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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS - UFAM CENTRO DE CIÊNCIAS DO AMBIENTE - CCA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DO AMBIENTE E SUSTENTABILIDADE NA AMAZÔNIA – CASA A CRIANÇA NUM AMBIENTE URBANO DENSAMENTE POVOADO: ASPECTOS DE RESTRIÇÃO E USO DO ESPAÇO PATRÍCIA DE GÓES CRUZ Manaus-AM 2008 PATRÍCIA DE GÓES CRUZ

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS - UFAM CENTRO DE CIÊNCIAS DO AMBIENTE - CCA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DO AMBIENTE E SUSTENTABILIDADE NA AMAZÔNIA – CASA

A CRIANÇA NUM AMBIENTE URBANO DENSAMENTE POVOADO: ASPECTOS DE RESTRIÇÃO E USO DO ESPAÇO

PATRÍCIA DE GÓES CRUZ

Manaus-AM 2008

PATRÍCIA DE GÓES CRUZ

II

A CRIANÇA NUM AMBIENTE URBANO DENSAMENTE POVOADO:

ASPECTOS DE RESTRIÇÃO E USO DO ESPAÇO

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas, como requisito para obtenção do Título de Mestre em Ciências, Área de concentração: Serviços Ambientais e Recursos Naturais.

Orientadora: Maria Inês Gasparetto Higuchi

Manaus-Am 2008

III

Ficha Catalográfica (Catalogação na fonte realizada pela Biblioteca Central-UFAM)

C957c

Cruz, Patrícia de Góes

A criança num ambiente urbano densamente povoado: aspectos de restrição e uso do espaço/ Patrícia de Góes Cruz . - Manaus: UFAM, 2008.

58 f.; il. color.

Dissertação (Mestrado em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade

na Amazônia) –– Universidade Federal do Amazonas, 2008.

Orientadora: Maria Inês Gasparetto Higuchi

1. Espaços urbanos 2. Crescimento demográfico 3. Ocupação territorial 4. Desenvolvimento urbano I. Higuchi, Maria Inês Gasparetto II. Universidade Federal do Amazonas III. Título

CDU 711.13(811.3)(043.3)

PATRÍCIA DE GÓES CRUZ

IV

A CRIANÇA NUM AMBIENTE URBANO DENSAMENTE POVOADO:

ASPECTOS DE RESTRIÇÃO E USO DO ESPAÇO

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas, como requisito para obtenção do Título de Mestre em Ciências, Área de concentração: Serviços Ambientais e Recursos Naturais.

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Maria Inês Gasparetto Higuchi - Orientadora

Instituto Nacional de Pesquisa do Amazonas – INPA

Profa. Dra. Evelyne Mainbourg Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ

Profa. Dra. Maria Alice Becker Universidade Federal do Amazonas - UFAM

Manaus – AM 2008

V

“Dedico este trabalho a minha família por terem sempre que possível me dado apoio e incentivo na realização dos meus sonhos”.

e “As famílias e crianças da localidade, que participaram da pesquisa, pois sem eles esse

trabalho não teria sido realizado”.

VI

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço a Deus pela oportunidade da realização do trabalho, e por

encontrá-lo sempre que preciso em minha vida.

Agradeço também a Profa. Dra. Maria Inês Higuchi, pela orientação, apoio, estrutura e

pelo voto de confiança na realização do presente estudo.

Ao Prof. Marcelo Vallina por ter compreendido as vezes que tive que me ausentar do

trabalho para escrever ou realizar a pesquisa.

As famílias e crianças da localidade que me deram a oportunidade de conhecê-las e

trabalhar com elas, por todo aprendizado que realizamos juntas.

A Sra, Sara Souza moradora da localidade, pela atenção, disponibilidade e por ceder

um espaço no quintal da sua mordia para que fosse desenvolvido as atividades com as

crianças.

A minha amiga Jaqueline Lobo que abriu mão de alguns dias da semana e do final de

semana para me ajudar no trabalho de campo. Além das amigas Patrícia Andrezza, Sheila

Cristina, Miriele, Lígia por também abrirem mão de seus dias de lazer para estarem comigo na

localidade.

As minhas amigas Nelise Galvão, Lia Galvão e Lucinéia Sousa da FAPEAM, pelo

carinho, atenção e por me ajudarem no aprimoramento do meu trabalho. A Luciene Mafra,

Rosimeire, Jônia pelo apoio e disponibilidade nas horas que precisei, e a todos os colegas de

trabalho que se dispuseram a me ajudar.

A toda minha família pais: Antônio Sabino e Carmita, aos meus irmãos, as minhas

tias, por sempre acreditarem em mim, pelo apoio e incentivo nas horas difíceis.

Aos professores da Pós-graduação Alexandre Rivas, Andréa Waichman, Carlos

Freitas, José Aldemir, Marilene Corrêa, Nídia Fabré, Sandra Noda, Terezinha Fraxe, Thierry

Gasnier, Tatiana Schor e Vandick Batista.

Aos colegas do mestrado, Ieda, Leokeline, Augusto, Wanderlei, Sérgio, Ana Cláudia,

Ana Torres, Priscila, Lígia, Jemima, André, Esner, Mariana, Najila, Jéssica, Eduardo,

Glaubécia, Nilza, Larissa, Tarcísio, Sueli todos da turma os quais fizeram o curso ser

inesquecível.

Não podendo esquecer da Raí e Cleide, pela compreensão e disponibilidade de me

ajudar sempre que precisei durante o curso.

VII

A minha companheira de pesquisa Ana Menini pelas trocas de aprendizado, pelos dias

de calor insuportável, mas que com nossa persistência e vontade conseguimos superar e

finalizar nossos objetivos.

Ao Núcleo de Estudos de Grupos Sociais na Amazônia/ULBRA pelo apoio e espaço

cedido ao estudo.

VIII

RESUMO Para que se possam desenvolver estratégias de promoção cidadã no espaço urbano da cidade, é necessário que se compreenda o ambiente em que crianças de famílias de baixo poder aquisitivo vivem no seu cotidiano. Este trabalho teve como foco principal compreender o ambiente físico e social vivido pela criança num lugar de alta densidade demográfica, com restrição de espaço para atividades recreativa, falta de saneamento e precária infra-estrutura habitacional, entre outros problemas socioambientais. A pesquisa foi desenvolvida na Zona Leste da cidade de Manaus, numa ocupação periférica do Bairro Coroado III. A pesquisa é de natureza qualitativa e multimetodológica. A observação participante, entrevistas semi-estruturadas e representação gráfica foram essenciais para análise do contexto físico e socioeconômico, assim como para a coleta de dados da vivencia das famílias e das crianças na localidade, bem como a representação que as crianças têm sobre o ambiente em vivem. Foram realizadas entrevistas com 20 mães ou responsáveis por crianças de 6 a 10 anos de idade, que residiam a mais de 1 ano na localidade. A representação gráfica foi realizada com 15 crianças (sendo 10 meninas e 5 meninos). Os resultados desse estudo indicaram que num ambiente de alta densidade demográfica e de arranjo geoespacial vulnerável, as crianças são privadas do espaço físico e de plena liberdade para muitas de suas ações. Nesse ambiente as crianças crescem ainda com alto grau de insegurança e falta de proteção, o que as obriga a viverem riscos constantes, seja psicossociais ou físicos. Por outro lado essas crianças desenvolvem habilidades de negociação coletiva e plasticidade de uso social do espaço de forma impressionante. Conclui-se, portanto que apesar de todo o contexto denso e de vulnerabilidade socioambiental vivenciado no cotidiano da localidade pelas crianças, estas incorporam cognitivamente e afetivamente experiências que lhes permitem aprender a lidar com as adversidades encontradas no dia-a-dia. Essa habilidade de remodelar o espaço físico encontrado as suas necessidades e negociar os espaços existentes possibilitam maior competência e flexibilidade nas vivências do espaço social. Palavras chave: meio ambiente, alta densidade demográfica, desenvolvimento infantil

IX

ABSTRACT

To develop citizen promotion strategies in the urban space of the city, it is necessary understands the environment where children of families of low purchasiin power live in its daily one. This work had as main focus, to understand the physical and social environment lived by the child in a place of high demographic density, with recreation restriction of space for activities, lack of sanitation and precarious residential infrastructure, among others social and environmental problems. The research was developed in the Zone East of the Manaus city, in a peripheral occupation of Coroado III district. The research is of qualitative and multi-methodological nature. The participant observation, half –structuralized interviews and graphical representation had been essential for analysis of the physical context and social-economic, as well as the representation that the children have on the environment in live. Interviews were done with 20 mothers or someone responsible for children between 6 and 10 old that live more than 1 year in the locality. The graphical representation was carried through with 15 children (being 10 girls and 5 boys). The results of this study had indicated that in an environment of high demographic density and vulnerable geospatial arrangement, the children are private of the physical space and full freedom for many of its action. In this environment the children still grow with high degree of insecurity and lack protection, what compels them to live constant risks, either physicologic-social or physical. On the other hand these children develop abilities of collective negociation and plasticity of social use of the space of impressive form. Concluding, therefore that although all the dense context and lived in a deeply social-environment vulnerability in the daily one of the locality for the children, they incorporate cognitively and affectively experiences that allow them to learn to deal with the adversities found in day-bay-day. This ability to remodel the physical space joined its necessities and to negotiate the existing spaces make possible greater ability and flexibility in the experiences of the social space.

Key Words: environment, high demographic density, infantile development

X

LISTA DE FIGURAS

Figura 01 - Croqui da localidade..................................................................................... 51 Figura 02 - Vias de circulação beco................................................................................. 54 Figura 03 – Pequeno beco ............................................................................................... 55 Figura 04 – Lugar para circular ...................................................................................... 57 Figura 05 - Lugar para conversar .................................................................................... 57 Figura 06 - Habitação a margem do igarapé Acariquara................................................. 61 Figura 07 - Lixo acumulado nos córregos ...................................................................... 70 Figura 08 - Local onde a localidade deposita o lixo........................................................ 71 Figura 09 – Crianças brincando no beco ......................................................................... 73 Figura 10– Desenho produzido pelo grupo 1................................................................... 82 Figura 11 –Desenho produzido pelo grupo 2.................................................................. 83 Figura 12 - Desenho produzido pelo grupo 3.................................................................. 84

XI

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 12 1 A CIDADE E SEU CONTEXTO SOCIOAMBIENTAL ................................... 16

1.1 A cidade: aspectos objetivos e subjetivos................................................................ 16 1.2 A produção do espaço urbano de Manaus............................................................... 19 1.3 Ocupação e habitabilidade....................................................................................... 24 1.4 Aglomeração e alta densidade demográfica............................................................ 27

2 A RELAÇÃO DA PESSOA COM SEU AMBIENTE ........................................ 32 2.1 A criança e o ambiente............................................................................................ 35 2.2 Aspectos cognitivos................................................................................................. 36 2.3 Aspectos sociais e afetivos...................................................................................... 39

3 A IMAGEM DO LUGAR ..................................................................................... 43 4 METODOLOGIA .................................................................................................. 46 5 DIMENSÃO FÍSICA DOS ACONTECIMENTOS SOCIAIS .......................... 49

5.1 A localidade............................................................................................................. 49 5.2 A moradia................................................................................................................ 58 5.3 Contexto socioeconômico das famílias................................................................... 65 5.4 A vivência na vulnerabilidade do ambiente............................................................ 69 5.5 O ambiente vivido pela criança............................................................................... 72

6 A DIMENSÃO FISICA E SOCIAL REPRESENTADA PELAS CRIANÇAS ............................................................................................................

79

6.1 Lugar das brincadeiras e da diversão....................................................................... 85 6.2 Lugar de morar........................................................................................................ 88 6.3 Lugar de tarefas domésticas..................................................................................... 90 6.4 Lugar de estudar...................................................................................................... 91

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 93 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................ 95 APÊNDICE – I CROQUI DA LOCALIDADE .................................................. 99

12

INTRODUÇÃO

As cidades do mundo e do Brasil têm em comum problema sócioambientais que

desafiam profissionais de diferentes áreas do conhecimento. O desenvolvimento urbano é

assunto que possui impacto significativo, pois abrange aspectos relacionados à saúde integral,

ao meio ambiente, à produção do espaço e ao processo de desenvolvimento humano. A

capacidade de suporte do meio ambiente, por exemplo, tem sido uma realidade preocupante,

pois, habitado por um número expressivo de pessoas, o espaço urbano passa a ter mais gente

do que comportaria para uma ocupação territorial ideal. Esse fenômeno socioespacial,

designado como alta densidade habitacional, traz efeitos singulares tanto sociais quanto

ambientais. A alta densidade está, infelizmente, associada a outros problemas, tais como as

condições econômicas (baixo poder aquisitivo), sociais (subempregos, desemprego,

violência), culturais (imigração, aglomeração, etc) e ambientais (moradia em áreas insalubres,

depredação dos recursos naturais), os quais produzem e reproduzem desestruturação das

relações sociais nos mais diversos aspectos da vida das pessoas em aglomerados urbanos

(REIS, 1988).

A partir deste contexto de crescimento demográfico, desordenado e concentrado,

próprio de ocupações irregulares, estão inevitavelmente associados a degradação ambiental,

desmatamento desenfreado, assoreamento do solo e poluição dos igarapés e córregos. Em

Manaus, como em muitas cidades brasileiras, as áreas mais populosas são áreas de relevo

acidentado, nas encostas e margens de igarapés (LACERDA e MOURA, 1990). Morar nessas

localidades de grande aglomeração exige limites e modos sociais que se imbricam com os

contornos das espacialidades. São nessas localidades que famílias menos favorecidas

economicamente fixam residência e experienciam dificuldades de toda ordem.

13

Reis (1988) afirma que a cidade aglomera geograficamente núcleos de pobreza e

subdesenvolvimento e, com isso, riscos para as famílias. Nesses lugares, além da falta de

serviços urbanos como abastecimento de água, energia, vias públicas, saneamento básico e

segurança, as pessoas se vêem esquecidas pelas políticas públicas, permanecendo em espaços

sociais paralelos, criando condutas e códigos relacionais que não permitem muitas vezes o

exercício de uma cidadania mínima.

A partir dos cenários vividos em ocupações irregulares de alta densidade populacional

e riscos ambientais, estruturam-se cenários de formação de pessoas e de sua trajetória cidadã.

Com riscos ou possibilidades, o fato é que os adultos estão estruturando espaços para suas

crianças, que serão adultos no futuro, reproduzindo novas gerações. Isso nos leva a

questionamentos do tipo: Quais os fatores de vulnerabilidade socioambiental que são

vivenciados pelas crianças? Como as crianças vivenciam as limitações do espaço e a relação

com ele?

Inspirado nesses questionamentos propõe-se investigar como as crianças vivem e

percebem seu dia-a-dia num lugar com restrições de espaço para suas atividades infantis

devido à alta densidade demográfica. Pois, sendo o ambiente um local de contínua

constituição das pessoas, pode-se dizer que, a partir da forma como esse ambiente é

organizado, percebido e vivenciado por elas, há tanto aspectos saudáveis quanto provocativos

de adoecimento.

A necessidade de se fazer um estudo sobre este tema surgiu a partir de minha história

acadêmica, atuando como estagiária e bolsista em áreas residenciais iniciadas por invasões,

verifiquei que não havia espaço para as crianças brincarem, levando-as a restringirem suas

brincadeiras ao reduzido ambiente encontrado. Também não havia espaço entre as casas e

estas por serem muito compactas, possuíam na maioria das vezes apenas um cômodo onde

conviviam de 3 a 12 pessoas numa mesma unidade doméstica. Tal redução de espaço pessoal,

14

familiar e comunitário levava freqüentemente a conflitos sociais, os quais eram muitas vezes

reproduzidos nas brincadeiras e relações entre crianças. Para estudar tais aspectos seria então

necessário abordar a natureza dessas relações pessoa-ambiente, aqui se utilizando a psicologia

estaríamos vinculando problemas ambientais e psicossociais contidos numa mesma realidade

vivida.

Diante do exposto, o presente trabalho teve como objetivo analisar a implicação de

fatores socioambientais, tais como alta densidade demográfica, restrição de espaço para

atividades recreativas, falta de saneamento e precária infra-estrutura habitacional e viária, no

desenvolvimento psicossocial da criança que vive numa localidade densamente ocupada da

periferia de Manaus-AM. A área escolhida para desenvolver a pesquisa foi numa ocupação

irregular denominada “Ouro Verde”, localizada no Conjunto Ouro Verde, Bairro Coroado III,

Zona Leste de Manaus, onde atuei como colaboradora dos trabalhos do Núcleo de Estudos de

Grupos Sociais na Amazônia/ULBRA-Manaus, no período de 2003 e 2006.

A fim de conduzir essa pesquisa foram identificadas as características do espaço

físico da localidade bem como as atividades cotidianas das famílias e em especial das crianças

de modo a conhecer a realidade socioambiental das mesmas.

O texto está organizado em capítulos distintos, sendo que no 1º capítulo, são

abordados a cidade e seu contexto socioambiental, o desenvolvimento das cidades, os fatores

de imigração, ocupações irregulares, adensamento, vivenciado no processo de crescimento

urbano em particular da cidade de Manaus. O 2º capítulo trata da relação da pessoa com seu

ambiente, as relações e interações vividas dia-a-dia no lugar de moradia. O 3º capítulo, a

imagem do lugar, a percepção e compreensão da criança do seu entorno através dos desenhos

gráficos. O 4º capítulo se refere a todo processo metodológico utilizado no trabalho. 5º

capítulo, dimensão física dos acontecimentos sociais, faz uma breve descrição física e social

da localidade, além da descrição das características socioambientais das famílias e do

15

cotidiano das crianças. O 6º capítulo, a dimensão física e social representada pelas crianças,

faz um estudo da representação gráfica do ambiente socioespacial feito pelas crianças. O 7º

capítulo apresenta as considerações finais e o 8º as referências bibliográficas.

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1 A CIDADE E SEU CONTEXTO SOCIOAMBIENTAL

1.1 A cidade: aspectos objetivos e subjetivos

No final do século XVIII, a industrialização caracterizou o crescimento das cidades e

da sociedade moderna, esse processo é definido segundo Lefebvre (2001), como surgimento

da “sociedade urbana” que seria a realidade social que nasce a nossa volta. Dessa forma, as

cidades passaram a ser centros de vida social e política onde se acumulam não apenas as

riquezas como também os conhecimentos e as relações. Pode-se dizer que a cidade conserva o

caráter orgânico de comunidade que provém do período de aldeia, e que se traduz na

organização corporativa, vida comunitária e lutas de classes. A realidade urbana é ao mesmo

tempo espacial e temporal: espacial porque o processo se estende no espaço que o urbano

modifica; temporal uma vez que vem se constituindo historicamente, desenvolvendo-se no

tempo, predominante da prática e da história.

Castro (2005; 2006) acrescenta que a vida urbana nas cidades pressupõe encontros,

confrontos das diferenças, dos modos de viver e dos “padrões” que coexistem nas cidades. A

cidade é inevitavelmente um território demarcado pelas diferenças, sendo que cada uma delas

se instala num pedaço definido do espaço urbano: o centro para uns e a periferia para outros.

Esses territórios, porém, não se limitam a um espaço geográfico, mas, sobretudo e

principalmente, a um espaço social. Assim, a cidade é lugar de reprodução econômica e social

e diferenciação de classes, onde se encontra uma diversidade de aglomerados humanos. As

diferentes cidades sejam elas grandes ou pequenas metrópoles, encontradas pelo Brasil

mostram certa semelhança nos problemas sociais e ambientais enfrentados como: imigração,

aglomeração, alta densidade demográfica, pobreza, periferias geográficas e sociais,

desemprego, falta de infra-estrutura, falta de saneamento básico, falta de segurança,

depredação dos recursos naturais e outros.

17

Pode-se dizer que, num primeiro momento, olhando a cidade, podemos enxergá-la como um

contexto homogêneo. No entanto, não há homogeneização das cidades, mas uma

diferenciação complexa onde se encontram problemas sócio-ambientais e desestruturação

urbana. Ou seja, a cidade é dividida por classes econômicas e territórios que condicionam

múltiplas experiências pessoais e coletivas, e em muitos casos vivências conflituosas entre

moradores. Essas diferenças verificadas nas cidades atuais podem levar a certo

comprometimento ou distanciamento das relações, em que as pessoas, por medo da violência

ou por falta de “tempo”, permanecem em suas casas sem conhecerem muitas vezes os

próprios vizinhos (CASTRO, 2005; 2006; LEFBVRE, 2001; MATOS, 2002).

O sistema social contemporâneo, prevalecente nas cidades, deixa visíveis as

desigualdades sociais e espaciais encontradas nas mesmas. É nesses diferentes espaços

conhecidos e desconhecidos de seus próprios moradores que estes vivenciam todo tipo de

sociabilidade. Porém as pessoas de baixo poder aquisitivo são mais prejudicados devido sua

moradia se encontrar em áreas de risco e vulnerabilidade socioambiental. De acordo com

Castro (2005; 2006), Manaus, Belém e São Luís, por exemplo, trazem desigualdades sociais e

espaciais que determinam diferentes formas de habitar de seus grupos populacionais.

Habitar um espaço de exclusão ou desvalorizado economicamente numa cidade

significa participar de um fragmento do espaço urbano onde o cotidiano se dá no confronto

com a carência de serviços públicos e de infra-estrutura (MOURA et al., 1993). Assim

ratifica-se que periferia não significa apenas uma referência geográfica, mas sim o conjunto

dos fragmentos do espaço urbano que apresentam especificidades em seu aspecto físico e

social, ou seja, nos arranjos habitacionais, nas formas de utilização do espaço, nas condições

econômicas e nas estratégias de sobrevivência utilizadas para o grupo atender as suas

necessidades. A cidade não precisa negar o espaço natural para emergir, pois é imprescindível

seu crescimento econômico e espacial, porém este deve ser acompanhado e planejado para

18

que não acabe se tornando algo prejudicial ao espaço urbano, ao ambiente que o circunda e às

pessoas que ali habitam (CASTRO, 2005; 2006; MOURA et al., 1993).

É nesse contexto que a dinâmica psicossocial dos indivíduos e a construção de lugares

se forjam numa relação intrínseca. Desta maneira, a cidade se manifesta em mosaicos, em

parcelas distintas que retratam a socialidade presente (FISCHER, s/d). Os espaços valorizados

e os espaços desvalorizados vão surgindo dia-a-dia, lado a lado, em intensidades maiores ou

menores, através das ocupações espontâneas e irregulares, chamadas invasões. Estas formam

aglomerados sem planejamento e nenhuma infra-estrutura: são desorganizadas física e

socialmente. De modo geral os ocupantes constroem suas moradias que se traduzem pela

expressão de um conteúdo próprio: o das emoções e da sua vivência, desenvolvidas pelo

sentimento de “ter sua casa” onde aquele “pedaço” é identificado como seu território pessoal,

seja ele como for. Higuchi (1999) nos mostra a dinâmica histórica da formação de um lugar

coletivo a partir dessas individualidades, onde esse processo se movimenta continuamente no

tempo e no espaço. Vidas contraditórias e congruentes vão estabelecendo e produzindo estilos

de vida e de pertença bastante visíveis e determinados, que caracterizam as especificidades de

um grupo.

A cidade pode então ser definida como: “um mosaico cultural, com uma enorme

multiplicidade de mundos sociais que são quase como mundos próprios” (SOCZKA, 1988, p

320). Esses mundos sociais são lugares diferenciados, produzidos e reproduzidos por

diferentes grupos, que criam e recriam normas, culturas, formas e processos que dão

identidade à cidade, seja ela vista como uma grande desorganização, ou uma organização

dentro do possível.

Percebe-se então que dentro da cidade há uma subdivisão de espaços, demarcados por

territórios que muitas vezes não são vistos a olho nu, mas são percebidos em seus diferentes

grupos e culturas, que dão identidade a cada espaço, a cada lugar e aos próprios grupos que se

19

relacionam e estão inseridos nesse contexto. Esse é um fenômeno que abrange a todas as

cidades do mundo e principalmente as que se encontram em pleno desenvolvimento. Desta

forma, verifica-se que as cidades da Amazônia não são diferentes das outras grandes cidades.

Apesar de possuir suas particularidades que devem ser levadas em consideração, ela passa

pelo mesmo processo de divisão espacial e social. Assim os problemas existentes na cidade de

Manaus devem ser discutidos e enfrentados com o respeito merecido, pelo governo do Estado

e pelas políticas públicas.

1.2 A produção do espaço urbano de Manaus

Manaus, como muitas cidades em desenvolvimento contínuo, mostra a realidade das

grandes metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo. Imigração, crescimento acelerado e

desenfreado, sem planejamento e nenhuma infra-estrutura, levam ao surgimento dos espaços

excluídos onde a pobreza, a descriminação, a exclusão e a violência fazem parte do cotidiano

dos moradores desses lugares.

A espacialidade da cidade no período compreendido entre 1920 e 1967 se desenvolveu

pelo encadeamento de continuidades e rupturas num sistema de ações em que alguns

momentos eram extraordinariamente dramáticos, marcados pela queda da borracha e pela

crise política levando a população ao empobrecimento socioeconômico (OLIVEIRA, 2003).

Assim, o retrato atual que Manaus apresenta é reflexo da dinâmica urbana de várias fases

socioeconômicas que acompanham o crescimento da cidade.

Nos últimos 20 anos, a população de Manaus teve um incremento da ordem de 224,6%

devido à ocorrência de fluxo migratório. Porém, a explosão demográfica ocorreu mais

intensamente no período denominado Zona Franca que se iniciou formalmente com a criação

da Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) em 1967, cuja efetivação se

20

deu no início dos anos 70 com a instalação do Distrito Industrial na Zona Leste da cidade

(RIBEIRO, 1999).

A Zona Franca de Manaus, inicialmente dinamizou-se como área de livre comércio,

colocando Manaus no mercado nacional e internacional. Posteriormente, deu-se início a

implantação do Pólo industrial de Manaus – PIM, em 1968, que lançou as bases para a

segunda fase da ZFM, que foi de 1968 a 1990, e caracterizou-se pelo domínio das atividades

industriais, marcando o começo da industrialização na capital do Amazonas (BENTES, 2005).

Dados do IBGE mostram que na década de 1970 e 1980, tanto no município de

Manaus quanto no Estado ocorreu um aumento na taxa de crescimento demográfico. Este

aumento refletiu-se, de imediato, no crescimento espacial da cidade de Manaus que passou de

pouco mais de 2.500 hectares para 37.737 hectares (RIBEIRO, 1999). No Estado do

Amazonas de acordo com o último censo (2000), a população urbana é de 2.107.222

habitantes. No entanto, é preciso lembrar que a cidade de Manaus concentra mais da metade

da população do Estado, e reflete a realidade da maior parte do país concentrando 90% de sua

população na área urbana. De acordo com o IBGE, Manaus é a 12ª cidade em nível de

crescimento urbano do país.

Percebe-se que a cidade de Manaus acabou crescendo para todos os lados, seja de uma

forma planejada ou não. Este processo de crescimento deu lugar a uma ordem socioambiental

da organização dentro do possível, pois o estado não consegue acompanhar devidamente o

crescimento abrupto quer seja da população, quer seja da área urbana. O aumento do espaço

urbano de Manaus nos últimos anos correspondeu a uma nova concepção do fenômeno

urbano, imposta à população por um espaço já previamente estruturado, onde o que

permanece agora é uma restrição de espaço físico e social. É nesse contexto de intenso

incremento populacional que alguns autores afirmam que Manaus não se encontra preparada

21

para atender às crescentes demandas por moradia, emprego, educação, saúde, e demais

serviços urbanos (SILVA, 1988; BENTES, 2005).

A migração constante e acelerada vinda tanto do interior, das comunidades rurais,

como de outros Estados, em busca de uma vida digna, é um dos principais problemas

vivenciado na cidade. Esse processo de imigração intensa provocou produções espaciais

desestruturadas, precárias para habitação, cujo problema parece distante de uma solução. As

pessoas vêm em busca de emprego e melhores condições de vida. Porém, o que encontram

são dificuldades devido ao desemprego e à falta de políticas públicas eficientes. Esse

crescimento desenfreado leva à criação de bairros por meio de ocupações irregulares. A falta

de planejamento adequado para as moradias, multiplica as ocupações dos igarapés e dos

interflúvios, agravando o problema ambiental e as condições de habitações da

população.Todo o fluxo migratório que se concentrou em Manaus trouxe uma série de

transtornos para o uso e ocupação do solo bem como a estrutura socioeconômica (SANTOS,

1987; RIBEIRO,1999).

Além da ocupação de áreas de igarapés, ocorre paulatinamente a ocupação de terrenos

públicos, forçando a expansão para as Zonas Norte e Leste. Essas ocupações constituem-se na

única alternativa que a população de baixa renda encontrou para a garantia do direito à cidade.

No último censo (2000), foram registrados 26 aglomerados (invasões e assemelhados)

segundo estimativas do IBGE (BENTES, 2005). Entretanto, o processo de ocupação

continuou no período pós-Zona Franca, as zonas Oeste, Norte e Leste são as que mais se

expandiram em Manaus, onde se encontram os bairros mais populosos, Cidade Nova, São

José, Jorge Teixeira, Compensa e Alvorada, os quatro últimos são marcados pela precária

infra-estrutura urbana e serviços.

Essas ocupações irregulares são denominadas por Fischer (s/d), “espaços marginais”,

espaços retirados, afastados de uma zona de visibilidade, que muitas vezes não significa uma

22

zona geográfica, mas, zonas não visíveis, escondidas em pleno centro, onde as famílias de

baixo poder aquisitivo encontram moradia. Segundo Fischer (s/d), a exclusão reflete o tipo de

organização social, demonstrando as características sociais de um espaço que o define como

marginal ou não marginal, ou seja, é reconhecido como um sintoma, tudo o que um espaço

normativo atira para fora de si, sendo considerado como lugar de rejeição pelas pessoas de

melhor condição econômica, matriz de uma vida social que funciona de acordo com suas

próprias regras e normas. Nesse sentido, o espaço urbano insere um debate sobre essa

localização ou fixação de seu ocupante, cujos lugares possuem mais ou menos habitabilidade.

Esse processo de expansão e ocupação do espaço urbano da cidade leva as divisões

espaciais e territoriais do lugar de moradia. Dessa maneira, espaço, território e lugar são bem

definidos para Tuan (1980), espaço e lugar são categorias que estão relacionadas, porém

podem ser definidas de forma separada, o espaço pode-se pensar como algo que permita

deslocamento, e quando há uma certa estagnação, uma parada no movimento isto faz com que

a localização se transforme em lugar.

Assim diferenciando espaço de lugar, pode-se dizer que o espaço seria algo mais

subjetivo, abstrato, enquanto que o lugar começa a partir de um espaço indiferenciado

transformando-se em lugar, à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor, ou seja,

lugar é um espaço que adquiriu significado, sendo embutido a este um determinado valor,

assim cada lugar se torna diferente devido a sua especificidade (TUAN, 1983). Em

contrapartida, Moreira (2006) rebate na perspectiva de que espaço e lugar não são

necessariamente categorias lineares, que um forma o outro, mas que é somente a partir da

localização do lugar que nasce o que chamamos de espaço. Nesse sentido, espaço é o recorte

do lugar. É nessa visão aristotélica que o autor defende que, com o recorte, nasce o território.

Na perspectiva da psicologia social do ambiente, Fischer (s/d), concorda com Moreira

(ibid) ao sustentar que lugar é uma delimitação física, localizado concretamente, onde

23

acontecem as atividades e produzem-se encontros. Já o espaço é definido por ele como meio

onde ocorre um domínio de acontecimentos sociais e que possibilita contatos até certo ponto

estáveis num determinado lugar.

Korga (2003) define território como uma área de abrangência ou limite e que,

sobretudo, na cidade passa a ter significado vivo a partir das pessoas que se utilizam, da forma

que se utilizam e como interagem com ele. Assim, o território passa a existir a partir do

momento que a pessoa demarca o seu espaço, delimita sua localidade, transformando no seu

lugar de moradia.

As pessoas ao se relacionarem com o espaço acabam por encontrar seu território e sua

identidade. Para Wanderley e Menezes (1999) o território é um aspecto das relações sociais.

No entanto a construção do lugar e de seus significados vem a ser um lugar coletivo, onde

ocorrem as trocas de relações e interações entre as pessoas na convivência social.

Santos (1987) caracteriza o espaço onde acontecem as relações como sendo formado

por conjuntos indissociáveis, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e

sistemas de ações não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história

se realiza. Dizemos que o espaço é social e historicamente construído, esta construção se faz

no processo da interação contínua entre uma sociedade em movimento e um espaço físico

particular que se modifica permanentemente, sendo o ambiente passivo e ativo, sempre num

movimento, transformador da vida social (COELHO, 2000).

Assim, o conhecimento dos diferentes espaços, das suas especificidades e das relações

que se estabelecem neles transformando-os em localidade, é um processo gradativo para as

pessoas que o vivenciam de forma subjetiva, por meio de significados e sentidos produzidos

pela cultura, que ganham expressão no modo de ser de uma sociedade, num decorrer

histórico.

24

1.3 Ocupação e habitabilidade

A ocupação do espaço se traduz em termos de modificações físicas, de transformação.

Trata-se de um artefato pelo qual se opera uma estruturação do espaço segundo as

necessidades e as aspirações de um grupo. Desta maneira a ocupação de um espaço vai se

moldando com as limitações impostas pelo próprio espaço em construção (FISCHER, s/d).

Esta se constitui uma modalidade de mudança caracterizada ao mesmo tempo como processo

conflituoso, na medida em que é de uma forma ou outra confrontada com sistemas de

imposições e como um processo micro-social. Por este ângulo, a ocupação se revela como um

processo não apenas físico, mas social. Pois, o grupo que ocupa um espaço investe este de

intenções, atos e marcas que permitem ao grupo sobreviver à banalidade do quotidiano, dando

a si mesmo uma identidade, ou seja, criando situações em que o espaço constitui para ele um

refúgio (Ibidem).

Assim, a forma como o espaço ganha um significado diferente, varia de acordo com as

condições sócio-econômicas do grupo que ocupa este espaço, as aspirações, as modalidades

de influência próprias do seu ambiente e os símbolos sociais. Por isso, toda a ocupação

interage com um conjunto de fatores individuais, sociais e culturais que atingem diretamente

o grupo.

O espaço primário pode ser identificado como o habitat do indivíduo, sendo

controlado pelos seus ocupantes que nele permanecem por um tempo prolongado. Este

assegura uma função de intimidade, pode ser personalizado e qualquer intromissão é sentida

como uma violação, sendo um abrigo do mundo exterior, um refúgio pessoal sendo às vezes

comparado ao ventre materno (FISCHER, s/d.).

Para a ocupação e construção das moradias, as famílias se organizam informalmente

em grupos. De forma coletiva, vão desmatando e abrindo vias que lhes permitam acesso

interno e externo. Inicialmente, procuram resolver suas necessidades através de ligações

25

clandestinas de luz e água, já que a infra-estrutura básica é inexistente em uma ocupação. As

ocupações então passaram a se constituir na única alternativa que a população pobre

encontrou para viver na cidade (BENTES, 2005).

O baixo poder aquisitivo e a falta de trabalho digno levam as pessoas a morarem em

áreas e casas com ou sem um mínimo de infra-estrutura em ambientes degradados e casas

muito pequenas divididas em cozinha, sala-quarto, onde o banheiro fica do lado de fora da

casa. O que existe nestas casas é uma coabitação forçada, ou seja, o uso da mesma habitação

por mais de uma família, que lutam para dividir o mesmo espaço em suas distintas categorias:

social e ambiental. Lacerda e Moura (1990) colocam que, em geral, as áreas ocupadas pelas

moradias das classes de baixo poder aquisitivo da população correspondem aos terrenos

acidentados, de difícil acessibilidade e salubridade, onde se concentram as ocupações

irregulares.

As habitações construídas nas áreas de ocupação irregular são precárias. No início, são

construídas de qualquer maneira, com madeiras reutilizadas, materiais como lona, isopor que

apenas abrigam da chuva e do sol. Mais tarde, começam a serem erguidas casas, mais

estruturadas, de madeira, comportando de um a quatro cômodos, cobertas com telhas e

cercadas por madeira. De acordo com o poder econômico dos moradores, a moradia vai se

modificando e melhorando com o passar do tempo.

Erguida a habitação em condições precárias, o indivíduo percebe-se fisicamente

protegido e inicia o longo processo que lhe permitirá impor, socialmente, o reconhecimento

do espaço individual (DEL RIO e OLIVEIRA, 1996). Um exemplo de moradia da população

carente é o cortiço, que corresponde a mais antiga forma de habitação das classes populares.

Agora é a ocupação irregular que representa uma alternativa para parcelas de moradores das

grandes cidades. Essa característica existirá enquanto houver pobreza maciça nas cidades e

continuar a migração acelerada para a mesma.

26

Assim, a moradia não pode ser vista no seu sentido restrito, a casa propriamente dita,

mas incluindo o seu entorno, sua condição de habitabilidade, devendo ir além dessa

materialidade para englobar os aspectos simbólicos presentes nela (HIGUCHI, 2004). As

relações que se estabelecem com o ambiente e com as outras pessoas que compartilham o

mesmo ambiente favorecem à compreensão das condições de habitação dessa população

(ABELÉM, 1996).

O que percebemos na cidade é uma má distribuição e uma diferenciação dos espaços,

sendo supervalorizados de um lado e desvalorizados do outro, diferenciando e classificando as

pessoas em classes de poder aquisitivo e possibilidades de melhor ou pior níveis de vida

(IBGE, 2001). A segregação ambiental, segundo Maricato (2000), é uma das faces mais

importantes da exclusão social, pois a dificuldade de acesso a serviços e infra-estrutura

urbana, leva a maior exposição a riscos, discriminação e exclusão social.

Então, podem-se perceber lugares de habitação com total infra-estrutura e organização

espacial, enquanto que, de outro lado, o que se vê é uma organização espacial dentro do

possível, onde seus moradores tentam se adequar à estrutura encontrada e moldá-la de acordo

com suas condições socioeconômicas.

1.4 Aglomeração e alta densidade demográfica

Algumas áreas excluídas e aglomeradas da cidade de Manaus têm em comum um

espaço físico menor do que sua capacidade de suporte, principalmente por não possuir

condições adequadas de habitabilidade. Alguns espaços de circulação dessas áreas se reduzem

a becos entrecortados por córregos e igarapés, seguindo um relevo acidentado e irregular. É

nesse espaço público, que se confunde com o privado, que crianças brincam de bolinha de

gude ou futebol, dividindo espaço com adultos que sentam em banquinhos de madeira em

frente de suas casas, já que o calor se torna insuportável. Mesmo que se reconheça que as

27

árvores poderiam fazer uma sombra agradável, isso não é possível, pois espaço não há para

elas. Há que se escolher: a casa ou a árvore. O desmatamento é, portanto, um aspecto inerente

às áreas de ocupação. Existe um vai e vem constante, seja de moradores ou de pessoas de

bairros vizinhos. Nesses lugares de restrição de espaço, de transição e moradia acontece uma

diversidade de inter-relações com o ambiente e com os que ali habitam.

Então o que acontece nas cidades, inclusive em Manaus é a ocupação de um espaço,

com casas que aparecem da noite para o dia, umas juntinhas das outras, onde mal se percebe o

começo de uma e o término de outra. É assim que duas ou três famílias se amontoam num

mesmo espaço até construir suas próprias moradias naquele novo território. A falta de infra-

estrutura e saneamento básico nessas áreas é parte integrante dessa geografia.

A esse processo denomina-se como alta densidade demográfica que, segundo o IBGE,

é o número de pessoas por unidade de superfície (habitantes/ km - IBGE, 2001). Sendo

descrita como número total da população de uma área urbana específica, expressa em

habitantes por uma unidade de terra ou solo urbano. Associado à densidade populacional está

o conceito de superocupação ou superaglomeração que implica dizer que uma quantidade

excessiva de pessoas vive, trabalha ou ocupa um determinado bairro, lote, residência ou

quarto (ACIOLY e FORBES, 1998). Abelém (1996) comenta sobre esse fenômeno urbano,

caracterizado pelo crescimento acelerado das cidades sem nenhum planejamento por parte das

políticas governamentais, que acaba por criar os “aglomerados” acolhendo mais indivíduos do

que sua capacidade de suporte em condições sociais precárias. Esse adensamento não é um

fator determinante, mas co-existente num conjunto de variáveis socioculturais complexas que

vão dar lugar a efeito e respostas circunstanciadas. Fisher (s.d.), distinguiu dois tipos de

densidade: a densidade interior, formada pelo número de ocupantes num alojamento ou numa

casa, e a densidade exterior que é o número de pessoas por metro quadrado num espaço

construído.

28

Não podemos falar de alta densidade demográfica sem abordarmos a teoria

Malthusiniana. Thomas Malthus (1983), e sua teoria sobre a população, a partir de um estudo

de caso que realizou na Inglaterra em 1760, descreveu uma cidade passando pela revolução

industrial onde a migração era intensa vinda do setor rural a procura de trabalho nas

indústrias. Porém, o que se via era pobreza. Malthus considera que se não houvesse pobreza e

falta de alimentação, a população aumentaria em progressão geométrica, ocupando todo o

espaço físico o que levaria ao caos. Para ele, essa redução de alimento, a fome que levaria a

morte amenizaria o crescimento da população.

Esse processo da revolução industrial e do desenvolvimento das cidades contado por

Malthus deixou resquícios socioeconômicos que atingiram muitos países, essa diferenciação

de classes e o crescimento da pobreza foram considerados como um acontecimento global,

que permanece até os dias atuais. No entanto, Simon1 se contrapõe à essa teoria afirmando

que a solução para os problemas de escassez de recursos seria justamente o aumento da

população que por sua vez forçaria os governantes a encontrar soluções para os problemas

surgidos, onde a tecnologia substituiria os recursos naturais (BELL,1998). Assim, a densidade

populacional e atividades econômicas têm relação direta com o processo de expansão

econômica e modernidade das cidades. Portanto, as pessoas que migram para a cidade em

busca de melhores condições de vida, têm por direito como cidadão, a educação, saúde e

moradia, que são condições básicas para a família, mas que, em sua maioria, não são

contempladas pelas políticas públicas.

De acordo com Fisher (s/d), as condições psicossociais estão ligadas ao meio que a

pessoa habita, como por exemplo, a alta densidade populacional na medida em que o

ambiente físico tem características não apropriadas ou opostas às necessidades e às

expectativas das pessoas. A alta densidade então passa a ser vista como uma situação

1 Julián Simon autora que escreveu vários postulados em oposição aos conceitos malthusianos.

29

complexa, que influencia variáveis biopsico-culturais, que estão associadas ora com uma

situação no espaço físico, ora com a estrutura social, porém estas não estão separadas mais

inter-relacionadas.

Deste ângulo, o efeito psicossocial da alta densidade demográfica afeta em primeiro

lugar as pessoas de baixo poder aquisitivo, impondo-lhes um modo de vida definido pelo

aperto territorial, mais principalmente pela falta de condições econômicas, sociais e culturais

em que essas pessoas se encontram. Outro aspecto causado pela restrição de espaço é o

incômodo vivenciado pelas pessoas como barulho e ruído produzidos por vizinhos muito

próximos.

Assim, percebe-se que aglomeração é também vivida como uma presença invasora, ou

seja, quando a presença do outro se traduz por uma intensidade de estimulações: contato,

olhares, cheiros e ruídos que não podem ser controlados. Tudo isso é acompanhado pelo

sentimento da perda de intimidade nas situações de aglomeração quando um indivíduo se

sente desapossado de seu espaço pessoal e gerando também insegurança. O espaço torna-se

então ameaçador (FISCHER, s/d.).

Dessa forma, a necessidade de ocupar um lugar mínimo que seja possibilita conflitos

entre as pessoas que ali habitam. Pode-se comparar ao mundo animal onde estes lutam para

defender seu território. Nesse ambiente em que produção de relações, estas muitas vezes

acabam se estremecendo devido à necessidade de ter um espaço individual e social, lugar para

recomeçar sua história (CARLOS, 2001).

A alta densidade é vista então como um dos fatores de vulnerabilidade socioambiental

principalmente para as pessoas de baixa renda que, devido suas condições, não conseguem

espaços adequados para construir sua moradia. Essas têm acesso aos espaços através de

ocupações irregulares, e vão se aglomerando, disputando um espaço para residir na cidade, já

que para elas morar na cidade implica numa evolução de status (HIGUCHI, 1999). Segundo

30

Coelho (2000), essa diferenciação social acaba produzindo localidades distintas com valores

próprios de cada grupo que ocupa. Oliven (1977) fala sobre o conceito de “cultura da

pobreza” que caracteriza as classes de baixo poder aquisitivo, por exemplo: a falta de efetiva

participação e integração das pessoas de baixo poder aquisitivo nas principais instituições da

sociedade inclusiva; formas de condições habitacionais precárias, o número de pessoas por

moradia que transcende a família nuclear e extensa; desestruturação da família como:

ausência da infância enquanto estágio prolongado, iniciação sexual precoce e falta de

privacidade e, por fim, um forte sentimento de marginalidade, desamparo, dependência,

inferioridade, uma baixa auto-estima que envolve o indivíduo e a família como um todo.

Desta maneira o crescimento populacional, a distribuição desigual de condições

socioeconômica (desemprego, baixo renda) e de serviços urbanos (saneamento, infra-

estrutura) são fatores relevantes da vulnerabilidade socioambiental que leva a segregação

espacial, crescimento de ocupações irregulares e exclusão social dos indivíduos. Podemos

dizer que a vulnerabilidade socioambiental pode ser considerada como representativa da

situação que prevalece nas cidades levando a uma desigualdade social, que divide esta em

espaços preteridos e espaços excluídos.

Czeresnia (2003) faz referência a vulnerabilidade, pois uma situação que pode nos

deixar vulnerável sob um aspecto pode nos proteger sob outro. Estamos sempre vulneráveis

em diferentes graus. A vulnerabilidade então é algo dinâmico mudando constantemente ao

longo do tempo. Portanto, as pessoas não “são” vulneráveis, elas “estão” vulneráveis sempre a

algo, em algum grau e forma, e num certo ponto do tempo e espaço.

Logo, a vulnerabilidade das famílias ou grupos está diretamente ligada à alta

densidade demográfica, pois se refere a maior ou menor capacidade de controlar as forças que

afetam seu bem-estar, ou seja, a posse ou controle de ativos que constituem os recursos

31

requeridos para aproveitamento das oportunidades propiciadas pelo Estado, mercado ou

sociedade (LIMA, 1989).

No entanto, a alta densidade e a vulnerabilidade socioambiental estão associadas a um

contexto global como: a composição familiar, as condições de saúde, o acesso e a qualidade

do sistema educacional, a possibilidade de obter trabalho, o lugar ou espaço onde está

inserido, a existência de políticas e garantias legais. Por exemplo, uma vez que os recursos

cognitivos, sociais, ambientais possuídos por esse grupo podem ser insuficientes para lhe

garantir níveis adequados de bem estar, isso o expõe, assim, a riscos variados como agravos à

saúde, violência e desajustes comportamentais (LACERDA e MOURA, 1990).

As famílias que estão inseridas neste contexto vivem à margem da cidadania e das

possibilidades de um adequado desenvolvimento psicossocial. Desta forma, essas que habitam

os aglomerados urbanos e enfrentam inúmeros fatores de vulnerabilidade social, econômica e

ambiental, podem apresentar comprometimento psicossocial no seu desenvolvimento,

podendo seguir comportamentos não muito sadios (CARVALHO, 2000). As populações

desses lugares se encontram vulneráveis seja pelo acesso limitado a serviços de saneamento

(água tratada, coleta e tratamento de esgoto, coleta e disposição final do lixo, pavimentação de

ruas), suscetibilidades a inundações, estando expostas tanto a situações de ameaça a vida

quanto de exposição a doença.

A perda do espaço físico, o surgimento de aglomerado e alta densidade demográfica se

associa a uma complexidade de fatores que acabam por mostrar estruturas problemáticas da

sociedade e das pessoas em seus aspectos psicossociais e culturais. Essa escassez do espaço

individual e coletivo acaba por favorecer uma disputa por espaço e muitas vezes um

distanciamento das relações, fazendo com que haja crescimento relevante dos problemas

ambientais, reduzindo os recursos naturais, favorecendo a pobreza e a exclusão

socioambiental.

32

Assim, responder à questão “como as pessoas que vivem em lugares de alta densidade

demográfica e grande vulnerabilidade habitacional interagem com esse ambiente e com as

demais pessoas”, pode contribuir de forma significativa para uma reflexão sobre as condições

de vida urbana que as cidades estão oferecendo hoje (FISCHER, s/d).

2 A RELAÇÃO DA PESSOA COM SEU AMBIENTE

Todas as ações, as relações do homem no mundo acontecem em diferentes espaços,

como por exemplo, desde o espaço individual até o espaço público nas cidades. O homem vai

assim moldando seu espaço ao mesmo tempo em que é moldado por este, construindo uma

relação com o contexto no qual está inserido, adquirindo as especificidades deste contexto e

inserindo suas próprias marcas, tornando-o seu lugar e de sua família (FISCHER, s/d). Desta

forma, compreender a relação no espaço se dá a partir da maneira como o homem utiliza esse

espaço, como o trata afetiva e cognitivamente, as relações sociais que estabelece e como

transforma em seu lugar de moradia.

Toda relação estabelecida e vivenciada com o lugar num espaço se dá a partir de uma

experiência social vivida pelos grupos, pois se trata de uma linguagem relacionada com as

condições de vida de um determinado grupo (Ibid). Como se organizam, como habitam,

como se relacionam uns com os outros, depende de um contexto sócioambiental e cultural

vivido de forma individual e grupal. Fischer (s/d) nos alerta que toda a espacialidade é uma

manifestação das estruturas sociais. Daí a importância atribuída às relações que se

estabelecem entre pessoas e destas com seus diferentes espaços, as quais se configuram em

especificidades distintas.

Higuchi (2002) nos diz que a psicologia ecológica vem utilizando o termo behavior

setting para definir que todo comportamento é de alguma forma moldado pelo quadro espacial

33

em que se manifesta, revelando assim, que todo o espaço social se apresenta como uma

unidade composta de elementos físicos com dados sociais e culturais próprios dos lugares, dos

contextos e dos grupos que nele se movem. Desta maneira um espaço não existe em si

mesmo, mas através de um conjunto de símbolos e relações que se estabelecem no mesmo, ou

seja, as relações estabelecidas entre as pessoas num determinado ambiente tecem uma

organização espacial em que todos os elementos estão imbricados, numa interdependente e

permanente interação. Assim, compreende-se que a relação da pessoa com o espaço é

primordialmente social (FISCHER s/d; LEWIN, 1972).

O espaço social pode ser definido como sendo formado por conjuntos indissociáveis,

solidários e também contraditórios, de sistemas de objetos e sistemas de ações não

considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se realiza. Diz-se que

o espaço é social e historicamente construído. Esta construção se faz no processo da interação

contínua entre uma sociedade em movimento e um espaço físico particular que se modifica

permanentemente, sendo o espaço passivo e ativo, sempre num movimento, transformador da

vida social (SANTOS, 1987; COELHO, 2000).

O espaço vivenciado pela pessoa revela um ambiente de múltiplas dimensões, onde

cada lugar, com seus inúmeros objetos representam significados e comportamentos diferentes,

a sala de aula, a moradia, o trabalho são palcos onde as pessoas atuam diariamente, onde

percebemos e somos percebidos. Esses aspectos físicos fazem parte de um espaço social que

acabam retratando os aspectos sócio-culturais característicos das pessoas que nele estão

inseridas (HIGUCHI, 2002).

A partir desse contexto, percebe-se que o ambiente não se constrói por si mesmo, mas

na reciprocidade com a pessoa. Dessa relação e inter-relação entre os grupos e o espaço onde

estão inseridos é que resulta a própria identidade desse grupo no seu contexto social.

Wanderley e Menezes (1999) sustentam a idéia de que as pessoas, ao se relacionarem com o

34

espaço, acabam por encontrar seu território e sua identidade, assim para estes autores,

território é um aspecto das relações sociais.

Pensando nas relações vivenciadas no dia-a-dia e no universo cultural desses que

vivem em áreas pobres e excluídas que compõem a cidade de Manaus, percebe-se todo um

contexto físico de degradação e desestruturação. Mas se pensarmos além do espaço físico, isto

é com toda gama de relações estabelecidas entre seus moradores e de percepções também

vivenciadas por estes do espaço, se percebe então o universo subjetivo que se constrói e

reconstrói continuamente (FISCHER, s/d).

Sendo o lugar percebido e sentido de diferentes formas pelas pessoas, os locais que

possuem estrutura desorganizada, aspecto de sujeira espalhada por todos os lados, já que o

lixo também é objeto comum encontrado nos córregos e igarapé das áreas de ocupação

irregulares, onde as relações de vizinhança demonstram certo distanciamento e as pessoas

enfrentam falta de segurança, revela a relação muitas vezes desvalorizante e insatisfatória que

os seus ocupantes mantêm com o lugar em que habitam, sendo considerado tal aspecto como

forma sintomática de modo de vida sentindo de forma não muito saudável (Ibidem).

Higuchi (2002) afirma que a formação do meio ambiente é um aspecto das relações

sociais. Assim, a desestruturação socioambiental, na qual está inserida a pessoa, retrata

problemas de identidade e dignidade que se manifestam de uma forma ou de outra na saúde

da pessoa. Assim, o conhecimento dos diferentes espaços, das suas especificidades e das

relações que se estabelecem nestes, transforma-os em lugares pertencentes a uma pessoa e a

um grupo. É um processo gradativo para as pessoas que o vivenciam de forma subjetiva, por

meio de significados e sentidos produzidos pela cultura, que ganham expressão no modo de

ser de uma sociedade num decorrer histórico. Porém, a cidade como espaço urbano com suas

desigualdades, acaba por expressar as desigualdades sociais concretizando-as em

35

desigualdade, espaciais, demonstrando a sociedade desigual nas quais as pessoas vivem e o

quanto este contexto deixa vulnerável (OLIVEIRA, 2003).

Então um aspecto importante da pessoa se relacionar com os lugares é a forma como

se dá o processo de apropriação dos espaços, relacionados à maneira como interagem com o

ambiente e formam cognições a respeito. A apropriação, por sua vez, estaria diretamente

relacionada com o desenvolvimento da identidade (PINHEIRO, 2004).

É nesse contexto de relação socioambiental que se encontra a criança em pleno

processo de desenvolvimento aprendendo a agir sobre o meio, modificando-o e modelando-o

este de acordo com suas necessidades, partindo do ponto de vista de que a criança interage

com o ambiente de maneiras diferentes, em estágios diferentes e apresentando diferentes

demandas.

2.1. A criança e o ambiente

A partir dos estudos de Lewin verifica-se que o comportamento da pessoa é uma

função conjunta desta com o ambiente. Pois suas características em dado momento de sua

vida são uma função conjunta das características individuais e do ambiente vivenciado

diariamente. Assim o desenvolvimento consiste num processo de interação recíproca entre a

pessoa e o seu contexto, através da vivência diária e do tempo. Ratifica-se então que o

desenvolvimento ocorre através de processos de interação contínua, progressivamente

complexa, entre a pessoa com o ambiente, e outras pessoas, além de objetos e símbolos

presentes em seu ambiente imediato (BRONFENBRENNER, 1996; KOLLER, 2004).

A criança na vivência diária do seu ambiente e das pessoas a sua volta se torna capaz

de estabelecer relacionamentos interpessoais sozinha. A ecologia do desenvolvimento

humano vem fundamentar a idéia que conforme o mundo fenomenológico da criança se

amplia para incluir aspectos cada vez mais amplos e diferenciados do meio ambiente

36

ecológico, ela torna-a capaz não só de participar ativamente daquele ambiente, mas também

de modificar e aumentar sua estrutura e conteúdo (BRONFENBRENNER, 1996).

A fenomenologia se caracteriza pela ênfase ao “mundo da vida cotidiana”, um retorno

à totalidade do mundo vivido. De acordo com Coltro (2000), a fenomenologia tem como

objeto de investigação o fenômeno, isto é, uma investigação descritiva dos conteúdos do

fenômeno “aglomeração urbana nos seus aspectos” objetivos e subjetivos.

Esse mundo fenomenológico desenvolvente da criança é em suma uma construção da

realidade e não uma mera representação dessa realidade. Através das percepções e dos

processos cognitivos, a criança vai gradualmente interagindo com o ambiente e com as

pessoas, adaptando sua imaginação a realidade objetiva e remodelando o ambiente de acordo

com suas capacidades e necessidades. É essa capacidade de remodelar a realidade e o meio de

acordo com as necessidades humanas que de uma perspectiva ecológica representa a mais alta

expressão do desenvolvimento (Ibidem).

2.2 Aspectos cognitivos

Piaget (1970), a partir dos seus estudos, fala que o desenvolvimento cognitivo da

criança consiste numa sucessão de mudanças essencialmente estruturais, por exemplo, a

criança quando vê um chocalho apresentado pela mãe, tenta alcançá-lo e agarrá-lo para

brincar. Cada um destes meios está diretamente relacionado com o outro e com os estímulos

do ambiente, a esta relação é chamado estrutura. As estruturas da inteligência mudam através

da adaptação a situações novas e têm dois componentes: a assimilação e a acomodação. Piaget

entende o termo assimilação com a acepção ampla de uma integração de elementos novos em

estruturas ou esquemas já existentes.

Desta forma o organismo está sempre em atividade, num processo de desenvolvimento

contínuo, onde assimilar e acomodar são processos de procurar novos modos de

37

comportamento bem sucedidos, ou seja, modificar esquemas para resolver problemas que

resultam de experiências novas dentro do ambiente. A acomodação é processo ativo que se

manifesta como exploração, indagação, tentativa e erro. Por exemplo, a criança que aprendeu

a tirar tampas de garrafa, acha desorientadora uma tampa de rosca, até descobrir por tentativa

e erro, que é preciso virá-la, acomodando assim esse novo conhecimento. Portanto,

assimilação e acomodação são mecanismos complementares, não existindo um sem o outro

(PIAGET, 1970). Assim, a criança passa por diferentes processos no seu desenvolvimento, e

cada fase desse processo é descrita em função do melhor que a criança pode fazer naquele

momento e de acordo com seus limites.

Em toda a análise do processo de formação da inteligência a noção piagetiana de

estágio tem papel fundamental, o qual Piaget apresenta como forma de organização da

atividade mental, envolvendo os aspectos da atividade motora ou intelectual e o aspecto

afetivo.

Portanto, nos 18 primeiros meses de vida, a criança desenvolve e coordena suas ações

e suas percepções no estágio sensório-motor. Mais tarde a criança começa a usar símbolos

para representação de ação, desenvolvendo-se uma nova espécie de estágio, o

representacional. A este tipo de estágio, Piaget chamou de imitação retardada, devido à ação

ser repetida utilizando ações anteriormente vivenciadas. A linguagem começa a substituir as

ações. Depois do período sensório-motor, há um estágio de desenvolvimento no qual o

pensamento, embora com esquemas representativos, não chegou à fase conceitual, o chamado

estágio pré-conceitual, ou seja, a criança não é capaz ainda de formar classes, ver as suas

inter-relações, agrupar coisas. Desta forma, vê semelhança entre a nuvem e o algodão, associa

mãe à palmada. Não é possível estabelecer contigüidade temporal, em ontem, hoje e amanhã.

Chega uma fase em que a criança assimila experiências do mundo imediato e passa a ver tudo

em relação a si mesma. Esse pensamento é chamado egocentrismo. Mais adiante a criança

38

ainda não tem relação entre todo e parte, nem forma ações mentais internalizadas ou

operações que levem ao resultado. Na falta de estrutura que lhes permita fazer comparações, a

criança, neste estágio, baseia seu julgamento na percepção, o qual é chamado de pensamento

intuitivo (PIAGET, 1970).

As investigações de Piaget mostram que durante as primeiras fases do

desenvolvimento, a criança não percebe seu entorno como se fosse constituído por objetos

substanciais, permanentes e de dimensões constantes; pelo contrário, ela se comporta como se

estivesse frente a um mundo sem objetos e no qual o próprio espaço constitui-se um meio

sólido. Trata-se de um mundo de quadros perceptivos, cuja única realidade é a própria criança

e suas ações. A criança funciona como um sistema organizador do universo, evoluindo de

acordo com o aumento da complexidade das atividades de assimilação. Partindo da não

distinção entre ela mesma e os objetos, a criança passa a distinguir progressivamente os

objetos que estão em sua presença e, depois, começa a relacionar entre si os vários objetos

que aparecem em espaços já diferenciados, ora presentes, ora ausentes. No final do estágio

sensório motor, pela separação entre ação e percepção, a criança torna-se capaz da noção de

objeto permanente e idêntico a si mesmo, ainda que ele não esteja mais presente e sendo

manipulado por ela (PIAGET, 1970).

Do ponto de vista do espaço, a coordenação sucessiva das ações leva a criança

progressivamente, a conceber aqueles espaços individuais e separados do início do seu

desenvolvimento como um único espaço no qual ela se desloca como os objetos,

considerando a si mesma como um objeto, embora diferente dos demais. Mais tarde, ela busca

um espaço social onde possa se relacionar com outras crianças o que se dá através das

brincadeiras, atividades esportivas e escolares (Ibidem). Assim os aspectos cognitivos não se

consolidam de forma isolada das demais dimensões do desenvolvimento, mas numa inter-

relação mútua que favorece o aprendizado da criança.

39

2.3 Aspectos sociais e afetivos

A infância pré-escolar é o período da vida em que o mundo da realidade humana que

cerca a criança se torna um mundo de exploração e aprendizado, assimilando eficazmente

tudo que a cerca. Durante esse período o mundo que cerca a criança se decompõe, como se

fossem dois grupos: um que consiste de pessoas inteiramente relacionadas com ela, como pai,

mãe, irmãos, ou aquelas que ocupam lugares junto à criança e outro formado por todas as

demais pessoas, sendo que as relações com esta são mediadas pelas relações que ela

estabeleceu no primeiro círculo (LEONTIEV, 2001).

A transição da criança de um estágio de desenvolvimento para outro corresponde a

uma necessidade interior que está surgindo, parece uma mudança radical em um pequeno

espaço de tempo, porém psicologicamente a criança vai organizando e adaptando o

aprendizado dentro de seus limites básicos (Ibid). Agora a criança chega a mais uma etapa

onde já consegue internalizar idéias de classes e séries, utilizando-se da lógica. Essa fase é

conhecida por Piaget como operações concretas, e vai dos 6 aos 7 anos. Já na adolescência

atinge as operações formais mais abstratas, raciocina de um modo hipotético dedutivo

(PIAGET, 1970).

Dessa forma, através da relação de exploração da criança no ambiente, ou seja, de sua

vivência sensório-motora e interações sociais, ela tem a possibilidade no seu desenvolvimento

de construir impressões, significados e acomodar aprendizado sobre um determinado

ambiente atribuindo aspectos sociais associados à geografia dos lugares (HIGUCHI, 1999).

A medida que a criança cresce, aumenta sua consciência das relações espaciais, e dos

objetos que a definem. Embora, a palavra paisagem não tenha muito significado para a

criança pequena, sua concepção está sendo delineada. Ver a paisagem requer antes de tudo a

habilidade para fazer distinção entre o eu e os outros, uma habilidade ainda pouco

desenvolvida na criança de seis a sete anos (FISCHER, s/d). À medida que a criança recebe

40

mais e mais estimulações do meio, seu cérebro também se organiza lentamente, possibilitando

aprendizagem mais complexa como noção espacial e conhecimento da paisagem,

desenvolvendo melhor sua capacidade de percepção. Para a criança, lugar é um tipo de objeto

grande e um tanto imóvel, pois a princípio, as coisas grandes têm menos significado do que as

pequenas (TUAN, 1983).

O horizonte geográfico de uma criança também é expandido à medida que ela cresce,

seu interesse e conhecimento se fixam primeiro na pequena comunidade local, depois da

cidade seu interesse pode mudar para nação. Não é de surpreender, entretanto, que uma

criança possa demonstrar interesse pelas notícias de lugares distantes, pois, a sua vida é rica

em fantasias. No entanto, nos estudos de Tuan (1980; 1983), fica evidente a limitação de

aprofundamento dessa questão cognitiva na infância.

Diante dessa complexidade cognitiva do mundo em que a criança está engajada, como

ela compreende o seu ambiente? Tentando elucidar esses aspectos da cognição ambiental,

Higuchi (1999) desenvolveu um estudo com crianças em Manaus e apontou a existência de

cinco padrões de organização espacial que variam com a evolução da idade: começa por cinco

anos, o lugar de moradia da criança é concebido como uma coleção de objetos, de uso

doméstico, mas que não constitui um todo unificado, parecendo não haver relações entre os

mesmos e quando há uma identificação desta, passa a ser entendido de forma imediata e

direta. Após esta idade a criança demonstra organizar o entendimento do espaço de moradia

em áreas de alcance geográfico, partindo do interior da casa, sendo a casa o primeiro e único

construtor espacial compreendido como moradia, um pouco mais tarde, a criança passa a

integrar o quintal a esse foco central da casa e áreas adjacentes, mas sempre limitado ao

terreno. Portanto, a criança passa a incluir nestes domínios a rua mais próxima de sua casa e,

mais tarde, consegue visualizar a casa num conjunto com as demais casas da vizinhança,

como seu local de moradia. Já na adolescência a casa é vista como um ponto incorporado

41

numa localidade com muitas casas, caminhos, instituições e espaços de domínio específico

identificada como seu lugar de moradia. Higuchi (ibid) acrescenta ainda que o

desenvolvimento nas relações espaciais não ocorre num vácuo, mas está diretamente ligada a

experiências vivenciadas pelas crianças na conquista dos espaços em suas atividades diárias.

A criança utiliza-se da exploração que corresponde a um sistema comportamental que

capacita a interagir com o ambiente, a adquirir informação e construir sistemas de

conhecimento. Ela descobre e inicia ações em seu ambiente, seleciona parceiros, objetos e

áreas para suas atividades, mudando o ambiente através de seus comportamentos

(RABINOVICH, 2004). A experiência obtida nos espaços estrutura os padrões de

identificação da criança com o meio ambiente, segundo Tuan (1983, p. 10), “experienciar é

aprender, compreender, significa atuar sobre o espaço e poder criar a partir dele”. Portanto,

é necessário que o processo cognitivo se desenvolva através da compreensão e da apreensão

do espaço para que a pessoa possa conhecê-lo e ter a consciência da possibilidade de sua

atuação sobre ele.

O sentimento por um lugar para a criança é influenciado pelo conhecimento de fatos

básicos: se o lugar é natural ou construído e se é relativamente grande ou pequeno. A

vitalidade desta para explorar o espaço não condiz com a pausa reflexiva e com a olhada para

trás que faz com que os lugares pareçam saturados de significância. Assim, o espaço da

criança se amplia e se torna mais bem articulado à medida que ela reconhece e atinge mais

objetos e lugares permanentes (TUAN, 1983).

Portanto, o ambiente da criança depende não somente do lugar, do cenário ambiental,

mas também dos elementos presentes e da distribuição dos mesmos, além das inúmeras

variáveis que influenciam: cultural, econômica, social, de situação, que moldam o

comportamento e a identidade da pessoa assim como ela também influencia no ambiente

(MIRA, 1997).

42

A relação criança-ambiente seja na comunidade ou no bairro, produz estímulos

resultantes das suas dimensões, proporções e formas significantes a nível simbólico e

discursivo. Assim, da apreensão individual e coletiva desses estímulos resulta um capital de

conhecimento e de enriquecimento da personalidade individual ou coletiva e da capacidade de

vivência e convivência no espaço (REIS, 1988). A vida cotidiana vivenciada pelas crianças

nos espaços urbanos pode ser afetada por vários fatores de natureza sociológica que interagem

com elas, deixando-as vulneráveis. Dentre esses fatores, a alta densidade populacional será

objeto de análise. Como sente, o que pensa, a linguagem, as cores, as formas, os usos, enfim,

o modo da criança viver o cotidiano caracteriza sua relação com o ambiente. Quando esse

processo de identidade se desenvolve numa relação entre criança e espaço, esta estabelece

uma relação de pertencimento, dela para com seu lugar (CUNHA, 2000).

Para Soczka (1988), a possibilidade de privacidade espacial é fundamental no

desenvolvimento da autonomia infantil e da construção da identidade da criança que deve

aprender as relações entre família, vizinhos e colegas que com ela compartilham o mesmo

cenário ambiental. A criança no seu desenvolvimento psicológico e social necessita conhecer

as pessoas, o ambiente e seu entorno, pois essa relação vai possibilitar um desenvolvimento

saudável. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é dever da sociedade

em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos

referentes a vida, a saúde, a alimentação, a educação, ao esporte, ao lazer, a cultura, a

dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, para que a criança

possa ter um desenvolvimento cognitivo e afetivo saudável (Lei nº 8069 de 13 de Julho de

1990).

A psicologia ambiental vem ressaltando a necessidade de ambientes que promovam a

saúde integral, e um dos aspectos importantes é o lugar de habitação e a convivência

comunitária. Esses espaços devem contemplar oportunidades de desenvolvimento pessoal e

43

coletivo nas mais diversas dimensões da vida. O ambiente é uma dimensão que medeia a

convivência e as relações com outras pessoas e destas com outros recursos ambientais e

recursos naturais.

O ambiente no qual a criança está inserida torna-se fundamental para seu

desenvolvimento biopsicossocial, pois a forma como esta se relaciona, percebe e compreende

os diferentes ambientes são elementos constituintes de seu ideário subjacente das práticas que

virão.

3. A IMAGEM DO LUGAR

O espaço em que se vive, o qual a memória preserva, funde em si tanto o calor do

ambiente, quanto à segurança que nele se sente. Este, portanto, existe sempre conjugado a um

ambiente. Contudo não é uma relação linear e biunívoca: um mesmo espaço pode resultar em

ambientes diferentes, assim como ambientes similares não significam espaços iguais,

definindo-se o ambiente na relação que os homens estabelecem entre si, ou do homem

consigo mesmo, e ainda com o espaço construído e organizado (LIMA, 1989). Dentro deste

contexto a percepção da pessoa de seu espaço-ambiente se dá a partir de representações,

signos e da sensibilidade desta diante do espaço real vivido.

No espaço urbano onde transitamos cotidianamente, pode-se identificar e vivenciar

esse espaço através de lugares imediatos, como a casa, até os mais distantes como o bairro e a

cidade (TUAN, 1983; HIGUCHI, 1999), os quais são internalizados e acessados pelas

imagens formadas psiquicamente. Essas imagens são constituídas através das sensações e

experiências, produzindo estímulos resultantes das suas dimensões, proporções e formas

significantes, com conteúdo estético e semântico ao nível discursivo e simbólico. Da

apreensão individual e coletiva desses estímulos resulta um repertório de conhecimentos e de

44

enriquecimento da personalidade individual e coletiva (REIS, 1998). Vemos então que a

imagem que formamos do ambiente provém de um processo recíproco psicológico e social

entre pessoa e ambiente.

Os desenhos gráficos ou mapa mental, como define Lynch (1997), descreve como a

pessoa vê e percebe seu espaço. Higuchi e Kuhnen (2004) descrevem várias formas e técnicas

para acessar e dar ênfase às representações espaciais que designam o processo cognitivo pelo

qual as pessoas organizam e compreendem o mundo que as rodeia codificando, armazenando,

memorizando e reconstruindo a partir de critérios próprios, das informações relativas às

características de um ambiente. A imagem mental mostra a maneira como construímos a

nossa representação de um ambiente dado, formando mapas mentais que informam não sobre

o espaço tal como é, mas sobre a maneira como pensamos que ele é (FISCHER, s/d.).

A imagem é concretamente construída: o imaginário é estimulado ou desencadeado

pelas características urbanas. Assim sendo, a sintaxe do imaginário está diretamente vinculada

a identificação desses estímulos, ou seja, o imaginário faz da experiência urbana uma

revolução no repertório de informações de uma pessoa e amplia a percepção visual, até a

dimensão informacional (FERRARA, 1988). Assim, a percepção ambiental é aquela que

resgata o uso do espaço público ou privado, interpretando-o e dando-lhe contorno e definição

capazes de superar sua opacidade.

Os diferentes cenários e relações vivenciadas pelas pessoas influenciam a forma como

elas assimilam o ambiente. Isto ocorre em relação com o tempo e espaço do ambiente

percebido. Essas formas de representação se constroem tanto de forma direta, os ambientes

vividos, como de forma indireta, ambientes nos quais as pessoas não vivem diariamente, mas

o conhecem através de fotos, reproduzidos verbalmente por outras pessoas. Estes fatos são

decodificados pelas pessoas (PINHEIRO, 2004).

45

O mesmo autor, defende a idéia de que o desenho permite maneiras de compreender

ou conhecer o ambiente. A representação gráfica pressupõe que a pessoa faça uma tradução

sua do ambiente real vivido por ela. Trata-se de um instrumento antigo utilizado por

geógrafos e cartógrafos. As sociedades primitivas já utilizavam mapas de pequenas áreas

geográficas feitos por eles para auxiliar na orientação nas redondezas e, atualmente, têm sido

muito usadas com populações ribeirinhas na Amazônia (FRAXE et al., 2007). No entanto,

fala-se do uso da representação gráfica como estudo para compreender como a criança se

relaciona com o espaço vivenciado, a interação com ele, as relações sociais e as brincadeiras,

aspectos afetivos e sociais vividos dia-a-dia no ambiente. Como as crianças que vivem nas

cidades em lugares com restrição de espaço e de exclusão, percebem os aspectos objetivo e

subjetivo desses lugares.

Compreende-se que o estudo da representação gráfica infantil é associado à

apropriação e compreensão de seu mundo imediato. O desenho é um assunto muito pessoal,

cada desenho sendo o reflexo da compreensão própria e individual da pessoa e do seu

ambiente. Para Piaget (1970), a origem do conhecimento está na ação do sujeito quando

interage com o objeto e como o objeto, depende das estruturas mentais que ele possui num

determinado momento. De qualquer forma, é importante para qualquer investigação da

percepção ambiental o próprio investigador ter uma descrição detalhada do lugar que se quer

que a criança expresse. Assim, para entender a relação e compreensão da criança do seu

ambiente, buscou-se fazer a descrição física da localidade, detalhando o espaço e o cotidiano

das crianças nos próximos capítulos.

4 METODOLOGIA

Esta pesquisa é de natureza qualitativa incorporando múltiplas técnicas de

investigação iniciando com a observação participante feita na localidade, seguida de

46

entrevistas semi-estruturadas com os pais das crianças e finalmente a aplicação de mapas

cognitivos (representação gráfica da vivência socioespacial) com as crianças sujeito central

deste estudo.

Da observação participante foi possível realizar uma análise do contexto físico e

socioeconômico da localidade. Essa fase foi realizada a partir da inserção na localidade para

permitir um entendimento do contexto socioambiental daquela realidade, onde famílias se

fixaram e lá habitam de 2 a 7 anos mais ou menos. A duração dessa modalidade foi de

aproximadamente 3 meses, ou seja, as visitas foram feitas todos os dias da semana e final de

semana em horários alternados para compreender a dinâmica dos moradores e das crianças da

localidade. Além da participação nos grupos de atividades de educação ambiental com

crianças e adolescentes da localidade, que vinham sendo desenvolvidos desde junho de 2006,

pela equipe de pesquisadores do Núcleo de Estudos de Grupos Sociais na Amazônia, da

ULBRA-Manaus aos sábados de tarde.

Para a realização deste estudo optou-se por ter contato direto, freqüente e prolongado

com os moradores da localidade. A inserção na localidade possibilitou uma melhor interação

com as famílias e as crianças envolvidas na pesquisa. Assim as visitas diárias permitiram

compreender o cotidiano familiar e das crianças da localidade. O registro de dados foi feito

através de diário de campo no qual eram anotadas as observações, informações

complementares, incluindo ocorrências no contexto de observação, impressões sobre o

comportamento das crianças, idéias e discussões sobre assuntos específicos como: família,

brincadeira, espaço, escola e ambiente.

Após esse período inicial de observações do cotidiano da localidade, algumas famílias

foram selecionadas para serem unidades de análise de maior ênfase. Os participantes desta

fase da pesquisa foram mães e responsáveis das crianças, residentes há pelo menos 1 ano na

localidade. Foram realizadas as entrevistas semi-estruturadas com 20 mães, caracterizando

47

6% da população considerando as unidades domésticas, que residam aleatoriamente em

diferentes áreas da localidade (aproximadamente três famílias de cada beco que morassem lá

pelo menos um ano na localidade). Selecionaram-se mães que tinham sob sua

responsabilidade crianças na idade de 6 a 10 anos, tendo em vista que nesse estágio de

desenvolvimento, tais crianças solicitam um tipo de comportamento de uso social do

ambiente.

As entrevistas foram realizadas em diferentes horários e dias da semana, nos meses de

julho a outubro 2007. Houve dificuldade para encontrar as mães em casa, devido suas

atividades como: ir ao comércio do centro da cidade comprar material de costura, sair para

visitar um parente ou participar de atividades da igreja. Por isso, o acerto do horário se dava

somente na visita. Estando o adulto disponível naquele momento, a entrevista ocorria. Senão

voltava-se noutro dia até que fosse possível realizá-la.

Nas entrevistas foi utilizado um roteiro de observação do ambiente e de perguntas que

eram feitas à entrevistada e sempre que possível se usava um gravador, com a devida

permissão para gravar a conversa. As entrevistas foram posteriormente transcritas para se

proceder à análise. A entrevista era realizada a partir de duas ou mais visitas. A análise das

informações coletadas nas entrevistas com as mães foi de conteúdo que é um método de

tratamento e uma análise de informações colhidas por meio das técnicas de coletas de dados

consubstanciadas em um documento (CHIZZOTTI, 2003; BARDIN, 1997; BAUER, 2002).

A técnica de representação gráfica espacial foi feita com 15 crianças (sendo 10

meninas e 05 meninos), em idade de 06 a 10 anos, filhos e filhas das entrevistadas e que a

essa altura já eram participantes do grupo de encontro de educação ambiental que ocorria aos

sábados no quintal cedido por uma família residente na localidade2. No sábado a partir das

14h eram realizadas as atividades com as crianças. Nesse espaço foram realizadas atividades

2 Agradeço a generosidade da Srª Sara Souza que apesar de sua restrição de espaço familiar nos permitiu usar o seu terreno e lá desenvolver as atividades com as crianças e adolescentes todos os sábados.

48

sócio-educativas e recreativas em diversos temas como saúde, meio ambiente, habitação,

cultura, habilidades sociais entre outros. As atividades foram planejadas como

responsabilidade social da pesquisa, mas de alguma forma contribuíram como oportunidade

para obtenção de informações que foram usadas neste estudo.

Num primeiro momento foi pedido pela pesquisadora que as crianças se reunissem em

grupo de 05 (dividido por idade) para que iniciassem a atividade. A técnica de representação

gráfica (desenhos) foi aplicada com as crianças as quais foram solicitadas a desenhar numa

folha de papel branco 1m x 0,8m com a planta baixa da localidade (feita pela pesquisadora)

contendo apenas as vias de circulação e detalhes geográficos da área (Apêndice I) as

atividades que elas fazem-nos diferentes lugares de sua localidade. A instrução dada foi:

“neste cartaz, vocês vão desenhar tudo o que vocês fazem aqui nessa localidade onde vocês

moram, qualquer coisa seja durante a semana ou nos fins de semana. Olhem bem todo o

lugar e procurem se localizar para desenhar o que vocês fazem com seus amigos em cada

lugar”. Entretanto, para melhor compreensão dos participantes foi necessário dar maior

detalhamento, sugerindo o tipo de atividades que faziam, como por exemplo: “onde vocês

brincam, de que vocês brincam, com quem brincam e onde vocês fazem outras coisas,

qualquer coisa, tipo comprar, caminhar”. A atividade foi realizada durante 30 minutos. Ao

final cada equipe foi convidada a comentar sua produção. As informações foram gravadas

com autorização das crianças além da autorização já obtida dos pais através do Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (TCL) para posterior análise.

Os dados obtidos através das diferentes técnicas foram analisados associados uns com

os outros a fim de permitir um estudo singular com o objetivo proposto nesse trabalho.

Seguindo a orientação dos objetivos da pesquisa, o trabalho de análise consistiu

primeiramente, em uma leitura geral do material coletado, com a finalidade de identificar os

49

temas emergentes, o que permitiu num segundo momento, identificar os aspectos específicos

da temática em estudo.

Cabe salientar ainda que a pesquisa foi submetida à aprovação do Comitê de Ética em

Pesquisa da UFAM, conforme preconiza a Resolução MS 196/1996 -CONEP. Os adultos

(pais ou responsáveis) receberam e assinaram um Termo de Consentimento Livre Esclarecido,

para efetivar sua concordância na participação da pesquisa bem como autorizando suas

crianças a participarem do estudo.

5 DIMENSÃO FÍSICA DOS ACONTECIMENTOS SOCIAIS

5.1. A localidade

A presente pesquisa foi realizada numa área adjacente ao Conjunto Ouro Verde, que

outrora também se chamou “Carijó”3 Essa localidade surgiu a partir da ocupação espontânea

de uma área de charco constituída de buritizais, localizada no Final do Conjunto Ouro Verde,

Bairro Coroado III, Zona Leste de Manaus e rodeada por conjuntos habitacionais de alto

poder aquisitivo como Tiradentes, Ouro Negro e Condomínios como Ópera de Paris. Segundo

relatos de moradores, a ocupação ocorreu por vinte famílias provenientes do Maranhão, Pará e

interior do Estado do Amazonas. Este fato ocorreu em 1996, apesar da interferência da

Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SEMMA), juntamente com a Defesa Civil, para a

retirada dos ocupantes do local. A área findou como área residencial. Desde então, mais

3 A escolha dessa área se deu a partir de uma pesquisa maior desenvolvida pelos pesquisadores da ULBRA, realizada na localidade ainda denominada Carijó, que teve início em 2002 até 2004 tendo como título a “Saúde integral da família em situação de risco socioambiental na periferia de Manaus”, financiada pelo CNPq, contando com a participação de vários pesquisadores e de alguns bolsistas. Fui convidada a integrar como bolsista Apoio Técnico (AT) em 2003. A pesquisa teve prosseguimento no ano de 2005, com o agora denominado Grupo de Estudos de Grupos Sociais na Amazônia-CEULM-ULBRA, criado em 2004, onde atuo como colaboradora.

50

casebres foram sendo construídos e, aos poucos, sendo reformados, formando um lugar de

moradia, mesmo que com vários problemas ambientais.

Formalmente esta área não é reconhecida pelo nome que desejam seus moradores e

nem como área residencial. Os “de fora” a chamam de “invasão”, e os “de dentro” admitem

que possa ser ocupação, mas nunca uma “invasão”, confirmando a análise feita por Higuchi

(1999), onde a autora descreve que nesse processo de formação espontânea de moradia, a

invasão é um estado temporal e não geográfico. Para esses moradores, invasão não é lugar de

moradia, mas um estágio temporal de ocupação inicial, onde vão aparecendo as casas uma a

uma, com seus moradores, deixando de ser caracterizada como invasão para ser um lugar de

moradia. Essa denominação tenta fugir do estigma contra os ocupantes, tornando-os

invasores, pois estes consideram a busca de um lugar de moradia como direito de todo

cidadão. Assim, ocupação se torna um termo neutro e aceitável, retirando de si aspectos da

ilegalidade (LUMMERTZ et al., 2004).

Fisher (s/d) defende que a ocupação do espaço tomado faz com que o lugar seja uma

experimentação de uma vida social nova, a partir de regras, normas e cultura próprias desse

grupo. As famílias incorporam as especificidades desse espaço o chamando de seu lugar,

assumindo não só materialmente, mas afetivamente o lugar de moradia.

Dessa maneira, para uma melhor compreensão do cotidiano das famílias e crianças

que habitam este lugar, foi realizada a descrição física da localidade onde a pesquisadora, com

o auxílio de uma arquiteta4 percorreu todo o espaço físico desta contando casa por casa e

identificando os serviços e comércios da localidade. Foi assim criado um mapa da localidade,

que pudesse dar uma visão real da mesma (Figura 01).

4 Agradeço a Jaqueline Lobo, pela colaboração técnica nesse detalhamento espacial.

51

Figura 01 - Croqui da Localidade Ouro Verde, 2007 Fonte: Cruz, P. de G. e Lobo, J.

52

A localidade possui aproximadamente uma área de 32.663m² num perímetro de

884,91m (GOOGLE EARTH). A área verde foi completamente destruída para a construção

das casas que ocupam de uma forma densa e aglomerada todo o espaço físico da localidade.

Alguns pés de buritis que sobreviveram se encontram na área atrás da fábrica de plásticos,

protegida por um muro. Os buritizais foram derrubados ou morreram pelos impactos

provocados pelos moradores. Esse ambiente alagadiço com casas construídas sem nenhuma

infra-estrutura possui um sistema clandestino de água e energia na maioria dos becos. O

esgoto é totalmente inexistente, sendo tanto o lixo quanto os dejetos jogados nos córregos e

no igarapé Acariquara.

Ao identificar a origem da população residente na localidade, constatou-se que a

grande maioria dos entrevistados é nascido em Manaus (39%), seguidos dos nascidos no

Interior do Amazonas (39%) e os advindos de outros Estados (22%), como mostra a Tabela

01. De forma geral, todos em busca de melhores condições de vida e acabam se deparando

com uma realidade não muito satisfatória, devido ao ambiente alagadiço e insalubre que

habitam.

Tabela 01 - Procedência dos entrevistados Procedência TOTAL (%)

Manaus 39

Interior do Estado do Amazonas 39

Outros Estados 22

TOTAL 100

As famílias que já vivem na cidade não querem deixá-la e as que vêm do interior ou de

outros Estados a vêem como uma nova realidade onde irão construir seu espaço, mesmo que

não seja aquele idealizado, mas só o fato de estar na cidade já significa muito para elas. Viver

na cidade é uma forma de fazer parte de um contexto moderno e global, é fazer parte do

contexto social dos espaços que compreendem a cidade.

53

A localidade foi chamada de diversos nomes pelos moradores iniciando com “Carijó”,

“Ópera de Paris” (LUMMERTZ et al., 2004) e atualmente “Ouro Verde”. Foi denominada no

primeiro momento como Carijó devido ao apoio obtido pelos moradores de um político

conhecido, sendo, então, denominado como Carijó. O outro nome dado pelos moradores à

localidade, foi devido ao condomínio chamado Ópera de Paris, que fica próximo a ocupação.

O condomínio é um marco espacial para entrar na localidade que fica aos fundos. O

condomínio também serve como ponto de referência para quem deseja chegar à localidade.

Porém, verificou-se que devido a grande mobilidade social são poucos os moradores antigos

da ocupação, que a denominavam como Ópera de Paris, pois os novos a denominam como

“Ouro Verde”, em virtude de esta estar localizada no final do conjunto habitacional que tem

esse nome, pois para eles é percebida como uma extensão deste.

O acesso à localidade se dá normalmente pela Alameda Cosme Ferreira, através dos

inúmeros ônibus urbanos que passam próximo dessa. O acesso interno se dá somente a pé,

motocicletas ou bicicletas, pela inexistência de ruas largas o bastante para outros veículos. Os

becos são as vias de circulação das pessoas na localidade. São sete becos denominados Beco

Vitória I e II, Beco União, Beco Esperança, Beco Jesus Salvador, Beco Anne e Beco Santo

Expedito (todos na margem esquerda do Igarapé Acariquara) e a Travessa São Lucas (na

margem direita do igarapé) a qual também é dividida em pequenos Becos (Figura 02).

Cada beco tem uma característica diferente, uns mais estruturados, outros ainda em fase

inicial de organização (Figura 03). Esse arranjo reflete o tempo em que a ocupação ocorreu,

isto é, quanto mais tempo, mais organizado o beco se torna. O Beco Anne, por exemplo, já não

apresenta a paisagem inicial de córrego ao céu aberto verificada no relato do projeto da

ULBRA (LUMMERTZ et al., 2004).

54

Figura 02 - Vias de circulação: beco Nova esperança, 2007.

Fonte - Cruz, P. de G.

Atualmente existe uma tubulação de água passando por debaixo do barro batido. Além

disso, as casas já se apresentam, em sua maioria, em alvenaria. O que faz com que ocorra certa

diferenciação de uso social entre os moradores da macro localidade. Por exemplo, os

moradores do Beco Anne consideram-se aqueles que detêm um status social relativamente

superior aos demais moradores. Isso fica explícito em situações comuns do dia-a-dia, tais como

a proibição dos pais das crianças do Beco Anne de circularem no Beco Jesus Salvador e

Travessa São Lucas. Relatos de algumas mães que moram nos Becos Vitória I e II e União,

também deram ênfase sobre a não circulação dos seus filhos na área que fica do outro lado do

igarapé, pois de acordo com elas, a marginalidade e tráfico de drogas são constantes, sendo

considerados uma má influência e um perigo para as crianças que brincam naquela área.

Na Figura 01 (croqui) podemos verificar a sinuosidade da localidade, cortada e

entrecortada por seus inúmeros becos, córregos, e pequenas pontes que ligam os becos. A

divisão de cada beco determina um território ocupado por um determinado grupo, que se junta

a um grupo maior ou global para defender seu território e sua moradia.

55

Figura 03 - Pequeno beco, 2007. Fonte - Cruz, P. de G.

Percebem-se vários aglomerados de casas, cada uma com suas características próprias,

cercada ou não, com um pequeno quintal ou sem nenhum espaço, com algumas plantas ou

sem nenhuma planta, de madeira ou sendo construídas de alvenaria onde convivem e

sobrevivem famílias de baixo poder aquisitivo. Porém, os moradores têm uma certeza em

comum: a de ter o seu lugar, sua moradia, não dependendo de familiares e nem de aluguel.

A circulação interna é relativamente fácil, mesmo com a existência de inúmeros

córregos e do igarapé Acariquara que divide a localidade em duas áreas. Os moradores foram

construindo pequenas pontes de madeira ou pinguelas que permitem o acesso as duas margens

e serve também como atalhos as diferentes localidades externas. Os espaços de uso coletivo

são mínimos, devido o adensamento das casas e restrito perímetro residencial da localidade.

Nesse sentido as áreas de lazer se confundem com as áreas privadas do próprio morador ou

com as áreas de circulação.

O clima social na localidade revela uma realidade aparentemente bucólica. Os becos

barrentos são como fios de comunicação com nichos de paradas aqui e acolá onde as crianças

montam seu espaço para brincarem. As mulheres se sentam nos tijolos para comentarem

56

notícias os homens vão chegando como nada quisessem e puxarem conversa sobre um time de

futebol com o vizinho. Porém, mesmo com esses pequenos núcleos que se fixam nos becos, a

movimentação de passagem de pessoas é constante seja andando ou de moto. Se de dia há

certa calma, à noite os becos se tornam zonas de perigo. As galeras violentas e tráfico de

drogas são descritos pelos moradores como motivo de risco para a livre movimentação dos

moradores (Figura 04 e 05).

O estado da paisagem construída reflete ainda outros aspectos de ocupação. Existe

atualmente na localidade uma mobilidade um pouco menor que no início da ocupação. As

famílias em alguns becos menos antigos mudam-se com grande freqüência de residência seja

de um beco para outro, ou de um bairro para outro. Nos becos mais antigos onde as casas já

possuem uma estrutura melhor torna-se mais difícil essa mobilidade. A mobilidade pouco

favorece à coletividade.

Poucas vezes os moradores se reúnem, exceto em situações emergentes como, por

exemplo, para consertar uma ponte, ou solucionar algo que está incomodando ou

prejudicando a todos. Fora isso, cada morador se sustenta na sua individualidade já que não

existe um líder comunitário específico de toda a localidade, mas a liderança se materializa por

representantes informais dos becos. Esses líderes são pessoas que tomam frente a situação a

ser resolvida, e a ele ou ela lhe são conferidos a legitimidade de representante daquele beco.

É interessante acrescentar que nos primeiros momentos em que estive na localidade,

muitos moradores ficaram preocupados com minha presença, pensando que eu poderia ser

enviada da Prefeitura de Manaus ou do Estado a partir do Projeto PROSAMIM (Programa

Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus) e que poderia estar providenciando a retirada dos

mesmos daquela área. Essa insegurança faz com que estejam sempre em alerta sobre o que

está acontecendo na localidade, quem são as pessoas que andam por lá, o que fazem, pois

enquanto não têm a regularização dos terrenos, ficam receosos de um momento para outro de

57

serem retirados do local, uma vez que têm noção da irregularidade em que moram. Ao

mesmo tempo em que desejam e se empenham para permanecer no lugar e melhorar suas

casas, vivem a insegurança e medo de que, a qualquer hora, o poder público pode obrigá-los a

se retirarem do local.

Figura 04 – Lugar para circular no Beco Jesus Salvador, 2007.

Fonte - Cruz, P. de G.

Figura 05 – Lugar para conversar no Beco Jesus Salvador, 2007.

Fonte - Cruz, P. de G.

Num primeiro momento, a localidade pode ser percebida como uma grande

desorganização, casas amontoadas entrecortadas por córregos, becos estreitos onde não se

58

consegue ver seu ponto inicial nem o seu término. Esse olhar externo, não mostra, entretanto,

a compreensão forjada internamente pelos moradores. A organização interna é caracterizada

como a “dentro do possível”, pois se hoje está assim, já foi pior no passado e para o futuro

pensam em torná-la melhor. Seus moradores sabem onde termina um beco e começa o outro,

os terrenos são cercados por madeira, isopor, tubos plásticos e outros materiais que delimitam

o território de cada família, mas se essa fronteira não estiver visível todos sabem exatamente o

território de cada um.

Ao considerarmos essa produção do espaço urbanizado de forma espontânea e não

planejada, constatamos que, conforme Fischer (s/d), qualquer organização do espaço funciona

mais ou menos como um sistema de imposição. Tal manifestação indica como o espaço social

é inevitavelmente um vetor de mecanismos de integração ou de exclusões sociais.

Para Lynch (1997), os limites são as quebras de continuidade lineares, as delimitações

e divisões de um espaço, podem ser muros, paredes, margens de rios, igarapés, divisões

muitas vezes invisíveis mas que separam um espaço do outro. No entanto, do ponto de vista

da psicologia, o território é um espaço centrado a partir da posição que a pessoa ocupa nele se

estruturando em zonas subjetivas, ou seja, o primeiro limite é o lugar que o meu corpo ocupa

e o dos outros. Depois, vem o limite do espaço coletivo, o território dos vizinhos, dos que

moram no mesmo beco e o dos outros becos, e por fim o território dos que vivem na mesma

localidade, que enfrentam as mesmas dificuldades. Essas delimitações estruturam muitas

vezes relações de exclusão, que se traduzem no valor social e cultural de um espaço habitado

(FISCHER, s/d).

5.2. A moradia

Distribuídas nesse perímetro estão aproximadamente 350 (trezentos e cinqüenta) casas

construídas de maneira não uniforme. Não há uma ordem geométrica, mas topológica, onde as

59

construções foram feitas a partir do relevo que acomodaria um barraco, que depois vai se

tornando gradativamente uma casa, mais bem estruturada. Atualmente, constatamos que das

351 casas, o tipo de construção encontrado (média) foi de 60% em madeira, 36% em alvenaria

e 4% em material misto (alvenaria-madeira - Gráfico 01), onde convivem famílias

constituídas de pais, filhos, irmãos, parentes, num total de 6 a 8 pessoas por casa.

Constata-se, portanto, que a maioria das casas são construídas em madeira, retratando

a cronologia de ocupação estudada por Higuchi (2003), onde as casas de madeira estão aos

poucos dando lugar às paredes de tijolos. O material usado para construção da casa

normalmente foi feito no primeiro momento com madeira reaproveitada de construções

próximas. As reformas se iniciam quase invariavelmente pela frente das casas. Todo o

material de construção é armazenado na frente da casa, demonstrando assim um fenômeno

social de ascensão sócio-econômico que esses moradores estão conquistando aos poucos

(HIGUCHI, 1999; LUMMERTZ et al., 2004). Assim, a velha casa de madeira é quase que

sucumbida pela nova de alvenaria, erguida de forma imponente na frente da antiga casa. Além

disso, essa realidade reflete as condições econômicas das famílias que lá se instalaram.

Segundo os moradores, a casa de madeira é improvisada no momento em que é

construída. Porém se prolonga por anos, devido a maior parte dos provedores das famílias não

possuírem emprego com carteira assinada, sobrevivendo de bicos como auxiliar de pedreiro,

secretária do lar ou vendendo banana frita, confeccionando papagaios e outras alternativas de

atividades econômicas. Essa falta de condições econômicas é o aspecto principal que faz com

que o sonho de uma casa de alvenaria fique adiado por um longo período. Este espaço

ocupado é objeto de arranjos diversos e numerosos como limpeza, estruturação da casa,

acomodação, procurando no decorrer do tempo e das possibilidades o melhoramento do

espaço, para torná-lo habitável pela família.

60

Gráfico 01 – Tipos de materiais utilizados nas moradias.

O tamanho das casas é geralmente irregular, sendo pequenas e estreitas medindo em

média 3x5m ou pequenas e largas com 4x7m. Em muitos dos pequenos terrenos há mais de

uma casa construída, corroborando com a informação de Souza e Oliveira (2003), de que, em

aglomerados como esse em estudo, ocorre um fenômeno de adensamento de unidades

domésticas num mesmo pequeno espaço. Esse arranjo espacial se deve ao parcelamento do

terreno devido à necessidade de outros membros da família que não têm onde morar e acabam

aumentando o agrupamento familiar. Essa estratégia parece peculiar das famílias de baixa

renda (HIGUCHI, 1999). Porém a restrição do espaço entre as casas, a falta de locais para as

crianças brincarem e desenvolverem atividades esportivas, a falta de saneamento básico, de

infra-estrutura adequada à habitação como energia regular, água encanada são aspectos

vivenciados pelos moradores que caracterizam uma baixa qualidade de moradia (Figura 06).

Em geral, 90% das famílias vivem em casa própria comprada de antigos moradores,

que a adquiriu através da invasão, sendo, dessa forma mais barata. Apesar de haver casas

baratas, tem pessoas que não têm condições de pagar o preço do imóvel, morando de aluguel;

e quando isso também não dá para sustentar, acabam invadindo a casa que não está ocupada

pelo dono. Uma das moradoras disse que invadiu a casa de outro morador, já que este não

estava mais ocupando a casa. Agora está brigando para ficar com a casa. Percebe-se uma

61

disputa por espaço. A moradora vem de outros dois becos da própria localidade onde morava

alugado até invadir essa casa.

Figura 06 - Habitação a margem do igarapé Acariquara, 2007.

Fonte: Cruz, P. de G.

Há uma quantidade razoável de pessoas dividindo o mesmo espaço (levando em

consideração a estrutura física), de modo que seus ocupantes possuem restrições severas de

privacidade. Tendo em vista que as pessoas moram em pequenas casas que medem de 15m2 a

no máximo 28m2, a privacidade visual é bastante reduzida. Já a privacidade acústica fica mais

ainda prejudicada tendo em vista que o tipo de material de construção da casa favorece ou

dificulta esse a entrada do som.

Se considerarmos, de forma objetiva, os dados sobre alta densidade, não há alta

densidade demográfica verificada no número de pessoas por metro quadrado na localidade, de

acordo com a equação P/A (população por área) utilizada pelo IBGE, pois é encontrado nesta

menos de um habitante por metro quadrado. Porém a alta densidade é percebida na localidade

nos inúmeros obstáculos que inviabilizam a área, diminuindo esta e transformando-a num

aglomerado urbano. O igarapé com esgoto que corta a localidade, os inúmeros córregos, a não

organização do espaço, a variação do tamanho dos terrenos e residências e a distribuição

destas de forma irregular, mostram um contexto aglomerado das moradias. Este contexto

62

corrobora com o que afirma Fisher (s/d): a falta de espaço físico é ligada às condições

psicossociais, afetivo, cognitiva, social, comportamental, na medida em que o ambiente físico

tem características não apropriadas ou opostas às necessidades e as expectativas das pessoas.

De modo geral essas casas possuem de 2 a 5 cômodos, sendo um percentual de 40%

para as de 5 cômodos (dois quartos, sala, cozinha, banheiro), seguida de 25% para casas de

dois cômodos (sala-quarto, cozinha, banheiro fora) e outras (Tabela 02).

Tabela 02 - Número de ocupantes e Número de cômodos da moradia. Cômodos Ocupantes Total (%)

01 05 a 06 pessoas 10%

02 05 a 06 pessoas 25%

03 03 a 06 pessoas 25%

05 04 a 12 pessoas 40%

Essa porcentagem mostra que a maioria das casas não é tão pequena como aparenta

ser. Apesar de serem erguidas de alvenaria inacabada ou madeira, possuem divisões espaciais

específicas, quarto, sala, cozinha e sanitários. Os sanitários são, em geral, construídos do lado

de fora da casa, sobre o igarapé, onde caem os dejetos. Não raro o banheiro divide o mesmo

lugar com a cozinha. O número de casas que possui quintal ou um espaço aberto na frente do

terreno é bastante reduzido, quando tem, plantam-se flores, hortaliças, fruteiras como acerola

e outras. A divisão adequada dos cômodos, nem dos móveis, dando uma aparência de falta de

espaço. Os móveis velhos e os novos se misturam dentro de uma “desorganização” como se

estivesse sobrando espaço num local da casa e faltando noutro. Há uma oposição entre o

modo de funcionamento recomendado e a utilização real do espaço, pois os moradores

desenvolvem estratégias próprias que geralmente terminam em uma reorganização simbólica

do espaço (RABINOVICH, 2004).

Assim, a família se comporta como se não houvesse espaço para todos, amontoam-se

apenas em um local. O ambiente da casa possui características específicas socioculturais de

seus moradores, ou seja, estas incorporam ideologias em termos de status social que podem

63

ser manifestadas na construção das casas, na organização do espaço, no comportamento das

crianças e dos demais ocupantes. O significado dado pelas pessoas à sua vivência diária está

inevitavelmente materializado nas casas (HIGUCHI, 1999).

A média de pessoas por moradia é de aproximadamente seis, 20% dos moradores da

localidade são adolescentes com idade de 11-17 anos, 45% de crianças com idade de 1-10

anos, 33% de adultos divididos entre pais e filhos com mais de 19 anos e 2% idosos (Pesquisa

de Campo, 2007). Estes dados mostram que a população apresenta características de

população jovem, demonstrando ainda um alto índice de fecundidade nas famílias de baixo

poder aquisitivo (SOUZA e OLIVEIRA, 2003).

De modo geral a formação das unidades domésticas cujas mães foram entrevistadas, é

nuclear, isto é, formada por pai, mãe e filhos. Constatou-se que 50% vivem maritalmente,

40% são casados, 5% solteiros e 5% outros. A maioria das entrevistadas mora há mais de dois

anos na localidade e diz gostar de morar nela, apesar das dificuldades encontradas.

Em relação a casa própria há uma preocupação crucial em ser proprietário de uma

casa, mesmo que esta casa esteja localizada em um lugar de precárias condições habitacionais.

O fato de não pagar água, luz (obtidas de forma clandestina) nem aluguel favorece a

população carente. Morar perto, isto é estar no centro dos lugares de que se necessita para a

vida cotidiana também rege a satisfação de morar mesmo que em lugares de precárias

condições de moradia. Conta-se nesse aspecto a economia de gasto com transporte coletivo

para se deslocar a escola, aos atendimentos de emergência e de compras, entre outras

facilidades. Estar perto parece ser o ponto principal de satisfação com o lugar e assim nomeá-

lo de “o melhor lugar” para morar, tal como expressam essas moradoras: “Aqui é o melhor

bairro de morar, o centro é perto, o colégio é perto”; “É tudo esse local, porque tenho onde

morar. Aqui é meu, meu lar, posso sair e entrar a hora que quiser”.

64

Morar bem implica também simplesmente “morar na cidade”. Morar na cidade, em

contraposição a morar no interior, para as moradoras da localidade, tem aspectos positivos

“Gosto tem mais emprego, meio de vida melhor que lá [Falava de Borba interior do

Amazonas]”. Para elas um dos benefícios da cidade é a “condição de vida melhor” tais como

a disponibilidade de atendimento médico numa emergência de doença ou acidente; maior

acessibilidade à escola para a educação dos filhos, mais oportunidades de trabalho e de

transporte para os adultos. Estes relatos confirmam essas opiniões: “É mais fácil o meio de

transporte, hospital, se acontecer algo grave”; “Facilidade de trabalho e estudo”.

No entanto, as dificuldades de se viver numa cidade também foram relatadas pelas

entrevistadas, tais como o medo de roubos e assaltos, medo da violência urbana, oferta de

drogas, além de outros aspectos relativos ao próprio lugar da cidade em que estão morando

como alagação e poluição. Se morar no interior lhes dava liberdade de ir e vir, lhes tolhia no

acesso aos benefícios dos serviços sociais, morar na cidade lhes dá essas possibilidades lhes

tolhe também o direito da mobilidade segura. Muitas mulheres passam a maior parte do tempo

dentro de casa, seja pelo medo de sair ou de deixar a casa sem vigilância. De acordo com Reis

(1988), a cidade aglomera geograficamente núcleos de pobreza e subdesenvolvimento e com

isso maiores riscos para as famílias de baixo poder aquisitivo, que enfrentam diariamente todo

tipo de dificuldades, que pode levá-las a desenvolver problemas no comportamento social,

como distanciamento das relações, fobias e desconfiança.

Ao falar da cidade de Manaus as entrevistadas citam como ponto de referência alguns

pontos difundidos na mídia. Poucos são os lugares que as mesmas freqüentam assiduamente.

A maioria respondeu que o local de referência que conhecem é a Ponta Negra, outras falaram

do Porto de Manaus, dos prédios antigos do centro, da Praça da Saudade, mostrando uma

inter-relação com os espaços públicos da cidade. Porém um lugar da cidade que gostariam de

conhecer é o Teatro Amazonas. Simbolicamente estes lugares citados são como uma

65

referência de “eu faço parte da cidade” “conheço a cidade e me relaciono com ela”. Por meio

das condições econômicas se percebe um certo afastamento desse grupo no que se refere a ter

acesso aos espaços da cidade como é definido por Fisher (s/d), porém, procuram de alguma

forma, em algum momento interagir com o espaço, para que possa ser relacionada a sua

vivência na cidade. A fala da moradora representa bem o que se abordou: “Aqui em Manaus

tem muitos lugares bonitos, escondidos. Eu conheço a Ponta Negra, mas ir a Ponta Negra

não dá, a gente tem que gastar com ônibus, até chegar lá, não da vontade de se divertir”.

Assim, a relação das famílias da localidade com a cidade se dá de forma restrita, quase

inexistente. Cruz (1998) realizou um estudo que aponta para uma “guetificação das cidades”,

onde famílias de poder econômico mais elevado são levadas à vivência e convivência em

shopping-center, clubes, centros culturais. Enquanto que as menos favorecidas permanecem

na proximidade de seus lugares de moradia, ou eventualmente se dirigem a lugares públicos

mais populares da cidade.

5.3. Contexto socioeconômico das famílias

A economia interna da localidade expressa o baixo poder aquisitivo de seus

moradores. Constatou-se que os pequenos serviços correspondem a 38% na localidade e o

micro-comércio a 62%, os quais parecem suprir necessidades básicas dessa população. Tanto

os serviços quanto os comércios são feitos nas próprias residências, por exemplo: taberna,

confecção de roupa, oficina de eletrodoméstico, lanche, salão de beleza, manicure, costura,

venda de din-din, cosméticos. Os serviços e comércio estão distribuídos em toda a localidade.

Porém, os mais estruturados se localizam na Rua Desembargador Felismino Soares, que faz

frente à área ocupada. Nessa área há pequenas oficinas, restaurante e supermercado que

suprem tanto ao Ouro Verde como à localidade.

66

Os moradores têm à sua disposição duas grandes escolas públicas que atendem ao

conjunto Ouro Verde e a localidade: Escola Municipal Ray Holanda e Escola Estadual

Antônio Maurity Monteiro Coelho. A maioria das crianças e dos adolescentes está estudando

nessas escolas, exceto algumas poucas que não conseguiram matrícula. Em relação ao

atendimento médico, existe uma “Casa de Saúde” (Projeto do Governo Federal que visa

atender as famílias residentes no bairro disponibilizando uma equipe técnica formada por

agentes comunitários e profissionais de saúde). Além disso, há um Posto Médico de

Referência do Ouro Verde, ambos ficam próximos da localidade, permitindo o acesso a pé ou

de ônibus.

Neste cenário de residências, concorda-se com a análise feita por Fisher (s/d), de que

essas vias de circulação são áreas intersticiais que se tornam de uso público, não só de

mobilidade, mas, sobretudo de interações com vizinhos e lazer paras crianças. Verifica-se que

os becos são lugares de micro-acontecimentos, seja de passagem ou de encontros. Quando as

crianças e adolescentes não estão brincando no beco ou próximo ao igarapé, estão em casa

assistindo televisão ou se embalando na rede.

O lazer é concentrado na televisão, aparelho de som e rádio, que embora seja o prazer

dos que os ligam é o tormento dos vizinhos que naquela hora não querem ouvir, ou não

podem ter seu som claramente audível. De modo geral todos reclamam pelo alto volume em

que é ligado o som do vizinho, não se dando conta que em certos momentos ele/ela própria é

quem perturba o outro de quem reclama.

O espaço público de lazer mais próximo à localidade é uma pequena praça que fica

logo após a Escola Antônio Mauriti. Porém, segundo moradores da localidade, os moradores

do conjunto Ouro Verde não gostam que as pessoas da localidade freqüentem a praça. Há

uma disputa por espaço envolvendo a diferenciação de classes. Outro espaço é o Clube do

67

Trabalhador – SESI - que é freqüentado por estes quando está aberto ao público, pois só

freqüenta quem é associado, situação em que os moradores da localidade não se encaixam.

O baixo nível de escolaridade das mães entrevistadas é uma característica das famílias

de baixa renda. Cerca de 40% das entrevistadas têm apenas o ensino fundamental incompleto

(2ª - 8ª série), 5% tem o ensino médio incompleto (2º ano) e 8% das mães entrevistadas estão

no EJA (Educação de Jovens e Adultos) à noite. Segundo uma das moradoras, é muito difícil

estudar e ter que cuidar dos filhos, pois ela não tem com quem deixá-los e por isso muitas

vezes acaba levando os filhos consigo para a escola. Para as mães de baixo poder aquisitivo,

uma vez interrompido os estudos é muito difícil retornar, tendo em vista a falta de apoio

social no cuidado com os filhos.

Outro fator é que, na maioria das vezes, não são incentivadas pelos maridos que

preferem que fiquem em casa cuidando dos filhos. A possibilidade de alcançarem melhores

níveis educacionais é pequena, o que reduz também a chance de oportunidade de emprego e

renda, além do acesso à educação. Os maridos não estão diferentes, pois a maioria não

concluiu o ensino fundamental, o que contribui para reduzir a chance de melhor formação

para melhores empregos. Assim, com o mercado de trabalho cada vez mais exigente em

termos de qualificação profissional, a baixa escolaridade é um dos elementos principais para

determinar quem deve ser excluído do mercado de trabalho (BENTES, 2005).

De forma geral, as famílias possuem baixo poder aquisitivo; e a renda familiar na

maioria das vezes depende somente do homem, para dividir com gasto em educação,

transporte, alimentação, vestuário entre outras. A principal atividade econômica é fazer

“bicos” como pedreiro, auxiliar de pedreiro, pintor, ou serviços gerais. São poucos que

possuem carteira de trabalho assinada. Algumas mulheres complementam o orçamento

trabalhando como costureiras (fazendo roupas íntimas, roupa de criança), vendendo produtos

de beleza, fazendo manicure, ou ainda como empregadas domésticas ou faxineiras. A maior

68

parcela dos chefes da família ganha entre menos de um salário mínimo e dois salários.

Destaca-se, a partir desse contexto, a concentração no setor terciário onde se incluem as

atividades do mercado informal caracterizado pelo trabalho com pouca qualificação (SOUZA

e OLIVEIRA, 2003). Hoje tem um trabalho do qual o provedor da família retira o dinheiro

para a alimentação, mas e quando a obra acabar, ou a venda da banana frita não vai bem, se

torna difícil saber como vai ser amanhã.

As moradoras em sua maioria se encontram com idades que variam de 24 a 37 anos,

sendo o percentual maior de mulheres com idade de 30 -37 anos, que corresponde a 55% das

entrevistadas. Os rostos sofridos aparentam mais idade, mostram as dificuldades e

preocupações enfrentadas por elas desde muito jovens. A ausência de condições de vida

digna, a fadiga e o desgaste se acumulam na linearidade do próprio viver, deixando marcas do

cansaço nos rostos das moradoras. O fato das mães trabalharem em ocupações manuais

rotineiras no lar, as atividades se repetem continuamente, não há “férias” ou cortes de

cenários na rotina da vida destas famílias o que provoca um desgaste físico perceptível ao

olhar alheio (CARVALHO, 2000).

Na localidade, as famílias dizem ter uma religião e a seguirem, na medida do

possível. Das entrevistadas, 50% são evangélicas, 30% católicas, 10% de outra religião e 10%

têm mais de uma religião. A religião para elas acaba sendo uma forma de estudo e lazer, já

que as mães e crianças não têm outras atividades de lazer. Elas encontram na religião um

amparo. Participam dos grupos que são chamados de células religiosas, grupo de estudo

religioso, canto, dança, sendo a única forma de lazer que encontram para não permanecerem

na rotina de cuidar da casa e dos filhos.

São inúmeros os conflitos vivenciados no decorrer do tempo pelos moradores de um

mesmo beco. Por exemplo, a vizinha que chamou a polícia, pois o vizinho retirou o barro que

ela tinha colocado no início do beco para aterrar e subir a casa que está sendo invadida pela

69

água. Este alegou que precisava do espaço para ensaiar a ciranda com os adolescentes e

crianças da localidade. Há conflitos entre as crianças também onde uma briga com a outra por

brinquedo, ou porque uma brigou com a outra no colégio. Os pais interferem de uma forma

que não briguem entre si, ou seja, proíbem os filhos de brincarem, não deixam mais

freqüentar a casa assiduamente, mas a vizinhança permanece. Talvez o fato de não ser muito

sentida a discordância entre vizinhos seja devido às relações de vizinhança que demonstram

certo distanciamento, porém a necessidade de proteção e ajuda quando necessário fala mais

alto (FISCHER, s/d).

Assim, o dia-a-dia na localidade é um universo à parte, onde os conflitos vivenciados

deixam os moradores vulneráveis diante de algumas situações. Estes além de enfrentarem a

vulnerabilidade ambiental de um terreno alagadiço e rodeado por lixo enfrentam a

vulnerabilidade social, da falta de segurança e falta de políticas públicas eficientes que olhem

para eles.

5.4. A vivência na vulnerabilidade do ambiente

A localidade em sua estrutura física e social, como foi visto, apresenta um aspecto de

vulnerabilidade socioambiental, no qual as famílias não possuem estrutura adequada para sua

moradia, principalmente por suas condições econômicas que não permitem a mudança para

um local mais adequado para a criação dos filhos.

Verificou-se que a maioria das casas alaga quando o igarapé transborda, seja por uma

chuva forte ou pela cheia. As moradoras afirmaram que as casas próximas da margem do

igarapé alagam sempre, o que torna a vivência na localidade muito difícil. Este fato é o

principal motivo para elas desejarem se mudar; porém não chegam a realizar pelas óbvias

condições econômicas precárias. A alagação é sempre motivo de angústia pelo fato de

poderem perder seus bens materiais e também pela falta de possibilidade de sair de suas casas,

70

como conta uma das moradoras: “quando ta chovendo fica todo mundo trancado. Ninguém

sai, ninguém entra”.

Outro aspecto levantado foi a poluição e odor do igarapé e córregos, que incomoda as

famílias. Porém, diante das restrições de mudança, se conformam e, resignadas, suportam o

mau cheiro e as precárias condições de higiene do lugar. Devido a maior parte do lixo e

dejetos serem jogados no igarapé, provocando um acúmulo de lixo em certas partes dos

córregos (Figura 07), há proliferação incontrolada de ratos, baratas e insetos. Apesar de haver

coleta pública de lixo, este é jogado no igarapé ou espalhado por todos os becos.

Figura 07 – Lixo acumulado num córrego no Beco Jesus Salvador, 2007.

Fonte - Cruz, P. de G.

A tão falada lixeira comunitária é na verdade um lugar para despejar o lixo e assim

deixá-lo para a festa dos animais que o espalham no beco todo (Figura 08). Mesmo assim

percebe-se que as mulheres têm noção dessa precariedade ambiental e os riscos que estão

expostas: “Não gosto do Igarapé a fedentina é muito forte. Tenho vontade de sair daqui”; A

falta de infra-estrutura, saneamento básico e espaço para o lazer, também são fatores que

fazem os moradores pensar em se mudar, “igarapé e a lama nos becos, não têm asfalto”; “se

fosse urbanizado seria mais fácil para as crianças brincarem” “gostaria de mudar para um

lugar onde as crianças tivessem um local para brincar”. Os impactos ambientais provocados

71

pela ocupação irregular, desde o desmatamento acelerado até a poluição dos igarapés e

córregos, é ao mesmo tempo, produto e processo de transformação dinâmica e recíproca da

natureza e da sociedade estruturada em classes sociais. O que prejudica o bem-estar da

população que habita esse espaço (COELHO, 2000).

Figura 08 – Local onde a localidade deposita o lixo, no Beco Nova Esperança, 2007.

Fonte - Cruz, P. de G.

Foi relatado por uma das moradoras a tentativa de roubo de sua residência. Para esta,

viver na localidade é um perigo constante, não existe segurança nos becos. Assim, como não

existe segurança concedida pelos órgãos governamentais, o que lhes resta é uma proteção do

grupo, os vizinhos se protegem. Nessas situações todos se protegem para serem protegidos

também. Afinal o mesmo invasor da casa do vizinho pode invadir a casa ao lado também. Um

aspecto importante a considerar, na atribuição de significado ao ambiente, é a experiência

emocional que, além de ser um elemento básico na representação, define os tipos de transação

entre os indivíduos e o ambiente. Pois cada pessoa percebe o ambiente e o compreende de

uma forma diferente, individual e subjetivo tentando modificá-lo ou buscando se proteger

deste (MIRA, 1997).

Nessas condições precárias, as famílias da localidade vivem e convivem. É nesse lugar

que essas famílias estruturam e demarcam seu território de moradia. É nessa restrição espacial

72

que a identidade social das pessoas que habitam esse contexto se exprime também em termo

de identificação social e espaço de reprodução social aos seus filhos adolescentes ou ainda

crianças.

5. 5 O ambiente vivido pela criança

A localidade onde a criança vai se desenvolvendo e estabelecendo relações diárias,

possui suas próprias condições sociais que vão produzindo e reproduzindo a infância de

acordo com suas características ambientais (LOPES e VASCONCELLOS, 2006). A criança

da área adjacente do Ouro Verde aprende a vivenciar a infância com dificuldades e com uma

série de limitações sociais e ambientais. A infância idealizada vista pela televisão, cheia de

conforto, de brinquedos de última geração tecnológica, embora desejada pelos pais e pelas

próprias crianças, é apenas uma fantasia distante da realidade vivida. A infância desta

localidade é aquela em que se vive dentro do possível a partir de estratégias e adequações

peculiares.

O espaço de brincadeiras das crianças da localidade começa dentro de casa e se

estende até o beco (Figura 09). Na casa a criança não possui um lugar destinado para suas

brincadeiras. Esse lugar é reclamado e construído diariamente num fluxo de invenções e

negociações territoriais intermináveis. Seu aparato lúdico é ainda mais reduzido. Os poucos

brinquedos que as crianças têm à sua disposição, geralmente estão quebrados, sujos e

displicentemente espalhados pela casa ou pelo quintal. Se por um lado falta um lugar para

guardar os brinquedos, por outro o brinquedo está sempre à disposição da criança, mesmo que

contra a vontade da mãe que não se cansa de pedir para tirá-lo do caminho. Guardar os

brinquedos seria juntá-los num canto ou colocá-los numa sacola atrás da porta, jogá-los numa

caixa ou até num armário de múltiplo uso.

73

Figura 09 – Crianças brincando no beco, no Beco União, 2007.

Fonte - Cruz, P. de G.

Os filhos, crianças ou adolescentes dividem o pouco espaço da casa com todos que lá

moram. Não há um lugar onde um pode se isolar nos momentos das brigas ou das repreensões

que os pais dirigem aos filhos. Em algumas casas os filhos são privilegiados com espaços de

privacidade tais como a sua própria cama ou colchonete. Esse lugar que a criança poderia

considerar “só seu” é, mesmo assim, um território inexistente, pois a elas não é permitido ter

esse território individual. É na coletividade da casa ou do beco que a mente se organiza para

personalizar o espaço que o corpo ocupa naquele momento. Essas crianças estão aprendendo

que tomar posse de um lugar, é poder usá-lo neste momento presente, sem, contudo poder

chamar de seu. Na aglomeração não há parcelamento do espaço para pequenas necessidades

pessoais.

Ao brincar fora de casa, seja no beco ou entre as casas, a criança estende seu restrito

território familiar, e por isso não há necessidade de restringir esse vai e vem para fora da casa.

Estar “na rua” não é necessariamente estar “fora de casa”. É apenas estar brincando “lá fora”.

Nessa aglomeração, crianças de várias famílias usam o mesmo espaço considerando que sua

posse é ao mesmo tempo privativa e pública, por isso todas se relacionam entre si de forma

muito próxima, uma entra na casa da outra sem precisar pedir permissão, como se todas

morassem numa mesma grande casa, para compensar a real situação de sua casa. A casa

74

transmite um espaço de privacidade e intimidade em contraste com o espaço público e

impessoal da rua, porém o fato da pessoa pertencer a um mesmo grupo que sobrevive em

conjunto permite essa interação e aproximação dos espaços privados com os públicos

(HIGUCHI, 1999).

Assim, os pequenos becos estreitos são diariamente ocupados pelas crianças que,

quando chegam da escola, passam a maior parte de seu tempo brincando neles, só

interrompendo quando a mãe chama para alguma atividade seja comer, ajudar no trabalho

doméstico, comprar algo na taberna ou finalmente dormir. Não há um tempo determinado

para acabar com a brincadeira. Nem o sol causticante ou a chuva fria estabelecem esse ritmo.

É o cansaço ou a ordem determinada pelos pais que coloca um fim às brincadeiras. As

brincadeiras acontecem a qualquer momento, em diferentes horários, seja de manhã, de tarde

ou início da noite. Também não há restrição dos dias, pode ser diariamente, durante a semana

ou nos fins de semana, mas é neste que as crianças têm maior flexibilidade de horário por não

terem que acordar cedo para irem à escola.

As brincadeiras em que as crianças se engajam são diversificadas, mas há, em quase

todas elas, a centralidade do corpo como objeto principal de ludicidade. A criança utiliza-se

de forma criativa do pequeno espaço que tem e do material encontrado no próprio espaço,

para inventar suas próprias brincadeiras ou adequá-las à realidade encontrada. Há um

funcionamento e uma utilização real do espaço, onde o sujeito desenvolve estratégias próprias

que geralmente terminam em reorganização simbólica do espaço (RABINOVICH, 2004). Os

poucos objetos que fazem parte dessa atividade são improvisados e relativamente inéditas ou

bastante comuns em brincadeiras tais como Taco na Bola, Derruba Garrafão, Manja Pega,

Papagaio, Polícia e Ladrão, Bolinha de Gude, entre outras. Menino e menina têm suas

brincadeiras próprias, mas em algumas situações até conseguem brincar juntos. Se há uma

interação entre gêneros, há também uma interação entre gerações nas brincadeiras de crianças,

75

mas são os homens que mais interagem com os meninos nas disputas de papagaios que

dançam no céu, esperando que um deles caia para correr e apanhá-lo.

As atividades dos adultos podem ser para as crianças uma arena lúdica. No sábado os

adultos colocam o som para fora da casa, onde se sentam nos banquinhos de madeira e ficam

bebendo e saboreando o churrasquinho com os vizinhos. Enquanto os adultos estão fora de

casa as crianças se sentem livres para brincar com o olhar de proteção dos pais, mesmo que de

forma incipiente. Desta forma, há um respeito pelo espaço utilizado pelos pais, mesmo

quando as circunstâncias delimitam e obrigam a um considerável desconforto por falta de

espaço (LIMA, 1989).

Em alguns momentos, os adultos são problemas de densidade no mesmo lugar em que

a brincadeira está acontecendo. O vai e vem constante das pessoas do próprio lugar ou ainda

pessoas que acessam os becos para cortar um caminho e das motos que passam com muita

velocidade são obstáculos para essas crianças. Ou melhor, não são obstáculos, são apenas

situações previsíveis e facilmente contornadas com alguma estratégia que rapidamente surge

no grupo. Parar a brincadeira por alguns segundos, tirar a garrafa ou gritar para quem vai

passando “não pisa na bolinha” é coisa já pensada. Os corpos miudinhos das crianças

deslizam no espaço disputado, se encostam aos portões ou na cerca, sobem no batente de

forma tão rápida e hábil deixando a moto passar, ou os adultos carregados adentrarem sem

notificarem o evento recreativo em andamento. É um instante da vida real interrompendo a

fantasia. Nesse instante há um corte no filme, mas nada que impeça seu recomeço logo a

seguir. Colocam-se as garras de novo e volta-se a brincar, por que o importante é brincar.

Em certas ocasiões o território das brincadeiras é estendido para além daquele espaço

privado do entorno de suas casas. Ao brincarem de Polícia e Ladrão ou Manja Pega as

crianças se movimentam velozmente pelos becos até chegarem ao “Pó”. O lugar que as

crianças denominam de “pó” é o espaço reivindicado para conter toda a vivacidade infantil, à

76

revelia dos pais. Pó é o depósito de uma cerraria que fica próxima à localidade, onde há um

espaço maior onde elas gostam de correr, jogar futebol e soltar papagaio sem ser

interrompidas. O que se pode ver de negativo para a saúde da criança neste lugar de serragem

da madeira não se compara com outras dificuldades com que as crianças chegam a se

incomodar. O fato de passarem correndo e gritando perturba os vizinhos principalmente nos

horários em que estão descansando ou assistindo à televisão. As crianças são provavelmente

mais repreendidas pelo barulho que fazem do que pelo risco que estão correndo.

Se a localidade é árida e com poucas árvores, as que lá cresceram são impiedosamente

exploradas pelas crianças. Os galhos das duas únicas azeitoneiras, já de médio porte, são um

parque de diversão e academia de ginástica completa. Com a rapidez comparável aos

bichinhos da floresta, as crianças da cidade aglomerada sobem rapidamente pelo tronco, uma

atrás da outra. Em poucos minutos toda a turma está literalmente na árvore. Sentadas nos

galhos, olhando lá de cima, rindo, gritando uns com os outros, pilariando com quem vai

passando embaixo e aproveitando para fazer travessuras, fazem delas heroínas da floresta de

uma árvore só.

Quando a bola é a estrela maior da brincadeira, segui-la envolve árduas tarefas. Um

chute mal calculado e lá vai ela para dentro do poluído igarapé. Como perdê-la é algo

absolutamente impensável, alguém deve ir buscá-la antes que corra pra longe pela força da

água suja. Se uma vara não consegue servir como pinça um menino se lança fazendo piruetas

no ar e entrando na água. Já que está dentro e com a segurança de ter a bola de volta, o

menino aproveita para se refrescar na água, ignorando a sujeira visível ou invisível. Se no

caso da bola, o igarapé é um lugar inadequado para ficar com esse corpo estranho ao seu leito,

noutros casos o igarapé é o lugar ideal para encestar objetos. As crianças menores acham

graça jogar pedaços de madeira e pedrinhas no igarapé e vê-las desaparecer lentamente.

Sentadas na margem ou nos lugares privilegiados das pequenas pontes de madeira, as crianças

77

se debruçam para acompanhar as travessuras antes de algum adulto repreender. Tal qual

Rabinovich (2004), nos apresenta como as crianças de lugares longínquos desta localidade,

assim como as crianças desta, também preferem lugares que permitam e inspiram aventura e

imaginação nas suas brincadeiras. Por isso, costumam inadvertidamente se apropriar de

lugares que inspiram perigos, tais como janelas, beiras de igarapé, ruas movimentadas e

terrenos baldios. Na imaginação infantil, esses lugares incorporam uma característica de

atratividade, associadas à diversão. A exploração física do ambiente corresponde a um

sistema comportamental que capacita a criança a interagir com esse mesmo ambiente

(RABINOVICH, ibid).

Para as brincadeiras um tipo de vestimenta é preciso; e mesmo que não planejado, é

padronizado para as crianças de diferentes idades dessa densa localidade. Quando estão

brincando, os meninos menores vestem apenas o calção, estão descalços e despenteados. Já os

maiores vestem bermudão, camiseta ou regata e sandália de dedo. Todos mostram seus rostos

bem queimados do sol, mesmo que protegidos pelo boné que usam esporadicamente. As

meninas são mais vaidosas no trato com o cabelo e com suas roupas. De cabelo preso, saia

curtinha, blusinha de lycra, de sandália colorida, alguma maquiagem nos olhos sãos as

meninas maiores. As menores não dão tanta atenção a vaidade corporal. Ainda ficam de

bermuda ou shorts, e pouco se importam em estarem despenteadas e de pés descalços.

Se nos dias de sol tudo anda, é quando chove que a monotonia ataca o humor das

crianças e a paciência dos pais. Em dia de chuva os becos ficam encharcados de água, os

córregos e o igarapé transbordam alagando algumas casas ou chegam bem próximo

impedindo que as crianças saiam ou entrem nas casas. O livre movimento é cerceado pela

água. Nesses dias chuvosos apenas algumas crianças se arriscam a brincar fora do teto de suas

casas.

78

O lazer infantil pode ainda ter outros endereços, que são usualmente preparados pela

escola ou pelas igrejas locais. Muitas crianças freqüentam esses lugares por insistência dos

pais, outros pela conveniência das brincadeiras ou alimentação que é servida no local.

Se para quem está de fora, essas crianças parecem estar desamparadas e entregues ao

seu próprio destino, para os pais que lá residem, as crianças estão sob a proteção de todos e

principalmente de Deus, pois com Ele devem contar para que suas vidas sejam possíveis. Os

pais trabalham o dia todo, saem de casa ainda de madrugada. As mães que não trabalham fora

de casa, sempre têm algo a resolver em casa. lavam roupa, cozinham, limpam a casa,

costuram ou tomam conta de familiares doentes. Não conseguem muitas vezes acompanhar os

filhos que se deslocam no tempo e no espaço rapidamente. Resta as mães delegar aos filhos

mais velhos cuidar dos mais novos. Assim, o que se vê são crianças de 10 anos tomando conta

de crianças de 3 a 4 anos, para onde vão levam o irmão menor junto, como se brincassem de

cuidar de uma boneca. São crianças com deveres de adultos, que devido à sua condição

acabam tendo que amadurecer num tempo menor do que o esperado. É como se não existisse

uma separação entre o tempo de ser criança e o de ser adulto, responsável por outra criança.

Percebe-se que sem acesso aos serviços de creche, os pais por não terem emprego fixo, não

têm condições financeiras para arcar com as despesas dos serviços de babá, deixando as

crianças com os irmãos maiores, expondo-as a situações de risco que atentam contra o seu

bem-estar e desenvolvimento (BENTES, 2005).

A criança nesse contexto começa desde cedo a aprender a lidar com os limites do

espaço em que atua, seja na casa, nos estreitos becos entre a brincadeira e a moto, nas

pequenas pontes entre o menino que passa correndo e o trabalhador que vem com um carrinho

de mão vendendo algo, entre os bêbados sentados no batente da igreja bem perto da

azeitoneira que praticamente é o parque de diversões da criançada. Ela vai aprendendo que

hoje na frente de sua casa não dá para brincar porque simplesmente tem o material da

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construção que vai melhorar a casa, ou ainda no espaço que tinha, a vizinha fez o muro da

casa deixando o espaço mais estreito. Mas não seja por isso. Tem todo o resto do beco para

brincar, no entanto tem um, porém se a vizinha não reclamar do barulho. Assim vão

adquirindo maior competência e adaptabilidade para lidar com as inúmeras situações

vivenciadas no cotidiano, em como lidar com o espaço social existente.

O medo também é algo concreto na vida dessas crianças que estão todo o tempo em

estado de alerta para o que está acontecendo; uma briga no vizinho, a mãe que chama, o

bêbado que passa, os meninos mais velhos que andam em grupos e que usam droga, a polícia

que entrou na casa do menino para pega-lo. Tudo é motivo para ficar em alerta, pois eles não

sabem o que pode acontecer, esse comportamento talvez seja passado dos pais para os filhos,

já que estes sempre estão atentos para o que está acontecendo na localidade com medo de

serem retirados do local.

É nesse lugar de aglomeração de casas, de gente, de acontecimentos ininterruptos que

a criança vivencia o ambiente inseparavelmente da socialidade incorporada no lugar. Higuchi

(1999) acrescenta que o desenvolvimento nas relações espaciais não ocorre num vácuo, mas

está diretamente ligado a experiências vivenciadas pelas crianças na conquista dos espaços em

suas atividades diárias. Essas vivências são incorporadas cognitiva e afetivamente pelas

crianças. Em diferentes modos, as crianças representam esse ambiente onde se processa a vida

junto com outros moradores.

6. A DIMENSÃO FISICA E SOCIAL REPRESENTADA PELAS CR IANÇAS

A representação gráfica realizada é uma forma de expressar vivências que ocorrem

num determinado tempo ou lugar. De modo particular, é possível verificar como as crianças

usam socialmente o lugar e seus aparatos físicos e como se relacionam com outras pessoas por

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meio desses elementos. O mapa cognitivo (ou mental) é um instrumento utilizado para acessar

informações sobre o ambiente vivenciado pelas crianças, onde estão atreladas as funções

cognitivas, afetivas e as experiências diárias destas no seu contexto social (PINHEIRO, 2004).

De acordo com Delval (1998), a criança busca fazer um desenho realista, mas o que

reproduz da realidade é mais o que ela sabe do que vê. Assim, o desenho não é uma cópia da

realidade, mas uma cópia do modelo interno do que a criança possui e que aparece refletido

no desenho. São várias etapas do desenvolvimento. A criança vai desenvolvendo e

aprimorando a função cognitiva e sensório-motora no decorrer do que vivencia. Para ela o

desenho é uma forma de representação da realidade muito mais natural do que a escrita. No

entanto, o que mais contou foi o comentário que a criança fez sobre o desenho. Os desenhos

foram uma forma de acessar àquilo que a linguagem acabava limitando, devido à própria

condição de desenvolvimento em que a criança se encontra (DELVAL, 1998).

Os desenhos feitos pelas crianças são ricos em representações e significados, de como

elas se relacionam com o lugar de moradia. Cada desenho foi representado segundo a

percepção e a importância relativa que cada grupo de crianças dava aos ambientes explorados.

As crianças desenharam a partir de um croqui da localidade, preenchendo a área

apenas delineada pelas vias de circulação interna e externa. As Figuras 10, 11 e 12 mostram

graficamente a representação do uso social de cada local tal como os lugares onde costumam

passar, brincar, realizar tarefas domésticas e escolares. A representação do lugar inclui ainda

as brincadeiras mais comuns, os pontos de maior importância para elas, e as formas de

mobilidade desses espaços imediatos e mediatos. De maneira geral as crianças buscam usar o

lugar segundo suas necessidades, se identificando com os lugares do seu entorno, o que

favorece uma familiaridade com este interagindo diretamente no comportamento social e na

construção de sua identidade (RABINOVICH, 2004).

81

Dessa forma, foi possível identificar pelo menos três locais mais importantes para as

crianças onde acontecem atividades aqui denominadas lúdicas, domésticas e escolares. Essas

atividades não resumem a totalidade de uso social do espaço residencial, pois como já descrito

nos capítulos anteriores, há uma grande complexidade de atividades vividas pelas crianças.

Entretanto, o que fica saliente são os lugares onde moram e os lugares que abarcam as

brincadeiras, os lugares onde elas compram ou fazem algo para a família e o lugar onde elas

estudam.

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Figura 10. Desenho produzido pelo Grupo 01.

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Figura 11. Desenho produzido pelo Grupo 02.

84

Figura 12. Desenho produzido pelo Grupo 03.

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6.1. Lugar das brincadeiras e da diversão

As atividades nos becos foram representadas segundo a interação e a importância

relativa que cada criança dava às suas atividades naquele lugar em particular. Num lugar onde

não há necessariamente espaços reservados para atividades exclusivas, as crianças criam e

reivindicam espaços para sua mais importante atividade: a ludicidade. Para algumas crianças

os becos distantes de suas casas servem apenas de passagem, mas os becos próximos são

lugares onde acontecem importantes brincadeiras com os amigos. Para outras crianças mais

ousadas, todos os becos são explorados para as brincadeiras, sendo que cada um deles é

espaço para um tipo diferente de brincadeiras. As figuras mostram a riqueza de detalhes nos

lugares cujas experiências têm um significado maior.

Alguns lugares são conhecidos e legitimados como espaços de uma dada brincadeira.

Nos desenhos de dois grupos o terreno da Serraria ou do chamado “Pó” aparece com detalhes.

Nesse lugar bastante amplo e ocioso, existe um espaço grande no qual eles jogam bola e

soltam papagaio. Como o “Pó” é um lugar de risco, a assiduidade é relativa e condicionada à

não presença de adolescentes que usam o local para se drogarem. Como Lima (1989) nos

alerta, as crianças pobres, ao morarem em ambientes sem lazer descobrem espaços

correspondentes, nos quais brincam conforme esses espaços permitem.

Nesse espaço dos quais crianças e adolescentes se apossam para realizar atividades

diferentes, pode-se verificar uma disputa pelo território por haver uma hierarquia, os maiores

e mais velhos se apossam do espaço e os menores por imposição não devem ultrapassar os

limites (FISCHER, s/d). O que faz com que as crianças desistam de realizar suas atividades no

lugar chamado Pó como comenta uma delas “tia, a gente não vai mas lá na serraria, dá muito

cheira cola, não dá para brincar, então a gente não vai mas”.

86

As crianças da localidade permanecem mais tempo fora de casa brincando ou andando

pelos becos do que dentro de suas casas, uma das razões seria a falta de espaço, o barulho que

a criança faz em casa que acaba levando a bronca da mãe que utiliza o espaço doméstico para

as atividades domésticas e de trabalhos manuais que ajudam na renda familiar. Pelos desenhos

realizados, percebe-se que todos os lugares próximos a residência são os lugares preferidos,

ou permitidos para as crianças para ficarem. As brincadeiras são feitas em grupos e esses

lugares são considerados como territórios que lhes pertencem, pois lá se deu um sentido ao

lugar, há o que Fischer (s/d), nos aponta, uma apropriação social do espaço.

As crianças criam assim, territórios sociais exclusivos a si e ao grupo. Nesse espaço,

segundo Rabinovich (2004), há um corpo que se movimenta e através dessa movimentação e

informações que vai recebendo do meio e de si próprio, apropria-se tanto do meio quanto

adquire a noção de si próprio. A identidade social e espacial se define e se desenvolve dentro

daquele espaço apropriado pela criança e seus pares. Esse território é espaço de crescimento e

aprendizagem social que lhe dará um maior repertório de competência para lidar com outros

moradores e com o próprio ambiente físico. “tia, tem um espaço muito grande, um beco bem

grandão para a gente brincar”; “Quando não tem espaço na frente da minha casa para

brincar, a gente brinca em todo resto do beco, se a mulher não reclamar do barulho, senão,

vamos para outro beco”. Esses lugares ocupados pelas crianças são espaços onde ela se

relaciona com outras crianças e constrói noções relativas aos binômios alegria/tristeza,

segurança/insegurança, bom/ruim, grande/pequeno, permitido/proibido, individual/coletivo e

assim por diante.

As famosas azeitoneiras, já citadas no capítulo anterior, não poderiam faltar como

elemento importante desse ambiente de poucas possibilidades. As azeitoneiras são

consideradas como principal ponto de agregação grupal e diversão “ tia, os meninos ficam que

nem macaco pulando na árvore e comendo azeitona, é muito legal eu subo e fico olhando lá

87

de cima e comendo azeitona”. Para elas a atratividade associada a diversão parece ter um

caráter comunitário e gratuito em que o próprio ato de lá estar é divertido, não havendo

necessidade de algo especial ou planejado (RABINOVICH, 2004).

A igreja evangélica também está representada no desenho mostrando sua importância

como um espaço de reunião das crianças e dos pais assim, como também de lazer na

localidade. É um espaço social que reúne toda a família nos cultos e celebrações evangélicas.

“As meninas freqüentam o grupo de crianças da igreja, eu também participo tem dança,

coreografia”; “ Nos vamos para a igreja depois daqui da ulbra, é bem legal tem comida,

brincadeira, a gente sempre vai lancha lá”. Na Figura 8 mostra o acesso da criança a sua

vizinhança, a distância percorrida da moradia desta até os lugares que freqüenta, por quais

razões e sob que circunstâncias, seja pela quadra de esporte do conjunto habitacional

Tiradentes para suas brincadeiras, pelas ruas largas e praças do mesmo que fica bem próximo

a localidade e que aparece no desenho das crianças como o lugar para “brincar de muitas

coisas”. Como no estudo de Lima (1989), observa-se que as crianças conhecem

peculiaridades do espaço dos becos do entorno, da área da vizinhança imediata e mais

distantes. São lugares longe de casa, uma forma de desbravar outros lugares, se reunir em

pequenos grupos e juntos planejar a excursão aos espaços de outros com o objetivo de

apanhar frutas, de brincar de bola na quadra dos outros e de se aventurar na travessia da larga

e movimentada avenida. Essa aventura é para ser contada como ousadia e coragem mesmo

que tenha momentos de insegurança e medo. Assim, frases “nós atravessamos a rua e vamos

apanhar frutas tem manga, carambola,é muito legal ” é feito pra se comemorar.

Segundo Fischer (s/d), esses lugares representam espaços de errância, ou seja, lugares

para serem explorados pela novidade e pela necessidade de fuga da rotina que congela uma

maior inserção no mundo. Apesar da criança ter a noção bastante clara de propriedade, ela faz

uso de inserções no espaço do outro, não para tomá-lo, mas para sentir a diferença e

88

consolidar a posse do seu próprio lugar. É evidente que a criança faz uma separação entre o

seu lugar e o do outro, os quais não se confundem, mas pode se reivindicar um uso enquanto o

outro dono não está usando: “quando os meninos de lá não estão brincando na quadra a

gente brinca. A gente não brinca com eles não, só a gente mesmo, é muito legal”. Essa

movimentação leva a criança a desenvolver a independência de movimento aprendendo com o

passar do tempo a socialidade da estrutura espacial, bem como uma liberdade progressiva de

ação no espaço onde vive (FISCHER, s/d, NETO e MALHO, s/d).

6.2. Lugar de morar

Nas Figuras 10, 11 e 12 aparecem as representações de construções marcos, os quais

se tornam referências socioespacial de sua localidade (LYNCH, 1997), por exemplo, o Clube

do Trabalhador – SESI, que fica próximo a localidade, os prédios do Conjunto Habitacional

Ópera de Paris e o clube de dança denominado Forró do Mala. Tanto o SESI como os

Conjuntos habitacionais Tiradentes e Ópera de Paris aparecem como indicadores de

identidade de pertencimento a cidade, ou pelo menos a uma área distinta da cidade que podem

ser reconhecidos como moradores dela. Dessa forma, as crianças se integram na cidade, elas

moram num lugar que pode ser imediatamente localizado pelos marcos conhecidos e

valorizados. E por viverem próximos dessas referências são atingidos também por essa fama e

reconhecimento “aqui é o Forró do Mala, da muita gente, e aqui é o SESI, fica bem na

estrada todo mundo conhece, a senhora sabe né” Alguns marcos não são tão reconhecidos

como parte da cidade, mas como elementos da área, da zona leste, onde está a sua casa, e todo

morador conhece. Assim, foi a imagem do local onde vende-se as grandes piscinas azuis em

fibra de vidro, que de noite ficam reluzentes com os holofotes bem focados no objeto para

venda. E nesse lugar dificilmente os moradores podem de lá sair com a piscina seja grande ou

pequena. Entretanto, conhecer alguém que adquiriu algo nesse lugar, já é motivo de orgulho,

pois lá tem coisas de luxo à venda: “é o local onde vende piscina, fica aqui perto”.

89

A movimentação acelerada de veículos na Avenida que liga o centro da cidade para a

zona mais densamente populosa da cidade, a Alameda Cosme Ferreira também se torna um

elemento importante na imagem mental dessas crianças. O barulho, o movimento e o acesso

que a via possibilita é marcante. No desenho, os inúmeros veículos (carros, ônibus,

caminhões, motocicletas e bicicleta) constituem a densidade do fluxo contínuo, em cuja

periferia elas moram.

Percebe-se que as crianças têm uma percepção e identificação dos principais pontos

de importância para elas, da localidade. Desenharam com clareza os principais comércios

freqüentados por elas, os lugares das brincadeiras, a poluição do igarapé algo que convivem

diariamente e a aglomeração das casas. Lynch (1997) comenta sobre os cinco tipos de

elementos que se tornam comuns às pessoas que vivenciam um espaço físico e social: as vias

de acesso, os limites, os pontos nodais e pontos de referência que fazem parte do cotidiano

das pessoas que habitam ou trafegam por esse espaço. Ele afirma que “nada é vivenciado em

si mesmo, mas sempre em relação aos seus arredores”. Essas imagens acomodadas

diariamente formam um mapa cognitivo de um determinado espaço, representado com suas

características físicas e sociais a partir da imaginabilidade, nesse caso, das crianças que vivem

na localidade.

A imagem representada pela maioria das crianças é de quem já está se apropriando

daquele espaço para considerá-lo como seu, isto é, ser morador daquele lugar. Há diferentes

ângulos e a escala pode diferir, assim como as atividades podem contextualizar uma

cronologia distinta, e, portanto focos espaciais tornam-se centrais em algumas representações

e noutras são aspectos secundários. Assim, os desenhos feitos por elas são formas de perceber

os diferentes contextos sociais, a sua “linguagem” através de signos, símbolos e imagens que

são introjetados por estas e repassados através da visão das mesmas. As casas, o igarapé, as

90

brincadeiras e os lugares onde são realizadas, constituem porção e referenciais do espaço

experienciado (FISCHER, s/d).

6.3 Lugar de tarefas domésticas

Uma das atividades domésticas que as crianças são solicitadas a fazerem é a ida a

mercadinhos, mercearias e drogarias, a mando dos pais. Os locais como, por exemplo: o

mercadinho São Jorge, a mercearia do Wandeco são pontos nodais, lugares estratégicos que

concentram importância de uso pelo fato de serem comércios acessíveis por venderem coisas

“mais baratas”. Mesmo sendo a uma relativa distância, esses pontos de comércio passam a ser

referências para as crianças que atuam como mensageiros e compradores a granel. Mas

outros pontos nodais são também referência, não pelo comércio, mas pela relação social que

existe entre as pessoas da casa com os que lidam no estabelecimento. O mercadinho

Maranhão é um desses lugares para uma das crianças, pois “é onde meu tio trabalha”.

Nessa rede de compra e venda facilitada pelas ágeis pernas das crianças, os lugares são

explorados, vividos e conhecidos, impregnados de simbolismo. Comprar algo mais longe é

sinal de domínio, tal qual as grandes batalhas da história dos continentes. Quem compra no

mercadinho Karolina e nas Drogarias do Ouro Verde e Cunha são sem sombra de dúvida mais

ousados. Já quem freqüenta o mercadinho Da Esquina, em nada se vangloria, pois lá todo

mundo compra. É perto e fica na conjunção dos becos: “esse é o mercadinho da esquina onde

todo mundo compra, é bem perto, logo ali onde a senhora passa”.

São nesses lugares mais próximos ou mais distantes, que as crianças diariamente

freqüentam para comprar alimentos e uma diversidade de coisas solicitadas pelos pais, que os

espaços vão se criando e recriando. O fato de fazerem compras nesses diferentes lugares

permite às crianças construírem um conhecimento não apenas das estruturas físicas, mas os

acontecimentos sociais presentes nessas estruturas, aspectos que serão fatores de escolha na

91

sua vida. É a partir de estruturas simbólicas reconhecíveis (delimitações de becos, ruas, casa

de parentes, amigos ou locais freqüentados diariamente), que a criança organiza uma estrutura

simbólica do ambiente. Isso contribui para estabelecer uma relação social e afetiva segura

entre ela e o ambiente, mais próximo ou mais longínquo, desenvolvendo um sentimento de

pertença (NETO e MALHO, s/d).

6.4 Lugar de estudar

A escola é uma estrutura institucional inevitável na representação espacial e social

para essas crianças. É nas escolas que elas passam uma boa parte do dia, estudando e

realizando outras atividades. Dessa forma nos três desenhos foram representadas as escolas

onde estudam, Escola Ray Holanda e Escola Estadual Antônio Maurity, pois lá fazem parte de

um novo grupo social, onde se relacionam e se integram as normas e regras desse novo

contexto. Apesar de serem importantes para as crianças, como sendo as instituições de

aprendizado e de novos relacionamentos sociais, não foi feito nenhum comentário mais

específico sobre estas. Apresentaram as escolas como “onde estudam”. As atividades lúdicas

ficaram para a localidade, principalmente próximo onde moram.

Na representação gráfica realizada pelas crianças, foram apresentados os diferentes

espaços de circulação destas, desde o mais próximo até o mais longínquo. Os becos próximos

às suas casas foram apresentados como principal local das brincadeiras, pelo fato de se

sentirem segura e protegida, devido ao lugar ser uma extensão de suas casas “tia, eu fico mais

no beco Anne em frente de casa, pula corda com a Tani é legal” “eu brinco em todos os

becos, de manja, a gente corre na rua da escola, mas fico mais tempo aqui perto de casa”.

Porém, à vontade de explorar o novo faz com que estas fujam da mesmice e ampliem seu

território. As crianças desenharam a maneira como percebem e vêem o espaço que as

circunda. É uma tradução do real apresentada pelas crianças. Pois como Piaget (1970) afirma

92

a representação gráfica das crianças está associada à apropriação e compreensão do seu

mundo imediato, ou seja, da sensibilidade desta diante do espaço vivido e compreendido.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas restrições das pequenas casas, nos becos estreitos, na igreja consoladora, na escola

que promete um mundo novo e no igarapé que relembra o medo da chuva forte, do cheiro

fétido e das alagações, as crianças desta localidade acumulam experiências de vida que as

levam a descobrir e a desenvolver seus próprios processos adaptativos, para a integração

social e ambiental.

O lugar que acolhe uma criança é inevitavelmente referência para sua vida presente e

futura. Esse lugar é físico e social, é material e simbólico. Essa estrutura pode variar devido às

circunstâncias econômicas e ambientais. As crianças que vivem em condições degradantes,

em situações boas ou ruins não deixam de ter estas estruturas geográficas presentes na sua

formação como pessoa. Isso porque os aspectos objetivos e subjetivos do ambiente darão

suporte a sua vida psicossocial prospectiva. Ao explorar seu ambiente a criança vai

assimilando as diferentes especificidades deste tentando apreender e incorporar a realidade

encontrada. Os espaços são ajustados para as atividades de acordo com a necessidade. O

espaço, pela ação infantil se torna plástico, mutável e multiusável. Cada atividade exige da

criança esperteza, malícia, agilidade, criação e coragem para tornar seu dia-a-dia, mas

surpreendente e cheio. Talvez esta seja uma estratégia de sobrevivência às adversidades, a

qual emerge como uma importante ferramenta de vida dotada de valores incomuns, que

tangencia a marginalidade e a violência, que estão incrivelmente próximas do campo onde

jogam bola, do beco onde passam, da mercearia onde compram.

Apesar de se encontrarem num contexto que lhes é imposto por uma sociedade

economicamente desestruturada essas crianças apresentam alternativas próprias para realizar

as brincadeiras, ocupar seu espaço, não permitindo que lhes seja retirado o direito de ser

criança, mesmo que esse direito tenha mais objeções do que benevolências.

94

As crianças vivenciam diariamente a perda da privacidade seja na casa onde se torna

difícil encontrar um espaço para viver suas frustrações ou nos becos onde a disputa por um

espaço se torna visível a olhos alheios. Essas dificuldades e disputa por espaço vivenciadas

pelas crianças as levam a adquirir a habilidade para negociar os espaços coletivos,

reivindicando um “pedaço” do espaço para realizar suas atividades lúdicas. Assim, estas

aprendem a procurar e negociar espaços com a vizinhança e a encontrar alternativas espaciais

para as suas atividades.

As dificuldades econômicas enfrentadas pelas famílias e a perda dos espaços de

brincadeira devido aos riscos e perigos encontrados, levam as crianças que passam boa parte

do seu tempo nos becos a buscarem novos espaços sociais, mesmo que sejam distantes e que

para chegarem até lá enfrentem perigos.

A criança desses ambientes de alta densidade e insalubridade vivencia em seu

cotidiano adversidades que subtraem uma vida plenamente digna, mas não as paralisa em sua

trajetória de vida. É nesse ambiente que de forma penosa a criança aprende a remodelar o

espaço físico encontrado de acordo com as suas necessidades e negociar os espaços

existentes, o que possibilita competência e flexibilidade nas vivências do espaço social.

Pensando nas pessoas que vivem nessas zonas de aglomeração, e em particular nas

crianças, há necessidade das políticas públicas investirem em projetos urbanos visando as

áreas de ocupação irregular, que promovam a saúde integral daqueles que habitam esses

lugares. Esses espaços devem contemplar oportunidades de desenvolvimento pessoal e

coletivo nas mais diversas dimensões da vida.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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APÊNDICE – I CROQUI DAS VIAS DE CIRCULAÇÃO DA LOCAL IDADE