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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃOPAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA ARTE CRISTIANO ALEXANDRIA DE OLIVEIRA A EFICÁCIA DA IMAGEM EM GEORGES DIDI-HUBERMAN GUARULHOS 2016

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Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃOPAULO ESCOLA DE FILOSOFIA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃOPAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA ARTE

CRISTIANO ALEXANDRIA DE OLIVEIRA

A EFICÁCIA DA IMAGEM EM GEORGES DIDI-HUBERMAN

GUARULHOS

2016

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2

CRISTIANO ALEXANDRIA DE OLIVEIRA

A EFICÁCIA DA IMAGEM EM GEORGES DIDI-HUBERMAN

Dissertação apresentada como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em História da Arte

Universidade Federal de São Paulo

Área de concentração: História da Arte

Orientação: Prof. Dr. Osvaldo Fontes Filho

GUARULHOS

2016

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Oliveira, Cristiano Alexandria de.

A eficácia da imagem em Georges Didi-Huberman /

Cristiano Alexandria de Oliveira. Guarulhos, 2016.

164p.

Dissertação (Mestrado em História da Arte) –

Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas, 2016.

Orientação: Prof. Dr. Osvaldo Fontes Filho.

1. Imagem (Filosofia). 2. História da Arte (teoria).

3. Teoria da Arte. 4. Crítica de Arte. 5. Didi-

Huberman. I. Orientador. II. Título.

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2

Cristiano ALEXANDRIA DE Oliveira

A EFICÁCIA DA IMAGEM EM GEORGES DIDI-HUBERMAN

Dissertação apresentada como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em História da Arte

Universidade Federal de São Paulo

Área de concentração: História da Arte

Aprovação: ____/____/________

Prof. Dr. Osvaldo Fontes Filho

Universidade Federal de São Paulo

Profª. Drª. Rita Luciana Berti Bredariolli

Universidade Estadual Paulista

Profª. Drª. Lilian Santiago Ramos

Universidade Federal de São Paulo

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AGRADECIMENTOS

Esta pesquisa foi elaborada, de certo modo, solitariamente. Estive durante muito

tempo amparado apenas pelos livros de Georges Didi-Huberman – companheiros de noites

em claro, objetos de incompreensões, de dúvidas. O estágio atual das comunicações permite-

nos que o contato com o orientador ocorra mais à distância do que presencialmente. Se devo

reconhecer, ao cabo deste trabalho, que ela foi elaborada a duas mãos, ainda que em meio a

infindáveis trocas de e-mails, admito, também, que certa dose de solidão parece ser

sintomática da vida acadêmica contemporânea.

Agradeço a meu orientador, Prof. Dr. Osvaldo Fontes Filho, pela dedicação em todos

esses anos de convívio, iniciados na graduação, estendidos pela pesquisa em nível de

Iniciação Científica e que agora se encerram com o mestrado. Mais do que todo o aprendizado

acadêmico (protocolos de pesquisa, rigor na escrita, esmero de um ourives com o sentido das

palavras), devo a ele um olhar reiterado para as sistemáticas da instituição universitária, para

as exigências do trabalho intelectual – e para a vida. Vi-o tentando superar as muitas tragédias

que a vida sorrateiramente lhe reservou, jamais deixando abalar o empenho com que verificou

cada vírgula de meus textos. Devo agradecê-lo, enfim, pela paciência com que articulou meu

amadurecimento como pesquisador e pela complacência após não concluído apenas em parte

tal processo.

Em muitas ocasiões, os olhos e mãos de meu orientador foram os de sua esposa, Profª.

Drª. Leila de Aguiar Costa, docente do departamento do Letras da Unifesp. Jamais poderei

agradecer tudo o que significou para essa dissertação seu trabalho nos bastidores. Seus

conselhos também me foram muito caros, e me sinto honrado em tê-los recebido. Guardo-os

com carinho como sábios ensinamentos para o futuro.

Agradeço ternamente às professoras doutoras Rita Bredariolli e Lilian Santiago Ramos

pela leitura atenta do projeto apresentado na qualificação e pelas orientações de grande valor,

oferecidas com generosidade, transparência e bom humor. Apesar do breve tempo que

tivemos para a discussão em torno de minha redação, suas instruções corrigiram-me alguns

equívocos em momento crucial e me forneceram ainda enriquecedoras alternativas ao

tratamento do tema da pesquisa. Foi uma honra ter sido avaliado por docentes tão

qualificadas, sensíveis e fraternais. Espero ter correspondido às suas expectativas.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃOPAULO ESCOLA DE FILOSOFIA

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Sou grato a minha esposa, Darine Macedo de Oliveira, pela doçura e constante atenção

com que me amparou na longa e, por vezes, cansativa empreitada de uma pesquisa de

mestrado. Sem ela, sou metade de mim.

Agradeço, enfim, à Universidade Federal de São Paulo por abrir as fascinantes

portasdo conhecimento para este filho de retirantes nordestinos.

Contudo, detenho-me: como o pobre iletrado da parábola de Kafka (OProcesso), estou

diante dessas portas como diante da Lei. Luzes me cegam. Bastaria entrar?Aguardo ainda...

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5

A Osvaldo,

Por seus

olhos.

A Darine,

Por seu

olhar.

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6

―Os restos endésherénce da História fazem ou cristalizam-se em

imagens que manifestam seu potencial utópico nas suas latências. A

origem do sentido das imagens não é mais situada a partir das datações

herdadas da tradição historiográfica, mas encontrada nos interstícios e

nas dobrasde seu surgimento não-prescritível, imponderável, verdadeiro

e eventual.[...] Torna-se claro que a tarefa da História da Arte, ao

enriquecer-se num molde epistemológico aproximando o trabalho do

historiador e do filósofo do trabalho do artista, submete a História a

uma implosão fascinante. Eis, decerta maneira, uma economia da

imagem virtual e inaudita. Nessa economia,a História acorda de seu

sono racional, plena de virtualidades. Aliás, em última instância, o

empreendimento didi-hubermanianoé político. Ele multiplicaentre si os

coeficientes seguintes: de um lado,sua argumentação arranca o

monopólio do virtual aos adeptos ingênuos ou cínicos da virtualidade

críptica proporcionada pelas novas tecnologias e a gestão midiática do

simulacro [...]; de outro lado, ele desocupa o terreno ocupado pela

racionalidade e o positivismo de uma historiografia da arte tradicional

que peca em traçar os perfis do passado a partir de postulados não-

dialéticos e pouco suscetíveis de folheá-lo na sua riqueza heterogênea,

múltipla e nômade. Eis o poder utópico de uma História da Arte que se

torna uma filosofia das imagens‖.

(Stéphane Huchet. Passos e Caminhos de uma Teoria da Arte. Prefácio

à edição brasileira de Oquevemos,oquenosolha. São Paulo: Ed. 34,

1998, p.23)

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RESUMO

Esta pesquisa analisa a obra do historiador e filósofo da arte Georges Didi-Huberman, tendo

como foco de interesse sua noção de eficácia da imagem. Longe de entender eficácia como o

alcance de objetivos, o que ele designa por esse termo engloba renovada ontologia da imagem

e severa crítica de alguns postulados epistemológicos da história da arte. Nesse sentido,

abrem-se diversas vias de leitura de uma obra já caracterizada por convocar rizomática

antropologia do visual. Optamos por apresentar três linhas de trabalho na tentativa de

explicitar, sem intenção de esgotá-lo, o tema da eficácia na massa argumentativa de nosso

autor: fenomenológica (ao percorrer os detalhes da superfície visível em busca de

inquietações, dúvidas, limites e contradições do tecido representativo, destacando a relevância

da processualidade inerente ás visualidades); epistemológica (ao analisar a relação entre

imagem e conhecimento, ao procurar revelar que a eficácia de uma imagem excede os limites

de qualquer sistematização de seu saber); política (ao investigar a relação entre imagem e as

formas de poder, com particular interesse por imagens que denunciam barbáries, flagram

sobrevivências e dialogam com a memória, o testemunho e a crítica historiográfica). Isto

posto, observa-se a eficácia da imagem vinculada a sua capacidade de manter contradições em

suspenso, de se articular num equilíbrio frágil entre construção e desconstrução, abertura e

fechamento, superfície e profundidade, detalhe e completude, razão e sensação.

Palavras-chave: Imagem. História da Arte. Teoria da Arte. Didi-Huberman.

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ABSTRACT

This research analyzes the work of the historian and philosopher Georges Didi-Huberman,

focusing on his notion of image effectiveness. Far from understanding effectiveness as the

attainment of goals, what he designates by this term encompasses a renewed ontology of the

image and a severe criticism of some epistemological postulates in the history of art. In this

sense, there are several ways of reading a work already characterized by its rhizomatic

anthropology of the visual. We chose to present three lines of work in an attempt to explain,

without intending to exhaust it, the theme of effectiveness in the argumentative mass of our

author: an phenomenological issue (by traversing the details of the visible surface in search of

concerns, doubts, limits and contradictions of the Representative fabric, highlighting the

relevance of the procedural inherent to visualities); an epistemological issue (by analyzing the

relation between image and knowledge, trying to reveal that the effectiveness of an image

exceeds the limits of any systematization of its knowledge); a political issue, by investigating

the relation between image and forms of power, with particular interest in images that

denounce barbarism, capture survivances and dialogue with memory, testimony and

historiographical criticism). The effectiveness of the image is linked to its ability to maintain

suspended contradictions, to articulate in a fragile balance construction and deconstruction,

opening and closing, surface and depth, detail and completeness, reason and sensation.

Keywords: Image. History of Art. Art Theory. Didi-Huberman.

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LISTADEIMAGENS

Figura1: Victor Hugo, Madestinée, 1857 23

Figura2: Victor Hugo, Veleironatempestade [detalhe], c. 1864 23

Figura3: Sarkis Zabunyan, Aucommencent,L’apparition

[fotogramas], 2005 28

Figura4: Cela do convento de São Marco: o afresco e a janela 29

Figura5: Robert Morris, PinePortal, 1961 39

Figura6: Albrecht Dürer, AMortedeOrfeu, 1494 41

Figura7: Man Ray, ExplosanteFixe, 1934 41

Figura8: Israel Galván, cena do espetáculo LaCurva 41

Figura9: Alfred Stieglitz, Equivalent, 1930 41

Figura10: Fotogramas deLavienouvelle, Philippe Grandrieux, 2002 45

Figura11: Fotograma de WhiteEpilepsy, Philippe Grandrieux, 2012 49

Figura12a: A. Dürer, Ohomemdador, 1509-10;

Figura12b: Detalhe de fotografia anônima tirada em Auschwitz 50

Figura13: Tony Smith ,CuboNegro, 1962 59

Figura14: Donatello, BustodeNiccolòdaUzzano, c. 1432 78

Figura15: Página do Arbeitsjournal de Brecht 94

Figura16: J.-L. Godard, Videogramas de Histoire(s)ducinéma 98

Figura17: LaMadonnadelleOmbre [detalhe dos painéis inferiores],

1438 -1450 110

Figura18: Pascal Convert, Lamento, 2000 126

Figura19: Georges Mérillon, Nagafc,Veillée

funèbreauKosovo, 29 janeiro 1990 127

Figura20: Hocine Zaourar , MadonadeBentalha, 1997 128

Figura21: Aby Warburg, AtlasMnemosyne, prancha n° 42 129

Figura22: Cléo Jurino (informante indígena de Warburg).

Representaçãocosmológicacomacobra-relâmpago [detalhe], 1895 133

Figura23:Esfinge, Gizé, Egito, 1997 134

Figura24: Fotografias tiradas clandestinamente em agosto

de 1944 por membros do Sonderkommando de Auschwitz-Birkenau 138

Figura25: Fotografias em Didi-Huberman, Écorces, Paris: Minuit, 2011 144

Figura26: Éli Lotar, AuxabattoirsdelaVillette, 1929 147

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

I

EFICÁCIASINTOMALDAIMAGEM

FORMA, MATÉRIA E PROCESSUALIDADE: A IMAGEM

ANTES DA REPRESENTAÇÃO 22

UM ACONTECIMENTO DE IMAGEM 29

SINTOMA: IMAGEM-LIMITE 36

UM COLORIDO-LIMITE 42

HEURISTICA DA FIGURA E DESFIGURAÇÕES 45

AURA E DISTÂNCIA 51

IMAGEM DIALÉTICA 61

IMAGEM COMO GENEALOGIA DA SEMELHANÇA 65

A SEMELHANÇA COMO IDEOLOGIA 69

IMAGEM ABERTA, IMAGEM HISTÉRICA 80

II

EFICÁCIAEPISTEMOLÓGICADAIMAGEM

A FORMA-ENSAIO: ESCRITA DO CONHECIMENTO POR IMAGENS 87

A FORMA-ATLAS: CONHECIMENTO POR MONTAGEM 91

MOVIMENTO DAS IMAGENS: SABER DOS ESPÍRITOS

E DOS FANTASMAS 99

ANACRONISMO E HISTORICIDADE: TEMPO DAS IMAGENS 108

ANACRONISMO E MEMÓRIA: A CONTRAPELO DA

HISTÓRIA DA ARTE 114

III

EFICÁCIAPOLÍTICADAIMAGEM

EFICÁCIA DA IMAGEM-COMBATE 118

IMAGEM, EVENTO, DURAÇÃO 125

IMAGEM, DELÍRIO POLÍTICO E GUERRA PSÍQUICA 131

IMAGENS DA SOBREVIVÊNCIA 134

A TOMADA DE POSIÇÃO DAS IMAGENS 138

CONCLUSÃO 150

INDICEBIBLIOGRÁFICO 160

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INTRODUÇÃO

―A história da arte julgava-se uma disciplina

autônoma, mas se tornou uma disciplina positivista

que esquece os seus posicionamentos filosóficos‖;

―O esquema habitual da história da arte, de um

conformismo total, não funciona‖;

―O historiador se obriga com frequência a dizer

apenas banalidades verificáveis.‖

(Georges Didi-Huberman, DiantedaImagem) « EFFICACE. adj. des deux genres Qui produit son effet.

Ceremèdeestefficacecontrelespoisons.Moyenefficace.Discoursefficace.LaparoledeDieuesteffic

ace.

En Théologie, Grâceefficace, La grâce qui a toujours son effet ».

(Dictionnairedel’AcadémieFrançaise, 6ª edição, 1832-35)

Eficácia estética. ―Trata-se de uma eficácia paradoxal: é a eficácia da própria separação, da

descontinuidade entre as formas sensíveis da produção artística e as formas sensíveis através

das quais os espectadores, os leitores ou os ouvintes se apropriam desta.‖

(Jacques Rancière, OEspectadoremancipado, p.56).

Se no mundo clássico a ideia de eficácia está irremediavelmente ligada a um efeito, no

mundo contemporâneo há que se admitir que, pelo menos nos domínios do estético,

defrontamo-nos com atos e fatos que a um tempo vinculam e desvinculam o visível e sua

significação, a palavra e seu efeito, que produzem e frustram expectativas.

Perguntemos, pois, de imediato: a imagem mais eficaz seria aquela que admite ser

plenamente compreendida? No caso das imagens de arte, tratar-se-ia da imagem mais bela, a

que induz reflexões mais densas, a que melhor responde às expectativas de seu espectador?

Por força do que à frente será investigado, bem se poderá adiantar que haveria eficácia na

imagem que se abre a múltiplas interpretações, que leva a questionar os paradigmas estéticos

convencionais justamente porque falha, vacila, titubeia em suas indicialidades e, assim,

confunde o olhar do observador.

Como explicar noção tão controversa de eficácia? Talvez ela se justifique à luz de

uma obra como aquela de Georges Didi-Huberman onde são procuradas, num esforço de

arqueologia crítica da História da Arte, por renovadas questões, com o fito de abertura,

esgarçamento, das tessituras usuais da historiografia. De fato, abre-se ali o campo de pesquisa

das imagens para rupturas epistemológicas de peso. Nota-se, nesse espaço aberto, devassado

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mesmo, que não há precedentes nem julgamentos. Não há verdades absolutas que

possamrecortar nas imagens uma precisa semioticidade. A renovação de suas questões

(deentendimento, de processualidade) entende ser a justa posição a se adotar diante de um

velho objeto que se apresenta fantasmaticamente, deslocando-se entre as passagens do tempo,

entre os interstícios do imaginário, entre as malhas do saber.

Talvez não seja sem interesse partirmos de uma irredutibilidade de fundo em nosso

autor:

Quando somos desarmados por uma imagem, nos é oferecida uma

experiência de abertura: imprevisível (irredutível a um programa de

pesquisa), inquietante (irredutível a um saber ou a um sistema), e

perturbadora (irredutível a qualquer forma de harmonia entre as nossas

faculdades). A experiência pede, e isso é claro, para ser suportada,

contextualizada, historicizada, teorizada. Mas sei bem que, em última

análise, a imagem permanecerá irredutível diante de mim: nem o saber

(como pensam muitos historiadores) nem o conceito (como pensam muitos

filósofos) a apreenderão, a subsumirão, a resolverão ou redimirão. A imagem

é uma passante (DIDI-HUBERMAN in POTTE-BONNEVILLE &

ZAOUI, 2006)

Discute Didi-Huberman ao mesmo tempo da experiência corriqueira,

repetível,recorrente (―quando somos desarmados‖, isto é, um desarme que ocorre

normalmente, com frequência) e da experiência única e pessoal, que se dá de modo irredutível

(inteira, total) e não permanente (―passante‖). O historiador-filósofo considera a imagem

unindo o entendimento do empirismo moderno acerca de experiência (aquele calcado em

observação metódica, demorada, a tratar como um ―experimento‖ seu objeto de estudo, a

hipotecar seus mecanismos de funcionamento) com o entendimento oriundo da vertente

merleau-pontyana da fenomenologia (a entender toda experiência como uma cisão no Ser

motivada por um fenômeno). Entre a imagem como hábito ou objeto e a imagem como

instante ou fenômeno, há de se considerar complexas articulações entre memória e

esquecimento, repetição e acidente, reconhecimento e conhecimento.

Filho de pintor, Didi-Huberman sempre se disse próximo antes dos processos e dos

atos geradores de uma imagem do que de suas versões prontas e expostas em museus.

Introduzido ao mundo das imagens pelo ponto de vista dos artistas e dos ―documentos‖ do

ateliê, estas impressões sobre o funcionamento das imagens nunca lhe deixaram, de modo que

se entrecruzam em seus textos as figuras do espectador (do olhar descompromissado diante da

imagem) e do documentarista (do olhar traficado pelas informações). Razão porque, em dado

momento ele assume:

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Acredito que todo o meu trabalho é guiado por uma intuição fundamental

sobre a imagem como ato e como processo e não como um mero objeto. É

por isso que insisti tanto nos últimos anos sobre a questão do olhar, daí o

meu uso de descrições fenomenológicas "abertas", contra a leitura

iconográfica e contra o deciframento de uma suposta "substância" da

imagem praticada por muitos historiadores da arte. Diantedasimagens

devemos convocar verbos para dizer o que elas fazem, o que elas nos fazem,

não apenas adjetivos e substantivos para acreditar dizer o que são... É preciso

considerar a imagem como imaginação, isto é, como processo de formação

de imagens (DIDI-HUBERMAN, 2010b, p. 52; grifos do Autor).

Pensar a imagem como processo e como documento fez com que o confortávelestatuto

do historiador da arte ―profissional‖ em ambiente universitário – o simbologista especializado

em leitura iconológica, que se contenta em determinar para cada imagem uma qualificação de

estilo e de técnica – não se prestasse às aspirações intelectuais de nosso autor. Seu olhar

reconhece um ―ritmo sintomático pelo qual as imagens surgem no mundo simbólico para o

atravessarem e o transformarem de um modo que não pode ser inteiramente explicado por

meio de categorias iconográficas e históricas tradicionais‖ (DIDI-HUBERMAN, 2011a, p.26).

Tal evidência, de extração warburguiana, leva-o a deslegitimar o trato com as ―fontes

verificáveis‖ e as ―tradições visíveis‖, em favor do enfrentamento, necessariamente errático,

de uma ―trama complexa de trajetos indiretos e de transmissões invisíveis, de acontecimentos

inesperados e de latências da memória‖. Quiçá resultando numa impossibilidade de diálogo

com os historiadores, essa postura abre espaço para trocas mais frutíferas entre filósofos,

psicanalistas e antropólogos. De modo controverso, ao tentar abrir a história da arte para

outras possibilidades, como para o que concerne aos rigores do pensamento filosófico, Didi-

Huberman confronta seu fechamento teórico e, eventualmente, o fechamento do corpo social

dos historiadores da arte como classe profissional.

Cada imagem singular é assim instada a desempenhar o papel de objeto de uma

―ciência sem nome‖, disciplina nada ortodoxa, de evidente fundo warburguiano, que Didi-

Huberman procura aproveitar para a história da arte em seus fundamentos críticos, em seu

método insensato, e em sua constante movência do olhar entre os contratempos da história,

nos intervalos entre as imagens. Razão porque é lembrado como ―a obra warburguiana pode

ser lida como um texto profético e, mais exatamente, como a profecia de um saberporvir‖

(DIDI-HUBERMAN, 2013b, p. 29), uma ciência ―ainda não fundada‖, como diria Agamben,

cujo valor perturbador consiste em investir nos retornos, nas sobrevivências (Nachleben) das

imagens: em suma, em seus sintomas, detalhes que concentram formas e sentidos em estado

de latência, como fórmulas à espera de materialização (―fórmulas patológicas‖, nos termos de

Warburg, Pathosformeln). Como toda imagem possui os predicados para se exercer diante

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doolhar como uma―singularidade fecunda‖, importa recebê-la a partir de uma ciência

insana,incomum, aberta, capaz de análise ―interminável‖, ―sem limites‖ (2013b, p. 42).

Buscando tornar factível para o trabalho do historiador da arte tal ciência inominada,

Didi-Huberman verifica os ganhos epistemológicos do envolvimento preferencial com

singularidades, na tentativa de evitar toda análise reducionista ou definitiva do sempre aberto

e expansivo mundo das imagens. As singularidades de cada imagem mostram-lhe que análises

de conjunto (estilos, movimentos, o conceito de arte, de beleza) facilmente são traídas por um

olhar mais demorado – ainda que preconizador de uma ―atenção flutuante‖. Deste modo,

embora se possa considerar que as singularidades se reportam ao todo das imagens, o que

tentadoramente poderia conduzir o pensamento das imagens para a constituição de categorias

e classificações estético-visuais, Didi-Huberman centra-se apenas na discussão em torno das

particularidades. Razão porque seus textos evitam agenciar verdades universais. O

conhecimento especulativo cede lugar ali a uma espécie de ―fábula filosófica‖, uma

montagem heterodoxa de argumentações filosóficas, excertos literários, estratégias

heurísticas, descrições, comentários parafrásticos. Seu método pessoal de trabalho não deixa

de ser suigeneris: fichas escritas a mão, pacientemente associadas, como um quebra-cabeça de

anotações, sobre a mesa de trabalho. A mobilidade dessa documentação, contendo trechos de

texto, imagens e anotações pessoais, vem trazer para a sua construção textual um ritmo

caleidoscópico. Trata-se, portanto, de arborescências de saberes que se nutrem da ensaística

benjaminiana assim como da iconologia dos intervalos de Aby Warburg.

Fato é que em seus percursos Didi-Huberman procura não ceder ao tempo uniforme,

retilíneo, cronometrado, da modernidade e visa o tempo heterogêneo, salpicado de

anacronismos, da memória. Pois a memória, ou melhor a reminiscência, como bem

demonstrou a metapsicanálise, não é fluida: ela preserva informações que não se conectam

logicamente, mas que referem, quase sempre, o caos das experiências sensoriais, o caos do

pathos. No ato da reminiscência, resgatam-se, aos saltos, fragmentos de imagens, por vezes

fora de seu tempo próprio. Esse ato, Didi-Huberman o refere no ―momento reminiscente‖, que

retoma de Warburg, ―um presente em que as sobrevivências se agitam, atuam‖, presente

anacrônico, pois que ―intenso, intrusivo‖, tornado complexo pelas sedimentações que abriga

(DIDI-HUBERMAN, 2013b, p. 275). O trabalho do historiador passa, pois, a ser regido pela

temporalidade fluida da imagem. Há imagens que se aprofundam no inconsciente e que são

resgatadas apenas pelos desvios e distorções próprios do trabalho do sintoma, categoria crítica

da psicanálise adaptada por Didi-Huberman para a história da arte. O tempo da memória é o

tempo do sintoma, com suas rupturas de sentido, com suas dissociações entre forma e

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conteúdo, com suas latências. Incalculável, essa forma de tempo não tolera datação.

Oraavança, ora retrocede: fluxo anadiomênico no qual a imagem surge, advém, cintila, com a

fugacidade de um ato falho.

Os tempos da imagem, do olhar e da escrita parecem possuir ritmos diferentes na obra

de nosso autor. O olhar é com frequência mais dinâmico e imediato do que a escrita, mas não

está preocupado com o saber em sua hegemonia; a escrita é lenta, pausada, entrecortada por

outras escritas, outros textos, pois se preocupa com aquilo que indicia, criticando-se

incessantemente; para além disso há o tempo da imagem, sua aura perdida ou redescoberta,

tempo de tensões e polarizações, tempo de necessária (re-)inquietação, de aparecimentos e de

esquivas, de sobrevivências. Assim ritmada, a reflexão busca por novas formas de escrever e

de pensar a imagem que considerem as modalidades flutuantes do olhar.

Razão porque o que aqui se lerá ordena-se em unidades textuais ocupadas em

percorrer os interstícios da escrita didi-hubermaniana, despindo-se tanto quanto possível de

qualquer roteirização hermética em face mesmo da exigência aberta pelo próprio objeto de

nosso estudo. Buscar-se-á, pois, pensar os modos como uma imagem, objeto tão instável em

sua forma e significado, pode se mostrar eficaz. Pensar na eficácia da imagem é pensar,

primeiramente, nos modos como essa imagem é apresentada. É pensar na complexa trama de

sentidos e figuras de linguagem que o vocábulo ―imagem‖ articula – desde a imago latina à

mancha da abstração moderna -, além de como ele exige que se abra o texto para novas

possibilidades de escrita, novos ritmos de leitura e construções argumentativas. É conjecturar,

em sequência, sobre os modos de trabalho dessa imagem, sobre a arborescência ali de

entendimentos, interpretações, pontos de vista, leituras, de quando em quando contraditórias,

conflitantes, incompatíveis. Importará, indiretamente, se perguntar pela validade da noção de

eficácia aplicada às imagens. O que significa dizer que uma imagem é eficaz, uma vez que ela

não se presta apenas para dar a ler, a reconhecer, ou a relembrar?

Ao sabor de tais interrogações, a primeira parte desta dissertação procura entender

como Didi-Huberman aproxima o detalhe pictórico dosintoma psicanalítico, modo de

reexaminar o estatuto epistemológico da leitura iconológica panofskyana. Grosso modo, ele

realiza uma leitura de dentro para fora da imagem, o que inverte, de certa forma, o sentido da

leitura iconológica, acostumada a percorrer superficialmente a extensão da imagem,

fragmentando-a em trechos significativos. Didi-Huberman estuda-a em sua profundidade, em

suas aberturas, suas rasgaduras, e confronta a imagem em sua imanência, em sua

processualidade – é de seu interior em mutação que arborescem sentidos e possibilidades de

leitura. Nesse tocante, importa retomar sua análise da relação entre matéria e ideia

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naformação da imagem. Desse ponto emerge a questão da processualidade, a série de ações

ouoperações que ocorrem no processo de formação das imagens (origem, criação,

desenvolvimento, execução) até que ela efetivamente apareça para o olhar, fenomenalidade

que bem se poderia denominar um ―acontecimento- imagem‖.

Num primeiro momento, seria possível afirmar que a imagem é eficaz porque aparece

sintomaticamente, a exigir outra forma de legibilidade – a legibilidade do que aparece como

sintoma, antes do reconhecimento, antes da representação, como signo sem significado.

Haverá, aqui, com que ir ter com suigeneris anatomia, dado que, no corpo humano, a pele

recobre a carne e, de certa forma, a faz desaparecer, pois não a revela abertamente, mas

expele fluidos vindos de glândulas internas, e se ruboriza com sangue, que percorre a carne;

de maneira que a pele não é apenas limite, mas interstício, pois não escancara a carne, antes

lhe fornece seus indícios, sua posição, condição, estado. O mesmo ocorre com a superfície da

imagem, sugere Didi-Huberman: ela recobre os sentidos, deles mostra apenas alguns signos;

ela estabelece trocas entre o interior e o exterior, na forma de cores e pigmentos; é zona de

trocas entre olhante e olhado, entremeio. Esse limite tende a funcionar ao mesmo tempo como

verdade absoluta e alteridade absoluta. Não por acaso, Didi-Huberman designa como

―colorido-limite‖ o matiz projetado na superfície da pintura, premeditado, mas jamais

realizado, como se a pintura, ao ser pensada como um corpo, pudesse apresentar sintomas de

sua própria deriva. Entendido, diferentemente do signo, como um significante que se

manifesta na superfície da imagem em completa dissociação com qualquer significado, o

sintoma é o ponto de encontro entre a superfície da imagem e a pele do corpo, entre a

profundidade de sentidos e a profundidade da carne. Ao escavar o humano, penetrando-lhe as

tramas de nervos e tecidos, a imagem dá voz à carne, produz o encarnado, que visa ser

duplamente notável: por aquilo que lhe subjaz (veias e fibrilas entrelaçadas) e pelo que lhe

transparece.

O sintoma, porém, possui uma estrutura contraditória: ao mesmo tempo em que a

partir dele muitos significados podem surgir, ele interrompe ou desestabiliza significados já

existentes. De modo que ele exige um questionamento sobre o próprio conhecimento advindo

das imagens, assim como protocolos para desvelar sua proliferação de sentidos. Em vista

disso, na segunda parte da dissertação, são explicitados alguns eixos de discussão para os

desdobramentos teóricos de uma noção de eficácia da imagem que não passe pelo produzir de

saberes, mas pelo produzir de dúvidas e inquietações no sujeito do olhar. O conhecimento

pela imagem segundo Didi-Huberman não se dá mais, como é corrente supor na historiografia

de filiação panofskyana, por associação com as textualidades, mas por meio de

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17

umprocedimento móvel, adaptativo, próximo de uma poética visual: um conhecimento

pormontagem, em ligações que se dão num ―inconsciente do tempo‖. Diferentemente da

história da arte ortodoxa, essa estruturação sintomática da pesquisa não teme anacronismos. A

escrita ensaística e o atlas de imagens tornam-se, pois, métodos privilegiados de desvelamento

das formas heterogêneas, por vezes contraditórias, de eficácia das imagens.

A bem entender seu viés revisionista, as reflexões que aqui serão percorridas apontam

para uma forma de fazer história da arte contrária ao elencar das categorias estilísticas

tradicionais, e procuram ampliar o campo fenomênico de estudo das imagens acrescentando

crítica perniciosa de sua eficácia simbólica. Ao considerar a imagem como símbolo psíquico e

cultural, mas ao mesmo tempo como ato social e corporal, a Kulturwissenschaft (ciência da

cultura) de Warburg seduziu Didi-Huberman por seus questionamentos complexos, abertos,

capazes de refundar a história da arte como verdadeira antropologia histórica. Nessa forma de

abordagem da historicidade das formas visuais, a imagem não se dissocia do agir global de

uma sociedade; do saber próprio de uma época, de suas crenças e angústias, o que abre a

história da arte para a perspectiva de uma ―eficácia mágica‖ das imagens, eficácia de caráter

litúrgico, jurídico ou político. Assim vinculados seus multisseculares vieses, torna-se possível

entender a ―força mitopoética‖ das imagens, seu poder de convencimento e de

enlouquecimento, de sobrevivência e de sobredeterminação das condições históricas,

permanecendo como fantasmas numa dinâmica de sedimentações antropológicas (DIDI-

HUBERMAN, 2013b, p. 35-41).

Por fim, na terceira parte desta dissertação, observam-se as imagens em suas

constelações. Razão porque o estudo parte da imanência em direção à transcendência por

assim dizer, ou seja, à circulação da imagem, modo de se desmontar e se remontar em âmbito

político. As questões iniciais continuam sobre a mesa, contudo sob nova configuração: o tema

do "branco" no afresco de Fra Angelico ou do "nada" que resta da pintura do Frenhofer de

Balzac, lugares iniciais do périplo didi-hubermaniano, vêm se associar às ruínas de

Auschwitz, onde nada resta a ver, mas tudo a imaginar. Com a reevocação da metáfora

pasoliniana dos vagalumes, imagem de inquietação política, Didi-Huberman recupera em

dado momento a temática do sintoma enquanto linguagem estruturada do inconsciente

coletivo. Assim, essa parte de nosso texto procede a leituras na forma de relampejos, ensaios,

comentários pontuais, reveladores do potencial inesgotável de variação de formas e usos das

imagens, e por isso mesmo reveladores de uma conotação política da noção de eficácia das

imagens.

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Em suas processualidades, a imagem de algum modo reverbera sentidos e

sentimentosda Sociedade e da História. Enquanto vasculhamos as imagens com nossos olhos,

em retorno elas nos tocam, reviram nossos medos, repulsas, horrores, ou acendem nossos

prazeres e perversões. Essa tensão entre nós e as imagens aponta inequivocamente para uma

dimensão política da experiência do olhar. Ao tomarem contato com tudo o que há de mais

profano, abjeto ou sublime, as imagens testemunham, inquietas, cenas de sua própria des-

figuração. Silenciosamente, porém, agenciam resistências. Como mostrou Benjamin,

referência primeira de nosso autor, a história da arte deveria permitir às imagens evidenciar

não só o seu traço de cultura, mas também o seu sentido de barbárie. Importaria, pois, olhá-las

mais criticamente em suas relações, em suas aproximações e distanciamentos, no modo como

povoam o imaginário ou ardem quando de uma queima de arquivos.

Por outro lado, o saber veiculado pelas imagens não deveria ser destinado à formação

de qualquer teoria, mesmo social ou política, pois não é próprio a elas dizerem a verdade. À

análise das imagens exige-se um saber aberto, uma gaia ciência, capaz de reinventar o próprio

objeto que estuda. As imagens não se conformam a erudições, pois admitem digressões,

derivas/esquivas dos sentidos. O que lhes cabe, deste modo, é constituírem possibilidades de

conhecimento, virtualidades, potências. Assim, cada imagem aponta para o que seria da

ordem de uma transversalidade, de uma porosidade do olhar. Ao olhar é devido, ainda, o

benefício do tato. Quando as olhamos, as imagens nos tocam, em nossa corporeidade, modo

de nosso autor assumir a derrocada de ancestral tabu do contato, onolimetangere fonte de

nossa figuração sobrecodificada. As experiências do olhar e do toque são, diante da imagem,

potencializadas. Assim, o que torna eficaz a imagem, torna inquieta nossa experiência

sensível. Explodem, com isso, visões diferentes, pontos de vista. Cada imagem produz, em

culturas e épocas diferentes, distintos usos e interpretações. A complexidade desse fenômeno

assume, inevitavelmente, uma dimensão antropológica. A imagem escava o humano, rasga o

tempo, enquanto marca e ressignifica a memória.

A eficácia das imagens não refere uma simples transmissão de saberes, mas imbróglios

de saberes e de não-saberes. Isso exige modo diverso de olhá-las: por uma atenção flutuante

que, no momento de concluir, demora-se ainda, e tanto, que abre mão de apreender para

permitir ser apreendido. Ocorre, pois, falar de um ―trabalho do negativo‖ a revelar a ―eficácia

sombria‖ das imagens: trabalho de rasgo do mundo da lógica, de modo a desdobrar

possibilidades de comunicação e de interpretação, com isso alcançando a potência necessária

para escavar o visível enquanto ordenação dos aspectos representados, e ferir olegível

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enquanto ordenação dos dispositivos de significação. Rasgadura do visível e dolegível,

aimagem se abre para a exibição fulgurante de enigmáticos sintomas. Lê-se:

Há um trabalho do negativo na imagem, uma eficácia ‗sombria‗ que, por

assim dizer, escava o visível (a ordenação dos aspectos representados) e fere

o legível (a ordenação dos dispositivos de significação). De certo ponto de

vista, aliás, esse trabalho ou essa coerção podem ser considerados como uma

regressão, pois nos levam de volta, com uma força que sempre nos espanta,

para um aquém, para algo que a elaboração simbólica das obras havia no

entanto recoberto ou remodelado. Há aí um movimento pelo qual o que

havia mergulhado ressurge por um instante, nasce antes de mergulhar de

novo em seguida: é a materiainformis quando aflora da forma, é a

apresentação quando aflora da representação, é a opacidade quando aflora da

transparência, é o visual quando aflora do visível. (DIDI-HUBERMAN,

2013, p. 189)

O sintoma, operador basilar da teoria didi-hubermaniana, causa certo embaraço.

Obriga-nos a reconhecer que o sujeito do conhecimento é figura sobre-estimada, que sua é

uma lógica da certeza que encanta o historiador, mas deixa o fenomenólogo insensível. Se o

historiador da arte rejeita o sintoma, é porque entende se manter como o sujeito que sabe. Ele

desconfia, principalmente, do seu potencial de rasgadura do saber, essa que é,

angustiantemente, sua ―perturbadora eficácia‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 212).

Didi-Huberman é enfático quanto às conseqüências disso para o trabalho do

historiador: ―é preciso (...) compreender que a tarefa autêntica de uma história da arte –

compreender as imagens da arte – significa compreender a eficácia dessas imagens como

fundamentalmente sobredeterminada, ampliada, múltipla, invasora‖ (DIDI-HUBERMAN,

2015b, p. 187). Em outras palavras, o historiador da arte deveria tentar compreender o

sintoma enquanto investiga o funcionamento da eficácia das imagens, que não é limitada a

especificidades históricas ou estilísticas, mas se estende à paixão, à admiração que causam. O

que distancia, portanto, da história da arte panofskyana, herdeira do racionalismo kantiano,

mas que aproxima de uma história da arte tal como exigia Carl Einstein, atuante no contrapé

dos modelos estético-idealistas e dos juízos de gosto que geralmente sustentam a apreciação

―pacificada‖ das imagens (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 190).

Talvez se deva considerar o historiador como um fictor, modelador do passado que ele

dá a ler. Ora, a história da arte parece buscar na arte apenas a história e o saber únicos. Em

face disso, Didi-Huberman propõe outras vias de acesso aos registros visuais: uma eficácia

polimorfa. A história da arte deve reformular sua extensão epistemológica e questionar: que

gênero de saber produzir? Na "falsa aparência do essencial" que ela acredita atingir, uma

incógnita: um ponto de suspensão. "A imagem pensa. Como?", pergunta-se Didi-Huberman

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em seus começos. Essa "pensatividade da imagem", tema caro também a Jacques

Rancière,outro autor que recriminou o "discurso pré-figurado da história da arte", faz com que

ela guarde uma "reserva de sentido", como uma cisão nas trocas entre olhante e olhado; entre

narração e expressão: a "eficácia desgarradora" da imagem: Nocomment, Didi-Huberman lê

em um fotograma de FilmSocialisme, de Godard: a imagem por vezes não permite dizer,

comentar. É questão em ato, é "figura figurante", processo, caminho. Fechá-la é evitar discutir

um processo (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.187). A imagem põe tudo em dúvida, em aporia.

Exige, quiçá, uma ―contra-história da arte‖, cujos fundamentos teórico-metodológicos se

procurará a seguir, e apesardetudo, comentar.

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I

EFICÁCIASINTOMALDAIMAGEM

Não apreender a imagem e sim deixar-se ser apreendido por

ela: portanto deixar-se desprender do seu saber sobre ela.

[Um sintoma:] o entroncamento repentinamente manifesto

de uma arborescência de associações ou de conflitos de

sentidos.

(Didi-Huberman, Diantedaimagem)

Saber olhar uma imagem seria, de certo modo, tornar-se

capaz de discernir o lugar onde arde, o lugar onde sua

eventual beleza reserva um espaço a um ―sinal secreto‖, uma

crise não apaziguada, um sintoma.

(Didi-Huberman, “Quando as imagens tocam o real”)

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FORMA, MATÉRIA E PROCESSUALIDADE: A IMAGEM

ANTESDAREPRESENTAÇÃO

Um historiador da arte não pode ser um metafísico, ao menos não sem denegar o que

está diante de seus olhos. É o que ocorre, por exemplo, com Giorgio Vasari, que, em sua

metafísica do disegno, nega na imagem tudo o que não se relaciona com a Idea. Na

interpretação que abre em Diantedaimagem as denegações da historiografia dita humanista,

Didi-Huberman toma as três ―palavras mágicas‖ vasarianas (idea, rinascità e imitazione)

como termos de um particular protocolo de leitura instado a tudo fazer conter no desenho, o

que lhe confere um viés transcendental ao remeter integralmente o visível aos ditames do

ingegno. O que Vasari assim denega, bem observa Didi-Huberman, segue via de mão dupla,

pois que transcendentaliza sem, porém, abdicar da referência às práticas multisseculares do

ateliê – local de processualidades, de ofício, mais do que de raciocínio –, de modo que seu

discurso criva-se de contradições teóricas. Essa postura ambígua em relação à processualidade

da imagem manteve-se, durante séculos na história da arte, e mesmo na análise iconológica

panofskyana onde todos os esforços convergem para o significado simbólico, conceitual,

representacional de uma imagem, enquanto os grafismos na tela, os rascunhos, as

experimentações com os materiais são deixados para os níveis inferiores da análise. Denota-

se, assim, uma denegação de tudo quanto diga respeito, para além do que Didi-Huberman

(2002, p.107) chama o ―idealismo mágico‖, aos factuais desígnios dos artistas junto à matéria.

Ocorre que a separação entre forma e matéria (considerando a clássica noção de forma

como essência, aquilo que é inteligível ou que define a matéria) frequentemente não é

evidente ou intuitiva. Pois a forma, para aquele que pinta, é o que ela encarna, movimenta ou

produz materialmente. Em algum momento, a forma pode até mesmo não se separar da

matéria e se mover com ela. Seja como for, inevitavelmente ―a forma se forma, como um

organismo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2002, p. 87). De maneira que, ao mesmo tempo em que dá

contornos à matéria, ela é matéria do contorno. A imbricação fundamental entre forma e

conteúdo é, como se verá, repensada por Didi-Huberman em suas noções de encarnado,

informe e impressão (empreinte), mas está no alicerce, também, de seu principal conceito,

sintoma

As visualidades parecem pródigas em deslegitimar todas as oposições entre matéria e

forma. Nesse sentido, os desenhos de Victor Hugo, analisados no ensaio ―A imanência

estética‖, parecem se oferecer a nosso autor como exemplos sintomais da derrocada dessa

tradicional dualidade (figs. 1 e 2).

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Fig.1:VictorHugo,Madestinée,1857

Fig.2VictorHugo,Veleironatempestade[detalhe],c.1864

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A renovação estética hugoliana toma o rumo de uma morfologiadaimanência –

―‗fluxogeneralizado‗, a dobra de cada coisa em cada coisa, a vida em toda parte, a matéria

porosa destinada às turbulências‖ – a produzir, com isso, efeito crítico sobre a representação

(DIDI-HUBERMAN, 2003a, p. 125). Victor Hugo faz da imanência uma potência de

metamorfose, como se ele buscasse reconstituir certa ―genealogia do sublime‖, o que pode ser

notado por seu fervor particular pelas ruínas e pelas constantes remissões à Antiguidade.

Leitor dos Antigos, Victor Hugo compreende que a noção de metamorfose poderia ditar as

regra da Poesia e da Filosofia, pois multiformidades, quimeras e desordens constituiriam as

formas mesmas da vida. Nesse mundo, que o romanesco projeta no gráfico, todas as

substâncias irradiam ondas – o Todo como um grande abismo de formas em constante

mutação. A imanência aí se move: o mundo todo se ondeia em seu ritmo próprio e as

tormentas que lhe chegam são como espasmos, crises, sintomas em um corpo imenso (DIDI-

HUBERMAN, 2003a, p. 129). Assim, confrontado com MaDestinée, registro hugoliano de

uma turbulência interior que se projeta em folha e que o pincel empastado procura trazer à

tona, Didi-Huberman analisa:

O que ele faz diante da indescritível onda? Faz primeiro como o poeta que é:

trabalha. Põe papel sobre sua mesa, uma pena e tinta (e outros ingredientes

para toda uma cozinha, se necessário). Ele não descreverá essa onda que não

consegue imaginar exatamente. Mas a fará nascer, o que é bem melhor. Ele a

fará jorrar, quase às cegas, abandonando-se ao material e no próprio meio

que é o seu: uma mesa como crosta terrestre, uma folha como superfície de

flutuação, tinta extravagante como "dobra misteriosa e negra do turbilhão", o

sopro do próprio artista como vento largo. Isso significa representar uma

onda ou uma tempestade? Não exatamente, não simplesmente, uma vez que

se tratou de produzi-la, isto é, de provocar seu real surgimento, de apresentá-

la em ato... mas em miniatura, naturalmente. Tempestade real – fluida,

acidentada, fazendo estragos – sobre uma mesa de trabalho (DIDI-

HUBERMAN, 2003a, p.141).

O desenho do poeta bem se prestaria a ilustrar a forma de trabalho de nosso autor.

Mesmo porque ali o mundo mostra-se caótico, sua forma elementar é a ―onda‖: produzir

ondas é o movimento mesmo da imanência. Se o mar se mostra a referência fundamental de

toda forma pictórica, é porque uma potência da imanência deve se evidenciar: uma rítmica do

produzir figuras, que fluem e refluem, ora desabam, nascem, inflam, mas também se

dissolvem e morrem. A imanência como ―propriedade do que é interior e que se reconhece na

exteriorização‖. A onda nos desenhos de Victor Hugo são processos e, ao mesmo tempo,

aspectos construídos por meio de procedimentos gráficos diversos (uso de resíduos de café, de

barbas de pena): trata-se de uma estética desejosa das gestualidades, não das

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representações:Darstellung mais que Vorstellung, processualidade e não aparência, contato e

não distância.De modo que o grafismo se converte num teatro onde encenar o grande jogo do

mistério da vida – mistério que bem poderia ser entendido como aquele da representação, da

imagem que se faz e se desfaz diante do olhar (DIDI-HUBERMAN, 2003a, p. 143).

Mistério nada místico, diga-se: é o simples caso de uma representação por fazer, de

matéria em transformação, de imagem sob processo; é ver a imagem ainda informe, em

formação – considerar o trabalho na imagem (debruçar-se sobre o objeto, manipulá-lo, dar-lhe

contornos) como o trabalho próprio à imagem, trabalho da imagem (ela que se constrói diante

do olhar). Deveria ser esta a reflexão primeira a se fazer acerca de qualquer ato

representacional (antes de tudo, a matéria bruta e a processualidade que a transforma)?

Deveria ser esta, também, a reflexão última a que se permite pensar o ato de imagem, sua

máxima eficácia (não ser mais que ato junto à matéria, processualidade)?

Antes de respondermos, detenhamo-nos ainda um tempo na leitura didi-hubermaniana

dos desenhos de Victor Hugo. Particular grafismo este que aponta para uma denegação do

representacional. Na ―rasgadura‖ do pincel, denota-se o processo pelo qual as imagens tomam

forma, antes de sua apropriação pelos sistemas de representação correntes. Lê-se, em dois

momentos distintos do olhar de imanência:

É a mesma tinta que é utilizada, de um lado com a ponta da pluma para

despertar os aspectos – um barco, em nosso exemplo – , e de outro lado com

os pelos do mesmo pincel para afogar os aspectos nessa espécie de

turbulência fluida ou de tormenta generalizada. Em suma, a tinta é aqui um

meio de imanência que reúne a forma com o informe, com a matéria, com o

conteúdo, com o símbolo e com tudo que se encontrar ainda nesses desenhos

... O filósofo ‗claro e distinto‗ poderá se intimidar com tal mistura, sem

dúvida. Mas é preciso aprender, com as imagens, a pensar todas as coisas

impuras e intrincadas (DIDI-HUBERMAN, 2002, p.15).

É um fato que os desenhos "oceano" de Victor Hugo apresentam com

freqüência, numa primeira abordagem, uma grande desordem de composição

e uma verdadeira confusão dos aspectos. Mas a confusão se revela sempre,

se os olhamos duas vezes, como uma sutil – ainda que violenta –

participação dos aspectos no meio que os destrói. Uma espécie de "cólera

gráfica" surge aqui : ora, a raiva é a dos próprios elementos, e a pena

utilizada às avessas – com as barbas umedecidas na tinta – cria um

eriçamento de toda a figura, uma turbulência aguda na qual o aspecto do

navio tende a desaparecer opticamente. E ele só não afunda, como aspecto,

porque naufraga figuralmente no meio de tinta agitado pela mão veemente

do desenhista (DIDI-HUBERMAN, 2003a, 143).

Didi-Huberman proporá, é caso de dizê-lo de imediato, uma crítica filosófica

darepresentação. Ele analisa cuidadosamente, e com certo ceticismo, a tradição filosófica que

sustentou por séculos a noção de representação como imagem mental ou

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conceitocorrespondente a um objeto externo. Essa tradição abarca extenso período histórico,

que vaido humanismo de Vasari à Iconologia de Panofsky, passando pelo racionalismo

kantiano. Em comum nessa linha de pensamento estaria a recusa em se pensar sobre a

experiência (enquanto forma de conhecimento espontâneo, vivência) diante de uma imagem e

o entendimento de que para interrogar uma obra visual deve-se imediatamente procurar a

ideia, a marca do ingegno (seus desenhos, di-segni/desígnios) por detrás dela (DIDI-

HUBERMAN, 2002, p. 91).

Ora, a experiência é assumida como clara contrafação: ―é a experiência que me

mobiliza, porque a experiência, com a surpresa filosófica que a caracteriza, começa sempre

por colocar em questão tudo o que se acreditava pensar até então‖. A experiência questionará

o que se entende por gênio e o que se entende por ideia. Modificará a matéria mesma do

pensar. Apesar de sua aparente fragilidade (a experiência, por ser imediata, seria tão intensa

quanto passageira), ela possuiria a extraordinária capacidade de ―fazer surgir as

singularidades, fecundas e capazes de transformar, de repente, toda a nossa visão do mundo‖

(DIDI-HUBERMAN, 2002, p. 91). É o que ocorreria diante das imagens de Victor Hugo,

capazes de criticar a noção de representação em sua fatura mesma, em sua imanência. Seria a

representação o que imaginamos apartirda imagem? Seria aquilo que a imagem deixa

imaginar nelamesma, enquanto imagem, agrupamento de manchas e de cores? Ou seria aquilo

que ela substitui, por semelhança?

Criticar a noção de representação consiste, pois, em pensar a imagem antes dela. O que

significaria pensar em uma noção não-artística de imago. Didi-Huberman insiste nisso, pois

os artistas tendem a pensar a imagem surgida após a representação. Nesse sentido, a noção de

representação já estaria assentada na própria imagem. Para criticá-la, portanto, mostra-se

conveniente um passo arqueológico, retorno ao registro latino da imago, onde o valor estético

se mistura àquele genealógico. A imagem como forma mnêmica do morto alerta para o

paradigma genealógico da imagem. Didi-Huberman dele propõe uma análise de base histórica

e antropológica. Ele opera uma noção de genealogia análoga à noção de impressão ou de

matriz. Esta análise ocorre à maneira de Warburg, que interroga a história ocidental das

imagens segundo uma genealogia das semelhanças. Sem ter a intenção de dar uma resposta

definitiva para o paradoxo entre o estético e o genealógico, Didi-Huberman retoma ainda o

secular conceito filosófico de dialética, que lhe permite pensar a imagem como uma

ambiguidade. A dialética leva a considerar que na imagem há polaridades irredutíveis, que se

transformam ou se deslocam constantemente. Essas polaridades movimentam-se em

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seuinterior como numa espécie de turbilhão (analogia que lhe vem de Benjamin):

um―movimento imanente‖ que não conhece síntese.

Para melhor entender essa interioridade convulsiva da imagem, Didi-Huberman

encontra apoio na psicanálise. No paradigma freudiano, que explora os signos para além da

semiologia estruturalista, o sintoma está para o signo assim como a carne está para o corpo e a

imagem está para a representação. Deste modo, há que se falar não apenas em imagem, mas

em ―imagem-sintoma‖ – singularidade dialética, signo que critica a representação.

Convém mencionar, quanto ao sintoma, que ele ―se forma‖, não surge de repente.

Freud estudou longamente o processo de formação dos sintomas (Symptombildung). Para

Didi-Huberman, esse processo permite ser comparado ao processo de formação de imagens.

Em artigo sobre Aucommencent,L’apparition, vídeo-arte de Sarkis (artista turco radicado em

Paris), Didi-Huberman volta a observar o sintoma na processualidade de sua formação. No

vídeo vemos de início uma bacia parecida com aquelas usadas para revelação de fotografias

em laboratórios. No fundo, há a presença de uma figura que nos lembraria (a nós, ocidentais)

a letra K, feita em espessa camada de tinta vermelha. ―Poderia ser pi, a letra grega‖ ,

conjectura Didi-Huberman (2005), ou ―mesmo um pictograma chinês, e poderia evocar, por

exemplo, o caractere Yuanqi, ou ‗respiração primordial‗, utilizada por Guo Ruoxu, estudioso

chinês do século XI, para caligrafar o que pintar significa‖. A seguir, Sarkis derrama

suavemente leite sobre a letra. Deparamo-nos então com a insuspeita habilidade descritiva de

Didi-Huberman:

À medida que o líquido branco toma posse do recipiente, forma-se uma nova

matéria que vai se tornar uma cobertura invasiva, o meio mesmo da tela. O

fundo da bacia desaparece aos poucos. A letra vermelha deixa uma ruína

errática, um vestígio, depois um simples traço, em seguida, uma lacuna

pouco visível abaixo do leite, que vai desaparecer ela também. (...) O leite

continua a fluir: ele cria uma profundidade. (...) Tudo se acalma. De repente,

surge uma sombra fina seguida de um dedo humano. O artista estava bem

ali, tão perto. Eis o seu corpo. E o dedo, calmamente, com uma vontade tão

firme quanto delicada, põe-se não ―sobre‖ o leite, mas, eu diria, ―no‖ leite.

Ele passa através da profundidade do líquido, ele entra. Ele se imobiliza,

tocou o fundo. Em torno dele forma-se uma auréola irregular, um pequeno

turbilhão de pigmento vermelho. Vemos, então, que o dedo em si estava

pintado de vermelho (de uma aquarela que não se dilui, que extravasa

espontaneamente no líquido branco que acabou de tocar). Em seguida, o

dedo é removido. Naquele momento - momento mágico, e é aí que

lembramos da palavra "aparência" – forma-se uma flor vermelha na

superfície do leite. Ela surge ou se estende. Não, ela se forma na retração,

estreitando-se ligeiramente, como se procurasse o seu ponto de maior

intensidade possível. Ela se forma deixando a impressão de que alguma

coisa dela é aspirada para o fundo. Isso é admirável e um pouco

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inquietante,como se o leite fosse, de repente, mais profundo do que o

esperado (DIDI-HUBERMAN, 2005).

O vídeo de Sarkis (fig.3) presta-se bem a nos evocar o sintoma em processo: a

tintaderramada sobre o leite forma-se de dentro para a fora, da profundidade para a superfície.

A representação de uma flor é desmentida em sua origem mesma. A simples noção de

superfície também é, de certo modo, rejeitada, superada. A flor que se forma é acidental, mas

toda a potência de figurar descende desse pequeno jorro de tinta. A eficácia da flor como

imagem é a eficácia mesma de toda a figuração, de toda a capacidade de constituir imagem,

própria ao sintoma. A figura se forma, ainda, a partir de um fundo branco que bem poderá nos

remeter, de imediato, às análises de Didi-Huberman em torno da Anunciação de Fra Angelico.

Figura3:SarkisZabunyan,Aucommencent,L’apparition[fotogramas],2005

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UMACONTECIMENTODEIMAGEM

Didi-Huberman abre Diantedaimagem, livro publicado em 1990, com um

comentáriosobre o afresco da Anunciação, de Fra Angelico (fig.3). A mesma obra já havia

sido estudada em FraAngelico:dissemblanceetfiguration, livro publicado meses antes. É em

complemento a esse livro, na verdade, que se fez necessária essa nova análise. Pintado na

parede de uma clausura ―caiada de branco‖, o afresco não é descrito imediatamente por Didi-

Huberman. Ele retém, primeiramente, o local onde se encontra a obra. E destaca, em dado

momento, que a pintura parece ter sido realizada numa contraluz voluntária (DIDI-

HUBERMAN, 2013b, p. 19). Por alguns instantes, o olho, velado, não consegue ver o que

está diante. Passa-se um tempo, a visão se acostuma com a luz do local, e então o afresco ―se

aclara‖, mas para tão logo retornar a um branco, o branco da parede, um branco que retém o

olhar.

Figura4:CeladoconventodeSãoMarco:oafrescoeajanela

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30

Didi-Huberman afirma ter lutado contra essa sensação de possessão que tal

brancohavia causado a seus olhos porque ele estaria, àquela época, ―prevenido‖. Essa

prevenção parece resultar de uma herança de certo modo de fazer história da arte. Prevenção

que o guardou de mantê-lo afetado por aquele detalhe da brancura do afresco. No que

concerne à simples prática do historiador diante de uma imagem, seria nesse instante, no qual

o olho supera, digamos, esse branco, quando começa a perceber os detalhes representacionais

da imagem, que ela se torna realmente visível. E tornar realmente visível, de acordo com essa

herança especialmente humanista na história da arte (Didi-Huberman evoca, dentre outros,

Alberti e Vasari), é o mesmo que reconhecer signos, é dar significados para o que se vê. Logo,

quando um detalhe é percebido para além de sua simples materialidade – naquilo que

consiste, no afresco, em ―duas ou três manchas de cores desbotadas, sutis, postas num fundo

da mesma cal, ligeiramente umbrosa‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 19) – torna-se possível

evocar ou traduzir unidades mais complexas, temas ou conceitos. Paralelamente ao instante

em que o quadro se torna visível, ele também se torna legível. É quando se acredita poder ler

o afresco que ele se torna plenamente visível. Assim, ao falarmos em leitura, falamos ainda

em istoria, em dar corpo a uma série de alegorias, em reunir logicamente unidades visuais por

meio das quais seria possível formar uma sequência narrativa. Ao se dar a ler, o afresco passa

a evocar textos, adquire um grau de legibilidade por assim dizer definitivo, pois aprofunda o

rumo à cultura erudita. Nessa busca por legibilidade, vai-se até as ―fontes‖, os textos de

origens, para entender o que o afresco poderia querer ―dizer‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p.

20-21).

Nesse ponto, Fra Angelico acaba decepcionando, pois a história que ele dá a ler no

afresco é entendida de forma muito simples, sem exigir maiores refinamentos técnicos.

Aquilo que se lê decepciona, pois, representação sumária, parece não falar além do que

mostra. Para tentar contornar a simplicidade do traço do pintor beato, alguns historiadores

teriam sustentado que, para além do legível e do visível, haveria um invisível, ligado a uma

ideia de infigurável ou de inefável (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 23), que representaria

melhor o acontecimento místico da Anunciação. Reportam-se a um vazio, a um nada que há

no afresco, que seria esse nada a trazer todo o interesse da obra, e não o que há para se ver

realmente. Didi-Huberman critica com veemência essas duas posturas, tanto a de reduzir o

pintor a um artista menor por conta de sua técnica, quanto a de negligenciar a crueza de sua

simplicidade em face de um invisível que se revela improvável e que seria mais da esfera

teológica que historiográfica. O convite a um olhar não prevenido pelo saber é inequívoco:

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31

Olhemos: não há o nada, pois há o branco. Ele não é nada, pois nos atinge

sem que possamos apreendê-lo e nos envolve sem que possamos prendê-lo

nas malhas de uma definição. Ele não é visível no sentido de um objeto

exibido ou delimitado, mas tampouco é invisível, já que impressiona nosso

olho e faz inclusive bem mais que isso. Ele é matéria. [...] É um componente

essencial e maciço na apresentação pictórica da obra. Dizemos que ele é

visual. (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p.24-25)

Essa questão do detalhe vazio, sem significado, uma espécie de nada sem figura, já

havia sido tratado em APinturaEncarnada, onde o objeto de análise – há sempre em seus

livros um objeto de análise que problematiza a história da arte e nela reabre questões – é ainda

uma pintura, mas trazida, de modo impertinente, sob o olhar de um conto de Honoré de

Balzac – ―nada, nada!‖ é o lamento do personagem Frenhofer diante de sua tela fracassada:

- Nada em minha tela! – exclamou Frenhofer, olhando alternadamente para os dois pintores e o quadro.

- Que fez você? – perguntou Porbus em voz baixa a Poussin. O velho

segurou com força o braço do rapaz e disse-lhe:

- Você nada vê ali, tolo! Patife! Canalha! Tratante! Para que veio então aqui?

Meu bom Porbus – e continuou, virando-se para outro pintor -, será que você

também se diverte às minhas custas? Responda! Sou seu amigo. Diga, por

acaso arruinei meu quadro? Porbus indeciso não se atreveu a falar; porém, a ansiedade estampada na face

lívida do ancião era tão comovente que ele apontou para a tela e disse:

- Veja!

Frenhofer contemplou seu quadro um instante e cambaleou: - Nada! Nada! E

dediquei-lhe dez anos de trabalho!

Desabou na cadeira e chorou (BALZAC apud DIDI-HUBERMAN,

2012a, p. 177).

Esse detalhe vazio, aproximado da ideia de trama (pan, muro, pano, trecho),

apontaainda para a noção de fulgor enquanto ―acontecimento pictórico e uma fratura da

pintura‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012a, p. 105). A escansão da fulgurância do branco no

afresco revela uma espécie de indecisão entre aquilo que se vê e o que se pode tocar. Abrem-

se duas possibilidades frente a essa indecisão: a que assume o pan de branco como um

puramente visível, pois tocável; ou a que o assume como marca de um invisível.

A crítica feita a essas duas formas de interpretar o detalhe sem significado da pintura

de Fra Angelico parece ser um prelúdio do que seria repensado mais tarde em

Oquevemos,oquenosolha, nas posturas extremas da dicotomia entre o ―homem da crença‖ e o

―homem da tautologia‖, mas a partir de outro objeto, igualmente emblemático: o túmulo. De

fato, diante do túmulo duas reações antagônicas se manifestam: a do homem da crença, a de

acreditar que sempre haverá algo além do que se vê do túmulo (crença numa metafísica da

imagem, numa iconologia pautada pela religiosidade); e a do homem da tautologia, que,

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diante da angústiaque o túmulo causa, simplesmente afirma só ver o que há diante dele, o

visível é tudo o queali existe. Cada postura apresenta o seu problema epistemológico: a

tautologia (―o que eu vejo é o que eu vejo‖) desconsidera tudo o que não se encerra na

visibilidade; a crença desconsidera simplesmente a matéria diante de si, ou a materialidade da

imagem.

Notamos como em Didi-Huberman olhar é um ato temporal e espacial. Ao contemplar

o afresco de Fra Angelico, ele não se contenta em dizer o que vê, mas nos conta sob que

condições a obra foi vista. Não por acaso, sua análise reveste-se de teatralidade: descreve a

cela da clausura tal como se optou por mantê-la no projeto expográfico do convento,

atualmente, Museu Nacional de São Marcos; descreve a luz do local, a impressão de

ofuscamento causado pelo reflexo da luz do sol na parede branca (pois ver é ver em algum

tempo e sob determinadas condições); descreve o ofuscamento na entrada, o efeito de

contraluz possivelmente voluntária que ―vela antecipadamente o espetáculo esperado‖ (DIDI-

HUBERMAN, 2013c, p. 19). Paradoxalmente, a intenção de ver claramente resultaria em

outra maneira de velar a observação da imagem do afresco, pois para tanto seria necessário se

esquivar da fulgurância do branco da parede. Como para a historiografia humanista algo só é

visível quando se torna possível reconhecer elementos discretos de significação, o branco, que

nada significa, é de imediato velado. O visível de nosso autor, diversamente, não é tutelado

pela autoridade do significado, mas se esgueira por uma fenomenologia do significante. O

branco de Angelico evidentemente faz parte da economia mimética de seu afresco. Ele

pertence, pois, ao mundo da representação. Mas ele o intensifica para fora de seus limites,

desloca os percursos do saber, e os faz ―significar noutra parte, de outro modo‖.

Se não há nada entre o anjo e a Virgem da sua Anunciação, é que o nada

dava testemunho da inefável e infigurável voz divina à qual, como a Virgem,

Fra Angelico devia se submeter inteiramente... Mas [tal julgamento] se priva

de compreender os meios, a matéria mesma na qual esse estatuto [religioso

da obra] existia. Ele vira as costas à pintura e ao afresco em particular [...],

acredita compreender a pintura somente ao desencarná-la, se podemos dizer

(DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 23).

O visível, o legível e o invisível seriam três categorias de uma ―incompleta

bsemiologia‖. Estudar o afresco de Fra Angelico pelo ponto de vista de seus signos deixa

apenas duas opções: ou se entende que esta imagem esteja no mundo do visível, e então seria

possível descrevê-la (a descrição se encontra na esfera da legibilidade); ou se entende que esta

imagem remete à região do invisível, e então o que se torna possível seria uma espécie de

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metafísica da imagem, ―desde o simples fora de campo inexistente do quadro até o mais-

alémideal da obra inteira‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 23). Acreditamos que nosso autor

aí serefira a metafísica no sentido de estudo do ser e do não ser, isto é, estudo da

transcendência, com o uso da razão para explicar o que não possui existência real. Haveria,

porém, uma possibilidade de nos desviarmos dos equívocos provocados por essa incursão

parcial, simplificada, reducionista, pelos sistemas de signos das imagens. Essa possibilidade

supõe que a eficácia de uma imagem ―atua constantemente nos entrelaçamentos ou mesmo no

imbróglio de saberes transmitidos e deslocados, de não-saberes produzidos e transformados‖

(DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 23). Ao afirmar que os saberes veiculados pelas imagens

encontram-se em ―imbróglios‖, isto é, embaraços, complicações, intrigas, tramas, nós, Didi-

Huberman sustenta a tese de que não é possível apreendermos a eficácia unívoca de uma

imagem.

Se pretendermos entender como imagens podem ser eficazes, elas exigem de nós um

olhar que não procure recortá-las em partes individualmente significativas, tais como objetos,

personagens ou temas. Tampouco que se busque a todo custo nomeá-los. Exige-se, em vez

disso, um olhar que, de início, afasta-se para ampliar a visão da obra. Nesse afastar-se,

necessário para que o todo não se perca ante o retalhamento que a leitura iconológica produz,

não será possível de imediato ver claramente tudo o que a obra apresenta. Didi-Huberman

refere-se a essa postura diante da imagem como resultado de uma ―atenção flutuante‖ ou de

uma ―longa suspensão do momento de concluir‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 23). Essa

pausa daria tempo para que a interpretação da imagem possa ser feita em suas diversas

dimensões. A interpretação dada pelo que ele denomina ―incompleta semiologia‖ da história

da arte é impaciente, ansiosa, pois entende resolver com a maior brevidade possível a angústia

causada pelo desconhecido. Ao encontrar algum significado para um significante, o

historiador da arte que Didi-Huberman muitas vezes qualifica como ―tradicional‖ ou

―convencional‖ pronto se contenta com o que descobriu e não admite crítica a seu modelo

interpretativo, pois é o que lhe garante esquivar-se do não saber.

O revisionismo de nosso autor reivindicará, por sua vez, esse não saber. Entre

significante e significado, haveria uma ―etapa dialética‖, oportunidade para nos deixarmos ser

apreendidos pela imagem em vez de apreendê-la. Essa etapa inverte o contato inicial com a

imagem. Quando não se procura apreender, tal denota ―desprender do seu saber sobre ela‖

(DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 24). Ato de abnegação, sacrifício do saber. O que não ocorre

sem o risco da ficção: abertura para a fantasia, para a imaginação. Mas é um risco que se

assume aceitável. Imaginar é o que resta ante o inexplicável. Nesta etapa, volta-se para as

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―obscuras evidências do ponto de partida‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 24). O que há

deevidente no afresco de Fra Angelico? A sua localização no convento de São Marcos,

emdeterminada cela, cujas paredes são caiadas de branco; a evidente justaposição de

pigmentos, lançados sobre a parede; uma janela na contraluz da obra; uma luz artificial

colocada pela administração do convento. Percebamos que não há ―nomes‖ específicos. Não

há ―anunciação‖, ―anjo‖, ou ―Maria‖. Há condições de apresentação da imagem e de sua

figurabilidade – a possibilidade de vir a figurar alguma coisa a partir das evidentes manchas

de tinta. Didi-Huberman não deixa de ressaltar o desconforto causado pelo ―branco‖ da

parede, resultante da contraluz. O branco, localizado entre o anjo e a Virgem, parece nada

evidenciar. Não deixa nada a dizer. Seria preciso nos contentar em simplesmente olhar para o

branco e vê-lo. Pois, ao menos, há o branco – o branco existe, preenche o vazio. Há alguma

coisa, um algo, que é possível ver como matéria. Algo da ordem de uma ―onda de partículas

luminosas‖ ou de um ―polvilhar de partículas calcárias‖ , algo físico, tangível. Esse tipo de

detalhe da obra Didi-Huberman (2013c, p. 25) o denomina visual. Seria tudo aquilo que se vê,

mas não se pode dizer o que representa; o visível que não é legível; o significante sem

significado; ou que se considera ―invisível‖ para a Iconografia. Lê-se em

Oquevemos,oquenosolha:

[Será preciso talvez] reconhecer que só haja imagem a pensar radicalmente

para além do princípio de visibilidade [...]. Esse mais além, será preciso

ainda chamá-lo visual, como o que estaria sempre faltando à disposição do

sujeito que vê para restabelecer a continuidade de seu reconhecimento

descritivo ou de sua certeza quanto ao que vê. Só podemos dizer

tautologicamente ―vejo o que vejo‖ se recusarmos à imagem o poder de

impor sua visualidade como uma abertura, uma perda – ainda que

momentânea – praticada no espaço de nossa certeza visível a seu respeito. E

é exatamente daí que a imagem se torna capaz de nos olhar (DIDI-

HUBERMAN, 1998, p.105).

Em Diantedaimagem, quando se trata de retirar todas as consequências metodológicas

do trato com as incertezas do visual, lê-se:

Designamos o visual, e não o invisível, como o elemento [de uma] força

coercitiva de negatividade em que as imagens são pegas, nos pegam. [...]

Não se trata de estabelecer em estética a duvidosa generalidade do

irrepresentável. Não se trata de invocar uma poética da irrazão, do pulsional,

ou uma ética da muda contemplação, ou ainda uma apologia da ignorância

diante da imagem. Trata-se apenas de lançar um olhar sobre o paradoxo,

sobre a espécie de douta ignorância a que as imagens nos compelem [...].

Não se trata de modo algum de escolher um pedaço, de fatiar – saber ou ver -

, mas de saber permanecer no dilema, entre saber e ver [...]. Trata-se apenas

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de dialetizar: pensar a tese com a antítese, a arquitetura com suas falhas,

aregra com sua transgressão, o discurso com seu lapso, a função com sua

disfunção (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.189-190).

Tal dinâmica desata o nó das ortodoxas partilhas entre ―imagem‖ e ―real‖ e

entre―imagem‖ e ―objeto‖, e abre a estrutura sobressignificante da imagem; torna-a rasgadura,

ruína.

Árdua mostra-se, pois, a tarefa de nomear esse branco do afresco, pois se trata de um

acontecimento, mais que de um objeto. Não se pode contestar que esse acontecimento

impõe,com máxima eficácia, sua potência, antes que se possa reconhecer nele uma figura.

Paradoxalmente, porém, esse branco é um virtual: ―situa-se no cruzamento de uma

proliferação de sentidos possíveis do qual extrai sua necessidade, que ele condensa, desloca e

transfigura‖. Porventura, para Didi-Huberman,éforçosodenominá-

losintoma:―entroncamento repentinamente manifesto de uma arborescência de associações ou

de conflitos de sentidos‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 26).

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SINTOMA:IMAGEM-LIMITE

Sintoma: conceito-chave para pensar a obra de Didi-Huberman. Boa parte de sua

formulação teórica, crítica e analítica centra-se, rodeia, resvala de um modo ou de outro esse

tema de absoluto fascínio. Não o fascínio como aquele que resulta de uma estupefação diante

do belo, mas o fascínio que a dúvida, suspensiva do pensamento e paralisante da fala,

impregna no sujeito diante de uma imagem. O sintoma não é produzido, mas surge, aparece,

dá-se a ver simplesmente, como uma ―questão infernal‖, aquela do próprio aparecer. Questão

que flagra o pensamento da imagem, ou a imagem que pensa. E se pensa, como? Eis a dúvida

que abre APinturaEncarnada e que também abre a imagem como objeto de conhecimento,

abre-a para o olhar que contempla o próprio ato da imagem sendo produzida, o processo, seu

devir. Como se rompesse da imagem a película de inteligibilidade que a leitura iconológica a

ela fez aderir, Didi-Huberman nos mostra, trabalhado em texto, todo o potencial expressivo da

simples complexidade do nada – ou melhor, daquilo sobre o que não há nada a se dizer, mas

tudo a ver e, pourcause, a indagar.

Sintomas encontram-se no limite do ato pictórico, que é ato de imagem ou imagem em

ato. Esse limite, definido por Didi-Huberman, em pintura, como o encarnado, é o ponto no

qual a imagem pode sonhar com sua mais alta eficácia, quase no instante de poder saltar, viva,

do suporte por meio do qual aparece; instante, igualmente, dos riscos da desfiguração, do

fracasso, do caos (DIDI-HUBERMAN, 2012a, p. 36). Para isso, basta que o pintor, ao retocar

em demasia a imagem na procura (desesperada) da irreversível perfeição, acabe por exagerar

(na esperança da plena indicialidade) na espessura das camadas de tinta. Esse limite, todavia,

é móvel, é uma variação da relação entre superfície e profundidade da tela no tempo. Pois a

imagem e seu ―colorido em ato e em trânsito‖ deixam-se ver como trança temporalizada,

―passagem colorida que não deixa de ser uma dialética indiscreta, sempre previsível, do

aparecimento e desaparecimento‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012a, p. 36).

Fazer aparecer é o ideal almejado pelo pintor Frenhofer no conto de Honoré de Balzac

que dá ensejo à massa argumentativa de APinturaEncarnada. Mais do que mostrar, mais do

que representar, trata-se de produzir uma criação tal que se imagine uma pintura dotada da

capacidade de ser tocada, acariciada, enquanto surge diante da aproximação do olhar. Lê-se

no conto:

É preciso ter fé, fé na arte, e viver durante muito tempo com sua obra para

produzir semelhante criação. Algumas dessas sombras custaram-me

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muitostrabalhos. Vedes, há ali sobre a face, abaixo dos olhos, uma leve

penumbra que, se a observardes na natureza, parecer-vos-á quase

intraduzível. Pois bem! Pensais que ela não me custou penas extraordinárias

para ser reproduzida? (...) olha atentamente meu trabalho, e compreenderás

melhor aquilo que eu te dizia sobre a maneira de tratar o modelado e os

contornos. Olha a luz do seio, e vê como, por uma sequência de retoques e de

realces fortemente empastados, consegui captar a verdadeira luz e combiná-la

com a brancura lustrosa dos tons iluminados; e como, graças a um trabalho contrário, apagando as saliências e o grão da pasta, pude, à força de acariciar

o contorno de minha figura, mergulhar no semitom, suprimir até a ideia de

desenho e de meios artificiais, e o ela dar o aspecto e a própria redondez da

natureza. Aproximai-vos, vereis melhor o trabalho. De longe, ele desaparece

(BALZAC in DIDI-HUBERMAN, 2012a, p. 176).

―De longe, ele desaparece‖: trabalhar a imagem de modo a permitir que opere

transformações na aproximação ou no distanciamento do olhar é lidar com a possibilidade,

cruel para a sapiência do pintor, de ver apenas o nada. No ―limite da pintura‖ cria-se uma

tensão entre ―verdade absoluta‖ e ―alteridade absoluta‖ que a torna capaz, tal qual um corpo,

de se ver ―atravessada, assombrada pelos tormentos, pelos reviramentos do humor‖ (DIDI-

HUBERMAN, 2012a, p. 36), capaz, portanto, de produzir a dúvida – em outras palavras, o

olhar que a imagem nos devolve quando a olhamos. No limite, a imagem nos inquieta, talvez,

porque não se resolve, não in-forma, não con-forma.

A perspectiva não deixa de lembrar o conhecido tema da ―inquietante estranheza‖,

Unheimlich, em Freud, conceito-paradigma que não passou despercebido por Didi-Huberman.

Freud desenvolveu o conceito de Unheimlich em ensaio (FREUD, 1919/1996) dificilmente

classificável dentro de sua obra. Nele, ele procura entender como se dá na psique o sentimento

da estranheza. Primeiramente, ele faz um exercício filológico do termo alemão Unheimlich. O

radical heimlich liga-se, a princípio, a familiar, mas também se encontram usos no sentido de

oculto ou secreto. De modo que a partícula de negação, Un-, acaba por produzir um paradoxo,

pois, em certas acepções, refere-se ao que ―não é familiar‖, mas em outros casos se refere ao

que ―não é oculto/secreto‖. Freud reconhece que o uso de Unheimlich como o não-familiar

prevaleceu, mas nas entrelinhas da ideia de estranheza também haveria a possível revelação

de um segredo (talvez escondido na própria psique). Daí que Didi-Huberman utilize o

conceito para se referir ao aparecimento ou desaparecimento próprios da experiência-limite

proporcionada pelas imagens. O Unheimlich se manifesta na dúvida, na desorientação,

―experiência na qual não sabemos mais exatamente o que está diante de nós e o que não está‖

(DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 231): aparecimento e desaparecimento convivendo ao mesmo

tempo. Um não reconhecimento, uma dificuldade de entender.

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Em vista disso, Didi-Huberman convoca o imemorial motivo da porta constante da

parábola―Diante da lei‖, penúltimo capítulo de OProcesso de Kafka (2009). Nessa angustiante

história de dúvida, de incompreensão, um homem simples do campo pede para o guardião de

um templo para que o deixe entrar, atravessar a porta: ―entrar na lei‖. Pedido negado sem

justificativa, o homem vê-se obrigado a ver indefinidamente a porta permanecer aberta diante

de si. E ali ele permanece, apático, no limiar, durante anos, sem jamais entender o motivo da

proibição. Essa proibição não seria a mesma que se impõe no conto de Balzac (apud DIDI-

HUBERMAN, 2012) a Poussin diante da tela que ele tanto almeja? Essa porta não seria a

alegoria da imagem que se abre diante de nós, mas nos nega que de fato por ela penetremos?

A porta permanece fechada para o homem até próximo do fim de sua vida, quando lhe ocorre,

finalmente, perguntar ao guardião porque mais ninguém o havia interpelado quanto á

passagem pela porta. O guardião grita-lhe que mais ninguém além dele poderia entrar por

aquela porta, pois essa abertura teria sido feita apenas para ele. E então fecha a passagem em

definitivo. A porta aberta na irônica narrativa kafkiana é um limiar intransponível, inacessível,

e que impõe sua distância. Diante da porta aberta, Didi-Huberman alegoriza o que significa

estar diante da imagem para o historiador da arte interessado numa heurística renovada de seu

objeto. Estar diante da imagem é estar diante do limite, do colorido-limite, do colorido-

sintoma – simples limite, extremamente simples (―nada, nada!‖; só há uma porta, basta

entrar), mas fundamentalmente estranho, tenso, imóvel em sua irredutibilidade (1998, p. 245-

248).

A porta é tradicional motivo evocador de todas as passagens, de todas as visões e

expectativas, entre certezas e decepções. Contra a ortodoxia historiográfica, a Pineportal de

Robert Morris (fig.5), simples batente de porta exposto numa sala de museu, bem define a

imagem como um limiar: diante da imagem estamos como que "diante do vão de uma porta

aberta" (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p.15). Nessa imagem que é embate constante entre

memória e expectativa, entre certeza e dúvida, seus efeitos são produzidos com sua negação.

Pergunta-se Didi-Huberman (1998, p.249): ―seria a função originária das imagens começarem

pelo fim [...], baterem ao ritmo de algo e de alguém que já tiveram fim? [...] Por um limiar

interminável – ‗porta estreita‗, dizia Benjamin – entre o que um dia teve fim e o que um dia

terá fim‖. Entre "véu e dilaceramento", a imagem terrífica de um "batimento dialético". Seja

como for, assumirá o historiador-filósofo, o que se tem são imagensapesardetudo, apesar de

serem objetos da angústia por excelência. Assim, as imagens que aqui e acolá se encontram

nos textos de Didi-Huberman não são senão imagens-limite: fora de todo consenso, abrem

para a "experiência dilacerante" de uma "dessemelhança essencial".

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Figura5:RobertMorris,PinePortal,1961.

Entendê-las, pois, em sua eficácia menos evidente exige uma arqueologia crítica

aretomar Benjamin quando nos convoca a ―ler o nunca escrito‖, a denunciar a impossibilidade

de leitura conclusiva das imagens mundanas, a colocar em questão toda a experiência

autêntica moderna. Não será preciso dizer o quanto isso tudo contraria a história estetizante da

arte de Winckelmann e de Vasari. É voltar-se uma vez mais para o ―fantasma‖ Warburg para

quem uma história da arte não se abre nem pela ressurreição cristã nem pela glória olímpica,

mas por ―um despedaçamento do humano, passional, violento, congelado num momento de

intensidade física [psíquica]‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.27), como se deixa ilustrar na

gravura de Albrech Dürer (fig. 6). Uma história não estetizante procurará o significativo não

no consenso do belo, mas no deslocamento das assertivas, no limiar dos desfazimentos de

sentidos. Aí encontrará as formas em volúpia e repouso de Explosantefixe, de Man Ray (fig.

7); a dança flamenca de Israel Galván (fig. 8), em que o corpo abandona a sua estrutura

imemorial para cair ao solo, quase descarnado; ou quiçá as nuvens de Alfred Stieglitz (fig. 8),

em seu "transbordamento específico", que abre, histeriza a simples imagem do sintagma

visual ―céu‖.

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Convém, para o encontro das imagens-limite, o limite da mente: o mergulho

noinconsciente, onde a eficácia sombria das imagens possa ser avaliada, onde o princípio da

incerteza possa, finalmente, vir ter com o trabalho do historiador da arte. Razão porque Didi-

Huberman resgata em seus gestos revisionistas a terminologia psicanalítica. O que não é

novidade para o psicanalista, para o historiador da arte é motivo de renovação de sua prática:

a eficácia da imagem não é seu esclarecimento, mas ferida no legível e escavação no visível.

O historiador-arqueólogo Benjamin bem sabia que a matéria informe persiste no escondido,

que o visual aflora para além do visível, que toda opacidade é convocada no que se imagina

transparência – tal como o inconsciente pode vir à tona no mais simples ato consciente. Em

termos que não poderiam ser mais concisos, Benjamin reconhece a eficácia da imagem

técnica, obtida pelo de fotografar ou filmar, em nos revelar o que Freud descobrira

empiricamente em suas investigações ao lado de Breuer – que há um espaço inconsciente na

psique para além do visível, mundo novo que nossa limitada percepção consciente é incapaz

de vislumbrar em todo o seu esplendor:

[a câmera] nos abre, pela primeira vez, a experiência do inconsciente ótico,

do mesmo modo que a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente

pulsional. De resto, existem entre os dois inconscientes as relações mais

estreitas. Pois os múltiplos aspectos que o aparelho pode registrar da

realidade situam-se em grande parte fora do espectro de uma percepção

sensível normal (BENJAMIN, 1998, p. 189).

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Figura6:AlbrechtDürer,AMortedeOrfeu,1494

Figura7:ManRay,ExplosanteFixe,1934

Figura8:IsraelGalván,cenadoespetáculoLaCurva

Figura9:AlfredStieglitz,Equivalent,1930

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UMCOLORIDO-LIMITE

No modo de funcionamento das imagens percebe-se a atuação de um duplo regimeque

as tornariam capazes de ―produzir um efeito com a sua negação‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012c,

p. 107; grifo do Autor) – com sua contradição, com seus desmentidos, rejeições ou recusas.

Esse duplo regime nos faz pensar em quais seriam as possíveis consequências para o estudo

das imagens a hipótese de que elas produzam impressões contraditórias.

Ao evocar as discussões teóricas seculares da carnação (a representação pictórica do

corpo humano nu, principalmente o rosto, em sua cor natural), Didi-Huberman nos apresenta

uma dificuldade geral em se representar o corpo humano: ao que lhe parece, todo o

dispositivo visual da imagem posterga o arremate da obra, pois exige que o artista a

modifique, a transforme, acrescente indefinidamente detalhes a fim de tentar dar conta dos

efeitos visuais da pele, como ocorre, por exemplo, na representação do rubor e das manchas

vermelhas que parecem se movimentar por debaixo do tecido epitelial quando das grandes

emoções. A partir da análise de alguns textos antigos que tratavam de questões técnicas da

pintura da carnação, Didi-Huberman retoma em A PinturaEncarnada a ancestral noção de

encarnado de modo a entender a eficácia visual da representação pictórica da carne em suas

pulsações páticas.

A palavra encarnado não permite esclarecer se o prefixo en- refere-se a dentro ou

sobre; nem se o radical, carne, diz respeito ao interior do corpo, por oposição à branca

superfície. Didi-Huberman repensa a pictoriedade da carne invocada para designar o Outro,

alteridade apresentada como pele. Essa indecisão pertinente ao próprio significado do termo

constituiria algum fantasma maior da pintura. Talvez mais do que isso, pois essa ―impossível

arbitragem‖(DIDI-HUBERMAN,2012a,p.32)dapalavraencarnadotoca inconscientemente na

partilha entre a premeditação do pintor, seu modo de projetar a obra, e os gestos de seu

arremate.

Ao analisar as recomendações acerca do colorido dos rostos dadas pelo pintor Cennino

Cennini em seu tratado de pintura renascentista Illibrodell’arte, Didi-Huberman observa que

ali o encarnado não é pensado nem como superfície, nem como interioridade, mas como um

―entrelaçamento‖, inextricável, do branco e do vermelho. Cennini preconizava iniciar a

carnação de rostos por algumas demãos de branco de chumbo diluídos em água; depois,

acrescentar tons roseados com cinabre (tinta vermelha obtida do sulfeto de mercúrio),

regulados por mais ou menos branco para expressar os diferentes graus de carnação da face; e,

finalmente, aplicadas as diferentes cores de carne, voltar ao branco, delicadamente, para

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daracabamento sobre os relevos mais salientes. O cinabre, nesse procedimento de pintura,

seria―como um sangue‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012a, p. 34) Complementa a comparação a

rica conotação da cor: mítica, ela viria do sangue dos dragões quando mortos em combate;

geológica, ela resulta da fossilização nauseabunda de animais antediluvianos. Nesta última

forma de obtenção da cor rubra, como se parte de um processo de alquimia, ao se fazer reagir

o enxofre ao mercúrio, o cinabre resultava numa goma que servia como ―a melhor cor para

imitar o sangue‖, de acordo com Furetière (apud 2012a, p. 34). Tais incursões pelas

vicissitudes do cinabre dão tônus ao que um teórico renascentista chamou ―a voz da carne‖.

Jogo da subjacência e da transparência, o encarnado se evidencia tanto pelo que se sugere por

debaixo quanto pelo que se exige em superfície. Assim, colorido por excelência, o encarnado

seria da ordem do entremeio, imperativo categórico da convergência entre superfície e

profundidade.

No paroxismo de seu efeito mimético, conta a Didi-Huberman o teórico de antanho, o

cinabre pode equivaler a uma perfuração na carne; se aproximaria, com isso, da chaga, da pele

escorchada. Entretanto, o destino dessa perspectiva aponta para seu imponderável. É o que

ressalta Diderot, para quem a face humana se apresenta aos que tentam reproduzi-la como

uma ―tela que se agita, se move, se estende, se distende, se colore, esvai-se‖ ( 2012a, p. 35) de

infinitas maneiras. A ―incessante passagem de humores‖, essa ―vicissitude do colorido‖ que é

a carne humana, por onde oscila o pathos, seria, para o autor de Oeuvresesthétiques, por um

lado a dificuldade maior do exercício da pintura, onde se encontraria sua possibilidade de

intelectualização, de teorização; por outro lado, poder-se-ia encontrar na carne a loucura, a

irracionalidade maior do ato de pintar, pois haveria o risco sempre iminente de se corromper o

olho do pintor ao ponto de que não mais seja capaz de se deter na superfície, ao ponto de não

conseguir mais do que escorchar suas figuras. A pintura constituiria, deste modo, uma ―louca

dificuldade‖, uma aporia. Diderot teria observado, ainda, que seriam nesses obstáculos

impostos pelo rosto ao ofício do pintor que se administraria a questão do que ele avocou como

a ―temporalidade monádica do corpo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012a, p. 35). De modo que, por

ser ―colorido em ato e em trânsito‖, o encarnado seria como uma ―trança temporalizada‖ entre

superfície e profundidade corporais. Não deixaria de constituir, por consequência, uma

―dialética indiscreta‖ do aparecimento (epiphasis) e do desaparecimento (aphanisis) dos

fluidos e humores corporais (DIDI-HUBERMAN, 2012a, p. 36). Diderot teria concluído seu

texto alegando que a oscilação temporal do encarnado do rosto indicaria um limite da pintura,

um ponto extremo que assinalaria uma incontornável restrição do que o pintor pode executar

sobre uma superfície. Limite tão logo convertido em desespero e loucura, pois é quando

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seconvoca o processo de retoque, indefinidamente assediado pelo fracasso, pelo caos,

peladesfiguração da obra. Como os humores oscilam incessantemente, suas manchas se

apresentam em transformação: ora destacam-se na superfície, ora se escondem na

profundidade da carne. Por conta do que seria possível entender o encarnado como um

―colorido-limite‖ que representa a alternância absoluta da verdade e da alteridade na obra.

Sobretudo, seria um colorido visado (desejado e ao mesmo tempo olhado) pela pintura, mas

de improvável realização pelos mimetismos usuais.

Ao evocar a perspectiva diderotiana, Didi-Huberman preconiza que se pense o

encarnado como um ―colorido-sintoma‖, ―um colorido por meio do qual a pintura imagina-se

dotada de sintoma‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012a, p. 36). A pintura poderia assim ser pensada

como um corpo e como um sujeito. Sendo o colorido da vicissitude, poderia ainda ser o

colorido do despertar do desejo. Mas, principalmente, poderia ter a capacidade de se ruborizar

– como o rosto de uma amante que entrega seu desconforto, ou satisfação, ao se sentir olhada

pelo amado.

―Isso é tudo o que se pode esperar da eficácia de uma imagem‖ (DIDI-

HUBERMAN,2012a, p. 37). Espera-se que as imagens não sejam inertes, mas que reajam de

algum modo aos olhares que recebem, que possam olhar de volta e se sentirem tocadas na

profundidade de sua carne, e não apenas, friamente, sejam olhadas em sua superfície, em sua

aparente planaridade, e não interajam com o olhante. Em última instância, talvez olhamos

apenas para sermos olhados.

Haveria um fantasma, relativo aos meios da própria pintura, presente no olhar de

compaixão das imagens milagrosas da Virgem, ou no sangue da Paixão que escorre dos

corpos crísticos. Ou, ainda, no corpo feminino histérico, estudado à exaustão no século XIX

por médicos e artistas. É o fantasma de um colorido em ato e em trânsito, de um encarnado

inquieto e convulsivo. Uma histeria da pintura. Uma histeria congênita da imagem.

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HEURÍSTICADAFIGURAEDESFIGURAÇÕES

O cinema revela, ou exacerba, o que a fenomenologia frequentemente designa

porvisada: operação em que a consciência volta-se intencionalmente para determinado objeto.

Não é o caso, porém, do cinema de Philippe Grandrieux, no qual o reconhecimento de um

objeto não é a intenção da cena. Em Meurtrière (2015) e LaVieNouvelle (2002), há figuras

que apresentam acontecimentos de imagem, não representam objetos. Não são, portanto,

realidades externas conforme percebidas pelos sentidos. São figuras intensivas, fantasmáticas,

corporeidades avizinhadas da materialidade fílmica. Em Meurtrière, por exemplo, corpos

aparecem como espasmos, misturando-se ao fundo, em desfiguração. Não são mais formas de

corpos, mas figuras quase informes, indícios de um corpo de intensidades (fig. 10). Talvez

tenhamos aqui com o que aproximar a corporeidade sintomal de que trata nosso autor.

Figura10:FotogramasdeLavienouvelle,PhilippeGrandrieux,2002

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A imagem para Grandrieux é antes háptica que visível. Ela é visual na exata

medida,ousamos afirmá-lo, da acepção didi-hubermaniana do termo. À visão dita normal,

submetida às regras do discurso, se opõe o visual: aquilo pelo qual a imagem escapa ao

discurso. Na medida em que a história da arte se interessa apenas pela visão, ela se mostra

incapaz de dar conta do enigma da figura, que a um só tempo dá acesso a algo e o oculta. Um

cinema como o de Grandrieux não é uma questão de imaginação, mas diz respeito ao que está

diante: ao mistério das formas que estão diante insensatamente, a pura presença das coisas.

Não sendo uma simples narrativa, não entende dizer a verdade. A realidade objetiva que

veicula não trata da exposição de fatos externos ao seu próprio mecanismo de projeção, mas

reside na imagem. Pois não é caso de mostrar algo, mas de estardentro deste algo. O que

poderia significar ―estar dentro‖ para uma forma de arte tão acostumada a entender o

espectador como aquele que está fora, simples expectância? E tão acostumada a entender a

tela como um espelho do real? Estar dentro não parece ser o mesmo que fazer parte da obra

ou interagir com ela, transformando-se em mais um objeto da cena. Estar dentro é compor

com a obra durante o fenômeno mesmo de estar em sua presença. Compõe-se com a obra

sempre que o olhar é convidado a se abrir à imagem fílmica. O dessemelhante e o infigurável

nas películas de Grandrieux parecem realizar esse convite. Diante da abertura de sentidos que

elas produzem, o olhar é convidado a trabalhar em conjunto com o filme, que não exibe, por

conta disso, formas estáveis, mas formas em constante de-formação.

Philippe Dubois designa como figural essa ―plasticidade, da matéria e das formas,

sempre cambiante e fundamentalmente instável; plasticidade da presença fenomenal das

coisas‖ (DUBOIS apud HUCHET, 2012, p. 99). Talvez se possa então afirmar que o cinema

de Grandrieux seja figural, pois sua imagem, de certa forma, é moldável pelo olhar. É o

espectador que dá sentido ao que vê. E dar sentido, no campo de estudo das imagens,

assemelha-se a ―dar forma‖. Parece estarmos aqui no terreno da escultura; não se trata de algo

moldável do mesmo modo como se molda uma pedra bruta, mas há uma tatilidade essencial a

se pensar este tema. ―Dar forma‖ a uma imagem e ―dar-lhe um sentido‖ são, de certo modo,

operações semelhantes, mesmo que a primeira operação pareça ser da ordem do plástico, do

molde, da manipulação; e a segunda, pareça da ordem do intelectual, do pensamento. O

figural parece ser a categoria que consegue reunir o ato de dar forma com o ato de dar sentido,

ambos ocorrendo na mesma operação, pois o figural depende da presença, do imediato, do

fenômeno. Parece ser algo que se constrói apenas durante o olhar, como um acontecimento do

olhar. Fora de qualquer visada, um figural não existe como objeto único. Por isso, nunca

estará pronto, mas em processo.

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Mas por que insistir nas paragens do figural? Em Diantedaimagem, Didi-

Hubermandistingue a apresentabilidade das imagens e a representação figurativa dos objetos

do mundo natural. Isto porque a apresentação situa-se do lado do que suplanta o

imediatamente percebido e que o ausenta da representação figurativa. O figural é o para além

do visível; ele se situa do lado do recalque, do esquecimento, do que se suspende/se posterga.

Ele assinala o desvio e torna-se sinônimo de falha, lacuna, rasgadura. Onde há rasgadura –

esse ―jogo‖ do ―mundo das imagens‖ com o mundo da lógica, da racionalidade (DIDI-

HUBERMAN 2013, p.188) – o sentido torna-se presente. Paradoxal falar de sentido quando

estamos na chave de uma ―suspensão‖? Ora, o esforço em vista do sentido é elaborado por

atos de um sujeito implicado, que se põe em particular relação (em ―jogo‖) com o objeto

visual. Didi-Huberman põe em linha a figuratividade e o visível (o ver), e o figural com o

visual (o olhar), o que o leva à figurabilidade; interessa-o o que não faz figura numa obra, mas

que, apesar disso, faz sentido. O que está em questão aqui é justamente o ―sentido do

sentido‖. O que não deixa de nos levar a uma concepção negativa do sentido, aquilo que toca

o sujeito do olhar a partir do não sentido do figural.

Quando Didi-Huberman situa a representação do lado do figurativo e a presença

próxima ao figural, ele se afasta de uma tradição segundo a qual a presença seria oposta à

ausência. A presença, por intermédio do figural, oscila entre a falta e o excesso, o pouco e o

demasiado. A essa oscilação acresce-se outra: entre a tendência à ―boa forma‖, que se situa do

lado do senso comum, e a deriva/desfiguração proposta pelo figural, que se situa nos lugares

em que se ausenta o ―espectador originário ou universal‖. Diante da Anunciação do Angelico,

o que mais importava senão uma figura da ausência, um objeto de desfiguração, para

justamente sustentar uma heurística metodológica? Diante dos corpos canônicos da exegese

figurativa cristã, Didi-Huberman preconiza uma experiência visual da imagem que prescinde

da soma de conhecimentos que a torna inteligível. Razão pois do convite, implícito ao longo

dos revisionismos metodológicos, para ―esvaziar‖ o ―longo desvio‖ pela ―mediação [do]

conhecimento específico‖ do que ―nos atinge imediatamente‖ .

Quiçá o cinema de Grandrieux nos sirva de paradigma para o que bem poderíamos

identificar nas análises de Didi-Huberman como sendo da ordem de um contratempo do

visual e de uma latência na imagem. O que impede uma real implicação com a imagem é,

segundo ele, o discurso que fecha na idealidade da ―concordância dos tempos‖, isto é, a

hermenêutica iconológica que se limita a ressaltar o valor intrínseco da imagem, e aquele do

tempo a que pertencem ela e o artista que a realizou. Essa perspectiva oblitera a dimensão

figural da imagem e faz primar a inteligibilidade discursiva, a forma. O que excede a

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imagem,o mistério da Encarnação no afresco de Fra Angelico por exemplo,

―desfigura‖oconhecimento documental, interrompe-o, o põe em dificuldade, pela

presentificação paradoxal da ausência (divina). Assim, o que a concordância dos tempos não

pode conceber, o que permanece heterogêneo, somente se exprime numa tensão entre o que se

mostra e o que se oculta, no contratempo de um sintoma, no anacronismo de um

acontecimento de imagem.

Ao final de WhiteEpilepsy, o fato intensivo do corpo investe a materialidade da película

fílmica de modo a expressar a capacidade de des-figuração da imagem. Pela utilização

extrema de possibilidades técnicas tais como a câmera lenta, a iluminação extra-diegética, a

sobre-exposição e o outfocus, Grandrieux sombreia e deforma os contornos do rosto da

mulher, dissipando os traços reconhecíveis de sua figura (fig.11). A imagem que resulta,

lacerada, irregular, explora o informe e os limites da expressividade. Não somente o objeto

narrado é subtraído da lógica da representação e ganha os domínios da figurabilidade: também

a forma e o espaço sofrem o mesmo tratamento. A forma em WhiteEpilepsy de fato é

ultrapassada nas suas componentes tradicionais de ordem, harmonia, equilíbrio para se tornar

força anômala e irregular por meio da iluminação e dos sons não naturais; do mesmo modo, o

espaço ali, sucedâneo contemporâneo do vazio argiloso da Anunciação renascentista, ocupado

inteiramente pelo primeiro plano do rosto da mulher e das intensas fulgurâncias de luz, abre-

se para o tempo e para os deslocamentos livres e arbitrários dos fantasmas interiores. O corpo

figural irrompe no filme como um rasgo/ferida na representação. O figural é ali des-figuração,

irrupção, desvelamento, laceração, transgressão do objeto, da forma e do espaço.

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Figura11:FotogramaderradeirodeWhiteEpilepsy,PhilippeGrandrieux,2012

Ao longo dos textos de Didi-Huberman, vemos como a figurabilidade, esta noção

queuma psicologia da imagem sintomal convoca do freudismo, ―se opõe ao que entendemos

habitualmente por ‗figuração‗― (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p.27). A passagem prossegue:

―assim como o momento visual, que ela faz advir, se opõe a, ou melhor, torna-se obstáculo,

incisão e sintoma, no regime ‗normal‗ do mundo visível, regime no qual se acredita saber o

que se vê, isto é, no qual se sabe nomear cada aspecto que o olho está acostumado a capturar‖.

Razão porque podemos ―identificar‖ (as aspas se impõem aqui) alguns corpos sintomais ao

longo dos textos de nosso autor. Em Diantedaimagem, Ohomemdador de Dürer

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parececonvocado como imagem exemplar da figura contraída, sem troca esclarecida com

seuespectador, invaginação da forma numa recusa à plena visibilidade. A esse deus em

retração bem responderiam as figuras esmaecidas das fotografias de Auschwitz-Birkenau:

simbolicidade em ruptura de eficácia, convite a vir ter com economia mais incisiva do olhar e

da imaginação (figs. 12a e 12 b).

Figura12a:A.Dürer,Ohomemdador,1509-

10;Figura12b:DetalhedefotografiatiradapormembrodoSonderkommandoemAuschwitz.

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AURAEDISTÂNCIA

Em 1972, Hubert Damisch, em seu Théoriedunuage, procura articular História daArte

com Estética. Analisando rigorosamente a representação clássica e barroca das nuvens, ele

encontra elementos perturbadores da falsa homogeneidade cultural de ambos os períodos

históricos. O conceito damischeano de sintoma refere a disposição do sintagma visual nuvem

em subverter semiologicamente a supremacia da representação e a uniformidade do sentido

das imagens. Seus estudos produziram o abalo das certezas da prática iconológica e abriram,

assim, espaço para a busca de Didi-Huberman por instrumentos de investigação que

escapassem do reducionismo dos signos, temas e símbolos das imagens (HUCHET apud

DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 10-11). Efetivamente, Damisch sugeria, assim como o fizera

anteriormente Jean-François Lyotard em Discours-Figure, empregar a psicanálise como

instrumento para investigar as imagens de modo a permitir que ela se converta em corpo de

expressão para rastros sedimentados de patologias, como se fosse uma estrutura linguagética

viva (HUCHET in DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 15-17). Fato é que as múltiplas referências

do conceito didi-hubermaniano de sintoma consideram-no, de modo geral, como um agente

perturbador de padrões, de hegemonias, produtor de crises e dilaceramentos, como fenda

através da qual as imagens manifestam ―sua estrutura complexa e suas latências

incontroláveis‖ (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 17). Destaca-se ainda seu poder de fazer

aflorar ―memórias, relações, semelhanças e tensões com as múltiplas temporalidades que se

manifestam nas imagens‖ (MELLO, 2014, p. 23).

Acontecimento crítico de natureza singular, a intensidade visual do sintoma é

contraditória: ao mesmo tempo, é estrutura significante em obra, sistemática do próprio surgir

dos acontecimentos; mas também produção de enigmas, de fenômenos-indícios, a não

permitir qualquer estabilidade de significados. Assim, o sintoma seria uma ―entidade

semiótica de dupla face‖, que ora lampeja, ora dissimula, motivo de ruptura da soberania da

estrutura (DIDI-HUBERMAN, 2013b, p. 335). Uma das grandes forças da imagem, ou talvez

devamos dizer sua eficácia maior, bem poderia ser encontrada no fato de ela

concomitantemente produzir conhecimento e subtração caótica (DIDI-HUBERMAN, 2012d,

p. 214). Como a imagem apresentaria tempos distintos que sobrevivem no encontro entre a

diferença e a repetição, a perspectiva sugere que pensar o tempo é pensar os seus sintomas e

anacronismos. Ao interromper o curso da representação visual e da história cronológica, a

imagem-sintoma exige ser pensada do ponto de vista de um ―inconsciente da representação‖ e

de ―memórias entrelaçadas‖. (KERN, 2010, p. 18).

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Heterogeneidade e inconstância marcam, pois, o sintoma. Devido a isso nos importa

diretamente a listagem sintomal composta por Raul Antelo, que se reporta ao arder da imagem

em contato com o real:

Como sintomas [do] antimodernismo de Baudelaire, as FloresdoMal nos

fornecem imagens políticas, éticas, filosóficas e até mesmo teológicas

inerentes à própria modernidade ocidental. (...) Conseguir ler tais imagens é

detectar (...) onde elas ardem, onde queimam, onde se consomem. Como

sintoma, nas páginas da RevuedesDeuxMondes, os poemas de Baudelaire

lêem-se, em rede, com os textos de Elisée Reclus, de Ferrari, de Adolphe

d‗Assier, de Théodore Lacordaire ou Émile Adet. São textos, como os de

Charles de Mazade, sobre a violência política, filosófica e moral retratada no

Facundo, que, junto aos da condessa de Merlin, de extração ética, nos

fornecem imagens do exotismo do Mal; algo que também constatamos, tanto

nas resenhas proto-heterológicas da antiga vida mexicana de Ferdinand

Denis, como nos poemas dedicados à Espanha, de Théophile Gautier, a

quem são dedicadas as FloresdoMal, poemas esses de Gautier em aberta

sintonia com a modernidade "oriental" de Manet, esse discípulo de Goya ou

Velázquez. Aliteraturaeomal, o livro de Georges Bataille, começa a se

escrever nessas páginas de DeuxMondes. E além de os lermos em rede,

como sintoma, é preciso lê-los também como peculiares exercícios de saber

ou conhecimento. (ANTELO, 2007)

Tem-se aqui um painel das dessemelhanças do sintoma. São obras cujas interligações

não se dão por categorias, nem por épocas, mas por redes de peculiaridades. De um sintoma

central, uma inquietação para Antelo, outras obras se ajuntam, numa montagem heterodoxa

que vai de Manet, a Goya ou a Velázquez. Destes, vai-se além da literatura; e chega-se a

Bataille, autor desimplicado das identidades por excelência. Política mescla-se com filosofia e

com teologia; pintores com literatos, ou historiadores; derrubam-se as fronteiras dos ofícios e

das artes, dos tempos, das categorias. O sintoma trama associações inesperadas, enreda

ligações ilógicas, um mecanismo de acionamento dos saberes que se apresentam entre

desmentidos.

De retorno às visualidades, pode-se dizer que o sintoma desdobra a dialética do ver. É

o visível da diferença entre o olhante e o olhado; entre eles, diferentes historicidades

compõem a memória. Pois o tempo da imagem não é o mesmo tempo do observador; tal

relação dá-se por desníveis, desencontros. Nesse tocante, Didi-Huberman reporta-se a

Benjamin, a seu já consagrado conceito de aura. A aura – imagem que olha, transcendência

que marca a distância entre imagem e olhante, e que abdica de seu poder de retornar o olhar a

ela oferecido ao sucumbir diante da era da reprodutibilidade técnica – é sintoma da relação

desnivelada entre imagem e olho. O fenômeno aurático, privado da idéia de crença, de culto,

aproxima-se do conceito de imagemdialética: marca da tensão entre o ver e a memória; crise

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da qual emerge diversa historicidade. O sintoma seria então da ordem de um ―suporte para

osalto, para uma inquietação renovada, não acomodada à assimilação imediata do visível,

estabelecida como memória no próprio corpo‖ (COSTA, 2009, p. 91); seria inquietação

renovada, ao interromper o curso normal de algo segundo uma lei: fenomenologia da

irrupção, do afloramento, do que emerge. Redemoinho.

A noção benjaminiana de aura importa para nos aprofundarmos na questão da eficácia

do sintoma. Em Oquevemos,oquenosolha, Didi-Huberman nos convida a pensar sobre esta

palavra, utilizada com frequência entre os historiadores da arte e teóricos da imagem.

Benjamin se referiu a ela como ―uma trama singular de espaço e de tempo‖. Didi-Huberman,

lembra que Benjamin refere a trama como um ―espaçamento tramado‖. Ele a apreende, pois,

em todos os sentidos do termo, como ―tecido, rede‖, ou como ―acontecimento único‖. É como

se o espaço e o tempo pudessem ser feitos de fios, que se entrelaçam formando uma urdidura,

uma tessitura. Sempre singular, essa trama é ―coisa trabalhada‖ que dá origem a algo como

uma ―metamorfose visual específica‖. Didi-Huberman aproxima, poeticamente, essa ideia de

metamorfose com a de um ―casulo de espaço e de tempo‖. O casulo é tecido em estado de

latência, é algo ainda não consolidado, o que está por se desenvolver, e que por esse motivo

bem poderia figurar o próprio processo, o ato da transformação mesma: a trama. Enfim, o

casulo metaforiza o espaçamento que se interpõe entre o olhante e o olhado. Tal interposição

se configura como verdadeira imposição, como um ―paradigma visual‖ dotado do ―poder da

distância‖. Poder a um tempo de aproximar e de distanciar, de unir para tão somente

apresentar o afastamento, denunciar a lacuna que há entre o olhante e o olhado. Lembremos a

fórmula desenvolvida por Benjamin para sintetizar o que ele entendia por aura: ―única

aparição de uma coisa longínqua, por mais próxima que possa estar‖. Didi-Huberman procura

observar os desdobramentos possíveis desta sentença no campo da história da arte – ou, antes,

observar o que pode a aura nos dizer enquanto distância que já se apresenta ―desdobrada‖

(DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 147).

Benjamin insistirá que a lonjura só se mostra para se de-mostrar distante. Por mais

próxima que esteja, a distância é algo como uma ―autoridade‖ que mantém o dom da

visibilidade sob seu jugo. Pois o que se dá à vista está a um tempo próximo e distante; dito de

outro modo, está distante em sua proximidade mesma. Isso importa a um teórico interessado

em investigar as estruturas da visualidade, no sentido que o objeto aurático supõe uma forma

de heurística na qual as distâncias experimentam-se umas às outras. Tal objeto procede a uma

espécie de varredura no espaçamento entre si e o olhante, incessantemente indo e vindo de sua

posição, como num jogo anadiômeno, Didi-Huberman insiste em assinalá-lo, em que ora

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setoma o lugar daquele que é olhado, ora se assume a condição de quem emite o olhar.

Destemodo, sujeito e objeto realizam ações que seriam do Outro: o objeto se transforma em

sujeito, e o sujeito em objeto; eles se entrelaçam, tecem uma trama, unem-se na distância que

os separam. União dialética, união de opostos que se debatem, que não culminam numa

síntese( 1998, p. 148).

Na operação do olhar, o objeto, forçosamente distante, deixa clara a possibilidade de

sua ausência. Por conta disso, quando estamos diante de uma obra de arte, que aparece ao

nosso olhar e se aproxima dando conta de sua presença única, devemos nos lembrar da

possibilidade de sua iminente saída de nosso campo de visão. Ao aparecer e se aproximar (ou

ao nos aproximarmos), como um momento único, o objeto aurático é um objeto extravagante,

um objeto que nos causa estranheza devido a sua presença singular; ao se distanciar (ao nos

afastarmos), ele enfatiza o distanciamento mesmo e, nisto, configura-se como uma perda. Isso

nos lembra do exemplo pedagógico utilizado por Sartre para nos fazer pensar sobre o

fenômeno da imaginação:

Olho esta folha em branco, colocada sobre minha mesa; percebo sua forma,

sua cor, sua posição. (...) De nada serve discutir se essa folha se reduz a um

conjunto de representações ou se ela é e deve ser algo mais. (...)

Mas eis que agora viro a cabeça. Não vejo mais a folha de papel. Agora vejo

o papel cinza da parede. A folha não está mais presente, não está mais lá.

Sei, no entanto, que ela não se aniquilou: sua inércia a preserva disso. (...)

Ei-la de novo, porém. Não virei a cabeça, meu olhar continua voltado para o

papel da parede; nada se mexeu na peça. (...) Por certo afirmo claramente

que é a mesma folha com as mesmas qualidades. (...) A folha que me

aparece neste momento tem uma identidade de ausência com a folha que eu

via há pouco. (...) Não a vejo, ela não se impõe como um limite à minha

espontaneidade; não é tampouco um dado inerte que existe em si. Em uma

palavra, ela não existe de fato, ela existe emimagem (SARTRE, 2008, p. 7-8;

grifo do Autor).

A folha em branco que Sartre via primeiramente é como um objeto aurático que se

aproxima, que toma contato por meio do olhar. Nesse instante de percepção tátil do objeto, é

possível perceber suas características sensíveis mais elementares. O que a folha representa

nesse instante não vem ao caso, pois o corpo parece estar completamente absorto na tarefa de

perceber esse objeto. Ao desviar o olhar, porém, apesar de surgir para Sartre uma folha com

as mesmas características sensíveis da folha inicial, ele tem plena consciência de não ser mais

a folha que via há pouco. Trata-se agora de outro objeto, um objeto cuja existência não pode

ser negada, mas que não pode mais ser tocado; trata-se de um objeto que preserva uma relação

de ―identidade de ausência‖ com o objeto original – termo que gostaríamos de propor, na

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obrade Didi-Huberman, como ―perda‖, e na obra de Benjamin, como ―distância‖. Essa perda

eessa distância são características do fenômeno imagético que lhe conferem certa eficácia

reminiscente. Acrescente-se, ainda, que é a partir do caráter aurático da imagem, a conjugar

contiguidade e lonjura, aproximação e afastamento, que Didi-Huberman condiciona a

oscilação imposta pela cisão do ver à sensação de angústia diante do inapreensível, do vazio.

Percebe-se nisso que a visualidade revela um campo fundado na perda, pois a visão está

sempre perturbada pela imagem, pelo horizonte da morte (LEAL, 2011, p. 43).

A aura confere aos objetos visuais o poder de, por debaixo de nossos olhos, a um

tempo nos olharem e nos escaparem. Por força desse instante paradoxal, torna-se possível

compreender outro aspecto da aura, além de seu poder da distância: trata-se do ―poder do

olhar‖. É o próprio olhante quem atribui ao olhado esse estranho poder. É o olhante quem

afirma: ―isto me olha‖ em face do objeto para o qual direciona seu olhar. Com essa afirmação,

o olhante se dá conta do aspecto eminentemente fantasmático dessa experiência: como um

fantasma à espreita, o objeto para quem olhamos nos olha de volta, nos observa, nos segue

com seu olhar particular. Animismo do visível: o que é visto passivamente adquire o poder de

ver ativamente. Didi-Huberman nos previne, porém, contra a tendência a se tomar esse poder

diferenciado do objeto como um ilusionismo cuja verdade deva ser verificada. Não é o caso

de se verificar qualquer ficcionalidade latente no ato de ver, pois, como explica Benjamin,

―sentir a aura de uma coisa é conferir-lhe o poder de levantar os olhos‖, sendo esta ―uma das

fontes mesmas da poesia‖. Esta noção de visão como poiesis não deve ser reduzida a uma

simples perda de racionalidade. Mais do que uma ―pura e simples fenomenologia da

fascinação alienada que tende para a alucinação‖, a aura deve ser compreendida como ―um

olhar trabalhado pelo tempo‖, ou como ―um olhar que deixaria à aparição o tempo de se

desdobrar como pensamento, ou seja, que deixaria ao espaço o tempo de se retramar de outro

modo, de se reconverter em tempo‖ (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 148-149).

Nesse modo de compreender a aura dos objetos, espaço e tempo convertem-se um no

outro, trocam de posições, dialogam, mudam de forma e de valor de uso. Por conta do que

Benjamin reconhecia a distância aurática como um espaço onde circula uma espécie de

―memória involuntária‖ indissociável de seu poder de distância e de seu poder de olhar. De

maneira que ele entendia a aura como um conjunto das imagens que, surgidas da

memoireinvoluntaire, tende a se agrupar em torno de um objeto oferecido à intuição. A aura

seria, quiçá, uma evocação involuntária de imagens, evocação livre de qualquer tutela,

instintiva, espontânea, a cercar o objeto percebido, mas ainda não limitado pelo raciocínio.

Esse objeto, que apresenta uma aparição desdobrada para além de sua própria visibilidade, é

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auráticoporque aciona uma constelação ou nuvens de imagens, que abrem sua significação

para quepossam constituir uma obra do inconsciente, que poetizam entre suas aproximações e

afastamentos para poder constituir um trabalho de memória.

Não escapa a Didi-Huberman o fato de Benjamin refletir sobre a aura evocando

Proust, Valéry e Baudelaire: todos escritores que conseguiram explorar a memória como um

projeto de sacrifício do tempo evolutivo, do tempo positivista da burguesia decadente. Todos

estes literatos deram a Benjamin uma possibilidade de propor na disciplina histórica um

―trabalho do simbólico‖ que, composto de múltiplos fragmentos de tempo, mostra-se capaz de

desconstruir toda noção unívoca de visibilidade, conferindo-lhe outro valor – o de arborescer

sentidos, ampliar e abrir significados, perspectivas. Quando se tece uma trama por meio de

um trabalho cujas ferramentas são do estatuto do simbólico, duas práticas se tornam possíveis:

a de "aparecer", como produção de um "acontecimento visual único"; e a de "transformar",

como inquietação de toda estabilidade aspectual.

Podemos aqui remeter uma vez mais ao motivo do branco de fundo do afresco de Fra

Angelico: seu ―acontecer‖ ofusca, fulgura diante dos olhos; é único; mas também, de certo

modo, em sua inegável materialidade, o branco nos olha de volta e transforma toda a

estabilidade aspectual do afresco num jogo de incertezas e de aporias, a partir dos quais nos

restaria tão somente acionar nossa memória involuntária para tentarmos dar conta da abertura

causada pelo branco no todo da representação (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 149). Ao nos

olhar de volta, ao nos olhar de sua lonjura, o branco do afresco do artista renascentista

acabaria por nos possuir, ele roubaria para si todo o nosso empenho interpretativo, raciocínio

e atenção; quando assim o faz, nós deixamos de possuir a obra, deixamos de apreendê-la,

livrando-a de continuar a ser objeto de um ter; em contrapartida, ela passa a ser objeto de um

quase-sujeito, de um quase ser, dotado do poder de levantar os olhos, e de se locomover, de

certo modo, aproximando-se e se afastando. Consequentemente, tal objeto parecerá se

desfigurar ou se transfigurar; perderá qualquer noção de planaridade, pois tenderá a se abrir

ou a se escavar; perderá, ainda, seu volume, pois tenderá para o esvaziamento de tudo. Nesse

momento de transformação, mas também de saturação de tensões, o passado mostra-se

dinamizado e orientado para assumir a forma de um desejo. A interpretação de Didi-

Huberman leva-nos a perceber que a aura também pode ser explicada em termos de

experiência erótica, pois quando uma pintura se oferece ao olhar de maneira que nenhum olho

se cansa de observá-la, o que se erotiza aí é a própria experiência estética, antes do objeto

visível em si. O que resulta, na verdade, em um conflito, no qual ―o passado se dialetiza na

propensão de um futuro‖. Haveria uma relação de desejo do passado para com o futuro,

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odesejo de um se transformar no outro. No instante em que os dois se encontram, surge

algocomo um choque da memória involuntária: é o ―presente emergente e anacrônico da

experiência aurática‖. Esse ―choque‖, de acordo com Benjamin, possui um inegável valor de

sintoma (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 149-151).

O que o sintoma significa ultrapassaria o domínio da arte em direção ao domínio da

religião. A intensidade do choque provocado entre passado e futuro seria equivalente ao valor

de culto do objeto. A distância entre olhante e olhado seria essencialmente intransponível; ela

é inerente à imagem que serve ao culto que ela não possa ser acessada. Como exemplo de

eficácia de uma imagem assim furtiva, Didi-Huberman evoca em Diantedaimagem a Santa

Verônica de São Pedro de Roma. Tradicional ícone cristão, ela só se oferece ao olhar em um

espaçamento tramado: mantém-se guardada e só é exposta em rituais solenes, apesar de

mantida à distância dos fiéis. A experiência religiosa se processa nesse espaço intransponível

entre o crente e os objetos de culto. Pois é o crente quem atribui ao objeto um ―poder do

olhar‖. Mesmo vendo apenas poucas partes do véu de Verônica, o crente não duvidará ver ali

o miraculoso retrato de Jesus Cristo. Ao levantar seus olhos para contemplar o retrato, o

crente poderá observar que a imagem literalmente se inclina sobre ele. Ele confia plenamente

que está a ser olhado por uma imagem a que se atribui o valor de divindade. Nessa dialética

dos olhares, o caráter memorial que se atribui ao objeto realiza aderência à visualidade de sua

exposição, acionando aí um ―poder da memória‖ próprio do objeto. De modo que a Verônica

jamais será para o crente uma posse. O crente ―nada terá a ‗ter‗, só terá a ver, veraaura‖

(DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 152; grifos do Autor).

Antevendo quaisquer críticas que se possa fazer à figura tornada exemplar da

Verônica, Didi-Huberman reconhece que ela pode ser entendida como um ―exemplo

demasiado perfeito‖, paradigmático. Se nos fixarmos nele, há o risco de se reduzir a aura ―à

esfera da ilusão pura e simples‖. Razão porque Benjamin vem nos alertar que a ausência de

ilusões corresponde precisamente à era do declínio da aura (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.

153). É nesse momento preciso que a noção de aura poderia soar contraditória, pois o seu

valor cultual, seu valor como fenômeno de crença, ao mesmo tempo vê-se atacado por um

modernismo militante, e também, de certo modo, Benjamin ataca a incapacidade da

modernidade de reconfigurar as coisas, mantendo uma espécie de ―melancolia crítica‖ que

sente o declínio da aura como uma perda (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 154). Isto não

significaria que a noção de aura seja contraditória ou ambígua; do ponto de vista de Didi-

Huberman, isto significaria que ela é dialética.

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Como vimos, a aura remete à distância para com a imagem e não à extensão

daimagem. Ela depende, pois, do espaço entre a imagem e o olhante. Didi-Huberman

preocupa-se em reintroduzir a fenomenologia da aura nos estudos da imagem. Ele pensa mais

detidamente sobre as características da distância própria a todo olhar. Em uma época

aparentemente saturada de imagens, um espaçamento, um vazio, uma área não ocupada

parece algo verdadeiramente efêmero, quase como um refúgio. Ora, é nessa distância que

tudo se processa. Nela ocorrem as trocas necessárias para que a imagem seja compreendida

pelo olhante. Nela os sentidos lançam uma ponte entre cada lado do jogo da visualidade.

Nessa ponte, há uma via dupla de deslocamento de sentidos. Esse trânsito caracteriza a

imagem dialética: a dupla distância dos sentidos, sensoriais e semióticos. Ao mesmo tempo

em que a imagem é dada a ver, também se dá a ler, ou entender, não do modo unívoco como

os iconólogos acreditam, mas segundo equívocos, desvios, espaçamentos (DIDI-

HUBERMAN, 1998, p. 169). Didi-Huberman conta-nos que a imagem, em sua vertente

dialética, é formada por um aspecto sensível e por outro semiótico. A aura aproxima-se,

então, de um conceito renovado de signo, pois apresenta duas distâncias desdobradas,

tramadas, imiscuídas, inseparáveis. Nenhuma imagem é pura sensorialidade (a desmentir

alguns discursos sobre a arte contemporânea), nem pura rememoração (a desmentir alguns

discursos da história da arte) (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 170). Não vemos Didi-Huberman

criticar a noção de significante, em nome de uma semiótica de signo. Relativiza, antes, a

noção de significado. A origem da imagem, por ser uma crise e não uma criação, impede que

se formem significados que não sejam dialéticos, conflitantes, abertos, em formação.

Não é caso aqui de procurar exemplos buscando referendar o que é uma imagem

dialética. Nosso interesse recai sobre sua eficácia. Entretanto, em Oquevemos,oquenosolha

Didi-Huberman evoca o CuboNegro de Tony Smith (fig. 13). Objeto minimalista, que se

pretende tautológico: whatyouseeiswhatyousee, lembrava o dictum. Mas há sempre mais, e

desde a origem. A ideia de origem é retida de Benjamin que a considera desvinculada da ideia

de gênese das coisas. ―A origem não designa o devir do que nasceu, mas o que está em via de

nascer no devir e no declínio‖. Didi-Huberman entende que a origem não é a fonte das coisas,

mas as faz emergir diante de nós como um sintoma, como uma espécie de ―formação crítica‖:

algo que, ao mesmo tempo, perturba o curso normal do tempo e restitui o que estava

esquecido (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 171).

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Figura13:TonySmith,CuboNegro,1962

A se ter com Benjamin, somente as imagens dialéticas são imagens autênticas. O

queDidi-Huberman reinterpreta como: somente as imagens dialéticas podem ser imagens

críticas, só elas podem criticar a imagem. Motivo pelo qual elas são capazes de assumir uma

―eficácia teórica‖ (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 172). A eficácia teórica da imagem dialética

não diz respeito a uma idealização platônica da imagem, mas à possibilidade de criticar a

estrutura mesma da representação. Reconvocar a noção de imagem dialética parece a Didi-

Huberman um modo legítimo de pensar a estrutura da imagem como interrupção sintomal de

um processo, de uma estrutura em obra. A imagem dialética ―não produz formas bem

formadas, estáveis ou regulares, produz formas em formação, transformações, portanto efeitos

de perpétuas deformações‖ (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 173). Deste modo, no nível dos

sentidos, ela produz ambiguidade (a imagem visível da dialética, segundo Benjamin). Esta

ambiguidade é concebida ainda como um choque ritmado e fulgurante, que confere à imagem,

paradoxalmente, seu valor de verdade. Seria esta a linguagem do mundo real: a sublime

violência do verdadeiro, que quebra toda noção de falsa totalidade. Nada lhe é total,

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completo,fechado, a verdade ambígua é o destroço da verdade, mas também a sua restauração.

Seria poresse motivo que ―não há, portanto, imagem dialética sem um trabalho crítico da

memória‖ (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 174). Memória, para Benjamin, é o meio do vivido,

é o que surge da decantação das coisas. Razão porque ele entende que interpelar o passado

seja ato de exumação, de escavação de memórias: verdadeira antropologia do tempo.

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IMAGEMDIALÉTICA

Como poderia ser eficaz uma imagem "impossível de ver" (DIDI-HUBERMAN,

1998,p. 38), como aquela do túmulo que nos olha de volta e nos impõe a imagem futura de

nosso próprio corpo morto - ou como a imagem aterradora dos mortos de Auschwitz sendo

empilhados para serem incinerados, naquelas quatro únicas fotografias que indiciam o

holocausto? A fenomenologia da imagem proposta por Didi-Huberman critica toda forma de

análise imparcial ou totalizante, mas que na verdade aborda apenas um viés dos objetos

visuais (seja ele político, estético, religioso, formalista, etc.). Não há imparcialidade que se

sustente diante de um túmulo, objeto por excelência do fim (da vida) e do começo (da

imagem), do passado (vida) e do futuro (morte), do saber (presença) e do não-saber (ausência,

memória). O túmulo é o limite epistemológico da imagem, mas também o lugar de sua mais

alta eficácia crítica. Como vimos, Didi-Huberman expõe duas alegorias representativas de

posturas extremas de esquiva da constelação de questões suscitadas pelas imagens. O "homem

da crença" aponta para a postura cristã diante da angústia causada por olhar um túmulo vazio.

Ele leva em conta apenas o que transcende à imagem. Ele esvazia o túmulo de corpos e o

preenche com promessa de ressurreição. É como uma contra-imagem: imagem invertida da

imagem mítica, com poder de reversibilidade. Quanto ao "homem da tautologia", ele diz

respeito à atitude modernista, em especial à dos minimalistas, em relação a essa mesma

angústia. Ele quererá não ver outra coisa além do que vê. Apenas o que é imanente à imagem

lhe importa. Na condição de imagem, o túmulo nada representaria. Didi-Huberman não

invalida nenhuma das duas propostas, apenas se mostra contrário à radicalização dos pontos

de vista. Razão porque ele propõe uma espécie de "jogo anadiômeno" (DIDI-HUBERMAN,

1998, p. 79), um ritmo de vaivém, dinâmica do aparecimento e desaparecimento da coisa e de

sua imagem. Pois a imagem tumular não existe sem o referente material, o ser vivo que lhe

deu, de certo modo, a forma e o motivo. Mas também não se pode negar ao túmulo sua

existência e seu devir próprios. De maneira que só haveria imagem para se pensar para além

das oposições canônicas entre visível e legível, entre visível e invisível; para além dos

princípios da imitação, da superfície, do espaço extenso, da historicidade, da identidade

biológica, do prazer. Enfim, será preciso repensar todos os pressupostos teóricos da história

da arte se se quiser entender o fenômeno da visualidade da imagem em toda a sua potência de

desfiguração - de fuga do referente, de desvio da simples materialidade, de distorção dos

significados e leituras.

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É notável que Didi-Huberman aplique o paradigma freudiano - numa perspectiva

crítica e não clínica - ao material das imagens e procure recobrir os dois campos do saber,

história da arte e psicanálise (HAGELSTEIN, 2005, p. 86). Acompanhemos sua alusão à

narrativa do psicanalista Pierre Fédida em torno das brincadeiras infantis. Duas crianças cuja

mão havia falecido há pouco brincam com as possibilidades miméticas de um lençol. Uma

delas finge-se de morta na cama e usa o lençol como mortalha. Em seguida, ela passa a

brincar com o tecido de outra forma. Essa brincadeira apresenta o deslocamento como

mecanismo de produção de imagem: ao imitar o corpo estendido da mãe, a criança desloca a

morte e a transforma em outra coisa, mais aceitável. A imagem aterradora da morte de certo

modo é retrabalhada durante a brincadeira e, por fim, desfigurada. Genealogia mortífera do

imaginário a partir do que na visualidade haveria de mais penetrantemente deslocador.

Imagino [uma criança pequena] na expectativa: ela vê no estupor da espera

[...]. Até o momento em que o que ela vê de repente se abrirá, atingido por

algo que , no fundo – ou do fundo, isto é do fundo da ausência -, racha a

criança ao meio e a olha. Algo, enfim com o qual ela irá fazer uma imagem.

A mais simples imagem, por certo: puro ataque, pura ferida visual. Pura

moção ou deslocamento imaginário. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.79)

É com esse deslocamento da morte por meio da imagem que a humanidade aprendeu a

suportar a ideia da finitude da existência. Seria interessante acrescentar, ainda, que a morte

está implicada no próprio ato de ver. Retemos do comentador:

Ver é necessário para criar um mundo imaginário, e para não ficar preso a

uma só imagem, o que seria uma paralisação da vida psíquica. Uma criança

que não pode assistir ao enterro de seus pais, a quem a participação no

funeral é interditada, fica presa a uma imagem: o que é que estão me

proibindo? O irrepresentável continua, assim, irrepresentável e pode tornar-

se inominável e impensável. Que formas adquirem, na vida psíquica, o

inominável, o impensável e o irrepresentável? (LAUFER, 2012, p. 17).

De tal sorte que "não há sentido em colocar-se a questão de saber se uma imagem é

morta ou viva: tanto uma como outra resposta serão sempre insuficientes, ainda que a imagem

seja eficaz" (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 109). A imagem é dialética, do modo como

Benjamin a definiu quando procurava pensar, no LivrodasPassagens, a existência simultânea

da modernidade e do mito. Para Didi-Huberman, cumpre refutar

tanto a razão "moderna" (a saber, a razão estreita, a razão cínica do

capitalismo, que vemos hoje se reatualizar na ideologia do pós-modernismo)

quanto o irracionalismo "arcaico" sempre nostálgico das origens míticas (a

saber, a poesia estreita dos arquétipos, crença cuja utilização pela ideologia

nazista Benjamin conhecia bem). Na verdade, a imagem dialética dava

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aBenjamin o conceito de uma imagem capaz de se lembrar sem imitar, capaz

de repor em jogo e de criticar o que ela fora capaz de repor em jogo. Sua

força e beleza estavam no paradoxo de oferecer uma figura nova, e mesmo

inédita, uma figura realmente inventada da memória (DIDI-HUBERMAN,

1998, p. 113).

Decerto o conceito benjaminiano de imagem dialética fundamenta muito do

pensamento de nosso autor sobre a imagem. Ele também trata de uma noção de dialética que

não é feita para resolver as contradições ou para entregar o mundo visível aos meios da

retórica, mas para ultrapassar a oposição do visível e do legível num jogo de figurabilidades

(DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 17). Nesse jogo, a dialética dramatiza constantemente a

contradição sem que proponha uma síntese, procurando, sob outro ângulo, justificar uma

dimensão verbal de inquietar, sem repouso, a imagem. Não há síntese, mas uma inquietação

movente, trêmula, em constante trabalho. A dialética didi-hubermaniana atende ao que

Benjamin define como propriedade do fenômeno aurático enquanto aparição única de uma

realidade longínqua. Considerar o longínquo como o essencialmente inacessível é condição

necessária à imagem cultual, à imagem que serve ao culto do que não se pode ter acesso

(DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 151). Isso poderia servir de base para se repensar o paradigma

originário da imagem cristã, mas igualmente para pensar a fotografia, o arquivo e o museu. A

aura está no percurso entre a sensorialidade da imagem e a memória visual que ela aciona.

Como não há imagem dialética sem trabalho crítico da memória, Benjamin compreende a

memória como o retorno do passado no momento em que ele é relembrado (DIDI-

HUBERMAN, 1998, p. 174). Portanto, a memória não tem a ver propriamente com a posse

do objeto rememorado: ela seria aquilo que produz a síntese autêntica, revelada pela forma do

objeto histórico.

A imagem dialética torna-se o ponto em comum entre o artista e o historiador.

Baudelaire teria inventado uma forma poética que seria ao mesmo tempo imagem de memória

e de crítica. Reciprocamente, o conhecimento histórico preconizado por Benjamin funciona

como um telescópio a fim de compreender a origem, o destino e os consecutivos efeitos de

conhecimento das formas inventadas por Baudelaire. Através dela ―o próprio historiador terá

produzido uma nova relação do discurso com a obra, uma nova forma de discurso, também

ela capaz de transformar e de inquietar duravelmente os campos discursivos circundantes‖

(DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 178). Dessa maneira, a imagem dialética é tanto textual,

quanto visual. Ela destaca a porosidade dos limites dessas duas modalidades de expressão, e

revela que texto e imagem nunca oferecem legibilidade plena. Benjamin dirá que o texto

funciona com um relâmpago que só será ouvido longo tempo depois e que a legibilidade

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dasimagens só é possível numa época determinada (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 181). A

imagem dialética produz, ela mesma, uma leitura crítica de seu próprio presente, na

conflagração com o seu passado. Seu efeito de recognoscibilidade permanece ilegível e

inexprimível até que se confronte com seu próprio destino (DIDI-HUBERMAN, 1998,

p.183).

Assim considerando, torna-se necessário superar a interpretação exegética das

imagens, mas também ultrapassar a explicação iconológica, pois ambas são modos de

interpretação que subjugam a imagem ao texto. Cumpre despertar para a fulgurância da

imagem que preconize uma ―dialética em suspensão‖, sem síntese. Posição que exige ―pensar

nossas mitologias e nossos arcaísmos, não temer convocá-los, trabalhar com eles de maneira

crítica e imagética‖. Torna-se imperativo, ainda, em toda análise de imagem, apreciar os

signos mitológicos e arcaicos, seus esquecimentos, seus declínios e suas possíveis

ressurgências (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 189). A imagem dialética define-se por ser uma

imagem autêntica, mas não arcaica, pois recusa assumir função regressiva. Ela exige que não

se sacrifique às falsas certezas do presente e que não se ceda às duvidosas nostalgias do

passado (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 192). O que equivaleria a repensar a forma em face da

presença; ou repensar a especificidade em face da eficácia (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.

223). Assim, analisar a eficácia da imagem implica pensar ao mesmo tempo na distância,

estruturada como um limiar, e na semelhança, estruturada genealogicamente. Eis, pois, três

dimensões a serem analisadas simultaneamente: tempo, superfície e profundidade.

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IMAGEMCOMOGENEALOGIADASEMELHANÇA

Didi-Huberman considera a relação de semelhança como fundamental para a

históriada arte, pois que ela ao mesmo tempo em que sustenta seu campo epistêmico ajuda a

abri-lo para além de suas certezas. A perspectiva implica uma questão de genealogia. Não há

porque o historiador trabalhar com a normativa de uma fonte absoluta. A ideia de uma

―origem original‖ permanece, quiçá, incontornável em autores-chave da história da arte como

Plínio, o Velho e Giorgio Vasari. Este, diga-se, ―inaugura um regime epistêmico fechado do

discurso sobre a arte, um regime segundo o qual a história da arte se constitui como o saber

―específico‖ e ―autônomo‖ dos objetos figurativos‖. Quanto a Plínio, ele ―oferece, ao

contrário, a arborescência enciclopédica de um regime epistêmico aberto, no qual os objetos

figurativos são apenas uma manifestação, dentre outras, da arte humana‖ (DIDI-

HUBERMAN, 2015b, p. 73). Plínio entende que há arte a cada vez que o ser humano utiliza,

instrumentaliza, imita ou ultrapassa a Natureza. Deste modo, a medicina seria a arte por

excelência. O regime fechado de Vasari faz da imitação da natureza ―um privilégio das artes

liberais praticadas foradaleicomum por alguns acadêmicos‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p.

74; grifos do Autor). Em sua concepção de arte, Plínio supõe uma similitude natural

legitimada antropologicamente pela lei comum, e só faz sentido quando restabelece relação de

dignidade com o mundo jurídico e social, bem como com o mundo das matérias e das formas

naturais. Plínio desenvolve seu projeto de acordo com uma ordem das matérias, que ele

considera ―áridas‖, reunindo sob esta categoria determinadas ―coisas da natureza‖, ―coisas da

vida‖, principalmente aquilo que ela possui de mais baixo, a exigir referência por meio de

―termos rústicos‖ e ―nomes bárbaros‖. O tratado pliniano, que Didi-Huberman denomina

―nossa primeira história da arte ocidental‖, principia porconsiderar materiais ―brutos‖ (pedras,

metais) e atividades que Vasari teria relacionado, não sem preconceito, com o universo das

oficinas (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 75-76).

Acrescente-se a isso ―o estatuto temporal do qual a arte da pintura se viu investida pela

ordem do discurso‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 76). A cíclica história vasariana mostra-

se triunfalista e teleológica; Plínio, por sua vez, recusa todo sentido explícito da história, toda

teleologia da arte, e qualquer elogio à modernidade. Didi-Huberman percebe nele a proposta

de uma ―temporalidade cindida, até mesmo dilacerada‖, em cujo rasgo aparecem as palavras

imago e pictura, a serem entendidas como dois tempos heterogêneos. Espera-se quase

espontaneamente pelo tempo da história, mas ele aparece no texto pliniano muito tardiamente,

―no momento em que Plínio começa sua lista de artistas célebres colocando a questão

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dos‗inícios da pintura‗ (depicturaeinitiis)‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 77). Sua noção

deorigem é antropológica, jurídica e estrutural, fora do determinismo histórico que molda a

escrita vasariana. A cisão temporal assim proposta opõe à teleologia histórica ―uma

genealogia da imagem e semelhança‖ em termos de lei, de justiça e de direito. Esse ponto de

vista genealógico implica o início da história como morte de uma origem. A origem da arte

estaria contida no que Plinio denomina a imaginumpictura, termo latino erroneamente

traduzido por ―pintura de retrato‖. O que ele explicita com essa ideia refere a produção e

transmissão de uma ―semelhança extrema‖. Ao compreender que a semelhança já está morta,

que a cadeia de transmissão inaevum, ―através de gerações‖, já foi interrompida, essa simples

expressão carrega em si, conclui Didi-Huberman (2015b, p. 78-79), toda a dilaceração da

origem e da história. A tradução dessa sentença nos obriga a repensar o estatuto do objeto

figurativo de acordo com a categoria da imago, que não refere a pintura como mero gênero

artístico, mas a imagens com as quais se faziam cortejos fúnebres, imagens familiares e

íntimas, arquivos repletos de registros, ou tocantes à esfera doméstica, como as que eram

exibidas nos umbrais das moradas, dando conta da história e dos triunfos daqueles a quem se

referiam.

A pictura em Plínio refere uma ―matéria colorante‖, digna em seu modo de produção

porque proveniente de moldes diretamente tirados dos rostos dos retratados. A busca pela

―extrema semelhança‖ advém da preparação de um molde. A ―imagem‖, ou imago, nomeia

apenas um suporte ritual relativo ao direito privado. Produz-se uma ―matriz de semelhança‖

(o molde), que torna legítima a semelhança genealógica. A imaginumpictura surge como ―o

mais árido (sterilimateria) encontro de uma matéria e de um rito‖. Plínio não cessa de afirmar

que as imagines romanas não passam de rostos expressos na cera, e que ―a noção romana de

imago supõe uma duplicação do rosto por contato, um processo de impressão (o molde em

gesso se imprimindo sobre o próprio rosto), em seguida de ‗expressão‗ física da forma obtida

(a tiragem positiva em cera realizada a partir do molde)‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 81).

Seria uma ―imagem-matriz‖ produzida por aderência, por contato direto da matéria-gesso com

a matéria-rosto.

O culto genealógico descrito por Plínio faz oposição aos refinamentos diversos

implicados na cultura estética elaborada por Vasari, para quem um retrato é julgado como

―bom‖ ou ―ruim‖ de acordo com instâncias situadas no mundo fechado, autolegislador, da

accademia. Plínio julgava suas imagens pelos critérios de ―justo‖ ou ―injusto‖, ―legal‖ ou

―ilegal‖, situando sua legitimidade no espaço jurídico concernente aos direitos público e

privado, o que por conseqüência diz respeito a um campo social comum, e não a um domínioà

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parte como o acadêmico. Sua história não poderia ser específica, como a de Vasari, por

issotem base em um ponto de vista mais amplo, em uma ―antropologia da semelhança‖ que

excede o ponto de vista disciplinarque assumiria a história humanista da arte (DIDI-

HUBERMAN, 2015b, p. 83-84).

Entende-se: a eficácia jurídica e antropológica da história da arte pliniana existe

apenas enquanto nostalgia dos tempos da República romana. A semelhança, a seu tempo

morta, exige outro modo de pensar a arte. O historiador romano a define como imitação da

natureza, similitudonaturae, o que a coloca como parte de uma história natural. Ele deseja

estabelecer o que lhe surge como a dignitas própria ao mundo das representações figuradas. O

primeiro passo dado foi então o de encontrar o agente de desaparição da semelhança: a

luxuria, vício ligado ao excesso, à abundância excessiva, ao dispêndio improdutivo. O

vocabulário relacionado à luxúria comporta ainda termos como delícias, desejos, raivacega,

cupidez, obscenidade, loucura, expressões da decadência e do esquecimento a que as ―dignas‖

noções de imagem e de semelhança foram relegadas pelos romanos da época de Plínio (DIDI-

HUBERMAN, 2015b, p. 85). O romano fala em três tipos de luxúria: a luxúriadasmatérias,

relacionado aos luxos e insanidades do mármore, bronze, ouro (medalhas, paredes folheadas,

efígies de prata), que representam, apenas imagens do dinheiro, da obscenidade, das delícias,

não imagens de uma pessoa; a luxúriadoscorpos, evocando os excessos sexuais, remetendo à

decoração das casas com figuras orgiásticas ou com praticantes de permutas eróticas,

depravações, desídias, revelando certa decadência dos costumes; e a

luxúriadasprópriassemelhanças, que diz respeito às relações entre a forma dos corpos e as

matérias formatadas, figuradas, pelo trabalho humano, além do gosto imoderado pela arte, que

levaria muitos a procederem a semelhanças usurpadas, mentirosas, monstruosas, como

quando se permutavam as cabeças das estátuas para aproveitar os corpos. Conjunto de

práticas que Vasari deverá reivindicar, mesmo colocado sob o selo infame da luxúria: o

reemprego e a montagem modernas dos fragmentos arqueológicos expostos em museus, cujas

paredes estão cobertas de imagens antigas, fomentando um mercado de antiguidades

regulados pelos connoisseurs e pelos historiadores da arte. É esse refinamento excessivo

acompanhando as exposições, mas também as casas, mesmo nos mais simples objetos

domésticos, que para Plínio implica cupidez ou loucura.

Plínio discrimina dois tipos de semelhança: a semelhança por geração - expressa por

uma lei natural, em que se instituem imagens-matrizes, moldes de gesso e máscaras de cera; e

a semelhança por transmissão - expressa por uma instituição jurídica que faz proliferar

imagens factícias, simulacros, tornando-se puro e simples valor de troca,

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substituição,inversão, perversão, como quando se preferia exibir uma estátua de Zeus em vez

da figura dospróprios familiares, mentindo ou omitindo sobre a própria origem (DIDI-

HUBERMAN, 2015b, p. 91). A impressão aí surge ―como o modelo indispensável e

intransponível de um enxerto legítimo da semelhança: o contato direto com o rosto, a função

matricial do molde negativo garante que cada rebento – cada tiragem positiva – será, de fato,

o ‗filho‗ legítimo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 94). O modelo técnico da impressão

revela toda a sua eficácia simbólica quando, de um lado, o molde garante metonimicamente

―a presença única e inamovível do referente da representação‖; e de outro, garante a

multiplicação indefinida, a responder por todas as combinações possíveis de alianças

matrimoniais. Por estar sempre presente e disponível, a imago romana responde a essa dupla

função antropológica de limitar a troca simbólica encarnando sua própria possibilidade. Tal

seria, então, sua eficácia jurídica: ―instituir a semelhança como ritual de duplicação tátil – e

não como retórica da representação ótica – da origem‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 94-

95).

O interesse e a identificação de Didi-Huberman por Plínio mostra-nos que o elogio à

processualidade da imagem corre ao lado do elogio de sua monumentalidade na história da

arte. Uma escrita da imagem do ponto de vista dos sintomas não pode jamais ser abstrata,

idealista, específica. É a matéria e suas transformações que produzem toda a proliferação de

leituras possíveis das imagens.

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ASEMELHANÇACOMOIDEOLOGIA

A história da fotografia, conta-nos Arlindo Machado, pode ser entendida como a

uniãodas técnicas de produção de semelhança ótica, iniciadas no Renascimento, com a

mediação química capaz de fixar o objeto projetado num suporte, sem a intervenção do ser

humano. Essa união ocorreu apenas no século XIX; antes disso, é como se a produção de

semelhança tivesse esperado longamente pelo desenvolvimento da química (MACHADO,

1984, p. 30). Se formos ter com Diantedaimagem, observaremos que esse tempo de espera

pode ser entendido como o tempo de vigência de uma ideologia que manteve, durante vários

séculos, o poder da produção de semelhança literalmente nas mãos do engenho humano.

Provavelmente essa ideologia impediu que se valorizasse a produção de imagens de forma

técnica e sem mediação. Dessa maneira, a fotografia, como paradigma histórico, representaria

um golpe contra o pensamento humanista enquanto ideologia dominante no que se refere à

produção de imagens no Ocidente.

Para entendermos dessa forma o percurso histórico da imagem fotográfica, temos que

recorrer não a uma evolução linear dos fatos, mas a certo tipo de bom uso do anacronismo

defendido por Didi-Huberman. O legado da historiografia da EscoladosAnnales na produção

historiográfica atual faz com que a grande maioria dos historiadores ainda defenda o

argumento de que o anacronismo é o maior pecado de um historiador (DIDI-HUBERMAN,

2015b, p. 19). Ao considerarem que o presente e o passado formam mentalidades diferentes,

os historiadores ligados a essa Escola condenariam com veemência a afirmação de Arlindo

Machado (1984, p. 30) de que ―a câmera fotográfica já estava inventada desde o

Renascimento‖, faltando, para isso, as evoluções tecnológicas ligadas à química no século

XIX. Para esses historiadores, não haveria como estudar o Renascimento em termos de

―câmera fotográfica‖ simplesmente porque os indivíduos daquela época ainda não haviam

pensado nela.

Didi-Huberman critica os modelos de tempo tradicionalmente empregados para

entender a história das imagens. Apoiando-se, entre outros, no pensamento de Benjamin, ele

entende que as imagens são atravessadas por temporalidades diversas que se conflagram

numa constelação de sobrevivências do Outrora no Agora (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p.

128-129). Dessa forma, mostra-se inapropriado rejeitar qualquer possibilidade de

anacronismo. Por um lado, o historiador está com os pés fincados irremediavelmente no

presente e não pode retornar ao passado para o qual se volta. Por outro, toda imagem não

pertence apenas a ―seu‖ tempo, pois elas são temporalmente complexas por definição.

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Asimagens podem conter repetições ou atualizações de formas que permanecem ou que

sepolarizam, invertem-se, negando a si mesmas – modo com que Warburg buscava pensar

sobre a permanência de certas formas, gestos e expressões simbólicas do passado no tempo

presente. O historiador da imagem, consequentemente, teria como objeto de estudo um

emaranhado de rastros de passados diversos, rastros heterogêneos que de algum modo

carregam-se de tempo e de sobrevivências. Assim, o trabalho do historiador tornar-se-ia

próximo daquele do arqueólogo, em seus atos de ―escavar‖ a imagem, ―exumar‖ seus restos,

interrogar seus fantasmas.

Todo arquivo de imagens fatalmente produzirá lacunas. O que Didi-Huberman parece

sustentar é que não devemos temer o uso da imaginação ou de categorias do presente para

preencher esses espaços:

Frequentemente, nos encontramos diante de um imenso e rizomático arquivo

de imagens heterogêneas difícil de dominar, de organizar e de entender,

precisamente porque seu labirinto é feito de intervalos e lacunas tanto como

de coisas observáveis. Tentar fazer uma arqueologia sempre é arriscar-se a

por, uns junto a outros, traços de coisas sobreviventes, necessariamente

heterogêneas e anacrônicas, posto que vêm de lugares separados e de tempos

desunidos por lacunas. Esse risco tem por nome imaginação e montagem

(DIDI-HUBERMAN, 2012b, p. 210).

Entendemos que a perspectiva não é muito diversa daquela de ArlindoMachado emseu

Ailusãoespecular. Alguma dose de imaginação é necessária para observar, na câmera escura

renascentista, um modelo rudimentar de câmera fotográfica. Considerando que os pintores do

Renascimento utilizavam com frequência instrumentos ópticos para favorecer uma

reprodução que se considerava fiel do mundo visível, Machado vale-se de certo anacronismo

para vislumbrar nisto alguma intenção de registro objetivo da realidade, o que é uma

pretensão da indicialidade fotográfica, já naquele tempo. O papel do artista consistia, na

câmera escura, tão somente em fixar com pincel e tinta a imagem projetada dentro dela. Isso,

de certa forma, diminui a influência da perícia técnica e da criatividade do pintor no resultado

final da obra. E desconcerta os historiadores que resumem a arte renascentista a uma época

em que a habilidade manual reinava absoluta, pois havia a intenção de obter um registro do

real mais isento possível da subjetividade humana. A construção ideológica da perspectiva

descende dessa vontade.

A perspectivaartificialis, sistema de projeções geométricas voltadas para, em

suportebidimensional, representar cenários em três dimensões, primeiramente sistematizada

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por LeonBattista Alberti, pode ser interpretada como a leitura do espaço interno de uma

câmera escuraconforme a teoria do cone visual de Euclides:

A teoria do cone visual euclidiano perdurou até Kepler, quando este inverte

o cone – o vértice passa a estar em cada ponto iluminado do objeto visto e a

base no próprio olho. O fundamental para a história da óptica é que a teoria

euclidiana do cone visual ―restringiu‖ o entendimento do funcionamento do

olho humano. A teoria do cone visual euclidiano foi feita admitindo-se que o

que o olho vê é expressão da realidade do mundo externo. O fato do vértice

do cone estar no olho implica que o olho capta as informações de um campo

visual específico. Aqui está envolvida a concepção filosófica de Euclides.

Ele seguiu a teoria da emissão, admitindo que é o olho humano que emite

raios que chegam ao objeto, e esses raios voltam ao observador em forma de

dados, de imagens que são processadas no olho e passam, a seguir, para o

cérebro do observador. Com isso, a geometria do cone euclidiano funciona

para uma concepção de visão ativa (TOSSATO, 2005, p. 424-425).

Na geometria axiomática de Euclides, interpreta-se o espaço reduzindo-o a figuras

geométricas cuja variação de formas pode ser prevista e medida por meio de cálculos

decorrentes de determinados postulados. Fazendo uso da perspectiva, os artistas do

Renascimento puderam desenhar cenários espantosamente realistas para o período, porque

cuidadosamente medidos (MACHADO, 1984, p. 30-32). Nesse sentido, a perspectiva não

seria mais do que um código de representação e os cenários resultantes dela seriam meras

imagens calculadas, presumíveis. Essa impressão de realidade considera que a imagem

projetada no fundo da câmera escura é uma emanação do objeto real, que se encontraria a

certa distância e ângulo do orifício de entrada dos raios de luz na câmera. A realidade própria

do objeto adere à imagem resultante de sua projeção porque as relações métricas calculadas

dentro da câmera seriam proporções escalares das medidas do mundo exterior. Trata-se,

então, de artifício com a intenção de ―racionalizar o espaço a ser pintado, obtendo, para tanto,

as corretas proporções entre as figuras que estão no interior do espaço pictórico‖ (TOSSATO,

2005, p. 436).

A câmera escura parece organizar o aparente caos das diversas dimensões da

realidade. O mesmo pensamento permanece no caso da fotografia. Machado afirma que ―não

se coloca em dúvida que ela 'reflete' alguma coisa que existe ou existiu fora dela e que não se

confunde com o seu código particular de operação‖ (MACHADO, 1984, p. 32). A câmera

escura é, desde a origem, um aparelho produtor de poderosa ideologia, pois a realidade não

pode ser uma emanação imutável do objeto, mas se trata de intuição, análise e produção de

―uma verdade que advém‖ (MACHADO, 1984, p. 40).

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Para Didi-Huberman, não se pode falar no contato entre a imagem e a realidade

semfalar em uma espécie de ―incêndio‖. Essa metáfora chama a atenção para o fato de que,

como sustenta o historiador, crítico de arte e escritor alemão Carl Einstein, ―toda forma

determinada é um assassinato das outras versões‖ (EINSTEIN apud DIDI-HUBERMAN,

2015b, p. 213). Pode-se entender a partir desta assertiva que toda imagem realizada é

construída por meio de escolhas, e que essas escolhas são feitas a partir do que se deseja

manter visível, obrigatoriamente descartando todo o resto. A imagem obtida a partir da

câmera escura estaria impregnada de subjetividade, de intencionalidade, e reduz a cinzas o

que não desejava colocar no enquadramento.

Didi-Huberman nos alerta que não podemos entender o Renascimento sem considerar

a destruição em massa das estátuas votivas na Contra-Reforma. De uma forma geral, as

imagens ―tomam parte do que os pobres mortais inventam para registrar seus tremores (de

desejo e de temor) e suas próprias consumações‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012d, p. 210). As

estátuas votivas, chamadas também de ex-voto, tinham essa função de registro. Feitas em cera

e moldadas a partir do corpo do próprio cliente, para depois serem entregues devotamente às

igrejas (que deveriam ser abarrotadas delas), estas estátuas simbolizavam o desejo de

representar fielmente a realidade de modo a produzir um duplo, um retrato capaz de guardar a

própria imagem para o futuro, depois que a vida deixar de habitar o corpo. Mas esse duplo,

não é capaz de guardar as mudanças que o corpo sofre com o passar do tempo. Guarda apenas

um instante do devir. A estética clássica desejava, de certo modo, salvar as aparências. Como

as pessoas mudam de aspecto com o tempo, as estátuas votivas, em seu realismo

impressionante, cristalizavam a aparência do corpo em determinado momento. Essa seria a

justificativa para o fato de os renascentistas terem idealizado de tal forma o instante. Para

abrigar as coisas de sua própria transformação, os clássicos sacrificaram a passagem do

tempo. A imagem produzida pelas regras da estética classicista tem o objetivo de, com o

perdão do anacronismo, ―fotografar‖ o instante para mantê-lo livre da degradação (DIDI-

HUBERMAN, 2011b, p. 30). Esse objetivo, porém, nunca é alcançado, pois as imagens,

assinala Didi-Huberman, ―têm um inelutável devir que as faz e desfaz interminavelmente,

para fazer de sua própria desaparição – ou de sua perda de vista temporal – o objeto de uma

memória, de uma sobrevivência, de uma 'ruminação eterna' ―.

O devir das imagens é comparável à alegoria do rio filosófico heraclitiano, onde nunca

se entra duas vezes, mas também nunca se permanece o mesmo, nunca se livra de ser tragado

como um detrito ou como uma relíquia para a passagem inexorável do tempo. No devir das

imagens, nascem imagens novas ou se reproduzem imagens já existentes; outras

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imagens,porém, são perdidas ou modificadas. Nesse jogo interminável de criação e destruição

daimagem, de sua flutuação ao fundo ou à superfície do ―rio do devir‖, é o fato de algumas

desaparecerem que permite a outras se manterem na memória. Há alguma forma de memória

das imagens que age selecionando o que permanecerá como lembrança e o que será relegado

ao esquecimento. Trata-se de imagens que pensam, imagens que criticam a própria imagem:

imagenscríticas (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 169-180). No sentido do rio que se revira, e

das imagens se alternam entre fundo e superfície, entre aparecimento e desaparecimento, tal

devir simboliza as imagens de arquivo que se incendeiam ou que se cristalizam em contato

com o real. Não deixa de ser uma visão notavelmente melancólica da relação entre imagem e

memória, pois seu contato com o real seria como uma perda. Este encontro quase às cegas

seria aquele da semelhança num espaço mais amplo do que o recorte feito pela câmera escura.

Na penumbra, a imagem do semelhante é a própria imagem da morte. Didi-Huberman

acrescenta em bela passagem que merece ser citada integralmente:

Se o mundo das semelhanças pode ser dito "vasto como a noite", é antes

porque nunca se consegue acabar com uma semelhança: ela envia sempre

para uma outra, ao menos. Mas é também por um conjunto de razões mais

antropológicas (que constituem sistema ou, melhor, "versões" de um mesmo

fenômeno). De um lado, a semelhança interroga o vivente e sua genealogia,

o desejo e sua força; nesse sentido, dirá Blanchot, a imagem "é uma

felicidade" inesgotável. "Sim, a imagem é felicidade, – mas perto dela

permanece o nada, em seu limite ele aparece, e toda a potência da imagem,

tirada do abismo no qual ela se funda, só pode exprimir-se apelando para

ele". A semelhança questiona-nos, portanto, também desde a morte: a imago

é sempre a imagem daquele ou daquela que não existe mais. Ora, a própria

morte é inesgotável e interminável para os viventes (DIDI-HUBERMAN,

2011b, p. 31).

O mundo das semelhanças opõe-se ao mundo ideológico da câmera escura

renascentista onde, no empenho em salvar as aparências, guarda-se a forma exterior dos

objetos, aquilo que aparece à primeira vista (sem mediação, imediatamente), causando uma

falsa impressão de semelhança, porque superficial, e descartando-se quaisquer outras

características que possam parecer discrepantes. Pode-se então dizer que salvar as aparências

é o mesmo que reconhecer semelhanças arbitrárias obtidas, não pela experiência de

observação, mas pelo ajuste do visível dentro de códigos e regras de apresentação. A

semelhança, sustenta Didi-Huberman, vai além do que é produzido dentro da câmera escura,

espécie de caixa de conhecimento onde o aparente torna-se evidente por si mesmo. O

semelhante nada teria a ver com o evidente. Liberta de estruturas, de códigos, a semelhança

aberta surge como uma aparição, uma manifestação inesperada, espectral. A semelhança

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seriaum evento de inquietude, irredutível a princípios lógico-matemáticos. Sendo inevidente,

elaseria obtida pelo estranhamento, não pelo reconhecimento, como quando procuramos

reconhecer formas nas sombras da noite ou nas nuvens.

Não por acaso, Didi-Huberman convoca a experiência da leitura de Blanchot para

tratar dessa semelhança que representa o delírio da imagem, a constante formação e

deformação de suas figuras, uma imagem que não mostra um instante rígido, petrificado, mas

agitação, processualidade. Nos textos teóricos de Blanchot, assinala-se uma sistematização

aberta da escrita literária como expressão por imagens, cuja semelhança bifurca-se entre

escrita e fascinação: semelhança que encanta, que atrai o olhar, enfeitiça, deslumbra, próxima

do metafórico e do alusivo. Lê-se:

Ver supõe a distância, a decisão separadora, o poder de não estar em contato

e de evitar no contato a confusão. Ver significa que essa separação tornou-se,

porém, encontro. Mas o que acontece quando o que se vê, ainda que à

distância, parece tocar-nos por um contato comovente, quando a maneira de

ver é uma espécie de toque, quando ver é um contato à distância? [...]

[Então] o olhar é arrastado, absorvido num movimento imóvel e para um

fundo sem profundidade. O que nos é dado por um contato à distância é a

imagem, e o fascínio é a paixão da imagem (BLANCHOT apud DIDI-

HUBERMAN, 2011b, p. 29).

Não se trata do mesmo espaço de visualidade do mundo geometrizado euclidiano,

comsuas retas e ângulos calculáveis, previsíveis. A semelhança aqui está na curva, no

incalculável, na figura construída por analogia em oposição às figuras geométricas. Essas

semelhanças são como mananciais de outras semelhanças, são autorreferenciais e contínuas,

inesgotáveis: nenhum detalhe pode ser excluído de tais semelhanças, ali tudo conta. Não

podendo ser limitada, nem recortada, a semelhança é ―vasta como a noite‖, pois se trata de

uma remissão perpétua e ruminante de traços, que ―remetem a outros traços e criam, pouco a

pouco, e depois por intervalos, uma superfície indefinidamente dobrada, desdobrada,

redobrada‖ (DIDI-HUBERMAN, 2011b, p. 31-32): assim como, na noite, em sua ausência de

luz difusa, constantemente é possível perceber formas nas sombras projetadas, que aludem a

objetos ou seres reais ou imaginários. Didi-Huberman comenta:

Blanchot sabia bem (...) que se fala de semelhanças, na maioria das vezes,

quando se fala de pessoas: assim fica-se admirado a cada nascimento que

uma criança possa assemelhar-se à mãe. A semelhança parte frequentemente

de um rosto (...) dizer isso é dizer também que ela dele se separa, e mesmo

dele se arranca. O rosto que nos apareceu e que ressoa em nós – rosto de

uma pessoa amada, por exemplo – torna-se, na experiência da ruminação e

da fascinação propriamente dita, o rosto de ninguém, um meio desemelhança

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sem ninguém a quem se assemelhar definitivamente (DIDI-HUBERMAN,

2011b, p. 32).

A semelhança estende-se para fora do território visível pela câmera, que tem de

escuraapenas o seu interior, mas toda ela é captação de luz, toda ela é dependente da refração

do dia, da sensação de certeza que o dia e suas aparências produzem em nós. A câmera escura

não dá conta das paradoxais formas deformadas da noite, nem mesmo do lusco-fusco, quando

os raios de sol tornam-se mais raros e produzem sombras mais intensas. O artífice maior da

perspectiva é a luz, de modo que sua artificialidade passa por tentar esconder que está fadada

a mostrar ambientes dependentes da incidência da luz do sol. Por esse ponto de vista, a

câmera escura não é tão ―natural‖ quanto parece. As formas dos objetos são produzidas

artificialmente; mas a semelhança ali advém por de-formidade.

Diz-se que a semelhança é vasta porque uma semelhança conversa com a outra,

porque uma alimenta a outra, formando redes e ligações. Mas também porque a semelhança

apela sempre para o corpo humano, para a forma humana, para a vastidão antropológica das

imagens. Didi-Huberman convida, aqui, a uma antropologiadovisual, pois incita a pensar a

imagem que se forma desde o anoitecer do ser humano: a escuridão da tumba, quando o

corpo, tornado invisível ou decomposto, erige-se como imagem (lembrança, saudade,

fotografia), passa a existir apenas como reminiscência, ao risco perene das cinzas espalhadas

pelo esquecimento (DIDI-HUBERMAN, 1998, 37-38). Ao lado da imagem obtida pela

câmera escura, há todo um mundo de formas à espera de encontrar a atenção de um olhar

abismado, de um olhar atemorizado (ou fascinado). Ao lado dela, há opções de imagens ainda

não construídas, imagens por fazer. Essas imagens desafiam os vivos, transformam-nos em

um paradigma do visível.

O visível e o vivente mantêm íntima relação: confirma-a a simbologia dos olhos como

portas da alma, a antiga crença de que era o olho quem emitia luz. O que ainda se vê é o que

sobreviveu. O invisível é a morte, o desaparecimento, as cinzas. A semelhança que Didi-

Huberman solicita, tragada pelas malhas da escuridão, é a semelhança com a morte que fez da

cera e do molde o ―cúmulo do realismo‖, mas um realismo mórbido. Esquecido pela

historiografia de Vasari, aquele que narrou as vidas dos grandes pintores, esse realismo de

morte deveria ser causa de muita angústia diante da passagem do tempo, a nos conduzir,

irrevogavelmente, para a morte. Didi-Huberman afirma estarmos diante da imagem como

diante do que constantemente se estranha. Esse estranhamento não diz respeito a uma

abstração, mas a uma ―semelhança em crise‖. A semelhança em crise não coloca a imagemem

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risco de perder a figuratividade. O que ela apresenta continua reconhecível. É possível dizer o

que há na imagem, descrever seus objetos, seus personagens. O que se perde na imagem é a

voz. Ela deixa de falar, torna-se muda. Ou seja, deixa de ser capaz de ser descrita ou

compreendida em forma de narrativa. A imagem não é mais substituível por um texto que a

reduza a signos que simbolizam alguma fala. Seu código iconográfico se perde. Em lugar

disso, formam-se sintomas, no sentido crítico e psicanalítico do termo, emanações de sentido

aberto, inconclusivo. Por fim, Didi-Huberman retoma o conceito lacaniano de sintoma: ―grito,

ou então mutismo, na imagem que se supõe falante‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 271).

Nessa sintomatização da imagem, a verdade irrompe, mas com o risco de desfazer

momentaneamente toda ―verossimilhança representativa‖. A verdade de que nos fala aqui o

teórico não é a mesma que a realidade. Seria, antes, o que se opõe à realidade construída

como discurso. A verdade da imagem cristã, por exemplo, está além do reconhecimento da

figura de um deus crucificado que remete a determinada passagem bíblica, mas ao

acontecimento mesmo da crença na morte desse deus e posterior encarnação, crença reiterada

a cada vez que o fiel depara-se com o corpo crucificado, e que o faz sentir olhado de volta por

essa imagem quando a vê. A verdade que a imagem passa é a da sua eficácia litúrgica. Para

isso, muitas vezes era necessário ―abrir‖ literalmente a imitação. Nessa abertura da imitação, a

semelhança não é excluída, mas trabalhada como um drama. A imitação produz um efeito

bem-sucedido de mimetismo, mas não se aprofunda para além da superfície visível (DIDI-

HUBERMAN, 2013, p. 272); produz uma imagem feliz, com bom resultado, mas pouco

eficaz em sua aspectualidade por assim dizer fenomenológica. Agradar aos olhos por vezes

não basta. Para a pintura cristã medieval, havia a necessidade de converter, de convencer. A

simples imitação de uma cena bíblica seria incapaz de retirar o paganismo romano de seu

pedestal. A representação cristã prevaleceu porque permitiu a abertura da imitação. Abriu-se,

enfim, para a semelhança e para toda a sua agitação interna, o que a tornou porosa,

manipulável pela nova fé que se estabelecia. Como um templo que abre seus portões para

todos os fiéis, a imagem permitiu-se ser, mais do que vista, penetrada.

Este drama da semelhança, no qual Didi-Huberman insiste, evoca a conhecida

passagem do Gênesis em que o pecado original conduz Adão e Eva a perda da semelhança

com Deus. Passam a se reconhecer nus – não se vêem mais como imagem perfeita. No Juízo

Final, a semelhança com Deus será restituída aos que tiverem permanecido o mais próximo

possível da imagem divina. O drama da semelhança continua com a enganação de Adão: no

Paraíso, ele era semelhante por humildade a Deus; o diabo propôs uma semelhança por

igualdade (ser o mesmo que Deus, saber o mesmo que ele, ao comer do fruto da árvore

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dasabedoria). Imitar a Deus é o que se castiga com a desfiguração, com a dessemelhança. A

prova maior do sacrifício crístico seria justamente a de se manter semelhante por humildade

quando afetado por intensa desfiguração na cruz. Ao passo que os homens na Terra,

continuando a recusar a face de Deus, permanecerão em pecado enquanto se mantiverem

dessemelhantes – ou buscando uma imitação superficial (2013, p. 273). Os exegetas do

medievo buscaram compreender esse drama da semelhança não para entender o

funcionamento da imagem, mas com o fito de encontrar um via imagética para a redenção, já

que desassemelhar é morrer – é a putrefação, a perda da carne, talvez até mesmo da alma.

Talvez sem o esperar, criaram as bases do modo de ver em todo o Ocidente: ver não apenas

como uma busca de imitações, mas procurando nos interstícios da imagem os seus sintomas,

aberturas, rasgaduras.

Diga-se que a morte foi inventada por força de uma perda da semelhança para com

Deus. Didi-Huberman observa que há um paradoxo no modo medieval de se relacionar com a

semelhança: ao mesmo tempo em que elas carregam uma ideia perpétua de morte e de

pecado, também carregam uma vontade religiosa de matar a morte, de vencê-la. Daí se

questionar: ―que reconforto quanto à morte os cristãos puderam extrair de um deus em

perpétua imagem de morrer numa cruz?‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 284). Um deus como

esse parece se contradizer imageticamente. Para não surpreender a figura de Cristo como uma

falácia, os cristãos rejeitaram o aspecto simplesmente visível das representações e se

concentraram mais em ver os sintomas da encarnação, aquilo que está para além do visível.

Didi-Huberman acusa Vasari de ignorar a perturbadora eficácia das imagens, que teria

sido percebida pelos cristãos primitivos quando confrontados com o paradoxo da semelhança.

Enquanto os cristãos entendiam que a imagem carregava consigo uma ideia de morte, para

Vasari a imagem construída por um artista como Giotto era capaz de trazer de volta à vida as

coisas e indivíduos, vivos ou mortos, que ele mimetiza. Vasari chamava de ―dom de Deus‖ ou

de milagre essa habilidade com o disegno. O artista torna-se uma espécie de intermediador do

retorno das coisas à vida, capaz de fazê-las renascer (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 69-71). O

retorno à vida é concedido por meio de certa maniera de imitar a natureza, modelo de ―bela

pintura‖, de arte bem sucedida. Mais do que isso, o Renascimento vê nascer o gênero retrato

obtido a partir da ― identificação dos termos semelhante, natural e vivo‖ (DIDI-HUBERMAN,

2013, p. 286). Estes termos parecerão mais idênticos ainda após a fotografia. Ao produzir

imagens sem a mediação do ser humano, o retrato fotográfico consegue captar um instante

vivo, a natureza tal como ela aparece diante de nossos olhos, aparentemente sem desvio.

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78

O objetivo de Vasari seria o de separar a semelhança do drama no qual o cristianismo

continuava a pensá-la. Tratava-se de fazer dela um vetor de êxito e de humanitas. Para isso,

era preciso constituir a pintura, a escultura e a arquitetura como artes ―maiores‖ ou ―liberais‖.

Considerá-las maiores implicava em ―matar o artesanato‖. A elevação das artes do disegno a

uma condição de arte superior não ocorreu por conta da qualidade técnica das obras, mas por

um viés ideológico. Na Florença quatrocentista, lembra Didi-Huberman, o busto dito de

Niccolò da Uzzano (fig.14), feito em terracota, impressionava aqueles que se deparavam com

tal ―cúmulo do realismo‖. A granulação da pele, as rugas, as verrugas, marcas de um início do

envelhecimento, são de uma noção de semelhança que se poderia qualificar ―humanista‖.

Seria possível quase ver a vida pulsando por debaixo da matéria. Contudo, esse realismo

extremo não teria sido produzido primeiramente pelos ―grandes artistas‖ eternizados pela

história da arte. O hiper-realismo do busto de Niccolò já havia sido atingido pelos fallimagini,

―fazedores de imagem‖, artesãos de positivos em cera sobre um modelo vivo.

Figura14:Donatello,BustodeNiccolòdaUzzano,c.1432

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79

Os ex-votos ainda estavam sob o regime de semelhança dramática do cristianismo, mas

já possuíam a semelhança divina, o dom de Deus, o milagre próprio do homem renascentista.

Didi-Huberman tenta compreender por que motivo essas imagens foram conservadas em

arquivos como objetos quaisquer, e não em museus ou livros de história da arte. É no

historiador-antropólogo Warburg que ele encontra um caminho para a resposta. Para além de

toda hierarquia dos objetos de arte que procura distribuí-los no tempo e por uma ideologia da

perícia técnica, interessou-se Warburg pelos ex-votos e sua impressionante capacidade de

assemelhar. Didi-Huberman, por sua vez, constata que os bustos de cera não foram alçados à

condição de objetos de arte porque não foram feitos com o estilo renascentista, embora

tivessem o aspecto. O que nos dá fortes indícios do motivo porque para Vasari o importante

não era tanto o resultado visível da obra, mas seu modo (ideológico) de produção. O que

muda entre o busto de Niccolò e um ex-voto é o sentido dado à intervenção humana no

processo de produção da imagem. No primeiro, o trabalho do artista é elogiado, não como um

esforço físico, mas pela aplicação de sua erudição, de sua técnica; no segundo, a técnica

artesanal utilizada ia contra as convenções da invenzione e da maniera renascentistas devido a

seu caráter braçal e prático (lembremos que ambas as concepções estavam contidas no

conceito grego de techné). A semelhança era obtida por impressão, por indício, e não por

habilidade. Notemos que a semelhança indiciária retorna com toda força na fotografia: seria

preciso assumir a ruptura com a produção manual de imagens para que a química e o

conhecimento tecnológico-industrial pudessem favorecer a construção da câmera fotográfica.

Com isso, afirmamos que há algo de artesanal na imagem fotográfica que certamente irritou

os herdeiros do pensamento de Vasari, defensores da habilidade manual.

Didi-Huberman supõe que Vasari teria conhecido os ex-votos da Santíssima

Annunziata e visto sua semelhança impactante. Mas o que ele fez em sua obra biográfica foi

inverter a ordem dos fatos, pois foram os grandes artistas do século XV, particularmente

Verrocchio, que incorporaram em seus projetos estéticos a destreza artesanal dos obscuros

produtores de ex-votos. Imagens que, em contato com o real, se incendeiam. Muitas delas,

certamente, se perderam. Cabe aqui imaginar o quanto não foram longe, o quanto não foram

assustadoramente reais essas imagens votivas, destinadas não à fruição do olhar, mas

entregues liturgicamente como forma de adoração, como agradecimento, em respeito à

divindade, em respeito à semelhança.

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IMAGEMABERTA,IMAGEMHISTÉRICA

Nas investigações de Didi-Huberman sobre as imagens, observam-se

motivosconstantemente entrelaçados. Não é possível compreendê-los, ao menos não em toda

a sua complexidade, se não tomarmos as imagens pelo ponto de vista de uma análise

antropológica. Nessa perspectiva, ainda, seria necessário atentar para o que concerne a um

estudo da imagem empreendido sob o método de uma metapsicologia da imagem, entendendo

metapsicologia no sentido propriamente freudiano, como a ciência que trata de avaliar os

resultados obtidos por meio do método psicanalítico. Talvez com isso seja possível especular

a respeito das ligações entre os processos físicos e mentais que cercam o fenômeno imagético.

Pois as imagens exigiriam uma forma de abordagem que fosse capaz de não separar a

imagem, enquanto objeto, da imagem enquanto operaçãodosujeito. Está-se em face dos

recondicionantes de uma história da arte assumida em sua ―fecundidade intrínseca‖ (DIDI-

HUBERMAN, 2007, p. 34).

Ocorre de o objeto visual não pode ser desintrincado do sujeito do olhar. Modo de

dizer que a imagem se confunde com a economia psíquica da imaginação. Essa ligação, ou

implicação, entre sujeito e objeto, já presente na noção de encarnado, abre a história da arte

para uma dupla proposta, construída por nosso autor desde os seus primeiros textos. Nota-se

que ele ―busca compreender a história da arte em suas duas dimensões simultaneamente, a

genitiva objetiva que é o discurso histórico sobre os objetos de arte e a genitiva subjetiva que

trata do desenvolvimento dos objetos de arte‖ (PUGLIESE, 2005, p. 479). Essas duas

perspectivas não são tratadas em separado. Pelo contrário, a todo tempo revelam-se

entrelaçadas, retrabalhadas, requestionadas.

Didi-Huberman recorre à hipótese freudiana para a construção da espacialidade pela

psique de modo a demonstrar de que maneira sujeito e objeto são categorias que sempre

atuam juntas na formação das imagens. Em Freud, a espacialidade é resultado da projeção da

extensão do aparelho psíquico do sujeito. Contrariando a hipótese de Kant segundo a qual a

espacialidade configura-se como condição apriori do aparelho psíquico, Freud condiciona

nossa noção de espaço à ação de uma psique extensa, como se houvesse algum gênero de

correspondência entre mente e corpo. Este particular conceito de extensão ―sugeria que a

relação entre o aparelho, o encéfalo e atos conscientes (...) conduzia Freud a admitir um

paralelismo entre a ordem biológica e a atividade mental, descartando a idéia de uma

biologização do psicológico‖ (SKLAR, 2008). Ao considerar a hipótese de Freud, Didi-

Huberman postula que a espacialidade deva ser ―compreendida em sua abertura, sua

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81

lacuna,sua vocação ao orifício, ao ferimento, ao intervalo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2007, p.

34).Aproximar a questão de nossa noção de espaço à carne do corpo humano, às suas dobras,

pele, aberturas, permite conceber a psique como extensão ―dobrada‖, como evento dotado de

sintomas e do poder de abrir a si mesmo. A imagem que tem origem nesse processo não

poderia ser outra senão a que expressa aberturas, intervalos, lacunas, pois se movimenta

ritmicamente entre ordem biológica e atividade mental, entre mente e corpo, entre extensão e

psiquismo.

Didi-Huberman nos lembra que Freud não foi o único em sua época a pensar as

implicações de uma noção de espaço derivada da relação entre mente e corpo. Houve outras

interpretações, que possuíam em comum a ideia de que o espaço externo ao corpo é

reconhecido num processo que evoca o corpo como espaço, dotado de superfície, curvas,

redobras, orifícios, aberturas, rasgos. Além de mencionar a ―estesia primordial do espaço‖

como analisada por Paul Schilder, pupilo de Freud; ele retoma Ludwig Binswanger, que

propunha ―um tipo de inteligibilidade capaz de nos fazer compreender como as modificações

páticas do espaço podem reconfigurar as qualidades estéticas‖ (DIDI-HUBERMAN, 2007, p.

35; grifos do Autor).

Que o espaço se modifique em função do pático, ou talvez da libido, e que isso

implique nas propriedades formais, nas aparências e nas semelhanças que conferimos ao

mundo visível, é tudo o que interessa à expressão do que Didi-Huberman denomina

imagemaberta. Esta visa uma economia muito particular da representação, na qual formas,

aspectos, semelhanças se rompem e deixam aparecer uma ―dessemelhança fundamental‖. Ela

indicia um regime do deslocamento, da ruptura, da alteração. Mais do que mera categoria de

imagem, a imagem aberta se reporta a um momento privilegiado, a um

acontecimentodaimagem, ―onde se rasga profundamente, ao contato com o real, a organização

aspectual do semelhante‖ (DIDI-HUBERMAN, 2007, p. 35). Retomamos, assim, o tema da

desfiguração acima comentado.Se as imagens estão constantemente em movimento, então não

cessam de adquirir formas renovadas, não cessam de se recriar, de se reconfigurar. Se

algumas imagens são decididamente estranhas, insensatas, inquietantes, talvez elas possam ser

aproximadas, metaforicamente, da mulher em estado de insanidade mental que é apresentada

em Ainvençãodahisteria. Lê-se:

Eis a louca que passa dançando, enquanto se lembra vagamente de algo. As

crianças a perseguem com pedradas, como se fosse um melro. Os homens a

seguem com o olhar. Ela brande uma vara e finge segui-los; em seguida, ela

retoma seu caminho. Deixa para trás uma sandália, e não se apercebe.

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Longas pernas de aranha circulam por seu pescoço; nada mais do que seus

cabelos. Seu rosto não se parece com um rosto humano, acredita-se vê-lo um

momento, mas ela lança uma gargalhada de hiena. Ela deixa escapar retalhos

de frases que, caso costurados, muito poucos encontrariam um significado

claro; mas quem os recosturaria? Seu vestido, rasgado em mais de um lugar,

executa movimentos bruscos ao redor de suas pernas ossudas e enlameadas .

Ela vai à frente, como a folha de álamo, levada, ela, sua juventude, suas

ilusões e sua felicidade passada, que ela revê pelo turbilhão das faculdades

inconscientes. Seu andar é ignóbil, e sua respiração exala aguardente. Por

que ainda se teima em achá-la bela?

A louca não permite nenhuma aproximação, ela é orgulhosa demais para se

queixar, e morrerá sem revelar seu segredo para aqueles que se interessam

por ela , mas aos quais proibiu qualquer comunicação; mas que ela convoca,

no entanto, por suas poses extravagantes. As crianças a perseguem com

pedradas, como se fosse um melro. Os homens a seguem com o olhar.

(DIDI-HUBERMAN, 2015a, p. 101).

Trata-se, na verdade, de um fragmento da 2º estrofe, 3º canto, dos CantosdeMaldoror,

poema em prosa de Lautréamont que se vê incorporado à massa analítico-argumentativa do

historiador, que nem mesmo o parafraseia: escreve-o como se fosse parte de seu livro. A

imagem desoladora da mulher, descrita como uma figura que lembra ―vagamente alguma

coisa‖, como se sua desfiguração obrigasse o olhar ao acionamento de uma memória das

formas para tentar equilibrar a figura irreconhecível, sugere que procurar semelhanças seja a

primeira ação executada, intuitivamente, diante de formas não imediatamente discernidas.

Empregar meios para dar à figura alguma forma de inteligibilidade seria uma reação natural

(uma defesa psíquica) à sua estranheza. A forma deformada sofre, desta maneira, uma

tentativa de coerção à razão. Que surjam, na narrativa, crianças que se põem a perseguir a

desconhecida, como se ela fosse um pássaro ―qualquer‖, um melro, é algo a se considerar com

atenção. Após tentativa frustrada de reconhecer na estranheza alguma familiaridade, o

aparecimento das crianças adquire insuspeito efeito simbólico: o modo infantil de conhecer o

mundo não ocorre pela assimilação de formas conhecidas, mas pela fratura das formas, pelo

despedaçamento – como bem mostrara Benjamin a Didi-Huberman (DIDI-HUBERMAN,

2015b, p. 139-142) - ou pelas brincadeiras de ausências e assassinatos -no entendimento de

Freud e Fédida (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.79-87). Ao despedaçarem brinquedos, as

crianças se deparam com seu modo de funcionamento. Danificando o brinquedo, a criança

interrompe seu uso, torna imprestável seu objeto de conhecimento: arriscamos a dizer que o

ato de atirar pedras põe em execução um projeto epistemológico a caráter experimental, uma

verdadeira heurística.

Talvez se possa falar aqui do paradigma infantil em Didi-Huberman nos termos do que

ele chama um ―pensamento alterante‖, afeito a processualidades selvagens de

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arrancamento,esvaziamento, o que não deixa de apontar para uma eficácia expressiva do

inquietante. Assim,em contexto diverso, onde é caso das cerimônias infantis de

desventramento dos bonecos, esses objetos antropomórficos por excelência, lê-se:

A crueldade manipuladora da criança, que maltrata seu brinquedo, arranca-

lhe as partes, abre-o e esvazia-o, de modo a olhá-lo finalmente desde seu

âmago informe – ‗Olhar curiosamente, mas com uma grande faca, o que há

no ventre do brinquedo que grita‗ (Bataille) –, leva a reconhecer nas

imagens, não o poder de consolar mas, ao contrário, a eficácia expressiva de

inquietar, e a eficácia sacrificial de ‗abrir‗, de fazer ‗sangrar‗. Solicitá-las,

assim caracterizadas, como paradigma para a sensibilidade moderna, implica

na exasperação contra o ‗familiar‗ e o ‗repousante‗, assim como contra toda

a ordem das ‗significações transfiguradas‗ (DIDI-HUBERMAN, 2006b,

p.81).

Em Oquevemos,oquenosolha, a reflexão se complementa: a boneca, nas mãos e sob o

olhar da criança, mostra-se capaz de se alterar, ―de se abrir cruelmente, de ser assassinada e

com isso ter acesso ao estatuto de imagem bem mais eficaz, bem mais essencial – sua

visualidade tornando -se de repente o despedaçamento de seu aspecto visível, seu

dilaceramento agressivo, sua desfiguração corporal‖(DIDI-HUBERMAN, 1998, p .83).

―Sublime violência do verdadeiro‖, como quebra da bela aparência, lembra a injunção

benjaminiana (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.173).

Os modos extravagantes da mulher descrita por Lautréamont parecem ser

aproximáveis daqueles das mulheres histéricas estudadas pelos alienistas clássicos,

particularmente por Jean-Martin Charcot. Didi-Huberman observa que eles reconheciam na

histeria alguns gestos convulsivos repetitivos, mas que consideravam como movimentos

desprovidos de sentido. Os revolteios corporais da histérica chegaram a receber variada

nomenclatura: ―cinismo‖ do corpo, ―clownismo‖, ―movimentos ilógicos‖, ―crise demoníaca‖,

termos que, estima Didi-Huberman (2013c, p.333), se prestaram tão somente a sublinhar o

caráter ―desfigurado, disforme e, sobretudo, privadodesentido que tais acidentes do corpo

propunham ao olhar‖. A ―passagem de um corpo à aberração de uma crise‖, próprio de uma

convulsão histérica, seria marcada por gestos acidentais que, sob uma observação menos

atenta, pareceriam totalmente carentes de lógica. Didi-Huberman ressalta, porém, que Freud

observou as pacientes histéricas mais atentamente do que Charcot, e teria percebido nesses

movimentos algo como sua lógica interna, diversa daquela que se constrói quando, desde o

início, espera-se a obtenção de significados evidentes. Os acidentes corporais produzidos

pelas pacientes histéricas não poderiam ser entendidos como sintomas clínicos convencionais.

Eram de fato sintomas, mas os acidentes não eram simples gestos automáticos. Essesacidentes

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seriam ―soberanos‖, como se fossem gestos que perderam sua representatividade,seu código,

sua capacidade de transmitir informações, de comunicar sentidos, como se existissem por si

mesmos. São gestos incompreensíveis, não icônicos, gestos que não declinam seus sentidos.

Mas justamente porque perderam referencialidade, esses acidentes tornam-se soberanos:

tiranizam o corpo inteiro; liberam uma significância própria; fazem trabalhar uma estrutura

―dissimulada‖ ( 2013c, p. 333-334).

Didi-Huberman encontra na análise freudiana da soberania do gesto acidental da

histérica um modo de observar e de descrever as imagens atento a seus paradoxos visuais,

suas insignificâncias ou suas dissimulações. Com o rigor semiológico da noção psicanalítica

de sintoma, nosso autor pôde pensar imagens das quais a maioria dos historiadores da arte se

esquiva, ou comentar sobre objetos visuais canonizados, todavia distante do conjunto estável

de significações que lhes imputam. Mesmo porque o sintoma busca dar conta do que é

singular, dos acontecimentos críticos, das intrusões, mas também daquilo que advém,

enigmaticamente, como parte de uma estrutura significante ainda desconhecida. O conceito de

sintoma construído por Didi-Huberman pode ser tanto algo como um estilhaço da imagem

(um pedaço, fragmento de algo maior), quanto uma evidência incompreensível, uma

dissimulação violenta, pois flagrante.

Importa, porém, a advertência: ―falar de sintoma no campo da história da arte não é

buscar doenças, ou motivações mais ou menos conscientes, ou desejos recalcados por trás da

representação, supostas ‗chaves de imagens‗― (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 335). A

proposta, aqui, é um tanto mais simples, modesta mesmo. Tratar-se-ia apenas de ―avaliar um

trabalho da figurabilidade‖, dado que toda figura pictural supõe uma figuração, mas que esta

suposição não implica numa relação simples: a figuração não deixa de ser um ―emaranhado

de paradoxos‖, principalmente porque ―a imagem sabe representar a coisa e seu contrário‖,

isto é, a imagem é insensível à contradição, ou a contradição é seu modelo mesmo de

identificação. De modo que ―quando as imagens são mais intensamente contraditórias [...] são

mais autenticamente sintomáticas‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 335-336).

Um saber sintomal situa-se necessariamente no limite entre fenomenologia e

semiologia. Donde a abertura para a questão, central na história da arte, da legibilidade da

imagem. ―Na pintura, as unidades mínimas não são dadas, mas produzidas, (...) não

pertencem nem a uma sintaxe, nem a um vocabulário no sentido estrito‖ (DIDI-

HUBERMAN, 2013c, p. 337). Mesmo assim, na imagem são produzidas significâncias. Para

direcionar a história da arte rumo a uma ―estética do sintoma‖ cumpriria propor uma

fenomenologia ―não da simples relação com o mundo visível como meio empático, mas

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darelação com a significância como estrutura e trabalho específicos‖; além disso,

cumpririapropor uma semiologia ―não somente dos dispositivos simbólicos, mas também dos

acontecimentos, dos acidentes, das singularidades da imagem pictórica‖. Com o que mesclar

semiologia e fenomenologia, alternar uma com outra; com o que comprovar a inextricável

relação entre objeto visual e sujeito do olhar.

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86

II

EFICÁCIAEPISTEMOLÓGICADAIMAGEM

A imagem como tal não passa de uma zona de

indecidibilidade entre o verdadeiro e o falso.

(GiorgioAgambenapudDidi-Huberman,―Imagem,

evento, duração‖)

Aquele que diz: ―vou lhes falar desse objeto visual

do ponto de vista específico do historiador da arte‗,

este provavelmente corre o risco de deixar escapar o

essencial. Não que a história da arte deva por

definição deixar escapar o essencial, muito pelo

contrário. Mas porque a história da arte deve

constantementereformularsuaextensão

epistemológica‖.

(Didi-Huberman, Diantedaimagem)

Será preciso [...] deslocar e complexificar as coisas,

requestionar o que ―tema‖, ―significação‖,

―alegoria‖ e ―origem‖ podem, no fundo, querer dizer

para um historiador da arte.

(Didi-Huberman, Diantedotempo)

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AFORMA-ENSAIO:ESCRITADOCONHECIMENTOPORIMAGENS

Em um momento de auto-análise, Didi-Huberman revela: ―sou um ensaísta. Lembro-

me que, quando era mais novo, admirava muito o poeta Edmond Jabès, que me dizia: ‗tu és

um ensaísta‗. Eu lidava muito mal com isso. Não tinha compreendido que ele tinha toda a

razão. Sou um ensaísta, eu ensaio‖. Na forma-ensaio, caracteriza Adorno (2003, p. 15-45),

abandona-se toda busca pela sistematização dos saberes. O discurso hierarquizante,

determinista, também é ali dispensado. Evitam-se generalizações sobre o objeto de estudo. O

rigor do ensaio é de outra ordem. Dele fala Didi-Huberman como de uma exigência

suigeneris:

Aos olhos daquele que ensaia, tudo se parece sempre a uma primeira vez, a

uma experiência marcada por incompletude. Se ele sabe e aceita tal

incompletude, ele revela a modéstia fundamental de sua tomada de posição.

Mas ele está então obrigado, estruturalmente, a recomeçar sempre, da

‗primeira tentativa‗ inicial aos numerosos ‗ensaios‗ que se repetem depois

dela. E nada lhe parecerá uma segunda vez. É, no fundo, como uma dialética

do desejo. O que faz então o montador, por exemplo, se não começar por

montar seu material de imagens, depois desmontar, depois remontar, depois

recomeçar sem trégua? É a exigência de sua tomada de posição (é possível

aqui lembrar que a palavra ‗ensaio‗ tem sua etimologia no baixo latim

exagium, a qual deriva do verbo exigere, ‗fazer sair algo de outra coisa‗)

(DIDI-HUBERMAN, 2010c, p. 98).

Diferentemente do método científico, o ensaio não possui a pretensão de buscar uma

verdade definitiva sobre o que quer que seja. O ensaio parte da experiência individual, mas

não se estende para além do que ela é capaz de apreender. Na ciência, as experiências

individuais são apenas pontos de partida de um percurso do pensamento rumo à abstração. O

ensaio reconhece que as experiências estão sujeitas aos acontecimentos, aos fluxos da vida,

alteram-se com o tempo. Ele reconhece que não há verdade eterna, pois toda verdade é

mediada historicamente. Se a realidade é feita de fragmentos, a escrita que dela se ocupa não

pode propor mais que unidades transitórias.

Para garantirmos uma leitura eficaz da obra de Didi-Huberman, talvez seja necessário

vislumbrar os efeitos para a história da arte de uma escrita ensaística. O autor de

Diantedaimagem parte de uma evidência: "os livros de história da arte sabem nos dar a

impressão de um objeto verdadeiramente apreendido e reconhecido em todas as suas faces,

como um passado elucidado sem resto" (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 11). Esta afirmação

flagra a pretensão de totalização de uma área que "constitui, dizem, uma ciência, ciência

fundada em última instância sobre a certeza de que a representação funciona unitariamente".

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Nessahistória da arte entendida como ciência, tudo se adapta perfeitamente e acaba por

coincidircom o discurso do saber, de modo que "pousar o olhar sobre uma imagem da arte

passa a ser então saber nomear tudo o que se vê - ou seja, tudo que se lê no visível" (DIDI-

HUBERMAN, 2013c, p. 11). Sob essa "retórica da certeza", subsiste um modelo implícito da

verdade que busca constituir o fechamento do visível sobre o legível. A questão da

legibilidade da imagem passa a ser, para o historiador-ensaísta, questão central a ser

repensada de modo a questionar as próprias certezas da história da arte como disciplina

acadêmica.

O estatuto do conhecimento científico desta área confunde-se com a sua

institucionalização. A hierarquização do saber em história da arte adaptou-se à hierarquização

do saber universitário – a história da arte cria hierarquias dentro daquilo que ela imagina ser o

seu campo de atuação, hierarquias que funcionam como degraus em direção a um

conhecimento cada vez mais específico das obras de arte, e almeja, com o acúmulo de saberes

em torno do objeto, uma ideia de conhecimento universalizante. Razão porque

Diantedaimagem recoloca em discussão as certezas do método classificatório e arquivístico

empregado pelo historiador da arte. Não é à toa que seu autor acaba por se deparar com certa

hostilidade no ambiente universitário francês, tradicional defensor da precisão e do rigor

metodológico típicos da Iconologia. É o que se entende do seguinte depoimento de Didi-

Huberman em entrevista, quando perguntado sobre o lugar por ele ocupado na academia:

Seria melhor interrogar a necessidade de deslocamento sobre a legitimidade

do "lugar". Eu poderia, sem dúvida, evocar esta ou aquela experiência

concreta: as numerosas dificuldades - até as polêmicas - com a academia

francesa, os sentimentos frequentes de mal-entendidos com o mundo anglo-

saxão, a extraordinária recepção no meio alemão, o diálogo aberto com

filósofos e literatos, o não-diálogo com muitos dos historiadores portanto

próximos de minhas preocupações... Além das controvérsias pessoais, é

apenas, eu acho, um problema global da história intelectual: qual é o lugar

que queremos dar ao pensamento filosófico, à interrogação psicanalítica ou à

preocupação poética neste campo disciplinar que se nomeia por ciências

humanas hoje? (DIDI-HUBERMANapudPOTTE-BONNEVILLE ;

ZAOUI, 2006).

Ao buscar legitimar o ensaio como método diverso de trabalho, Didi-

Hubermanquestiona as práticas tradicionais da história da arte, integradas ao estruturalismo

desde Pierre Francastel (HUCHET in DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 8-9), e abre, neste campo

do saber, lacunas e fraturas naquilo que se pensava livre de polêmicas. Nosso autor viu-se

obrigado a não só proceder a uma investigação genealógica dos fatores que levaram a história

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da arte a assumir o fechamento de seus pressupostos epistemológicos, como teve de se

comprometercom a elaboração de uma cuidadosa exposição da eficácia crítica de seus objetos

de estudo eda fundamentação teórica que alicerça sua obra.

Em Ensaiocomoforma, Adorno já denunciava que ―a corporação acadêmica só tolera

como filosofia o que se veste com a dignidade do universal, do permanente‖. Esta crítica, que

visava a ciência alemã, buscava demonstrar porque ainda não se havia obtido condições

propícias para uma maior ―liberdade formal‖ na escrita científica. O ensaio, cujo âmbito de

competência não pode ser prescrito, esforça-se por espelhar ―a disponibilidade de quem, como

uma criança, não tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros já fizeram‖

(ADORNO, 2003, p. 16). Em vez de tentar alcançar sempre novas descobertas, numa espiral

progressiva de contínuas novidades, o ensaio não converge para um ―fim último‖, pois

―felicidade e jogo lhe são essenciais‖. Não obedece à moral do trabalho que regula a atual

produção de conhecimento. Escrever ensaios é nunca concluir o trabalho por reconhecer-se

incapaz de esgotar as possibilidades de interpretação dos objetos de conhecimento. Ainda que

os critérios utilizados pelo ensaio o aproximem de uma autonomia estética compartilhada com

a arte, não se pode perder de vista que o ensaio é também uma forma legítima de conhecer.

Em contraposição à tendência geral, de extração positivista, de separar forma e conteúdo, para

o ensaísta não faria sentido ―falar do estético de modo não estético, sem qualquer proximidade

com o objeto‖ (ADORNO, 2003, p. 18). Isso talvez justifique alguns estilemas da escrita de

Didi-Huberman.

Seja como for, seus instrumentos conceituais mais frequentes (sintoma, visual,

sobrevivência, imagemdialética, entre outros) não são criações literárias, nem mesmo

novidades científicas, mas entusiasmados modos de reutilização de conceitos psicanalíticos ou

resgates da obra de autores estranhos à historiografia de arte tais como Walter Benjamin, Carl

Einstein, Georges Bataille. Não são conceitos universalizantes nem construídos por meio de

rígido formalismo, mas inequívocos frutos de alguma experiência de direta confrontação com

seus objetos. Estar diante da imagem seria quase que um jogar infantil com o objeto do

conhecimento. Ocorre, porém, de se ver jogar nos textos de Didi-Huberman com fontes

inesperadas advindas do literato. Em passagem fulgurante, surge uma delas para tratar do

entrelaçado das experiências do ver e do dizer, para tratar de uma suigeneris rítmica

assemelhada a ―um ensaio sempre a recomeçar‖. Lê-se, pois:

"Como procurar dizer?" (Como tentar dizer?), se pergunta Beckett. E ele

responde pela indicação de um gesto duplo ou dialético, um gesto

constantemente reconduzido ao modo pelo qual nossas próprias pálpebras

estão constantemente indo e vindo, batendo diante dos nossos olhos: "Olhos

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cerrados" (clenchedeyes), para não acreditar que tudo estaria ao alcance

como o material integralde uma demonstração aboculos.

"Olhosesbugalhados" (staringeyes) para se abrir e se oferecer à irresumível

experiência do mundo. "Olhos fechados esbugalhados"

(clenchedstaringeyes), para pensar enfim, e até mesmo para dizer, procurar

dizer tudo isso ao mesmo tempo. Se a linguagem nos é dada, o dizer nos é

constantemente retirado, e é por uma luta de cada instante, um ensaio sempre

a recomeçar, que nos debatemos com esse inominável de nossas

experiências,de nossa carência constitucional diante da opacidade do mundo

e de suas imagens .(DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 53).

Se o ensaio pode ser entendido como uma forma de texto que se aproxima daliteratura,

dada a sua liberdade formal, mas que ao mesmo tempo não se distancia do texto dissertativo

comumente empregado em comunicações científicas, dada a exigência de um rigor analítico

constante, de uma constante reflexão acerca das próprias bases de argumentação; então essa

forma de texto deveria ser privilegiada pelos historiadores da arte, como o faz Didi-

Huberman, pois sua constituição dialética permitirá com que a imagem possa ser analisada

com a seriedade que lhe é devida, mas sem perder de vista o seu lado efêmero, passante,

inapreensível, cujo sentido talvez só possa ser dado por uma textualidade menos rígida. Trata-

se de manter um nível de escrita tal que se aproxime de um verdadeiro jogar infantil com a

ciência, de uma brincadeira sóbria, metódica, rigorosa, com a imagem, todavia com a

consciência de que é por meio do lúdico que a criança reflete, analisa e entende o mundo.

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AFORMA-ATLAS:CONHECIMENTOPORMONTAGEM

Jogar infantil: talvez devamos dizer uma poiesis, um modo peculiar de dar conta

dosrestos, dos fantasmas da história na mesa de trabalho. E talvez devamos dizer ―mesa de

montagem‖, expressão com a qual Didi-Huberman caracteriza o espaço da práxis do

historiador. Ao executar aproximações e distanciamentos, composições e desconstruções com

os objetos históricos, o ofício do historiador transfigura-se num bricabraque das peripécias do

tempo. Esse método adotado pelo autor de L’imagesurvivante corresponde a um ―modo de

desdobrar visualmente as descontinuidades do tempo da obra em toda a sequência da história‖

(DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 474). O que difere de uma criação artística sequenciada, pois

o seu procedimento heurístico ―não cessa de se desdobrar, como um tecido, um pano‖

(JORGE, 2012, p. 127). Conferindo operacionalidade ao legado da historiografia de Warburg,

ávido estudioso dos movimentos migratórios das imagens e da dinâmica de suas

transformações, Didi-Huberman busca os pontos de conexão do trabalho das imagens com o

trabalho do tempo. Modo também de repensar a eficácia do deslocamento constante dos

planos de ação circunscritos à imagem.

Detenhamo-nos em duas passagens elucidativas do envolvimento de nosso autor com a

idéia de montagem:

Acredito que todo o meu trabalho é guiado por uma intuição fundamental

sobre a imagem como ato e como processo e não como um mero objeto. É

por isso que insisti tanto nos últimos anos sobre a questão do olhar, daí o

meu uso de descrições fenomenológicas "abertas", contra a leitura

iconográfica e contra o deciframento de uma suposta "substância" da

imagem praticado por muitos historiadores da arte. Diante das imagens,

devemos convocar verbos para dizer o que elas fazem, o que elas nos fazem,

não apenas adjetivos e substantivos para acreditar dizer o que são ... é

preciso considerar a imagem como imaginação, isto é, como processo de

formação de imagens (DIDI-HUBERMAN, 2010c, p. 52).

[...] É preciso inventar uma nova forma de coleção e exibição. Uma forma

que não fosse classificação (que consiste em pôr juntas as coisas menos

possíveis, sob a autoridade de um princípio de razão totalitária) nem

bricabraque (que consiste em juntar as coisas mais diferentes possíveis, sob a

autoridade do arbítrio). É preciso mostrar que os fluxos são feitos apenas de

tensões, que os feixes amontoados acabam explodindo, mas também que as

diferenças desenham configurações e que as dessemelhanças criam, juntas,

ordens não percebidas de coerência. Nomeemos essa forma uma montagem

(DIDI-HUBERMAN, 2013a, p.399 e 454).

Em face do motivo da montagem, convém mencionar o trabalho de curadoria de Didi-

Huberman para a exposição Atlas¿Cómollevarelmundoacuestas?. Ocorrida no Museu Reina

Sofia, entre 26 de novembro de 2010 e 27 de março de 2011, não se fez ali uma

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reuniãoqualquer de artistas, nem uma coletânea em torno de um tema arbitrário, como parece

ser atônica da expografia contemporânea. Para entendê-la, cumpre esclarecer o que ―atlas‖

significa; e o que significa, para a experiência visual, ―aproximar uma escultura anônima

romana de um Atlas (49 d.C.) de outra de Bruce Nauman (1970), expor diários de Jacob

Burckhardt, de Meyer Schapiro, de Bertold Brecht ou um atlas geográfico cortado por

Rimbaud aos oito anos de idade‖ (JORGE, 2012, p. 135). Comecemos desta segunda

necessidade: aproximar imagens que, a princípio, não teriam relação segundo uma filogênese

das formas artísticas. De certa forma, é algo que desarma o olhar. Tal proposta diverge

daquela esperada de um curador: organizar filiações. A sistematização dos objetos expostos é

intempestiva – contínuos recomeços reconfiguram o que se entende por espaço expositivo,

investindo-o de novas intencionalidades. O curador, a seu modo, também ensaia: testa novas

formas de exposição, monta e desmonta, experimenta. Ora, ocorre que por vezes ele desiste,

desmonta tudo, remonta. Didi-Huberman defende, no catálogo da exposição, a prerrogativa

ensaística de ―voltar a partir do zero: repensar as coisas de A a Z. Aprender de novo, sem

descanso, começando pelas coisas de aparência mais simples‖ (DIDI-HUBERMAN apud

JORGE, 2012, p. 136). O curador-ensaísta, ao sentir necessidade, inventa novas regras do

jogo: entre o alvoroço infantil e a elaboração austera de um ambiente pedagógico, reconvoca

algo da gaia ciência nietzchiana.

Como as imagens nunca são únicas, mas plurais, sempre que se colocam diferentes

imagens numa mesa há liberdade para se modificar sua disposição, em favor de novas

analogias e trajetos de pensamento (HUAPAYA, 2016, p. 112). Exemplo de uso eficaz da

diversidade das imagens seria o que fez Bertold Brecht em seu Arbeitsjournal e no álbum

Kriegsfibel (ABC da Guerra), analisados por Didi-Huberman em

Quandlesimagesprennentposition:L’oeildel’histoire,1. Quando exilado da Alemanha nazista,

Brecht recortava imagens de jornais e revistas e produzia, por colagem, novas composições.

Com isso, conferia às fotografias jornalísticas diversa forma de legibilidade. Em lugar de

documentarem um momento histórico, elas induzem novas reflexões, diferentes daquelas

suscitadas em sua origem. A modificação da ordem das imagens fazia com que as imagens se

posicionassem – isto é, assumissem um ponto de vista, abandonassem qualquer possibilidade

de postura neutra, pretensão do jornalismo. Nesse processo, a mesa de trabalho jamais seria

usada para classificações definitivas, para inventários ou catalogações, mas presta-se a

segmentar e fragmentar a imagem, talvez o próprio mundo visível, em respeito a sua

multiplicidade e heterogeneidade (HUAPAYA, 2016, p. 112).

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Assim, a propósito de uma página do Arbeitsjournal de Brecht (fig.15), lê-se

ainterpretação que propõe Didi-Huberman:

Tudo, de fato, parece rompido, quebrado, sem relação. (...) Contrastes,

rupturas, dispersões. Mas tudo se quebra para que se possa justamente

aparecer o espaço entre as coisas, seu fundo comum, a relação desapercebida

que os reúne apesar de tudo, quer seja em uma relação de distância, de

inversão, de crueldade, de nonsense. Há sem dúvida no Arbeitsjournal de

Brecht algo daquela "iconologia dos intervalos" que Warburg por tanto

tempo desejou estabelecer. Por exemplo, quando, em 15 de junho de 1944,

Brecht monta lado a lado três imagens onde vemos, primeiro o Papa Pio XII,

em um gesto de bênção, depois o Marechal Rommel estudando um mapa de

guerra, e, finalmente, uma vala comum nazista na Rússia. O efeito de

dispersão deve ser pensado, nessa montagem, em termos de uma cruel

coincidência, ou mesmo de uma concomitância. Estes três eventos separados

no espaço são, de fato, exatamente contemporâneos. Eles procedem da

mesma história. Sua montagem mostra como um líder religioso abençoa o

mundo apenas para lavar as mãos das injustiças que ele ignora; como as

mãos levantadas do papa fazem eco à baqueta que Rommel aponta com

autoridade sobre o mapa, indicando provavelmente o lugar onde ele quer

atacar; e como a esses dois gestos de poder (religioso, militar), respondem os

gestos de sofrimento e de lamento daqueles que não têm mais nada, essas

mulheres russas que desenterram e beijam tragicamente seus mortos (DIDI-

HUBERMAN,2009, p.78).

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Figura15:PáginadoArbeitsjournaldeBrecht

Pensar posições de imagem implica pensar o lugar (o locus ou topos). A imagem

cujaposição vê-se jogada na mesa do historiador é imagem de uma topologia. A mesa é uma

forma de atlas: forma de ver e de percorrer o mundo associando diferentes pontos de vista. No

atlas, reconfiguramos o espaço, fronteiras se deslocam, continuidades se rompem. Talvez seja

uma forma de pensar o espaço, não como uma área reconhecível iconograficamente, mas

como território que se pode recortar, desmontar, reconstruir ... desterritorializar. Eis um

pensar que se dá por montagem. Não por acaso essa forma de pensamento nasce durante a

Segunda Guerra Mundial. Nesse período de destruição de fronteiras, de recomposição do

espaço, de diásporas e de invasões, de ocupações e de extermínios, o espaço não poderia ser

pensado como estável. A instabilidade política e social do mundo ocidental, numa época

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emque a própria continuidade da história era posta em dúvida (era dos fins: da história, da

arte,do humano, da aura, do Ocidente), faz com que a montagem seja a única forma viável de

reagir às ―tragédias históricas‖ do tempo. É o que nos conta o comentador:

Toda a geração que viveu o entre-guerras – Bertolt Brecht, Georg Simmel,

Aby Warburg, Marc Bloch, Franz Kafka, Marcel Proust, Igor Stravinsky, o

próprio Walter Benjamin – criaram e pensaram por montagem. Muitos

artistas adaptaram esse ponto de vista da montagem como forma de reação

às tragédias históricas do seu tempo no qual, cada vez mais, a montagem

ocupou o papel central: as fotomontagens de John Heartfield nos anos 1930,

nos diários de trabalho de Brecht e na história do cinema de Jean-Luc

Godard. Didi-Huberman demonstra como o próprio tempo se torna visível na

montagem de imagens (HUAPAYA, 2012, p. 113).

Ver o tempo: sua passagem, como forma de legibilidade da imagem, não é contínua. O

que passa será sempre visual, sintomal. Trata-se do tempo como presença, do tempo visto no

presente. É tomando posição, também temporal, que a imagem se dá a ler; mas, imaginada,

ela resulta daí como montagem de fragmentos heterogêneos. O tempo presente, diante do

olhar, rearranja o passado para vislumbrar o futuro, para saber o futuro, pois o ver (voir) é o

caminho do saber (savoir) e pode também prever (prevoir) os momentos históricos e políticos

que vivemos (HUAPAYA, 2012, p. 113).

As montagens de Brecht entendiam antecipar acontecimentos. Suas montagens teatrais,

de modo geral, foram inspiradas por seus diários de trabalho, repletos de clichês visuais. Esses

recortes, reorganizados, remontados, ganhavam nova configuração. Seu trabalho era

diretamente relacionado com o fato de ele não estar em sua terra natal. Lemos em Didi-

Huberman que a prática da montagem exige certa operação de distanciamento, até mesmo

físico, do objeto de conhecimento. Brecht foi um exilado: ele via, pois, do ponto de vista de

um estrangeiro. Poder-se-ia dizer, então, que ocorre na literatura brechtiana uma inversão dos

postulados cenográficos inerentes à história da arte vasariana, humanista, esta que organiza

objetos visuais procurando identificar famílias de imagens, familiaridades entre imagens. Ver

do ponto de vista do exilado é tomar partido pelo diferente, pela diferença, é negar o familiar,

o similar, o convencional. Ao estrangeiro, nada é identificável – até mesmo sua identidade

está distante. Toda imagem que o cerca dissocia-se de sua memória visual. Assim,

a imagem, como a palavra em Didi-Huberman e Brecht, são como armas que

estão nos campos dos conflitos, ela carrega um dispositivo de violência ao

revelar toda a ideologia do fascismo, ou quando expõe o povo com seu rosto

nos museus e fotografias como zoos humanos do holocausto (HUAPAYA,

2012, p. 119).

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Convoque-se agora Godard, esse mestre da montagem fílmica, para enriquecer

acaracterização da prática do historiador. É o que faz Didi-Huberman em PasséscitésparaJLG

. Ali, uma vez mais, o que lhe importa é essa renuncia antecipada à compreensão global que

advém da forma-montagem. O pôr em desordem, o caráter destruidor, como princípio formal.

Em Godard, é isso na forma de uma inquietação. Didi-Huberman cita a passagem em

―Montage mon beau souci‖ (1956) que a protocola no que ele diz ser sua ―fragilidade fatal‖:

Se pôr em cena é um olhar, montar é um batimento de coração. Prever é

próprio de ambos, mas o que um procura prever no espaço, o outro o procura

no tempo. Suponhamos que você perceba na rua uma jovem que lhe agrada.

Você hesita em segui-la. Um quarto de segundo. Como transmitir essa

hesitação? À questão: ‗Como abordá-la?‗ responderá a encenação

(miseenscène). Mas para tornar explícita esta outra questão: ‗Vou amá-la?‗,

é forçoso conferir importância ao quarto de segundo durante o qual ambas

nascem. [...] Vê-se por este exemplo que falar de encenação é

automaticamente falar ainda e já de montagem. Quando os efeitos de

montagem prevalecem em eficácia sobre os efeitos de encenação, a beleza

desta se verificará dobrada, de seu encanto o imprevisto desvelando os

segredos por uma operação análoga àquela que consiste nas matemáticas a

colocar uma desconhecida (uma incógnita) em evidência. Quem cede à

atração da montagem cede também à tentação do plano curto. Como? Fazendo do olhar a peça mestra do seu jogo. Combinar [aproximar] sob um

olhar é quase a definição da montagem, sua ambição suprema ao mesmo

tempo que sua sujeição à encenação. É, com efeito, fazer se destacar a alma

sob o espírito, a paixão por detrás da maquinação, fazer prevalecer o coração

sobre a inteligência, destruindo a noção de espaço em benefício daquela de

tempo ( GODARD apud DIDI-HUBERMAN, 2015d, p.38).

Afirma-se, com esta passagem, a importância e a fragilidade da

montagem:combinação feita, a um só tempo, sob um olhar e sob o ritmo do batimento do

coração. Toda montagem estaria sempre submetida a dupla condição: a da estratégia, do

cálculo, do previsível; e a do não-saber, do improvável, do golpe de sorte e seus riscos. O lado

estratégico da montagem diz respeito aos modos de se por em evidência uma ―incógnita

desconhecida‖; o lado do não-saber se refere a uma situação de aventura, ou desventura,

peripécia, como os que envolvem os jogos imponderáveis do amor. Godard compara o

aspecto aleatório da montagem com um flerte: não haveria como prever a passagem de uma

jovem na rua, nem que ela acabaria por agradar a seu olhante; não haveria como prever que se

saberá como abordá-la, muito menos que será capaz de amá-la em seu devido tempo.

Encontrar aquela que se nomeia a ―desconhecida‖ é assumir o risco do improvável, encanto

ou decepção. Por fim, entre a ―incógnita matemática‖ e a ―incógnita erótica‖, Godard joga

novamente com as palavras na tentativa de tornar mais evidente a dupla dimensão,

calculadora e poética, da montagem, interposta entre ―paixão da ciência‖ e ―ciência da

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paixão‖ – a não se esquecer do versocélebre de Malherbe, ―grande calculador de frases‖,

citado pelo cineasta (sob distorções,como sempre, mas ainda sobre os infortúnios do amor,

―fluxo e refluxo dos ‗golpes/aproximações do olhar‘‖: ―Beleza, minha bela inquietação, de

que a alma incerta / Tem, como o Oceano, seu fluxo e refluxo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015d,

p. 38-39).

Razão, pois, para surpreender o cineasta em sua mesa de trabalho, entre a figura

exemplar da ―desconhecida posta em evidência‖ (Lilian Gish) e aquela outra desconhecida

(Augustine), corpo convulsionado advindo da escandalosa intimidade sexual de crises

histéricas, ao final do século XIX. Momento em que o conhecimento encontra-se com o

desejo: Gish oferecida ao vento e ao olhar dos cinéfilos no filme célebre de Griffith;

Augustine oferecida à aurahysterica e ao olhar dos médicos (fig. 16). Encontros: Griffith com

Charcot, cinema com ciência, Medicina com Arte. Eis aí a fecundidade intrínseca da

montagem, toda a sua exuberância potencial: no livre gesto de multiplicar as figuras, de

recombiná-las, de produzir novas associações – produzir então novas ideias, hipóteses,

fantasias imaginativas, mas, da mesma forma, produzir saberes autênticos. Deste modo, a

montagem seria uma forma de se ter acesso à conjunção do desejo de conhecimento e do

conhecimento do desejo, modo de abrir a noção mesma de domínio em face do inconsciente,

cuja fecundidade inesgotável (produtor incansável de metáforas e metonímias, condensações e

deslocamentos, lapsos e chistes) reconhece e experimenta as potências da figurabilidade. Nas

trocas que o inconsciente faz proliferar entre formas verbais e formas visuais, destaca-se todo

o poder de combinar o rigor do conhecimento com a intensidade da paixão, modo de não se

distinguir cabalmente o real do imaginário, o vivo do fantasmático (DIDI-HUBERMAN,

2015d, p. 41-43).

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Figura16:J.-L.Godard,VideogramasdeHistoire(s)ducinéma,1988

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MOVIMENTODASIMAGENS:SABERDOSESPÍRITOSEDOSFANTASMAS

É recente a reiterada ocorrência do nome de Warburg nas pesquisas acadêmicas

emhistória da arte. Fala-se em uma ressurgência ou redescoberta da obra warburguiana a

partir dos trabalhos de Agamben e de Didi-Huberman, e não se deixa de reconhecer nisso algo

de uma ―intensidade inédita‖ (LISSOVSKY, 2014, p. 306). Ainda que desde o ensaio de

Carlo Ginzburg (1989) as referências a Warburg só tenham aumentado, não deixa de

surpreender que seus trabalhos estejam sendo descobertos tão tardiamente. Didi-Huberman é,

reconhecidamente, um dos mentores dessa ―virada warburguiana‖ na história da arte atual.

Todavia, não seria exagero dizer que parte de tal renome se deva ao fato de ele ter se

deslocado da paisagem francesa da teoria da arte para fontes em língua alemã (principalmente

Benjamin, Carl Einstein, Brecht, Nietzsche e Freud). Nesse tocante, Roland Recht (2012, p.

36) lembra que apenas em 1990 surgiram alguns artigos de Warburg publicados em francês.

No prefácio de AbyWarburgetl’imageenmouvement, Didi-Huberman registra que este livro,

escrito por seu ex-aluno, Philippe Alain-Michaud, é ―o primeiro livro dedicado a Aby

Warburg em língua francesa‖ (DIDI-HUBERMAN apud ALAIN-MICHAUD, 2013, p. 18).

A Didi-Huberman parece que o fundamento filosófico e problematizante do pensamento

warburguiano provocava nos franceses, até os anos 90, certa ―alergia infalível‖ (caso

emblemático de Focillon) ou simplesmente uma recusa (como o teria feito André Chastel), o

que os fariam recorrer ao ―pensamento mais sistemático‖ de Erwin Panofsky, apoiados pelo

movimento estruturalista.

No cenário brasileiro, caberia ressaltar rico testemunho dado por Stéphane Huchet

(2013, p. 1-2), que menciona a ―predominância de uma iconologia tradicional‖ nos

historiadores de arte brasileiros como efeito de um verdadeiro ―panofskyanismo‖. Em sua

opinião, o que legitimaria ―maior tolerância à história da arte tradicional‖, seguida de

―ausência de maiores preocupações epistemológicas a seu respeito‖, seria a exigência, ainda

por se fazer, da escrita de uma ―história da arte brasileira‖. Sem anterior ―campo de base‖, ou

―rico e denso estofo de conhecimentos historiográficos‖ precedentes (o que é tradicional na

França há mais de um século), não nos seria possível o desenvolvimento de uma história da

arte ―de caráter didi-hubermaniano‖, ainda mais em sua notável aproximação do método

criado por Warburg.

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Ao procurar coincidências nas obras de Riegl, Wölfflin, Panofsky e Warburg,

RolandRecht sugere um primeiro tipo de agrupamento: Warburg com Panofsky, por terem o

mesmo interesse no conteúdo das imagens; e Riegl com Wölfflin, por se voltarem para a

questão da forma; não obstante, ao empregar, como segundo ponto de convergência para

relacionar essas quatro figuras, a questão do método, teríamos: Wölfflin com Panofsky, pois

estes historiadores investigaram as obras de arte tentando remontar a época em que a obra fora

produzida; e Warburg estaria próximo a Riegl, pois as maneiras de ambos fazerem

historiografia da arte os tornariam ―contemporâneos de seus contemporâneos‖ (RECHT,

2012, p. 60), ou seja, em suas práticas, eles tentariam analisar as obras de arte do passado por

meio de questões levantadas pela arte produzida no presente. Isto significaria remeter aos

problemas, debates e discussões próprios das vanguardas artísticas do início do século XX.

Agamben acrescenta (2009, p. 132-133) que Warburg recusava a história da arte de

seu tempo e almejava uma pesquisa interdisciplinar. Distante das fronteiras estabelecidas

pelos domínios da Estética, Warburg teria criado uma ciência de tal maneira contemporânea e

inovadora que nem mesmo um nome a ela pôde ser atribuído. Tal ―ciência sem nome‖

caracterizava-se pela inquietude, constante construção, instabilidade, e não seria descabido

dizer que estaria ainda por ser descoberta.

Etienne Samain lembra (2011, p. 32), além disso, que o método desenvolvido por

Warburg relaciona-se intimamente com o trabalho daqueles que alçaram a antropologia à sua

condição moderna (Alfred Gell, Levy-Strauss, Marcel Mauss, dentre outros). Trata-se de

momento crucial para a modernização do pensamento científico, com profunda revisão de

seus pressupostos epistemológicos, e de igual desconstrução de concepção já antiquada de

Kultur, culminando em forma outra de realizar estudos culturais, e, dentre eles, os estudos da

imagem.

Didi-Huberman, por sua vez, não deixa de relacionar o trabalho de Warburg com as

incertezas de seu momento histórico, quando do avanço do nazismo na Alemanha e da

possibilidade de eclosão de outra guerra em escala mundial como a que Warburg tinha visto

entre 1914-1918 (DIDI-HUBERMAN, 2010c, p. 60). Se o descontentamento com o

positivismo, com o cientificismo e o emprego da técnica da bricolagem, aliada da estética da

montagem, foram efetivamente termos comuns às vanguardas artísticas, então se pode dizer

que Warburg, apesar de nunca ter escrito textos sobre arte contemporânea, esteve ao lado dela

no modo de pensar e reconstituir os problemas pictóricos da arte do passado.

Apesar de Warburg ser considerado o criador da iconologia, fica evidente que

Panofsky levou toda a fama e reconhecimento. Seu livro EstudosdeIconologia, publicado

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em1939 e escrito nos primeiros anos de seu exílio nos EUA, tem ―uma importância

estratégicapara os herdeiros de Warburg, da Biblioteca e do Instituto‖ (LISSOVSKY, 2014, p.

308). Demonstra severo esforço em sistematizar e exemplificar o método warburguiano. Ele

inaugura ali a leitura da imagem em três níveis, o que se tornou, durante décadas, o modo

predominante de se interpretar imagens: pré-iconográfico (motivos identificados pela

experiência); iconográfico (alegorias, conceitos, temas); e iconológico (valores simbólicos,

estilo de época, intuição sintética). Esses três níveis seriam ―aspectos do mesmo fenômeno, e

não esferas independentes‖, fenômenos regidos pelos ―hábitos mentais‖ presentes em toda

cultura, formando ―relações subordinadas a uma homologia que é, antes, de natureza lógica e

estética‖ (LISSOVSKY, 2014, p. 309).

Panofsky transformou a iconologia binária de Warburg numa dialética hegeliana,

ternária, solucionada (ou simplificada) pelo terceiro nível de leitura, que representa a síntese

dos outros dois. Pois Warburg não teria ido além de apresentar sintomas, aporias, tensões

entre contrários, bifurcações figurativas: texto versus imagem; movimento versus paralisação;

forma versus conteúdo; Antiguidade versus Renascimento (LISSOVSKY, 2014, p. 306-307).

De modo que ―o acesso a Warburg dependeria de uma recusa da tradição e de uma volta às

origens‖, pois o historiador de Hamburgo estaria escondido ―como o anão no relato do

autômato enxadrista evocado por Benjamin em suas teses sobre a história‖ (LISSOVSKY,

2014, p. 311). Todos esses problemas resultaram na situação atual em que o fundador da

disciplina iconológica já não é um ―pai legítimo‖, como sustenta Didi-Huberman, e seu

questionamento teórico também não lhe reconhece a posição fundadora de Warburg. O

contexto germânico e original da iconologia a aproximava de uma Kulturwissenschaft (ciência

da cultura), algo bem mais complexo do que a ―história social da arte‖ que Panofsky lhe

atribuiu no contexto anglo-saxão (DIDI-HUBERMAN apud ALAIN-MICHAUD, 2013, p.

18).

Didi-Huberman acredita que Warburg seja o responsável por colocar a história da arte

―em movimento‖. Na verdade, o motivo mesmo do ―movimento‖ seria o tema central da obra

warburguiana. No prefácio ao livro de Alain-Michaud, Didi-Huberman divide essa

problemática em torno do movimento em três perspectivas: a das imagens em movimento; do

saber em movimento; e a do conhecimento por montagem. Tentemos seguir seu raciocínio. O

tema da imagem em movimento evocaria o motivo ressurgente da imagem da Ninfa. Para

Agamben, Warburg nomeia como Ninfa, dando fé a certas fontes literárias, ―a aparição da

figura feminina em movimento, em vestes flutuantes, tomada de empréstimo dos sarcófagos

clássicos‖ (AGAMBEN, 2009, p. 138). As ninfas, estudadas primeiramente por Warburg

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emsua tese sobre APrimavera e ONascimentodeVênus, de Botticelli, serviriam para mostrar

deque maneira esse pintor se confrontava com as ideias veiculadas em sua época acerca dos

antigos. Suas investigações acabaram por lhe mostrar que artistas do Quattrocento apoiavam-

se em Pathosformeln clássicas ao necessitarem representar um movimento intensificado.

Chegar a essa constatação revela ainda o ―pólo dionisíaco‖ da arte clássica, exposto em suas

linhas gerais por Nietzsche. Ao surgir nas pinturas de Botticelli, a ninfa mostra-se como um

sintoma do ―profundo conflito espiritual na cultura da Renascença‖, em sua dificuldade de

conciliar ―a descoberta dos Pathosformeln clássicos, sua carga orgíaca e o cristianismo‖ numa

espécie de ―equilíbrio carregado de tensões‖ (AGAMBEN, 2009, p. 138).

Em sua monografia sobre a Ninfa de Warburg, Agamben analisa outras vertentes do

tema. Respondendo à carta de um amigo que lhe perguntava o que é e de onde vem a ninfa

pintada por Ghirlandaio na capela de Tornabuoni, Warburg escreve que ela poderia sido tanto

uma ―escrava tártara libertada‖, ―um espírito elementar‖ ou uma ―deusa pagã no exílio‖

(WARBURG apud AGAMBEN, 2009, p. 49). Esta última definição inscreveria a ninfa no

contexto da ―Nachleben [sobrevivência] dos deuses pagãos‖ (AGAMBEN, 2009, p. 49).

Todavia, a aproximação entre espíritos elementares e deuses no exílio não teria sido

propriamente uma descoberta. No entrecruzamento de diferentes tradições culturais, a ninfa

―nomeia o objeto por excelência da paixão amorosa‖ (AGAMBEN, 2009, p. 50). Como isso

se dá? Evocando tratado de Paracelso ao qual Warburg teve contato direto, Agamben nos

fornece uma bela análise da ninfa inserida na doutrina dos espíritos elementares. Esses

espíritos poderiam ser definidos por serem semelhantes visualmente ao humano, mas

pertencerem a um ―segundo grau da criação‖. Como não possuem alma, ainda que estejam

sujeitos à morte, esses espíritos não poderiam ser nem homens, nem animais de acordo com a

teologia cristã primitiva. E como possuem corpo, não poderiam nem mesmo serem definidos

como espíritos. Estariam acima dos animais, mas abaixo dos humanos, sendo pura e

absolutamente ―criaturas‖. Mover-se-iam como espíritos (não andam, mas dançam, flutuam),

diferentemente dos homens, mas diferentemente também dos espíritos, precisariam comer,

beber, possuiriam sangue e carne. O triste destino dessas criaturas produziu uma espécie de

compaixão amorosa em Paracelso: apesar de tão parecidos com os humanos, possuem uma

vida totalmente animal, o que leva Agamben a relacioná-los com a condição do povo judeu na

era cristã. Dentre esses espíritos, a especificidade das ninfas advém do fato ―que elas podem

receber uma alma, se elas se unirem sexualmente a um homem e gerarem com ele um filho‖

(AGAMBEN, 2009, p. 52). Paracelso retoma antiga tradição que associa as ninfas ao ―reino

de Vênus‖ e à ―paixão amorosa‖. Essa deusa seria, na verdade, ―rainha das

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ninfas‖(AGAMBEN, 2009, p. 53), condenadas a serem procuradas e a procurar pelos homens,

aserem desejadas e a desejá-los. Criadas à imagem do homem e não à de Deus, criadas como

imago, como objeto de desejo, de procura, de olhar, as ninfas mantém com o homem relação

ambígua. Para Agamben (2009, p. 54), elas representariam ―a história da difícil relação entre

o homem e suas imagens‖.

Didi-Huberman, por sua vez, desdobra a questão da diferença no modo de andar dos

humanos e dos espíritos elementares. Se os humanos andam, os espíritos elementares dançam.

Warburg, em suas primeiras pesquisas, atentou para a questão do ressurgimento do ―gesto

intensificado‖ na pintura do Renascimento, especialmente quando ―o passo se transformava

em dança‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 219). Nietzsche teria sido o primeiro a notar que o

gesto natural converteu-se em ―fórmula plástica‖: o andar, o passar, o aparecer tornou-se

dançar e rodopiar. Para Didi-Huberman (2013a, p. 219), a ideia de Pathosformel, ao fazer a

devida menção a Nietzsche, foi desenvolvida por Warburg como forma de lidar com a graça

feminina do movimento da ninfa, movimento revestido de ―intensidade coreográfica‖ durante

todo o Renascimento. Warburg imaginava que o pintor renascentista queria fixar, por meio do

movimento dos cabelos e do drapeado das ninfas, o deslocamento do pathos das imagens. A

favor dessa hipótese, Didi-Huberman (2013a, p. 220) evoca o clássico DePictura, de Leon

Battista Alberti, onde os movimentos de cabelos e de roupas na pintura são tidos na mais alta

conta. O ―efeito gracioso‖ da roupa colada ao corpo, quase deixando transparecer o corpo nu

debaixo do tecido, em contraste com o outro lado, onde os panos se agitam com o vento e se

desdobram no ar, também era composição muito valorizada pelo teórico quatrocentista. A

partir disso, Didi-Huberman (2013a, p. 220) define a ninfa como ―a heroína do encontro

movente/comovente‖: um lado comove, estimula, excita o olhar; e o outro se move, dança,

trança o tecido, revolteia-se. A ninfa, ―mulher-vento‖, encarnaria dupla condição: aérea e tátil;

serva dançarina e deusa poderosa. Para a ocorrência desse ―belo paradoxo‖, bastaria, segundo

Alberti, ―fazer soprar um vento sobre uma bela figura envolta em drapeados‖. Portadora de

um tipo de ―magia das dobras‖, as ninfas reuniriam ―duas modalidades antitéticas do

figurável: o ar e a carne, o tecido volátil e a textura orgânica‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p.

220).

As Pathosformeln warburguianas são apaixonadamente retomadas na obra de nosso

autor. Essas fórmulas respondem à questão pensada por Warburg a respeito de quais seriam as

formas corporais do tempo sobrevivente. Se, como sugere Didi-Huberman (2013a, p. 167), o

que marca a vida de um corpo é a capacidade de produzir movimento (ainda que

involuntário), então as sobrevivências marcariam outro gênero de vida: a vida do que não

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énem totalmente vivo nem totalmente morto. A Pathosformel acompanha a maneira como

osmodelos antigos de representação do movimento externo sobreviveram no homem

moderno. Trata-se de um problema perfeitamente atual, ao qual responde uma ―arqueologia

figurativa‖. As ninfas ocupam aí um papel de destaque: são fórmulas de representação do

pathos trágico. Em sua ―orgia de movimentos‖, elas representam o ponto alto da ambição

filosófica de Warburg, e por que não dizer, também a mais alta aspiração da historiografia de

Didi-Huberman: fornecer um modelo dialético e crítico do duplo regime da imagem, vigente

nas próprias montagens de contradições que constituem as imagens. ―A Pathosformel,

portanto, seria um traço significante, um traçado em ato das imagens antropomórficas do

Ocidente antigo e moderno: algo pelo qual ou por onde a imagem pulsa, move-se, debate-se

na polaridade das coisas‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 172, 173). Tempo, forma e vida

misturam-se na representação das ninfas.

Seguindo o legado de Warburg, Didi-Huberman anseia por ―pensar a imagem sem

esquematizá-la‖. Os estilos e as hierarquias de gênero não se mostram capazes de encontrar o

que Cassirer dizia ser ―as formas eternas da expressão do ser do homem‖. Isso não seria

possível nem mesmo a um olhar atento às forças móveis das imagens. Didi-Huberman admira

em Warburg seu trabalho de ―historiador das singularidades‖, distante de um ―pesquisador das

universalidades abstratas‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 174). A ele pertenceria a

capacidade de perceber que as grandes energias configuradoras das imagens estão

―diretamente nas formas‖, mesmo que seja em um simples detalhe da imagem. Ora, Didi-

Huberman entende ser o historiador dos ínfimos detalhes, daquilo que a história da arte

convencional deixa passar em branco. Ele olha atentamente para o detalhe, pois ali crê

encontrar a indissolubilidade entre forma e conteúdo, a imbricação de cada coisa com seu

contrário, de cada obviedade com sua dúvida. Mesmo porque ―as intricações mais

inquietantes concernem à história e à temporalidade, elas mesmas, pilhas de trapos, se me

atrevo a dizê-los. Amontoados de tempos heterogêneos‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 175).

As Pathosformeln de Warburg, verdadeiros ―fósseis em movimento‖, são o ―paradoxo

constitutivo‖ do Renascimento italiano. São detalhes, fragmentos, mas que remontam à vida

de toda uma época. São paradoxais, pois os movimentos da vida que essas fórmulas nos

trazem chegaram até nós por meio de exumações, ou seja, por meio da morte, do fóssil, do

resto. Esse paradoxo, curiosamente, parece presente na contemporaneidade: quanto mais ela

se imagina moderna, criativa, inovadora, mais ela retorna às primeiras imagens, à criação dos

gestos e dos símbolos ―primitivos‖, à infância da humanidade.

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Movimento parece ser o tema central das pesquisas realizadas por Warburg sobre

asimagens renascentistas. Ele produziu diversos materiais resultantes de suas investigações

(notas, diários, desenhos, esquemas, rascunhos), mas uma das produções mais significativas

para a compreensão do movimento presente no pensamento warburguiano talvez seja a

KulturwissenschaftlicheBibliothekWarburg (KBW). Pouco antes da ascensão dos nazistas ao

poder, a biblioteca foi transferida para Londres, onde hoje permanece na forma do

WarburgInstitute. Em sua forma original, quando ainda se localizava em Hamburgo, ela

possuía quatro níveis, ou seções, relacionados entre si e que devem ser pensados como

―marcas de uma dinâmica de conjunto‖. Sua ordenação programática visava a criação de ―um

espaço capaz de reunir, de fomentar e de prover a constituição de uma ‗ciência da cultura‗―

(SAMAIN, 2011, p. 34). Tendo em vista o breve comentário de Samain a respeito da

biblioteca, parece-nos que o frequentador podia iniciar sua visita de uma área destinada à

Imagem, onde encontraria livros relacionados, dentre outros temas, com as ―expressões

figurativas‖; e concluiria sua passagem pela biblioteca de estantes elípticas na área destinada à

Ação, ―topo imperativo de todo trabalho intelectual‖, referência à inevitável ―tomada de

posição‖ que é exigida de todo aquele interessado pela ―História do Mundo‖ (outro modo,

talvez, de se reportar à ―ciência sem nome‖) e suas complexidades (SAMAIN, 2011, p. 35).

Diga-se que os livros não obedecem a uma disposição cronológica e nunca foram catalogados

a partir do nome dos autores. Em constante movimentação, a biblioteca organiza-se por uma

espécie de ―lei da boa vizinhança‖ a confiar numa ―capacidade que os livros teriam de se

relacionar uns com os outros e, sobretudo, de despertar no leitor perspectivas, cumplicidades,

conivências e correspondências heurísticas cada vez mais ricas‖ (SAMAIN, 2011, p. 35). Nas

palavras de Fritz Saxl, era objetivo da biblioteca ―fazer com que o estudante percebesse as

forças da mente humana e suas histórias‖ (SAXL apud SAMAIN, 2011, p. 35). No edifício da

biblioteca, constituiu-se um ―espaço de questionamentos‖, espécie de ―labirinto operacional

do conhecimento‖ ou, retomando termo deleuziano caro a Didi-Huberman, um ―espaço

rizomático‖, onde todo acesso é pautado por uma ―desorientação ordenada‖ (SAMAIN, 2011,

p. 35). É no interior da sala de leitura da KBW que se localiza o projeto maior da obra de

Warburg, e pelo qual ele é rapidamente identificado: o AtlasMnemosyne.

Agamben acredita que ―Warburg foi provavelmente conduzido a escolher esse

estranho modelo por sua dificuldade pessoal de escrever‖. Afirmação controversa, visto que o

filósofo não esclarece o sentido da palavra dificuldade : Warburg não se sentia capaz de

escrever ou desconfiava da escrita como forma de expressão?. A nós importa, sobretudo, que

o formato do Atlas (pranchas revestidas de tecido preto, com fotografias dispostas), talvez

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sedeva ao ―desejo de encontrar forma que, ultrapassando os esquemas e os modos

tradicionaisda crítica e da história da arte, teria sido finalmente adequada à ‗ciência sem

nome‗ que ele tinha em mente‖ (AGAMBEN, 2009, p. 137).

Warburg define o Atlas como ―uma história de fantasmas para adultos‖. Objeto

voltado para o público adulto, mas que possui formato típico de uma bricolagem infantil, ,

trata-se de um modelo epistemológico que merece atenção especial dos historiadores da arte e

demais estudiosos das imagens. Nas palavras de Agamben, o Atlas era um ―gigantesco

condensador recolhendo todas as correntes energéticas que tinham animado e animava ainda a

memória da Europa, tomando corpo em suas fantasias‖. Como um tipo de "atlas

menmotécnico", era intenção que o observador europeu pudesse, simplesmente ao olhar para

as imagens dispostas nas pranchas recobertas de tecido preto, "tomar consciência da natureza

problemática de sua própria tradição cultural" e ser assim capaz de tratar o fundo sociocultural

de suas próprias contradições e esquizofrenias, o que acabaria por creditar ao atlas uma

função autoeducadora (AGAMBEN, 2009, p. 138) e acrescentaríamos, curativa. Talvez isso

se justifique porque, diferentemente de imagens expostas em museus, o atlas de Warburg não

possui legendas explicativas de seus percursos de leitura. Didi-Huberman entende que,

enquanto a KBW formava uma espécie de "armadura textual", o atlas era a "armadura visual"

do pensamento de Warburg (DIDI-HUBERMAN apud SAMAIN, 2011, p. 36). Ao colocar as

imagens do atlas nas ilhargas da biblioteca, Warburg talvez imaginasse que as imagens

pudessem entrar em diálogo no tempo e no espaço de uma longa história cultural ocidental,

ou, ainda, pudessem ser confrontadas com a " grande arquitetura dos tempos e das memórias

humanas".

O atlas forma um "autêntico quebra-cabeça" de temporalidade complexa, pois é

imagem única (a prancha em si é um todo, uma imagem) formada de imagens outras, que

remetem a tempos heterogêneos, "sobrevivências" de memórias visuais que interrogam nosso

tempo presente (SAMAIN, 2011, p. 39). Assim, o atlas faz mais do que repensar a trama do

tempo das imagens do passado, faz mais do que dar novos contextos e lugares de leitura às

imagens: é instrumento de análise do presente, crítica e reviramento dos estratos e sedimentos

que compõem o mundo que todos nós carregamos às costas - o mundo do saber, do acúmulo

de conhecimento, das diferentes culturas. Tanto que não se pode negar o fato de que, tal como

é, o atlas só pôde ser possível graças à reprodutibilidade técnica das imagens por meio da

fotografia. Trata-se do objeto anti-aurático por excelência, pois se serve de um dispositivo

visual que potencializa a diáspora de imagens, seus deslocamentos. Composto de

reproduções, de duplicações, de pequenos fantasmas das imagens (fantasmas para adultos),ele

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em nada se ocupa com fatos da autenticidade; ele privilegia, antes, a eficácia da montagemde

objetos heterogêneos, postos à mesa como num "tabuleiro de jogo de xadrez, [ cujas peças]

vão começar a se mover" (SAMAIN, 2011, p. 39). Ali, todos os movimentos são potenciais,

mas; como tempos cristalizados, são suspensões do ato, momentos de espera, promessas de

deslocamento.

Imagens são atos, memórias e visões, conflagração dos tempos, emaranhado de

questionamentos e de conflitos. O AtlasMnemosyne foi "como um grande poema visual capaz

de evocar ou de invocar com imagens as grandes hipóteses que proliferam no resto de sua

obra" (DIDI-HUBERMAN, 2010a, p. 60) - fusão ou promiscuidade entre imagem e texto.

Além de anamnese dos problemas iconológicos warburguianos, o Atlas funciona ainda como

matriz de novas questões, pois sua forma aberta e mutável lhe proporciona a condição de

ferramenta de trabalho de recursos inesgotáveis. O nome "atlas", lembra Didi-Huberman,

provém de um gênero epistêmico utilizado desde o Renascimento, principalmente na

cartografia, mas não somente, visto que a forma atlas subsiste em diversas outras atividades.

O vocábulo remete etimologicamente ao titã mitológico de mesmo nome. Conta-se que fora

condenado por Zeus a carregar nos ombros todo o peso do globo terrestre. Carregar equivale

metaforicamente a carregar todo o peso do conhecimento produzido na superfície do planeta.

Saber como punição: tragédia, punição do destino. A figura emblemática do deus agoniado,

em esforço sobre-humano para cumprir com sua penitência, é marca do peso terrível da

memória. O atlas Mnemosyne, tal como a triste divindade que o inspira, responde com um

método epistemológico específico ao sufocante acúmulo de conhecimento da humanidade.

Ele alegoriza uma "polaridade fundamental": a tragédia (monstra) em oposição ao saber

(astra); por extensão, todas as polaridades da imagem são por ele convocadas - forma e

conteúdo; presença e ausência; superfície e profundidade. Polaridades em movimento, em

recíprocas transformações de um no outro (um-no-outro, Ineinander, a prancha como

trança/trama, pano intersticial): "múltiplas polaridades", propõe Didi-Huberman (2010a, p.

65), ou, em termos benjaminianos, imagem dialética. O atlas comporta imagens, saberes,

visões, mas também, no mesmo gesto, suporta acúmulo, sobrevivência e desaparecimento,

memórias e conflitos. O atlas é a história de uma punição tomada como única forma de

redenção do método historiográfico: saber trágico, certamente, mas, saber imenso, as pranchas

de Mnemosyne apontam para a secreta coerência da proliferação de imagens - seus devires e

seus deveres. Indagamos: suas eficácias?

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ANACRONISMOEHISTORICIDADE:TEMPODASIMAGENS

Ao analisarmos as implicações teóricas da crítica feita por Didi-Huberman ao

métodoiconológico de Panofsky, observamos que elas nos conduzem a um questionamento

mais extenso sobre o conceito de tempo empregado em geral pelos historiadores. No capítulo

de abertura de Diantedotempo, Didi-Huberman apresenta a seu leitor o ponto talvez mais

complicado, o grande nó teórico do trabalho do historiador: o anacronismo. O ponto de vista

por ele sustentado é claro: a história da arte é uma disciplina fundamentalmente anacrônica.

Esta tem sido uma de suas teses mais controversas. Ao se deparar com os problemas

epistemológicos dos afrescos de Fra Angelico em Florença, nos fins dos anos 80, Didi-

Huberman vê-se obrigado a repensar tudo o que se havia entendido por tempo relativamente

às imagens. E ressalta que seria preciso considerar como parte da acepção de temporalidade

da imagem o que nela se processa de permanência, sobrevivência, transformação, movimento.

Daquela experiência inicial, além de diversos artigos, surgiu o livro sobre Fra Angelico e,

posteriormente, Diantedaimagem, que trata de desdobramentos de questões metodológicas

abertas pelo livro anterior. Anos depois deste, Didi-Huberman retorna ao afresco que tanto o

desconcertou. Fassado um período daquele contato inicial com a imagem, faltava-lhe pensar o

próprio tempo: o tempo da imagem (sua existência de mais de quatro séculos) e o tempo que

se passou desde a primeira experiência diante da imagem. Para Didi-Huberman, este não é um

tempo passado, mas uma espécie de "presente reminiscente" ainda não terminado (DIDI-

HUBERMAN, 2015b, p. 16). Pois estar diante de uma imagem, por mais antiga ou

contemporânea que seja, é ver o presente e o passado não cessarem de se reconfigurar. Ele

admite que uma imagem provavelmente sobreviverá a nós e que, diante delas, nós é que

somos o elemento de passagem. No alto de seus quatrocentos anos, quantos já não teriam

pousado o olhar diante do afresco de Fra Angelico? Quantos já não se incomodaram com o

branco ofuscante do fundo? Quantos julgamentos já não foram emitidos contrariamente ou a

favor de alguma característica da pintura? Mas o afresco ali permanece e, salvo qualquer

catástrofe histórica, ali permanecerá, para ser, em outras oportunidades, julgado, analisado,

admirado, rechaçado. Deste modo, se somos o "elemento de passagem", o afresco é o

"elemento da duração"; em decorrência disso, ele é também como o "elemento do futuro",

pois toda imagem "tem frequentemente mais memória e mais futuro que o ser que aela olha"

(DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 16).

A perspectiva convida a uma maior humildade diante das imagens, convida a largar o

―hábito pretensioso do especialista" de pensar que pode ser capaz de dizer tudo sobre

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umaimagem. Enquanto testemunha "ocular" do passado, que presenciou a passagem do

tempo, oafresco pode ser considerado, metaforicamente, um cronista dos tempos. ―Como estar

à altura de todos os tempos que essa imagem, diante de nós, conjuga em tantos planos?‖,

Didi-Huberman (2015b, p. 16) questiona-se. Talvez essa deva ser a questão maior para todo

historiador da imagem. Se somos tão frágeis, se cada um de nós tem um período de vida tão

curto em comparação à existência de uma imagem antiga, como dar conta de tudo o que ela

pode nos dizer? Como dar conta dessa potência de dizer, dessa potência de produzir e de

ramificar diferentes sentidos? Didi-Huberman refaz essa questão tomando o ponto de vista do

presente: "como dar conta do presente dessa experiência, da memória que ela convocava, do

futuro que ela insinuava?" (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 16). Vemos aqui que é a questão

do instante que marca o embate entre os tempos do historiador e da imagem. Essa relação

heterogênea, conflitante, quase de um desencontro, ou de um encontro mediado pelo

acidental, é talvez o que marca a essência do trabalho do historiador. É nesses termos que

entendemos o que ele quer nos dizer quando afirma que "sempre, diante da imagem, estamos

diante do tempo" (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 15). Diante do afresco de Fra Angelico não

estamos diante de uma figura que explica a si mesma, ou que aguarda apenas que

encontremos as chaves que abrem as portas de seus mistérios. O simples ato de afirmar "estou

diante de um Fra Angelico" já implica uma série de escolhas filosóficas, muitas das quais o

historiador irrefletidamente toma partido (DIDI-HUBERMAN, 2013c, p. 13). Dizer ainda que

se está diante de um afresco que representa a cena bíblica da Anunciação abre indevidamente

o problema suscitado pela imagem. Como, então, submeter-se a seu mistério figural? Como

uma imagem pode ser eficaz para nós se ela nos supera temporalmente, se seus significados e

usos estão em constante modificação no tempo? Parece-nos que a postura adotada por Didi-

Huberman é modo de trabalhar com os limites epistemológicos da historiografia, modo de

refazer modestamente as questões, de reformulá-las de acordo com cada caso particular, de

abrir mão da necessidade de saber, de responder a todas as dúvidas; lançar-se ao trabalho,

simplesmente, sem a pretensão (ou angústia) de encerrá-lo apoditicamente.

Como em toda pesquisa acadêmica, Didi-Huberman começa por analisar documentos

referentes a seu objeto de estudo. O afresco em questão é o que se pode dizer de um objeto

―bem documentado‖, pois há vasta literatura sobre ele. Mas causa-lhe assombro que um

objeto tão intimamente misturado à iconografia religiosa não tenha sido ―nem olhado, nem

interpretado, nem mesmo entrevisto na imensa literatura científica consagrada à pintura do

Renascimento‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 17). Parece-lhe que a pintura de Fra

Angelicoé vítima de certa ―condição de cegueira‖, de uma ―vontade de não ver‖, de não saber,

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de umaverdadeira ―denegação‖. Não se encontram as razões epistemológicas que

fundamentariam anegligência com que a história da arte tratou, por séculos, a parte inferior da

Madonadassombras (fig.17). Didi-Huberman estaria autorizado, portanto, a se referir àqueles

atributos iconográficos como ―extraordinário fogo de artifício colorido‖. Esses ―fogos‖

queimam, por assim dizer, as certezas do método e do estatuto científico da história da arte.

Abrem uma fissura no teor de ciência histórica que essa disciplina possa sonhar em ter. Uma

questão se abre, um sintoma surge. Em contrapartida, Didi-Huberman (2015b, p. 18) tenta

―restituir uma dignidade histórica‖ de um artista que não merece ser relegado ao segundo

plano da história por aqueles que se julgam capazes de selecionar quem deve ou não ser digno

de memória.

Figura17:LaMadonnadelleOmbre[detalhedospainéisinferiores],1438-1450

A proposta é a de deslocar e complexificar as coisas, requestionar as chavessimbólicas

que se mantiveram tradicionalmente em uso pelos historiadores da arte como herança (ou

ranço) panofskyana. O que significa perguntar pelos sentidos dos termos ―alegoria‖, ―fonte‖,

―assunto‖; indagar, uma vez mais, o que constitui o pano de fundo de toda análise iconológica

de imagem. Ao assim proceder, o historiador questiona a própria ideia de representação em

virtude de uma semiologia que não se quer nem positivista nem estruturalista. Gesto que ele

resume como uma ―arqueologia crítica da história da arte‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p.

17), exigência aberta por Foucault à disciplina histórica geral que aqui se procura desdobrar

para o caso particular da história da arte.

Parar ―diante do pano‖ do afresco é parar diante do tempo. É interrogar o objeto

―história‖, a própria historicidade. É tentar ―estabelecer uma arqueologia crítica dos modelos

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de tempo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 19). É, em suma, repensar cada gesto

dohistoriador, cada humilde escolha, desde o uso de fichas catalográficas, até algo mais

extensoe filosófico como suas escolhas de tempo, seus ―atos de temporalização‖. De nossa

parte, acompanhamos a escolha de Didi-Huberman (2015b, p. 19) por iniciar sua leitura do

que lhe parece ser ―a evidência das evidências: a recusa do anacronismo‖. Ao dizer que

recusar o anacronismo é evidente, ele nos alerta para a necessidade de abrir os olhos a uma

prática tão comum, tão majoritária entre os historiadores que chega a ser uma espécie de

―senso comum‖ ou de um consenso. Antes de tudo, um ―senso‖, uma percepção, uma

intuição. Em termos talvez mais diretos: um tabu, algo que o historiador médio não questiona.

Em Diantedaimagem, Didi-Huberman (2013c, p. 9-15) já havia se demorado em demonstrar o

quanto a certeza, no que diz respeito às imagens, não tem razão de ser. Parece exigência de

toda imagem que nos demoremos diante dela, uma suspensão de todas as conclusões, e

alguma modéstia metodológica que não permita a pretensão do conhecimento certo e acabado.

Para além de qualquer evidência há aquela das incertezas, a paradoxal constatação da evidente

dúvida. Em Diantedaimagem, evidencia-se a dúvida sobre as formas, sobre as semelhanças,

sobre os aspectos e sobre as significações. Em Diantedotempo, a dúvida recai sobre o

conceito de tempo, sobre os pressupostos metodológicos da história, sobre o trabalho do

historiador. A impossibilidade de se saber tudo sobre uma imagem e saber tudo sobre o seu

tempo, sua época, por si só deslegitima qualquer "regra de bom senso" do historiador (DIDI-

HUBERMAN, 2015b, p. 19). Procurar por uma "fonte de época" não deve constituir uma

"atitude canônica‖. A própria justificativa de que reconstruir o tempo em que o artista viveu é

uma prerrogativa para se compreender os sentidos que ele quis dar à sua obra implica uma

série de problemas metodológicos a serem recolocados em pauta; da mesma forma cumpre

tratar o entendimento de que a compreensão última de uma obra de arte deve-se ao desvelar

de intencionalidades de sua ―criação‖.

Ilegítima é à idéia de uma fonte de época em ―consonância eucrônica‖ com a obra

investigada. A esse respeito, Didi-Huberman evoca a análise de Fra Angelico feita por

Michael Baxandall em L’oeilduQuattrocento. Ali, Baxandall alude ao julgamento

pronunciado por Cristóforo Landino acerca do beato de Florença argumentando ser esta uma

referência ―historicamente pertinente‖ ou ―fonte específica‖. Considerando-se do ponto de

vista de uma macrohistória, de fato Landino e Angelico pertencem à mesma época, o baixo

Renascimento; mas na perspectiva de uma microhistória, a distância entre os dois é imensa.

Sequer são contemporâneos, pois, entre o afresco e o texto de Landino há uma defasagem de

30 anos. Além disso, há diferenças em outras esferas (formações teológicas distintas,

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conhecimentos diferentes do latim, prováveis interpretações diferentes das passagens

bíblicasconcernentes à anunciação). É provável que Landino sequer tenha posto os pés no

conventode São Marcos. De maneira que colocar lado a lado o afresco e o julgamento é não

observar consonância temporal do objeto para com sua fonte e produzir cisão no tempo

própria de um ―verdadeiro anacronismo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 21).

A concordância dos tempos quase não existe. Essa afirmação fere os preceitos de uma

disciplina que se esforça por dividir obras em ―fases‖ do autor; em agrupar seus objetos de

interesse por épocas; em compreender a própria arte como relação evolutiva entre técnica e

―ferramenta mental‖; em julgar obras como visionárias (à frente de seu tempo) ou decadentes

(antiquadas, fora de seu tempo). Com base no princípio de ―estilo‖, Fra Angelico foi proscrito

do Renascimento por não corresponder ao vigente na época. Em vez da vaga fundamentação

estilística, Didi-Huberman usa o considerado erro maior do historiador para ―interrogar a

plasticidade fundamental‖ do afresco. Ao assim proceder, o anacronismo lhe serve como

forma de analisar ―a mistura dos diferenciais de tempo operando em cada imagem‖ (DIDI-

HUBERMAN, 2015b, p. 23). De modo que não há sentido em discutir se Fra Angelico era

pintor ajustado ou não a seu tempo, pois esse ―tempo‖ não existe homogeneamente; entre

ritmos e choques, ele é trama, imbróglio, emaranhado de temporalidades.

Cumpre pontuar que o afresco da Anunciação e o julgamento de Landino são

exemplos que talvez pareçam demasiadamente ajustados ao argumento desenvolvido por

Didi-Huberman. Em sua defesa, sustentamos a hipótese de que a questão, para ele, é sempre a

imagem – não a imagem como um todo, mas como trama complexa de particulares e, como

tal, ―altamente sobredeterminada em face do tempo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 25). Ao

falar de imagem, ele nos fala de algo que ―se abre em várias frentes ao mesmo tempo‖, e que

por esse motivo abre ―um leque de possibilidades simbólicas‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p.

24). O anacronismo mostra-se aqui soberano: tempos heterogêneos entrecruzam o tecido

representativo das imagens como verdadeiras ―constelações‖ – pedaços de presente e

possibilidades concretizadas ou impossíveis de futuro que se condensam no presente

reminiscente do olhar do observador. De modo que a sobredeterminação do tempo implica

uma ―dinâmica da memória outra‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 25), a constituir o

princípio funcional daquilo que sobrevive e, ao mesmo tempo, se transforma com o passar do

tempo. O anacronismo é, pois, fecundo ao colocar em trabalho todos os tempos envolvidos no

jogo historiográfico – o tempo do sujeito do historiador, seu presente reminiscente, sua

experiência do olhar; o tempo da imagem, suas sobrevivências, estratificações, sua memória e

transformações; e o diálogo entre ambos, as intertextualidades e os deslocamentos de sentido.

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113

Entre o historiador e a imagem, subsistem paradoxos, um ―mal-estar no método‖:

aemergência do objeto histórico como fruto de um momento anacrônico bem poderia

serentendida como um sintoma no saber histórico (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 27).

A distância entre olhante e olhado, que Benjamin pensou em termos de aura, Didi-

Huberman repensa no sentido de uma sobredeterminação do objeto visual, retomando a ideia

de montagem de tempos heterogêneos. É essa distância que o terá distanciado das práticas

tradicionais dos historiadores da arte e o aproximado do pensamento daqueles que perceberam

no anacronismo sua fecundidade própria: Benjamin e Warburg. O pensamento por montagem

e o deslocamento do objeto histórico são operações epistemológicas com as quais Didi-

Huberman atualiza a história da arte no agenciamento fantasmático do passado.

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114

ANACRONISMOEMEMÓRIA:ACONTRAPELODAHISTÓRIADAARTE

O historiador audacioso não deve temer o risco de cometer anacronismos:

essaproposta de Nicole Loraux parece por um momento esquecer que nunca é fácil caminhar

contra a corrente. E a corrente predominante defende que o anacronismo é um erro a ser

evitado. O anacronismo seria como a linha que impede o discurso do historiador de invadir o

território destinado à ficção. Didi-Huberman reconhece que o anacronismo ―modifica

completamente a face das coisas segundo o valor de uso que queremos lhe dar‖ e pode, ainda,

―cair num delírio de interpretações subjetivas‖, pois ―revela imediatamente nossa

manipulação‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 38). A grande dúvida que o anacronismo nos

deixa seria: como utilizá-lo devidamente para que ele evidencie novas objetividades

históricas, em vez de servir aos interesses daqueles que querem manipular a história para

manipular as massas. Quais seriam então as precauções a serem tomadas antes da adoção do

anacronismo com via de acesso ao conhecimento histórico?

É preciso, quiçá, compreender o tempo sob outro ponto de vista que não aquele do

tempo cronológico da ciência. Marc Bloch já dissera que a ideia do passado como objeto de

ciência soa absurda, porque ele não pode ser entendido como um fenômeno preciso e natural

(2015b, p. 39). O passado não possui existência em si, não fornece matéria para um

conhecimento racional. O historiador não pode constituir como objeto de ciência algo tão

impuro, subjetivo e, por vezes, ilógico, inexato. Para se fazer história, seria preciso abrir mão

da exatidão do passado e aceitar o trabalho com suas impurezas. O tempo impuro, aberto,

sujeito a várias interpretações, não é o tempo físico, objetivo, mas o tempo da memória.

Pensar o tempo da história da arte como memória permite ao historiador compreender que o

saber por ele construído pode ser constituído de uma poética e que, com isso, ele deixa de ser

um historiador para se tornar um poeta. Não se trata de abdicar de produzir história, mas de

humanizar o tempo. É entender que a história deve ser tomada como rememorativa e

mnemotécnica (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 41), psíquica e não científica. Além disso, é

entender que seus anacronismos não são erros, mas ―efeitos de montagem‖. A diferença entre

história como ficção e história como saber dos acontecimentos reais não pode ser mantida até

o fim, pois que muitas vezes o literário é documento histórico incontornável, assim como o

saber histórico das imagens vez ou outra precisa recorrer à imaginação. Trata-se de uma

mudança de paradigma ou de expectativa: é não esperar da história da arte um conhecimento

exato, preciso, do que foi, mas uma referência, talvez, para ajudar a compreender o presente e

prever o futuro. Isso acabaria por inverter o fluxo normal da prática do historiador. Em vez

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115

deolhar para o passado e esperar ver algo acabado, seria olhar e procurar nele o futuro ou

umaforma de presente desdobrado.

Estamos próximos do que Benjamin queria declarar com a expressão ―tomar a história

a contrapelo‖. Com ela, ele retomou o problema da historicidade como tal, ao contradizer

violentamente os modelos de temporalidade de sua época, herdados do historicismo do século

XIX. Historiador radical, porém solitário, Benjamin não hesitou em escrever a um amigo que

a história da arte não existe: afirmação abrupta motivada pela convicção que a vida histórica e

as obras de arte não podem ter a relação que historiadores acreditavam haver. Não significa

dizer que a história da arte não deva existir, mas que ainda não havia sido feita até então em

seu sentido próprio de ―história das próprias obras‖, como ressalta Didi-Huberman (2015b, p.

103). Com esta pesada crítica a todo um nicho do saber muito bem enraizado na Academia, já

era de se esperar que Benjamin não tivesse frequentação aberta nos círculos sociais ocupados

pelos historiadores. O que talvez explique porque ele ainda não tenha sido acionado

devidamente pela historiografia da arte. A tímida relação entre a filosofia benjaminiana e a

história da arte não impede a constatação de que há ali claras reformulações de certos

problemas metodológicos, como aquele da oposição entre conteúdo e forma ou entre causa e

efeito, oposições falaciosas, pois tratadas como eternas jamais poderiam servir de tema de

estudo histórico (2015b, p. 103-104).

Didi-Huberman justifica que Benjamin tenha aludido à inexistência da história da arte:

na verdade, ela ainda não teria sido elaborada dignamente. A insatisfação de Benjamin com a

história da arte acadêmica levou-o a procurar refúgio em historiadores da arte mais instigantes

tais como Warburg, com o qual rapidamente se identificou, pelo fato de ambos serem

estudiosos isolados, sem cátedra. Ao definir Warburg como um ―sábio senhorial‖, tipo

inaugurado por Leibniz, Benjamin admite o abismo socioeconômico existente entre ambos, de

maneira que sua proximidade para com ele não poderia ser outra senão intelectual: ambos

colocaram a imagem no centro nervoso da vida histórica (2015b, p. 106) e compreenderam a

necessidade da elaboração de novos modelos de tempo. Warburg apreende o tempo em

termos de ―polaridade‖; Benjamin, em termos de ―dialética‖; mas ambos reconhecem a

temporalidade como dotada de uma ―dupla face‖, anacrônica e sintomal (2015b, p. 107).

Contemporâneos, Benjamin e Warburg colocaram paralelamente em prática seus projetos

epistemológicos. Ambos esgarçaram com isso os limites teóricos do conceito de tempo em

direção a paradoxos constitutivos de radicais novidades. Quanto ao aspecto sintomal de seus

conceitos de temporalidade, ambos se ocuparam do caráter sobredeterminado, aberto e

complexo dos restos, dos fragmentos, dos detalhes inobservados. O saber histórico

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116

assimpreconizado via na montagem paradoxal de elementos descartados e elementos

―nobres‖oportunidade de flagrar a vida histórica das imagens em seu movimento anacrônico

(2015b, p. 107).

Benjamin e Warburg implicam para Didi-Huberman o referencial teórico necessário

para contornar a acepção do anacronismo como erro e para projetar novas heurísticas da

imagem calcadas na metodologia da montagem. Esta permite romper com o continuum da

história o que, de certo modo, a liberta da neurótica procura por datação, nomeação e

classificação. A história da arte, sob tal metodologia, assemelha-se a um jogo, dada a sua

―sequência rítmica de movimentos, de saltos‖ (2015b, p. 114). A história datada, pontuada

pelos epígonos, não se movimenta, não permite que seus referenciais saiam de seu lugar

histórico. O saber assim construído se processa pela passividade, como transmissão (e não

debate) da imagem para o historiador e do historiador para o texto, sem possibilidade de troca,

de retorno. O saber agenciado por Benjamin, a contrapelo do historicismo, mostra-se repleto

de quedas e de irrupções, de movimentos, de conflitos. Nesse ponto de vista, o presente é

reminiscente e o passado surpreende o presente no instante de seu encontro; esse momento de

tensão entre presente e passado mostra que o tempo não pode ser um contínuo, nem a história

um saber fixo. O passado (Outrora) encontra o presente (Agora) no tempo atual de sua

recognoscibilidade. Esse modelo dialético de compreender os fenômenos históricos renuncia

ao secular modelo do progresso histórico. Recusa toda forma de orientação para o saber

histórico, toda narrativa causal e todo processo contínuo. Certamente parecerá caótico demais

para o historiador que atribui ao tempo das imagens uma sucessão bem orquestrada de

declínios e decadências. Benjamin, por sua vez, enfatiza que não há épocas de decadência

(2015b, p. 114-115). O historiador deveria então aprender a lidar com as descontinuidades e

anacronismos do tempo. Ele deveria, como o faz Didi-Huberman, entender e processar de

uma vez o que Benjamin queria nos dizer com a fórmula de que cada objeto de cultura deve

ser pensado como objeto de barbárie. Essa relação leva a entender que a ideia de progresso

histórico deveria ser pensada como a catástrofe da história. A contrapelo, portanto, do saber

histórico positivista, a história da arte avançará sempre em direção às ruínas, aos restos, ao

regresso, pois ―os fatos do passado não são mais coisas inertes a serem encontradas, isolados

(...) eles se tornam coisas dialéticas, coisas em movimento‖ (2015b, p. 116). De modo que o

passado nos surpreenderá diante de nossos olhos no presente, ao exigir de nós um trabalho de

rememoração, de reconstrução. Tal noção de passado como ―fato de memória‖ se apresenta

como a radical novidade de que o passado talvez possa, literalmente, ser construído no

presente do historiador.

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117

III

EFICÁCIAPOLÍTICADASIMAGENS

―[...] as imagens da arte, por mais violentas que sejam, têm a

inocência e mesmo a virtude conjuratória das condutas

miméticas, secundarizadas, sublimadas, enfim, pacificadas.

[Há uma] intrínseca relação da imagem e da crueldade, uma

intrínseca violência da imagem, tudo o que a torna,

fundamentalmente, impacificável: capaz de nos desmentir, de

nos olhar, de nos tocar, de nos assombrar, de nos devorar‖.

(Didi-Huberman,

LaRessemblanceinformeoulegaisavoirvisuelselonGeorgesBat

aille)

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118

EFICÁCIADAIMAGEM-COMBATE

Ao se falar em política na obra de Didi-Huberman, entendamos bem: não há que

sefalar das mazelas do jogo político-partidário, não há que se perder tempo com as

frivolidades tacanhas das disputas pelo poder no alto escalão. Como um bom benjaminiano,

interessa-lhe a política para aqueles em que o estado de exceção é a regra, a política sob o

ponto de vista dos oprimidos, para aos quais os temas e os termos do debate são outros.

Interessa-lhe, portanto, o discurso daqueles historiadores da arte vítimas das catástrofes da

História, oprimidos pelos algozes da estética. Por esse motivo, iniciaremos este capítulo

acerca da eficácia política das imagens evocando a breve análise em Diantedotempo da obra

do historiador da arte alemão Carl Einstein. Acreditamos que a figura controversa, estranha e

―inatual‖ de Einstein (inatual, pois à frente de seu tempo e inacessível a nosso tempo) nos

permitirá calcular melhor a relação intricada entre imagem e política, uma vez que no meio

dessa conexão está a história, que nunca foi um campo pacífico do conhecimento. Assim,

nada melhor do que um historiador que ―historiciza a marteladas‖ (DIDI-HUBERMAN,

2015b, p. 184), a golpes de violentas fórmulas paradoxais que sufocam, constrangem o leitor

positivista, para nos dar o alcance crítico dessa temática.

Carl Einstein (1885-1940) foi poeta, historiador, teórico da arte; um judeu alemão

marcado pela perseguição nazista, assim como Benjamin; tornou-se conhecido pela pesquisa

sobre a arte africana e por tê-la usado como modo de repensar a produção ocidental de arte e

sua história; enveredou-se, deste modo, pelas sendas de uma antropologia filosófica ou de

uma etnologia visual. Participou ativamente da revista Documents, editada por Georges

Bataille entre 1929 e 1930, e nela contribui com artigos sobre a escultura africana em suas

relações com o cubismo, subvertendo o entendimento comum da História da Arte segundo o

qual os cubistas teriam ―se inspirado‖ na arte africana, notadamente nas máscaras, para

produzir suas formas. Para Einstein, pensar a arte cubista não se confunde com pensar a

mentalidade de uma época interessada em exotismos e primitivismos. Desde o início ele

acreditava que a compreensão das imagens de arte nunca poderia se satisfazer com um saber

específico, um saber legitimado por seu próprio fechamento disciplinar. De maneira que ele

torna necessário superar a divisão traçada apriori entre a arte cubista como objeto de estudo

da História da Arte e a arte africana como objeto de estudo da Etnologia. Só então seria

possível entender o choque entre o cubismo e a arte da África: choque que se dá como um

relâmpago dialético, produtor de constelações de imagens. Portanto, para Einstein cumpriria

―compreender que a tarefa autêntica de uma história da arte – compreender as imagens da

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119

arte–significacompreenderaeficáciadessasimagenscomofundamentalmentesobredeterminadas,

ampliadas, múltiplas, invasoras‖. Somente então as imagens seriam capazes de nos apaixonar,

o que não ocorreria caso fossem ―eficazes somente sob o aspecto limitado de sua

especificidade histórica ou estilística‖. As imagens exigem, pois, serem experimentadas sob

todos os aspectos do pensamento.

Essa argumentação talvez justifique porque a escrita de Einstein parece de certa forma

imprecisa, fragmentada, lacunar. Ele próprio assumia não falar de modo sistemático (2015b,

p. 243). Mas a falta de sistematicidade então se justificava por uma espécie de urgência

solicitada por seu próprio tempo. Einstein entendia não poder se dar ―ao luxo‖ de pensar

sistematicamente – ou, em outras palavras, em termos exclusivamente teóricos –, pois, em

meio a tudo, vicejava uma ―catástrofe cotidiana‖. Diante dessa condição, não haveria tempo

para se pensar em especulações ou em abstracionismos lógicos. Neste breve exemplo da

escrita einsteiniana, em Negerplastik, o texto em ritmo acelerado parece ansioso por chegar à

ideia principal:

Há alguns anos, vivemos na França uma crise decisiva. Graças a um

prodigioso esforço da consciência, percebeu-se o caráter contestável desse

procedimento. Alguns pintores tiveram suficiente força para se desviar de

um métier feito mecanicamente; uma vez desligados dos procedimentos

habituais, eles examinaram os elementos da visão do espaço para encontrar o

que bem a poderia engendrar e determinar. Os resultados desse importante

esforço são bastante conhecidos. Naquele momento descobriu-se a escultura

negra e reconheceu-se que, em seu isolamento, ela havia cultivado as formas

plásticas puras. Costuma-se qualificar como abstração o esforço desses pintores; impossível,

no entanto, negar que uma crítica radical de desvios e perífrases seja o único

meio de aproximar-se de uma apreensão imediata do espaço. Isso, entretanto,

é essencial e distingue fortemente a escultura negra de uma arte que a tomou

como referência e adquiriu consciência semelhante à sua; o que aqui

desempenha o papel de abstração lá é dado como natureza imediata. A

escultura negra revela-se do ponto de vista formal como poderoso realismo

(EINSTEIN, 2008, p. 167).

Em dois parágrafos, Einstein realiza crítica considerável de seu tempo, definida por

elecomo ―crise decisiva‖: com razão, reporta-se à passagem do século XIX para o XX nas

belas-artes. Sem reduzir esse importante paradigma histórico a uma série de datas, fatos e

artistas célebres (lembremos uma vez mais da crítica de Didi-Huberman à história da arte de

linhagem vasariana), ele nos entrega um novelo de temporalidades em movimento.

Expressões tais como ―prodigioso esforço da consciência‖, desligamento dos ―procedimentos

habituais‖, e ―crítica radical de desvios e perífrases‖, ensejam referências furtivas,

tangenciais, talvez imprecisas, mas, dentro da proposta de escrita do autor (mediada

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120

pelaurgência a que ele exigia a si mesmo, tendo em vista a necessidade de se fazer presente

aosfatos políticos de seu tempo), são inferências necessárias e suficientes, com o mérito de

preservarem a complexidade e a irredutibilidade exigida a qualquer análise histórica.

O exercício de sintetização do texto ocorre em tão alto grau que, na revista Documents,

Einstein chega propor o que ele denomina AphorismesMetodiques, de clara inspiração

nietzschiana, como os que seguem:

A história da arte é a luta de todas as experiências ópticas, dos espaços

inventados e das figurações.

(...)

A mesa é uma contração, uma parada nos processos psicológicos, uma

defesa contra a fuga do tempo, e assim uma defesa contra a morte. Poder-se-

ia falar de uma concentração dos sonhos.

(...)

Para transformar [o] espaço em uma função móvel psicológica, seria

necessário primeiro eliminar os objetos rígidos, receptáculos das

convenções: deve-se assim questionar a visão em si mesma.

(EINSTEIN, 1929, p. 32)

Ao escrever sobre temas densos em poucas linhas, Einstein não apenas revela grande

poder de síntese, mas coloca essa habilidade a serviço de sua posição política, pois que lhe

permite ter tempo para pegar em armas em defesa de seus ideais. Desta maneira, enquanto

muitos historiadores da arte se preocupavam com o simples acúmulo de saber sobre as

imagens (estamos falando da era de ouro, digamos, da iconologia), Einstein agia de forma

efetiva contra a catástrofe que se anunciava – como quando se engajou junto aos anarquistas

da guerra civil espanhola.

Uma escrita nada afeita a sistematicidades parece, efetivamente, o reflexo de uma

atuação política. Razão do interesse de Didi-Huberman, dado que ele também se volta mais

para nossos ―monumentos da barbárie‖ do que para nossos ―monumentos da cultura‖. Um

preciso entendimento de história da arte passa aqui a ponderar suas gravidades: ele não mais

será refém do historicismo, que se demora em determinar as circunstâncias mentais a reger as

transformações óticas; ele será, antes, ―luta de todas as experiências‖, eficácia no

entendimento que, como sustenta Einstein, ―toda forma determinada é um assassinato das

outras versões‖ (EINSTEIN apud DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 213).

Interessa a Carl Einstein, e assim a Didi-Huberman, a arte como organismo vivo, atual,

presente. Pois se há, por um lado, aqueles historiadores que, ao recolherem o corpus de seus

estudos, agem como se esperassem tranquilamente a morte de uma arte, há também aqueles

mais vanguardistas que efetivamente arriscam suas vidas ―para que o objeto de seusaber – a

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121

própria arte – permanecesse vivo e livre para inventar suas formas‖ (DIDI-HUBERMAN,

2015b, p. 244). Didi-Huberman define Einstein como ―um historiador da arte judeu alemão

que lutava na Espanha para que a coragem epistemológica encontrasse sua real dimensão ética

e política‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 244). Einstein lutava para permitir que Picasso e

Braque pudessem continuar a decompor a realidade. Idealização? Em todo caso, estamos no

campo da filosofia prática, da ética e da política, distantes de todo tipo de moralismo. De fato,

na escrita de Einstein nada se prescreve, como no campo da moral; nela se procura por uma

harmonia encontrada apenas sob a violência do diferente. Mesmo porque sua postura ética o

leva a se preocupar com a continuidade da história, com a liberdade de inventar, de

transformar. Projeta-o, de modo inequivocamente desesperado, para o futuro.

Didi-Huberman identifica em Einstein dois tipos de desespero: quanto ao objeto e

quanto à escrita. Desespero de não se ter a resposta para a questão: o que é ser historiador? ser

historiador de quê? O que faz precisamente um historiador? Desespero de se ver conduzido

para um conflito contra o irremediável. Em face do objeto, desesperava-o ver que alguns

futuristas aderiram à causa fascista e parte dos expressionistas se envolveu com a ideologia

nazista; desesperava-o ver que seu livro AartenoséculoXX ajudara Goebbels a determinar o

que se considerou como ―arte degenerada‖ pelo governo nazista, enquanto assistia a alguns

surrealistas franceses simplesmente cruzarem os braços e se renderem diante dos fatos. De

modo que, ao perceber seus esforços de pesquisa sendo usados para fundamentar ações

políticas fascistas, enquanto não obtinha respostas para suas dúvidas sobre o trabalho

acadêmico, Einstein se via conduzido para um conflito contra o irremediável. Ele teria se

tornado, na interpretação de Didi-Huberman, algo como um ―apóstolo anacrônico‖: um

historiador-missionário a prenunciar desgraças vindouras. Um desajustado de seu tempo, um

analista do passado que visa interromper a marcha para um futuro sombrio. Einstein bem

poderia representar (aos olhos de Didi-Huberman?) o próprio anjo da história, conforme

alegoria construída por Benjamin a partir de um quadro de Klee:

Há um quadro de Klee que se chama AngelusNovus. Representa um anjo que

parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão

escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve

ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos

uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula

incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de

deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade

sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode

mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao

qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresceaté o céu. Essa

tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 2006, p. 226).

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122

A tempestade-progresso acumula ruínas que, com o tempo, adquirem valor

econômico. Esse valor movimenta o mercado de arte, cuja participação Einstein recusava

terminantemente: passaram por suas mãos obras raríssimas de Braque e Picasso, mas nunca se

dedicou a constituir para si uma coleção, pois entendia que o mercado de arte possuía notável

papel alienante. Para ele, que afirmava que ―a arte basta‖, era impossível suportar a ―vigarice‖

(EINSTEIN apud DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 246) representativa do mundo das galerias e

leilões de obras de arte, espaços nos quais a arte não circula, pois fica retida sob o peso de

valores de troca.

Para que se entenda um pouco melhor essa questão, talvez seja de interesse evocar

outro texto de Benjamin, ―Luís Felipe ou o intérieur‖, constante das Passagens. A tomada de

posição de Einstein em face da privatização da arte está ali exposta em linhas gerais.

Benjamin (2009, p. 59) entende que ―no reinado de Luís Felipe, o homem privado faz sua

entrada na história‖. Pela primeira vez os locais de habitação se encontrariam em oposição aos

locais de trabalho, de maneira que o escritório torna-se um complemento do apartamento,

espaço por excelência do privado. Imerso em seu mundo particular, o homem privado não

pensaria em inserir qualquer consciência de função social em seus interesses de negócios, pois

o social já não lhe dizia respeito. O escritório passa a lhe representar o próprio universo,

espécie de teatro do mundo no qual subsistem, na forma de decoração, apenas lembranças do

passado e de regiões longínquas, o que Benjamin (2009, p. 59) denomina de ―fantasmagorias

do intérieur‖. É nesse espaço que a arte se refugia após a ascensão burguesa. O homem

privado passa a ser o colecionador que nada faz além de idealizar seus objetos, retirando-lhes

o caráter de mercadoria. Ele recusa todo valor de uso das coisas e lhes confere o valor que têm

para o amador. A privatização da arte corresponde à estetização dos objetos de uso e de seus

acessórios, que passam a ser guardados como relíquias (talheres, guarda-chuvas, chinelos,

relógios). No intérieur do apartamento-museu, acumulam-se vestígios de seu habitante, como

ruínas empilhadas. É contra esse imobilismo dos objetos, contra a excessiva

compartimentalização da arte e contra a sua abordagem amadora, sempre pouco

problematizante, que Einstein se revolta. Ele sustenta que a eficácia ética, social, portanto

política, da arte, no âmbito de sua circulação e não de sua privatização, não deveria ser

negligenciada pelo historiador, obrigado a assumir postura ativa diante das falhas desse

processo histórico.

Didi-Huberman, de sua parte, pondera:

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123

seria injusto e nefasto utilizar esse desespero, por exemplo, tirando uma lição

revisionista da ―derrota‖ ou a ―incoerência‖ das vanguardas artísticas do

século 20. Seria negar o que, na obra de Carl Einstein, permanece, sem

dúvida, mais precioso: a constante tensão dialética que anima, arriscando

tudo destruir, cada enunciado estético (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 246).

A própria questão da validade e da forma de cada enunciado estético, em

Einstein,parece passar por essa tensão dialética. O historiador encontrava-se desesperado

quanto à escrita quando deixou em Paris uma grande quantidade de manuscritos inéditos:

escritos confusos, volumosos, assistemáticos. É o que faz um historiador, estima Didi-

Huberman (2015b, p. 246): ―olhar e tentar escrever o que o olhar abre no pensamento‖; ―ser o

escritor de uma experiência que não é narrativa, que permanece suspensa no limiar de uma

experiência espacial e de uma experiência interior‖. O historiador escreve a própria eficácia

da imagem em nosso olhar – tarefa para a qual não cabe qualquer sistematização. Na

diferença entre o quadro e a língua, o historiador borda sobre a experiência visual ao invés de

pensá-la. Seu fito é o de relembrar a todos ―o abismo intransponível que separa a palavra da

imagem‖, bem como o fato que ―um fenômeno óptico jamais se deixa traduzir por palavras de

uma maneira completa ou mesmo suficiente‖ (EINSTEIN apud DIDI-HUBERMAN, 2015b,

p. 248). Assim, o historiador deveria tentar fazer entrar as obras de arte ―na moldura de uma

vista‖, ou seja, de um pensamento visual. Esse pensamento ultrapassa os fenômenos

puramente ópticos e aloca-se na dobra dialética entre ―vista‖ e ―visão‖, ―memória‖, ―noção‖,

―sentimento‖. A partir disso, Einstein cria a categoria do transvisual, cuja consistência parece

a um tempo metapsicológica e antropológica, pois remete à ciência que estuda as diferentes

culturas e sociedades humanas, mas no interior de um espectro de processos psíquicos

complexos. A questão da escrita ocupa posição central aqui: ao mesmo tempo, ela se mostra

fraca e insuficiente, ―manca‖ a reboque dos pintores, mas também apresenta a capacidade de

transformar as sensações do espaço, de fazer da experiência visual o seu próprio sintoma

(DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 248).

Ao comentar a figura einsteiniana, Didi-Huberman parece particularmente marcado

pelo trabalho da língua e na língua. E ele o afirma: eis a condição sinequanon, que toma para

si, para se renunciar à ―petrificação positiva e descritiva das palavras‖, para renunciar à

―utopia barata das alegorias e do lirismo‖, de modo a criar ―uma ligação não óptica das

palavras, tendo em vista a mistura das dimensões do tempo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p.

248-249). Gesto intempestivo, avalia Didi-Huberman, que só se obtém ao preço de um

trabalho na língua materna. Toda a dimensão política da escrita e da língua se acomoda

entãono ―exilado da sua língua e da sua própria cultura‖, condição de existência de

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Einsteinenquanto judeu sem deus, falando alemão na França – escritor sem leitores. Exilado,

afastado à força de sua cultura, ele se afasta politicamente de sua língua. A única resposta

possível a tal estado de fatos históricos são o exílio e o impossível: em paralelo, ele se lança a

engajamentos diversos – junta-se a colunas de resistência, tais como o grupo espartaquista; e

publica textos que lhe rendem, inclusive, uma condenação por blasfêmia (DIDI-

HUBERMAN, 2015b, p. 249). Num fragmento destacado por Didi-Huberman, Einstein

declara: ―não posso mais ouvir o silêncio‖. Palavras dolorosas. O silêncio era amplo: de sua

fala, que não era codificada pelos demais; de sua condição política de exilado (pessoa sem

voz ativa na sociedade, um apátrida sem direito ao enunciado); de sua condição política de

quem percebia o avanço irrefreável do fascismo.

Didi-Huberman nos isenta, porém, de toda comiseração, pois, segundo ele, ―Einstein

foi, mais simplesmente, o homem da recusa de todas as concessões‖ (DIDI-HUBERMAN,

2015b, p. 250). Um ―revoltado por excelência‖, não esperava ser acudido por ninguém. Em

seus próprios termos, ele era ―o pobre‖; queria ser o pobre, pois, para ele, isso significava

poder recusar todas as autolegitimações. Ele não ansiava por nenhum subsídio, nem mesmo

oriundo do prestígio de publicar. Não cobiçava ser aceito como homem virtuoso se abaixo

dele as pessoas pereciam em campos de concentração. Ele enunciava somente crer nas

pessoas que destruíam os meios de sua própria virtuosidade. Não entendia apropriado receber

qualquer estipêndio pelo seu lavor intelectual, pois, se por em prática um saber denotava para

ele ―questioná-lo, deslegitimá-lo‖ para melhor abri-lo, então nunca remataria um

conhecimento acabado, definitivo, que pudesse deter valor preciso. Ele mesmo se incumbia de

por em desuso o próprio saber. E assim entendia o trabalho do historiador: não o acumular

imprudente de conhecimentos, mas o inventar das formas. Inventar formas, se possível

―imagens-combate‖, nos termos de Didi-Huberman, é tarefa que define tacitamente a relação

entre o trabalho do historiador da arte e a política.

Talvez se possa dizer que a imagem seja política por excelência, que ela seja política

desde a origem, mas é o historiador aquele capaz de articular a escrita de forma a oferecer um

veículo eficaz de pensamento para o conteúdo político das imagens.

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125

IMAGEM,EVENTO,DURAÇÃO

A duração se constrói a cada momento na relação entre a história e a memória, mas

estaconstrução esbarra no obstáculo do hábito. Exemplar desse hábito seria nosso ato de olhar

para a televisão em busca de informações. Mas as imagens da TV não seriam elas somente

imagens, simples trechos, extratos de filme? Não estariam efetivamente impossibilitadas de

serem realmente olhadas, portanto incapazes de produzir duração? Didi-Huberman destaca a

obra de Pascal Convert como a proposta de uma experiência diversa da duração (DIDI-

HUBERMAN, 2015c, p. 15). Diante da escultura inspirada em VigíliafúnebrenoKosovo,

fotografia de Georges Mérillon (fig.18), estamos diante de um pan, de um muro branco e

côncavo, cuja curvatura nos atrai e, ao mesmo tempo, nos desvia o olhar; superfície de

desorientação, pois que evocativa de um alabastro, ela deixa penetrar a luz até certa

profundidade, enaltecendo uma espécie de aura. Feita de cavidades, a obra produz experiência

visual complexa, pois constitui a um tempo obstáculo e convite, luz radiante e sombras:

materialidade intangível. Fracassa todo aquele que desejar apreender a obra positivando-a,

pois ela nos conduz às ambiguidades do fenômeno da reprodução fotográfica (DIDI-

HUBERMAN, 2015c, p. 16). A obra de Convert dista de todo clichê, de modo que suas

referências de significação não são facilmente dadas. Algum reconhecimento figurativo torna-

se possível apenas por conta da escala humana das mulheres ali representadas, o que aguça

ainda mais a expressividade da obra. Mais do que mulheres que se lamentam diante de um

corpo morto, trata-se de verdadeiro muro das lamentações repleto de gritos abertos, exibindo

―bocas desgovernadas‖, pois abertas, escancaradas, radicalizadas pelo artista. Ao esculpir a

cavidade do grito, Convert toma posição no antigo debate estético quanto à expressividade da

boca aberta. Contrariando Winckelmann, para quem a boca aberta produz efeito chocante e

aspecto repugnante, o escultor não renuncia à figura, nem à sua expressão.

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126

Figura18:PascalConvert,Lamento,2000

Essa obra interpreta outra imagem, uma fotografia obtida para informar sobre as

doresgritantes da Guerra do Kosovo, em 1990 (fig.19). O exército sérvio fazia frente a jovens

kosovares desarmados em luta pela independência. O fotógrafo jornalístico Mérillon assiste a

alguns embates antes de ouvir falar de uma cidade onde o exército atirou sobre manifestantes

com balas reais, resultando em quatro mortos e dezenas de feridos. Levados pelos habitantes

do local para o velório de um deles, Mérillon realizou rapidamente algumas fotos. Contudo,

elas não receberam de imediato a devida atenção. Foram publicadas por uma revista menor,

depois de serem rejeitadas por outros grandes editores. Talvez o primeiro a retirá-la de seu

ostracismo tenha sido François Mitterrand, que associou a fotografia às telas de Mantegna ou

Rembrandt. Um ano depois de tirada a foto, um júri se reuniu para premiar a fotografia de

Mérillon, levando em conta mais a imagem do que o evento por ela documentado. De

pequeno assunto, passou para foto do ano. Elogiada em seu valor estético excepcional,

reconhece-se nela ―sua capacidade política a sublinhar o quanto este acontecimento localizado

de Nagafc constitui o sintoma de um problema maior e fervente para a Europa que virá. O que

a história não iria infelizmente desmentir‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015c, p. 21). O ―velório

fúnebre‖ torna-se PietàdoKosovo, alcunha cuja autoria que nem mesmo seu autor sabe.

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Figura19:GeorgesMérillon,“Nagafc,29janvier1990.VeilléefunèbreauKosovoautourd

ucorpsdeNasimiElshani,tuélorsd'unemanifestationpourl'indépendanceduKosovo».

Houve reservas quanto a essa denominação, que da mesma forma carimbou outra

fotografia que teria servido de inspiração a Convert, fotografada pelo jornalista Michel

Guerrin, com o nome de LaMadonadeBentalha (fig.20). O perigo desse vocabulário, para

Didi-Huberman consiste em transformar informação em compaixão. Podemos simplesmente

nos satisfazer com os afetos e evitarmos a questão política, mantermo-nos na passividade do

pathos e não cuidar da ação, do ethos. Além disso, ele nos lembra que Pietà e Madona fazem

referência direta à iconografia cristã, quando as realidades referidas por essas duas fotografias

dizem respeito ao mundo muçulmano. Seria possível entender que essa referenciação coloniza

a dor das pessoas por colocá-las ―sob a grade semântica que possuem o Cristo e a Madona por

modelos últimos e explícitos‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015c, p. 22). Tal debate estende-se,

ainda, à questão da proibição da representação pregada pelo Corão, o que poderia

desqualificar ainda mais a iconicidade das fotografias. As simples oposições entre mundo

cristão e muçulmano não dão conta, porém, da complexidade do problema iniciado pelas

fotografias em questão.

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Figura20:HocineZaourar,MadonadeBentalha,1997

As primeiras pessoas a considerarem importante a imagem de Mérillon foram

aspróprias mulheres fotografadas. Assim que o exército sérvio ataca Nagafc, a jovem irmã do

morto enterra as fotografias no jardim de casa: gesto de zelo, de amor, de quem enterra pela

segunda vez o irmão. Por algum motivo, a representação fotográfica fez a jovem muçulmana

contrariar suas convicções religiosas e se apegar a uma imagem; mas seu gesto de enterrar a

foto também desautoriza o simples argumento de ―colonização da dor‖. Na verdade, o

problema é complexo ―porque as imagens implicam uma duração que vai muito além do

tempo que representam ou documentam‖ (DIDI-HUBERMAN, 2015c, p. 22). Seria

necessário verificar o quanto estas imagens funcionam, isto é, sua eficácia testemunhal diante

da dialética do tempo (Benjamin), do emaranhamento cultural de migrações e de

sobrevivências (Warburg), do destino das pulsões (Freud), ou do destino como a essência do

conhecimento ( Bataille).

acontecimento específico, portanto deveria ser pensada a partir da história documentada

por ela; a escultura de Convert oferece devir, densidade, materialidade, monumentalidade e

relevo à fotografia de Mérillon, o que a faz pertencer a lugares diferentes da cultura. Será

incompleto o trabalho de situá-la em contextos precisos (tais como a história dos conflitos

balcânicos; a história do fotojornalismo de guerra; a história da arte contemporânea), pois seu

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129

poder, defato, é o de mostrar tudo o que a história produz além dela mesma (DIDI-

HUBERMAN,2015, p. 23).

‖A imagem é um conjunto de relações de tempos cujo presente apenas deriva‖, assume

Didi-Huberman (2015c, p. 24). Assim, as imagens em questão aludem à urgência de se

colocar a história em confronto com o passado, de se construir a historicidade segundo a

mescla entre memória e desejo. Essa construção passaria pelo pensamento e prática da

montagem, como o que dá sentido ao AtlasMnemosyne de Warburg. Numa de suas pranchas

(nº 42), trata-se do tema da expressão da dor extrema através da iconografia, parte do projeto

warburguiano de compreender as representações ocidentais do pathos (fig.21). Tanto que a

prancha foi precedida de numerosas montagens dedicadas à figura paradigmática da Ninfa.

Sob a lógica dialética que sustenta toda a montagem do Atlas, o tema da prancha, que exibe os

motivos do cadáver deposto, do luto e da lamentação, encontra na Ninfa o seu positivo, sua

plena inversão energética (DIDI-HUBERMAN, 2015c, p. 24). A fotografia de Mérillon e a

escultura de Convert, por sua vez, fariam convocar um vasto atlas de lamentações.

Figura21:AbyWarburg,AtlasMnemosyne,pranchan°42

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Respeitando o caráter eminentemente histórico da imagem, dir-se-ia que é a

própriamontagem que constitui o paradigma de toda construção epistêmica ou estética. Duas

seriam as condicionantes fundamentais da montagem: a repetição, que restitui a possibilidade

daquilo que foi, e a pausa, entendida como interrupção voluntária. Assim, entre repetição e

pausa, o ritmo da montagem se estabelece: ―a montagem é ritmo‖, argumenta Didi-Huberman

(2015, p. 26), .‖capaz de dar o fraseado da história‖. Ela complexifica e musicaliza as coisas,

obscurece a visibilidade, de modo que a imagem passa a constituir uma zona de

indecidibilidade entre o verdadeiro e o falso. Tal proposição pode ser colocada ao lado de

uma crítica generalizada e radical das imagens mediáticas. Seja como for, Didi-Huberman se

questiona: como seria possível a Convert (conhecedor do funcionamento íntimo, técnico e

ideológico da televisão e pessimista político como qualquer um de nós) acreditar na

capacidade das imagens oriundas do jornalismo de abrir o nosso olhar sobre suas próprias

possibilidades, sem recusar toda crítica generalizada, ou sem construir uma duração por meio

da montagem de imagens singulares destacadas do rizoma de suas relações.

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IMAGEM,DELÍRIOPOLÍTICOEGUERRAPSÍQUICA

Desde o início da Primeira Guerra Mundial, Warburg constitui um arquivo

considerávelsobre o evento: recorta milhares artigos, elabora crônicas e desenha a evolução

geográfica do conflito, como as linhas de trincheiras, verdadeiras esquizes praticadas no solo

europeu para consumir a vida de milhões de seres humanos. Didi-Huberman (2013a, p. 319)

se refere ao Warburg daquela época como ―um sismógrafo de tipo burckhardiano‖, pois ainda

registrava sintomas para se proteger deles e diagnosticava esquizes para preveni-las. Entende-

se que o historiador alemão ainda não se posicionava, ou se colocava primeiramente na

defensiva. Se por acaso chegou a participar de revista ilustrada ítalo-alemã acerca da guerra

(publicada em italiano, na Alemanha), era para tentar ―evitar a cisão que espreitava os

intelectuais de ambos os países‖. Ao mesmo tempo, porém, estudou folhetos propagandísticos

da época de Lutero, fundamentando uma iconologia política como novo ramo da história da

arte. Esse conhecimento, crítico e profético, de uma cultura dedicada à violência e ao delírio

paranóico, contradizia sua própria atividade militante na revista. Em meio a suas anotações

sobre a guerra, Warburg começava a se unir aos fantasmas dos mortos em combate, crendo

que, por ter despertado os demônios pagãos do obscurantismo em suas pesquisas sobre a

Nachleben astrológica alemã, ele mesmo era a causa da guerra.

Pouco após o fim do conflito, ―Warburg desenvolve seu desespero como delírio político

[pois acreditava que] os bolcheviques o perseguiam como ‗intelectual capitalista‗ ― (DIDI-

HUBERMAN, 2013a, p. 319-320). Foi internado em diversas clínicas, até ser transferido para

Kreuzlingen em 1921, onde seria tratado por Ludwig Binswanger (eminente psicanalista,

colega de Freud e fundador do sanatório de Bellevue), graças ao qual pôde reemergir do

fundo de seus desvarios. Foi em Bellevue, também, que Warburg teria encontrado a ligação

fundamental entre imagem e sintoma, chegando ao ponto de falar com borboletas,

confidenciando-se com elas como se fossem ―almas amigas‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p.

321).

Não é incomum surgirem borboletas como metáforas da dinâmica política das imagens

e das populações, juntando-se aos vagalumes e às falenas. São insetos frágeis, mas em

mobilidade constante. São insetos que cedem facilmente à queima de arquivo, como lembra

Didi-Huberman:

O fogo que queima a imagem provoca , sem dúvida, "buracos" persistentes,

masé fugaz, tão frágil e discreto como o fogo que queima uma falena que

seaproxima da vela. É preciso olhar demoradamente a dança da falena para

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ter uma chance de surpreender esse curto espaço de tempo. É mais fácil, mais

comum nada ver. Também é bastante fácil tornar invisível o fogo que queima

uma imagem: os dois meios mais notórios consistem, ou "afogar" a imagem

em um incêndio maior, um ato de fé de imagens, ou "asfixiar" a imagem na

massa maior de clichês em circulação. Destruir e desmultiplicar são as duas

maneiras de tornar uma imagem invisível por quase nada, por demasia

(DIDI-HUBERMAN, 2008, p. 67).

Resistir, sobreviver: ao ampliar seu arquivo de imagens, Warburg procura subverter a

iconoclastia da oficialidade alemã de seu tempo (especializada em produzir queimas de livros,

de arquivos, de pessoas). Rabiscando em cadernos, ele busca espaço para construir no seu

mundo psíquico que se desfaz em farrapos. Impressiona o leitor de suas anotações a

recorrência de sintomas, de esquizes gráficas, brechas nas próprias trincheiras da guerra

psíquica de seu autor, verdadeira esquizografia que se move a meia distância entre construção

e destruição. São traços elétricos, violentos, diretos ou contornados, multidirecionais e

contraditórios que desestruturam a página, rompem com todo o espaço da página, destroem

onde é suposto construir (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 323). Ao barrar sua própria grafia,

Warburg libera significante reconhecível como o da cobra-relâmpago, a mesma que ele

encontrou na estadia entre os índios pueblos (fig.22). Marca de uma destruição pela loucura

que é, também, aparelho de construção na loucura. Esse aparelho corresponderia ao

diagnóstico de Binswanger de um ―estado misto maníaco-depressivo‖, patologia

correspondente a uma ―estrutura duplicada em ritmos de estados contraditórios‖. Na mistura

de elementos heterogêneos que constitui o seu estado misto, Warburg investiga maneiras de

exprimir essa dialética dos contrários, desde o Renascimento florentino até premonições do

que a história reservava para as pessoas. Com isso, ―compreende-se melhor por que Warburg

falava do historiador não como um simples escrivão do passado, mas como um ‗vidente‗

[Seher] da totalidade do tempo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 325). Compreende-se,

igualmente, a atração que exerce sobre as propostas historiográficas de nosso autor, por vezes

matizadas de intempestividade.

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Figura22:CléoJurino(informanteindígenadeWarburg).Representaçãocosmológicacomaco

bra-relâmpago[detalhe],1895.

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IMAGENSDASOBREVIVÊNCIA

Em 1982, foi publicou o livro Odesaparecimentodosvagalumes, do fotógrafo e poeta

Denis Roche. Didi-Huberman evoca-o em SobrevivênciadosVagalumes, especialmente a

crítica nele feita ao celebrado ACâmaraClara, de Roland Barthes, por sua omissão em

abordar a questão da intermitência própria da fotografia. Nosso autor postula o motivo da

intermitência como basilar para o estudo da imagem fotográfica:

Esse motivo da intermitência parece inicialmente surpreendente (mas

somente se consideramos uma fotografia como um objeto e não como um

ato). De fato, ele é fundamental. Como não pensar, nesse sentido, no caráter

intermitente (saccadé) da imagem dialética, de acordo com Walter

Benjamin, essa noção precisamente destinada a compreender de que maneira

os tempos se tornam visíveis, assim como a própria história nos aparece em

um relâmpago passageiro que convém chamar de ―imagem‖? A

intermitência da imagem (image-saccade) nos leva de volta aos vaga-lumes,

certamente: luz pulsante, passageira, frágil (DIDI-HUBERMAN, 2011d, p.

46).

Nas fotografias errantes de Denis Roche, o olho é convidado a questionar a construção

poética da fotografia (fig. 23). Diferentemente da literatura, a poesia fotográfica é silenciosa.

Obtida numa fração de segundo, ela mostra um espaço de tempo intersticial, entre a

preparação para o disparo de luz e o que vem depois dele. De certo modo, a fotografia ali se

configura como a poética da sobrevivência de um instante.

Figura23:DenisRoche,Esfinge,Gizé,Egito,1997

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Em seu livro de tom autobiográfico, Denis Roche abre espaço para o fragmento de

umdiário aonde vem devidamente anotado o encontro com um pequeno grupo de vagalumes

durante um passeio. Os vagalumes aparecem e prontamente desaparecem, mas nesse curto

espaço de tempo em que puderam ser vistos proporcionaram a Roche um autêntico

maravilhamento. Didi-Huberman comenta que o desaparecimento dos vagalumes não

significa que eles se foram realmente, mas que o espectador renunciou a segui-los em meio à

escuridão do local onde apareceram. Mesma reação de Barthes perante a fotografia: renunciou

a segui-la preferindo guardar o luto frontal do issofoi. Ocorre, porém, como a analogia aos

vagalumes dá a entender a Didi-Huberman (2011d, p.46-47), de os fotógrafos serem viajantes,

pois que deslocam o movimento da luz; não atuam no sentido de fixar o passado, mas de

movê-lo.

A luz frágil, inconstante, fugidia, emitida pelos vagalumes assume para Didi-

Huberman conotação política quando serve de alegoria à marginalização de alguns povos ou a

comunidades esparsas que propõem novas formas de vida. Nesse âmbito, líderes políticos

seriam diametralmente opostos: superexpostos pela luz artificial e constante dos projetores,

ele possuem segurança e poder. Sob tais condições, os vagalumes formam comunidades

anacrônicas, ectópicas, pois sempre deslocadas, como se estivessem fora de seu tempo.

Remeteriam, em sua metaforicidade, de acordo com Didi-Huberman, a outro encontro fortuito

com o literário: a ―literatura menor‖ de Kafka, como referida por Deleuze e Guattari, pois

compartilham do mesmo valor político de resistência, de revolução, e de crítica à própria

marginalização:

Para conhecer os vagalumes, é preciso observá-los no presente de sua

sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa

noite seja varrida por alguns ferozes projetores. Ainda que por pouco tempo.

Ainda que por pouca coisa a ser vista: é preciso cerca de cinco mil

vagalumes para produzir uma luz equivalente à de uma única vela. Assim

como existe uma literatura menor [...], haveria uma luz menor possuindo os

mesmos aspectos filosóficos: ―um forte coeficiente de desterritorialização‖;

―tudo ali é político‖; ―tudo adquire um valor coletivo‖, de modo que tudo ali

fala do povo e das ―condições revolucionárias‖ imanentes à sua própria

marginalização (DIDI-HUBERMAN, 2011d, p. 52).

Passando do âmbito da fotografia para o do cinema, a possibilidade de que todos os

indivíduos integrantes das sociedades contemporâneas tivessem sucumbido sob o olhar

perscrutador das câmeras de vigilância, ou sob os televisores que oscilam

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imagensfunestamente, assim como sucumbiram os vagalumes ante a iluminação não natural

projetadapelos holofotes, provocaram a agitação política de Pasolini, cineasta e escritor de

forte impacto em Didi-Huberman. Agitava-o de tal modo que ele acreditava, em desespero,

não haver mais seres humanos nessas sociedades de controle. O que se tem seriam apenas

signos agitados vigorosamente. Toda troca de sinais teria cessado; nenhum desejo se manteve;

nada mais se espera, não há esperança; não há mais o que se ver. Restaria o desespero (DIDI-

HUBERMAN, 2011d, p. 58-59).

Didi-Huberman examina vários pontos que lhe parecem questionáveis na obra de

Pasolini: é como se ele iludisse a si mesmo, radicalizasse a própria desesperança, inventasse o

desaparecer dos vagalumes, valendo-se da linguagem fílmica como forma de manifestar o seu

―desespero sem recurso‖. Ao colocar em questão essa problemática, Didi-Huberman percebe

que, na verdade, está-se por interrogar ―certo discurso – poético ou filosófico, artístico ou

polêmico, filosófico ou histórico – proclamado atualmente [no rastro de Pasolini] e que quer

fazer sentido para nós mesmos, para nossa situação contemporânea‖ (2011b, p. 60). Para além

do exemplo hiperbólico de Pasolini, há nas metaforicidades do contexto consideráveis

consequências. É o momento ideal, talvez, de pensarmos de outra forma a nossa esperança no

futuro. Se o futuro for imaginado como resultante do encontro entre o Outrora e o Agora, fala-

se em termos de constelação (retomando Benjamin), que emite particular brilho, clarão. Didi-

Huberman aproxima visualmente o desenho formado pelo deslocamento dos vagalumes desse

modo constelar de vislumbrar o encontro do Outrora com o Agora. Os vagalumes possuem

ainda a eficácia de sugerir nosso ―modo de imaginar‖ como ―modo de fazer política‖ (DIDI-

HUBERMAN, 2011d, p. 60-61). Relembram, por fim, o conceito de ―partilha do sensível‖,

cunhado por Jacques Rancière em termos de imagem e de imaginação politicamente

compartilhadas:

Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela,

ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem

lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao

mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das

partes e dos lugares se funda numa partilha dos espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta

à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha (RANCIÈRE,

2005, p. 15).

O encontro dos tempos mostra-se particularmente decisivo no caso de se considerar a

imaginação como formada do encontro constelar entre Outrora e Agora, entre um ―presente

ativo‖ e um ―passado reminiscente‖. Didi-Huberman (2011d, p. 61) lembra que coube

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aWarburg, antes de Benjamin, mostrar ―as funções políticas de que os

agenciamentosmemorialísticos se revelam portadores‖. Em seus derradeiros escritos, ou nas

pranchas de imagens de seu AtlasMnemosyne, essas funções são constantemente recolocadas

em discussão. Um efetivo trabalho da memória aí se processa, o que não era alheio a Pasolini,

que compreendia o significado poético e visual do motivo da sobrevivência. As imagens em

―perpétua metamorfose‖ dão conta de manifestar um ―caráter indestrutível‖, mesmo entre

transmissões, invisibilidades, latências e ressurgências. Didi-Huberman (2011d, p. 63)

sublinha como a questão da sobrevivência é recorrente na filmografia pasoliniana, que

apresenta ―conjunção assumida do arcaico e do contemporâneo‖. Em LaRicotta, por exemplo,

Pasolini colidiu o Outrora com o Agora por meio do tratamento da cor (o filme apresenta

cenas em preto e branco e em cores). Esta ―posição dialética‖ revela sua eficácia na relação

entre o presente e a história. Em seus últimos filmes, porém, a ―alegria dialética‖ foi

substituída pelo ―desaparecimento das sobrevivências‖. Desapareceram para ele, avalia Didi-

Huberman, as ―condições antropológicas de resistência ao poder centralizado‖. O que se torna

digno da objeção: as sobrevivências podem ser decretadas mortas, desaparecidas? Pasolini

teria perdido definitivamente a ―capacidade de ver (...) aquilo que não havia desaparecido

completamente‖? Ele teria perdido a capacidade de entrever qualquer ―novidade

reminiscente‖ em meio à luz feroz dos projetores anunciando o avanço do fascismo?

Os vagalumes são uma alegoria eficaz dos povos oprimidos pelo fascismo

representado pela luz dos projetores. São insetos sublimes que emitem sua luz particular, mas

são frágeis, tanto que parecem ter desaparecido. De fato, há poucos sobreviventes da

perseguição efetuada pelos holofotes da oficialidade.

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ATOMADADEPOSIÇÃODASIMAGENS

Mantendo-nos no tema da memória associada às imagens, convém agora

abrirImagensapesardetudo, texto que evoca as quatro fotografias clandestinamente tiradas em

Auschwitz-Birkenau (fig.24), registro inesperadamente veraz do empilhamento de corpos

mortos na câmara de gás As reflexões, ali, remetem a conhecida polêmica: pode a imagem

fotográfica representar o irrepresentável da tragédia humana? Pode ela dar registro veraz de

uma realidade tão aterradora?

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Figura24:Fotografiastiradasclandestinamenteemagostode1944pormembrosdoSond

erkommandodeAuschwitz-Birkenau

Sabe-se que muito pouco restou desses campos para que se possa construir umanarrativa

histórica segura do ponto de vista documental. O pouco que sobrou resume-se a documentos

oficiais da burocracia estatal nazista e filmes feitos por soldados aliados assim que os portões

dos campos de concentração foram abertos. É tudo o que se tem de palpável para investigar o

evento. Pouco, se comparado com a extensão da máquina de matar nazista. Nesse panorama,

o relato testemunhal e a memória oral revestem-se de inestimável valor. A voz dos

sobreviventes diminui algumas lacunas deixadas pela falta de materialidade. Mesmo que o

discurso proferido pela vítima sobrevivente seja pautado por uma visão parcial e subjetiva dos

eventos, não se pode jamais descartar a declaração daquele que viu os fatos inlocu. Parece

haver valor histórico intrínseco no relato oral daqueles que estavam presentes no lugar dos

acontecimentos.

A questão repensada por muitos historiadores atualmente é a dos modos de se preservar

as memórias produzidas em torno do evento histórico do Holocausto. Inúmeras produções

cinematográficas, exposições em museus e obras literárias foram lançadas a respeito. Já no

fim da Segunda Guerra Mundial, no momento mesmo da chegada das tropas aliadas aos

campos de concentração, começou-se a produzir material de vídeo para registro, produção de

provas e arquivamento, com o fito de resguardar todo tipo de informação relacionada ao

massacre nazista. Pode-se dizer que a memória do Holocausto é ameaçada por um paradoxo:

por um lado, a escassez de informações oficiais, dado que os nazistas destruíram tudo o

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quepuderam antes da chegada das tropas aliadas; por outro, o risco do excesso de

informação,visual, oral e escrita. O exagero de minúcias pode fazer com que a noção do

conjunto do evento seja perdida. Como lembra Tzvetan Todorov (2000, p. 13), não é em vão

que os regimes totalitários concebem o controle da informação como uma prioridade. As

informações tornam-se mais valiosas não quando se multiplicam, mas na medida em que

permitem articulações. Informações enriquecidas, bem articuladas, não são necessariamente

numerosas; são as que permitem identificar e, com isso, controlar grupos inteiros de pessoas.

Da mesma forma que os regimes totalitários usam informações para controle, a sociedade

também pode articular informações para combatê-los. Desse modo, a informação pode tanto

libertar os indivíduos, se utilizada adequadamente; quanto os tornar inertes, por meio do

acesso indiscriminado e sem valor. Sobrecarregar de informações os eventos críticos da

história produz, ainda, alienação, pois os indivíduos não conseguem formar identidades

sociais sólidas, o que facilita sua manipulação. Paradoxalmente, guardar informações

excessivas sobre um evento pode torná-lo tão difuso que qualquer afirmação a respeito

mantém-se condicionada a um desmentido qualquer. Este evento fragmentado não pode ser

usado como sentimento de pertença a um grupo. De modo que, segundo Todorov (2000, p.

15), a memória, e consequentemente a cultura que dela se origina, não está ameaçada pela

falta de informação, mas pela superabundância.

Em paralelo à trilha aberta pelo filósofo e linguista búlgaro, Didi-Huberman retoma

Annette Wieviorka, historiadora francesa especialista no tema do Holocausto, para quem uma

―memória saturada‖ acompanha toda tentativa de trabalhar sobre o nazismo. Uma memória

saturada, no entender da autora, é uma memória ameaçada em sua eficácia mesma, sob risco

constante de ―sub-interpretação‖ (DIDI-HUBERMAN, 2006a, p. 1012). A história feita sem

crítica sobre as informações levantadas não se configura como um conhecimento. Não é o

acúmulo do saber que nos faz conhecer, mas a relação fenomenológica entre o saber (do

passado) e o sentir (do presente). A memória, antes de tudo, é seleção (TODOROV, 2000, p.

16). O que significa dizer que a memória opera conservações e descartes de informação,

procedimentos colocados em jogo no trabalho do historiador. Todorov (2000, p. 16) afirma

que ―memória é a capacidade que têm os ordenadores para conservar a informação‖. Essa

―capacidade de conservar‖ indica que talvez haja variações na força de conservação de

determinadas informações. Algumas informações consomem-se rapidamente, desaparecem,

tornam-se descartáveis tão logo utilizadas. Outras tendem a ser mais rígidas e perduram.

Podemos pensar ainda que a memória não é um ato passivo do indivíduo, mas uma ação sobre

o mundo, que lhe bombardeia de informações diversas, dialéticas, em via dupla: sensoriais

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esemióticas. A memória está intimamente ligada à construção da identidade cultural: a

perdada memória representa uma ameaça para o futuro. Ela seleciona o que permanece e o

que se perde. Essa perda permite à memória não ser vítima do acúmulo excessivo. Todorov

(2000, p. 17) alerta, porém, que não se pode justificar um uso enganoso da memória pela

necessidade de recordar. A memória é necessária, mas sua construção é repleta de riscos. Se

para alguns não há dúvida de que o Holocausto foi o evento mais terrível da história, para o

historiador cabe a função de se colocar, não como neutro, mas como alguém consciente de seu

afastamento do local dos fatos, para então tentar reconstruir a história como um exercício de

montagem de informações heterogêneas, carregadas de ideologias e de subjetivações.

É necessário recordar o Holocausto; mas torná-lo um acontecimento de terror absoluto

pode provocar efeitos indesejados. Didi-Huberman observa que as primeiras imagens

produzidas na abertura dos campos de concentração já lutavam contra os dolorosos paradoxos

da ―vontade de memória‖ e da ―vontade de esquecimento‖ (DIDI-HUBERMAN, 2006a, p.

1017). As terríveis cenas, por um lado, pediam para serem esquecidas, para serem negadas.

Ao mesmo tempo, lembrar-se delas, para nunca mais vê-las em outra situação, urgia como

uma necessidade visceral. As imagens do Holocausto posicionam-se entre uma vontade de

―montar‖ a história e de ―mostrar‖ as histórias. A diferença entre uma e outra postura é

essencial para entendermos a gestão da memória proposta pelo documentário de Claude

Lanzmann, Shoah, analisado por Didi-Huberman. Montar a história é reunir os fatos, os

dados, as diversas informações concernentes ao Holocausto e agrupá-las sob alguma diretriz

capaz de lhes dar um efeito de legibilidade. A história torna-se, então, compreensível,

narrável. Ao mostrar as narrativas dos sobreviventes do genocídio, pode-se formar um painel

de testemunhos em fragmentos, individualmente importantes, mas podendo ser remontados

como detalhes de uma paisagem do sofrimento humano sob as garras do totalitarismo. Didi-

Huberman (2006a, p. 1017) sustenta que Lanzmann refuta toda a visibilidade dos arquivos

com base numa tentativa de escutar os sobreviventes. Os depoimentos dados para o

documentário são feitos no local onde os campos de concentração se localizavam. Como os

campos foram destruídos pelos nazistas, sobrou apenas um cenário que aciona a memória dos

sobreviventes. É em suas mente que as imagens do Holocausto são produzidas. Rejeitam-se as

imagens diretas de corpos amontoados para enfatizar o discurso produzido a partir de imagens

mentais. Não há nada ali, efetivamente, para ser visto. O sentido de retornar a esses lugares de

sofrimento, onde lembrança e sofrimento estão tão associados, é forçar a vinda à tona de uma

memória repleta de defesas psíquicas com o fim de levá-la ao esquecimento.

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142

Podemos assumir que Didi-Huberman estuda o documentário de Lanzmann com

oobjetivo de montar história diversa. Ele critica o modo como as informações são obtidas no

filme, pois a memória é ali coagida a se (re)presentar em face de um nada que resta, ao passo

que há quatro imagens obtidas clandestinamente pelos membros do Sonderkommando para

serem vistas. Na fala de um dos depoentes do documentário, por exemplo, a memória parece

emergir da comparação com a experiência e passiva do momento de emissão da fala, pois ele

afirma que havia relativa tranquilidade em Auschwitz, mesmo quando ―se queimavam

diariamente duas mil pessoas‖, pois ―ninguém gritava, todos faziam o seu trabalho‖, tudo era

calmo como ―agora‖: o agora da reminiscência. Todorov entende que cada indivíduo deveria

ter o direito de buscar por si mesmo os documentos necessários para encontrar a verdade dos

fatos. Mas esse direito se converteria em dever quando se trata dos indivíduos ou grupos

participantes de acontecimentos excepcionalmente trágicos. Entendemos que há uma espécie

de compromisso destes para com o seu testemunho. Forçar estes indivíduos a recordar – como

no testemunho célebre de Abraham Bomba – seria uma forma de fazê-los cumprir a função

social de sua memória. É preciso, porém, manter a cautela. Esses indivíduos para os quais a

recordação tornou-se um dever passaram por um forte abalo emocional. Seu sofrimento não

pode ser tratado com displicência. Em alguns casos, a experiência de uma revelação do

passado é tão insuportável que tende a ser rechaçada com veemência. Assim, é preciso notar

que esses indivíduos possuem, em comparação ao dever de recordar, igual direito ao

esquecimento. Esquecer, para alguns deles, é o único modo de conseguir suportar o peso de

uma lembrança que induz o sofrimento. Como a recuperação do passado é tão indispensável

quanto esquecer para viver o presente, alguns não estarão dispostos a abrir mão de continuar

vivendo para, num momento de esforço pessoal, relembrar. Os entrevistados do documentário

de Lanzmann são casos raros de pessoas que decidiram desafiar as próprias memórias. No

campo dos estudos historiográficos, mesmo que a vida sucumba à morte, parece que a

memória sai vitoriosa na luta contra o nada (TODOROV, 2000, p. 18).

Os campos de concentração atualmente são espaços onde nada resta, mas é ali que a

memória mostra à morte sua força, sua resistência. Sua verdade carrega o peso do tempo. São

carregadas de tempo até explodirem, lembra benjaminianamente Didi-Huberman (2006a, p.

1011). Nesta explosão, a memória aflora, e a palavra vacila, gagueja. Aos pequenos golpes, a

memória acessa a fala. Essa recordação obtida no lugar em que ocorreram os fatos, contrária a

toda forma de história construída por um idealismo platônico, sente a necessidade imperiosa

de experimentar, de sentir para conhecer. Aí nasce o dilema entre o ver e o dever.

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143

O objetivo de Todorov é fundamentar uma crítica dos usos da memória a partir

dadistinção entre diversas formas de reminiscência. Ele insiste que o acontecimento

recuperado pode ser lido de maneira literal ou de maneira exemplar. A forma de leitura

exemplar tem a intenção de construir um exemplum, de extrair uma lição. O passado se

converte em princípio de ação para o presente. Aproveitam-se as lições das injustiças sofridas

para lutar contra as que se produzem atualmente (TODOROV, 2000, p. 30 e 32). Quanto ao

uso literal, que converte em insuperável o velho acontecimento, ao contrário do uso exemplar,

recai na apresentação do presente ao passado. Este uso da memória ocorre, por exemplo,

quando se considera o hitlerismo como o horror ou como o mal absoluto, como se nenhum

evento do passado fosse pior. É um mal tão profundo que se torna incomparável e inatingível.

Ora, para Didi-Huberman falar de mal absoluto, saturar os fatos de moral, é o que torna

Auschwitz legível (DIDI-HUBERMAN, 2006a, p. 1012). Evidentemente, legibilidade não é o

que se espera de um acontecimento tão execrável. Dar legibilidade para o incompreensível de

alguma maneira reduz o terror causado a uma significação que o tornaria explicável e, ainda,

justificável.

A aproximação entre Didi-Huberman e Todorov mostra que qualquer forma de gestão

da memória não é isenta de conflitos, quanto mais a memória do Holocausto. Ferida aberta na

história recente, ele ainda alimenta o debate sobre sua narratividade. No ensaio intitulado

Cascas, Didi-Huberman suscita essa questão a partir de um ponto de vista pessoal mais que

testemunhal. Contrariamente a Lanzmann, que se oculta por detrás do testemunho de

sobreviventes, ele imerge em meio aos impasses do ato de historicizar os campos de

concentração. Razão porque seu texto parte do relato de sua visita ao Memorial e Museu de

Auschwitz-Birkenau. Um início quase literário:

Coloquei três pedacinhos de casca de árvore sobre uma folha de papel.

Olhei. Olhei, julgando que olhar talvez me ajudasse a ler algo jamais escrito.

Olhei as três lascas como as três letras de uma escrita prévia a qualquer

alfabeto. Ou, talvez, como o início de uma carta a ser escrita, mas para

quem? (DIDI-HUBERMAN, 2012b, p. 99).

Trata-se aí de permitir ser envolvido pelo objeto de estudo, de permitir que a

primeirapessoa entre no trabalho historiográfico. Os ―três pedacinhos de casca de árvore sobre

uma folha de papel‖ são singularidades (aceitando o risco da ficção a que toda análise

subjetiva está sujeita), são sintomas daquilo que pensamos aqui como a eficáciapolítica das

imagens. Essas simples cascas (fig.25) não deixam de ter a fugacidade e a fragilidade de toda

imagem (pois circulam amplamente e se destroem facilmente), mas também possuem o

alcance crítico da imaginação – aludem ao o poder e o perigo da faculdade de imaginar.

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Imagens mascaram eescancaram a verdade, manipulam as massas ou servem como formas de

sobrevivência,produzem dissensos e consensos – três pedacinhos, simples pedacinhos de

casca de árvore.

Figura25:FotografiaemDidi-Huberman,Écorces,Paris:Minuit,2011

A eficácia das imagens dependerá, assim, das intencionalidades e das montagens

feitascom elas. Em face disso, os modestos objetos de interesse de Didi-Huberman não

possuem, em contrapartida, objetivos modestos: se não há nada a se dizer, a princípio, sobre

três pedacinhos de casca de árvore, é porque eles podem ajudar ―a ler algo jamais escrito‖:

reconhece-se, desde o início, a filiação benjaminiana do ensaio. Para Benjamin, o idioma seria

a etapa suprema do comportamento mimético. Ler o que nunca foi escrito seria a leitura

anterior a todo idioma, o que poderia ser observado na astrologia, nas artes de adivinhação,

nas danças, onde algo se dá a ler sem, contudo, apresentar caracteres escritos. A carta escrita

por pedacinhos de casca faz alusão a essa característica histórica, ancestral do idioma

(BENJAMIN, 1970, p. 49-52). As cascas apresentam-se sobre o papel em branco como linhas

de uma ―carta a ser escrita‖ – ou como os fios de um tecido, o tecido do tempo: tecido e texto

possuem a mesma raiz etimológica. Didi-Huberman denomina essas cascas ―lascas de tempo‖

e as aproxima de seu ―próprio tempo em lascas‖: espera-se muito dessa experiência pessoal de

visita ao museu, espera-se muito de três pedacinhos de árvore, pois é do embate entre o

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ínfimo e o crucial que as crises da História se apresentam. É no confronto entre o ponto

devista e o panorama; entre os acontecimentos singulares, e talvez até mesmo banais, e

osgrandes eventos, paradigmáticos, que a análise historiográfica mostra toda a sua

fecundidade.

O texto de Didi-Huberman segue uma linha de pensamento ascendente – da casca paraa

árvore; da árvore para o bosque; do bosque para o Museu; e do Museu para a crítica da

História, como modo de repensar os valores de uso do tempo. Essa espiral ascendente do

ensaio permite afirmar que ―à sombra das bétulas de Birkenau ecoou o uivo de milhares de

dramas atestados apenas por alguns manuscritos‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012b, p. 101). Não

se trata, porém, de iconologia, pelo menos não em sua vertente panofskyana. As cascas não

representam o Holocausto, pois não são símbolos, não chegam à experiência como signos

claros e pouco contribuem para se pensar o contexto dos eventos. São pedaços das árvores

que estavam presentes durante o genocídio judeu. Seria demasiado pensá-las como formas

especiais de testemunhas? Em lugar de uma interpretação iconológica baseada em intuição

sintética, Cascas propõe algo mais próximo das Pathosformeln warburguianas: a

sobrevivência dos gestos de certa patologia da dor na ligação possível entre o museu e o

campo de concentração, entre o olhar do visitante e o olhar do prisioneiro. As cascas das

bétulas, na Antiguidade, eram usadas como suporte para textos e desenhos; em Auschwitz-

Birkenau, como placas de orientação dos judeus rumo ao destino final; no Memorial do

campo, orientam e advertem os visitantes sobre as regras de uso do local (não se pode beber,

fumar, tocar em determinados objetos, etc.), a despeito da aparente liberdade de acesso.

Interessa ao historiador a sobrevivência imemorial da casca como lugar de escrita, ou, em

outras palavras, da pele e da superfície, onde se grafam sinais diversos. Evocadora de todo

lugar de inscrição, a casca indicia também a inscrição de um lugar, de uma circunscrição. As

bétulas pertenceram a um ―lugar de barbárie‖ e hoje participam de um ―lugar de cultura‖. O

gênero-cultura que se pratica no Museu de Auschwitz, ao torná-lo ―espaço público exemplar‖,

deve ser questionado. Tendo em vista que a barbárie só foi possível porque houve

determinada cultura capaz de pensá-la, organizá-la e sustentá-la, inclusive esteticamente,

como garantir que no Museu a ―luta pela sobrevivência‖ dos prisioneiros não foi anulada pela

mudança de apropriação cultural do mesmo espaço? Didi-Huberman preocupa-se com o

debate sobre as formas culturais da sobrevivência porque a cultura, desde sempre, é um ―lugar

de conflitos‖, pois lugar de gestação dos esplendores passados e das desgraças futuras. As

imagens, como traços de cultura, são, pois, rastros desses conflitos. Cultura e barbárie

parecem-lhe pólos opostos em constante tensão, mas também, e por isso mesmo, diálogo: um

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se converte no outro com frequência, às vezes de modo imperceptível; razão porque Benjamin

afirma que as imagens autênticas, as imagens reveladoras da verdade histórica, são

imagensdialéticas, contraditórias, ambíguas. Razão porque Didi-Huberman as entende como

imagenscríticas (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 169-199). Seria o caso da fotografia que ele

mesmo faz de um passarinho entre duas linhas de arame farpado: havia dois tipos de arame,

um escurecido pela ferrugem e o outro instalado recentemente; em forma de imagem

fotográfica, o pouso do passarinho pode acionar a imaginação: ―sem saber, o passarinho

pousou entre a barbárie [cerca enferrujada] e a cultura [cerca restaurada]‖, afirma Didi-

Huberman (2012b, p. 106). A imagem produzida ao acaso tem a força de criticar múltiplas

temporalidades: a cerca enferrujada atualmente (a cerca ―original‖) foi um dia a cerca nova de

um tempo de barbárie; a cerca nova dos tempos atuais restaura superficialmente o tempo de

barbárie, restauração somente possível por determinada cultura que acredita na importância de

preservar o aspecto visual dos lugares de memória.

Não nos parece que Didi-Huberman seja contrário a rememorar Auschwitz, mas

inquieta-o o fato de o campo de concentração ser esquecido em seu próprio lugar para se

constituir como lugar fictício destinado a lembrar do mesmo lugar (DIDI-HUBERMAN,

2012b, p. 108). Ao se converter o lugar do martírio em museu, transforma-se o objeto a ser

imaginado (o campo, do qual, afinal, não resta muito a ver) em imagem de si mesmo (museu);

rememorar passa a ser o mesmo que teatralizar a memória, cujo palco é parte de um projeto

de reuso do lugar. Mas como reutilizar um campo de concentração, como lhe dar novavida

sem que as atrocidades ali cometidas não sirvam de estranho fetiche ou então de

comemoração? Como dar nova vida a um lugar destinado à morte, ―concebido para dissipar

toda esperança‖? Como sustentar filosoficamente um local destinado a ver e a expor se, antes

da chegada dos soviéticos, os nazistas destruíram a maior parte das instalações originais? O

Renascimento de Auschwitz, contradição plena, obriga-nos a recorrer ao saber arqueológico,

ao saber das escavações, do solo – só restam escombros e cinzas, que mesmo assim se

debatem entre um desejo de lembrar e de esquecer; entre o de saber e o de não saber; entre o

de ver, imaginar, e o de não ver, esquecer. Convém olhar como um arqueólogo para a

vegetação e para as fundações do chão de Auschwitz, pois ali ―repousa toda a loucura lógica

de uma organização racional da humanidade compreendida como matéria-prima, como

resíduo a ser transformado‖. Ali é onde ―repousam as cinzas de incontáveis assassinados‖

(DIDI-HUBERMAN, 2012b, p. 114). Do chão advém a cultura e a barbárie. Winckelmann e

toda uma geração de interessados pela arte antiga teria escavado o solo em busca de relíquias

figurativas na forma de estátuas e pinturas; Benjamin defendia: ―aquele que busca aproximar-

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147

se de seu próprio passado sepultado deve se comportar como um homem que faz escavações‖;

Didi-Huberman, por sua vez, postula que ―o ato memorativo em geral, o ato histórico

emparticular, colocam fundamentalmente uma questão crítica, a questão da relação entre

omemorizado e seu lugar de emergência‖ (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 175).

Talvez algo de todo o exposto justifique porque Didi-Huberman se ocupa mais de

vegetais, animais, pedras, solo, enfim, de tudo quanto não seja humano em Auschwtiz-museu:

no fim das contas, havia no campo de concentração uma ideologia de abatedouro, uma ―lógica

de estábulo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012b, p. 115). Judeus não eram vistos como humanos;

humanizá-los em Auschwitz não corresponderia à realidade de como foram tratados. As

imagens de Didi-Huberman poderiam muito bem ser aproximadas dos clichês de Eli Lotar no

antigo abatedouro de La Villette (fig.26), e que tanto desconforto causaram a Georges

Bataille. Seremos humanos tratados como gado, desinfetados com Zyklon B. Não é

certamente procurando dar formas mais humanas para as figuras desfocadas, escorchadas, das

fotografias tiradas clandestinamente por um membro que Sonderkommando que se entenderá

o teor histórico e perturbador daquelas imagens. Corrigi-las, aumentar sua legibilidade,

diminui sua eficácia, que é a de testemunhar ―a situação de urgência e de quase

impossibilidade de testemunhar naquele momento preciso da história‖ (DIDI-HUBERMAN,

2012b, p. 121).

Figura26:ÉliLotar,AuxabattoirsdelaVillette,1929

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Como se viu, a leitura de Didi-Huberman sobre os usos da memória apóia-se

nafilosofia da história de Benjamin, que pensa as singularidades históricas em suas relações,

em seus movimentos e intervalos. Essas singularidades destacam-se da história pensada por

relação de causa e efeito e rejeitam o tempo como entidade neutra e abstrata. Benjamin refere-

se muitas vezes a algo de messiânico no trabalho do ―anjo da história‖. É preciso historicizar

essas metáforas: Benjamin trabalha na condição extrema da ascensão do nazismo, quando o

chamado a um materialismo histórico fazia com que imperasse o ódio totalitarista às ideias do

socialismo. Para Benjamin, o presente seria determinado pelas imagens que lhe são síncronas,

de modo que essas imagens não são apenas objetos visuais, mas o próprio formato de cada

presente. A história pautada pela singularidade busca descobrir na análise do pequeno

momento singular o cristal do evento total. Movimento inverso da história positivista, é a

história por negatividade. O positivismo, em sua marcha para o progresso único, linear, busca

construir narrativas totalizantes para fazer caber cada momento singular. Desta forma, pode-se

até desconsiderar as singularidades, pois o evento total as explica antes de qualquer coisa. De

acordo com Didi-Huberman, para cada objeto singular, deve haver uma historiografia

diferente, renovada, repensada em todas as suas práticas. Os eventos totais se reconstroem, se

refazem. São totalmente repensados em seu âmago. O que não implica perder o horizonte da

verdade, mas assumir a irredutível complexidade da verdade e da história. Didi-Huberman

coloca-se em posição contrária a toda forma essencial, arquetípica, de passado. Para ele, o

passado não pode ser construído sob a forma de uma narrativa única. A legibilidade do

passado aparece na articulação dinâmica de suas singularidades. Como consequência disso, a

eficácia das imagens encontra-se na sua capacidade de fornecer múltiplas formas de

legibilidade para o passado.

Não por acaso a montagem fílmica serve a nosso autor como a forma por excelência

de um pensamentoporimagens. Eisenstein e Benjamin ocupam, não por coincidência, o

mesmo tempo: época em que a imagem técnica influencia o pensamento histórico, verdadeira

revolução teórica do olhar, quando se torna possível ver o pensamento, guardar imagens do

presente, quiçá a própria realidade, mas também sonhar a história, montá-la como uma

sequência de imagens, e não apenas de discursos. A definição de imagem cunhada por

Benjamin, como encontro do Outrora com o Agora em um relâmpago para formar uma

constelação, é marca indelével no pensamento de Didi-Huberman (2006a, p. 1013). Esta

concepção dialética de imagem, antes de tudo, trata de uma imagem que age, pois opera um

encontro: a imagem seria entendida como um espasmo do tempo, um tremor do tempo que faz

o passado esbarrar no Agora. Neste embate, um lampejo faz alusão à imagem como uma

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visãoefêmera, passageira, pois, com a atualização constante do Agora, o encontro será único.

Ocontato de cada indivíduo com uma imagem nunca se dará em tempos presentes idênticos. O

Agora se atualiza e com isso reconfigura o Outrora, dando-lhe um estatuto diferente. Cada

encontro formará um novo lampejo e uma constelação temporária de imagens díspares. Estas

imagens não produzirão qualquer discurso histórico estável; paradoxalmente, pedem para ser

constantemente historicizadas. As imagens se refazem sem cessar diante dos olhos do

indivíduo, em sua existência também temporária. Assim sendo, estar diante da imagem não é

estar diante de um objeto pronto, com características definitivas; é estar diante do próprio

tempo. É preciso levar em consideração que o passado e o presente não são a mesma coisa

que o Outrora e o Agora. Enquanto a relação entre passado e presente é apenas temporal, a

relação entre o Outrora e o Agora é dialética, porque de natureza imaginária (DIDI-

HUBERMAN, 2006a, p. 1014).

Didi-Huberman trabalha com quatro imagens desenterradas em Auschwitz. Essas

imagens carregam-se de tempo, de um Outrora, não no sentido de época, mas de um

fragmento de evento total. Esse Outrora entra em contato com o Agora, o tempo de Auschwitz

como museu. Antes lugar de barbárie; hoje lugar de cultura. Didi-Huberman inverte o sentido

da relação traçada por Benjamin entre cultura e barbárie: todo monumento de barbárie

carrega-se de alguma cultura que o constrói. Deste modo, no passado haveria muitos

passados, que se movem como imagens dialéticas. As imagens dialéticas, que aparecem

fulgurantes e ao mesmo tempo frágeis, necessitam ser captadas em seu ―momento de perigo‖.

Esse momento crítico surge diante de nós como um rasgo do tempo no espaço. Shoah para

Didi-Huberman não teria sido um filme idealista, onde são suscitadas grandes questões para a

reflexão, mas um filme de ―geografia, de topografia‖, retornando a esses locais de destruição

que não se moveram do seu lugar: lugares de memória. Nesse filme, o Holocausto não é um

acontecimento do domínio da lembrança, mas uma questão sobre a memória dos campos, dos

restos do tempo e de sua historicidade. Constrói-se, com isso, o que significa visualmente

estar diante de um lugar e recordar, o estar-aí entre dois tempos que coexistem dialeticamente:

o Outrora e o Agora. Inevitavelmente, Lanzmann produz, com força, aquilo que evita:

imagens.

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CONCLUSÃO

A imagem treme, ela é o tremor da imagem, o calafrio do que oscila e

vacila: ela sai constantemente de si mesma, é que não há nada onde

ela seja ela mesma, sempre já fora de si e sempre o dentro desse fora.

[...] [Tal é] a imagem, para onde aponta o neutro".

(M. Blanchot, "Parler, ce n'est pas voir". L'Entretieninfini)

Assim desdobra-se a outra face, o outro tempo da imagem. O que era

acontecimento tornar-se-á memória. O que era mônada tornar-se-á

montagem. A aparição fez, no tempo de um relâmpago, sua marca: ela

vai então durar de algum modo. Não como aparição, certamente (nada

desaparece mais rapidamente do que uma aparição). Mas

como fascínio, esta maneira que tem a imagem de manter-nos durante

muito tempo, e mesmo indefinidamente, sob seu poder de

assombração.

(G. Didi-Huberman, ―De semelhança a semelhança‖)

Desde o início de sua carreira, Didi-Huberman ambiciona elaborar uma ―estética

dosintoma‖, um método historiográfico baseado numa espécie de fenomenologia do signo,

entendido a um tempo como estrutura e como trabalho específico da imagem. Tratar-se-ia,

além disso, de uma estética dos ―acidentes soberanos‖, de uma semiologia dos acasos

produzidos por força das processualidades da imagem. Ao articular fenomenologia com

semiologia, ele visa lidar com os aspectos concretos da experiência sensível diante da imagem

tanto quanto com as reminiscências sintomáticas evocadas pelo estudo de seus sentidos. Entre

a imediatez da materialidade e a inteligibilidade ontológica do objeto visual, ele opta pelo

caminho dialético, problemático, crítico, inquieto, da psicanálise. Para legitimar essa

perspectiva, obriga-se a criticar a pretensa cientificidade da história da arte. Depois de traçar,

antropologicamente, as linhas mestras da ideologia racionalista e objetiva que sustentou (e

ainda sustenta) o discurso autolegitimador dessa disciplina, ele critica determinados valores

veiculados pelos historiadores, tais como a arriscada neutralidade epistemológica, mas

principalmente política, pretendida por eles em relativo descaso das implicações

sociopolíticas de seus pressupostos metodológicos. Critica, ainda, a valoração excessiva do

método dedutivo iconológico, e o juízo de valor estabelecido objetivamente por meio da

centralização das referências em poucas imagens-clichê, exaustivamente retomadas a cada

novo trabalho de pesquisa.

A inspiração psicanalítica de Didi-Huberman permite-lhe, ainda que com a devida

cautela, empregar o sintoma freudiano como paradigma primeiro para rasgar o dispositivo

representacional da imagem e vasculhar por dentro dela, em sua profundidade, os sentidos

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151

quelá permaneceram recalcados culturalmente, distorcidos, sublimados ou

antropologicamentedeslocados em suas formas, gestos, significados, usos, cultos. A cisão na

imagem provocada pela simples frequentação do olhar das singularidades de seu objeto – por

aproximação insidiosa, como aquela realizado em ARendeira de Vermeer, destacando ali um

pequeno trecho ( pan de pintura) provocador de uma série de questionamentos, ou por

distanciamento inesperado, como o que se processa diante de AMadonadasSombras de Fra

Angelico, deparando-se com os inusitados motivos em abstração, um Pollock extemporâneo

em plena representação renascentista – é capaz de despertar a ramificação das dúvidas que o

método positivista da história da arte tem sido incapaz de frequentar. Dúvidas estas que

devem ser consideradas como propriedade mesma da imagem.

É em termos de propriedade da imagem que nos pusemos a pensar acerca do motivo

de sua eficácia na obra didi-hubermaniana. Observamos que talvez seja no que diz respeito à

processualidade que nosso autor encontra algo mais consequente em relação ao poder de agir

das imagens. A tradicional historiografia da arte, alinhada ao pensamento panofskyano,

entendera que a eficácia da imagem relaciona-se com a capacidade que ela possui de dar

causa a determinados efeitos. Imagens eficazes seriam aquelas cujos efeitos correspondem a

algo previamente esperado. De acordo com a realização ou não de tais efeitos, pode-se até

mesmo produzir julgamentos: artistas são considerados bons ou ruins dependendo de como o

efeito por eles imaginado se concretiza no observador; imagens são boas ou ruins dependendo

do quanto elas correspondem aos efeitos esperados em determinada época (o que se poderia

denominar de estilo). Quanto mais uma imagem corresponde aos efeitos esperados pelos

homens de ―seu tempo‖, mais elas são bem avaliadas pelos connoisseurs de outros tempos.

Didi-Huberman aponta diversos problemas originados da generalização que uma

relação unívoca entre causa e efeito produz na legibilidade da imagem: o juízo neokantiano

adotado pela história da arte baseia-se num processamento sintético das qualidades das

imagens: de uns poucos particulares, chega-se a universais que correspondem ao estilo de

época (o que tornaria inteligível sua ―mentalidade‖); não só a legibilidade formal dos objetos

visuais perde em complexidade, como também a própria noção de tempo histórico vê-se

achatada por proposições idealistas que não resistem ao mais básico ato empírico de

investigação pelo olhar. Assim, ao perceber que na história da arte a dimensão espacial e

temporal das imagens mais obedece a certa teorização que respeita a realidade material e os

condicionantes da percepção dos objetos, Didi-Huberman alia-se a pensadores que

procuraram uma reflexão mais crítica sobre a arte, menos suscetível à compartimentação

estanque das disciplinas sociais. Razão porque tanto lhe interessa o

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pensamentopluridisciplinar, à margem da tradição, por isso mesmo renovador e, por vezes,

misterioso, deautores tais como Benjamin, Warburg e Einstein.

Da obra benjaminiana, Didi-Huberman extrai a reinterpretação do materialismo

histórico, a produzir densa crise epistemológica no campo da filosofia da história, com sérios

desdobramentos na esfera do estudo histórico e cultural das artes. O conceito de imagem

dialética em Benjamin contraria a linha de pensamento hegeliana, pois não apresenta síntese.

Seu devir, na verdade, trata da própria suspensão da dialética, da contradição constante e

irresolvida do ser e do não-ser. Paradoxalmente, porém, seria esta a forma da imagem revelar

a verdade histórica. A lembrar como a imagem dialética serve a Didi-Huberman, em

Oquevemos,oquenosolha, como forma de pensar a eficácia contraditória do túmulo enquanto

paradigma da origem das imagens. O túmulo é a imagem por excelência da perda do referente

e do surgimento do outro, que ainda não é absoluta alteridade. Para além dos princípios

filosóficos da imagem como cópia, duplo, semelhança, contigüidade, ele nos apresenta a

imagem dialética como imagemcrítica, eficaz em criticar a própria representação, em

desestabilizar os dispositivos geradores de imagens (geralmente consoladoras). A dialética

insuperável da imagem benjaminiana constitui-se, ainda, de um ritmo de alternâncias entre

aparecimento e desaparecimento, que não formam conjuntos de dicotomias, mas de

ambigüidades.

A eficácia da imagem como decorrência da ambigüidade leva nosso autor a adotar o

sintoma como seu principal conceito. Os sintomas representam signos muito particulares da

imagem que, a despeito de qualquer crítica que se faça à fatuidade de sua manifestação ou ao

risco de ficcionalizar o ato de compreensão da imagem, produzem crítica espontânea das

representações. Didi-Huberman atribui ao sintoma o poder de rasgar a própria imagem. Em

seu poder de rasgadura estaria concentrada toda a sua ―perturbadora eficácia‖ (DIDI-

HUBERMAN, 2013, p. 212). O verbo ―rasgar‖ (déchirer), nesse caso, é empregado

metaforicamente, fazendo analogia com um gesto intempestivo, com um rompante de fúria. O

sintoma rasga a imagem como se a recusasse em sua primeira evidência. O que ele parece

rasgar, todavia, não é a imagem propriamente, mas o saber dos historiadores a seu respeito.

Pois o sintoma ―exige, de maneira mais radical, modificar uma vez mais (...) a posição do

sujeito do conhecimento‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 211). Durante muito tempo, os

historiadores procuraram fugir da presença do sintoma. Seu aparecimento fenomênico, de

fácil percepção pelos sentidos, invariavelmente provoca desconfiança nos que buscam na

imagem apenas signos, símbolos ou a manifestação de númenos, isto é, formas elevadas de

entendimento. O sintoma, além disso, é termo associado a conotações clínicas,

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153

característicaque vem inequivocamente depor contra o seu uso como categoria analítica de

investigação dasimagens, particularmente das imagens de arte.

Apesar de todos os esforços em reprimir os sintomas da imagem, ele é eficaz, também,

em aparecer apesar de tudo. Para o historiador, porém, é preciso "dizer" esse aparecer. Daí

que o sintoma seja também um problema de escrita. A princípio, para o historiador o sintoma

pode lhe parecer um impedimento para o trabalho. Pois não há verdadeiramente o que dizer

ou escrever sobre o sintoma. Ele é a própria interrupção da fala, dos sentidos, rasgadura de

todas as textualidades. A respeito, lê-se:

Sintoma nos diz a escansão infernal, o movimento anadiômeno do visual no

visível e da presença na representação. Diz a insistência e o retorno do

singular no regular, diz o tecido que se rasga, a ruptura de equilíbrio e o

equilíbrio novo, o equilíbrio inédito que logo vai se romper. E o que ele nos

diz não se traduz, mas se interpreta, e se interpreta sem fim (DIDI-

HUBERMAN, 2013, p. 212-213).

Tal recorrência da interpretação acaba por denunciar o abismo que há entre o texto e a

imagem, o seu mútuo desajuste essencial, suas diferenças de nível. O trabalho do historiador,

que é efetivamente baseado em um trabalho de escrita, ou na escrita de um trabalho, vê-se

diante do sintoma ameaçado pelo inconcluso. O sintoma talvez seja, de alguma forma, o

visual puro, o visual irredutível ao texto. Mas fazer história das imagens requer desenvolver

métodos para lidar com um fracasso constante, tendo em vista que o texto jamais será capaz

de dar conta de tudo o que está implicado na experiência do olhar. Repita-se: há uma

irredutível diferença de nível entre a escrita e sua linearidade; entre a imagem e sua

espacialidade. Portanto, há sempre algo impossível de dizer sobre a eficácia da imagem; algo

que talvez só possa ser tocado pela tangente, pelos ensaios da escrita. De maneira que o

problema da escrita acerca da eficácia das imagens mostra-se autêntico problema

epistemólogico: o que somos capazes de entender e o quanto somos capazes de comunicar

daquilo que entendemos da imagem – comunicar o quanto e de que maneira uma imagem foi

eficaz para cada um de nós. A despeito disso, nos quadros da história da arte, Didi-Huberman

não deixa de observar o emprego de uma filosofia espontânea, em tom kantiano (um tom

apenas, um simulacro da filosofia crítica de Kant), que ―se baseia em palavras, somente

palavras, cujo uso particular consiste em tapar as brechas, negar as contradições, resolver sem

um instante de hesitação todas as aporias que o mundo das imagens propõe ao mundo do

saber‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 14).

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154

Como tentativa de contornar o problema, Didi-Huberman tem adotado o gênero

ensaiopara dar forma à sua escrita. A liberdade formal do ensaio, diga-se, permite certa

criação de imagens por meio do texto sem perder de vista o rigor crítico exigido pela escrita

historiográfica. No meio caminho entre prosa literária e dissertação científica, o ensaio é a

forma de texto que melhor consegue aproximar o relato histórico da pesquisa do historiador

da arte com a imprecisão científica fundamental de seu objeto de estudo. Nas palavras de

Adorno (2003, p. 26), ―o ensaio desafia a noção de que o historicamente produzido deve ser

menosprezado como objeto da teoria‖. Mas, para isso, é preciso abrir mão da metodologia

tradicional de pesquisa, sacrificar as certezas epistemológicas da iconologia e, de certo modo,

abandonar a própria história da arte em sua constituição tradicional de disciplina acadêmica, e

procurar renovados referenciais teóricos. Razão porque Didi-Huberman recorre, muitas vezes,

à antropologia e à etnologia, alargando, diríamos inquietando, as fronteiras disciplinares.

Segundo ele, ―a antropologia (...) deslocou e desfamiliarizou – inquietou – a história da arte.

Não para dispersá-la numa interdisciplinaridade eclética e sem ponto de vista, mas para abri-

la a seus próprios ‗problemas fundamentais‗, que, em grande parte, continuavam no não

pensado da disciplina‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013b, p. 38-39).

A questão irresolvida da escrita se coloca ao lado da questão irresolvida do método de

pesquisa. Questão de saber com quais imagens o historiador deve trabalhar, por que, de que

forma, em que ordem. Pois o termo imagem abarca uma quantidade quase infinita de objetos.

Pensar sobre a eficácia da imagem é pensar, ao mesmo tempo, na eficácia de cada um desses

objetos para cada um dos sujeitos que com eles tomam contato, mas pensar também na

eficácia desse grupo imenso de objetos aos quais se pode dar o nome de imagem. A Didi-

Huberman importa dizer que os recortes feitos pela história da arte nessa coleção inesgotável

de objetos de conhecimento constitui, ele mesmo, motivo de reflexão histórica. Nesse sentido,

ele exemplifica: ―o ato de desenterrar um torso modifica a própria terra, o solo sedimentado –

não neutro, trazendo em si a história de sua própria sedimentação – onde jaziam todos os

vestígios‖. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 176). As imagens ocupam lugares, algumas

possuem acesso facilitado a museus, circulam por galerias de arte, ou são veiculadas

exaustivamente na mídia. Outras permanecem enclausuradas, impedidas, auráticas. Vivemos

um momento especial quanto ao estatuto da imagem na sociedade. Nosso autor bem o sabe,

tanto que, a um passo de propor a (re)montagem das imagens, ele sustenta:

Nunca, aparentemente, a imagem — e o arquivo que conforma desde o

momento em que se multiplica, por muito pouco que seja, e que se

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155

desejaagrupá-la, entender sua multiplicidade — nunca a imagem se impôs

com tanta força em nosso universo estético, técnico, cotidiano, político,

histórico. Nunca mostrou tantas verdades tão cruas; nunca, sem dúvida, nos

mentiu tanto solicitando nossa credulidade; nunca proliferou tanto e nunca

sofreu tanta censura e destruição. Nunca, portanto, — esta impressão se deve

sem dúvida ao próprio caráter da situação atual, seu caráter ardente —, a

imagem sofreu tantos dilaceramentos, tantas reivindicações contraditórias e

tantas rejeições cruzadas, manipulações imorais e execrações moralizantes (DIDI-HUBERMAN, 2012d, p. 209).

Assim considerando, é de se esperar que as imagens tenham eficácias heterogêneas,

polimorfas, diversas. Na verdade, Didi-Huberman insiste, as imagens tomam posição.

Perguntemos: que posição o historiador deve tomar? A figura do historiador aqui preconizada

não é daquele que julga o valor das imagens. Um historiador não é um juiz, ainda que

observe, analise, reflita. Ele não classifica, não hierarquiza. Apenas coloca as imagens sobre a

mesa de trabalho e as separa ou aproxima, organiza, reorganiza, movimenta seus intervalos.

Donde a apologia em Didi-Huberman da montagem:

a montagem será precisamente uma das respostas fundamentais a esse

problema de construção da historicidade. Porque não está orientada

simplesmente, a montagem escapa às teleologias, torna visíveis as

sobrevivências,osanacronismos, os encontrosde temporalidades

contraditórias que afetam cada objeto, cada acontecimento, cada pessoa,

cada gesto. Então, o historiador renuncia a contar ―uma história‖ mas, ao

fazê-lo, consegue mostrar que a história não é senão todas as complexidades

do tempo, todos os estratos da arqueologia, todos os pontilhados do destino

(DIDI-HUBERMAN, 2012d, p. 212).

Em movimento de montagem, as imagens podem evidenciar o quanto são eficazes em

revelar verdades históricas. E mesmo em prever catástrofes históricas. Nas processualidades

da montagem, as imagens tendem a entrelaçar temporalidades distintas. Como fantasmas da

história, podem revirar os escombros do tempo e oferecer interpretações impossíveis para a

análise de imagens por famílias de estilo. Benjamin e Warburg, como se viu, são as principais

referências para Didi-Huberman de um efetivo trabalho com as imagens que não as reduza em

categorias hierárquicas, nem iniba o poder de irradiação que podem produzir. A montagem

explora a eficácia das imagens de forma mais abrangente, pois não se prende aos

impedimentos impostos pela cronologia. De fato, com seu método de trabalho, Warburg

esperava mostrar que

uma análise iconológica que não se deixa intimidar por respeito

exagerado às fronteiras, que considera a Antiguidade, a Idade Média e

os Tempos Modernos uma época interligada, que interroga os

produtos das artes, quer sejam liberais ou aplicadas, como

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156

documentosexpressivos de igual dignidade, (...) que esse método,

empenhando-se cuidadosamente em esclarecer um ponto obscuro

singular, esclarece também os grandes momentos do desenvolvimento

geral em suas associações (WARBURG apud AGAMBEN, 2012b, p.

134)

Para poder colocar lado a lado imagens de temporalidades diversas e, mesmo assim,

conseguir produzir um discurso coerente, Didi-Huberman elevou a um grau de refinamento

estilístico aquilo que os historiadores da arte consideram seu maior pecado: o anacronismo.

Ao empregar a montagem como método, ele ―coloca em evidência os anacronismos, os

encontros de temporalidades contraditórias que afetam cada objeto, cada acontecimento,

condição sinequanon, já dizia Rancière, da escrita e do saber históricos‖ (FONTES FILHO,

2014, p. 193).

Invertem-se, com isso, os valores tão caros aos historiadores: a forma e o estilo como

categorias hierarquizantes; e o tempo como vínculo irrevogável da imagem. Para nosso autor,

a forma e o estilo não mais hierarquizam, pois a arte não evolui; diga-se, provocativamente: a

imagem do cinema é tão eficaz para nós quanto as pinturas rupestres eram para os humanos

do neolítico. Pois essa eficácia está na disjunção dos tempos, na confluência das tramas de

temporalidades, nas origens e nos desaparecimentos renovados a cada novo olhar. De algum

modo, Didi-Huberman parece tacitamente partícipe de uma recente reformulação da história

da arte para além do conceito (demasiado recente) de obra de arte . Leia-se o que, a respeito,

nos conta Huchet:

[...] a produção de imagens e de objetos ―estéticos‖ está presente em todas as

civilizações. Ninguém ousaria contestar o direito de os cenários de imagens

pintadas nos afrescos rupestres de Lascaux, de Altamira, da gruta Chauvet

ou do Vale do Peruaçu pertencerem à ―história‖ da arte. Reparamos, todavia,

que, por não datar do período da ―história‖, eles são estudados mais por

arqueólogos ou antropólogos do que por historiadores da arte. A

historiografia da arte é predominantemente uma história de imagens

―históricas‖. As imagens pré-históricas, cujo sentido histórico é quase

impossível de se estabelecer, perturbam o historiador que não pode aplicar a

elas os recursos de sua disciplina, tendo de optar por um ponto de vista que

leva em conta o próprio enigma da imagem, o que é considerado um risco

(HUCHET, 2014, p. 224).

Para nosso entendimento do real, o tempo é um dos elementos constitutivos e a

formaprimeira de experienciá-lo. Talvez essa verificação nos auxilie a elucidar porque a

temporalidade variada das imagens cause certo desconforto nos historiadores da arte: estes

associam, para cada objeto visual, um espaço de tempo delimitado, pois aceitam mal a ideia

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157

de algo que possa ocupar tempos diferentes ocupando o mesmo espaço. Entretanto, diga-

se,sequer há concordância filosófica entre o tempo físico (tido por absoluto) e o

tempocosmológico (considerado relativo); não deveria, pois, causar estranheza que o tempo

dos eventos e dos objetos não seja o mesmo tempo das imagens. A imagem é uma eficaz

crítica do tempo. Ela desestabiliza toda noção rígida de temporalidade.

Na verdade, a imagem desestabiliza os discursos consensuais. Quanto mais os limites

interdisciplinares tornam-se permeáveis pela prática do historiador da arte, mais objetos

visuais assumem o estatuto de objetos de conhecimento. O método da montagem contribui

para que não só as imagens canônicas sejam percebidas de outras formas, mas também que

mais objetos, mais rostos, mais formas anônimas sejam vistos. Indague-se: a mesa de

montagem resgata para a história da arte e para as próprias imagens seu valor ético perdido e

reivindicado pela modernidade? Ao colocar nas mãos do historiador o poder de aproximar

imagens de diferentes épocas, a montagem permite-lhe também aproximar diferentes etnias e

classes sociais – um contato que parece interditado aos próprios indivíduos? Por meio da

montagem, o historiador pode, pois, transformar barreiras sociais em pontes. No texto de

apresentação de Didi-Huberman da exposição, Atlas?Cómollevarelmundoacuestas?, da qual

foi curador, ele assevera:

Aby Warburg transformou o modo de compreender as imagens. Ele é para a

história da arte o equivalente ao que Freud, seu contemporâneo, foi para a

psicologia: incorporou questões radicalmente novas para a compreensão da

arte, e em particular a de memória inconsciente. Mnemosyne foi a sua obra

mestra e o seu testamento metodológico: reúne todos os objetos da sua

investigação num dispositivo de ―painéis móveis‖ constantemente montados,

desmontados, remontados. Aparece também como uma reação de duas

experiências profissionais: a da loucura e a da guerra. Pode ver-se então

como uma história documental do imaginário ocidental (herdeiro nestes

termos de ―Los Desastres de la Guerra‖ e de ―Los Caprichos‖ de Goya) e

como uma ferramenta para entender a violência política nas imagens da

história (comparável nisto ao compêndio de ―Los Desastres de la Guerra‖)

(DIDI-HUBERMAN, 2011c, p. 2-3).

Nas pranchas de Mnemosyne, o distante e o excluído se aproximam; um

mundopossível se abre para um diálogo sobre as diferenças. Mas seu poder é, justamente, o de

denunciar o que não existe, revelar o impossível: o sonho. A musa inspiradora do Atlas,

Mnemosyne, como nos conta Agamben , apoiado nas legendas da ninfa de Paracelso, não vive

em paz. Contraditória, ela permite imaginar, sonhar, despertar, pois, sendo imagem, ela é

visada, olhada, desejada; contudo, sendo imagem, ela deseja, ainda, tornar-se viva:

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158

Condenadas assim a uma incessante busca amorosa do homem, as ninfas têm

uma existência paralela na terra. Criadas não à imagem de Deus, mas à

imagem do homem, elas constituem uma espécie de sombra deste, ou de

imago (imagem) e, como tais, perpetuamente acompanham e desejam – e

são, por sua vez, por eles desejadas – aquilo do que são imagem. Somente no

encontro com o homem, as imagens inanimadas adquirem alma, tornam-se

verdadeiramente vivas (...).

A história da ambígua relação entre homens e ninfas é a história da difícil

relação entre o homem e suas imagens (AGAMBEN, 2012, p. 53-54).

Esse jogo do amor entre ninfa e homem é o jogo do amor entre pintor e tela, e

tantosoutros jogos amorosos que determinam, de certo modo, o pano de fundo da eficácia da

relação entre o ser humano e suas imagens. Assim, entendemos, com Didi-Huberman, ―que

um quadro durma, desperte, sofra, reaja, se negue, se transforme, ou se ruborize como o rosto de uma

amante quando se sente observado pelo amado; isto é tudo que se pode esperar da eficácia de uma

imagem‖ (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 37).

Imagens ajudam a sobreviver, a resistir; mas também a persistir na dor, a manter o

sofrimento. Imagens exibem o que queremos esquecer ou ajudam a esquecer a realidade que

não queremos ver. Seus efeitos dependeriam do uso, da intenção daquele que as usa? Convém

retomar: ―as imagens não devem sua eficácia apenas a transmissão de saberes (...) [mas] atua

constantemente nos entrelaçamentos ou mesmo no imbróglio de saberes transmitidos e

deslocados, de não-saberes produzidos e transformados‖ (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 23).

A imagem livra e acusa: é contraste, dialética sem síntese; em constante suspensão, é eficaz

em si e no seu contrário – a favor ou contra, aliada ou inimiga. Ao mesmo tempo, em vários

tempos, exige-nos que convivemos com a dúvida.

Talvez seja pertinente que nossa última palavra seja uma resposta dada por Didi-

Huberman a um jovem por ocasião de uma conferência ministrada no teatro de Montreuil, nos

arredores de Paris. Ele falava sobre as emoções, formas de expor, de sentir, de transmitir.

Fatalmente, uma das formas de transmitir eficazmente as emoções é por meio de imagens;

outro modo, pelos gestos. ―Por que passar pelas imagens e pelo aspecto dos corpos?‖, ele se

questiona. E complementa: ―porque, no fundo, não tenho certeza de estar buscando a essência

das coisas. Eu estou buscando sua aparição, o que é muito diferente‖ (DIDI-HUBERMAN,

2015, p. 61). Após explicar porque não concorda com a hierarquia filosófica entre aparência e

essência, nosso autor continua sua reflexão, em agradável linguagem juvenil, a nos permitir

vislumbrar, por meio de uma doce metáfora, que todo o esplendor da eficácia das imagens

está, enfim, menos em sua fixidez, permanência e memorização do que em sua fragilidade,

em seu caráter furtivo, desviante:

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159

o filósofo espera que Sócrates morra para somente então dizer qual é a

verdade do ―é‖ de Sócrates. Muitos filósofos têm essa atitude, inclusive

filósofos contemporâneos. Eles começam constando que alguma coisa está

morta para então dizer: ―eis o que essa coisa é‖. É fácil esperar que uma

coisa esteja morta para dizer o que é. Isso se chama metafísica. Não é o meu

negócio, eu prefiro que Sócrates continue vivo, que a borboleta continue

voando, mesmo que eu não possa pregá-la em um pedaço de cortiça para

dizer que a borboleta ―é‖ – decididamente – azul. Prefiro não ver

completamente a borboleta, prefiro que ela continue viva: essa é a minha

atitude quanto ao saber. Eu a vejo aparecer e tento pôr meu olhar em

palavras, em frases. Mas esse é um olhar tão frágil e furtivo quanto são

minhas frases; se elas forem impressas, elas durarão, para o bem ou para o

mal. Seja como for, é inevitável que a borboleta desapareça, já que é livre

para ir aonde bem quiser, e não precisa de mim para viver sua liberdade. Ao

menos eu terei apanhado em pleno vôo, sem guardar apenas para mim, um

pouco de sua beleza (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 62).

Page 162: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃOPAULO ESCOLA DE FILOSOFIA

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