise deve se

concentrar totalmente nas proposições elementares, pois elas é que são condição de

possibilidade tanto das proposições moleculares como dos nomes. Toda proposição

molecular é uma função de proposições elementares. Os nomes só podem significar

algo no interior das mesmas. A conclusão da análise é que as proposições elementares

são os constituintes mais simples da linguagem. Wittgenstein diz em 4.221:

É óbvio que devemos, na análise das proposições, chegar a

proposições elementares, que consistem em nomes em ligação imediata.

Aqui claramente Wittgenstein diz que o final da análise se dá quando atingirmos as

proposições elementares, que são formadas por nomes. Entretanto, ele não levanta a

possibilidade de analisarmos as proposições elementares para obtermos os nomes

simples que as compõem.

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

34

3) Independência Lógica: as proposições moleculares são funções de

verdade de proposições elementares. Estas proposições elementares são atômicas, logo

são as menores unidades de sentido da linguagem. Sendo assim, elas não podem

depender de outras proposições para que tenham sentido. Elas têm que ser

necessariamente independentes das demais. Uma proposição elementar não pode

implicar nem contradizer uma outra. No aforismo 6.3751c Wittgenstein mostra que tais

proposições são, de fato, independentes logicamente:

(É claro que o produto lógico de duas proposições elementares não pode ser

nem uma tautologia nem uma contradição. O enunciado de que um ponto do

campo visual tem ao mesmo tempo duas cores diferentes é uma contradição.)

Wittgenstein tem na independência das proposições elementares um dos pressupostos

basilares de seu atomismo. Uma proposição tem que ser independente logicamente, pois

do contrário sua verdade estaria sujeita à verdade de outra proposição. Essa idéia da

independência das proposições elementares desemboca na concepção de tabelas de

verdade no Tractatus, onde se pensou que as proposições moleculares eram funções

vero-funcionais de proposições elementares.

Segundo a definição dada por Glock:

As tabelas são representações tabulares do modo como os valores de

verdade de proposições moleculares dependem dos valores de verdade dos

elementos que as compõem (proposições elementares29

.

A intenção de Wittgenstein é revelar a sintaxe lógica de qualquer linguagem possível

através do simbolismo.

As proposições elementares eram representadas por letras minúsculas, como p, q

e r. Dadas n proposições elementares teremos 2ⁿ combinações possíveis de seus valores

de verdade. Portanto, se tivermos p e q como proposições elementares, teremos então

quatro combinações de valores de verdade:

29

Glock, H.J. Pág. 343.

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

35

P Q

V V

V F

F V

F F

Temos, além disso, os conectivos vero-funcionais. Eles expressam regras de

operações entre proposições. Eles não representam objetos ou constantes lógicos, como

está dito no aforismo 5.430

. Proposições podem ser analisadas nas tabelas de verdade,

que podem nos dar três resultados possíveis. Os resultados podem ser tautologia,

contradição ou contingência. Somente proposições contingentes são dotadas de sentido,

pois revelam algo do mundo. As tautologias e contradições são proposições lógicas,

pois elas não revelam nada do mundo. Dizer “p ν ~p” ou então “p ∙ ~p” não nos diz

nada acerca do mundo, pois os valores de verdade são necessários. O que chamo aqui de

necessário diz respeito à logicidade pura das proposições lógicas, quer dizer, as

proposições lógicas têm seus valores de verdade conhecidos a partir apenas da

proposição. Isso se deve apenas à sua análise formal. Vejamos:

P Q P ν ~P P ∙ ~P

V V V F

V F V F

F V V F

F F V F

Não precisamos constatar na realidade para sabermos qual o valor de verdade de tais

proposições, como diz Wittgenstein em 6.113:

30

“Aqui se evidencia que não há „objetos lógicos‟, „constantes lógicas‟ (no sentido de Frege e Russell)

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

36

É a marca característica particular das proposições lógicas que sua

verdade se possa reconhecer no símbolo tão-somente, e esse fato contém em

si toda a filosofia da lógica. Assim, é também um dos fatos mais importantes

que a verdade ou falsidade das proposições não lógicas não possa ser

reconhecida na proposição tão-somente.

É por esse motivo que dizemos que as proposições lógicas não dizem nada acerca do

mundo, pois seus valores de verdade são necessários e independentes de confirmação31

.

Exemplos que podem ser dados de proposições significativas, ou seja,

proposições contingentes são “p → q”, “p ν q”, “~p ∙ q” e “((p ν q) → ~p)”. Vejamos

como isso se mostra nas tabelas de verdade:

P Q P → Q P ν Q ~P ∙ Q ((P ν Q) → ~P)

V V V V F F

V F F V F F

F V V V V V

F F V F F V

Aqui temos claramente o porquê destas proposições serem significativas: é que elas

necessitam ser confirmadas a partir do mundo para conhecermos seus valores de

verdade. Desta forma, o que esse projeto busca mostrar é a sintaxe lógica da linguagem,

mostrando que os valores de verdade podem ser revelados a partir de um cálculo

proposicional num simbolismo ideal.

Fica evidente aqui que a lógica é a ciência das condições de possibilidade. Neste

caso, ela demonstra quais são as condições de possibilidades da linguagem, que acabam

por desembocar numa ontologia atomista dos objetos simples. A lógica diz como as

coisas estão, e não o que elas são. Ela só pode dizer que os objetos são a base de todas

31

Aqui temos a grande diferença entre proposições sem sentido e pseudoproposições, os contra-sensos.

As proposições da lógica são sem sentido, porque seus valores de verdade são conhecidos unicamente na

análise da proposição, não dizendo nada acerca do mundo. Por outro lado, os contra-sensos evidenciam

falhas referenciais de algum dos seus nomes constituintes. Entre os contra-sensos estão as proposições da

ética, da estética e da filosofia.

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

37

as combinações possíveis. Ela mostra o que é necessário para que as coisas possam se

configurar de maneiras diversas e sensíveis. Em 5.552 Wittgenstein diz:

A “experiência” de que precisamos para entender a lógica não é a de

que algo está assim e assim, mas a de que algo é: mas isso não é experiência.

A lógica é anterior a toda experiência – de que algo é assim. Ela é

anterior ao como, não é anterior ao quê.

O que deve ficar aqui evidente é que as proposições (complexas) são funções de

proposições elementares. Por conta dessa idéia, Wittgenstein desenvolveu uma análise

vero-funcional em tabelas de verdade. No entanto, essa concepção de análise só foi

possível devido à concepção da independência lógica das proposições elementares. Se

não houvesse essa independência, não seria possível analisar as proposições tomando

apenas sua estrutura formal como base, pois,dessa forma, a verdade de uma proposição

elementar dependeria de outras proposições. E o princípio da independência lógica das

proposições repercute em uma proposição elementar que tem um valor de verdade

independente das demais, não havendo qualquer implicação ou contradição entre elas.

Outro fator importante a ser abordado é sobre os estados de coisas. Se as

proposições elementares são inteiramente independentes entre si, isso se deve aos

estados de coisas. As proposições elementares são figurações de estados de coisas, daí

que essa característica que elas apresentam são figurações da mesma estrutura que os

estados de coisas apresentam.

Assim, vejamos agora o que Wittgenstein entendia por estados de coisas.

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

38

V. Estados de Coisas

Os estados de coisas representam uma parte obscura no texto de Wittgenstein,

pois podemos inferir duas questões. Não sabemos ao certo o que Wittgenstein quer

dizer com estados de coisas. Os estados de coisas são atômicos ou complexos? São

possíveis ou são atualizados? A seguir tentarei formular algumas respostas a respeito

dessas dificuldades oriundas do texto wittgensteiniano.

1) Os estados de coisas são fatos complexos ou são fatos simples? Caso

defendamos que um estado de coisas é um fato complexo fica determinado que não há

diferença alguma entre os dois. Assim, iríamos nos perguntar por que ele usa nomes

distintos para falar da mesma coisa.

Sabemos que os fatos complexos são compostos de fatos simples. O problema é

saber se estes fatos simples são ou não são os estados de coisas. Podemos resolver este

problema facilmente. Wittgenstein aprovou a tradução de Ogden de “Sachverhalt” por

“fato atômico”. Sachverhalt é o que traduzimos para o português como estado de coisas.

Teremos aqui uma defesa da tese de que os estados de coisas são os componentes dos

fatos complexos. Quer dizer, podemos assumir a tese de que os fatos moleculares são

compostos de n (n >1) estados de coisas. O aforismo 2 nos revela essa composição de

estados de coisas em um fato: “O que é o caso, o fato, é a existência de estados de

coisas”.

O fato é a ocorrência de estados de coisas. Isso quer dizer que um fato é um

complexo, enquanto que os estados de coisas são os componentes atômicos destes fatos

complexos. É o próprio Wittgenstein quem dá a prova de que um fato é composto de

estados de coisas. No texto original em alemão temos: “Was der Fall ist, die Tatsache,

ist das Bestehen von Sachverhalten“. A palavra “Sachverhalten” expressa o plural da

palavra, quer dizer, o fato (Tatsache) é uma composição de estados de coisas. Se fosse

possível identificar um fato com um estado de coisas, Wittgenstein certamente teria

deixado clara a possibilidade de haver fatos com um único estado de coisas. O termo no

plural aponta para esta distinção defendida aqui. Todo esse emaranhado, que parece

circular, tem como objetivo tornar evidente que Wittgenstein faz uma clara distinção

entre fatos complexos e fatos atômicos, os estados de coisas.

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

39

Outra prova textual desta distinção se encontra no aforismo 2.034, quando

Wittgenstein diz:

A estrutura do fato consiste nas estruturas dos estados de coisas.

O que fica claro nesta passagem é a composição de um fato. Novamente, fica bastante

claro que estados de coisas são os componentes atômicos dos fatos (complexos). A

estrutura dos fatos complexos é dependente da composição de suas partes constituintes.

Um estado de coisas é um fato atômico; mas se tivermos 2 estados de coisas já teremos

um fato complexo. Portanto, a dúvida sobre a natureza dos estados de coisas deve ser

eliminada; os fatos são complexos e são compostos de estados de coisas, que chamarei

também de fatos atômicos32

.

Com o que foi dito acima, ainda resta uma dúvida, a saber: se os estados de

coisas são atômicos, portanto, componentes dos fatos complexos, isso quer dizer que

todos os estados de coisas são ocorrências reais no mundo? Podemos analisar isso

melhor no próximo tópico do capítulo.

2) Aqui a questão passa a ser então acerca da efetividade ou não dos fatos no

mundo. Temos as passagens 2.04 e 2.06 do Tractatus para confirmar a tese dos estados

de coisas como possibilidades de fatos. Em 2.04 temos:

A totalidade dos estados existentes de coisas é o mundo;

e em 2.06:

A existência e inexistência de estados de coisas é a realidade (À

existência de estados de coisas, chamamos também um fato positivo; à

inexistência, um fato negativo).

A partir do aforismo 2.04 concluímos que estados de coisas podem existir ou

não. Especificamente, os estados de coisas existentes correspondem ao mundo. Os

estados de coisas que não ocorrem são possibilidade de ocorrência, pois também fazem

parte da realidade. O verbo existir (bestehen) não foi colocado à toa. É claro que ao

introduzir o verbo existir, Wittgenstein queria enunciar uma característica

32

Tem que ficar claro que uso o termo “fato” aqui com outro sentido, pois sabidamente “fato” é um termo

usado para ocorrências reais no mundo, o que só poderá ser atribuído adequadamente aos complexos.

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

40

diferenciadora dos estados de coisas, a saber, a propriedade de existência ou da

inexistência. Afinal de contas, não faria sentido o uso de “existir” se isto não fosse uma

marca diferenciadora. A própria linguagem ordinária se encarrega de transmitir

implicitamente esta característica. Destarte, quando enuncio “Platão, o mestre de

Aristóteles”, não necessito incluir a propriedade “existente” ao nome denotado pelo

indivíduo Platão, pois seria redundante. É claro que redundância não é um erro

gramatical, mas não acredito que Wittgenstein incorreria em tal deslize de estilística.

No aforismo 2.06 ele trata a realidade como sendo a somatória dos estados de

coisas existentes e os não-existentes. Ora, isto corresponde ao espaço lógico tractariano.

O espaço lógico contém todas as possibilidades de fatos. Mas o que ocorre é que

algumas destas possibilidades se atualizam, enquanto que outras permanecem na esfera

da possibilidade. Para fazer uma analogia disso imaginemos um placar eletrônico em

uma praça esportiva (estádio ou ginásio). Neste, existem milhares de pequenas

lâmpadas, as quais todas podem acender. É óbvio que nem todas acendem, pois do

contrário não se poderia informar nada, pois assim só enxergaríamos um placar com

todas as luzes acesas. A única maneira de termos acesso a alguma informação é a do

placar acender algumas lâmpadas e outras não, para que assim distingamos as letras ou

quaisquer outros caracteres presentes ali. Neste placar eletrônico, poderão aparecer

letras, números, figuras, onde para cada elemento destes algumas lâmpadas acenderão.

Analogamente ao espaço lógico, as lâmpadas representam os estados de coisas. Mas

acontece que algumas acenderão e outras não, quer dizer, alguns estados de coisas se

atualizarão e outros não. E as imagens produzidas no placar eletrônico são os fatos,

constituídos de suas partes, a saber, os estados de coisas. Por fim, temos o mundo, que é

a soma de todas as imagens produzidas no placar, mas que, todavia, é uma parte da

realidade, que é todo o placar. Alguns destes estados de coisas se atualizam, outros não.

Todos os estados de coisas atualizados determinam o mundo, que é um subconjunto da

realidade. Nesta tese, chamamos de estados de coisas estas possibilidades no espaço

lógico.

Os fatos também são possibilidades ou são apenas ocorrências no mundo? Como

resolvemos tal problema, já que os fatos são compostos de estados de coisas?

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

41

Quando falamos de estados de coisas como fatos possíveis estamos nos

colocando no nível lógico, o qual não corresponde ao âmbito do mundo real. O âmbito

lógico corresponde ao espaço lógico. O espaço lógico é composto de todos os estados

de coisas possíveis, como se fossem os pixels de um aparelho de vídeo. Alguns destes

pixels se acendem e outros não, formando imagens específicas. Por analogia, os pixels

que se acendem representam o mundo, que são apenas uma parte contida no espaço

lógico. Assim, poderíamos dizer que os pixels que não acenderam representam mundos

possíveis, contendo vários fatos possíveis também.

O que ocorre, entretanto, é um erro metodológico. O erro consiste em

confundirmos os níveis considerados. No âmbito lógico podemos falar de estados de

coisas possíveis e estados de coisas atualizados. Isto é correto e inteiramente aceitável.

Mas quando tratamos do âmbito da ocorrência fática não faz sentido algum falarmos de

fatos possíveis. Wittgenstein é bastante enfático nisto, quando enuncia nos aforismos 1

(O mundo é tudo o que é o caso) e 1.2 (O mundo resolve-se em fatos). O mundo é

composto de fatos, i.e., o mundo não comporta aquilo que não ocorre. Destarte, um fato

é definitivamente uma ocorrência real e atual, não cabendo atribuições de suas

possibilidades. Não importa cogitarmos sobre o que poderia ser feito para que um

desastre familiar tivesse não ocorrido. Isto não mudará o fato de tal acidente ter

ocorrido. O que ocorreu não mudará de forma alguma. As cogitações fazem parte do

nível lógico, não do nível factual. Assim, é possível preservar os fatos do mundo desta

categorização de possibilidade. Estados de coisas são fatos possíveis, pois são

considerados assim apenas no nível lógico. Os fatos complexos não podem ser

possíveis, pois, a rigor, o que ocorre não pode não ocorrer.

O problema fica um pouco mais complicado quando analisamos o aforismo 2.06,

onde Wittgenstein fala de fatos que podem ser negativos ou positivos. Mas como pode

isso acontecer? Ele diz que os estados de coisas existentes são os fatos positivos; e que

os estados de coisas não-existentes são os fatos negativos. Quer dizer, mesmo quando

um estado de coisas não se atualiza, ele permanece sendo um fato, a saber, negativo. Já

os fatos que se atualizam são fatos positivos. Desta maneira, podemos inferir que, para

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

42

Wittgenstein, um estado de coisas sempre é um fato (atômico), subsistindo ele ou não33

.

O que torna um estado de coisas um fato atômico é sua forma, quer dizer, suas

propriedades internas. E esta forma determina sua estrutura, isto é, como os objetos

estão organizados.

Um estado de coisas é composto de objetos que se organizam de uma

determinada maneira. Os objetos que compõem os estados de coisas determinam todas

as ligações possíveis destes com outros objetos. Fazendo analogia com a linguagem,

podemos dizer que uma linguagem tem semântica, que diz respeito aos nomes

constituintes das proposições elementares, mas que também tem que ter uma sintaxe,

isto é, como estes nomes se organizam. Desta maneira, não é simplesmente um conjunto

de nomes que determinam uma proposição, mas também como estes nomes vão se

organizar. Logo, a união destas duas estruturas numa proposição garante o que podemos

chamar de sentido da proposição. Voltando aos estados de coisas, então podemos

afirmar que se um estado de coisas é composto de alguns objetos, e que, além disso,

estes mesmos se organizam de uma determinada maneira, temos um fato (simples),

independente de ele ocorrer ou não. Dizendo de outra maneira, se na linguagem o que

faz uma proposição ter ou não sentido é a concatenação de seus nomes, na ontologia, o

que faz um estado de coisas ser ou não ser um fato é a maneira como ele é constituído.

Novamente o argumento de que os fatos podem ocorrer ou não é um erro de

consideração. Não podemos considerar os fatos do mundo possíveis simplesmente por

que os estados de coisas são considerados possibilidades de fatos. Conforme já

salientado antes, quando tratamos as possibilidades no espaço lógico, não podemos

transgredir o domínio do fático. Para Wittgenstein, esta distinção de níveis é bastante

clara. Seu projeto é de natureza lógica, sendo-lhe permitido falar de um espaço lógico

composto de fatos possíveis (negativos e positivos).

Wittgenstein associa a esse espaço lógico o conceito de realidade. A realidade

(espaço lógico) é onde todos os mundos possíveis/imaginários subsistem. Tal conceito

de “mundos possíveis” pode ser usado devido a uma interpretação do aforismo 2.022,

onde ele diz:

33

Neste ponto, introduzo os termos subsistência e não-subsistência como equivalentes aos termos

existência e inexistência, de acordo com a sugestão da dissertação de BARROSO, CÍCERO A. C. O

Tractatus Logico-Philosophicus: Teoria e crítica da linguagem. 2002

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

43

É óbvio que um mundo imaginário, por mais que difira do mundo real, deve

ter algo – uma forma – em comum com ele.

Mundo imaginário atende aos requisitos de mundo possível, pois o que pode ser

pensado tem que ser lógico. Não se pode pensar o ilógico. Embora existam outras

interpretações deste aforismo, defendo como a mais verossímil a leitura apresentada

acima. Entretanto, devemos ter claro, pelo que já foi dito, que falamos de fatos possíveis

na perspectiva do âmbito lógico, e não que de fato existam fatos no mundo que sejam as

negações do fato, como se pudesse ser dito que “o elefante não está nesta sala” é um

fato negativo.

Na verdade não é isso o que Wittgenstein está querendo dizer. Talvez Russell

concordasse com isso. Para Russell, um fato negativo como “o céu não é verde” é um

fato que pode ser considerado real, sendo aceito em sua concepção ontológica. Fatos

negativos, para ele, são considerados fatos, assim como os fatos positivos. Wittgenstein,

ao contrário, defendeu que não existem fatos negativos no sentido defendido por

Russell. Quando atribuo o conectivo de negação à proposição não o uso como a negação

de uma propriedade de algum particular, mas nego a proposição como um todo.

Tomando o exemplo acima, quando uso a negação não quero dizer algo como “o céu é

não-verde”, mas na verdade digo que “não – o céu é verde”. Wittgenstein entende que

uma proposição que contém o conectivo da negação não é simples, logo também não

afigura um estado de coisas, ou, neste caso, um fato atômico. A rigor, p e ~p expressam

o mesmo fato, que é p. A negação é um conectivo adicional à proposição elementar.

Desta forma, não ocorrem fatos negativos como Russell pensou que era possível. O

aforismo 4.0621 confirma isso:

É importante, porém, que os sinais “p” e “~p” possam dizer o

mesmo. Pois isso mostra que ao sinal “~” nada corresponda na realidade.

Que a negação ocorra em uma proposição não chega a ser uma

característica de seu sentido (~~p=p).

As proposições “p” e “~p” têm sentido oposto, mas a elas

corresponde uma e a mesma realidade.

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

44

A realidade (espaço lógico) pode ser representada assim:

a b c d

F

G

H

I

J

Aqui temos o mundo determinado dentro do espaço lógico. Os quadrinhos em negrito

(Fa, Fb, Gc, Há, Hb, Ia, Jb e Jd) são os estados de coisas atualizados, ou seja, os fatos

positivos. Já os quadrinhos em branco (os demais) representam os estados de coisas que

não se atualizaram, ou seja, são os fatos negativos defendidos por Wittgenstein. Só

podemos falar de fatos negativos sob uma perspectiva lógica, pois fica demonstrado

claramente que não existem fatos negativos no mundo. Fatos são aqueles que ocorrem

no mundo faticamente.

Como último ponto desta discussão, apresento a tese da independência dos

estados de coisas de Wittgenstein, que se encontra nos aforismos 2.061 e no 2.062. No

2.601, Wittgenstein diz:

Os estados de coisas são independentes uns dos outros.

E no 2.062 ele diz:

Da existência ou inexistência de um estado de coisas não se pode

concluir a existência ou inexistência de um outro.

Ou seja, no Tractatus um estado de coisas é completamente independente de todos os

outros. Essa independência é lógica, não havendo qualquer relação de implicação ou

contradição entre os estados de coisas. Estados de coisas são estruturas atômicas, a

partir de onde podemos inferir tanto os fatos do mundo como os objetos simples.

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

45

Entretanto, um estado de coisas não depende de maneira alguma de um outro estado de

coisas. O que torna um estado de coisas significativo é sua figuratividade na proposição

elementar.

Poderíamos interpretar, todavia, o aforismo 2.0124 como a defesa de que os

estados de coisas são dependentes dos objetos. Como estes objetos determinam os

estados de coisas, poderíamos então relacionar todos os estados de coisas a partir dos

objetos. Ele diz o seguinte:

Dados todos os objetos, com isso estão dados também todos os

possíveis estados de coisas.

A questão é que aí tomaríamos os objetos como sendo os átomos ontológicos, o que não

é o caso. Os átomos são os estados de coisas, daí que os objetos só podem ser

conhecidos no interior dos estados de coisas, i.e., em composição com outros objetos.

Não são os estados de coisas que dependem dos objetos para subsistirem, mas o

contrário34

. Desta forma, a independência dos estados de coisas continua inabalada. A

independência destes estados de coisas é lógico-ontológica, i.e., um estado de coisas

não determina de forma alguma um outro. A ocorrência ou a não-ocorrência de um

estado de coisas não determina em nada a de qualquer outro. O fato da casa de Pedro ser

amarela não influencia em nada na de Roberto ser azul. São fatos completamente

independentes um do outro, não havendo nenhum tipo de implicação entre ambos os

fatos.

Uma proposição como Fa não diz que Ga, como por exemplo: “Rodrigo não

torce pelo Flamengo” não quer dizer que ele torça pelo Vasco, Fluminense ou Botafogo.

Não há nenhum tipo de dependência entre estes estados de coisas. A proposição

exemplificada deverá ser verdadeira ou falsa, de acordo com o estado de coisas

correspondente. Ou Rodrigo torce pelo Flamengo, ou não torce. Se ele torce pelo

Flamengo, então a proposição acima é falsa; caso ele não torça pelo Flamengo, a

proposição então é verdadeira.

34

Essa negação pode soar forte, pois sabidamente a existência dos objetos é algo necessário. Dessa

maneira, podemos dizer que, embora apenas no interior de um estado de coisas podemos conhecer os

objetos, eles são o fundamento (enquanto substância) dos estados de coisas.

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

46

O atomismo lógico tem na independência lógica dos átomos (proposições

elementares e estados de coisas) a sua peça-chave. Através dela Wittgenstein pôde

defender que o sentido da proposição depende apenas de sua bipolaridade, não havendo

nenhum tipo de dependência com outras proposições. Essa independência, entretanto, é

reflexo da independência dos estados de coisas. Os fatos ocorrem ou não no mundo sem

nenhuma implicação entre eles. Essa tese repercute na capacidade de figuração da

linguagem, pois uma proposição só precisa espelhar o estado de coisas correspondente.

Caso houvesse dependência entre estados de coisas, o atomismo wittgensteiniano estaria

seriamente ameaçado, pois esta característica representa o ponto de sustentação de sua

concepção sui generis .

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

47

VI. Objetos

Os objetos são os constituintes dos estados de coisas, como diz o próprio

Wittgenstein em 2.01:

O estado de coisas é uma ligação de objetos (coisas).

Os objetos podem ser chamados também de “objetos simples”, “coisas” ou

simplesmente de “simples”. Um objeto para ser simples tem que ser parte de um

complexo, aquilo que é o mais elementar de um complexo. Neste sentido, podemos

dizer que eles são a base ontológica do mundo. Wittgenstein os denominou como

“substância do mundo”. Em 2.021 ele diz:

Os objetos constituem a substância do mundo. Por isso não podem ser

decompostos.

Com essa constatação, Wittgenstein quer deixar claro que o que ele defende é

uma ontologia atomista dos objetos35

. Estes objetos são, portanto, aquilo que para além

deles não existe nada mais. Podemos dizer o seguinte: em todos os mundos possíveis

haverá algo que será o fundamento substancial de todos eles. Este algo substancial é

compartilhado por todos eles. Poderíamos exemplificar da seguinte forma: Tomemos

como constituintes de uma proposição os elementos (a,b,c,R e S). Uma maneira

possível destes elementos se configurarem é aRbSc. Com isso se pode querer dizer que

a está à direita de b e à esquerda de c. Esta proposição pode ser considerada verdadeira,

mas esta será uma verdade contingente. É o caso de esta configuração de nomes ocorrer

neste mundo, mas outras configurações poderiam ser o caso. Poderiam também ser

verdadeiras outras configurações (aRcSb, aSbRc, bRaSc ou ainda outras mais). O fato é

que uma determinada configuração de objetos ocorre de uma maneira, mas poderia ser

de outra maneira. Estas configurações de objetos são representadas nas configurações

dos nomes nas proposições elementares. A configuração dos objetos é contingente, mas

não se pode dizer o mesmo dos objetos.

Este algo substancial se refere analogamente aos objetos simples tractarianos. É

desta maneira que Wittgenstein defende que os objetos têm que ser fixos, e, além disso, 35

Quando digo que há uma ontologia atomista dos objetos, quero dizer que Wittgenstein defende uma

concepção atomista do mundo, que, em última instância, é dependente da necessidade lógica dos objetos

simples. Não é que ele tenha dito que os átomos fossem os objetos, mas que os estados de coisas só

podem subsistir devido à subsistência necessária dos indefiníveis.

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

48

eternos e indestrutíveis. Se os objetos pudessem ser destruídos, poderia ser o caso de

existir em alguns mundos possíveis e em outros não, o que não pode ser o caso, haja

vista a idéia de substância ficar comprometida. Da mesma forma, se tivéssemos objetos

que tivessem uma existência finita também se comprometeria a idéia de

substancialidade deles, haja vista que o que estes objetos são no presente poderia

alterar-se no futuro - ou ainda poderiam ter sido diferentes no passado – contrariando o

conceito de substância da tradição metafísica clássica.

A ontologia do atomismo lógico tem os objetos como o seu alicerce, seu

fundamento, apesar de só poderem ser conhecidos no interior dos estados de coisas.

Essa teoria defende que a linguagem descreve corretamente o mundo. Melhor seria

dizer que ela não apenas faz descrições acerca do mundo, mas, sobretudo, que ela

afigura o mundo. Para que assim ocorra, é preciso que as proposições da linguagem

tenham sentido. Para que haja sentido, as proposições lingüísticas têm que descrever

estados de coisas. Do contrário, estas proposições estariam ultrapassando os limites do

espaço lógico. Portanto, as proposições descrevem os estados de coisas, que, por sua

vez, são compostos de objetos. Para Wittgenstein, o sentido de uma proposição é

dependente dos significados dos seus nomes correspondentes. O significado de um

nome lógico é o objeto que lhe é sucedâneo. Isto quer dizer que cada nome de uma

proposição significativa denomina um objeto. Neste ponto de sua teoria da linguagem,

Wittgenstein diferencia descrição de nomeação. Para ele os objetos são nomeados,

enquanto que os estados de coisas são descritos. Mas esta relação de nomear objetos é

dependente da existência e da indecomponibilidade dos objetos, pois caso eles fossem

decomponíveis ad infinitum, o mundo careceria de substancialidade, logo, também de

significatividade. Desta maneira, os nomes seriam apenas pontuações, sendo possível

desmembrá-los em coisas mais simples. A linguagem careceria de sentido, visto que

estes dependem dos significados dos nomes. Wittgenstein fala sobre isto no aforismo

3.26:

O nome não pode mais ser desmembrado por meio de uma definição:

é um sinal primitivo.

Assim, vemos que a estrutura é linear: as proposições só têm sentido se os seus

respectivos nomes tiverem significado; e os nomes só têm significado caso os objetos

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

49

sejam sucedâneos dos nomes, quer dizer, caso sejam simples, segundo a perspectiva de

Wittgenstein. Ele comenta assim:

Se o mundo não tivesse substância, ter ou não sentido uma proposição

dependeria de ser ou não verdadeira uma outra proposição.36

E seria então impossível traçar uma figuração do mundo (verdadeira

ou falsa).37

O que querem dizer estes aforismos propriamente? Para Wittgenstein, é requisito

necessário que existam objetos simples, como algo exterior à linguagem. Esta

exterioridade garante à linguagem significatividade, pois do contrário poderíamos ter: 1)

uma análise infinita, destituindo a linguagem de sentido. Neste caso, poderíamos

estabelecer um ponto de parada na análise para demarcarmos arbitrariamente quais

seriam os objetos. Essa alternativa não parece que seria suficiente a Wittgenstein, pois

contrariaria a tese da substancialidade dos objetos. A tese da substancialidade é, em

última instância, a garantia do sentido da proposição; 2) ou então postularmos que os

significados são determinados na esfera intralingüística, sem conexões necessárias com

a realidade. Wittgenstein também não ficaria satisfeito com essa solução. Ela seria algo

análogo à construção de um castelo sobre dunas, i.e., não teria um alicerce sólido,

ficando à mercê dos ventos e da movimentação das dunas.

Concordando com esta tese de Wittgenstein, surge uma pergunta aos leitores

mais curiosos: como posso chegar a este nível elementar? Responderiam Russell e

Wittgenstein da mesma forma: através da análise38

. A análise, conforme já definida

acima, busca decompor os elementos complexos em elementos simples. Ocorre uma

decomposição das proposições moleculares em proposições atômicas. Estas são

compostas de nomes, que por sua vez, são sucedâneos dos objetos. Ao dizer isto, quero

dizer que os objetos podem ser apenas nomeados, e nunca descritos. Como eles não

podem ser descritos ou definidos, não há nenhuma dependência entre as proposições

atômicas (essa independência das proposições atômicas espelha a independência dos

estados de coisas). Como não podemos definí-los, mas apenas nomeá-los, então os

36

Tractatus, 2.0211 37

Ibid. 2.0212 38

Não que ele demonstre como tal análise se daria. Na verdade o que Wittgenstein quer é demonstrar

logicamente que os objetos têm que ser a substância do mundo, quer dizer, eles têm que ser as unidades

ontológicas mais simples e necessárias.

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

50

nomes apenas rotulam os objetos. Estes apresentam uma configuração que é

representada pela proposição elementar. A esse respeito, devemos nos lembrar de

alguns aspectos:

Antes de mais nada, que os objetos do Tractatus são simples (2.02). Algo

simples, no vocabulário de Wittgenstein, quer dizer não ser composto por elementos, ser

primitivo, elementar. Sendo primitivos, estes objetos têm características auto-

suficientes, ou seja, cada objeto é completo, contém todos os atributos necessários para

ele. Estes atributos são chamados, por Wittgenstein, de propriedades internas, que

correspondem à forma lógica dos objetos. É claro que ele diz que, ao conhecermos as

propriedades internas dos objetos, também saberemos com quais outros objetos eles

poderão se agrupar em estados de coisas. Mas isso é um pressuposto lógico-metafísico,

e não epistemológico, ou seja, isto não quer dizer que, de fato, poderemos conhecer tais

objetos. Antes, quer dizer que Wittgenstein não está tratando de objetos percebidos por

nós – o que até poderia ser – mas não é o foco dele. Os objetos são necessidades

lógicas, portanto pressupostos na teoria ontológica atomista dele.

Russell, no entanto, construiu um atomismo estreitamente ligado a uma

epistemologia empirista. Ele defendia que os dados dos sentidos e da memória não

estariam sujeitos a dúvidas. Logo, todas as proposições que os tivessem como

referenciais seriam válidas. Ele defendia que estes dados dos sentidos eram objetos de

familiaridade, ou seja, que só poderíamos representá-los corretamente através de termos

indexicais, tais como “isto” e “aquilo”. Estes objetos de familiaridade, também

conhecidos como “sense data”, não eram apenas objetos particulares, mas também

relações e predicados. Estes objetos de familiaridade eram os átomos na teoria analítica

de Russell. Os termos nomeadores dos objetos eram componentes das proposições

elementares. Estas, por sua vez, eram conectadas por conectivos lógicos, formando as

proposições moleculares. Partindo destas afirmações, podemos dizer que o que Russell

queria dizer era que só temos um nome verdadeiramente lógico quando este for

sucedâneo de um objeto de familiaridade. Apenas afirmações como “isto é vermelho”

expressam nomes lógicos autênticos. Elas expressam uma familiaridade empírica de

suas propriedades, no exemplo de ser “vermelho”, não podendo ficar restritas apenas ao

âmbito da linguagem; carecem, portanto, de uma constatação dos sentidos.

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

51

A teoria atomista de Wittgenstein diverge neste ponto da teoria de Russell.

Wittgenstein nunca deu um exemplo que não apresentasse problemas. Todo exemplo

dado era passível de análise. Para ele, essa não era a questão fundamental. Na verdade,

isso poderia ser deixado de lado. A descoberta ou desvelamento de tais objetos era uma

tarefa pertinente às ciências particulares. Ao contrário, o intento de seu projeto era

lógico, quer dizer, ele queria mostrar quais eram as condições a priori para uma

representação. É claro que alguém poderia objetar aqui dizendo que “representação” é

uma categoria psicologista, e alegar que não era esse o projeto wittgensteiniano. Na

verdade, o fato é que o projeto de Wittgenstein assemelha-se ao projeto kantiano.

Ambos buscaram mostrar as condições necessárias para que ocorresse uma

representação. Com isso também se poderia mostrar quais eram os limites do

pensamento, ou seja, aquilo que é do domínio da razão. Há uma demarcação entre o que

é pensável e o que não é, i.e., entre o que é racional e o que não é. A diferença entre

ambos, todavia, é acerca do conceito de pensamento. Para Wittgenstein, pensamento e

linguagem são idênticos, portanto, o que sua lógica quer mostrar é o que pode e o que

não pode ser dito. Desta forma, para Wittgenstein, era necessária a criação de uma

teoria do simbolismo, sendo esta uma teoria destas condições a priori de a linguagem

representar o mundo. Com efeito, conforme Glock (1998) argumenta, sua intenção não

era estabelecer uma convenção para estes símbolos, mas:

...essa teoria insiste na idéia de que a forma lógica dos nomes precisa

refletir as possibilidades combinatórias dos objetos de que são

representantes39

.

Wittgenstein não queria criar um simbolismo perfeito, como dissera Russell na

introdução do Tractatus. O que ele queria ela salientar as condições necessárias para

qualquer simbolismo.

Mas afinal de contas, o que são os objetos do Tractatus? Merril e Jaakko

Hintikka (1994), no livro “Uma Investigação sobre Wittgenstein” defendem que os

objetos do Tractatus são a mesma coisa que Russell adota como sendo seus particulares,

seus objetos de familiaridade40

. Os Hintikka fundamentam-se em vários trechos da obra

39

GLOCK , HANS-JOHANN (1998), pág. 267. 40

Ver a este respeito o cap. 3 do livro citado, págs. 73-121.

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

52

de Wittgenstein, mas um é particularmente digno de nota. Trata-se do parágrafo 46 das

Investigações Filosóficas:

...Estes elementos primitivos eram os „individuais‟ de Russell e os

meus „objetos‟ (Tractatus Logico-Philosophicus).

Na análise de Jaakko e Merrill B. Hintikka, Wittgenstein está claramente associando o

seu conceito de objeto ao conceito de objeto particular (individual) de Russell. É claro,

como vimos anteriormente, que os objetos de Russell são objetos de familiaridade, os

quais são inteiramente dependentes da constatação empírica. Aliás, Russell estende esta

familiaridade ao conceito de forma lógica. Segundo ele, só podemos conhecê-la devido

a esta relação de familiaridade com ela. Algumas outras provas acerca da semelhança

entre os objetos de Wittgenstein e os objetos de familiaridade de Russell podem ser

encontradas nos escritos de Desmond Lee, entre os anos de 1930-193241

:

Os dados sensíveis são a origem dos nossos conceitos. (pág. 81)

O mundo em que vivemos é o mundo dos dados sensíveis... (pág. 82)

Objetos, etc., é a denominação aqui usada para coisas como uma cor,

um ponto no espaço visual etc... (pág. 120)

Desta maneira, parece que Wittgenstein relacionava seus objetos a dados dos

sentidos, assim como Russell. Este entendeu que os objetos de familiaridade são

necessariamente reais, já que são objetos conhecidos através de percepções. Por este

motivo, não faz sentido dizer que um determinado objeto existe, pois isso é uma

trivialidade. Já a familiaridade das formas lógicas era necessária, “...a fim de explicar as

verdades lógicas dentro de sua teoria da familiaridade42

.”

No entanto, os Hintikka podem não ter compreendido alguns pontos da teoria de

Wittgenstein muito bem. Um aspecto crucial da teoria tractariana pode ser elucidado

com o aforismo 5.552:

A “experiência” de que precisamos para entender a lógica não é a de

que algo está assim e assim, mas a de que algo é: mas isso não é experiência.

41

Apud. Hintikka (1994). 42

HINTIKKA, pág. 96.

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

53

A lógica é anterior a toda experiência – de que algo é assim. Ela é

anterior ao como, não é anterior ao quê.

Acredito que esta seja uma chave de leitura muito importante para a elucidação

de tal mistério. Existe uma clara negação, por parte de Wittgenstein, para com os

pressupostos epistemológicos acerca de seus objetos. A constatação empírica de objetos

é, senão irrelevante, ao menos secundária. Fica claro nesta passagem o que Wittgenstein

pensa sobre a lógica, a saber, é uma estrutura necessária e a priori que independe de

constatações empíricas. Destarte, a existência dos objetos se revela, antes de mais nada,

na esfera lógica. Lembremos que a questão fundamental de Wittgenstein é provar que é

possível a linguagem afigurar o mundo. Para que tal representação ocorra, é necessário

que haja tais objetos, sob risco de que esta figuração se tornasse não realizável43

. Na

verdade, a concepção do atomismo lógico se alicerça nisto, na tentativa de provar que o

mundo tem uma substância, que são seus objetos simples. Logo, temos o porquê do

Tractatus ser tão pobre em exemplos do que são os objetos, porque ele definiu o que são

os objetos a partir de uma perspectiva lógico-ontológica.

Wittgenstein trata dos objetos no Tractatus numa perspectiva lógico-ontológica,

mas também podemos abordar os objetos a partir de uma perspectiva de certa forma

fenomenológica. Nos cadernos44

, podemos ver como Wittgenstein desenvolve seu

pensamento, inclusive acerca do que ele veio a defender mais tarde no Tractatus. Lá

podemos perceber o esforço dele em exemplificar seus objetos. As anotações dos dias

14, 15 e 16 de junho de 1915 apontam para questões fundamentais. Ao pensar sobre a

complexidade do mundo, ele percebe que este é dependente de suas partes constituintes.

Sobre isto diz:

...Parece, pois, que a existência dos objetos simples se comporta para com a

dos complexos assim como o sentido de não-p para com o sentido de p: O

objeto simples está pressuposto no complexo.45

43

Wittgenstein usa a palavra impossível no aforismo 2.0212: “Seria então impossível traçar uma

figuração do mundo (verdadeira ou falsa)”. 44

A tradução que eu usei me foi concedida gentilmente por meu primeiro orientador, o professor Guido

Imaguire, mesmo sem ainda havê-la publicado. Os cadernos citados aqui se referem aos diários escritos

por Wittgenstein entre os anos de 1914-1916.

45

Diários. 14.6.15.

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

54

Após isto, sua reflexão se direciona para a questão da essência desses objetos. Então ele

passa a se perguntar, caso se atribua um nome a um determinado relógio, se este relógio

preenche de fato as exigências para ser aceito como um objeto. Ele se expressa assim:

Queremos ver se este relógio satisfaz, de fato, todas as condições para

ser um objeto simples!46

Sabemos que tal relógio pode ser decomposto em elementos mais simples. Falando

logicamente, isto é possível, mas essa decomposição consistirá novamente em nomes,

relações e propriedades. Aí acontece que essa análise pode continuar até não se sabe

onde. O próprio Wittgenstein alude à dificuldade de se proceder em tal análise, a ponto

de não ser possível chegar a esse nível dos objetos. Dessa forma, é possível aceitar que

tal relógio seja um objeto, pois, a rigor, ele satisfaz as exigências do discurso ordinário

como um autêntico objeto simples. No âmbito factual, os que de fato nomeamos como

objetos são objetos de familiaridade, como aludiram Jaakko e Merrill Hintikka.

O próprio Wittgenstein associa termos indexicais aos seus objetos, assumindo

esta familiaridade:

O que nos parece ser dado a priori é o conceito: Isto – Idêntico ao

conceito de objeto47

.

Mas, embora esta passagem pareça concordar com a leitura dos Hintikka que trata os

objetos de Wittgenstein como os objetos de familiaridade de Russell, há uma objeção a

se fazer: os objetos de Wittgenstein são a substância do mundo – mais que isso – são a

substância comum de todos os mundos possíveis, e não apenas deste. As diferenças

existentes entre os diversos mundos possíveis se referem às configurações desses

objetos em estados de coisas48

. Uma determinada configuração de objetos (estado de

coisas) ocorrerá em alguns mundos e em outros não. De acordo com o Tractatus, por

corresponderem à substância do mundo, tais objetos não podem ser concebidos como

reféns da temporalidade. Por isso eles têm que ser eternos e indestrutíveis, pois, caso

contrário, se negaria a idéia de substância.

46

Ibid. 16.6.15. 47

Ibid. 48

A este respeito ver o aforismo 2.0271: “O objeto é o fixo, subsistente, a configuração é o variável,

instável.”

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

55

A diferença fundamental entre esses objetos e os objetos de familiaridade de

Russell é que estes são sense data, objetos dados através dos sentidos, e que também

são contingentes e sujeitos à temporalidade. Os objetos de Russell podem, de alguma

maneira, ser considerados fenomenológicos, já que são conhecidos através de

familiaridade por um sujeito. Um objeto de familiaridade é conhecido por um sujeito

imediatamente através de uma ostensão, sem contar com uma possível descrição de

outro sujeito. Isso, porém, não desemboca num solipsismo, pois Russell aceita a

hipótese da possibilidade de descrição de eventos mentais de outras mentes.

Wittgenstein alude para o sentido de uma proposição ordinária que fala de

objetos de familiaridade, como o exemplo acima do relógio. O que é dito por uma

proposição deve ser dito completamente, embora algumas coisas não sejam ditas

completamente. Contudo, o que é dito por tal proposição deve ser considerado como

completo. Assim, a proposição “esse relógio brilha” deve ser considerada uma figuração

completa. Percebemos certa ambigüidade aqui, mas é Wittgenstein quem faz assim.

Vejamos:

Uma proposição pode muito bem ser uma figuração incompleta de um

certo fato, mas ela é sempre uma figuração completa.49

A conclusão de Wittgenstein é mais espetacular ainda:

...como que se num certo sentido todos os nomes fossem nomes genuínos.

Ou como eu também poderia dizer, como se todos os objetos fossem, num

certo sentido, objetos simples50

.

Quer dizer, embora Wittgenstein esteja tratando sob um mesmo prisma, essa concepção

de objetos têm funcionalidades diferentes. Nessas passagens citadas dos Cadernos ele

está preocupado com a definição do que seria um objeto, empreitada que foi

abandonada no Tractatus. Lá ele vai ficar restrito ao plano lógico, tratando os objetos de

uma maneira apenas geral, mostrando apenas que há uma necessidade lógica dos

objetos serem a substância do mundo. Esta substancialidade dos objetos é seu porto

seguro para desenvolver sua teoria da figuração.

49

Ibid. 16.6.15. 50

Ibid. 16.6.15.

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

56

O fato é que Wittgenstein não dá exemplos de objetos ao longo do Tractatus. Os

objetos são um pressuposto lógico de sua teoria, não havendo motivo algum para se

tentar defini-los. Wittgenstein não parece estar preocupado com isso em seu texto. O

projeto é apenas lógico, não deixando que tais preocupações perturbem sua

consistência. Se ele tentasse fazer assim a lógica não cuidaria de si mesma, como

defendido em 5.473:

A lógica deve cuidar de si mesma.

Não podemos, em certo sentido, nos enganar em lógica.

Não podemos extrapolar os limites do Tractatus. Extrapolar seus limites seria nesse

sentido tentar definir os objetos. A lógica só pode dizer o como as coisas estão, mas não

o que as coisas são. As propriedades internas dos objetos não podem ser conhecidas.

Wittgenstein se opôs à concepção de que se deve criar uma notação ideal de

simbolismo. Ele defendeu que a linguagem ordinária era capaz de expressar sentido

plenamente, mas que um simbolismo lógico ajudaria a perceber algumas falhas de tal

linguagem. O mesmo pode ser atribuído aos objetos. Estes elementos que citei (como o

exemplo do relógio) podem perfeitamente ser considerados como objetos sem nenhum

problema, mas se deve compreender que eles não compõem o substrato do mundo.

Aqui se encerra a discussão sobre a natureza dos objetos de Wittgenstein. Falta

ainda um pequeno ponto a ser mencionado acerca dos tipos de objetos. Boa parte da

tradição, incluindo também especialistas em Wittgenstein, considerou que os objetos

são apenas os particulares, desqualificando predicados e relações como objetos. Em

parte isso se dá devido à concepção de Wittgenstein de que um estado de coisas é uma

concatenação de objetos, assim como os elos de uma corrente. Essa concepção me

parece absurda, pois como pensar em estados de coisas compostos apenas de

particulares, sem que esses particulares tenham quaisquer atribuições, qualidades ou que

se relacionem com outros particulares? Vou contestar essa teoria de modo muito

simplista, sem sofisticações. É o próprio Wittgenstein quem diz através de dois

excertos:

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

57

...(Ao uso cambiante das palavras “propriedade” e “relação”

corresponde aqui o uso cambiante da palavra “objeto”)51

.

Também relações e propriedades etc. são objetos52

.

Assim, a partir destas leituras defendo que propriedades e relações também são objetos.

Não dá para pensar em uma corrente apenas de particulares, desprovidas de quaisquer

qualidades e relações.

Portanto, não defino o que são os objetos. Isto porque o Tractatus também não o

faz. O que encontramos nele é simplesmente a defesa da necessidade da existência dos

mesmos. A idéia remonta ao conceito de substância, que é a garantia da possibilidade de

a linguagem afigurar significativamente o mundo.

51

Tractatus, 4.123, pág. 181. 52

Cadernos, ibid. 16.6.15.

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

58

VII. Nomes

Os nomes são sucedâneos dos objetos. Estes são os significados dos nomes. Essa

relação é fundamental na teoria atomista. As proposições elementares afiguram estados

de coisas. As proposições elementares são compostas de nomes, que atuam como

etiquetas dos objetos simples. Se os nomes não significassem os objetos, o sentido das

proposições elementares estaria sob risco. O sentido de uma proposição elementar só

depende da descrição que ela faz de um estado de coisas. Para uma proposição ter

sentido basta que ela descreva corretamente um estado de coisas. Não há qualquer

relação de determinação de sentido entre as proposições. Essa idéia nega a tese da

dependência das proposições elementares.

O ponto crucial de Wittgenstein aqui é mostrar que a representatividade da

linguagem é dependente da existência de signos simples. Estes signos simples são os

nomes, como Wittgenstein diz em 3.202:

Os sinais simples empregados na proposição chamam-se nomes.

Esses nomes são a condição para que as proposições tenham um sentido determinado.

Em 3.23 temos:

O postulado da possibilidade dos sinais simples é o postulado do

caráter determinado do sentido.

Os nomes nomeiam os objetos. Portanto, eles substituem estes na proposição53

.

Assim como os estados de coisas são compostos de objetos, as proposições elementares

são compostas de nomes. E como estas afiguram os estados de coisas, os nomes

significam os objetos. Temos uma relação de nomeação um-para-um entre estes,

havendo a mesma quantidade de componentes simples. É claro que não se deve levar

apenas isso em conta para determinarmos o sentido da proposição. “aRb” e “bRa” têm

claramente sentidos diferentes, embora sejam constituídas dos mesmos componentes, a

saber, a, b, e R. Além da mesma quantidade, se deve levar em conta a configuração

destes nomes. Wittgenstein fala sobre isto em 3.21:

À configuração dos sinais simples no sinal proposicional corresponde

a configuração dos objetos na situação.

53

“O nome substitui, na proposição, o objeto. TRACTATUS, 3.22.

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

59

A configuração dos objetos no interior do estado de coisas, conforme dito acima, deve

ser figurada pela proposição elementar.

Quando um dos nomes de uma proposição qualquer não designa um objeto,

então temos um contra-senso. E aqui está a explicação para as pseudo-proposições que o

Tractatus enuncia. Elas apresentam falhas referenciais, um ou mais de seus nomes não

designam objetos54

. Esse problema afeta todos os discursos criticados por Wittgenstein

no Tractatus, como é o exemplo da metafísica. Esta contém falhas referenciais dos seus

componentes proposicionais.

Os nomes são indefiníveis, são sinais primitivos. Numa análise lógica da

proposição chegaremos aos nomes, pois estes são os simples da proposição. Um nome

não poderá ser desmembrado, pois não há nada mais simples que ele55

. Então, numa

análise da proposição chegar-se-á aos nomes simples. Estes têm como significados os

objetos dos quais são sucedâneos. A análise não pode encontrar mais de uma

designação para um nome numa proposição.

Outro ponto importante para salientarmos aqui é acerca da análise da

proposição. A análise da proposição é única. Quer dizer, numa análise completa da

proposição, não podemos constatar sentidos diferentes para a mesma. Esse pressuposto

impossibilita que atribuamos significados diferentes aos nomes. A análise é única e

completa. Esse aspecto parece indicar o quanto o pensamento de Wittgenstein nesse

contexto está distante de um pragmatismo lingüístico, uma vez que não se concebe um

referencialismo estritamente extralingüístico. Com efeito, o que determina o significado

de um nome no pragmatismo é o seu uso, e não a sua referência externa. Todavia,

apesar de pressupor um referencialismo extralingüístico no âmbito do Tractatus,

Wittgenstein se utiliza de um certo contextualismo para atribuir significados aos nomes.

Qual a especificidade deste contextualismo?

Como já vimos acima, o sentido da proposição depende da configuração dos

nomes. Estes precisam significar algo (objetos), caso contrário, não teremos uma

54

As proposições sem sentido são diferentes, como as proposições da lógica. A diferença fundamental é

que as proposições sem sentido podem ter seus valores de verdade determinados a partir apenas da análise

sintática, sem necessidade de constatação empírica. 55

“O nome não pode mais ser desmembrado por meio de uma definição: é um sinal primitivo”.

TRACTATUS, 3.26.

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

60

proposição, mas um contra-senso. No entanto, não são os nomes que determinam a

proposição elementar, mas o contrário. Embora os nomes designem objetos, é só no

interior de uma proposição que eles significam. Conforme Wittgenstein em 3.3:

Só as proposições têm sentido; é só no contexto da proposição que um

nome tem significado.

Aqui Wittgenstein alude à questão do contexto, ou seja, nomes não designam nada

sozinhos. Eles só significam algo na relação com outros nomes. Esta relação só se dá na

proposição elementar, daí Wittgenstein tomá-la como atômica. Em todo caso, ainda

resta uma questão crucial: como conhecemos o significado de um nome? Ficou

estabelecido que os nomes só signifiquem num determinado contexto, i.e., somente

quando no interior de uma proposição.

Uma leitura que se pode supor é a que propõe que os nomes ganham

significados a partir da ostensão. Ao admitir que os nomes por ostensão obtêm seu

significado, trazemos à tona a questão da empiria dos objetos56

.. Esta tese é defendida

por Russell. Ele supôs que os objetos simples são conhecidos por familiaridade, e

somente assim poderíamos nomeá-los. Portanto, somente a partir de uma familiaridade

com os objetos é que podemos conhecer os significados dos nomes.

Wittgenstein parece não ter concordado com ele. Os objetos tractarianos não

eram objetos de familiaridade. Defender esta tese repercute em admitir que os nomes

são definidos ostensivamente. Dois problemas podem ser levantados57

aqui: 1) A

indeterminação do objeto da ostensão. Quando aponto para um objeto não fica

claramente determinado quantos objetos existem de fato. Quando digo o nome “a” não

saberei o que isto significa. Posso estar falando da cor do objeto, de sua forma, de sua

localização espacial ou outras coisas mais. 2) Não temos exemplos de proposições

elementares no Tractatus. Os nomes só ocorrem nestas proposições, daí não termos

assim exemplos de nomes também. Além disso, proposições elementares não ocorrem

na linguagem ordinária, pois todas as proposições dessa linguagem podem ser

decompostas analiticamente.

56

A esse respeito, cf. HINTIKKA (1994), que defende que os objetos do Tractatus na verdade são os

mesmos objetos de familiaridade de Russell. 57

Ambos já foram tematizados pelo prof. Guido Imaguire em seu texto “Dos Nomes aos Jogos”, in

Colóquio Wittgenstein, 2006, págs. 155-176. Aliás, o prof. Imaguire suscita três problemas quanto às

definições ostensivas.

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

61

Estes problemas ressaltados põem abaixo as definições ostensivas dos nomes

tractarianos. Wittgenstein, no entanto, dá outro critério para explicar os significados dos

nomes. Ele diz isso no aforismo 3.263:

Os significados dos sinais primitivos podem ser explicados por meio

de elucidações. Elas são proposições que contêm os sinais primitivos.

Portanto, só podem ser entendidas quando já se conhecem os significados

desses sinais.

As elucidações são a única maneira de explicitarmos os significados dos nomes.

O que são essas elucidações? Então, responde Wittgenstein dizendo que elas são

proposições que contêm os sinais primitivos. Dessa maneira, parece que Wittgenstein

está querendo dizer que as elucidações são proposições elementares, pois somente

nestas os nomes aparecem. Essa, aliás, é a leitura de Glock (1998), que defende (pág.

122):

Por conseguinte, as elucidações não passariam de proposições

elementares em que o nome em questão ocorre.

No entanto, essa definição de Glock é problemática, pois, a rigor, Wittgenstein não deu

sequer um exemplo de proposição elementar. Assim, não saberíamos de fato o que é

uma elucidação na perspectiva tractariana. Para o filósofo, essa questão se torna

circular, já que as elucidações explicitam os significados dos nomes, mas que,

entretanto, já se deve conhecer os significados desses sinais. O ponto importante é que

elucidações explicitam os significados, mas não são definições dos mesmos.

Wittgenstein, que parece não se preocupar com isto, não fornece nenhum critério de

formulação de proposições elementares e, tampouco, de elucidações58

.

Finalizando esse capítulo, só podemos concluir aquilo que a leitura do texto do

filósofo nos permite: os nomes são sucedâneos dos objetos, i.e., tornam a proposição

elementar significativa pelo fato de nomear diretamente os objetos.

58

Imaguire (2006) aponta para uma possibilidade de proposições quase elementares, possibilitando uma

leitura de um pragmatismo embrionário já em sua fase logicista. Na pág. 168 diz Imaguire: “O Tractatus

já é prenhe de um holismo e pragmatismo que Wittgenstein não está disposto a reconhecer até suas

últimas consequências. O que impede Wittgenstein de reconhecer a necessidade de uma semântica mais

holística é seu rígido atomismo e a tese de que proposições elementares são logicamente independentes.

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

62

VIII. Análise lógica

Frege foi pioneiro na maneira que concebemos análise hoje, sobretudo com a

criação de seu cálculo de predicados. O projeto inicial dele era mostrar que a aritmética

era derivada de conceitos puramente lógicos. Além disso, ele queria mostrar que

somente uma análise lógica poderia livrar o pensamento filosófico rigoroso do domínio

da linguagem ordinária. Ele considerava a linguagem ordinária um obstáculo para se

apreender o real sentido dos pensamentos, porque a linguagem apresenta imprecisões,

ambigüidades, vacuidade, além de que, segundo Frege, forma proposições sem valores

de verdade. Para que uma proposição pudesse ter um valor de verdade, o argumento

dela teria que denotar algo (objeto). Denotar algo quer dizer ter uma referência no

mundo. Uma proposição Fa pode ser falsa ou verdadeira, desde que a denote algo no

mundo. Ela terá como valor de verdade o Verdadeiro caso o que se diz de a seja o caso

(Fa), e terá como valor de verdade o Falso, caso não seja o caso. Um exemplo seria

“Lula é o atual presidente do Brasil”. Lula é um nome que denota alguém no mundo,

portanto esta proposição tem não apenas sentido, mas também um valor de verdade.

Mas, se esta proposição é verdadeira ou falsa, vai depender do que se predica de Lula.

Neste caso, esta proposição denota o Verdadeiro, pois é o caso de Lula ser o atual

presidente do Brasil.

O caso emblemático para se analisar é a sentença “o atual rei da França é

careca”. É emblemática porque sabemos que não existe um atual rei da França. Daí nos

vem a pergunta: proposições sem referência podem ter valor de verdade? A resposta de

Frege é não. Entretanto, é uma proposição com sentido, já que essa proposição pode ser

analisada logicamente, ou seja, sua forma lógica não é contraditória. Um exemplo de

infração, tanto da referência como do sentido, seria uma proposição como “o círculo

quadrado existe”, pois fere as leis lógicas relativas à geometria. Para ele, portanto,

proposições podiam ter um sentido mesmo que não tivessem valor de verdade.

O sentido é o pensamento da proposição, algo objetivo acerca do que se diz. Ele

é o modo de apresentação ou percepção dos objetos. O exemplo clássico é do planeta

Vênus, que tanto é chamado de estrela matutina como de estrela vespertina. As duas

proposições têm o mesmo referente, embora o modo de percepção deste objeto seja

diferente. Mas, embora o sentido se refira ao modo de apreensão do objeto, isso não

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

63

quer dizer que ele tenha uma característica subjetiva. Pelo contrário, Frege fala do

pensamento como algo objetivo, quer dizer, o pensamento é algo que todos podem ter o

acesso de maneira igual.

Com essa noção de pensamento, Frege abole a concepção psicologista que

prevalecia desde a modernidade. Nesta, o pensamento é produzido pelo sujeito

internamente, levando em conta a sua percepção particular e subjetivista. Frege, no

entanto, vai tomar o pensamento como algo exterior ao sujeito (no sentido de produção

ou percepção de), já que o pensamento é algo objetivo, cabendo ao sujeito compreender

ou interpretar tal pensamento.

Quando dizemos algo com sentido, não nos comprometemos com a atualização

deste. Para Frege o sentido é objetivo, porém não necessariamente atualizado, i.e., um

pensamento não denota necessariamente algo no mundo.

Portanto, para Frege, poderiam existir proposições logicamente analisáveis com

sentido, mesmo que estas não denotassem um valor de verdade. Proposições sem valor

de verdade representam o conjunto vazio. Lembremos que o projeto de Frege é, antes de

qualquer coisa, lógico-matemático.

Russell também enveredou por um projeto logicista, porém radicalizando

algumas concepções de Frege. O seu projeto é chamado de atomismo lógico, que se

baseia na decomposição das proposições complexas em proposições mais simples,

chamadas de atômicas.

Este atomismo de Russell, como ele mesmo diz, é a teoria que vem criticar um

certo tipo de holismo, i.e., a idéia de que tudo no mundo está interligado. Uma visão

atomista, entretanto, irá tratar os fenômenos como sendo inteiramente independentes.

Quando uso o termo “interligado”, quero significar com isso uma relação causal.

Portanto, podemos dizer que, em Russell, temos uma ontologia mecanicista, quer dizer,

que o mundo é um composto constituído de partes mais simples interpostas.

Russell também entendia que a linguagem precisava de uma notação mais

correta, uma “linguagem logicamente perfeita”. Com essa linguagem, a ciência estaria,

dentre outras coisas, salvaguardada de ataques céticos. Com a teoria das descrições

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

64

definidas (DD), Russell pôde combater as entidades meinonguianas59

. Exemplos destas

entidades são aquelas que Meinong considerava-as subsistentes, tais como Sherlock

Holmes, Saci Pererê ou Papai Noel.

Outra aplicação da teoria das DD é a respeito da teoria de Frege. Segundo Frege,

como mostrado acima, havia proposições que podiam ter sentido, embora não tivessem

referência. A sentença “o atual rei da França é careca” tem sentido, porém não tem valor

de verdade, segundo Frege. Russell trata esta sentença como uma sentença que precisa

ser analisada conforme a teoria das descrições definidas. A partir da análise, se chegará

à conclusão que esta sentença é uma abreviação para “Há um único objeto que é o atual

rei da França, e este objeto é careca”. Decomposta assim, a sentença tem sentido, além

de que ela terá valor de verdade, que é falsa. Ao ser decomposta, fica claro que é falsa,

pois não existe tal objeto que satisfaça a afirmação.

O atomismo lógico de Russell, todavia tem um viés epistemológico, pois leva

adiante o projeto reducionista do empirismo, que é uma negação da metafísica

especulativa. Como diz Glock:

O atomismo lógico busca analisar as proposições, decompondo-as em

proposições atômicas que se refiram a dados dos sentidos.60

Wittgenstein concorda com Frege e Russell de que devemos desconfiar da

linguagem ordinária. Em 4.003161

, Wittgenstein concede a Russell o mérito de ter

percebido que a forma aparente da proposição nem sempre coincide com sua forma

lógica. Entretanto, não é o caso de substituir a linguagem ordinária por uma linguagem

logicamente perfeita. Para ele, a linguagem ordinária já contém em si a forma lógica,

porém, de maneira obscura, tal como ele defende em 4.00262

. Desta forma, o que é

necessário é criar uma notação capaz de revelar a forma lógica já contida em algumas

proposições da linguagem ordinária.

59

Embora Russell tenha tido uma fase platonista, que dentre algumas coisas, considerava a tese de

Meinong como viável. A este respeito, ver Imaguire (2006). 60

Glock, pág. 45. 61

“Toda filosofia é „crítica da linguagem‟. (Todavia, não no sentido de Mautner.) O mérito de Russell é

ter mostrado que a forma lógica aparente da proposição pode não ser sua forma lógica real”. 62

(...) A linguagem é um traje que disfarça o pensamento. E, na verdade, de um modo tal que não se pode

inferir, da forma exterior do traje, a forma do pensamento trajado; isso porque a forma exterior do traje

foi constituída segundo fins inteiramente diferentes de tornar reconhecível a forma do corpo. Op. citada,

pág. 165.

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

65

Wittgenstein, portanto, também defende que à filosofia cabe fazer análise da

linguagem, revelando, para tanto, sua verdadeira forma lógica. Essa análise, entretanto,

não foi demonstrada pelo próprio Wittgenstein, pois dizia que esta era tarefa das

ciências particulares, não cabendo ao Tractatus demonstrá-la.

Seu objetivo era mostrar as relações lógicas existentes entre a linguagem e o que

é afirmado através dela. Para ele a linguagem é capaz de descrever os eventos possíveis

da realidade. O pressuposto básico de Wittgenstein é este: a linguagem é capaz de

descrever o mundo, ou melhor, a linguagem é capaz de descrever estados de coisas. E,

se a linguagem é capaz disso, então nós podemos analisá-la para compreendermos

melhor aquilo que ela descreve.

A complexidade do mundo e da linguagem é um ponto de partida. Wittgenstein

confirma isso, quando diz que o mundo é composto de fatos, e não de objetos.

Wittgenstein inverte a ordem, já que a tradição sempre tomou os objetos como sendo as

unidades de descrição. Para ele, no entanto, o mundo compõe-se de fatos. Os objetos,

porventura, são constituintes dos fatos. Por consequência, a linguagem que descreve o

mundo também tem que ser complexa, também sendo constituída por componentes

mais simples, as proposições elementares.

Essa concepção de análise para Wittgenstein, no entanto, só é possível por causa

de sua crença na representatividade da linguagem. A linguagem tem a capacidade de

representar o mundo, como se fosse um espelho da realidade. Para Wittgenstein,

linguagem e mundo mantêm entre si uma relação de equinumeracidade. Isso quer dizer

que, para cada componente do mundo, existe um correspondente dele na linguagem.

Ademais, essa capacidade da linguagem de espelhar o mundo, porque ambos

compartilham de algo em comum, é oriunda da forma lógica. Esse compartilhamento da

forma lógica garante que ambos, linguagem e mundo, sejam isomórficos.

O fato é que Wittgenstein parte dessa crença da isomorfia entre linguagem e

mundo. Portanto, quando fizermos análises, as faremos no âmbito da linguagem, pois

nos é mais palpável. Nós já sabemos que o mundo é composto de fatos (complexos).

Estes fatos são descritos por proposições complexas também. Estas proposições são

complexas, no entanto, por serem concatenações de proposições mais simples,

primitivas. Estas proposições são chamadas de elementares. Elas também descrevem

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

66

fatos, os fatos simples63

ou elementares. Logo, temos uma relação isomórfica entre os

complexos (fatos e proposições) e entre os elementares também. Isso quer dizer o

seguinte: as proposições complexas espelham os fatos complexos, enquanto que as

proposições elementares espelham os estados de coisas.

Portanto, a concepção de análise de Wittgenstein consiste exatamente nisso, a

saber, em decompor os complexos em simples. Quando se chega aos elementares,

todavia, ainda é possível decompô-los em elementos mais simples64

. Um fato elementar

é constituído de objetos simples, que, por sua vez, são denominados na linguagem

através dos nomes. Contudo, objetos aparecem como constituintes dos estados de

coisas, pois não subsistem objetos independentes destes. Da mesma forma, nomes não

aparecem sozinhos, mas apenas no interior das proposições65

.

Outra concepção tractariana importante é a idéia de que toda análise é unívoca,

i.e., que só tem uma maneira correta de se analisar a proposição. Wittgenstein quer dizer

com isso que não podemos analisar de maneiras diferentes a mesma situação. Uma vez

analisada a proposição, não poderemos obter resultados diferentes numa segunda

análise desta proposição. Isso nega a possibilidade da multiplicidade de sentidos de uma

mesma proposição. Ao estabelecer que a análise é única e unívoca, Wittgenstein reforça

seu atomismo, não dando margem ainda para um holismo.

No caso de Wittgenstein, as unidades simples de sua ontologia são os objetos.

Por sua vez, os nomes são os correspondentes dos objetos na linguagem. Com isso

Wittgenstein quer garantir o sentido do mundo, pois o sentido deste precisa de unidades

estáveis. Os objetos e os nomes representam esta estabilidade, que é a condição de toda

configuração estável e unívoca dos átomos. Sem essa garantia, teríamos o sentido

proposicional sob risco de um holismo ou convencionalismo. Já no caso da ontologia,

cairíamos no risco de se defender um relativismo em que não há uma estabilidade no

mundo.

Vimos que ele tem como pressuposto a complexidade do mundo. Daí que este se

decompõe em estruturas elementares. Mas tais estruturas poderiam ser decompostas em

63

Cf. pág 36. 64

Isso é possível didaticamente. Na verdade, não temos objetos e nomes sozinhos, pois só os conhecemos

no interior dos componentes atômicos, a saber, estados de coisas e proposições elementares. 65

Aqui nós temos o princípio do contexto de Frege.

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

67

outras mais elementares ad infinitum. Se de fato fosse assim, não haveria sentido no

mundo, pois não teríamos nada ontologicamente estável. Seria como a descrição de

Zenão acerca da flecha que nunca chega ao seu alvo, pois sempre será possível dividir a

distância que a separa dele na metade. Comparação melhor seria a do motor imóvel de

Aristóteles. Para Aristóteles, partindo-se da idéia de causalidade, ou seja, que todo

efeito tem uma causa, entraríamos num regresso ao infinito, pois sempre haveria uma

causa precedente. Então Aristóteles determina que deve ter havido uma causa primeira,

denominada por ele próprio de motor imóvel, quer dizer, aquilo que é o movente de

tudo e que não tem nada que o mova. Um exemplo no nível da linguagem é de Platão no

Crátilo. Os nomes podem ser definidos por nomes cada vez mais simples que eles.

Desta forma, não teríamos nunca nomes simples logicamente; seria uma definição que

regressaria ao infinito. Há, assim, uma necessidade da subsistência dos nomes simples,

sob o risco de nunca nomearmos nada corretamente.

Voltando ao nosso ponto, percebemos que Wittgenstein tem um procedimento

semelhante: a fim de evitar o regresso ao infinito, ele postula a existência de objetos

simples. Esses simples são a garantia de significatividade das proposições atômicas,

pois os nomes são etiquetas destes objetos.

Com essa concepção de análise wittgensteiniana, podemos fazer a seguinte

pergunta: Qual o ganho em analisar os complexos até atingirmos os simples? A resposta

seria análoga ao que um químico responderia: que a decomposição das moléculas em

seus componentes elementares ajuda a entender o funcionamento e a organização desta

molécula. Ao tomar conhecimento dessas partes constituintes, será mais fácil a um

químico ter o conhecimento da totalidade dessa molécula. Ele terá, por exemplo, o

conhecimento de que alguns elementos são comuns a várias moléculas. Dessa maneira,

ele poderá fazer combinações entre esses elementares e tentar descobrir ou inventar

novos compostos. Os simples, em Wittgenstein, têm uma funcionalidade semelhante,

quer dizer, são elementos primitivos que formam toda a complexidade do mundo.

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

68

Unidade II

I.Mudança de Paradigma

Wittgenstein passou um bom tempo distante da filosofia, pois achava que havia

resolvido de vez os problemas desta. O Tractatus mostra como podemos figurar o

mundo através da linguagem. Ele também mostra que o grande problema da filosofia foi

tentar dizer o que não podia ser dito, o que estava fora dos limites da linguagem. O

problema da filosofia é que ela se utilizava destas proposições contrasensuais como se

fossem proposições legítimas. Desta forma, podemos concordar que Wittgenstein não

tinha mais motivos para continuar na filosofia, pois havia encontrado a solução para os

problemas dela.

No entanto, em 1929, Wittgenstein reaparece em Cambridge. Ele foi convencido

a voltar a fazer filosofia. Alguma coisa o fizera retomar seus estudos filosóficos. Mas

afinal, que coisa era essa? O que poderia Wittgenstein ainda fazer em filosofia, já que

ele havia supostamente resolvido todos os problemas concernentes a ela?

É óbvio que alguma coisa havia mudado, que algo novo despertara Wittgenstein

para fazê-lo retornar. Wittgenstein só poderia retornar caso percebesse que havia

cometido algum erro, i.e., que havia cometido algum engano com o Tractatus ao pensar

que havia de fato solucionado todos os problemas filosóficos. E de fato algo mudara.

Em seu artigo Algumas Observações sobre a Forma Lógica, podemos ver o que

mudara. A mudança principal ocorreu no que se refere ao conceito de proposição

elementar.

Devemos nos lembrar que o Tractatus considerava a proposição elementar como

átomo lingüístico, ou seja, como a menor unidade de sentido da linguagem. Na

ontologia ela corresponde aos estados de coisas, que são os átomos ontológicos. Isto

quer dizer que tanto a linguagem como o mundo são complexos compostos de seus

respectivos átomos, a saber, as proposições elementares e os estados de coisas.

Qualquer tipo de análise desembocará nestes elementos atômicos.

A mudança na filosofia de Wittgenstein só podia ocorrer nesse nível elementar,

pois assim alteraria todo o complexo. Então é aqui que Wittgenstein se concentra. Seu

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

69

objeto de pesquisa foi o seu conceito de proposição elementar. No Tractatus, ela é

caracterizada por duas idéias fundamentais: 1)bipolaridade – para que uma proposição

tenha sentido é necessário apenas que ela descreva um estado de coisas, ou seja, um fato

possível. Desta maneira, o sentido independe de sua verificação no mundo, não

importando se tal proposição seja verdadeira ou falsa; e 2)independência – o Tractatus

defende que a proposição elementar é inteiramente independente das demais, ou seja,

não há qualquer relação de dependência lógica entre tais proposições.

As duas teses compostas produzem o que poderíamos chamar aqui de essência

do atomismo lógico wittgensteiniano. Com a idéia de bipolaridade se garante a

figuratividade da proposição, pois esta possibilita que a proposição tenha sentido

mesmo que descreva um fato falso, ou seja, um fato que não é o caso. Ter sentido é

afigurar um estado de coisas do espaço lógico, que pode ou não ocorrer no mundo. Isso

não quer dizer que todo estado de coisas ocorre, pois sabemos que existem estados de

coisas não atualizados no mundo. Um exemplo destes estados de coisas é “Lula é

presidente da ONU”, pois sabemos que tal fato não é o caso, embora seja algo possível.

Além destas possibilidades lógicas, também existem as proposições sem sentido e as

pseudoproposições, quer dizer, os contrasensos. As primeiras correspondem às

proposições da lógica, enquanto que as segundas correspondem às proposições

metafísicas, éticas, estéticas e religiosas.

A idéia de independência lógica garante a atomicidade do par proposição

elementar/estado de coisas. A independência garante que a ligação é direta entre as duas

unidades, sem intermediações de terceiros, ou seja, de outras proposições. Estas não têm

qualquer relação de implicação ou contradição entre elas. Um exemplo pode ser dado:“x

e y são coloridos e eu sei que x é azul” não implica que y seja verde ou vermelho, por

exemplo. Nós sabemos que x e y têm cores diferentes. E sabemos também que x é azul;

mas isso não pode me fazer inferir que y possa ter uma cor específica, como verde ou

vermelho. A tese da independência tractariana defende que não há qualquer relação de

implicação ou contradição entre tais proposições66

. Um caso similar se refere às

proposições negativas. Quando digo ~Fx (x não é preto) não estou querendo dizer algo

66

Digo proposições aqui porque temos mais de uma proposição contidas na sentença acima. Podemos

fragmentá-la em pelo menos três proposições: 1) x é colorido; 2) y é colorido; e 3) x é azul.

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

70

como Gx (x é branco) implicitamente. O que estou dizendo na verdade é simplesmente

que não é o caso de x ser preto, não se podendo inferir que cor x tem.

Wittgenstein vai concentrar sua atenção no conceito de proposição atômica,

quando divulga seu artigo Algumas Observações sobre a Forma Lógica. O ponto de

ruptura com o Tractatus é a idéia de independência das proposições atômicas. Nesse

artigo ele defende que na verdade as proposições de um mesmo espaço lógico são todas

dependentes, havendo relações de implicação entre elas. Minha hipótese é que esse é

um dos aspectos decisivos para a mudança na filosofia de Wittgenstein. A tese de que as

proposições elementares são dependentes umas das outras vai possibilitar todas as

demais mudanças na filosofia dele, chegando até seu resultado final, qual seja, o

holismo semântico articulado com os jogos de linguagem.

Outra mudança também será importante. Essa mudança consiste na idéia de

sentido proposicional. Como já foi dito, no Tractatus, o sentido era garantido pela

bipolaridade da proposição, ou seja, o sentido de uma proposição estava relacionado à

sua figuratividade de um estado de coisas. Essa garantia do sentido era a priori, não

tendo qualquer interferência da realidade na constituição deste sentido. No entanto, a

nova concepção filosófica de Wittgenstein vai tratar de outro modo a constituição do

sentido proposicional. A proposta dele é que a significatividade de uma proposição seja

dependente da verificação dos fenômenos.

Devemos ter cuidado aqui, pois estamos em terreno escorregadio. A idéia de

“verificação” entra na filosofia de Wittgenstein de uma maneira particular. Grande parte

da tradição filosófica identificou neste período filosófico de Wittgenstein como que uma

defesa do neopositivismo. E de fato precisamos investigar isso – se Wittgenstein está

mesmo defendendo uma filosofia regida pelo princípio positivista de verificação.

Vejamos de perto os textos do autor. Os textos que serviram de base para essa

análise foram seu artigo Algumas Observações sobre a Forma Lógica e seu livro

Observações Filosóficas. Estes dois textos foram escritos no período de 1929-1932 e

revelam o momento de ruptura de Wittgenstein com seu atomismo. Isso não quer dizer

que ele tenha mudado completamente o enfoque de sua investigação. Na verdade não. O

que aconteceu foi uma mudança de paradigma da mesma questão. Podemos considerar

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

71

que Wittgenstein ainda está buscando a resposta para a questão “como a linguagem

representa o mundo?”.

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

72

II.Algumas Observações sobre a Forma Lógica:

Aqui teremos uma discussão acerca da noção de forma lógica. Para isso, sempre

teremos o Tractatus como pano de fundo. Nele a forma lógica era única, sendo a

possibilitadora da figuração da linguagem. Para que a linguagem afigurasse

corretamente o mundo ela tinha que apreender a forma lógica. Essa forma lógica,

juntamente com uma regra de projeção, determinava de que maneira se poderia fazer

uma representação do mundo na linguagem.

No âmbito puramente formal poderíamos determinar as regras sintáticas da

linguagem, ou seja, quais as combinações que são possíveis na linguagem. Essa maneira

de trabalhar formalmente fazia-se necessária a fim de evitar os problemas decorrentes

do uso da linguagem cotidiana. Então se poderia criar um simbolismo driblando a

problemática suscitada pela linguagem cotidiana.

Ao proceder assim, Wittgenstein chegou a um entrave. Ele percebeu que

qualquer análise da linguagem esbarra em constituintes indecomponíveis, as

proposições elementares. Toda a linguagem seria constituída por somas ou produtos

lógicos destas proposições. No âmbito puramente formal saberíamos se uma dada

proposição tinha ou não sentido; ou ainda, se esta proposição era sem sentido, como

eram os casos das contradições ou tautologias. A idéia era de que através da análise

formal poderíamos analisar todas as proposições da linguagem cotidiana.

No entanto, neste artigo de 1929, Wittgenstein vai enveredar por uma mudança

neste conceito de forma lógica. Ao defender que a linguagem pode ser analisada no

cálculo proposicional, sem levar em consideração seu conteúdo, ele assume que a forma

lógica pode se depreender dele. O que quero dizer é que, para Wittgenstein (do

Tractatus), a forma lógica é conhecida sem haver necessidade de conhecer o que tal

proposição enuncia. Ele defendia que a forma lógica se mostraria ao sujeito, sem que

fosse possível teorizar sobre ela.

O problema é entender como ela se mostra, a não ser que se aceite um sujeito

metafísico capaz de apreender corretamente a forma. Tudo bem, pois este não é o

problema, já que podemos considerar que isso seja aceitável no Tractatus. O que

Wittgenstein irá introduzir de novo sobre isso é o que ele diz sobre a “investigação

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

73

lógica dos próprios fenômenos”. Aqui ocorre uma mudança clara, pois ele introduz uma

palavra que suscita a epistemologia. Afinal de contas, o que ele quis dizer com

investigação lógica dos próprios fenômenos? Por acaso só é possível determinar a

forma lógica de uma proposição após a verificação do mundo que esta enuncia? Na

verdade, o que Wittgenstein quer trazer à tona é que não existe uma única forma

lógica67

, mas várias. Existem n tipos de formas lógicas. A maneira de determinarmos

essas formas tem relação com a investigação dos fenômenos. Não fica tão claro neste

artigo ainda o que ele quer dizer, pois só encontraremos o que ele vislumbrava nas

Observações. O que chamo agora de forma lógica chamaremos de espaço lógico a partir

daquela obra. A idéia de Wittgenstein é que proposições elementares na mesma

proposição complexa podem ter formas lógicas diferentes, ou seja, podem pertencer a

espaços lógicos diferentes. O que determinará em quais espaços lógicos a proposição se

encontra é justamente a análise lógica dos fenômenos. Somente após tal análise

conheceremos a forma lógica das proposições respectivas.

Exemplos desses espaços lógicos são os espaços colorido, temporal, espacial e

visual. Proposições como “o 2 é mais alto que o verde” são claramente contrasensuais.

E como sabemos? Através de suas respectivas formas lógicas, pois sabemos que “2” e

“verde” pertencem a espaços diferentes. Podemos então entender o que Wittgenstein diz

com “análise lógica dos fenômenos”. Ele não quer dizer que precisamos aferir uma

proposição com a realidade sempre que enunciarmos uma. O que ele quer mesmo dizer

é que precisamos sempre fazer uma análise da realidade descrita pela proposição68

.

Não se trata de subjetivar a análise, pois não é esse o objetivo da lógica. O que a

lógica busca é exatamente dar critérios mais objetivos para a análise. A investigação de

Wittgenstein nesse artigo então estabelece isso: não existe uma única forma lógica e

tampouco se pode desprender da análise dos fenômenos. Essa análise é importante para

que se possa pensar na significatividade da linguagem. Uma proposição só pode ter

sentido se ela for considerada de acordo com sua forma lógica. Essa forma lógica

67

A questão é considerar a forma lógica apenas no âmbito formal, deixando de lado a análise dos

fenômenos descritos. Frases como “Este ensaio é chato”, “O tempo está agradável” e “Eu sou

preguiçoso” parecem pertencer a mesma forma, a saber, sujeito-predicado – embora nada tenham em

comum. 68

Podemos aqui dizer que há uma relação entre semântica e sintaxe. No entanto, a sintaxe é quem

balizará a semântica. De outro modo, podemos dizer que só há uma semântica quando relacionada a um

determinado espaço lógico, portanto a uma sintaxe específica.

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

74

determina em que espaço a proposição se encontra. Melhor seria dizer que a forma não

determina em que espaço a proposição se encontra, mas a rigor em quais espaços ela se

encontra. Uma proposição pode enunciar algo como “o círculo é vermelho”69

. Aqui

claramente temos dois espaços distintos; um é o espaço das cores – e o outro é o espaço

geométrico70

.

Entretanto, o ponto mais importante do artigo não é esse. Wittgenstein percebe

que havia cometido um erro ao tratar a proposição elementar anteriormente. Esse erro se

refere à consideração dos números em proposições atômicas. Em sua filosofia anterior

ele acreditava que números não podiam fazer parte da estrutura atômica, devendo então

ser fragmentados na análise. Agora vejamos o que ele próprio diz no que se refere a isso

(pág. 42)71

:

E aqui quero fazer minha primeira observação definitiva sobre a

análise lógica dos fenômenos reais: para sua representação, números

(racionais e irracionais) devem entrar na estrutura das próprias proposições

atômicas.

Num primeiro relance da leitura dessa passagem nada de surpreendente parece

acontecer. Mas na verdade isso só ocorre num primeiro momento da leitura. Quando

paramos para refletir o que isso quer dizer, então percebemos a profundidade disso na

obra de Wittgenstein. Inicialmente, devemos entender o que quer dizer a inclusão de

números em proposições atômicas. E o que ele quer dizer com isso é que podem existir

gradações nos diversos espaços lógicos. No espaço das cores encontramos tonalidades

diferentes de vermelho, de azul e das demais cores. Essas gradações internas das cores

são marcadas numericamente72

. Um bom exemplo seria uma loja especializada de

tintas. Existem diversas tonalidades da cor azul. Essas tonalidades podem ser

numeradas. Essa demarcação numérica pode começar da mais clara até a mais escura.

Se alguém chegar nessa loja e quiser comprar uma tinta azul, isso parecerá muito vago,

69

Aqui há uma alusão à proposição complexa, pois ela se desmembra em proposições elementares. Em

contrapartida, cada proposição elementar pertence a apenas um espaço lógico.

70

Mais à frente voltarei a falar sobre isso, quando estiver tratando das Observações Filosóficas. 71

Op. Cit. 72

No entanto, nem toda vez que aparecer um número isso representará uma gradação, pois claramente

existem marcações numéricas cardinais, ordinais ou ainda como índices.

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

75

pois existem muitas tonalidades do azul. Ele deverá proceder ou dizendo “quero o azul

tal...”, ou então trará uma amostra da tonalidade da tinta que ele quer comprar.

Em sua leitura anterior ele achava que tinha que analisar uma proposição que

tivesse número em sua composição. Essa proposição ainda era complexa (ao menos em

alguns casos), devendo ser decomposta até que se encontrassem as proposições

atômicas. Imaginemos uma determinada tonalidade de vermelho e digamos que ela é

composta de três unidades de vermelho. Chamaremos essa tonalidade de 3(V)73

. Na

concepção anterior, Wittgenstein achava que essa tonalidade era resultado de um

produto lógico. Neste caso, o produto lógico seria V & V & V, mas isso é igual a V.

Poderíamos também tentar eliminar o número desta proposição atômica distinguindo as

unidades. Seria algo como 3(V) = V’ & V’’ & V’’’. Novamente teríamos um problema,

pois criaríamos três unidades de vermelho, o que seria absurdo.

A idéia básica de Wittgenstein na revisão de sua filosofia anterior é que

proposições com gradações são completas. Neste caso 3(V) é completa e atômica, não

podendo ser desmembrada em proposições mais elementares. Mas essa admissão dos

números nas proposições elementares vai desembocar em outro ponto da filosofia

anterior de Wittgenstein: a independência das proposições elementares.

Voltemos ao exemplo acima da loja especializada em tintas. Quando chego nesta

loja e peço uma tinta azul não estarei sendo muito preciso, pois sabemos que não existe

uma única tonalidade de azul. Daí duas possibilidades surgem: ou eu digo precisamente

que tipo de azul busco, ou então mostro ao vendedor uma amostra da tonalidade de azul

que procuro. Ao determinar uma tonalidade específica de azul, automaticamente estarei

excluindo as outras tonalidades do azul. Quer dizer, a escolha de uma coisa exclui as

demais coisas naquele espaço lógico. Isto quer dizer que ao escolher um determinado

azul estarei excluindo outros tons de azul; mas não poderia excluir objetos com uma

determinada forma geométrica.

O ponto importante destas considerações é que uma proposição elementar não

pode continuar sendo considerada logicamente independente. O exemplo acima mostra

isso – não podemos enunciar uma proposição sem levar em conta suas conexões com

outras proposições. A independência defendida no Tractatus entra em colapso nesse

73

O exemplo é uma adaptação do exemplo dado por Wittgenstein.

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

76

artigo de 1929. Wittgenstein percebe que as proposições entram em conexão dentro de

um espaço lógico determinado. Se uma proposição se enquadra no espaço das cores,

então todas as demais proposições desse espaço estão conectadas a ela. Ele havia

proposto anteriormente que as proposições elementares eram totalmente dissociadas das

demais, garantindo assim a atomicidade lógica do mundo, e conseqüentemente da

linguagem74

.

Com isso podemos também fazer um reparo acerca da questão da negação. De

acordo com a nova concepção, quando digo que ~Fx, também estou dizendo

(implicitamente) que pode ser o caso de ⁿ. Não nego a proposição

simplesmente, mas nego-a em conexão com outras proposições, daí que outras

possibilidades estão contidas implicitamente em minha proposição75

.

Saindo do artigo, temos uma nota de F. Waismann que atesta essa mudança.

Essa nota foi datada em 25 de dezembro de 1929. Eis alguns trechos da mesma:

O que quero dizer com isso é: quando ponho um padrão em confronto

com um objeto espacial, aplico todas as marcas de graduação

simultaneamente. Não são as marcas de graduação individuais que são

aplicadas, mas a escala inteira.

Se, por exemplo, digo que tal e tal ponto no campo visual é azul, não

sei somente isso, mas também que o ponto não é verde, não é vermelho, não

é amarelo, etc. Apliquei simultaneamente todo o espectro das cores.

Isso se vincula ao fato de eu então crer que as proposições elementares

tinham de ser independentes umas das outras: do fato de que um estado de

coisas prevalecia, não se podia inferir outro que não prevalecia. Mas se a

minha atual concepção de um sistema de proposições estiver certa, então é

verdade a regra de que do fato de que um estado de coisas prevalece podemos

inferir que todos os outros estados de coisas descritos pelo sistema de

proposições não prevalecem.

Aqui vemos claramente o que Wittgenstein atribuíra como sendo seu erro

anterior. Sua concepção anterior era de que as proposições elementares eram

75

Não utilizei Gx ou Hx para não deixar dúvidas de que estou me referindo a proposições num mesmo

espaço lógico. Quando estou negando uma proposição, não tenho implicitamente conectadas a ela todas

as proposições de minha linguagem, mas apenas as proposições que pertencem ao mesmo espaço.

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

77

independentes, não sendo possível inferir algo que não fosse ela própria. A concepção

atual defende que as proposições elementares estão todas interconectadas. Isso quer

dizer que não se afere apenas a proposição enunciada com a realidade, mas na verdade

todo um sistema de proposições. O exemplo das cores acima é bem claro. Se sei que um

objeto específico tem a cor azul, sei automaticamente que ele não tem as demais cores,

que ele não é vermelho, por exemplo.

O caso das proposições que admitem graduação foi muito importante para

Wittgenstein perceber essa interdependência das proposições elementares. Algumas

dessas proposições gradativas admitem números em suas composições. Wittgenstein se

deu conta de que os números não podem ser eliminados como se fossem componentes

que faziam tais proposições se tornarem complexas. Os números são componentes

constituintes das proposições elementares.

Essa mudança em sua filosofia irá contrastar com o atomismo defendido no

Tractatus. Assim, podemos afirmar aqui que essa mudança de concepção da proposição

elementar foi o motor que impulsionou a nova concepção filosófica de Wittgenstein.

Esse artigo é importante no todo da obra wittgensteiniana, pois é nele que vamos

perceber o momento de ruptura com sua filosofia anterior. A partir desta ruptura, a

filosofia de Wittgenstein tomará um rumo bem diferente. O desfecho de sua trajetória

filosófica acontece com seu holismo semântico, fortemente estabelecido com o conceito

de “jogo de linguagem”. Toda essa mudança em Wittgenstein só foi possível a partir

dessa nova concepção de proposição elementar. Isso não quer dizer que ela estanca

aqui, mas que ela é o pontapé inicial para sua concepção madura de filosofia concluída

nas Investigações Filosóficas.

Assim, toda discussão acerca deste período intermediário de Wittgenstein é

inócua quando objetiva estabelecer se houve ou não uma mudança radical. O que

podemos de fato fazer é investigar o que mudou, pois é notória a mudança metodológica

dele. Mesmo com tantas mudanças, fica a certeza que as preocupações com a relação

linguagem/mundo do jovem Wittgenstein nunca desapareceram. Analisaremos agora

algumas questões oriundas de suas Observações Filosóficas.

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

78

III. Observações Filosóficas

Esse livro corresponde às anotações feitas por Wittgenstein entre os anos de

1929-1930. Aqui encontramos as conseqüências do projeto wittgensteiniano iniciadas

no artigo de 1929. O tema da proposição elementar não é tratado com tanto entusiasmo

como no artigo, mas ela foi o estopim de todo o novo processo.

A idéia de figuratividade da linguagem mudará bastante nestas anotações. Como

já foi dito, o conceito de forma lógica se tornou diverso, não sendo mais contemplada a

idéia de uma forma lógica única do Tractatus. A figuratividade da linguagem acontece

de diversas maneiras, dependendo da forma lógica da proposição em questão. Também

fica claro que essa determinação da maneira de figurar na linguagem depende do

critério de verificação concernente.

Essa mudança metodológica no projeto wittgensteiniano envereda pelo que

podemos denominar de seu holismo semântico. Não haverá mais uma ligação direta e

unívoca da linguagem ao mundo, mas na verdade uma ligação intermediada por

diversas outras ligações possíveis. A concepção atomista sofre o mais cruel golpe: a

dissolução da idéia da independência lógica das proposições elementares. Sem este

requisito fundamental, o atomismo lógico de Wittgenstein naufraga em mares inóspitos.

Por fim, Wittgenstein diz explicitamente que abandona o projeto de uma

linguagem fenomenológica. Em princípio, essa idéia de uma linguagem fenomenológica

é uma novidade em seus escritos, pois no TLP não aparece nenhuma menção a tal

linguagem. A fim de investigar tal questão, iremos nos debruçar, agora, na análise

propriamente dita do texto.

1. Linguagem Fenomenológica

Wittgenstein começa o texto dando pistas do que ele entende por linguagem

fenomenológica. Na verdade, ele faz isso de forma indireta. Essa linguagem

fenomenológica, ele a denomina como “primária”. Então, sempre que ele fala de

linguagem primária ele o faz em contraste com a linguagem da física, ou melhor, com a

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

79

linguagem hipotética. Nos capítulos 1 e 2 encontramos dois excertos dessa negação da

linguagem primária:

Agora já não tenho como objetivo a linguagem fenomenológica, ou a

“linguagem primária”, como costumava chamá-la (capítulo I, parágrafo 1).

As proposições da nossa gramática são sempre do mesmo tipo que as

proposições da física e não do mesmo tipo que as proposições “primárias”

que tratam do que é imediato (capítulo II, parágrafo 11).

Na primeira citação temos uma negação explícita da linguagem

fenomenológica. Quer dizer, ele não nega aqui que ela não seja possível, mas deixa

perceber que ela não é mais a meta de sua filosofia. O que fica evidente aqui é que ele

associa linguagem primária à linguagem defendida anteriormente. Alguns autores, como

Merrill e Jaakko Hintikka (1994, cap. 6), defendem que tal linguagem está presente já

no Tractatus, quer dizer, que esta é a linguagem contida em seu projeto logicista. O que

poderia ser, no entanto, essa linguagem fenomenológica ou primária? Wittgenstein

responde dizendo que ela é a linguagem que trata do imediato, ou melhor, dos dados

imediatos. Mas o que isso significa?

Uma boa definição é dada por Pires da Silva (2003, pág. 49): “Uma linguagem

fenomenológica seria a descrição do imediatamente percebido sem qualquer

ingrediente hipotético”. Ao apontar para tal definição, fica claro que no Tractatus não

há uma pretensiosa linguagem fenomenológica, pois Wittgenstein não está interessado

na análise dos fenômenos. No TLP a intenção do filósofo é apresentar as condições a

priori de qualquer linguagem possível, não se detendo em constituir uma linguagem

específica, como seria o caso de uma linguagem fenomenológica. O ponto em que

Wittgenstein parece apontar para tal linguagem parece ser após a dissolução de sua

concepção atomista, quando ele percebe que não é possível estabelecer as possibilidades

de significação de uma linguagem a partir de uma concepção puramente lógica. Então

ele recorre a uma possível linguagem fenomenológica, que tem a pretensão de captar a

objetividade dos fenômenos imediatamente76

.

76

A este respeito, ler PIRES DA SILVA (2000), que defende que uma linguagem fenomenológica é uma

concepção de Wittgenstein posterior ao período do Tractatus: “...Wittgenstein recorre à noção de

exclusão e esboça o projeto de uma linguagem primária, plástica, com a consequente tentação

fenomenológica de apanhar necessidades regionais no campo do empírico” (p.89s).

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

80

Na segunda citação temos uma declaração do próprio Wittgenstein dizendo que

já não pretende mais uma linguagem primária, mas sim uma linguagem aos moldes da

linguagem da física. Esta tem uma linguagem que trata do cotidiano, sendo hipotética (a

linguagem) e mutável. Ela não trata do dado imediato, pois este se apresenta de maneira

estática e completa. O dado não pode ser lido hipoteticamente, mas ele é sempre um

dado completo em si mesmo, e, portanto, oferece descrições que funcionam como

retratos da realidade.

O fato é que Wittgenstein opõe a linguagem fenomenológica à linguagem da

física. A linguagem da física se assemelha com a nossa linguagem pelo motivo de ela

estar sempre em mutação, em constante devir, i.e., ela é hipotética. Pires da Silva diz

(2003):

Se esta (linguagem da física) produz Erklärung77

, visa à

verdade, busca assentar leis (podendo suas proposições, por conseguinte, ser

verdadeiras ou falsas, a fenomenologia seria antes a gramática da descrição

dos fatos sobre os quais fundar-se-ia a física, estando a fenomenologia para a

física como o estaria a geometria para os eventos dados no espaço.

Conformando-se, pois,como a gramática da linguagem de cujas proposições a

física se constitui, a fenomenologia buscaria assentar possibilidades, visaria

ao sentido, cabendo-lhe dizer o que é o objeto sobre cuja descrição a física

teceria suas proposições78

.

Nesse sentido, podemos dizer que há diferenças constitutivas entre as duas propostas: a

linguagem fenomenológica tem uma característica essencialista, pois notoriamente ela

aponta para as possibilidades da constituição do sentido da linguagem da física. O fato

é que Wittgenstein pensou em algum momento na constituição de uma certa linguagem

fenomenológica, embora a tenha abandonado como sendo algo absurdo. Essa afirmação

precisa ser analisada mais detalhadamente.

Assim como Prado Neto (2003), podemos associar linguagem fenomenológica à

linguagem completamente analisada. O autor parte da idéia de que uma boa notação é

aquela que permita eliminar os problemas de compreensão da linguagem cotidiana. A

linguagem então deveria ser capaz de significar de forma precisa. Uma linguagem

77

Explicação; esclarecimento. 78

WITTGENSTEIN, L. Wittgenstein und Wiener Kreis, p. 63. Apud. PIRES DA SILVA, J.C.S. 2003, p.

49.

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

81

fenomenológica cumpre essa tarefa, pois ela se reporta aos dados imediatos. Daqui

podemos depreender duas características desta linguagem: 1) Ela se reporta diretamente

ao sujeito; como um dado imediato, o sujeito o capta e o significa imediatamente. Ela se

opõe, portanto, a uma concepção física, pois claramente ela rejeita uma dimensão

hipotética. 2) Ela não é hipotética. A linguagem fenomenológica se vale do princípio de

verificação, ou melhor, ela só pode descrever o que é verificável objetivamente.

A linguagem fenomenológica busca a objetividade do dado, embora não possa

se desvencilhar do sujeito. O mundo é o mundo do sujeito que percebe79

. Esta

linguagem tem a pretensão de descrever os fatos na sua totalidade, sem a admissão de

elementos hipotéticos. Uma boa imagem da linguagem fenomenológica é a de uma

linguagem que descreve os fatos como se fossem retratos tirados por uma máquina

fotográfica. Quer dizer, na foto não cabe a entrada de elementos hipotéticos, pois a

imagem representa o que de fato aconteceu ou que de fato é. No entanto, nesta

fotografia entra o elemento subjetivo, pois quem descreve é o sujeito que vivenciou o

fato, que escolheu o ângulo adequado, que ajustou o zoom, etc.

Além disso, outra diferença entre as duas linguagens é que a linguagem

fenomenológica é completamente analisada, enquanto a linguagem hipotética não é.

Lembremos apenas o seguinte: Wittgenstein não empreendeu um projeto que

demonstrasse como analisar proposições. O que ele fez foi tratar no âmbito lógico que

uma linguagem qualquer tinha que poder ser analisada completamente. Neste caso, ser

analisada completamente quer dizer atingir as proposições elementares. A linguagem da

física claramente não pode ser esse tipo de linguagem, pois uma hipótese é sempre algo

inacabado, algo mutável ou mesmo algo falsificável.

O ideal da linguagem fenomenológica é, portanto, ser capaz de expressar

completamente seu sentido, não cabendo ambigüidades ou dúvidas quanto ao seu

sentido. Nas palavras de Bento Prado (2003)80

:

Uma linguagem que consistisse de proposições completamente

analisadas não deixaria margem a dúvidas, ela explicitaria integralmente seu

79

O que torna essa concepção anti-psicologista é o fato de os fenomenólogos atribuírem à intuição um

caráter essencialista, ou seja, acreditam na possibilidade de apreensão do sentido das coisas. 80

Pág. 22.

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

82

sentido, isto é, as condições em que ela é verdadeira e aquelas em que ela é

falsa.

A idéia era de que somente uma linguagem imediata poderia manifestar a forma

do mundo. Segundo tal tese, a fenomenologia era uma maneira de dotar a filosofia de

uma cientificidade própria, distanciando-a do psicologismo.

Contudo, qual seria o problema em assumirmos uma linguagem hipotética? O

problema era o grau de incerteza que tal linguagem abrangia. Uma linguagem regida por

hipóteses não poderia estabelecer as bases de significação da linguagem. Uma

linguagem hipotética poderia chegar ao extremo de nunca chegar até os átomos

constituintes, ou seja, as proposições elementares81

.

A linguagem da física não determina como suas proposições devem ser

verificadas. Esta característica assemelha a linguagem da física à linguagem cotidiana.

Ambas são de certo modo inverificáveis, pois este caráter hipotético remete a certo grau

de infinitude, de imprecisão82

. Isso quer dizer o seguinte: a forma lógica da proposição

deve ser determinada a priori, o que só é possível numa linguagem fenomenológica.

Nas linguagens cotidiana e da física não é possível determinar a priori suas formas

lógicas, e, portanto, seus métodos de verificação.

O método de verificação aludido por Wittgenstein precisa ser explicado. Muitos

críticos da filosofia de Wittgenstein entenderam que ele adotara o conceito de

“verificabilidade” dos positivistas de Viena. Porém, o que ele chama de verificação vai

divergir enormemente do que os positivistas conceberam por verificação. Para ele,

verificação é uma idéia que se associa à idéia de espaço lógico. O espaço lógico desta

nova teoria vai divergir da concepção tractariana. No Tractatus o espaço lógico era visto

como único; algo que continha todas as realidades possíveis.

Na nova visão, não existe um único espaço lógico, mas na verdade vários

espaços lógicos. Cada espaço lógico determina o seu método de verificação. Portanto,

não podemos tratar “verificação” em Wittgenstein como trataram os positivistas do

Círculo de Viena.

81

Dessa forma, a linguagem fenomenológica é a linguagem que consegue ser analisada completamente,

pois ela consegue apontar para os fenômenos diretamente, sem interferências de elementos hipotéticos. 82

Esse, aliás, parece ser um motivo razoável para Wittgenstein se debruçar em um certo projeto

fenomenológico quando do seu retorno a Cambridge.

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

83

Para Wittgenstein, o espaço lógico é um espaço de possibilidades de verificação.

Cada espaço tem suas regras sintáticas. No entanto, cada espaço tem uma semântica

também, pois não se pode desprender do conteúdo das proposições para se estabelecer

um método de verificação. Ao contrário do Tractatus, o espaço lógico não pode ser

determinado a priori. Ela necessita do conteúdo proposicional. Somente quando se

conhece o conteúdo de uma proposição é que podemos conhecer o espaço lógico no

qual ela se insere. Somente a posteriori poderemos saber em que espaço lógico ela se

insere e, conseqüentemente, qual o método de verificação adequado.

Um bom exemplo seria o de uma expectativa. Ao olhar para uma mulher eu

poderia dizer: “ela deve pesar uns 60 kg”. Para comprovar isso eu precisarei de uma

balança. Não importa que ela tenha maior ou menor peso que o esperado. Independente

do seu peso real, eu sei que só saberei ao constatar na balança83

. Eu não poderei

constatar seu peso usando uma fita métrica. Se assim o fizesse, seria um contrasenso.

Usar a balança para constatar o peso real da mulher é estar no mesmo espaço lógico da

proposição enunciada inicialmente.

Wittgenstein alude aqui à questão do sentido proposicional. Assim como no

Tractatus, tem que haver uma conexão entre a linguagem e a realidade. Caso não haja

conexão entre ambas, não há sequer sentido em minha proposição. A diferença é que

nas Observações Wittgenstein pensará na perspectiva de espaços lógicos distintos.

Desta forma, só há sentido quando a proposição e a realidade se encontram no mesmo

espaço lógico.

O termo “espaço lógico” pode ser substituído em alguns contextos por outro

termo muito utilizado por Wittgenstein: “gramática”. Cada espaço lógico institui sua

própria gramática. Quando Wittgenstein diz no início do capítulo IV das Observações

que “o octaedro das cores é gramática”, ele está assemelhando os conceitos de espaço

lógico e gramática. Vejamos um bom exemplo na continuação de sua reflexão:

Se posso somente ver algo preto e dizer que não é vermelho, como sei

que não estou dizendo um contrasenso, isto é, que poderia ser vermelho, que

há vermelho? (Capítulo IV, parágrafo 39).

83

A constatação na balança não é importante na constituição do sentido da proposição. O objetivo aqui é

mostrar o que é espaço lógico; por isso estou usando exemplos da vida prática.

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

84

O ponto de semelhança é o da significatividade da proposição. Explicando

melhor: ao ver algo preto e dizer que este algo não é vermelho, percebemos a conexão

entre as duas cores num mesmo espaço. Isto quer dizer que a gramática aqui diz respeito

ao espaço colorido aludido antes. Quando analisamos uma proposição fazemos isso

levando em conta todas as suas conexões sintáticas. Neste caso, não sei apenas que a

coisa analisada não é vermelha, mas que não é nenhuma das outras cores do octaedro.

O fato é que cada proposição tem o seu método de verificação. Isto quer dizer o

seguinte: ao tomarmos uma determinada proposição saberemos quais métodos possíveis

de verificação iremos utilizar. Uma proposição pode estar contida em diversos espaços.

E quando aferimos esta proposição à realidade estaremos aferindo diversos espaços

simultaneamente. Um estado de coisas é verificado de diversas maneiras, sendo levado

em conta sua posição espacial, sua forma geométrica, sua cor e outras coisas mais. Aqui

devemos atentar para o fato de que cada estado de coisas pode ser aferido através de

vários espaços.

Aqui há, claramente, ainda uma idéia de figuratividade da linguagem. O ponto

de discordância é que cada figuração será bem sucedida na medida em que ela conseguir

apreender o espaço lógico do afigurado, do estado de coisas. Como diz Wittgenstein:

Não se pode procurar de maneira errônea; não se pode procurar uma

impressão visual com o sentido do tato (capítulo IV, parágrafo 43).

O que isso quer dizer? Dentre outras coisas, que o projeto de uma linguagem que

determina aprioristicamente a forma lógica do mundo não é mais possível. A linguagem

passa a ser múltipla, tendo sua forma lógica determinada a posteriori.

Essa leitura sugere uma adaptação da teoria da figuração do Tractatus. E na

verdade é isso o que ocorre mesmo. O que mudou foi a importância dada aos estados de

coisas. O sentido não pode mais ser determinado a priori, pois não existe um único

espaço de possibilidades lógicas. Nas Observações, Wittgenstein descreve algumas

possibilidades de afiguração, não estabelecendo um corpo doutrinário que elenca todas

as possíveis formas.

2. Os diversos Espaços Lógicos

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

85

Essa importância dada à verificação não significa que Wittgenstein tenha

concordado com a idéia de “verificabilidade” dos positivistas. Esses defenderam que

para que uma proposição tenha sentido é necessário que ela seja verificável na

realidade.

A idéia de verificação de Wittgenstein é diferente, pois ele não está dizendo que

só tem sentido uma proposição que seja possível verificar na realidade. Ser verificável,

neste sentido wittgensteiniano, é pertencer a um espaço lógico específico. Este espaço é

um espaço de possibilidades e de incertezas. Quando verificamos uma proposição, o

fazemos mediante as regras deste determinado espaço. Esta verificabilidade não se

compromete com o empirismo, embora haja espaços que são empíricos.

Apenas para derrubar esta tese que identifica os conceitos de “verificação” de

Wittgenstein ao dos positivistas, poderíamos dizer que existem espaços que são

abstratos. Exemplos destes espaços são o algébrico, o aritmético e o geométrico. Nestes

espaços a verificação será diferente da verificação de espaços empíricos. Exemplos de

espaços empíricos são o auditivo, o táctil e o visual. Aqui claramente temos métodos de

verificação diferentes.

Essa distinção mostra a diferença entre conglomerados de espaços lógicos. Mas

no interior do conglomerado dos espaços empíricos também podemos perceber

distinções de outra natureza. Os espaços da física, espaço do cotidiano e espaço da

experiência imediata são diferentes entre si. Cada um dos espaços possíveis do

conglomerado empírico (auditivo, táctil e visual) pode ser verificado destas três

maneiras citadas agora. Fenômenos visuais podem ser verificados a partir do espaço da

física, do espaço do cotidiano ou do espaço da experiência imediata. Os outros espaços

também podem se subdividir nestas três maneiras.

Wittgenstein fala destas possibilidades de verificação nas Observações. Quando

verificamos tais fenômenos (abstratos ou empíricos), apreendemos o sentido das

proposições84

. O sentido de uma proposição é concernente ao espaço lógico ao qual ela

pertence. Uma figuração que não se encontra no mesmo espaço lógico do estado de

coisas que ela representa será um contrasenso. “O azul é mais alto que o verde” é um

84

Diversas vezes falamos de sentido e significado como sinônimos. Wittgenstein não faz mais a distinção

que fizera no Tractatus, como se elas fossem coisas diferentes. Aqui eles são intercambiáveis.

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

86

contrasenso, pois claramente há uma confusão entre os elementos da proposição. A

relação “é mais alto que” não pode ter como argumentos “azul” e “verde”.

Nos capítulos VIII e IX das Observações, Wittgenstein irá desenvolver o

conceito de “espaço lógico”. No capítulo VIII ele toca nos pontos cruciais que já havia

desenvolvido no artigo de 1929.

Neste capítulo ele remonta ao argumento de que números não podem ser

desmembrados das proposições elementares. Também defende que tais proposições

podem se contradizer, confirmando o que já fora exposto acerca da interdependência

destas proposições. Tal interdependência se comprova quando Wittgenstein fala de uma

vara de graduações. Esta vara representa o espaço lógico que contêm todas as

proposições possíveis, todas as suas graduações. Quando comparamos uma proposição

com a realidade não a comparamos independentemente, mas em composição com todas

as outras. Nas palavras de Wittgenstein:

O fato de uma medida estar certa exclui automaticamente todas as

outras. Digo automaticamente: assim como todas as marcas de graduação

estão em uma vara, assim também as proposições que correspondem às

marcas de graduação estão juntas, e não podemos medir com uma delas sem

medir simultaneamente com todas as outras. – O que aplico com um padrão à

realidade não é uma proposição, mas um sistema de proposições (capítulo

VIII, parágrafo 82).

Cada espaço é, portanto, completo em si, pois ele traz todas as possibilidades de

verificação. Wittgenstein alude claramente aqui a uma diversificação de espaços. O

método de verificação só será adequado quando o afigurado e a figuração se

encontrarem no mesmo espaço. Wittgenstein afirma isso quando diz que “tenho que

estar no espaço em que se encontra aquilo que se deve esperar”85

. Outro exemplo de

espaço é o espaço da dor. Ele afirma que dor não é uma graduação, mas que é o próprio

espaço. Proposições que falam de determinadas dores são graduações deste espaço.

No capítulo IX Wittgenstein fará uma crítica às teses de Frege e de Russell. O

problema destas teorias, segundo Wittgenstein, é que elas engessam suas análises, i.e.,

tratam a forma lógica como se fosse única. Em Frege, por exemplo, Wittgenstein critica

85

Capítulo VIII, parágrafo 82, pág. 94.

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

87

a utilização das palavras “conceito” e “objeto”. Segundo ele, estas palavras são

maneiras diferentes de dizer “sujeito” e “predicado”. Já desde o artigo de 1929 ele

negara que esta fosse a única forma lógica existente. Mesmo reconhecendo que

descrevemos comumente segundo esta forma, ele defende que isto é apenas uma

maneira de representar. Novamente ele repete o que já estava contido no artigo de 1929.

Ele diz que esse tipo de utilização da forma sujeito-predicado é análoga à representação

que fazemos de figuras no plano I para o plano II. Podemos representar círculos com

elipses e quadrados com retângulos.

Já em Russell ele criticará sua teoria das descrições definidas. Para Wittgenstein,

“há um certo sentido em que um objeto não admite descrição”86

. Em certo sentido, a

nomeação dos objetos é bem sucedida. Por exemplo, imaginemos três objetos com

cores, tamanhos e formas idênticas. Acaso eu feche os olhos e os abra em seguida não

poderei afirmar se os objetos se encontram no mesmo lugar de antes. Entretanto, se eu

os nomeio, não haverá problema, pois mesmo que eu feche e abra meus olhos em

seguida, saberei se os objetos mudaram ou não de lugar. O que Wittgenstein quer é

mostrar que existem muitas maneiras de utilizar as palavras, pois as formas lógicas

também são diversas. Ele também critica a utilização de termos que representem os

verdadeiros nomes lógicos. “Isto” pode se reportar a objetos de espaços diferentes e

que, portanto, também terão formas lógicas diferentes. Desta forma, “conceito, objeto,

nomes e descrições” podem ter muitas aplicações, muitas significações. Não poderá

haver restrições a priori na aplicação de determinados termos. Eles poderão se

comportar de muitas maneiras distintas, cabendo analisar em que espaços estarão

contidos tais termos no momento da análise. Wittgenstein exemplifica para mostrar que

a forma lógica muda: “A mancha muda de forma” e “O torrão de argila muda de forma”

têm formas lógicas diferentes. Tanto a palavra “forma” tem significados diferentes,

como as formas das proposições são diferentes, embora pareçam ser as mesmas.

Essa noção de espaço lógico é a marca da fase de transição de Wittgenstein.

Com esta ele refutará sua tese atomista. A tese atomista tem uma lógica que se baseia na

fragmentação, na percepção isolada de unidades simples. Basta lembrar aqui a tese da

independência lógica das proposições elementares e dos estados de coisas. Não havia

conexões entre eles que determinassem ou contradissessem estas estruturas. Quer dizer,

86

Capítulo IX, parágrafo 94, pág. 100.

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

88

as proposições elementares não se implicavam entre si. Uma proposição elementar não

determinava nem contradizia outra proposição elementar.

O problema dessa tese é que ela não possibilita a visão do todo. Ela não permite

perceber as conexões internas entre as proposições elementares ou estados de coisas.

Assim fala Wittgenstein sobre isto:

Um intelecto que apreende as partes componentes e as relações entre

elas, mas não apreende o todo, é uma noção sem sentido (capítulo XX,

parágrafo 205).

Essa visão do todo é o que podemos chamar de uma tese holista. No caso de

Wittgenstein, o consideramos como um holista semântico, pois foi a partir da análise da

proposição elementar que ele percebeu as conexões existentes entre as estruturas

atômicas.

Assim, a mudança de paradigma de Wittgenstein recai numa concepção holista

da linguagem. O ponto crucial para sustentarmos tal concepção em Wittgenstein se

fundamenta com a noção de espaço lógico. Cada espaço é como uma régua de

proposições. Cada proposição está conectada com todas as demais proposições do seu

espaço. Desta maneira, quando enunciamos algo sobre a realidade, nós enunciamos

conjuntamente uma multiplicidade de proposições internas conectadas. Quando dizemos

“x é azul”, também estamos a dizer que “x não é vermelho”, “x não é verde”, “x não é

amarelo”, etc.

Além disso, com a noção de que os espaços são diferentes não cabe também

criarmos uma teoria da significação. Ter ou não sentido depende do espaço em questão.

Não podemos dotar de sentido uma proposição que não se encontra no mesmo espaço

lógico do que é afirmado. Para cada espaço há um método de verificação específico.

Não podemos misturar componentes de espaços diferentes. “O azul é mais alto que o

vermelho” não faz sentido, já que se encontram em espaços lógicos diferentes. Temos

aqui os espaços coloridos e o de comprimento se misturando e isso é um erro. Por isso

Wittgenstein diz que uma pergunta indica qual o método de verificação adequado. Ele

também diz no parágrafo 150 que toda proposição indica seu método de verificação:

Toda proposição é uma instrução para uma verificação.

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

89

A visão atomista do mundo é abandonada por não possibilitar ver estas conexões

entre as partes. Em seu projeto atual (Observações) Wittgenstein irá mostrar porque o

abandonara. O TLP apresenta o mundo e a linguagem atomicamente, desconsiderando

as conexões existentes entre os componentes destes. Ao tentar solucionar o problema

suscitado em seu TLP ele pensa na constituição de uma linguagem que descreveria os

fenômenos de forma imediata. Contudo, ele mesmo percebera que uma linguagem

primária apresenta uma série de outros problemas.

Então vejamos no próximo capítulo essa crítica que o próprio Wittgenstein

inflige a si mesmo.

3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica

Ao falar da impossibilidade de uma linguagem fenomenológica, parece-nos que

esta fica condenada ao ostracismo, pois Wittgenstein negara a possibilidade de uma

linguagem primária. O método de verificação de uma proposição é o próprio sentido da

mesma. Toda proposição que pode ser verificada tem um sentido. Assim, poderíamos

nos perguntar: por que Wittgenstein diz que já não vislumbra mais um projeto de

linguagem fenomenológica, já que estas proposições são verificáveis? A resposta é

difícil, pois encontramos duas possibilidades de leitura.

A primeira leitura é a de que Wittgenstein radicaliza ao negar a possibilidade de

uma linguagem fenomenológica. Decerto, como dirá mais tarde, Wittgenstein (2009,

pág. 43) vai preservar a significância de problemas fenomenológicos, embora venha a

dizer que uma fenomenologia não seja possível:

Embora não haja uma fenomenologia, há decerto problemas

fenomenológicos.

Nos capítulos V, VI e VII das Observações ele aponta vários problemas para se

defender uma tal linguagem. Wittgenstein percebe alguns problemas na concepção de

linguagem fenomenológica a partir da análise do termo indexical “eu”. Como é possível

representar o olho que vê? Nas palavras de Wittgenstein:

Uma das formas de representação mais enganadoras de nossa língua é

o uso da palavra “eu”, particularmente quando empregada na representação

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

90

da experiência imediata, como em “posso ver uma mancha vermelha”

(Capítulo VI, parágrafo 57).

O filósofo aponta para alguns problemas de uma linguagem fenomenológica,

como é o caso da representatividade de termos indexicais. Afinal de contas, como

podemos ter uma experiência imediata com algo como “eu”? A partir disso, é notório

em Wittgenstein muitas alusões à linguagem da física, deixando perceber uma clara

associação desta com a linguagem cotidiana. Quer dizer, ela busca a objetividade,

embora seja passível de uma série mudanças e revisões a partir de algumas variáveis.

Por outro lado, na segunda possibilidade de leitura, percebemos uma conservação da

linguagem fenomenológica. Quando Wittgenstein fala do espaço visual no capítulo VII,

ele permite que as duas linguagens (primária e secundária) descrevam

significativamente o espaço visual. Se a descrição levar em conta o sujeito ou o olho de

quem vê, então a descrição vai ser de uma linguagem secundária; mas se ela não levar

em conta nenhum sujeito ou olho, então a linguagem é primária. O fato se deve ao

seguinte: a linguagem fenomenológica descreve os fenômenos sem considerar nada que

manifeste um estado hipotético. Esta concepção se remete à descrição dos dados puros,

ou, dito de outra forma, ela pretende descrever objetivamente os fenômenos.

A linguagem primária é uma maneira de descrever os fenômenos objetivamente,

não se valendo de elementos hipotéticos como se fossem dados imediatos. Uma

linguagem dessa natureza se desprende de elementos psicologistas (ao menos numa

perspectiva idealista)87

.

O problema fica nítido ao fazermos uma descrição da memória. É possível que a

memória de alguém consiga descrever todas as impressões sensoriais deste alguém.

Essa descrição sugere que o evento tenha ocorrido tal como descrito, como se fosse uma

fotografia do fato em questão. Acontece que essa descrição é uma descrição presente

que acredita descrever objetivamente um fato que já ocorreu. O ponto importante é: é

possível descrever objetivamente o tempo? Ou melhor, podemos descrever os instantes

temporais? Essa reflexão levou Wittgenstein a se questionar acerca da possibilidade de

uma linguagem fenomenológica, pois de fato o tempo não poderia ser representado

87

De certo modo, a fenomenologia é subjetivista, pois defende a predominância intuitiva do sujeito frente

ao objeto. No entanto, ela se define como objetiva, pois esta intuição ocorre no nível intersubjetivo,

negando assim o subjetivismo aparente.

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

91

adequadamente. Por exemplo: quando se está descrevendo fenomenologicamente, o

tempo necessário para a descrição é também descrito?

O fato importante para Wittgenstein é seu entendimento de que o mundo é um

fluxo de instantes. A nossa linguagem só pode descrever esse mundo. Mas o mundo

sabidamente é temporal. Então surge uma pergunta bastante perspicaz: como pode uma

linguagem atemporal (como a linguagem fenomenológica) afigurar um mundo temporal

(devendo-se levar em conta que não é possível não figurar o mundo)? Outra maneira de

encarar o problema é sugerida por Wittgenstein:

Se o mundo dos dados é atemporal, como podemos falar dele?

A corrente da vida – ou a corrente do mundo – está em constante

fluxo, e as nossas proposições são, por assim dizer, verificadas em instantes

(desse fluxo)88

.

Essa maneira inverte a ordem. Se o mundo é atemporal, como podemos falar dele com

uma linguagem que é temporal?

A questão do tempo é de fato perturbadora vista desta maneira. Wittgenstein, no

entanto, cria uma metáfora que nos ajuda a entender a confusão. A metáfora do filme e

da tela nos faz entender as diferenças de concepções. Ele faz uma alusão de que a

linguagem fenomenológica é como a imagem da tela, enquanto que a linguagem da

física é como a imagem da tira do filme. Nesta metáfora ele mostra que o tempo pode

ser tratado por concepções diferentes. O tempo da física não é, portanto, igual ao tempo

do dado.

Talvez toda a dificuldade advenha da transferência do conceito de

tempo do tempo da física ao mundo da experiência imediata. É uma confusão

entre o tempo da tira de filme e o tempo da imagem projetada. Pois “tempo”

tem um significado quando consideramos a recordação a fonte do tempo e

outro diferente quando a configuração uma imagem (figuração) preservada de

um evento passado89

.

Quer dizer que estas concepções de tempo são diferentes, mas não excludentes.

O problema é quando não percebemos qual imagem estamos olhando; se é a imagem da

88

Observações, capítulo V, parágrafo 48, pág. 65. 89

IBID. capítulo V, parágrafo 49, pág. 66.

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

92

tira do filme ou se é a imagem projetada na tela. Quando estamos na imagem da tira do

filme, percebemos claramente que as imagens têm uma sequência que podemos dizer

que é cronológica, pois podemos olhar na tira do filme as imagens anteriores e as

imagens sucessoras daquela que está sendo projetada no momento. No âmbito da

linguagem da física podemos dizer que há uma representação do tempo em presente,

passado e futuro. Por outro lado, no âmbito da linguagem fenomenológica não podemos

dizer que há uma divisão do tempo em passado, presente e futuro, pois a imagem da tela

é sempre presente. Se olharmos apenas a imagem da tela, teremos sempre um acesso

presente do dado, pois não é possível recordarmos o passado ou anteciparmos o futuro.

Essa imagem é contínua, não havendo uma quebra em instantes. Quando estamos no

âmbito de tal linguagem temos acesso ao dado puramente, ou seja, objetivamente, sem

levar em conta a variável do tempo. A idéia implícita aqui é a de que a linguagem

fenomenológica é composta de fotografias da realidade. A tela sempre mostra algo

atual, que se mostra tal como é de fato.

Essas figurações são representações da realidade, o que não quer dizer que sejam

verdadeiras ou falsas. Quer dizer, simplesmente, que elas são verificáveis, ou seja, que

elas apontam para uma verificação em algum espaço lógico. O sentido destas

proposições (fenomenológicas) está justamente nessa verificabilidade. A proposição

capta o fato figurado como estático, não sendo capaz de prever suas possibilidades de

mudanças, pois sabidamente ela não é capaz de figurar a fluidez de tal fato. Na verdade

não faz nenhum sentido assumir que a realidade é fluida no âmbito da linguagem

fenomenológica. O sentido diz respeito à sua verificação. Se a proposição não pode ser

verificada ela é claramente um contrasenso.

As regras sintáticas nos dois domínios são diferentes. Desta maneira, a grande

confusão em filosofia, diria Wittgenstein, estaria em confundir essas regras.

Comumente queremos usar as regras sintáticas da linguagem da física no âmbito

fenomenológico, gerando inúmeras confusões no que diz respeito ao sentido das

proposições.

Podemos falar de acontecimentos presentes, passados e futuros no

mundo da física, mas não de imagens (figurações) presentes, passadas e

futuras, se o que estamos chamando de imagem (figuração) não for mais um

tipo de objeto físico (digamos, uma imagem {figuração} física que toma o

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

93

lugar do corpo) mas precisamente aquilo que está presente. Assim, não

podemos usar o conceito de tempo, isto é, as regras sintáticas que são válidas

para os nomes de objetos físicos, no mundo das imagens (representações),

isto é, não o podemos usar no lugar em que adotamos uma maneira

radicalmente diferente de falar90

.

Existe uma clara distinção entre as duas perspectivas, que comumente são

misturadas ou tratadas como sendo a mesma. O problema é exatamente não reconhecer

essa diferenciação entre essas abordagens. As regras sintáticas mudam de uma para a

outra. O conceito de tempo é muito importante para acentuarmos as diferenças de

abordagem entre as duas linguagens, pois Wittgenstein quer purificar as formas de

afigurar o mundo.

Um exemplo dele próprio é o da recordação. Quando recordamos um fato

ocorrido no passado, não estamos recordando algo que não é mais. A rigor, esse fato

recordado é algo presente, uma descrição de algo que é para o sujeito, exatamente como

a imagem que aparece na tela. Não é possível atribuir essa recordação ao tempo

passado, se o que vemos é simplesmente uma imagem atual na nossa memória. Como

poderíamos dizer que isso pertence ao passado se não conseguimos captar o movimento

ou a fluidez?

Podemos, é claro, dizer: não vejo o passado, somente uma figuração

do passado. Mas como sei que é uma figuração do passado a menos que isso

pertença à natureza de uma figuração via-recordação91

?

A recordação é uma descrição de um evento presente na memória, pois nos é impedido

atribuir a tal fato afigurado a caracterização de “passado”. Eis um ponto de partida para

a solução wittgensteiniana. No mundo da física lidamos com objetos físicos. Quando

representamos tais objetos, estamos representando como as imagens da tira de filme.

Neste âmbito é permitido fazer referência ao tempo passado ou ao tempo futuro.

Quando olhamos para a imagem da tela não podemos ver as imagens que passaram ou

mesmo a imagem que virá. Caso se queira ter acesso às imagens passadas ou futuras,

teremos que pegar a imagem projetada na tela na tira de filme. Então poderemos ver ou

90

IBID, págs. 66s. 91

IBID, parágrafo 50, pág. 67.

Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

94

a imagem que já passou ou a imagem que ainda há de vir. E essa é exatamente a

diferença das duas linguagens para Wittgenstein. Ele diz isso no parágrafo 51:

Se comparo os fatos da experiência imediata com as imagens na tela e

os fatos da física com imagens da tira de filme, há nesta última uma imagem

presente e imagens passadas e futuras. Mas há na tela somente o presente.

Tem sentido dizer que os acontecimentos futuros são pré-formados se

pertence à natureza do tempo ele não se romper. Pois então podemos dizer:

acontecerá algo; só não sei o quê. E no mundo da física podemos dizer isso.

Na linguagem da física, podemos falar de lembranças que são vagas em nossa

memória. Podemos também fazer previsões que achemos as mais verossímeis possíveis.

Não é o mesmo caso com a linguagem imediata. Nesta linguagem apreende-se o

fenômeno completamente, verdadeira ou falsamente. Não podemos descrever

fenomenologicamente usando verbos como “parecer”, “achar” ou mesmo “lembrar”;

como “eu me lembro que...”, ou “parece que foi assim...”, pois estaríamos incorrendo no

erro de confundir as especificidades de cada linguagem. Cada uma das linguagens

afigura ou descreve diferentemente. O fato de serem diferentes diz respeito ao sentido

proposicional. A linguagem fenomenológica não é mais precisa que a linguagem da

física, e vice-versa. Nenhuma das duas afigura ou descreve verdadeira ou falsamente. A

imagem que pode ajudar é a seguinte: uma figura da linguagem imediata se assemelha a

um retrato (fotografia); enquanto que uma figura da linguagem da física se assemelha a

uma pintura.

Na linguagem imediata afiguramos como se fosse uma fotografia. Essa foto, no

entanto, é tirado sempre de um ângulo x. Ao tirarmos a foto de um determinado ângulo

podemos deixar de fora muitos pontos importantes para o reconhecimento de tal figura.

Podemos mesmo ainda distorcer a imagem devido ao ângulo, à luz, à lente ou outras

variáveis. Podemos então dizer que essa figuração nem é verdadeira nem falsa, pois

claramente não temos como determinar isso apenas olhando para a imagem. Na

linguagem da física, afiguramos como se fosse uma pintura. Igualmente sabemos que a

representação da imagem é insuficiente para que possamos determinar se o fenômeno

representado é verdadeiro ou falso. A pintura tem muitas variáveis, como as cores, as

formas dos objetos, o posicionamento destes e outras mais. Todas essas variáveis são

escolhidas pelo sujeito que pinta, por alguém que representa o fenômeno. No retrato não

Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

95

há distorções de imagens, pois a lente capta o que se apresenta a ela. Numa pintura

podemos fazer distorções, caricaturas ou mesmo incluir objetos que não pertencem ao

fenômeno92

.

Destarte, o que está em jogo na filosofia de Wittgenstein, nesse período de

transição, não é uma linguagem que possa ter seus valores de verdade determinados

aprioristicamente. O que ele salienta é que as proposições sejam verificáveis em algum

espaço lógico, ou seja, o importante é que as proposições (figurações) tenham sentido.

Isso equivale a dizer que toda proposição é verificável em algum espaço de

possibilidades.

Wittgenstein quer mostrar que cada proposição se associa com outras

proposições, como se cada espaço lógico fosse um feixe de proposições. Quando

enunciamos algo sobre um fenômeno, na verdade estamos enunciando um sistema de

proposições. Esse feixe de proposições é formado por todas as proposições possíveis do

espaço lógico em questão. As regras sintáticas de cada espaço lógico não são

apresentadas por Wittgenstein, pois cada espaço tem suas regras próprias. A proposição

que enuncia algo sobre algo traz implícito seu método de verificação. Ao menos ele não

pensa em uma teoria que nos dê o método de verificação de cada proposição. É algo

similar às regras do jogo. Não adianta saber as regras a priori, pois isso não garantirá

que se aprenderá a jogar. A idéia é que “se verifica verificando”, ou, dito de outra

forma, “se aprende a jogar jogando”. A redundância é apenas para mostrar que não é

possível dominar uma técnica sem a utilização da própria técnica. Outro exemplo, que

por sinal é mais simplório, é o de um garoto que tem que aprender a andar de bicicleta.

Mesmo que ele saiba de todas as informações necessárias para andar de bicicleta, como

a postura adequada, a velocidade, a interferência do ar, a utilização do freio e como

fazer uma curva, isso de nada valerá. Na verdade ele só dominará a técnica quando ele

mesmo se puser a andar, tendo que cair algumas vezes (possivelmente).

A comparação não é das melhores, mas objetiva mostrar que Wittgenstein não

pensou em construir uma teoria de como verificar as proposições. Aliás, aqui ainda

permanece o paradigma do Tractatus de que a forma lógica da proposição se mostra,

não cabendo teorizar sobre isso.

92

Aqui a idéia é apontar para as especificidades de cada linguagem, mostrando que a linguagem

fenomenológica é pertinente em determinados contextos.

Page 104: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

96

A questão que de fato é importante para nós é mostrar que essa forma lógica

pensada no Tractatus foi superada, pois agora ele entende que existem muitos espaços

lógicos, e não mais apenas um como pensado antes nesta obra. Por isso ficou muito

confusa a mudança de paradigma de Wittgenstein em seu período de transição.

Outra questão importante é o fato de Wittgenstein negar a linguagem

fenomenológica, aparentemente atribuída ao Tractatus. Essa atribuição, entretanto, é

facilmente desfeita quando nos voltamos ao texto tractariano e não encontramos

nenhuma pista de análise fenomênica. Aliás, esse projeto inicial se compromete apenas

com o nível lógico de constituição da significatividade de toda e qualquer linguagem.

Assim, devemos entender que a pretensão de uma linguagem primária só ocorre quando

ele volta a Cambridge em 1929. No entanto, pouco tempo depois ele percebe os

problemas de uma linguagem primária, parecendo preferir a linguagem hipotética

(secundária) da física93

.

Isso não quer dizer que não existam problemas fenomenológicos legítimos. O

texto das Observações é confuso por não apresentar uma superação completa da

linguagem fenomenológica, permitindo que as duas alternativas (linguagens primária e

secundária) se constituam como plausíveis, desde que observados os respectivos

contextos.

A linguagem do cotidiano é diferente. Wittgenstein a associa à linguagem da

física. No decorrer das Observações ele menciona esse fato, como se assim selasse o

fim da linguagem defendida por ele no seu período de apreciação da linguagem

fenomenológica. O viés deixa de ser o da linguagem imediata e passa a ser o da

linguagem cotidiana, que leva em conta os aspectos subjetivos, pragmáticos e

hipotéticos. De fato, a preferência de Wittgenstein é por esse tipo de linguagem, não

parecendo negar a possibilidade lógica de se afigurar fenomenologicamente. O que

ocorre com Wittgenstein é uma mudança de paradigma; e neste ele ampliará as

93

A esse respeito, ler e comparar o que diz PIRES DA SILVA (2000, pág. 87): “...quando Wittgenstein, a

partir da recusa, em 1929, de uma linguagem primária, dirige sua atenção para os aspectos gramaticais

da linguagem ordinária que poderiam perfazer a exposição das condições de possibilidade de

enunciados sobre os dados dos sentidos, constituindo-se na gramática das proposições da física”; e

também ver o que diz SILVA (2005, p. 70-72) acerca de não haver uma linguagem fenomenológica no

Tractatus.

Page 105: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

97

possibilidades de descrever ou afigurar os fenômenos significativamente. Nas palavras

de Wittgenstein94

:

Não há – como eu outrora acreditei – uma linguagem primária em

confronto com nossa linguagem cotidiana, a “linguagem secundária”. Mas

poderíamos falar de uma linguagem primária em confronto com a nossa na

medida em que a primeira não permitiria nenhuma maneira de exprimir uma

preferência por certos fenômenos a outros; teria de ser, por assim dizer,

absolutamente objetiva {neutra}.

Portanto, ele não nega a possibilidade de afigurar o dado imediatamente. O que

há é uma escolha por uma maneira de afigurar. Ele opta por afigurar com a linguagem

secundária, pois ela possibilita a utilização de aspectos negados por uma linguagem dos

dados imediatos. A negação desta linguagem se dá por esse viés, i.e., por ela não incluir

outros aspectos relevantes na concepção do próprio Wittgenstein. Como no Tractatus

ele já havia dito, a linguagem cotidiana não apresenta problemas para afigurar os

fenômenos. O que ele fez a partir deste período intermediário foi aderir a esse tipo de

figuração do mundo, i. e., a figuração feita por meio da linguagem cotidiana ou

linguagem secundária. Ele atesta assim que tal linguagem dá conta da transmissão de

sentido proposicional. O que determinará o sentido é o método de verificação usado, o

qual a própria proposição se encarregará de estabelecer o mais adequado possível.

As Observações são importantes, pois é aqui que percebemos a mudança

wittgensteiniana. Essa mudança começa com a noção de proposição elementar, mas

passa para o âmbito da linguagem como um todo. Ao falar de espaços lógicos, sistema

de proposições e sentido como verificabilidade, Wittgenstein estará lançando as bases

do projeto que só será desenvolvido em suas Investigações Filosóficas. Para isso, ele

teve que se dissociar do projeto atomista do Tractatus, pois sua concepção tardia veio

defender um holismo da linguagem.

94

Observações, parágrafo 53, pág. 68.

Page 106: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

98

Conclusão

Essa dissertação se concentra entre os dois períodos da obra de Wittgenstein,

quer dizer, ela se concentra em analisar o período da passagem do atomismo lógico para

o holismo semântico da obra wittgensteiniana. É claro que não poderíamos

simplesmente analisar o período mesmo da passagem, pois teríamos que conhecer o que

estava sendo rompido. A dissertação, desta forma, faz uma análise expositiva dos

pontos principais da tese do atomismo lógico apresentado no Tractatus de Wittgenstein.

1. O atomismo lógico e a dimensão lógica do Tractatus

Analisar o Tractatus não é tarefa fácil de ser feita, principalmente por ter

conceitos que são fáceis de ser confundidos com conceitos de outras áreas da filosofia,

sobretudo ontologia e epistemologia. Entretanto, o ponto que acentuei aqui foi a

dimensão completamente lógica da obra de Wittgenstein. Sua intenção nunca fora fazer

um trabalho epistemológico do Tractatus; aliás, isto parece ter sido um erro do projeto

russeliano, que havia conhecido as idéias de Wittgenstein antes deste publicá-las,

quando voltou da guerra de 1914-1918. O projeto de Wittgenstein sempre tivera uma

dimensão lógica, já manifestada antes da publicação do Tractatus, conforme as

anotações de seus Diários de 2.9.14 revelam: “A lógica deve cuidar de si mesma. Isso é

um conhecimento altamente profundo e importante”.

A lógica não pode dar conta das coisas que de fato ocorrem, mas tem que

delimitar o espaço de todas as possibilidades possíveis da realidade. O projeto

tractariano, desta forma, se caracteriza por delimitar os limites lógicos do real. Para

tanto, Wittgenstein teve que conceber o conceito de objetos lógicos. Os objetos lógicos

são inteiramente necessários na obra tractariana, pois do contrário não seria possível

estabelecer os limites da realidade. Os objetos são a substância do mundo para ele.

Como substância (todos eles juntos), eles são a matéria-prima lógica de qualquer mundo

possível. Alguém poderia objetar perguntando sobre a possibilidade do nascimento ou

criação de novos objetos. Aí poderíamos responder dizendo que mesmo estes já estão

contemplados por Wittgenstein, pois do ponto de vista lógico estamos a tratar de todos

os objetos existentes ao longo de todo o tempo.

Page 107: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

99

Não há surpresas em lógica. Fatos que ocorreram em 1630 ou em 1905 já

estavam inclusos no espaço lógico do mesmo jeito. A temporalidade não afeta o âmbito

lógico. Entretanto, esse conceito se tornou difuso, pois Wittgenstein nunca detalhou

como eram esses objetos. E aqui está um ponto importante de sua obra: os objetos não

podem mesmo ser descritos. Entendo que este é um erro costumeiro dos leitores do

Tractatus, pois estão a querer as explicações que qualquer leitor quereria. No entanto,

Wittgenstein parece não estar preocupado mesmo com isso. Sua idéia básica é

estabelecer os limites lógicos deste e de qualquer mundo possível, todas as

possibilidades de fatos, os estados de coisas. A lógica deve estabelecer todos os

possíveis fatos do espaço lógico. O nosso e os demais mundos são subconjuntos deste

espaço lógico. Aqui se cumpre o que ele prometera em seu prefácio, ou seja, traçar os

limites do pensar. Fora do espaço lógico não há pensamento, pois não é possível pensar

o ilógico.

Ainda de acordo com o prefácio, este limite se manifestará na linguagem. Assim

sendo, Wittgenstein constrói uma teoria da figuração lógica, onde mostra que todo e

qualquer estado de coisas será descrito por uma proposição elementar. Aqui temos a

estrutura atômica do Tractatus. Por um lado temos todas as possibilidades de fatos da

realidade, os estados de coisas; por outro lado, temos todas as descrições destes estados

de coisas, as proposições elementares.

A maneira de sabermos que uma proposição elementar descreve corretamente

um estado de coisas qualquer é sua forma lógica. Esta também foi uma constatação de

Russell. A diferença do projeto tractariano é que este não concebia uma demonstração

da forma lógica. O projeto de Russell encontrou sérios problemas ao tentar fazer isto.

Wittgenstein propõe sua tese do mostrar, onde a forma lógica se manifesta a nós. É

como se ela fosse auto-evidente. Assim, uma proposição elementar tem sentido por

descrever corretamente um estado de coisas95

; e isto é tudo o que ela precisa para ser

uma proposição significativa. A noção wittgensteiniana do mostrar é a solução para o

problema da forma lógica. Não é necessário demonstrar a forma lógica de uma

proposição, pois ela simplesmente se mostra ao sujeito racional.

95

Uma descrição correta, nesse sentido, diz respeito a uma proposição elementar que capta a forma do

afigurado, seu estado de coisas. Não quero dizer que sejam proposições elementares verdadeiras, pois as

falsas também podem ser significativas.

Page 108: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

100

Essa identificação de ambos (proposição elementar e estado de coisas) só

acontece devido à forma lógica, pois elas têm manifestações acidentais diferentes.

Linguagem e Mundo são isomórficos; e é por isso que não podemos dizer que há uma

identidade total, pois assim não seriam duas estruturas, mas apenas uma. A isomorfia

consiste na partilha da mesma forma lógica por ambas as estruturas. A linguagem

representa o mundo logicamente; e só o faz por compartilhar a mesma forma lógica com

ele (o mundo). Quando falamos de identidade entre ambas as estruturas isso se deve ao

fato de que cada objeto no estado de coisas será nomeado adequadamente por um nome

na proposição.

Outro ponto importante desta apresentação é a tese da independência dos estados

de coisas e das proposições elementares. Esta tese diz que um estado de coisas é

completamente independente dos demais. Um estado de coisas não afeta em nada os

demais. Isso quer dizer que não há nenhum tipo de dependência entre tais estados de

coisas. Aqui se evidencia a negação de Wittgenstein por qualquer teoria de pressupostos

holísticos. O sentido das proposições elementares fica salvaguardado dos ataques

holistas, pois para ter sentido a proposição só precisa afigurar corretamente um estado

de coisas.

Esse ponto é bem importante, pois é precisamente aqui que ocorrerá a mudança

do paradigma wittgensteiniano. Ele retornou à filosofia depois de ter ficado muito

tempo distante desta. Quando retorna, sua principal alteração se dá naquilo que era um

dos pilares de seu atomismo, a saber, a tese da independência dos estados de coisas, e,

consequentemente, das proposições elementares.

2. Os espaços lógicos e o Holismo Semântico

A mudança ocorre quando Wittgenstein publica seu artigo de 1929, Algumas

Observações sobre a Forma Lógica. Neste artigo, ele apresenta uma mudança na

concepção de proposição elementar. Na versão antiga de sua teoria, as proposições

elementares eram totalmente independentes, conforme já vimos acima. Aliás, o

atomismo não poderia se sustentar sem essa concepção. Esse foi um golpe de mestre de

Wittgenstein. Com efeito, foi a maneira que ele encontrou para sustentar sua visão de

Page 109: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

101

mundo atomista. Sua convicção no atomismo era muito forte, e daí ele encontrou

soluções para proteger sua convicção fundamental.

Entretanto, em sua fase mais madura, Wittgenstein percebeu um erro em seu

projeto inicial. O ponto de discordância era a sua noção de proposição elementar. Para

falar desta questão, divido o argumento em dois pontos:

1) A admissão dos números nas proposições elementares. Wittgenstein diz que na

visão antiga ele achava que os números não faziam parte das proposições

elementares. Números faziam parte de proposições complexas, devendo ainda

ser decompostas em proposições elementares. No entanto, ele percebe que

proposições com números não podem ser decompostas. O exemplo que ele dá é

o da cor vermelha. Se tomarmos uma amostra da cor vermelha (3V),

perceberemos que não se poderá decompor em unidades menores. Se assim o

fizermos, estaremos criando três unidades distintas. Os números têm que fazer

parte das proposições elementares, não sendo possível eliminá-los destas. Essa

tese desembocará no segundo tópico desta análise.

2) A partir desta conclusão, ficava impossível continuar defendendo a

independência das proposições elementares. É fácil entender isso: Wittgenstein

percebe que existe uma dependência lógica entre as proposições elementares.

Quando dizemos que “a parede da sala é amarela” isto supõe que ela não tem

nenhuma outra cor do espectro das cores. Ele muda completamente em relação

ao que expôs no Tractatus, pois nesta obra as proposições eram independentes

logicamente. A partir do período intermediário ele percebe que a forma lógica

das proposições diverge, pois os espaços lógicos também divergem. Ele defende

que cada proposição está inserida em um espaço lógico específico, havendo uma

dependência lógica entre todas as proposições que pertencem a este espaço

lógico. Assim, todas as proposições que falam de cores se encontram no espaço

das cores, toda proposição que trata de espaço se encontra no espaço lógico

espacial, e assim por diante.

O ponto importante desta dissertação é, portanto, apresentar as características do

atomismo lógico de Wittgenstein, e, consequentemente, apresentar o desencadeador da

grande mudança da filosofia do mesmo no período intermediário. Essa mudança o

Page 110: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

102

conduz em direção ao holismo semântico defendido por ele anos mais tarde, sobretudo

em suas Investigações Filosóficas.

Page 111: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

103

Referências Bibliográficas

BARROSO, CÍCERO A. C. O Tractatus Logico-Philosophicus: Teoria e crítica da

linguagem. 2002. 157f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia,

Universidade Federal do Ceará, Fortaleza.

FREGE, GOTTLOB. Sentido e Referência. In: ALCOFORADO, PAULO. Lógica e

Filosofia da Linguagem. São Paulo: Ed. Cultrix, 1978. Págs. 59-86.

_________________ Sobre o Conceito e o Objeto. In: ALCOFORADO, PAULO.

Lógica e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Ed. Cultrix, 1978. Págs. 87-103.

GLOCK, HANS-JOHANN. Dicionário Wittgenstein. Trad. Helena Martins. Revisão

técnica, Luís Carlos Pereira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. 398 p.

GRIFFIN, JAMES. O Atomismo Lógico de Wittgenstein. Trad. Marina Ramos

Themudo e Vítor Moura. Portugal: Porto Editora, 1998. 219 p.

HINTIKKA, MERRILL B. HINTIKKA, JAAKKO. Uma Investigação sobre

Wittgenstein. Trad. Enild Abreu Dobránszky. Campinas-SP: Ed. Papirus, 1994. 399 p.

IMAGUIRE, GUIDO. Dos Nomes aos Jogos, in IMAGUIRE, G. et al. Colóquio

Wittgenstein. Fortaleza: edições UFC, 2006. Cap. VIII, págs 155-176.

__________________ O Platonismo de Russell na Metafísica e na Matemática. Belo

Horizonte: Revista Kriterion, nº 111, págs. 9-28.

KANT, IMMANUEL. 1781. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Editora Nova Cultura,

1999. 511 p.

LOCKE, JOHN. Ensaio sobre o Entendimento Humano. Coleção Os Pensadores. São

Paulo: Abril Cultural, 1973.

PEARS, DAVID F. As Idéias de Wittgenstein. Trad. Octanny Silveira da Mota e

Leônidas Hegenberg. São Paulo: Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973. 187

p.

Page 112: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

104

PIRES DA SILVA, JOÃO CARLOS SALLES. Sobre a Gramática das Cores em

Wittgenstein. In: Ideação. Feira de Santana, n.4, p.87-94, jan./jun. 2000.

____________________________________________ Uma certa Fenomenologia em

Wittgenstein. In FERREIRA, ACYLENE MARIA CABRAL. Fenômeno e Sentido.

Salvador: Quarteto editora, 2003, pags. 47 – 56.

PRADO NETO, BENTO. Fenomenologia em Wittgenstein. Tempo, Cor e Figuração.

Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. 166 p.

RUSSELL, B. Da Denotação.Trad. Pablo Ruben Mariconda. São Paulo: Abril Cultural.

Coleção Os Pensadores, 1974. Págs. 9-20.

___________ Introdução. In: Tractatus Lógico-Philosophicus. 3ª Ed. São Paulo: Edusp,

2001. Págs. 113-128.

___________ Theory of Knowledge, The 1913 Manuscript. London: Allen & Unwin,

1984.

SANTOS, LUIZ HENRIQUE LOPES DOS. A Essência da Proposição e a Essência

do Mundo. In: Tractatus Logico-Philosophicus. 3ª Ed. São Paulo: Edusp, 2001. Págs.

11-112.

SILVA, JOSÉ FERNANDO DA. É Fenomenologia a Linguagem do Tractatus? In:

Educação e Filosofia – 19 – nº37, p.69-83, jan./jun. 2005.

WITTGENSTEIN, L. Algumas Observações sobre a Forma Lógica. Trad. Darlei Dall‟

Agnol. México: Revista Analogia [s.d.]. Págs. 38-47.

___________________ Anotações sobre as cores. Apresentação, estabelecimento do

texto, tradução e notas por João Carlos Salles P. da Silva. Campinas: Ed. Unicamp,

2009. 208 p.

___________________ Diários 1914-1916. Trad. Guido Imaguire. Inédito [s.n.t].

___________________ Investigações Filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo:

Ed. Abril S.A. Cultural e Industrial, 1975. 226 p.

Page 113: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE ARTE E … · Os Diversos Espaços Lógicos..... 84 3. A Impossibilidade de uma Linguagem Fenomenológica ... divididos em dois grandes

105

___________________ Observações Filosóficas. Trad. Adail Sobral e Maria Stela

Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2005. 299 p.

__________________ Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. Luís Henrique Lopes dos

Santos. 3ª Ed. São Paulo: Edusp, 2001. 294 p.