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Caminhadas de universitários de origem popular UFSC Universidade Federal de Santa Catarina UFSC

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Caminhadas de universitários de origem

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UFSC

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Caminhadas de universitários de origem popular : UFSC / organizado por Ana Inês Souza,Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federaldo Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.96 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular)

Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade eas Comunidades Populares.

Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.ISBN: 978-85-89669-33-7

1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integraçãouniversitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.V. Universidade Federal de Santa Catarina. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII.Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.

CDD: 378.81

Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.

Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e SilvaJorge Luiz BarbosaAna Inês Sousa

Organização da Coleção: Monique Batista CarvalhoFrancisco Marcelo da SilvaDalcio Marinho GonçalvesAline Pacheco Santana

Programação Visual: Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ

Coordenação: Claudio BastosAnna Paula Felix anniniThiago Maioli Azevedo

I

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Ministério da Educação

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares

UFSC

Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ

Rio de Janeiro - 2009

Organizadores

Jailson de Souza e Silva

Jorge Luiz Barbosa

Ana Inês Sousa

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Adriana Camargo Martendal

Álvaro Alessandro de Faria Sousa

Clóvis Kuster dos Santos

Diézica Vargas

Eglê Ângela Ronsoni

Ezequiel Antonio de Moura

Fabrícia Bittencourt Gomes

Fernanda Peres

Fernando do Espírito Santo

Giselle Böger Brand

Jeder Fernando Martins

Juliana Mazurkievicz

Luiz Henrique Battaglin

Natália Cristina Santos Cipriani

Patrícia Gonçalves

Patrícia Nahirniak

Rafael Brandalise

Rafael Rodrigo Burato

Rosiane da Rosa

Thiago Arruda Ribeiro dos Santos

Thiago Mendes Guieiro

Coleção

AutoresPresidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministério da EducaçãoFernando HaddadMinistro

Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade – SECAD

André Luiz de Figueiredo LázaroSecretário

Armênio Bello SchmidtDiretoria de Educação para a Diversidade - DEDI

Leonor Franco de AraújoCoordenação Geral de Diversidade – CGD

Programa Conexões de Saberes:diálogos entre a universidade eas comunidades populares

Jorge Luiz BarbosaJailson de Souza e SilvaCoordenação Geral

Gilson BravianoCoordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFSC

Universidade Federal de Santa Catarina

Alvaro Toubes PrataReitor

Carlos Alberto Justo da SilvaVice-Reitor

Débora Peres MenezesPró-Reitora de Pesquisa e Extensão

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Prefácio

A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permi-tam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econô-mica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.

A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo impli-ca uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efeti-vamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pelamelhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de formaintensa e sistemática esses objetivos.

Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a lutacontra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por umlado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes univer-sitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-gradu-ação nas universidades públicas.

Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir daSecretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e repre-senta a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, nacidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de InteressePúblico Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede deUniversitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimentoem várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais,distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamoso Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos osestados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.

Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação comopesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógi-cas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais emcomunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de

1 A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, aomenos 35 bolsistas.

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práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origempopular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.

Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos doPrograma: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Cone-xões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantese ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esseslivros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, quecontrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes dascamadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para oscursos com menor prestígio social.

Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela constru-ção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira maisjusta e uma humanidade cada dia mais plena.

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Ministério da Educação

Observatório de Favelas do Rio de Janeiro

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Sumário

Apresentação ........................................................................................................ 9

Tente outra vez...Adriana Camargo Martendal ............................................................................ 17

Breve história da casa pra foraÁlvaro Alessandro de Faria Sousa ..................................................................... 21

Nunca é tarde pra se viverClóvis Kuster dos Santos .................................................................................... 24

Quem acredita sempre alcançaDiézica Vargas .................................................................................................... 26

As escolhas determinam vocêEglê Ângela Ronsoni .......................................................................................... 29

Identidade camponesaEzequiel Antonio de Moura ............................................................................... 31

Minha vida... meu espelhoFabrícia Bittencourt Gomes ............................................................................... 41

Minha origem...Fernanda Peres ................................................................................................... 45

Minha história estudantil...Fernando do Espírito Santo ............................................................................... 51

Percorrendo um caminho em que a estrada é a educaçãoGiselle Böger Brand ........................................................................................... 53

Em busca dos sonhos! Não desistas, sejas vitorioso!Jeder Fernando Martins ..................................................................................... 59

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Meu caminhoJuliana Mazurkievicz .......................................................................................... 64

A vida ao estudoLuiz Henrique Battaglin ..................................................................................... 67

Viva e deixe viver!Natália Cristina Santos Cipriani ...................................................................... 69

CaminhadasPatrícia Gonçalves .............................................................................................. 73

Sonho de criança que só se realizou agora...Patrícia Nahirniak .............................................................................................. 77

De onde venho!Rafael Brandalise ............................................................................................... 79

Aprender e aprenderRafael Rodrigo Burato ....................................................................................... 82

Minha nada mole vidaRosiane da Rosa .................................................................................................. 83

SimplistóriaThiago Arruda Ribeiro dos Santos .................................................................... 85

Pouca informação facilita a digestãoThiago Mendes Guieiro ...................................................................................... 90

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Apresentação

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Através de textos que utilizam um tom informal, os bolsistas do Programa Conexõesde Saberes, da Universidade Federal de Santa Catarina, escreveram sobre si. Suas trajetóriasde vida estão apresentadas nas próximas páginas e permitem ao leitor ter uma idéia de comovem ocorrendo o processo de identificação de cada um deles com sua origem popular.

Nas palavras da bolsista Adriana Camargo Martendal, acadêmica do Curso de ServiçoSocial, "o Conexões de Saberes me mostrou que não há distinção entre qualquer jovem e euque queira realmente fazer a diferença e mudar a realidade, nem que seja a realidade de seubairro". Adriana, que tem trinta e seis anos, inicia seu relato dizendo que a lembrança maisantiga que tem é a viagem de ônibus que a conduziu de Curitiba, sua cidade natal, até PortoAlegre. "Quando cheguei a Porto Alegre fui recebida com bastante euforia, bonecas, brinquedose tudo que se faz para que uma criança de cinco ou seis anos, que acabou de perder a mãe, foiafastada da família que conhecia e que foi levada por um pai que acabara de conhecer, precisapara se sentir querida e amada". Com o passar do tempo veio morar em Florianópolis e reside,hoje, na comunidade onde o Programa Conexões de Saberes está atuando, a Serrinha. Elafinaliza seu texto dizendo "hoje eu sei que tenho muito a aprender, mas também muito aoferecer e esta troca de saberes é o que enriquece a aprendizagem de todos".

Rafael Brandalise, do curso de Agronomia, diz em seu relato que o Conexões veio aacrescentar em sua vida não só profissionalmente, mas também por permitir que ele veja omundo sobre outra ótica, pois "formou-se um grupo de trabalho, onde os pontos de vista sãobem heterogêneos, o que causa alguns conflitos e ao mesmo tempo enriquece o grupo e oindivíduo em si".

Esta troca de saberes também é citada pelo bolsista Luiz Henrique Battaglin, docurso de Engenharia Elétrica, quando destaca que "depois que entrei no Programa Conexõesde Saberes evoluí muito, principalmente na questão humana, pois como adorador das exatassempre tive dificuldades com palavras e debates". Este mesmo aluno relata que se sentiumuito orgulhoso quando no primeiro dia de aula "uma professora fez a pergunta: 'quemveio de colégio estadual público?' e só tinha um, eu! Estar no quarto curso mais difícil deentrar, sendo o único representante do povão na sala de aula foi muita honra".

Nem todos os bolsistas entraram no Programa tendo consciência de sua identidadepopular. Fernanda Peres, acadêmica de Psicologia, relata que "eu tinha ingressado noprograma por causa da bolsa e só depois eu vi a grandiosidade deste projeto... Grandiosidadeporque é a primeira vez neste país que está sendo discutida a entrada e permanência deestudantes de origem popular dentro da universidade através de um programa". Ela ainda seposiciona em relação às experiências que está vivenciando, dizendo que "talvez eu sejaotimista demais e veja só o lado bom das coisas... mas eu prefiro o otimismo na prática queo pessimismo na razão".

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10 Caminhadas de universitários de origem popular

Os aspectos emocionais de cada mergulho pessoal, de cada história de vida, revelaramfaces muito interessantes nos relatos. A mesma Fernanda relembra que assim que seu pais secasaram "foram morar numa casinha simples que ficava nada menos do que no meio dequatro morros onde não passava ônibus. Eram morros enormes! Às vezes meus pais hoje nosmostram a casinha que até hoje está lá do mesmo jeito, como se ali o tempo não tivessepassado". Esses pais, que viveram de modo tão singelo escolheram o nome da filha de formasingular: "meus pais escolheram meu nome baseado num critério bem inovador, eu diria!Eles compraram um livro de nomes e meu pai queria um nome que combinasse com apalavra Doutora, pois ele queria que eu entrasse na universidade, e naquela época quemestava dentro da universidade era chamado muitas vezes de doutor. Então, depois decombinar vários nomes, eles decidiram que Doutora Fernanda ficava muito bem! Eu adoroestá história, pois para mim ela resume todo o esforço que meus pais fizeram durante toda avida para nos dar bons estudos".

Rosiane da Rosa, que cursa Enfermagem, relembra que "assim que acabou a licençamaternidade do meu nascimento, eu e minha irmã tivemos que ir morar com a minhaavó materna, pois minha mãe precisava trabalhar, já que o salário do meu pai não erasuficiente. Nos finais de semana íamos para casa, era aquela alegria. A minha mãe contaque quando passava na casa de minha avó para nos dar um beijo eu sempre queria ir comela, mas não tinha como ela me levar. Então ela falava que sábado viria me pegar e eudizia 'tu sempre diz isso e nunca vem'. Ela ia embora e eu ficava na porta chorando.Sempre que lembro disso me emociono. Como era difícil para minha mãe querer noslevar, mas não podia".

Um dos nossos bolsistas, Thiago Arruda Ribeiro dos Santos, do curso de CiênciasSociais, gostava muito da época de São Cosme e Damião, quando a criançada toda do bairroia de casa em casa pedindo doce. Em seu relato, conta que "juntava doce para vários meses,pois adorava. Minha mãe fazia questão de dividir com os vizinhos as guloseimas que eujuntava, dizendo que eu não precisaria de tudo aquilo. Eu odiava esta atitude e só depoisconsegui admirá-la como uma das qualidades de minha mãe".

Natália Cristina Santos Cipriani, acadêmica de Educação Física, que sempre viu opai trabalhando de segunda a segunda, lembra com comoção que, em determinado momentoda infância seu pai "estava como um louco, porque se não dessem a bolsa de estudos, elenão iria ter o dinheiro para deixar todos os filhos no colégio. Sentados todos na mesa, meupai pediu para eu ir preenchendo os papéis e ao fazer a pergunta: 'por que você está entrandocom o pedido de bolsa?' meu pai simplesmente respondeu: 'estou pobre' ".

Em diversas gerações, a família de Fernando do Espírito Santo, acadêmico deEducação Física, teve a pesca com ponto de partida para as conquistas materiais, semprecom muito trabalho, esforço e muitas vezes pouco retorno. Fernando "fazia parte da terceirageração de pescadores" e decidiu então, conforme suas palavras, "buscar algo maior (assimconsiderava) e me dediquei a estudar, largando a vida no mar".

Outra bolsista, Giselle Böger Brand, da Pedagogia, faz o seguinte relato: "Eu queriafestas de aniversários como as de minhas amigas, e quando fiz cinco anos convidei todas edisse que haveria uma festa em minha casa. Quando minha mãe viu aquela criançadachegando ficou desesperada e teve que pedir para meu irmão comprar as coisas da festa nomercado e pendurar na conta. Hoje, quando me lembro deste dia, dou muita risada, masdepois da festa a bronca correu solta, com toda razão é claro".

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O tom coloquial dos textos deste livro, onde estão presentes inclusive gírias, preservaa personalidade de cada aluno sem prejudicar o entendimento da mensagem que desejampassar. Alguns citam diretamente seus cursos, outros incluem em seus relatos temas relativosà natureza (terra, mar, montanhas), bem como arte, música, dança e esportes. Também estãopresentes percepções de sofrimento e dor (perdas, separações, mortes, preconceitos),contrabalançadas por citações de alegria, felicidade, paz, crescimento, fé, otimismo, união,confiança, força, superação, sonho e coragem. Em determinados relatos o enorme carinhopela família está explicitado de forma incondicional.

"Por isso digo, é impossível falar da minha trajetória sem fazer honrosas menções aessa mãe abençoada que eu tive a felicidade de ter. É nela que me espelho, é por ela que nãodesanimo e é para ela tudo que eu luto para conquistar todos os dias. A minha mãe, muitoobrigada, por ter me amparado, incentivado, por ter me amado, mais que a si mesma". Estetrecho foi escrito por Diézica Vargas, que cursa Nutrição.

"Sempre tivemos uma vida simples, trabalhando na roça, plantando fumo. Aprendia trabalhar desde criança, acompanhando meus pais na roça; fazia de tudo, capinava,plantava milho, feijão, e principalmente fumo, de onde sempre saiu nosso sustento,além de outras verduras e legumes que minha mãe sempre plantou. No entanto, tive umainfância invejável, sem brinquedos caros 'comprados', porém tínhamos a tranqüilidadedo meio rural, a liberdade para correr nos campos, brincar, subir em árvores, convivendocom animais". Juliana Mazurkievicz, estudante de Agronomia, diz ainda: "Quanto aomeu pai, sei que por ele os filhos não teriam saído de perto, contudo hoje ele tem omaior orgulho de dizer que a filha dele será uma agrônoma. Minha mãe foi a maisincentivadora, que sempre batalhou para conseguir o mínimo para nós. E meus irmãosamados... foram poucas as brigas, na verdade não tivemos muito tempo para brigar, poissaímos de casa cedo. E agora longe de todos vejo o quanto é importante se ter umafamília apoiando".

"Pai e Mãe! Obrigada pela confiança, pelo carinho pelos muitos 'não'. Vocês sãoexemplo de caráter, humildade, solidariedade, dedicação. Pai, herdei de ti minhasensibilidade. Mãe, de ti guardo o senso de justiça, de correr atrás sempre. Amo vocês detodo meu coração! Obrigada por tudo. Desculpa por estar longe." Essas palavras de MariaClaudete Machado Ferreira, acadêmica de Biblioteconomia, são estendidas aos irmãos:"Lembrar de vocês, de tudo que passamos juntos, da nossa infância dá uma saudade imensa!Um dia o pai disse que se pudesse ele construiria um prédio com andares para cada um denós morarmos perto dele e da mãe, lembram? É assim que gostaria que fosse! Mas comocada um seguiu seu caminho quero que saibam que penso em vocês todos os dias comcarinho e torço pela felicidade e realização de vocês! Que bom que é poder ir para casa e nosreunirmos! Amo vocês!" E, em tom mais poético, ela externa em sua amplitude todo osentimento: "Tenho minha família como meu porto seguro para onde volto em busca deforça para continuar e lembrar da minha essência. Eu agradeço a Deus por ter caído em seusbraços, ser cuidada e amada por vocês! Com o outono aprendi que dificuldades, saudades,limitações são as folhas amarelas da estação e que indicam sua passagem e cabe somente amim a aprendizagem".

Alguns bolsistas optaram por usar um tom mais poético, mesmo que em versos livres,como Thiago Mendes Guieiro, que cursa Cinema.

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12 Caminhadas de universitários de origem popular

"Inúmeras trocas de emprego do paiTroca de imóveis tambémSempre para outros mais baratosDilui-se um patrimônio menor que vintém

Instabilidade emocional na famíliaDesde sempre afetou a criaçãoMotivos comuns, dinheiro e mentiraEufemicamente intitulo, falta de comunicação"

Desta forma foram se desenvolvendo os relatos do grupo de bolsistas da UFSC, comlinguagem flexível, em diversos graus de intimidade, pois a desmistificação dos estereótiposnão é algo que ocorre em um curto espaço de tempo. Encontramos, apesar desta dificuldade,relatos focalizados ora em análise pessoal, ora em análise da sociedade.

"Porém, uma das maiores lutas, com certeza, foi entrar em uma universidade públicafederal. Quantos vestibulares, quantas noites sem dormir, quantos livros a mais tive queestudar para poder compreender o que se deveria saber no ensino fundamental e médio. Seique é mais cômodo achar culpados para nossas derrotas, mas não posso deixar de atribuir aculpa, ou parte dela, ao fraco e alienado estudo que tive no decorrer de minha vida escolar.Um ensino, que reproduz as desigualdades sociais, professores desqualificados edespreparados que repassam o conteúdo, em que o aluno finge que apreende e o professorfinge que ensina". Eglê Ângela Ronsoni, do curso de Serviço Social, finaliza seu textodizendo: "E agora estou aqui, escrevendo minha história e confesso que estou num períodode muitos conflitos ainda e que preciso resolver comigo mesma, como sempre foi".

"Tive de sair do campo, ir para cidade, entrar na Universidade, para descobrir que omeu lugar está lá, o campo. Tive que conhecer pessoas novas, outras formas derelacionamento, para descobrir que a minha gente continua lá, no campo. Mas descobritambém que minha estada na Universidade não é em vão, pelo contrário, tenho a nobremissão de adquirir novos conhecimentos, novas experiências, vivências diferentes e agregá-las ao campo - de onde vim e para onde retornarei. [...] Descobri que tanto a causa ambientalda Floresta com Araucárias, quanto às condições para mudança de vida do meu povo nãodependem apenas da minha presença nesses espaços. Depende de também de toda a bagagemteórica que eu posso assimilar na Universidade e que seja útil para uma nova visão demundo para meu povo e abra possibilidades concretas de transformação social." EzequielAntônio de Moura, que cursa Ciências Biológicas, diz ainda que tentava buscar explicaçõesna mente para tamanha identificação com aquela realidade, com aquele povo, com aquelaforma de atuação universitária. A resposta, ele mesmo apresenta: "Encontrei-as na minhainfância, durante todo o tempo que vivi no campo, lembrei dos meus tios que viveram soba lona preta, lembrei do meu sentimento de responsabilidade social, lembrei das profundasreflexões que a greve estava me proporcionando. Desse momento em diante, busqueiconhecer mais sobre o MST, voltei a ter contato com minha família paterna que morava emassentamentos, fiz estágios de vivência com o MST". Ezequiel estabelece um forte vínculode identidade e trajetória de vida: "Me descobri, na minha identidade, na minha história, nomeu compromisso, na minha missão. Foi o Programa Conexões de Saberes que me mostroucomo toda essa identidade é resultado da minha origem popular, da minha vivência

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Universidade Federal de Santa Catarina 13

camponesa e que todo esse acúmulo enriquece a vida universitária. São os conhecimentose experiências dessa trajetória que podem mudar o caráter atual da Universidade - ou suafalta de caráter. Descobri - contraditoriamente, pois o Programa Conexões de Saberes naUFSC reproduziu a mesma lógica universitária - a necessidade de construir uma UniversidadePopular, onde os próprios sujeitos das realidades a serem transformadas protagonizem atransformação social".

"Acordo diariamente às 6h da manhã, vou para a Universidade de ônibus, nas condiçõesque toda a massa trabalhadora e explorada conhece: superlotação, tarifa abusiva, atrasosnos horários, estradas e ônibus em condições precárias, péssimas, indignas e ainda porvezes os funcionários do ônibus e passageiros que, alienadamente, em conseqüência doesgotamento acumulado por tais situações diárias, se ameaçam e se agridem, culpando unsaos outros pelos acontecimentos do mundo! Quando consigo passar por tudo isso semmaiores complicações (como o ônibus quebrar ou um acidente que interrompe o trajeto,greve dos funcionários da empresa do ônibus, atrasos ou adiantamentos nos horários dositinerários etc.) chego a Universidade após uma hora, para assistir quatro aulas que quandonão são monótonas, exaustivas e reprodutoras da ideologia dominante, são produtivas. Aotérmino das aulas, sigo apressadamente com alguns amigos para a gigantesca fila dorestaurante universitário e após uns quarenta minutos, almoço. No período vespertino atémetade do noturno me desdobro em atividades da bolsa e atividades extracurriculares".Patrícia Gonçalves, acadêmica de Serviço Social, finaliza seu relato dizendo que "o convíviocom os outros bolsistas e pessoas que estiveram presentes nesta trajetória, foi uma experiênciaválida. Os espaços de discussões e reflexões levantados acerca de assuntos pertinentes àuniversidade e sua lógica histórico-estrutural e ainda temas relevantes ao cotidiano dasociedade, foram importantes para a minha auto-reflexão enquanto aluna em processo deformação e enquanto ser humano que não pode deixar de se sentir mobilizado em lutar, emconjunto com os demais interessados, por mudanças na estrutura e nas relações da sociedade".

Essas questões, levantadas em alguns relatos, ilustram diversos graus de amadurecimentoe preocupações com a sociedade. Os alunos de origem popular se encontram, na sua maiorparte, em cursos onde a relação candidato/vaga é baixa, entretanto isso não é regra. No Programada UFSC estão inseridos acadêmicos dos cursos mais concorridos, como Ciências Biológicas,Nutrição e Odontologia.

Patrícia Nahirniak, do curso de Odontologia, relata que "já sabia, os gastos erammuitos, para poder pagar o meu material odontológico e a família toda ajudava. Mas aochegar na quinta fase o orçamento do material foi de quase cinco mil reais e era inviávelpara nossa família. Tínhamos a opção de fazer um empréstimo, mas e depois como pagar?Foi nesta fase que descobri um serviço da universidade de apoio ao aluno, que através deuma entrevista e cadastro sócio-econômico me permitiu cursar regularmente o curso atravésdo pagamento dos meus materiais". Jeder Fernando Martins, que também cursaOdontologia, diz: "o Programa Conexões de Saberes representou muito pra mim. Amadurecimuito e convivi com realidades, embora eu sendo de origem popular, as quais nunca tivecontato. Como a vivida por muitos moradores da Comunidade da Serrinha, que conheci nolocal de atuação do Programa". Jeder relata que no consultório do Colégio de Aplicação,ele, com os outros bolsistas da Odontologia, realizaram atendimentos clínicos; além disso,na Casa São José (comunidade da Serrinha), foram efetivados trabalhos preventivo-educativos junto às crianças do local. Continua dizendo que "embora muitos problemas

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14 Caminhadas de universitários de origem popular

tenhamos enfrentado no decorrer deste um ano de Programa, conseguimos desenvolveralgumas ações, as quais nos deixam muito gratificados e nos fazem crescer, adquirirexperiência profissional, acadêmica e social. O Programa representa muito pra mim, alémde tudo, auxilia na minha permanência na Universidade". Fabrícia Bittencourt Gomes,acadêmica de Odontologia, finaliza seu texto dizendo: "Agora sou bolsista do ProgramaConexões de Saberes, em que estou mais aprendendo do que ensinando. Levarei essaexperiência para sempre em minha vida, pois mesmo fazendo um curso considerado deelite, minha origem popular só me traz forças para cada dia de minha vida".

A riqueza dos relatos de vida que estão presentes neste livro é inquestionável. Essesrelatos são o passo inicial para um trabalho maior, o qual poderá mostrar a outros jovens deorigem popular que não é impossível ter acesso a uma universidade pública. Mais que isso, hácaminhos para a permanência com qualidade. Rafael Rodrigo Burato, matriculado emAgronomia, diz: "estar na universidade é um sonho do qual me orgulho a cada dia e fazer bomproveito desta chance é algo de que não abro mão. Foram sete vestibulares para chegar até aqui".

Clóvis Kuster dos Santos, que cursa Geografia, lembra que "prestei meu primeirovestibular em 2002, para entrar em 2003, para o curso de Direito. Não passei por ter ido malna prova de língua portuguesa [...] então, fiquei sem saber o que realmente queria fazer [...]trabalhei de servente de pedreiro [...] aproveitei esse período para pensar no que realmentequeria da vida. Estava lendo os livros obrigatórios para prova de literatura do vestibular daUFSC, tentando ver em que curso que me inscreveria e optei por Geografia. Passei novestibular de 2004!" Quando veio a aprovação, ele relata que "minha mãe chorou feitocriança e tremia também. Acho que a maior realização foi dela, pois ela havia prometidopara meu avô, pai dela, que eu seria o primeiro neto dele a entrar numa universidade".Clóvis conta ainda que "o primeiro ano de faculdade não foi fácil [...] a grana continuavacurta, nos finais de semana ia para casa de praia trabalhar de servente com meu vizinho queestava construindo sua casa [...] eu também comecei a procurar algo para fazer na universidadee consegui no serviço social de Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis".

Outro aluno de Geografia, Álvaro Alessandro de Faria Sousa, se descreve como filhode Joaquim, "um negro forte, desses que trabalharam desde sempre na roça e na construçãocivil" e de dona Cida, "branca, mineira, daquelas que não sabem e nem fazem questão desaber as origens, se de Portugal ou Espanha, tanto faz, era mais uma branca pobre". Na suavida o trabalho sempre esteve presente. Falando em terceira pessoa, ele conta que "as estruturasfinanceiras do lar estavam definitivamente abaladas. Álvaro começou a trabalhar de ajudantede mecânico em uma oficina próxima. Depois de empacotador no mercadinho. Seus irmãosmais velhos também já trabalhavam para se sustentar [...] chegando no médio desistiu noprimeiro ano pra trabalhar. E foi todo assim o segundo grau: idas e vindas até terminar nosupletivo a distância que havia no bairro ao lado". Tentou realizar vários cursinhos pré-vestibulares, mas sem dinheiro e muito cansado acabou sempre desistindo. Quanto aosvestibulares, Álvaro lembra que "não teve coragem de investir R$ 70,00 sabendo que nãoteria a menor chance". Quando, pela primeira vez na vida, fez o exame vestibular optandopela carreira de Ciências Sociais, não foi aprovado. Álvaro relata que "mesmo sendo previsívelo resultado, é difícil evitar a frustração". O resultado de tanta luta e tamanho esforço acabouchegando. Ainda usando a terceira pessoa, Álvaro relata que: "Já desempregado, no dia 31de dezembro ele foi até a Lan House mais próxima de sua casa e entrou no site da UFSC paraconstatar uma de suas maiores felicidades: havia sido aprovado para o curso de Geografia

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noturno. Foi tamanha a sua emoção, parecia que tirava um peso das costas. Agora era partirpara faculdade tentando aproveitar tudo o que ela poderia lhe oferecer, tanto no campo dasidéias como na base material. E foi o que aconteceu: logo no primeiro semestre conseguiuuma bolsa de trabalho e a moradia estudantil".

Cabe, aqui, agradecer à professora Ana Cristina Alves da Silva que, magnificamente,trabalhou com nossos bolsistas, durante o curso de produção textual, a desmistificação dosestereótipos e apontou os caminhos para a produção de cada trajetória, interferindo o mínimono conteúdo ou estilo, evitando a produção de textos artificiais. Esta mesma professoracontempla nossos queridos bolsistas com um soneto:

Soneto aos alunosTantos sonhos, tantas históriasImpactantes, abrilhantadas,Tão jovens a escrever suas memóriasE marcando já suas caminhadas.

Aquele sofreu, aquela partiu,o outro foi e voltou,A menina aprendeu, o menino caiu,Cada um sorriu e chorou.

A pessoa que hoje ensina,Ouviu, admirou-se, respeitouAlém da identificação, se fascina.

Mas acima de tudo, às minhas origens volteiPelas obras dos mais jovensAprendi muito mais do que ensinei.

Ana Cristina (11/05/07)

Quero finalizar esta apresentação parabenizando aos bolsistas que enfrentaram o desafiode viajarem nos caminhos profundos de suas histórias de vida, escrevendo sobre si e,corajosamente, expondo suas trajetórias. Este trabalho começou em julho de 2006, comatividades propostas pela coordenação do Programa, e se estendeu até o mês de abril de2007, quando, após a realização de um curso de produção textual, os textos foram finalizados.A cada um desses acadêmicos, mais uma vez, parabéns.

Prof. Gilson Braviano e Profa. Eunice Sueli Nodari

Coordenadores do Programa Conexões de Saberes na UFSC

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16 Caminhadas de universitários de origem popular

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* Graduanda em Serviço Social na UFSC.

Tente outra vez...

Adriana Camargo Martendal*

Tente, levante sua mão sedenta e recomecea andar,Não pense que a cabeça agüenta sevocê parar.

Raul SeixasNem eu mesma sei direito como começa a minha história, pois a lembrança mais

antiga de pensamento que tenho é da viagem de ônibus que me conduziu de Curitiba,minha cidade natal, até Porto Alegre. Esta viagem mudou o meu destino, mas para quepossam entender melhor voltarei no tempo alguns anos.

Minha mãe era uma pessoa humilde, do interior, que foi viver na metrópole a procurade trabalho, no caso em Porto Alegre. Ela era ajudante de costura de um alfaiate, quandoengravidou, foi despedida e retornou para Curitiba buscando o apoio da família. Passadosalguns anos, ela adoeceu e veio a falecer. Eu fiquei então sob os cuidados de uma tia, quenão tendo condições de cuidar da própria família, pois era empregada doméstica e conviviacom o problema do alcoolismo dentro de sua casa, me "deu" para uma outra família criar.Hoje isto não é tão comum, mas naquela época, nas camadas mais carentes da população,isto representava um ato de cuidado e zelo das famílias. Depois de algum tempo, meu paisoube da morte de minha mãe e foi me buscar em Curitiba, para que eu fosse viver com elee os pais dele. Aí começa a minha história, a viagem de ônibus, na madrugada, olhando a luaque segundo meu pai iria comigo até Porto Alegre, porque gostava de mim e não queria ficarsozinha em Curitiba.

Quando cheguei a Porto Alegre fui recebida com bastante euforia, bonecas,brinquedos e tudo que se faz para que uma criança de cinco ou seis anos, que acabou deperder a mãe, foi afastada da família que conhecia e que foi levada por um pai queacabara de conhecer, precisa para se sentir querida e amada. Estas pessoas foram aminha verdadeira família, pois sempre priorizaram minha formação como pessoa. Minhaavó, “Dona” Carmen, meu avô, "Seu" Oscar, minha tia Norma que morava conosco, meutio Juarez - que saudades de seu violão na beira da praia! - e meu pai que se casou tevemais uma filha e foi viver em outro bairro.

Eu entrei na escola com sete anos e fiz a primeira série, em Porto Alegre, não me lembro deter tido alguma dificuldade. A não ser com meus amiguinhos que perguntavam sobre e minhamãe e eu dizia que não a tinha, então eles viviam me caçoando. Quando passei para a segunda

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18 Caminhadas de universitários de origem popular

série, minha tia passou em um concurso para a FATMA (Fundação de Amparo a Tecnologia e aoMeio Ambiente), em Florianópolis, então toda família se mudou e conseqüentemente eu tambémmudei de escola. Como a minha tia agora tinha um emprego que lhe dava estabilidade e era maisbem remunerado, nossa situação financeira melhorou. Então ela me matriculou no ColégioAntônio Peixoto, porque ficava perto de nossa casa e era um colégio pequeno, porém, particular.Estudei lá a segunda e terceira séries do ensino fundamental.

Na quarta série minha avó teve um problema de saúde e teve que viajar para São Pauloa fim de fazer o tratamento, então eu voltei para Porto Alegre, para ficar uns tempos com meupai e passei a estudar num grupo escolar que ia até a quarta série do primário. Este grupo ficavana zona rural e a caminhada para chegar ao colégio era feita em trinta minutos por uma estradapoeirenta, ou lamacenta, dependendo da meteorologia (bons tempos aqueles...), fiquei umtempo com meu pai e depois, por ciúmes de minha madrasta, lá foi a Adriana de novo morarcom uma família amiga, que me acolheu e me deu suporte enquanto minha avó se recuperava.Passado este ano terrível, voltamos então para Florianópolis e fui estudar em outro colégio,agora estadual, porque afinal a doença da minha avó gerou custos além dos previstos.

Já na sexta série, nos mudamos de bairro e eu mudei de colégio novamente, passandoa estudar em um outro colégio estadual. Neste colégio foi onde tive meus primeirosproblemas de relacionamento, pois estava no início da adolescência, com váriosquestionamentos quanto à família e ao meu papel dentro dela. Devido a estes problemase já com a situação financeira estabilizada, minhas sétima e oitava séries voltaram a serfeitas em um colégio particular. Quando passei para o segundo grau, resolvi por contaprópria fazer a prova de seleção para a Escola Técnica Federal de Santa Catarina, e passei.Comecei então o curso, sendo o primeiro ano núcleo comum, onde tive dificuldades emalgumas matérias, ficando em recuperação em cinco delas. Uma semana depois tinha quefazer as cinco provas e consegui as médias, passando assim de ano. Porém meu avô nãoacreditando que eu pudesse passar já me matriculara em um colégio de aplicação dafaculdade de Pedagogia para que eu fizesse o magistério, com um agravante, me matriculouno primeiro ano. Depois disto, fui para o Colégio de Aplicação da UDESC, onde fiz osegundo e terceiro anos.

Minha vida novamente deu uma guinada de 180º: conheci meu marido e em trêsmeses, devido a problemas com a minha família, eu estava casada. Depois que me caseisó me restava o estágio para concluir o magistério, mas meu empregador não me liberoue então eu abandonei faltando um mês para terminar. No ano seguinte, minha tia, aoperceber minha vontade de passar no vestibular, pagou um curso particular que meproporcionou o término do 3º ano e a felicidade de passar no vestibular para Biologia,na primeira chamada. Apesar de estar muito feliz, quando comecei não me identificavanem com o curso e nem com a universidade em si, pois meus colegas não se preocupavamcom as contas no final do mês, nem com a comida na mesa e a mim pareciam muitosuperficiais. Então, no primeiro semestre abandonei o curso de Biologia e me dediqueisomente a casa e ao meu marido que também cursava uma faculdade. O tempo passou,meu marido abandonou a faculdade e abrimos uma pequena empresa de representações,que nos levou à cidade de Blumenau onde ficamos durante cinco anos.

Em Blumenau tivemos nossa primeira filha, que foi alegria de nossa vida e então eu jánem pensava mais em voltar a estudar, pois a rotina nos manipula de uma tal maneira quenossos sonhos e aspirações adormecem e ficam em estado latente até que algo ou uma

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situação os desperte. Quando minha filha acabara de completar três anos, descobri a segundagravidez, que ocorrera sem planejamento algum, diferente da primeira que foi planejada eesperada. Passado o susto, aceitei meu segundo filho e passei a planejar sua chegada, fazendopré-natal, compras etc...

Minha gravidez foi tranqüila e bem acompanhada, porém tive uma anemia profundaque precisou ser acompanhada de perto. Faltando quinze dias para o fim do prazo, meu filhoresolveu nascer, era dia 02 de setembro, feriado municipal em Blumenau, dia de festa edesfiles típicos, por este motivo demorei um pouco mais para chegar à maternidade e quandofinalmente consegui chegar, meu filho estava em sofrimento fetal. Quinze minutos após aminha chegada no hospital ele nascia pesando 3,5 kg e em parada cárdio-respiratória, foiressuscitado na sala de parto e imediatamente encaminhado para a UTI pediátrica de umoutro hospital. Neste instante eu fui sedada para que fossem terminados os procedimentosda minha cesariana. E aí começa a minha caminhada para meu segundo vestibular.

A partir do nascimento do meu segundo filho e com todos os problemas decorrentesdeste episódio, meu sonho de voltar a estudar foi ganhando forma e por isto hoje possocontar esta história, para que possa servir de inspiração para outras pessoas que acham,talvez, ser tarde demais para recomeçar.

Este pequeno aparte na minha narrativa se deve ao fato de que foi através desteacontecimento da minha trajetória que o sonho latente, despertou.

Foi assim, meu filho nasceu em 1997, de um parto que se complicou e por esta razãoseu pequeno cérebro foi lesado e estas lesões resultaram em seqüelas em seu sistema motor,que o impedem de falar, caminhar, sentar, enfim, todas as suas ações dependem de ummediador para que possam ser efetivadas. Neste ano me mudei de Blumenau paraFlorianópolis, porque o nascimento de uma criança especial desestrutura qualquer famíliae comigo não foi diferente. Viemos para Florianópolis procurar o apoio da família, já quemeu marido é natural daqui. Passei seis anos de minha vida em instituições que atendemcrianças com deficiência, ora procurando atendimentos de fisioterapia e fonoaudiologia,ora buscando tecnologias que proporcionassem melhor qualidade de vida ao meu filho.

Em todas estas instituições, passei por assistentes sociais e passei a adquirirconhecimentos sobre leis e direitos que contemplam a pessoa com deficiência e na maioriadas vezes, os pais ou responsáveis por estas pessoas desconhecem. Isto me fez questionar aatuação de todas as assistentes sociais pelas quais passei e que não me esclareceram demodo algum sobre todas as minhas dúvidas e principalmente sobre os direitos destes cidadãos.Diante desta lacuna na minha trajetória de vida, resolvi conferir com meus próprios olhos sea atuação destas profissionais estava correta ou se eu podia fazer algo mais.

Resolvi então prestar vestibular para Serviço Social no ano de 2002. Consegui isençãoda taxa de inscrição e, na correria do dia-a-dia, não consegui estudar. Mesmo assim, no diamarcado compareci, fiz a prova com tranqüilidade, pois não havia estudado, então se nãopassasse só estaria afirmando o que esperavam de mim. Para minha surpresa, no dia doresultado uma amiga me ligou dizendo que meu nome estava na listagem e que eu haviasido aprovada. Minha euforia foi muito grande, me senti novamente com 19 anos, comoquando passei no meu primeiro vestibular.

Desta vez, porém, apesar da minha idade, hoje estou com 36 anos, me senti totalmenteaceita pelos meus colegas e o campus não me assusta mais como antigamente. Minha turmajá está se formando, porém, eu, devido a minha vida ser um pouco mais complicada estou

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20 Caminhadas de universitários de origem popular

fazendo mais devagar, mas tenho certeza que terminarei o curso e quero trabalhar compessoas com deficiência e pretendo fazer a diferença para estas pessoas, assim como um diauma assistente social fez a diferença para mim. Fez-me ver o que eu não devo ser, quecaminho eu não devo seguir e por isto eu serei eternamente grata a ela e por motivos óbviosnão citarei seu nome.

O Conexões de Saberes me mostrou que não há distinção entre qualquer jovem e euque queira realmente fazer a diferença e mudar a realidade, nem que seja a realidade de seubairro. Hoje eu sei que tenho muito a aprender, mas também muito a oferecer e esta troca desaberes é o que enriquece a aprendizagem de todos.

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* Graduando em Geografia na UFSC.

Álvaro Alessandro de Faria Sousa*

O professor Joaquim estava bem tranqüilo naquela manhã do dia dezoito de marçode 1981. Ele sabia que a gestação de sua esposa Cida estava chegando ao fim semmaiores complicações e esse era o dia marcado para a cesariana. Por que cesariana?Porque Dona Cida não tinha movimentos de contração necessários para fazer um partonormal, fato já conhecido pela família que anteriormente já vivera essa situação com osoutros dois filhos.

Às 11:30 da manhã nasceu um menino aparentemente saudável, com uns três quilos epoucos. No cartório o registro: Álvaro Alessandro de Faria Sousa, cor: parda. Parda? Pois é,Joaquim é um negro forte, desses que trabalharam desde sempre na roça e na construçãocivil e dona Cida era branca, mineira, daquelas que não sabem e nem fazem questão de saberas origens, se de Portugal ou Espanha, tanto faz, era mais uma branca pobre.

A infância se passou de modo relativamente tranqüila no bairro suburbano Alto daPonte, na cidade São José dos Campos, no interior de São Paulo, com aquelas dificuldadesque enfrentam todas as famílias periféricas: a correria diária para ter o pão de cada dia namesa. Nessa época Seu Joaquim trabalhava na construção civil e estudava matemática edona Cida logo que pôde, voltou a trabalhar no hospital onde desempenhava a função deauxiliar de enfermagem.

Aperta daqui, espreme de lá, sempre dava pra fechar as contas no limite. Seu Joaquimterminou o estudo e parecia que as coisas iriam melhorar. Nessa altura o menino Álvarodevia ter uns 11 anos. Estudava na Escola municipal do bairro e era um bom aluno, muitoquerido pelos colegas e professores. Ele era muito bom de bola e de papo, conseguia cativaras pessoas. Mas se as coisas iam bem na escola, em casa não era bem assim.

Dona Cida trabalhava todas as noites fazendo plantão no hospital e seu Joaquimcomeçou a sair sempre à noite pra farrear, beber e jogar com o pessoal dos botecos. A relaçãoentre o pai e os filhos ficava cada vez mais explosiva, já que o primeiro sempre chegavaalterado em casa, procurando motivos pra brigas, que não se restringiam ao pai e os filhos,mas que eram maiores com a esposa.

A doçura da infância se transformou em amargor na adolescência. Aos 15 anos deidade Álvaro já não falava com seu pai devido às brigas intensas. Com a mãe era um poucodiferente, ainda havia um respeito, porém misturado com decepção porque Dona Cidapassou a beber também e, pior, a jogar.

Breve história da casa pra fora

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22 Caminhadas de universitários de origem popular

Então as estruturas financeiras do lar estavam definitivamente abaladas. Álvaro começoua trabalhar de ajudante de mecânico em uma oficina próxima. Depois de empacotador nomercadinho. Seus irmãos mais velhos também já trabalhavam para se sustentar.

Certo dia, Álvaro conheceu um menino numa praça e aquele dia foi muito especial praele. O menino tinha no colo um violão e tocava mais ou menos bem, bem o suficiente para queÁlvaro se encantasse com o instrumento. Ele se apropriou de um violão velho e meio quebradoque seu pai possuía (seu pai não sabia tocar) e começou a aprender.

Com 17 anos ele passava perto do Centro Comunitário do bairro quando viu umanúncio: Cursos de Auxiliar de Enfermagem Gratuitos... ele se matriculou juntamente comseus irmãos e todos fizeram esse curso, mesmo com toda a dificuldade de estudar, trabalhare fazer o estágio obrigatório.

Depois que terminou o curso ele conseguiu um trabalho no Hospital Maternidade dacidade. No trabalho as coisas iam bem, ele conquistara a amizade muitos e era um excelentefuncionário, mas em casa as relações estavam mais complicadas ainda: o pai e a mãe bebiame jogavam sempre, os irmãos já não se entendiam, o mais velho também usava drogas.

A vida estudantil de Álvaro também foi tumultuada. Terminou o ensino fundamentalsem muitos problemas, mas chegando no médio desistiu no primeiro ano pra trabalhar. E foitodo assim o segundo grau: idas e vindas até terminar no supletivo a distância que havia nobairro ao lado. Nesse processo de supletivo ele conhece Ricardo, um grande amigo eincentivador. Ele começou a falar sobre faculdade e vencer na vida. Convenceu Álvaro afazer um cursinho pré-vestibular (muito caro). Mas ele não ficou nem dois meses, pois odinheiro não alcançava e ademais, ele mal podia agüentar uma hora acordado dentro da salade aula, tamanho era o seu cansaço.

Ricardo passou na USP, em Física, e foi morar em São Paulo, não sem antes dar o seguinteconselho a Álvaro: "estuda, maluco, estuda de verdade que você consegue, esse é o único jeitoque temos pra vencer na vida, só assim você vai conseguir sair do inferno que é a sair casa".

No ano seguinte Álvaro se matriculou novamente no cursinho, mas desistiu no terceiromês porque ficou desempregado. Novamente as correrias: se vira daqui e dali fazendo bicoaté que conseguiu trabalho em outro hospital, mas naquele ano já era tarde para o vestibular,não teve coragem de investir R$ 70,00 sabendo que não teria a menor chance.

No ano seguinte, ele se matriculou em um cursinho mais barato e extensivo pra aprendero máximo que pudesse, porém mais uma vez teve que desistir por problemas de dinheiro etempo, e o pior, foi mandado embora do trabalho, mas dessa vez com um acordo pra recebertodos os seus direitos. E a situação em casa só piorava, muitos atritos e brigas se sucediamdia após dia. Era chegada a hora de partir.

Já fazia algum tempo que ele pesquisava sobre qual seria o lugar onde ele iria prestaro vestibular, qual estado ele teria mais chance e qual era a carreira que seguiria. Nessemomento sua vontade era fazer Biologia, mas sabia que era bastante concorrido. Outracarreira que ele se interessava era a de Ciências Sociais, movido pelo sentimento de tentarentender e interferir nos rumos da sociedade.

Essa pesquisa apontou a cidade de Florianópolis como a mais indicada, por uma série defatores: a relação candidato vaga era favorável, a cidade tinha uma fama de tranqüilidade (coisaque ele procurava há muito tempo); a beleza da cidade também foi decisiva para a escolha, semcontar que foi uma ex-namorarda do nosso querido herói quem deu a dica: ela estava morandoem Florianópolis, trabalhando em uma lanchonete e tentando entrar na faculdade.

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Sem perspectivas de ficar na casa dos pais por nem mais um minuto, com o dinheirinhodo acerto de contas do trabalho e muita vontade de vencer e ser feliz, ele entrou num ônibusde terceira classe e chegou na Ilha de Santa Catarina no ano 2002. E felizmente foirecepcionado pela ex-namorada que foi muito importante em todo esse processo.

Pela primeira vez na vida fez o exame vestibular optando pela carreira de CiênciasSociais e como mais ou menos o esperado, não foi aprovado. Mesmo sendo previsível oresultado, é difícil evitar a frustração.

Conseguiu um emprego no Angeloni como frentista de posto de gasolina e estavadisposto a fazer o cursinho pré-vestibular para valer, para ser aprovado. Chegou a sematricular, mas não teve condições financeiras nem de tempo para estudar. Mas como nãotinha outra opção, reuniu os seus materiais de outros cursinhos e o material dos amigos ecomeçou a estudar por conta própria em sua casa, com muita disciplina e afinco. Realmentefoi um período de muito aprendizado para aquele jovem. O fato de ter começado a estudarpor conta própria, ou seja, caminhar com as próprias pernas, lhe abriu a cabeça e o fezdecidir a carreira que cursaria: a pergunta que ele se fez foi a seguinte : O QUE GOSTO DEFAZER (fora a música que já era a sua grande paixão, mas sem créditos universitários)?Ficar na natureza (o que é "ficar na natureza"?) e entender a sociedade. Identificado esse fatoele facilmente chegou à conclusão que a Geografia seria o melhor caminho.

E estudou, estudou e estudou naquele ano que parecia interminável. Nos dias devestibular ele estava bem tranqüilo, acreditando no seu potencial. Fez a prova e quaseperdeu a hora no último dia por um atraso do ônibus.

Passou um mês mais ou menos, a ansiedade aumentava. O trabalho no posto de gasolinaera muito complicado porque ele tinha problemas pessoais com o encarregado (racismo?).O fato é que naquele emprego ele não ficaria por muito mais tempo, a faculdade seria comoa luz no fim do túnel. Ele sabia, através de seu velho amigo Ricardo, que a Universidadetinha programas de auxilio a estudantes carentes e que isso seria a sua salvação.

Já desempregado, no dia 31 de dezembro ele foi até a Lan House mais próxima de suacasa e entrou no site da UFSC para constatar uma de suas maiores felicidades: havia sidoaprovado para o curso de Geografia noturno. Foi tamanha a sua emoção, parecia que tiravaum peso das costas. Agora era partir para faculdade tentando aproveitar tudo o que elapoderia lhe oferecer, tanto no campo das idéias como na base material. E foi o que aconteceu:logo no primeiro semestre conseguiu uma bolsa de trabalho e a moradia estudantil. Possodizer que está valendo a pena a luta e esforço desse garoto.

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24 Caminhadas de universitários de origem popular

Nunca é tarde pra se viver

* Graduando em Geografia na UFSC.1 Cidade na qual grande parte de seus habitantes é de origem alemã.2 Casal que minha mãe conheceu fazendo uma diária, limpeza da casa.

Clóvis Kuster dos Santos*

Sempre devemos recordar do passado, mas para que ele sirva de ponte crítica para opresente e futuro, quem sabe.

Assim começa a história do individuo chamado Clóvis Kuster dos Santos: nascido aosonze dias do mês onze de mil novecentos e oitenta e quatro, na Maternidade Carmela Dutra,no município de Florianópolis - Santa Catarina, filho de Osvaldo Pereira dos Santos vindodo oeste catarinense e nascido no Paraná e de Zilma Kuster dos Santos, nascida em Angelina-SC1. Minha mãe desde os 14 anos de vida trabalhou como empregada doméstica emFlorianópolis a partir de sua chegada. Casaram-se jovens, ambos com aproximadamente 20anos de idade, são agraciados com um primeiro filho no primeiro ano de casamento, masque morre prematuramente, por um problema de fator RH do sangue dos pais.

Agora sim, apareço eu, Clóvis: após três anos de casados e morando na preferia deFloripa, no bairro Serraria, pertencente ao município de São José, ambos trabalhando emFloripa, meus pais conhecem um casal2 de São Paulo que propõem a eles que parassem depagar aluguel e virassem caseiros de sua propriedade no sul da ilha. Aceito isso, passamosa morar no Ribeirão da Ilha, meu pai já nesses tempos - ou até muito antes - estava sempreausente por trabalhar de vigia noturno. Mas no momento que viemos morar no Ribeirão daIlha meu pai começou a se distanciar mais devido ao envolvimento com sindicatos e aoPartido dos Trabalhadores, e minha mãe assumiu com garra o papel de pai e mãe. Acabei porme acostumar com situação de ver meu pai somente nos finais de semana (às vezes nemisso), porque minha mãe me levava direto para Angelina onde meus avós possuíam um sítio.E nem sempre via meu pai então. O empenho dela em levar-me lá: nas costas, feito uma leoaencarando uma caminhada de 7 km, pois o ônibus não passava pelo sítio, com o "bolinha"aqui nas costas, eu agradeço até hoje! Lembrando de outros fatos importantes: em 1988meus pais adotaram minha irmã do meio, chamada Michele, e ainda existe minha irmã maisnova chamada Janaína que nasceu em 1992.

Morei aproximadamente uns cinco anos no Ribeirão. Durante esse tempo meu pai seinscreveu no Programa de Habitação, a famosa COHAB, que temos por todo Brasil e fomoscontemplados em 1989 com um apartamento de 48 metros quadrados na COHAB do bairroatualmente chamado de Monte Cristo.

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Em 1990 comecei a estudar no pré-escolar na Escola Estadual Américo DutraMachado, localizado em frente ao prédio, onde comecei a residir em 1989, na fase doensino fundamental. Passei por uma grande parte do ensino fundamental pela mesma,onde vivenciei vários fatos estranhos da minha vida. Explicando um pouco do contextosocial que iria se formar no lugar onde estudei: houve um êxodo do oeste catarinense parao litoral e as famílias se abrigaram nos terrenos ociosos ao redor da escola e passaram acriar a favelização do bairro.

Então, estudei numa Escola no qual os profissionais eram mal pagos, no entanto haviaem cada professor que passei um mega esforço em mudar a realidade e mostrar que tudo épossível. O fato que mais me marcava era ver que as crianças iam para escola comer mesmo,devido ao alto índice de carência das famílias migrantes.

Sou muito tímido em falar de todo meu percurso pelo ensino fundamental, mas melembro de coisas boas. Todos os professores por quem passei nos famosos conselhos declasses e entrega de boletins falavam bem de mim. Lembro-me bem das frases dos professores:"Mãe, seu filho é um excelente aluno, tente arrumar uma outra escola, o futuro dele pode serpromissor". O que mais me comovia era minha mãe dizendo: "como não tenho condições,vai ter de ficar assim, sempre ajudarei ele no possível, mas isso está fora do nosso alcance".

E como ela realmente me ajudou! Lembro-me com carinho das noites e das idas a bibliotecada escola e a biblioteca municipal do Estreito em que minha mãe, semi-analfabeta naquelaépoca, fazia os deveres comigo. Mesmo não sabendo muito sobre estudos ela não esperavaacontecer, fazia sim acontecer: noites e noites me ajudava até tarde ao recortar jornais, entrevistaspara no outro dia levar como tarefa na escola enquanto eu dormia e no outro dia tudo estavaprontinho. E os lanches que ela fazia? Eram muito bons! Inclusive, sempre que possível, ia emcasa lanchar, já que escola era na frente. E esta foi minha vidinha até os quatorze anos.

Vou falar um pouco da minha casa de praia, já que considero um fato importantenessa época da vida. Em meados de 1991 meus pais adquirem um terreno na praia daPinheira e constroem lá um barraco de madeira, um cômodo com sala, cozinha, camas, tudonum lugar e o banheiro no lado de fora. Meu pai resolve começar investir lá. Ele continuavano mesmo emprego, mas havia se tornado um sindicalista de respeito e trabalhava naFederação dos Vigilantes de Asseio e Conservação - Transporte de Valores de Santa Catarina,no cargo de Presidente. Nesta fase da vida minha mãe já não trabalhava mais fora de casa.Com meu pai trabalhando nessa Federação nosso nível de vida sobe e ele consegue executara construção de uma casa de alvenaria. Por isso essa casa foi muito importante para mim,pois logo depois e mesmo durante no meu ensino médio, ela era meu refúgio.

A parte muito importnate para mim vem agora: é onde começou o tão esperado ensinomédio, os sonhos profissionais surgem. E diversas perguntas que surgem, na adolescência:ser o que quando crescer? Fazer o que? Estar aonde?

Percorro meu ensino médio sonhando em prestar vestibular para Direito, tudo porcausa do status quo rotulado em volta desse profissional pela sociedade. Mas então no meuSegundo Grau estudei novamente em uma escola pública, a Escola Estadual Aníbal NunesPires localizada no bairro Capoeiras. Há tanta coisas para falar do meu segundo grau, muitasexperiências em todos os campos... Porém, vou tentar focalizar mais na parte final, empassei uns dos maiores perrengues da minha vida: meu pai em meados de 2002 estava hámais de sete meses sem receber, a coisa estava ruim em casa para todos nós, passamosnecessidade às vezes, pois éramos cinco pessoas para sustentar e só meu pai trabalhando.

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26 Caminhadas de universitários de origem popular

Prestei meu primeiro vestibular em 2002 para entrar em 2003, para o curso de Direito.Não passei por ter ido mal na prova de língua portuguesa, apesar de ter nota para estar entreos classificados. Então, fiquei sem saber o que realmente queria fazer e pensei em morar napraia, coisa que já estava sendo realizada desde outubro de 2002 quando me formei noensino médio, ou seja, morei durante um ano mais ou menos na praia. E nesse tempo, paraque pudesse ficar morando na praia, trabalhei de servente de pedreiro. Aproveitei esseperíodo para pensar no que realmente queria da vida. Estava lendo os livros obrigatóriospara prova de literatura do vestibular da UFSC, tentando ver em que curso que me inscreveriae optei por Geografia.

Passei no vestibular de 2004! E, aí? Sonho realizado... veja que história: estávamos napraia e a mãe de uma amiga minha, que também estava ansiosa para saber o resultado da filha,acessou o site, viu a lista de aprovados e eu estava lá! Logo em seguida ela ligou para meucelular e quem atendeu foi minha mãe, como de praxe eu não estava, afinal praia, sol e calor...resultado era banho de mar! Minha mãe chorou feito criança e tremia também. Acho que amaior realização foi dela, pois ela havia prometido para meu avô, pai dela, que eu seria oprimeiro neto dele a entrar numa universidade. Parece que ele era descrente disto, mas aconteceu.O que acho a maior pena foi que ele não sobreviveu para ver isso, morrera há um ano atrás...

No entanto, curti muito esse momento! Contei para a minha turma da praia, quelogo providenciou de me dar aquele trote de calouros, a única coisa que não fizeram foicortar meu cabelo muito, pois estava com uma juba de leão, mas prometi que cortariapara cumprir a tradição.

O primeiro ano de faculdade não foi fácil. Apesar de voltar a morar com meus pais naparte insular do município de Florianópolis, a grana continuava curta, nos finais de semanaia para casa de praia trabalhar de servente com meu vizinho que estava construindo suacasa. Contudo, meu pai percebendo que não estava me dando bem com essa situação, pediuque eu parasse de trabalhar ali e que ele iria tentar arrumar o possível, ou na verdade, omínimo para que pudesse me manter na universidade. Ele havia percebido que eu estavaexausto semana após semana. Mas eu também comecei a procurar algo para fazer nauniversidade e consegui no serviço social de Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis.

A bolsa que consegui no Serviço Social foi a de treinamento, que consiste em umaluno fazer a função de um funcionário público só que cumprindo menos horas. Ali, conhecipessoas especiais para meu caminho dentro da UFSC.

Hoje me encontro no Conexões, um programa de gênese no Observatório de Favelasdo Rio e que foi adotado pelo Ministério da Educação através da SECAD (Secretaria deEducação Continuada, Alfabetização e Diversidade), no qual desenvolvo atividades voltadaspara comunidade dentro da minha área científica na 7ª fase de Geografia. Quero me formare sair por esse mundo cultivando e semeando o conhecimento que tenho. E pretendo mais:pois a vida é única, e nunca sabemos demais e sim devemos sempre aprender mais. "Nuncaé tarde pra se viver".

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* Graduanda em Nutrição na UFSC.

Quem acredita sempre alcança

Diézica Vargas*

Poder escrever aqui este breve relato, só foi possível graças a uma admirável guerreira,responsável por todas as minhas conquistas nesses 21 anos: minha mãe. Faço também desterelato, um meio de homenageá-la, assim como a todas as mães batalhadoras, que lutamincansavelmente para que seus filhos trilhem sempre os melhores caminhos.

Sou a primeira filha dos meus pais e assim foi até meus seis anos de idade, quandonasceu meu único irmão. Minha mãe era doméstica e meu pai vigilante, profissões queocuparam até meus 16 anos, quando então decidimos nos mudar da cidade do interiorcatarinense onde sempre vivemos.

Na escola, sempre fui ótima aluna. Apenas aos treze anos tive noção real quanto à existênciada universidade. Durante uma pesquisa para um trabalho escolar, encontrei um jornal com a listados aprovados de um vestibular da UFSC. Li alguns comentários a respeito da universidade e, apartir daquele instante, eu sabia que era naquela universidade que eu estudaria.

No início era um sonho. Florianópolis estava a mais de 500 km da cidade onde morava,não teria condições de me manter lá e, ainda, na universidade federal a maioria doscandidatos aprovados tem dinheiro, estudaram em colégio particular. Era isso que a maioriados meus professores, amigos e parentes sempre me repetiam.

Minha mãe, pelo contrário, era a minha principal incentivadora. Quando falávamossobre o futuro, ela sempre citava que dali a alguns anos eu estaria em Florianópolis. Sempreque possível depositava modestas, porém simbólicas quantias em dinheiro que, segundoela, auxiliar-me-iam na vida na capital. Com o tempo, fomos percebendo que se nosmantivéssemos naquelas condições financeiras, eu jamais conseguiria chegar à faculdade.Esse foi um dos motivos por termos decidido nos mudar para a famosa Ilha da Magia.

Meus pais ficaram alguns meses desempregados, mas, principalmente por desejo da minhamãe, pagavam a mensalidade do colégio particular, ao lado de casa, onde eu estudava. Emborafossem modestas mensalidades, vê-los recorrer às economias de uma vida toda para que eupudesse estudar, era um ato que me encorajava, incentivava e ao mesmo tempo me dava medo.Medo de decepcioná-los.

Muitas vezes pensei em largar tudo e ir trabalhar com a minha mãe, que tinha abertoum comércio. Desde então, ela vem trabalhando até dezesseis horas por dia. Inicialmente,para que eu pudesse entrar na faculdade e, atualmente, para que eu consiga permanecer.Durante o terceiro ano do Ensino Médio, eu chegava a passar dias sem vê-la, ia trabalharantes de eu acordar e chegava quando eu já estava dormindo.

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28 Caminhadas de universitários de origem popular

À parte os problemas financeiros e pessoais em casa, eu tentava me concentrar naminha meta. Acreditava que tirando boas notas no colégio, automaticamente eu seriaaprovada no vestibular, sem precisar passar a maior parte do dia estudando e fazer do meuobjetivo uma obsessão. E foi o que fiz. Durante aquele ano, fui estudante, dona de casa,"mãe do meu irmão", já que minha mãe passava o dia todo trabalhando, eu assumi o papelde mãe, "atleta" - jogava vôlei três vezes por semana - e professora particular de física ematemática, o que me fez juntar preciosos e úteis reais.

Assim que as aulas terminaram, comecei a trabalhar com a minha mãe. Foi naquelelocal que me avisaram que eu tinha sido aprovada. Precisei ir até a casa do vizinhoverificar na internet a presença do meu nome na lista dos aprovados, só assim acreditei.Lembro-me que vinha rezando pela rua, chamando a atenção de todo mundo. No ônibus,ao voltar pra casa, eu chorava incontrolavelmente. Todo aquele fardo, toda aquelaresponsabilidade, o temor de decepcionar a todos que acreditavam em mim, finalmente,tudo aquilo seria deixado pra trás.

Entrar na faculdade era só o primeiro desafio, percebi isso logo nos primeiros dias deaula. Não imaginava que a grade curricular me impediria de trabalhar. Os horários eram esão muito dispersos, sem predominância em um único turno. Inúmeras vezes cheguei muitoperto de desistir. Mas, ao mesmo tempo, eu sabia que aquele era o único meio para euconseguir futuramente dar uma vida melhor a minha mãe e ao meu irmão. Embora ela nãoreclamasse explicitamente, eu podia perceber que o árduo trabalho a estava definhando.

Ainda hoje me sinto culpada pelos anos que ela vem trabalhando, sem folga, nemférias, para que eu pudesse estar aqui. Dedico as poucas horas livres que tenho para ajudá-la, mas não é o bastante. Ela costuma dizer que não se importa em trabalhar apenas parainvestir no meu futuro e no do meu irmão, nós somos seus melhores investimentos.

Por isso digo, é impossível falar da minha trajetória sem fazer honrosas menções a essamãe abençoada que eu tive a felicidade de ter. É nela que me espelho, é por ela que nãodesanimo e é para ela tudo que eu luto para conquistar todos os dias. A minha mãe, muitoobrigada, por ter me amparado, incentivado, por ter me amado, mais que a si mesma.

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* Graduanda em Serviço Social na UFSC.

As escolhas determinam você

Eglê Ângela Ronsoni*

É difícil escrever sobre nós mesmos. É como se colocar do lado de fora de nossa vida,como se fosse um observador, mas um observador, digamos, participante e protagonista.Bom, mas vamos tentar...

Seria impossível relatar minha história sem antes falar dos meus exemplos e espelhos devida: meus pais. São eles que muitas vezes projetaram seus sonhos em nós, seus filhos, masque graças a isso estamos onde estamos e somos quem somos. Minha mãe, com uma garra edeterminação incomparável, aos treze anos de idade teve que se tornar mulher e cuidar de seisirmãos, quando meu avô foi preso político da Ditadura Militar e para completar minha avóabandonou os filhos... já meu pai, vem do interior, da roça, para a "cidade" estudar e tentar umavida melhor. Mas a história deve ser minha. Então, foi a partir da luta deles que nós três (filhos)construímos a nossa. Sempre estudando em escola pública, ajudando em casa, ali foi ondeapreendemos a trabalhar, a sermos responsáveis. Muitas dores, na infância, na adolescência,mas também muitas alegrias e, na verdade, parece que a vida é assim...

Porém, uma das maiores lutas, com certeza, foi entrar em uma universidade públicafederal. Quantos vestibulares, quantas noites sem dormir, quantos livros a mais tive queestudar para poder compreender o que se deveria saber no ensino fundamental e médio. Seique é mais cômodo achar culpados para nossas derrotas, mas não posso deixar de atribuir aculpa, ou parte dela, ao fraco e alienado estudo que tive no decorrer de minha vida escolar.Um ensino, que reproduz as desigualdades sociais, professores desqualificados edespreparados que repassam o conteúdo, em que o aluno finge que apreende e o professorfinge que ensina. Claro, tive aqueles que foram fundamentas em minha formação, mas sãoraros. Sempre fui tachada (na escola e na vida) de "a chata", "a encrenqueira", porque estavaali, sempre brigando pelo que achava certo. Enfim, isso me deu mais força para persistir nosmeus objetivos. Foi então que decidi que iria fazer minha parte nessa sociedade injusta edesumana, fazer algo que pudesse modificar esse quadro, sabendo que seria um pingo nooceano, mas era um pingo.

Então, terminei o segundo grau e fiz vestibular para Psicologia, pois queria meaprofundar na psicologia social, trabalhar no sentido da emancipação do sujeito para, dealguma forma, evitar que outros passassem o que eu passei e fazer realmente algo dentrodessa minha angústia de luta, que sempre foi despertada em mim, pelos meus pais.Simplesmente mover essa sociedade passiva, ou melhor, instigar as pessoas a se moverem.

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Com aquela base escolar, como seria esperado, não passei no primeiro vestibular.Então trabalhei, guardei dinheiro para pagar um cursinho e novamente não passei. Masdentro de muitos sofrimentos recebi força da minha família, dos amigos. Ah! Como devo aeles! Quanto colo quente recebi daquelas amizades... embora sentisse o olhar de reprovaçãoem muitos outros olhos, continuei. Voltei a trabalhar para pagar outro cursinho, tenteinovamente e não passei.

Nesse momento, a derrota em meus pensamentos foi inevitável. Então desisti, voltei atrabalhar, comecei um curso técnico e estava decida a buscar outro caminho. Mas aparecerampessoas muito especiais em minha vida que me incentivaram a continuar. Decidi estudarsozinha, trabalhava e fazia meu curso técnico. Muitas coisas aconteceram paralelas a isso,coisas que desencadearam uma espécie de recaída, de desistir, parar com tudo. "Ah! Pare omundo que quero descer", um desânimo, como se não encontrasse mais razão para fazer ascoisas. Crises intermináveis de choro e uma vontade de dormir o tempo todo. E estava lá nahora de fazer a inscrição e no último momento, sem ninguém saber, mudei a opção do cursopara um de índice mais baixo: Serviço Social.

Quando veio o resultado que tinha passado, expliquei que foi em segunda opção.Ah! Todos ficaram felizes, foi uma festa! Sem contar que fiquei com tanto medo da derrotanovamente que, antes de saber o resultado, fui para a igreja depois do trabalho, junto comum ataque de choro e lá fiquei até as dez e pouco da noite e, quando cheguei em casa, minhafamília estava me esperando com muita alegria. Uma semana depois, recebi a notícia quetinha passado na UDESC também, fiz sem ninguém saber, só souberam quando fui fazer aprova, e esse eu devo a uma amiga muito querida (aqui não queria deixar de lembrar dela).A escolha do curso foi, acredito eu, o melhor dessa espera dolorosa para entrar nauniversidade. Quando comecei o curso, me perguntei: porque não escolhi isso antes?

Entrei na UFSC, e agora? Muitas expectativas, muitos sonhos a se realizarem aqui. Asdisciplinas eram muito parecidas com minha realidade, cresci ouvindo Marx, Fidel, Stalin,por exemplo. Estava me realizando, consegui uma bolsa no Hospital Universitário, ingresseiem uma série de movimentos estudantis. Porém, a saudade de casa e dos amigos começou aapertar. Começaram muitas contradições no curso, muitas mudanças em minha vida. Foramlongos semestres de dor e conflitos, mas de alegrias também.

E agora estou aqui, escrevendo minha história e confesso que estou num período demuitos conflitos ainda e que preciso resolver comigo mesma, como sempre foi.

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* Graduanada em Ciências Biológicas na UFSC.

Identidade camponesa

Ezequiel Antonio de Moura*

A Floresta com Araucárias estava sendo sistematicamente destruída sob a justificativade um projeto de desenvolvimento de caráter imperialista. Pinheiros centenários, de umaespécie com histórico milenar no planeta Terra que resistiu a eras glaciais, estavam sendocortados um a um. Simultaneamente, e como conseqüência desse projeto dedesenvolvimento, massas de trabalhadores rurais socialmente excluídos se somavam nabusca por uma vida digna. Excluídos não somente dos lucros do sistema econômico daépoca, mas inclusive da possibilidade de serem usados pelo sistema, ou seja, rejeitados atémesmo como mão-de-obra pelos fazendeiros e madeireiros. Começou, então, a surgir ummovimento de trabalhadoras e trabalhadores rurais que questionava a lógica dapropriedade privada da terra que gerava tamanha injustiça social e impedia camponesese camponesas de subsistirem. Em 1984 emergiu, de uma histórica luta pelo fim daconcentração fundiária, o Movimento do Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Nessemesmo ano, nasci eu.

Falar da minha trajetória de vida é tentar contar o que está ligado com o meu nascimentoe o meu percurso até os dias atuais. Tudo que sou hoje e me vejo fazendo no futuro é frutodas experiências que vivenciei ao longo da minha caminhada, mas, acima de tudo, dasmisteriosas influências do contexto e do momento em que nasci. Essas influências estãodiretamente ligadas a um território, a Floresta com Araucárias, e a um povo que sofre, luta,vive em movimento: o povo Sem Terra. É com esse território e com esse povo que meidentifico como camponês e com os quais me sinto comprometido.

Foi num hospital da cidade de São Domingos, interior de Santa Catarina, onde minhamãe me trouxe à luz do mundo. Morávamos num lugar chamado Castelo - nome dado emvirtude da casa grande e bonita do dono da Fazenda -, onde meu pai trabalhava comocaminhoneiro transportando madeira e lenha retiradas daquele local. Minha mãe conta quenessa época sofreu muito para alimentar a mim e minha irmã, dois anos a mais que eu.Depois de três meses do meu nascimento, meu pai decidiu mudar para o Mato Grosso doSul. Passamos três dias na estrada até chegar à fazenda onde iríamos morar. A mãe preparoua alimentação para a viagem porque não tínhamos dinheiro para comprar nada na estrada.Mas não ficamos muito tempo naquele lugar. Logo voltamos para visitar os parentes em SãoDomingos e não retornamos mais para lá, somente meu pai voltou para pegar as coisas quenos pertenciam.

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Meu pai era muito inquieto e não conseguia permanecer muito tempo em um mesmoemprego. Moramos no campo, na cidade, e logo saímos de São Domingos de novo. Fomosmorar em Abelardo Luz, onde minha mãe cuidava dos meus tios paternos, que na épocaestudavam, para que meus avós pudessem trabalhar na roça. Meu pai continuava com suapaixão de viajante, trabalhando como caminhoneiro, e em suas viagens conheceu outramulher. Inconseqüente, levou-nos para morar em Curitiba, onde podia exercer sua profissãomais tranqüilamente, mas, principalmente para ficar mais perto da sua nova paixão. Essa foia maior desilusão que minha mãe sofreu, não apenas por ter dois filhos para cuidar sozinha,mas por perder muito do que já tinha conquistado na vida e por cair num poço de incertezasquanto ao futuro.

Fomos morar, então, junto com uma tia no município de Galvão onde minha mãetrabalhava de costureira e doméstica, além de ajudar no serviço do bar e da casa ondemorávamos. Minha mãe recebeu proposta de doação de um dos filhos para cuidar de apenasum, mas sempre considerou isso um absurdo e batalhou incansavelmente para garantir acriação do casal. E ela não tem do que se arrepender ou decepcionar porque a nossa educaçãofoi excepcional. Tanto minha irmã quanto eu devemos todos nossos valores e nossasconquistas à nossa mãe.

Voltamos à minha cidade natal onde passamos a morar numa propriedade rural dosmeus tios na Linha (comunidade) Polvarinho, interior de São Domingos. Minha mãetrabalhava muito, cuidava das vacas de leite, dos outros animais de criação e trabalhavajunto na lavoura. Foi nesse local, tipicamente camponês, que se desenrolou a minha infância.Andava sozinho muito pelos potreiros, pelas plantações, pelas estradas. Sempre fui muitointrospectivo e, ainda por cima, tinha uma imaginação muito fértil. Idealizava o futuro,sonhava com um lugar onde pudesse construir minha vida, família e carreira profissional,mas sem extrapolar muito a realidade vivida naquela época, a do campesinato.

Iniciou-se nessa época minha escolarização, aprendi a andar de bicicleta, a cavalgar,a nadar... andava de pés descalços, subia nas árvores, comia frutos do pé, brincava deguerrinha de bosta de vaca... isso sim é infância de verdade! Foram momentos bons,inesquecíveis, de muitas brincadeiras e de aprender a trabalhar - mesmo que as travessurastenham continuado por mais algum tempo. Numa certa ocasião lembro-me que, juntocom um primo, roubamos um coelho de uma vizinha - que tinha mais de 200 coelhos, elanem percebeu - mas minha mãe me fez ir até lá e devolvê-los, pedindo desculpas à mulher.A vizinha nem quis o coelho de volta, admirou a atitude e deu uma lição de moral, edepois me deu o coelho de presente. Esses e outros fatos, graças a minha mãe, foram o queconstituíram meu caráter e meus valores.

Meu ingresso na escola foi muito marcante para minha vida. Quando minha mãe foime matricular no pré-escolar não havia mais vagas, então fiquei sem estudar naquele ano.No ano seguinte, quando foram me matricular, acharam melhor me colocar direto naprimeira série, para que não perdesse um ano de estudo. O fato de não ter cursado o pré-escolar me fez passar por certas dificuldades que, tamanha a força de vontade e o esforçopara superá-las, marcaram minha vida para sempre. Eu chorava por não conseguir fazer aletra "a". Pingava lágrimas sobre o papel e eu não saía do "a". Minha professora pegou naminha mão e me ajudou até eu conseguir. No primeiro bimestre tive muitas dificuldadesem aprender, obtendo notas ruins, mas nada que até o final do ano não fosse suficientepara superá-las. Essa experiência foi muito marcante, porque demonstrou uma capacidade

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intrínseca de me adaptar a novas situações e de aprender com certa facilidade o novo.Mais do que isso, ajudou-me a desenvolver essa habilidade que, sem dúvida, exigiumuita dedicação e determinação.

A escola me ofereceu novas oportunidades, abrindo-me a cabeça para um novo mundo.Conheci muitas pessoas diferentes, fui descobrindo aos poucos a riqueza dos aprendizadosescolares, mas estava no auge da infância e gostava muito de brincar e trabalhar na roça.Meu maior e melhor entretenimento era fabricar brinquedos, participar das plantações ecolheitas, tocar as vacas a cavalo, ajudar a tirar leite e cuidar dos animais de criação. Razãopela qual não me dedicava muito aos estudos. A volta da escola para casa era sempre ummomento de maior euforia do que a ida para as aulas.

Nessa época não tinha muito contato com minha família paterna, exceto quandomeus avós iam para São Domingos e passavam para nos visitar. Certa vez fui visitá-los,mas me surpreendi ao ver meus avós morando e trabalhando sozinhos, meus tios tinhamse mudado. Alguns tinham ido trabalhar como operários em cidades grandes e outrosestavam acampados tentando conquistar uma terra. Aquilo me intrigou demais! Para mimaté era compreensível ir para a cidade trabalhar e ganhar dinheiro - apesar de considerarisso um absurdo, na minha mente de criança, achava o local onde meus avós moravam umparaíso - mas mais intrigante era o fato dos meus outros tios terem saído para ficar sob umbarraco de lona preta na luta por um pedaço de chão. Ao voltar para casa refleti muitosobre aquela situação. Lembro-me que indagava minha mãe sobre as condições desobrevivência no acampamento, mas ela também não conhecia muito a respeito.Preocupava-me - incrivelmente, naquela idade - o sofrimento das pessoas acampadas,mas era apenas um menino e não podia fazer nada. Ouvia na televisão noticias sobre asocupações de terra - "invasões" na linguagem da mídia -, sobre o MST, mas não entendiao porquê de tanta criminalização. O que eu via na prática, com meus próprios tios, eradiferente do que veiculavam na mídia. Não tinha visão crítica aos 10 anos de idade, massabia que a realidade era diferente e as pessoas precisavam conhecer a verdade sobre opovo Sem Terra. Esse pensamento me perseguiu o restante da vida.

Da segunda à sexta série do colegial fiquei em recuperação todos os anos porque tinhadificuldade de acompanhar o ritmo das matérias e, confesso, não gostava muito de estudar.Lembro que pulava algumas frases quando era para copiar do quadro, não conjugava todosos verbos do livro - tarefa que considerava monótona e repetitiva demais - e também nãofazia todas as contas que os professores mandavam. Certa vez, uma professora me puniu porisso, me levando para a secretaria numa atitude completamente antipedagógica, sem querercompreender minha dificuldade em acompanhar os conteúdos.

Nunca reprovei, mas lembro que a recuperação era certa todo final de ano, até a sextasérie. Enquanto colegas e amigos já estavam de férias eu ainda estava estudando para nãoser reprovado. Lembro da minha dedicação nos estudos para as provas de recuperação, atéminhas professoras elogiavam, mas sempre como uma medida paliativa por não ter estudadodurante todo o ano. Até que um dia minha irmã me perguntou por que eu não estudavadesde o início das aulas, pois assim não precisaria me matar estudando no final do ano e nãoficaria em recuperação. Foi isso que fiz na sétima série e passei, até que enfim, sem recuperação- na risca, mas passei. Gostei muito dessa nova maneira de conduzir os estudos e dali emdiante, graças à dica da minha irmã, nunca mais fiquei em recuperação e comecei a meapaixonar pela arte de aprender.

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Essa época veio acompanhada de uma mudança na nossa vida familiar. Fomos morar numsítio dos meus avós maternos perto da cidade, porque eles já estavam ficando velhinhos eprecisavam de alguém morando junto com eles. Alem disso, minha mãe já não tinha maisrendimentos trabalhando no Polvarinho para nos sustentar e começou a trabalhar numalanchonete. Minha irmã começou a cuidar da filha dos donos da lanchonete e logo em seguidaeu também passei trabalhar no mesmo lugar. Vendia lanches na rua, acordava cedo para ajudar napreparação dos lanches e depois saía com uma sexta no braço a manhã toda para vendê-los,ganhando 20% de comissão sobre o que eu conseguia vender. Foi vendendo lanches que compreiminha primeira bicicleta, aos 12 anos de idade. Era meu maior orgulho andar numa bicicleta aqual eu mesmo tinha pagado. Gostava de visitar meus tios no interior com a minha bicicleta,adorava pedalar, investia na bicicleta e cuidava muito bem dela. Descobri uma paixão que iriame proporcionar momentos muito bons, experiências inesquecíveis: as pedaladas!

Apesar de morar perto da cidade, meus programas de fim de semana eram sempre nosítio onde morava ou na casa de vizinhos, nunca me identifiquei com a cultura urbana e nãogostava das diversões da cidade. Foi nessa época que terminei a catequese e em seguida fuicatequista de crisma. Foi uma experiência interessante para aquela idade e condição quevivia, e hoje tendo superado os dogmas das religiões reflito muito sobre aquela experiênciae sobre o papel exercido pelas religiões na humanidade.

No ensino médio estudei bastante, tinha desenvolvido certa habilidade com as exatase gostava de Biologia - muito por causa da minha professora que era excelente. Quandoestava acabando essa etapa já estava certo que queria cursar Biologia numa UniversidadeFederal, mas tinha ciência da falta de preparo para enfrentar o vestibular. Nem gastei dinheirocom a inscrição - até porque naquela ocasião não tinha - pois sabia que não passaria. Minhairmã já tinha prestado vários vestibulares e não tinha passado até o momento. Sabia que nãoera fácil e exigiria maior preparação.

Comecei a trabalhar mais para economizar dinheiro e estudar fora, pois não tinhaoportunidades de preparação para o vestibular em São Domingos. Com isso pude guardardinheiro para me manter seis meses estudando em um cursinho pré-vestibular numa cidademaior. Fui, então, para Chapecó onde consegui fazer um cursinho barato no qual minhairmã já tinha estudado e trabalhado - e ainda consegui um desconto a mais depois depechinchar. Comecei morando numa casa de família, mas não deu certo, não tinha condiçõesde estudar tranqüilo. Fui morar, então, numa quitinete com outros estudantes que tambémestavam se preparando para o vestibular. Estudei intensivamente nesse período, dormiaapenas quatro a cinco horas por noite. Era minha única opção para me preparar para a prova,tudo ou nada, já que meu ensino médio tinha sido muito fraco.

Optei prestar vestibular apenas para a UFSC para me dedicar integralmente àsexigências dessa Universidade, além do mais não tinha dinheiro para pagar outra inscrição.Minha irmã já estava prestando Agronomia na UDESC e até me ofereceu a inscrição se eufizesse vestibular lá, mas estava certo do meu curso e a UFSC sempre se mostrou como amelhor opção. Logo percebi que tinha me enganado nas contas do quanto gastaria por mês,meu dinheiro estava acabando e o cursinho ainda estava apenas pela metade. Minha mãeabdicou de muitas coisas para me mandar mais dinheiro. Meu ex-patrão, inesperadamente,começou a depositar certa quantia por mês para me ajudar, sem nenhuma obrigação oucobrança. Foi um pai que eu não tinha presente naquele momento. Assim, eu fui insistindo,economizando, enfrentando as dificuldades dia-a-dia.

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A etapa do cursinho também mudou muito minha vida, era outra rotina, lugaresnovos, outras vivências, pessoas novas. Além disso, uma vida que dependia, mais do quenunca, de autonomia, escolhas primordiais, definição de prioridades, ousadia, controlefinanceiro, além do sonho que me dava força para seguir em frente. Ia visitar minha mãesempre pegando carona na rodovia porque não tinha dinheiro para pagar passagem, umavez ou outra conseguia carona com pessoas conhecidas ou me obrigava pegar ônibus.Comi muito pão com mortadela - que na época estava passando por problemas decomercialização externa por isso era baratíssima - e banana que era a fruta mais em conta.O que mais me dava força era lembrar como minha irmã tinha passado por situaçõesparecidas por dois anos a fio até passar no vestibular. Sempre me espelhei nela nos estudos,pela sua dedicação e determinação no que queria - e conseguiu - por isso ela é em muitoresponsável por eu estar na Universidade hoje.

Fiz o vestibular, meu primeiro, depois de um curso semi-extensivo de seis meses.Não passei! Já estava de volta à São Domingos quando saiu o resultado e lembro quechorei muito, não sabia o que fazer daquele momento em diante. Mas mais uma vez pudecontar com as palavras sábias da minha irmã, que já tinha passado por várias situaçõesdessas. Na verdade, fui muitíssimo bem na prova, foi minha primeira experiência devestibular e não passei por apenas sete pontos. Foi uma boa colocação, mas só depois dachoradeira pude reconhecer isso.

Voltei à vida de antes na minha cidade, retornei ao trabalho braçal para guardardinheiro de novo, para poder estudar novamente e tentar o vestibular pela segunda vez.Dessa vez trabalhei na construção civil junto com um amigo, o melhor amigo que já tiveaté hoje: o Moisés. As conversas e reflexões com o Moisés foram decisivas para minhavida, inclusive na continuidade do sonho de entrar na Universidade. Um dia, ao sair daconstrução onde trabalhávamos, vi um carro com o símbolo da UFSC e corri para verquem era e o que estavam fazendo na cidade. Eram professores e estudantes que estavamlá para a realização de um Seminário numa cidade vizinha. Fui até o hotel onde estavamhospedados e conversei com eles sobre meu sonho de entrar na Universidade e sobre oque teria que fazer para tal. Hoje lembro com graça da iniciativa em chegar até eles paraconversar sobre isso. Acabei participando do Seminário com eles e conversamos muitosobre os desafios que eu tinha pela frente, as oportunidades que se abririam e tambémsobre as "não-mil-maravilhas" que é a Universidade.

Sob o pó do cimento e da cal, das marcas do reboco, da massa fina e das tintas, com asmãos e os pés já rachados pelos materiais de construção, nosso trabalho na obra continuavae as reflexões fluíam. As nossas conversas foram tão importantes que a fala de amigos eparentes quando não passei no vestibular começaram fazer algum sentido - talvez tenhasido melhor assim... antes dessa vivência e das nossas conversas minha busca na vida seresumia a entrar na Universidade e isso era tudo. Esse tempo a mais de reflexão me fezenxergar outros aspectos que faziam parte da vida e, inclusive, contribuiriam muito tambémpara a vida universitária.

Nunca pensei em desistir do vestibular ou mudar de curso, nossas conversas não meconduziam a isso, mas extrapolavam para dimensões além da busca universitária que atéentão eu ignorava. Às vezes eu fitava admirando o Moisés sem compreender de ondevinha tamanha sapiência na sua fala e no modo de conduzir a conversa, mas logo abstraíae voltava a saborear a riqueza daquelas reflexões. Essa fase fez toda diferença para o

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modo como conduzi minha vida dali em diante. Eu prossegui, me imaginando naUniversidade, porém a partir daquele momento com a consciência de que eu tinha umdiferencial, uma vivência acumulada e uma nova compreensão de mundo. E, além da vidacamponesa que levei durante anos, agora tinha outra experiência significativa, umavivência operária.

Se aproximava o momento de me preparar para enfrentar um novo cursinho, mas atéaquele instante não tinha conseguido guardar dinheiro nem para passagem sequer para memanter estudando por mais seis meses longe de casa. Outro dilema era a situação da mãe, otrabalho de costureira já não satisfazia seus anseios, há pouco tempo meus avós tinhamfalecido e ela também precisava de uma vida nova. Como eu estava preste a viajar e minhairmã também já estava cursando uma Universidade, não fazia muito sentido a mãe continuarmorando em São Domingos. Como nossa mãe nunca nos abandonou - pelo contrário, foi aresponsável por tudo que conseguimos - minha irmã e eu não seguiríamos jamais nossosobjetivos de vida descomprometidos com esse laço familiar. Minha mãe também viajou,não fomos morar juntos, mas ficamos bem mais perto do que se ela tivesse continuado emSão Domingos. Ela foi trabalhar de doméstica numa casa de algumas pessoas conhecidasque precisavam de alguém de confiança para morar e trabalhar numa casa de família. Era oinício de uma vida nova para todos.

Depois que a mãe saiu fiquei poucos dias na cidade. Estava determinado a fazer umnovo cursinho e a capital parecia ser a melhor opção para essa nova aventura. Consegui ocontato dos meus amigos ex-colegas de cursinho que já estavam cursando a UFSC e eles meestimularam a ir à Florianópolis para me preparar para o vestibular. Poderia morar com elese tinha a possibilidade de conseguir um emprego na mesma rede de supermercados que elestrabalhavam. Realmente precisava de um emprego porque não tinha conseguido acumulardinheiro, tinha apenas um pouco do acerto de contas do trabalho da minha mãe que ela medeu, mas daria apenas para pouco mais de um mês.

Estava articulando minha ida para a capital, não tinha mais nada o que fazer em SãoDomingos naquele momento. Fiquei sabendo numa manhã, de certo dia iluminado, que umcarro da prefeitura ia para Florianópolis vazio, apenas com o motorista e eu podia ir decarona. Tive poucas horas para arrumar a pequena bagagem, me despedir de algumas pessoas,fechar a casa e deixá-la à responsabilidade de um tio que também morava no sítio. Foi muitoprofunda a reflexão ao preparar minha bagagem, sabendo que naquele dia mesmo eu partiriada cidade e estaria já ao amanhecer do outro dia num lugar completamente novo para mim,onde um novo mundo surgia.

Passei muito frio na viagem e cheguei ao nível do mar já com um resfriado que duroudias. Quando percebi estava na selva de pedras, uma urbanização da qual jamais tinhavivido. Ao atravessar a ponte respirava fundo porque sabia o quanto tudo aquilo significava,um novo mundo pela frente, uma nova etapa da minha vida se iniciando, novos desafiospara se enfrentar e, certamente, grandes vitórias a serem conquistadas. Chegamos à UFSC,era ali perto que moravam meus amigos e aonde eu iria me instalar. Encontramos a casadeles, tirei minhas bagagens do carro, minha carona voltou e agora definitivamente estavamorando em Florianópolis. Em poucos dias conheci um pouco do bairro, da UFSC, docentro e do supermercado onde meus colegas trabalhavam. Cheguei ao sábado e na segunda-feira já fiz minha ficha para emprego, na mesma semana fui chamado para entrevista e naoutra segunda-feira já estava empregado.

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Aproveitei a então estabilidade para procurar um cursinho pré-vestibular; fui a vários,todos caros demais. Procurei até encontrar e conversar com o dono de um deles do qual recebiboas indicações e expliquei minhas intenções de estudar e minhas carências financeiras paratal. Consegui um desconto e então passei a economizar bastante para dar conta da mensalidade,do aluguel e outras despesas. Por quase seis meses minha rotina foi esgotante física ementalmente. Acordava às seis da manhã para tomar café no supermercado - era oferecido degraça aos funcionários - mesmo não trabalhando de manhã, mas precisava economizar. Apóso café da manhã ia para o cursinho assistir aula durante a manhã toda e depois ia para otrabalho. Depois das aulas tinha poucos minutos para ler, rever conteúdos e fazer exercícios,somente entre o almoço e o início da jornada de trabalho e no intervalo do jantar - que muitasvezes acabava não agüentando e me debruçando sobre a mesa de sono.

Trabalhava até quase meia-noite e depois ia para casa a pé para não gastar mais, poisjá tinha usado os dois passes diários de ônibus, da casa para o cursinho e desse para otrabalho. Mas apesar do cansaço, trabalhei sempre com muita dedicação, pois reconhecia aimportância daquele trabalho no momento e não tinha do que reclamar porque era exatamenteo que eu tinha buscado e o que eu precisava naquele instante. Chegava sempre de madrugadaem casa e na maioria dos dias da semana ainda tinha que lavar a roupa - trabalhava no setorde padaria, por isso a roupa era branca e precisava ser lavada todos os dias. Na verdade, eutinha escolha: ou lavava a roupa às duas horas da madrugada, ou acordava por volta dascinco horas para lavá-las antes de começar o novo dia. Não sei de onde tirava tanta força evigor diário para continuar firme nos estudos. As cartas da minha irmã, as conversas aotelefone com a minha mãe, foram de fundamental importância. As reflexões sobre minhatrajetória, minhas conquistas até então, o reconhecimento de estar onde sonhara, foramtambém importantes motivações. Era no trapiche do manguezal do Itacorubi, em frente aotrabalho, onde eu me encontrava comigo mesmo para avaliar meu crescimento.

E a hora do vestibular se aproximava. Já tinha estudado bastante, na medida do possível,então era hora de diminuir o ritmo. Fui visitar a mãe, parei de freqüentar as aulasenlouquecedoras de reta final de cursinho, voltei aos momentos solitários do trapiche. Navéspera do dia do vestibular fui conhecer o local da prova e encontrei os dois professores daUFSC que eu tinha conhecido em São Domingos naquele Seminário. Fiquei feliz porqueesse reencontro me proporcionou uma reflexão profunda do caminho que eu tinha percorridoe onde estava no momento. Eles também ficaram felizes de me ver prestando vestibular erealizando um sonho do qual eles tinham compartilhado.

Os dias da prova chegaram. E passaram... precisava ficar longe de Florianópolis poralgum tempo e fui para São Domingos. Estava lá quando saiu o resultado do vestibular.Minha irmã tentava ligar na casa onde eu estava, mas a ligação só caía. Entendi o recadosubliminar. Fui até a casa de um amigo onde eu pudesse acessar a internet, precisava vercom meus próprios olhos o resultado. E eu vi... o meu nome estava lá na lista dos aprovados.Eu acreditei somente depois de conferir várias vezes na carteira de identidade se meu nomeera mesmo Ezequiel Antonio de Moura!

Logo estava em Florianópolis de volta. Ia todo dia de manhã caminhar um pouco eaproveitava para passar na Reitoria da UFSC para conferir se meu nome ainda estava na listados aprovados. Fiz isso todos os dias e de longe já sabia onde ficava meu nome, até tiraremos papéis do vidro. Foi só depois de todos esses acontecidos que fui conhecer praia, mar deverdade, depois de sete meses morando numa cidade praieira. Deixei de trabalhar no

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supermercado - meu chefe compreendeu perfeitamente a situação - mas sempre reconheci acontribuição daquele trabalho na minha conquista. O momento da matrícula foi solitário -e, introspectivo como sou, foi mais uma oportunidade de reflexão sobre o ponto onde játinha chego - mas também de muito entusiasmo com a situação. Mais uma vez aquelesentimento começava a tomar conta: o de uma nova etapa de vida desabrochando emostrando toda sua potencialidade.

As aulas começaram. Realmente, era um novo mundo, novas formas de se relacionar,outras rotinas, novas perspectivas de vida. Aos poucos fui conhecendo melhor o curso,a Universidade, a dinâmica do ensino superior. Logo nas primeiras semanas de aula,numa visita ao Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, conheci um projeto de pesquisae comecei a integrá-lo. Descobri espantado que o orientador do projeto era um dosprofessores que conheci em São Domingos. Foi fácil me envolver e me dediquei até ofinal do primeiro ano nesse projeto. Trabalhava com Etologia de Antas, era muitofascinante pesquisar a respeito da conservação de uma espécie que meus parentes diziamque queriam matar. Sentia ser uma nova geração na minha família que pensava diferentea relação com a natureza.

No final do semestre, férias a começar, me desliguei do projeto porque sentia muitaslacunas no que eu tinha como objetivos e missão dentro da Universidade. Desde minhaentrada na UFSC, me sentia com um forte compromisso com a sociedade pelo fato de estarestudando numa Universidade pública e na obrigação de dar algum retorno. Esse projetotinha essa falta de responsabilidade social e então comecei a me dedicar a atividades quetivessem caráter socioambiental. Comecei a participar de eventos e atividades extracurriculares,principalmente relacionados à Unidades de Conservação, e me descobri profissionalmente jáno primeiro ano da Universidade.

Viajei para um Simpósio de Etnobiologia e Etnoecologia na Chapada dos Guimarães,Mato Grosso, e aproveitei para passar as férias naquela região. Viajei bastante pelo Cerradoe Pantanal, tudo de carona. Fiz estágios em um passeio turístico em Jardim e numa ONGem Bonito, Mato Grosso do Sul, que trabalhavam a questão socioambiental. Era o que euprecisava naquele momento. Voltei, depois de dois meses e meio de férias, disposto aconduzir minha vida universitária de uma nova forma, usar seletivamente a Universidadee me dedicar a outras atividades que contribuiriam para minha formação. Fiz disciplinasem outros cursos, elaborei um projeto próprio de pesquisa para trabalhar em São Domingos.Foi um retorno à minha cidade de origem, o qual me fez repensar a forma como via apossibilidade de voltar ao campo. Desta vez eu voltava para São Domingos sob novaperspectiva, estava na UFSC, as portas se abriam de maneira inusitada, as oportunidadesapareciam e eu sabia aproveitá-las melhor.

O projeto de pesquisa era com os agricultores do entorno do Parque Estadual dasAraucárias, foi uma experiência importantíssima para minha vida acadêmica, profissionale para minha realização pessoal. Mas refletiu, acima de tudo, num compromisso quesenti com a Floresta com Araucárias e um retorno - de forma ainda pontual, mas de muitaidentificação - à realidade do campo. Mas além de tudo isso, fiz a pesquisa toda debicicleta pelas propriedades que visitei, exatamente aonde eu ia pedalando aos 12 anosde idade para visitar meus tios, o Parque foi criado justamente naquela comunidade.Um filme passava na minha cabeça a cada pedalada, cada propriedade visitada, cadamorador que eu conversava.

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As pedaladas, aliás, continuaram marcando minha vida. Minha mãe se mudou paramais perto - em torno de 70 km de Florianópolis - e passei a visitá-la sempre de bicicleta.Boa parte desse texto também foi escrito ao longo de uma pedalada de mais de 1.000 km,durante o recesso escolar da Universidade entre 2006 e 2007. Foi uma viajem de bicicletapara uma região coberta por Floresta com Araucárias, para realização de um estágiointerdisciplinar de vivência junto aos movimentos sociais campesinos e depois para umestágio em um Plano de Manejo de um Parque Nacional. Ou seja, uma pedalada justamenteno território com o qual eu me identifico, com o povo que me sinto comprometido e comuma área da Biologia à qual estou me dedicando e me vejo atuando como Biólogo.Realmente, devo muito às minhas pedaladas universitárias por espaços populares.

Descobri que tanto a causa ambiental da Floresta com Araucárias, quanto às condiçõespara mudança de vida do meu povo não dependem apenas da minha presença nesses espaços.Depende de também de toda a bagagem teórica que eu posso assimilar na Universidade eque seja útil para uma nova visão de mundo para meu povo e abra possibilidades concretasde transformação social. Percebi que meu paradigma, minhas apaixonantes reflexões sobrea relação do homem com a natureza e meu desejo de romper essa dicotomia existente epropiciar uma nova visão de mundo integralizadora do homem na (sua) natureza, tudo éreflexo da minha própria trajetória de vida.

No ano de 2005 aconteceu uma greve na UFSC, foi um momento único de conhecer aUniversidade em todas as suas responsabilidades e contradições. Lembrei das conversascom o Moisés e como eu estava equivocado quando achava que apenas entrar naUniversidade era tudo e pronto. Foi durante essa greve que eu acompanhei uma visitapedagógica do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) aassentamentos do MST. Foi um momento privilegiado pelas discussões da greve, onde eupude vivenciar uma situação concreta de intervenção da Universidade em um espaço popular.Um espaço singular - e simultaneamente plural - com o qual me identifiquei.

Tentava buscar explicações na mente para tamanha identificação com aquela realidade,com aquele povo, com aquela forma de atuação universitária. Encontrei-as na minha infância,durante todo o tempo que vivi no campo, lembrei dos meus tios que viveram sob a lonapreta, lembrei do meu sentimento de responsabilidade social, lembrei das profundas reflexõesque a greve estava me proporcionando. Desse momento em diante, busquei conhecer maissobre o MST, voltei a ter contato com minha família paterna que morava em assentamentos,fiz estágios de vivência com o MST. E tive a experiência, inesquecível, de participar de umaocupação de terra, numa área onde fazendeiros plantavam soja em terra pública comandadapelo exército - terra onde uma empresa Estadunidense expulsou os camponeses e tiroutodas as Araucárias, gerando a Guerra do Contestado. Me descobri, na minha identidade, naminha história, no meu compromisso, na minha missão.

Foi o Programa Conexões de Saberes que me mostrou como toda essa identidade éresultado da minha origem popular, da minha vivência camponesa e que todo esse acúmuloenriquece a vida universitária. São os conhecimentos e experiências dessa trajetória quepodem mudar o caráter atual da Universidade - ou sua falta de caráter. Descobri -contraditoriamente, pois o Programa Conexões de Saberes na UFSC reproduziu a mesmalógica universitária - a necessidade de construir uma Universidade Popular, onde os própriossujeitos das realidades a serem transformadas protagonizem a transformação social.Infelizmente, na UFSC, o Conexões de Saberes reproduziu a mesma lógica assistencial,

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dinâmicas internas de poder, políticas de aparências, de contradições permanentes, de totalincoerência entre o discurso e a prática. Mas apesar das contradições explicitadas, ejustamente através delas, descobri o desafio que temos pela frente para transformar asociedade num sistema mais equilibrado ecologicamente e justo socialmente. Mais do queisso, descobri o papel primordial da juventude e a importância do seu inconformismo erebeldia para a transformação social. Toda minha força e amor pelas causas socioambientaisresidem na minha vontade incansável, a cada ano que se passa, de MUDAR O MUNDO.

Tive de sair do campo, ir para cidade, entrar na Universidade, para descobrir que o meulugar está lá, o campo. Tive que conhecer pessoas novas, outras formas de relacionamento,para descobrir que a minha gente continua lá, no campo. Mas descobri também que minhaestada na Universidade não é em vão, pelo contrário, tenho a nobre missão de adquirir novosconhecimentos, novas experiências, vivências diferentes e agregá-las ao campo - de onde vime para onde retornarei. Percebi que a minha identificação com o campesinato, meu sentimentode compromisso com o povo do campo que luta por uma vida digna, que a escolha pelo cursode Biologia, tudo, tudo está relacionado com o momento histórico que nasci e com asexperiências por espaços populares que me construíram.

Foi lá em 1984. Minha vida começou neste ano e está nesse ponto hoje. A Floresta comAraucárias continua sendo destruída, hoje resta quase nada. É através da minha estada naUniversidade e, certamente, não casual na Biologia que vejo a possibilidade de contribuirpara sua conservação. Quanto ao MST, estamos com a mesma idade, e é com o povo Sem Terraque aprendo lições sobre campesinato, identidade, solidariedade, sobre minha missão comouniversitário - que a Universidade não ensina. Cada Sem Terra que compõe e dá vida aoMovimento me faz compreender os mistérios da minha trajetória de vida e meu atual sentimentode identidade e compromisso com o campo. É na Mística dos Movimentos Campesinos ondeo povo encontra a motivação para estar sempre em luta que eu também encontro o ânimo paraseguir em frente, reafirmando sempre minha identidade e meu compromisso. Ao se identificarcom um povo e se engajar na luta de seu sofrimento, não apenas lutamos juntos, mas, no povoe na luta, descobrimos a beleza da vida e a essência do SER HUMANO.

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* Graduanada em Odontologia na UFSC.

Minha vida... meu espelho

Fabrícia Bittencourt Gomes*

Eu nasci, assimEu cresci assim,E sou mesmo assim,Gabriela, sempre Gabriela

Dorival Caymmi

Minha história começa em uma cidade não tão pequena de Santa Catarina, Criciúma,onde meu pai, Valmir Gomes, e minha mãe, Clara Marli Bitencourt tiveram a notícia nãoesperada de minha gestação. Meu pai foi indiferente à presença de mais um filho, pois játinham o meu irmão, Fábio José Bitencourt Gomes. Minha mãe zelou toda sua gravidezpara não permitir que meu pai terminasse essa história que estou escrevendo.

Procuramos independênciaAcreditamos na distância entre nósCapital Inicial

Nasci muito pequena, porém, com saúde e cresci entre as brigas dos meus pais. Atécompletar sete anos, minha mãe separou-se três vezes de meu pai e a última vez no dia setede setembro de 1989, o dia de "nossa independência".

Minha mãe continuava a trabalhar para dar aos seus filhos tudo de melhor que ela podiaoferecer, porém, eu e meu irmão tivemos que estudar em colégio público. Meu primeiro colégio foio Colégio Estadual Joaquim Ramos, em que estudei até a quarta série e onde tive ótimas amigas,como a Cristiane e a Fernandinha. Elas brigavam para brincar comigo, mas no final ficávamostodas juntas. Sempre me destaquei nas notas e minha mãe, quando ia pegar meu boletim, ouviaelogios das professoras e como recompensa eu ganhava presentes (e na maioria coisas da Barbie).

Após a separação de meus pais tudo mudou para melhor em nossas vidas, passei abrincar muito, principalmente de Barbie. Meu mundo era de fato então cor de rosa. Nãotinha tudo que queria porque, como até hoje, sou um pouco insaciável, mas para umacriança tinha geralmente mais brinquedos que as minhas colegas.

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Depois troquei de colégio porque fomos morar em outro bairro, na Próspera e estudava noColégio Estadual Governador Heriberto Hülse, agora na quinta série até a sétima série. Minhagrande amiga era a Karen, mas ao contrário de minhas colegas de sala fui trabalhar com dozeanos para ajudar nas despesas de casa, pois minha mãe que era cabeleireira, agora trabalhavacomo balconista, ganhava muito pouco e meu irmão estava sempre desempregado. Meu primeiroserviço foi de serviços gerais na facção de minha madrinha, a Áurea, mas logo fui trabalhar noCentro de Criciúma na loja de minha outra madrinha em que eu a chamava de Dinha, a Jucélia.Lá fazia de tudo e aprendi como era a vida de verdade, cresci e amadureci muito. Porém, comoestudava de manhã e trabalhava de tarde tive que ir morar com a Dinha e o Dinho para estudarnovamente no Joaquim Ramos porque no meu atual Colégio a oitava série era à tarde. Nosegundo grau queria estudar a noite para trabalhar durante o dia e assim ajudar mais nas despesasde casa e então fui novamente para o Heriberto Hülse e lá completei o segundo grau.

É melhor ser alegre que ser tristeAlegria é a melhor coisa que existeÉ assim como a luz no coraçãoMas pra fazer um samba um samba com belezaÉ preciso um bocado de tristezaSenão não se faz um samba, não

Vinícius de Moraes

Mas o destino reserva muitas surpresas na vida da gente e no dia quatro de setembrode 1999 sofri um acidente de moto (e que moto! Uma SUZUKI 750) e perdi alguns dentes,os quais foram reimplantados por um Cirurgião Traumatologista Bucomaxilofacial. Elerealizou um ótimo trabalho e tive vários ferimentos pelo rosto, mas fiquei sem quase nadade cicatriz. Segundo ele eu teria que fazer três cirurgias plásticas para retirar as cicatrizesque ficariam em meu rosto, porém não foi necessário nenhuma. Recebi apoio de muitosamigos, de meus tios e minha mãe que não saía um minuto do meu lado, pois fiquei dias nacama e só comia com canudinho (emagreci um monte). Nessa ocasião descobri como eutinha amigos, pois fui eleita no hospital a paciente que mais recebia visitas. Minha freqüênciano consultório odontológico era semanal porque tudo precisava ser feito muito rápido paraestar bem para minha formatura do Terceirão. Mesmo já pensando em prestar vestibular paraOdontologia todas as visitas no consultório influenciaram para que eu me apaixonasse poressa profissão. Minha festa de formatura chegou e tudo estava maravilhoso! Meu vestidoera lindo e estavam presentes todos meus amigos e parentes.

Caminhando contra o vento,Sem lenço,Sem documento no sol de quase dezembro eu vou.

Caetano Veloso

Agora minha vida precisava tomar um rumo e o que eu tinha certeza era que queria serdentista, mesmo todos dizendo que o curso era difícil de passar e muito caro, mesmo sendoem uma Federal. Não me desestimulei, ao contrário, porque agora eu trabalhava ainda coma minha Dinha, mas para pagar cursinho. Fui estudar primeiro no Curso e Colégio Dimensão

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e tudo era novo porque a base dos colégios em que estudei era muito fraca e presteivestibular para o tão sonhado curso de Odontologia na Universidade Federal de SantaCatarina-UFSC e Santa Maria no RS -UFSM, mas não passei. Fiquei muito distante deentrar nas duas Universidades e a tristeza tomava conta do meu coração. Como sabia oque eu queria era ser dentista não desisti e fui tentar desconto em um cursinho melhor.Em janeiro de 2000 fui com minha mãe no Curso e Colégio Energia, fiz a matrícula parao extensivo e trabalhava ainda para ajudar a pagar. Minha mãe ajudou no pagamentodesses dois cursos porque na loja eu só trabalhava em um período e às vezes nem podiair para ficar estudando.

Esse ano foi muito triste para minha família, pois três familiares estavam internadosno hospital e ocorreu a morte de meu padrinho que eu amava muito. Estavam seaproximando as provas e meu emocional estava abalado e segundo diagnóstico médicocom início de depressão, porque senti muito a perda de meu padrinho e minha vida era sópara os estudos. Esqueci que necessitava de lazer e vida social e como era esperado nãopassei novamente para as duas Universidades em que prestei prova - UFSC e UFSM.Agora a tristeza não cabia dentro de mim e chorei durante um mês, pensava onde iriaachar força para continuar e mais uma vez minha mãe esteve ao meu lado e me ensinou ater fé em Deus de verdade.

Fui até o Energia e pedi uma vaga de bolsista, pois queria ter mais tempo para estudar.Saí da loja da Dinha, ficava em casa de manhã, cuidava de prova à tarde e estudava à noite.Durante o ano fiz dois semi-extensivos, mesmo tendo escutado que esse tipo de cursinhonão colocava aluno em uma federal e ainda mais em curso como Odontologia. No mês deagosto fui brincar com minhas primas em salas de bate-papo na internet e conheci um moçocom o nome de Nick de Murruga, e esse bate-papo durou dois meses por e-mail até que agente se conheceu. Então nos tornamos namorados, mesmo eu dizendo no início que eu nãoqueria namorar, mas mudei de idéia na segunda semana de encontro e então eu não ochamava de Murruga e sim Rodrigo, meu Digo.

Cores do mar, festa do solVida fazer todo sonho brilharSer feliz, no teu colo dormirE depois acordarSendo seu coloridoBrinquedo de papel marche

João Bosco

Ele me deu muita força para eu enfrentar mais uma etapa de provas e estava comigodiariamente em cada dia do vestibular da UFSC e fazia todos os meus desejos como sefosse mulher grávida (era muito bom!). Porém, nessa época sentia algo diferente, poistinha quase certeza que tinha passado, mas os dias não passavam e só queria dormir parapassar mais rápido o tempo e sair o resultado. Até que chegou o dia do listão, mastentava saber de todos os lados se tinha passado e não conseguia, liguei para o Energiae recebi a triste notícia que não havia passado. Nessa hora o mundo caiu em cima deminha cabeça, tudo tinha acabado e eu não queria falar com ninguém, apenas choravae minha mãe me olhava sem saber o que dizer, pois ela também sentia que eu havia

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passado. Nessa hora meu namorado me ligou para me parabenizar porque eu havia passado,então não entendi nada. Liguei novamente para o Energia e a moça disse que tinha entendidoPatrícia Bitencourt Gomes e não Fabricia. Agora chorava de felicidade e foi o momentomais feliz da minha vida porque finalmente iria ser dentista.

Tinha passado para o segundo semestre, como sabia que o curso realmente era muitocaro e minha mãe não tinha condições financeiras de me manter, tratei de procurar emprego.Agora estava trabalhando na loja de decoração dos pais de meu namorado, onde fiquei atéfaltar quinze dias para iniciar as aulas.

Vai tua vidaTeu caminho é de paz e amorA tua vidaÉ uma linda canção de amorAbre os teus braços e cantaA última esperançaA esperança divinaDe amar em paz

Tom Jobim / Vinicius de Moraes

No dia quinze de setembro 2003 iniciaram minhas aulas na tão sonhada UniversidadeFederal de Santa Catarina para o curso de Odontologia e lá estava minha mãe acompanhandotudo. Fui morar com minha prima para não ter que pagar aluguel adiantado. Desde a matrículajá comia no Restaurante Universitário -RU e foi lá que vi o cartaz de inscrição da MoradiaEstudantil. Providenciei os documentos e aguardava a resposta. Como mais uma luz deDeus na minha vida, consegui uma vaga para morar no módulo novinho, (que alegria!)porque paguei apenas um mês de aluguel em Florianópolis.

O curso de Odontologia era maravilhoso, porém mais difícil do que imaginava e comcarga horária sempre muito grande, mas não faltava nenhuma aula mesmo estando muitocasada. Porém, os custos são muitos elevados e a cada semestre sempre temo em não conseguircomprar os materiais.

Dentro da faculdade dei continuidade ao tratamento dos meus dentes porque nãotinha dinheiro para pagar em consultório particular e já estou quase acabando.

Agora sou bolsista do Programa Conexões de Saberes em que estou mais aprendendodo que ensinando. Levarei essa experiência para sempre em minha vida, pois mesmofazendo um curso considerado de elite, minha origem popular só me traz forças paracada dia de minha vida.

E o Murruga agora é meu noivo e pretendemos nos casar em 2008.

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* Graduanda em Psicologia na UFSC.

Minha origem...

Fernanda Peres*

Muito se fala de origem popular neste programa, nos seminários, nos projetos, nas falasdos bolsistas, dos coordenadores, enfim, o termo origem popular é o mais enfatizado no programa,por conta disso, pensei em começar este relato fazendo uma retrospectiva de minha origem...

Antes de entrar no programa nunca tinha pensado a respeito de minhas origens, sempre tiveo maior orgulho de dizer que eu era da família Peres e Martins, pois em Biguaçu, nossa famíliasempre foi admirada por sua honestidade e participação na igreja e, sobretudo por toda a luta destaGrande Família que até hoje permanece unida e admirada, pois numa família tão numerosa todosse dão bem e se ajudam, não existindo nenhum parente de "mal" ou que não se fale...

Mas, voltando às origens, vou começar pelos meus avós paternos até chegar à famíliade minha mãe. Começarei pela minha bisavó, linda, que eu tive o prazer de conviver e quemorreu com 104 anos. Ela era super vaidosa e com cabelos até a cintura, bem cuidados! Atéhoje lembro do cheirinho dela!

Seguida a história falo de meu avô, uma pessoa excepcional, maravilhosa, que morreuem 2003, mas é presença viva no meio da nossa família e exemplo para todos nós. Ele me fazuma falta muito grande... além de ser meu avô, ele era meu padrinho e fazia de tudo para meagradar, me ensinando muitas coisas e um dia quero escrever um livro apenas sobre ele! Mascontinuando a história, meu avô era marceneiro, ficava meses trabalhando fora emconstruções, minha avó ficava com toda a responsabilidade dos filhos e lavava roupas "parafora", naquela época em cachoeira e com sabão feito em casa, profissão na qual hoje éaposentada. Minha avó teve 15 filhos, dos quais quatro morreram, mas, numa situação deextrema pobreza; ela e meu avô conseguiram criar os filhos com muita dignidade. Meu pai,Salesio, cujo nome foi em homenagem a um padre da época, (todos os quinze nomes sãohomenagens a Santos, padres ou freiras!) ficava encarregado de ajudar minha avó enquantomeu avô viajava para trabalhar como marceneiro. Minha avó sempre conta que em dias detemporais meu pai (ainda bem pequenino) subia no telhado da casa com uma sombrinhapara não gotejar dentro do quarto dos irmãos, e ali ficava até a chuva passar, pois a casa eramuito velha e ficava distante da cidade e meu avô só conseguia fazer os reparos quandovinha de mês em mês para casa.

Desde muito pequeno todos trabalhavam, mas não iam para escola, pois não tinhamsapatos e cadernos. Mas meu pai sempre quis estudar, e conta que às vezes tinha que ir comum sapato diferente do outro para a aula, pois a vontade de estudar era maior...

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Meu pai foi o único dos filhos homens a seguir os estudos, mas para isso teve quepagar um preço muito alto. Roçava pastos o dia inteiro, trabalhava na casa do Padre e naigreja para poder estudar à noite no curso técnico de contabilidade. Ele tem cicatrizes naspernas até hoje... prova de todo o sacrifício que passou para estudar, pois roçava pastos ebanhados durante todo o dia, com água até o joelho e com o dinheiro que recebia pagava oônibus para ir até a escola no período noturno.

No último ano de seu curso ele conheceu minha mãe, na Praça de Biguaçu, ponto deencontro da cidade. Nesta época minha mãe, com dezoito anos, já trabalhava como professoraprimária. Meu pai nunca falou, mas acho que além da beleza, o que deve ter atraído muitomeu pai à ela foi o fato de ser professora, pois como falei, os estudos sempre foram umgrande sonho de meu pai.

Vou falar da origem da minha família materna. Meu avô paterno era pedreiro,mas morreu quando eu tinha dois anos, numa mesa de cirurgia por negligência médica.Minha avó era professora primária, como já falei profissão na qual minha mãe deucontinuidade. Eles tiveram uma vida cheia de lutas, minha avó tinha problemas emter filhos, por este motivo só conseguiu ter duas meninas: minha mãe (ela se chamaZuraide!) e minha tia.

Meu avô era um ótimo profissional e trabalhava em Florianópolis nas construções dosprédios. Ele ia de bicicleta de Biguaçu a Florianópolis (40 km) e numa destas viagens eleteve um acidente de bicicleta onde ficou muito tempo doente. O acidente foi na AvenidaRio Branco, em Florianópolis, que naquela época era de barro. Fico até hoje imaginando aviagem que meu avô fazia todo dia de bicicleta para chegar até seu trabalho.

E eu só me dei conta disso ao escrever a minha história e ao perguntar para minha mãe:"se meu avô morava em Biguaçu, como ele sofreu um acidente de bicicleta emFlorianópolis?". E minha mãe com a maior naturalidade respondeu: "é que ele ia trabalhartodos os dias de bicicleta". Nossa! Lembrei-me de todas as vezes que fui de mal com a vidapara faculdade por causa da distância (pois moro atualmente em Biguaçu) e sem me darconta que meu avô fazia este trajeto também todos os dias... mas de bicicleta! Não precisanem falar que nunca mais reclamei da distância de onde moro.

Na época daquele acidente, minha avó adotou a filha de sua irmã, pois o restante dafamília passava por muita pobreza e minha avó ajudava. Minha bisavó sempre morou comeles também, mas não cheguei a conhecê-la.

Minha avó morava às margens da BR 101 sendo sua casa ponto de parada para almoçode vários trabalhadores e amigos, além de parentes que passavam por ali. Minha mãe comapenas 12 anos já era responsável em fazer o almoço para todo o "batalhão" que ali vinhaalmoçar! Além disso, caminhava horas, pois a escola onde minha avó dava aula e minhamãe estudava ficava muito longe.

Quanto à trajetória de como cheguei até a universidade, terei de voltar no casamentode meus pais. Assim que se casaram foram morar numa casinha simples que ficava nadamenos do que no meio de quatro morros onde não passava ônibus. Eram morros enormes!Às vezes meus pais hoje nos mostram a casinha que até hoje está lá do mesmo jeito. Comose ali o tempo não tivesse passado.

Naquela época meu pai começara a trabalhar de técnico de contabilidade e minhamãe dava aulas em Garopaba que ficava a três horas de distância da nossa cidade. Foramtempos de muita luta.

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Agora, incluo-me nesta história: era para eu nascer às 8 horas do dia 9 de dezembro de1980, mas como minha mãe chegou atrasada, devido à falta de água e a demora do ônibus(isso já seria uma outra história) eu nasci às 14 horas do mesmo dia.

Aqui falo sobre a origem do meu nome que tem tudo a ver com o momento atual: meuspais escolheram meu nome baseado num critério bem inovador, eu diria! Eles compraram umlivro de nomes e meu pai queria um nome que combinasse com a palavra Doutora, pois elequeria que eu entrasse na universidade, e naquela época quem estava dentro da universidadeera chamado muitas vezes de doutor. Então, depois de combinar vários nomes eles decidiramque Doutora Fernanda ficava muito bem! Eu adoro está história, pois para mim ela resumetodo o esforço que meus pais fizeram durante toda a vida para nos dar bons estudos.

Para o desespero do meu irmão que era filho único até aquele momento, eu nasci:uma menina linda e muito mimada por todos. Mas, quando eu tinha um ano e meio deidade, meus pais saíram do morro e fomos morar num pequeno apartamento. Em seguida,fui atingida por um raio que atingiu a janela do apartamento, entrei em convulsão e pareide falar e andar, para desespero da família. Foram cinco anos de tratamento, e todos osdias minha mãe, meu irmão e eu, íamos para a cidade fazer fisioterapia no hospital infantile num outro centro de reabilitação no centro da cidade. Isso tudo era feito de ônibus, edepois de minha mãe e meu irmão ficarem me esperando durante toda à tarde, fazíamosum lanchinho perto do serviço do meu pai, pois dali o esperávamos para irmos todosjuntos para casa. Até hoje lembro da coxinha com laranjinha que eu e meu irmão comíamos.Depois do tratamento recuperei bem a fala e a primeira vez que caminhei foi com quatroanos, um momento de muita emoção. E consegui falar bem a partir dos sete anos,enfrentando muitos desafios na escola.

Apesar destes problemas de saúde devido ao raio, tive uma infância muito feliz. Meupai sempre diz que toda pessoa deve tirar 10% do salário para lazer e ele seguia isso a risca:mesmo estes 10% sendo pouquinho nós sempre passeávamos e todo sábado meus paislevantavam bem cedinho, cantavam "vamos a la playa... ooooo... vamos a la playa... oooo"Eu e meu irmão já pulávamos da cama, de casa íamos fazer "farofa" em alguma praia da ilhae só voltávamos de madrugada, pois depois de um dia de praia ainda íamos para a praia daDaniela pescar siri e camarão. Chegávamos em casa e minha mãe preparava os camarões esiris enquanto meu pai dava banho em nós. Já o domingo era destinado à família ealmoçávamos na casa da avó grande ou da avó pequena e a noite íamos à missa.

Essa época foi uma fase muito feliz da nossa família, ficávamos o dia todo na praia,meu pai me ensinou a nadar e até hoje umas das coisas que mais gosto é o mar. Todos falamque sou uma ótima nadadora, admito que seja mesmo!

Depois do acidente do apartamento meu pai financiou uma casa na CEF, financiamentoeste que só terminou de pagar no ano passado! No começo as prestações eram tão altas quemeu pai colocou o seguinte anuncio no jornal: "vende-se uma casa com um carro na garagem",tamanho o desespero, já que meus pais não conseguem dever nada. E um dos ensinamentosdeles é que o nosso nome e a nossa palavra é um dos maiores patrimônios que temos.

O carro a que meu pai se referia era o "polenta", o nosso fusquinha amarelo. Graças aDeus nem a casa e nem o "polenta" foram vendidos, pois meu pai pegou um empréstimopara pagar as mensalidades e depois as prestações não subiram mais.

Voltar a minha infância é lembrar de coisas boas... por isso volto agora à temática dosestudos, pois caso contrário ficarei aqui na minha infância e não sairei mais!

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Diante de toda a luta que meus pais tiveram para estudar, principalmente meu pai, elesfocaram a vida deles para dar a nós toda a oportunidade que eles não tiveram e semprebatalharam muito para suprir nossos estudos.

No segundo grau resolvi parar de estudar no segundo ano, por causa de crisesexistenciais da adolescência. Jamais vou esquecer a tristeza e decepção que meus paistiveram, pois eu sempre fui uma aluna ótima no colégio, sempre ganhava diplomas porminhas notas e seriedade com que levava os estudos. No outro ano retornei a estudar e jásabia o que queria fazer para o vestibular: Psicologia, meu grande sonho.

Mas depois do terceirão decidi trabalhar e assim foi: trabalhei durante um ano decaixa numa loja de ferragens e ferramentas bem no centro da cidade, no ano de 2000."Ferramental" era o nome da loja e lá trabalhava como caixa, secretária, cuidava do dinheiroe das duplicatas, além de ser responsável pelo pagamento das contas da loja. Saí um anodepois para estudar e foi bem triste, pois lá deixei colegas que gostava muito e por issonunca mais voltei lá na loja, talvez por ter sido muito difícil ter de sair de lá, pois todosgostavam muito de mim também.

Em 2001, comecei novamente estudar para o vestibular, tinha verdadeiro PÂNICO dovestibular, pois já tinha tentado duas vezes na Federal sem sucesso. E a cada vestibular osofrimento era muito grande, pois meu maior sonho era estudar na federal.

Mas diante de todo meu esforço de entrar na faculdade resolvi com meus pais que iriatentar numa faculdade particular. Eles me deram a maior força, e meu pai sempre dizia:"tudo o que eu puder fazer para que vocês estudem, eu vou fazer". Ele sempre dizia que nãotinha problema, qualquer coisa venderia o carro e pagaria a faculdade. Para recompensartodo o esforço deles, pois a faculdade era super cara, estudei muito e naquele ano queestudei nessa faculdade recebi, nos dois semestres que lá fiquei, o prêmio de melhor alunado curso e também ganhei um prêmio em dinheiro, além de uma solenidade com o reitor,para a qual convidei toda a minha família. Nem é preciso falar da felicidade e orgulho dosmeus pais e da minha família, ao realizar o sonho deles e o meu também.

Minha entrada na universidade federal foi assim: no final do ano, dentro do ônibus,voltando para casa, a minha colega me disse: "ô, Fernanda tu que só tens notas boas, porquenão tentas transferência para a Federal? Você viu que abriu o edital?"

Não tinha a menor idéia do que seria isso e depois quando ela me explicou confessoque passei dias sem dormir, com a possibilidade de entrar na federal. No outro dia já pegueio edital e já providenciei todos os documentos exigidos. Eu tinha uma semana para darconta de dezenas de documentos exigidos. Não desanimei mesmo quando a secretária docurso falou para mim: "olha, não se anime, pois a concorrência por transferência é maior doque a do vestibular." Não considerei aquela frase e fiquei rezando até a data da publicaçãoque iria sair alguns dias antes do Natal. E no dia do resultado fui a primeira pessoa a ligarpara o departamento, pois não tive coragem de ir lá pessoalmente. Quando a secretáriaatendeu e perguntou meu nome, disse: "Fernanda Peres? Olha, você não só passou, como foia primeira colocada e uma das médias mais altas a entrar no curso!".

Naquele momento paralisei e pedi para ela repetir e ela falou: "Parabéns! Você é a novaaluna do curso de Psicologia da Universidade Federal". Jamais vou consegui descrever atamanha felicidade que senti naquele momento! Estava sozinha em casa e a primeira pessoapara quem liguei foi para meu pai, que ficou assim como eu paralisado e depois contou queficou horas dentro do banheiro da empresa chorando de felicidade. E depois mais calmo

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saiu a contar para os amigos do serviço que festejaram com ele. Depois minha mãe chegouem casa já chorando, pois estava esperando ela na porta e pela minha expressão ela já sabiaa resposta e juntas fomos ligando para todos da família para dar a notícia!

Nesta época estava também com os preparativos do casamento e em 22 de fevereiro de2003 me casei e um mês depois começaram minhas aulas no curso de Psicologia. No primeirodia de aula peguei o ônibus errado e parei na frente de uma empresa ao lado da universidade(Eletrosul) achando que ali era a universidade também, até que o guarda me falou que euestava numa empresa privada e que a universidade era ao lado! Quase morri de vergonha esó consegui chegar na sala uma hora depois, pois acabei me perdendo no campus.

Entrei logo na segunda fase, pois tinha conseguido validar algumas disciplinas. Nestaépoca foi tudo meio assustador para mim, mudança de faculdade, de cidade, de casa...

A vida de casada não começou fácil, meu ex-marido (nos separamos depois de oitoanos juntos e quatro de casados) ficou desempregado logo no começo do casamento. Aadaptação também foi bem difícil, pois morei a minha vida inteira em São José e desde osdois anos de idade na mesma casa. Todos no bairro eram conhecidos, pois além de morara vida toda ali também participava da igreja, sendo coroinha durante toda a minha infânciae auxiliando as catequistas depois. E meus vizinhos eram meus amigos também. E lá ondefui morar não conhecia ninguém e me sentia muito sozinha. Na faculdade a adaptação foimuito sofrida, era difícil me incluir num novo grupo, pois na faculdade tudo é bemdiferente do colégio.

Entrei num conflito muito grande, somando a dificuldade financeira do nossocasamento e a adaptação na universidade. Como iria dizer para as pessoas que eu não estavagostando de estudar na UFSC, falar isso parecia loucura, pois todos sabiam que este era omeu grande sonho e também o quanto era concorrido entrar numa Universidade Federal.Tinha até medo de ir na Biblioteca, visitando-a muito tempo depois de estar na UFSC.

Todo o curso de Psicologia é voltado para pesquisa e tudo aquilo me dava medo, poisachava que não tinha capacidade de escrever artigos, fazer pesquisas científicas, sem me darconta que a faculdade é o tempo que temos para errar e nenhum professor falava isso,tornando esta prática cientifica um status difícil.

Minha vida até a quinta fase do curso na universidade era essa: da casa para auniversidade, da universidade para casa, sem aproveitar o MUNDO de possibilidades que aUniversidade oferece.

Estava desanimada comigo, com a universidade, com a viagem que fazia todo dia paraestar na UFSC e com as dificuldades em adaptação no casamento e também com asdificuldades financeiras, pois não é nada fácil manter uma casa, contas de luz, supermercado,telefone, condomínio, prestações, financiamento... ufa!

No começo de 2006, num dia de chuva e à procura de meu guarda chuva, fui ir àsecretaria do CFH onde vi o cartaz sobre o oferecimento de 25 bolsas de extensão. Não sabiao que era extensão, mas o valor da bolsa me interessou e fui fazer a inscrição, num primeiromomento apenas pela bolsa. Mas a surpresa que eu tive foi muito grande, além de ser umprograma muito amplo, ele me dava a oportunidade de trabalhar na minha área.

Para explicar um pouquinho o que o Conexões de Saberes representa para mim voutranscrever parte de uma resposta que eu enviei para o grupo, após ter saído num jornal localem que eu falei que o Conexões era grandioso. Esta fala provocou várias discussões e eurespondi da seguinte maneira: "Quero dizer que reafirmo o que está lá escrito, pois no

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começo eu tinha ingressado no programa por causa da bolsa e que depois que eu vi agrandiosidade deste projeto... grandiosidade porque é a primeira vez neste país que estásendo discutida a entrada e permanência de estudantes de origem popular dentro dauniversidade através de um programa; grandiosidade porque foi através deste programaque eu conheci realmente a UFSC, nem a PRAE eu sabia que existia (me desculpem a minhaignorância); grandiosidade porque foi através deste programa que eu entendi a verdadeiraessência do tripé: ensino, pesquisa e extensão; grandiosidade porque este programaproporciona o que tanto a universidade preza que é a interdisciplinaridade, apesar de queainda não tenhamos colocado em prática. Mas só pelo fato de estarmos todos juntos dediferentes cursos e dialogando... acredito já ser o caminho. E por fim grandiosidade por terconhecido este grupo com tanta diversidade, e por esse motivo tão rico, no qual eu aprendotodo dia, seja nas novas amizades, seja nas reuniões e encontros, seja nas discussões! Nossa,não vou mais falar o que está representando este projeto para mim... talvez eu seja otimistademais e veja só o lado bom das coisas... mas eu prefiro o otimismo na prática do que opessimismo na razão, como já diria algum filosofo que eu não sei mais o nome! Enfim, achoque consegui explicar o que grandioso significa para mim."

Hoje posso dizer que tenho prazer em vir para a faculdade e vejo grandiosidade atémesmo nas coisas mais simples, como por exemplo, o cafezinho ao meio dia na sala doconexões, ou no período da tarde esperando a aula da noite... o tempo agora passa voando,em meio a conversas, estudos, internet, discussões e risadas na nossa sala!

Para finalizar, gostaria de dizer o quanto foi importante resgatar a história da minhafamília e, consequentemente, a minha também! Quero dizer que aproveito este espaço parafazer uma homenagem aos meus pais, que são meus exemplos de vida. Ainda, dizer que é umorgulho muito grande estudar nesta Instituição, até porque sou a primeira pessoa na minhafamília, tanto paterna, quanto materna, a entrar numa Universidade Federal. Isto é um motivode muito orgulho para mim, pois a família é numerosa e tenho quase 40 primos! A minhameta agora é estimular meus primos, familiares e a todos a minha volta que ingressar emuma universidade pública é POSSÍVEL!!

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* Graduando em Educação Física na UFSC.

Minha história estudantil...

Fernando do Espírito Santo*

Em diversas gerações na minha família a pesca sempre foi o ponto de partida paranossas conquistas materiais, muito trabalho, esforço e muitas vezes pouco retorno. Masentre conquistas e perdas a dignidade nos mantinha erguidos.

Superamos tudo que nos opunha. Foi assim, nessas condições, que a música e o esporteentraram na minha vida. Mesmo sem condições necessárias, consegui aprender a tocarviolino realizando um sonho e partir para a conquista de outro: entrar numa universidadepública. A nossa união familiar, a perseverança, o bom humor, o modo como encaramos avida e as dificuldades apresentadas, todo esse positivismo mesmo em momentos trágicosnos ajudou nas conquistas dos nossos sonhos.

Fazia parte da terceira geração de pescadores. Decidi então buscar algo maior (assimconsiderava) e me dediquei a estudar, largando a vida no mar. Nesse contexto eu precisava deuma distração, algo que me fizesse esquecer um pouco os problemas e aliviar a fadiga dosestudos. Sendo minha família protestante entrei em contato com a música pela igreja, ganheium violino e aprendi gratuitamente a tocar. Também passei a me exercitar mais, correr, nadar,então me encontrei com aquela que seria minha futura profissão: Educação Física.

Costumo fazer planejamentos. Planejei toda minha vinda para Florianópolis, ovestibular, com quem estaria vivendo e segui à risca, obtendo êxito na minha conquistapela vaga no curso que queria na Universidade Federal de Santa Catarina.

Planejar, ter um projeto a curto ou longo prazo ajuda a superar as dificuldades equando elas aparecem lembramos da nossa meta final e elas se tornam míseras. Tudo aliadoao prazer de fazer. Se não há prazer no que se faz não há construção, o aprendizado torna-seenfadonho e não somamos nada em nossas vidas. Meus projetos estão fundamentados nesse"prazer", essa é a melhor maneira de me definir.

Após entrar na universidade federal, segui com a luta dessa vez pela permanência.Vieram e ainda passo por inúmeras dificuldades. O perfil dos alunos da minha faculdade ébastante diferente do meu perfil (maneira de ser, agir, pensar); também há a dificuldade detempo, pois tinha que trabalhar e estudar, mais tarde optando pelos estudos econsequentemente dificuldade financeira. Sentia uma crise com o curso (me enxergavatrabalhando na área, mas não no curso, mal estruturado) e recentemente tive um acidentedeixando meu braço direito impossibilitado de realizar movimentos necessários. Mas sigofirme naquilo em que me apóio, no meu projeto de vida, meu futuro.

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Minha experiência no Programa Conexões de Saberes foi excelente, levo comigoaprendizado para vida toda. Alguns integrantes têm seu modo de pensar e agirsemelhantes, mas divergem em muitos pontos, impossível não ocasionar conflitos. Aindaassim, foi gratificante participar do programa e ter contato com outros estudantes deorigem popular conhecendo a visão dos mesmos do que é o programa e como taiscompreendem sua própria realidade.

Agora, penso daqui pra frente procurar ampliar ainda mais meus horizontes e buscaralternativas para meu futuro profissional. Despeço-me do programa feliz.

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* Graduanda em Pedagogia na UFSC.

Percorrendo um caminho em quea estrada é a educação

Giselle Böger Brand*

"Pai deixa eu estudar, deixa?"Palavras que meu pai expressa até hoje, com 72 anos, cheio de emoção e orgulho.Meu pai e minha mãe foram criados na roça e assim pensaram que viveriam sempre, e

que seus filhos como eles trabalhariam na lavoura. E isso aconteceu, mas somente até meuirmão mais velho, que hoje tem 48 anos, pedir ao meu pai que o deixasse estudar.

Foi neste momento que meus pais decidiram corajosamente abandonar a vida rural epartir para cidade em busca do que passaram a sonhar para os filhos, um futuro melhor e queaté então não imaginavam que este futuro poderia ser longe do campo.

Chegando à cidade inicialmente meu pai trabalhou no sindicato dos agricultores emMedianeira, no interior do Paraná, posteriormente passou a ser caminhoneiro. Meus irmãosmais velhos estudavam e trabalhavam sempre ajudando no orçamento doméstico.

Durante esta jornada todos os filhos foram nascendo e a maioria ali mesmo na primeiracidade em que meus pais se instalaram, Medianeira.

Quando meu pai passou a ser caminhoneiro foram morar em Videira, interior de SantaCatarina e lá nasceu mais um dos filhos, meu irmão Adriano. Então, meus pais se mudarampara São José, na grande Florianópolis, e em uma sexta-feira 13, mas de muita sorte, eunasci, a única Manézinha da Ilha, a última filha para formar um time de dez, com cincohomens e cinco mulheres. Nessa época, a do meu nascimento, meu pai ainda era caminhoneiro,mas logo passou a ser mecânico autodidata e foi assim que se aposentou.

Desde pequena presencio a grande dificuldade de minha família para ter, no mínimo,acesso ao básico, já que somos uma família grande para os padrões da atualidade, meus paise mais dez filhos.

Atualmente moramos apenas eu, meu pai e minha mãe na mesma casa em São José.Minha irmã Nair e meu irmão Adriano moram em Curitiba, meus irmãos mais velhos Ana eCelso voltaram às origens, moram em Medianeira. Tenho também uma irmã que mora emBlumenau e o restante mora aqui mesmo em São José e Florianópolis. Contudo, até quemeus irmãos atingissem uma independência financeira, meus pais e eles tiveram muitagarra para enfrentar os diversos obstáculos que a vida lhes apresentou.

Lembro que em minha infância nunca me faltou o essencial, mas tudo era muitodifícil. Lembro das conversas em casa para saberem como iam dar conta de pagar o aluguele todas as despesas naquele mês. E além de todas estas dificuldades minha mãe tinha que me

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aturar pedindo os brinquedos que minhas amigas tinham, queria que minha mãe me desse aatenção, para brincar e conversar comigo, que as mães de minhas amigas lhes davam. Nãopensava em qualquer momento o trabalho que minha mãe tinha em cuidar de tudo sozinhapara aquela família enorme. Digo sozinha, porque meu pai sempre trabalhou muito sim, masele é de um tempo em que homem só trabalhava fora para colocar dinheiro em casa, jamaisajudava em serviços domésticos.

Eu queria festas de aniversários como as de minhas amigas e quando fiz cinco anosconvidei todas e disse que haveria uma festa em minha casa. Quando minha mãe viu aquelacriançada chegando ficou desesperada e teve que pedir para meu irmão comprar as coisas dafesta no mercado e pendurar na conta. Hoje quando me lembro deste dia dou muita risada,mas depois da festa a bronca correu solta, com toda razão é claro.

Com quatro anos dizia que queria ir à escola, porém minha mãe falava que como elatrabalhava em casa não conseguia vaga na creche e uma particular ela não poderia pagar,então eu tinha que ter um pouquinho de paciência e esperar completar seis anos para ir àpré-escola. Todos os dias eu fingia que ia a escola arrumava minha pasta e dizia à minha mãeque iria esperar a Kombi passar; esperava horas na frente do portão e quando minha vizinhaestava em casa eu ia pra lá e voltava dizendo a minha mãe que já havia chegado da escola.Quando a vizinha não estava, voltava para casa chorando e dizia que a Kombi não haviapassado, fazia tudo isso achando que minha mãe acreditava em mim.

Quando completei seis anos, nunca me esqueço deste dia (que felicidade!), minha mãefoi levar meu irmão Adriano ao médico e disse a minha irmã Nair que ela deveria me levarpara fazer a matrícula na pré-escola. Minha irmã disse: "Claro mãe, pode deixar que eu alevo". Quando minha mãe saiu, ela olhou para mim e disse: "Só vou quando acabar a sessãoda tarde". Eu chorei um pouquinho, mas depois tive que me contentar em esperar... resultado:quando chegamos ao colégio, surpresa! Não havia mais vagas. Fui para casa chorandomuito. E assim começou minha trajetória na educação, de maneira trágica! Aos meus olhossonhadores da época.

Minha mãe quando soube da "façanha" de minha irmã, estipulou como seu castigo que elame ensinasse durante o ano inteiro todos os dias, seria como um pré-escolar particular, só para mim.

Só hoje sei o quanto fez falta para mim a socialização com outras crianças nesseprimeiro período escolar, mas naquela época achava o máximo, já que quando cheguei àprimeira série eu era a "melhor da turma", a única que já sabia escrever meu nome completojá no primeiro dia de aula. Mal sabia eu que não tinha ganhado nada durante aquele ano,tinha sim perdido de brincar muito e me relacionar com outras crianças, apenas para aprendera escrever o meu nome primeiro.

Mesmo sendo uma ótima aluna, pasme, eu não queria ir mais à escola no primeiroano, aquele período que fiquei aprendendo em casa com minha irmã me deixou assim,digamos, "mal acostumada". Eu não me sentia segura na escola, chorava todos os dias, sóqueria ficar em casa, imaginava que quando a aula terminasse minha mãe não estaria alipara me buscar. Com o passar dos anos esse "pânico" foi passando e quem sofreu com isso foimeu irmão Adriano, quatro anos mais velho que eu; ele tinha que ir e voltar da escolacomigo, me levar para a fila porque eu dizia que não sabia o caminho, ficar comigo até a filaandar em direção a sala e ainda por cima passar o recreio comigo, só assim eu me sentiasegura. Imagine o que era para um menino de onze anos deixar de ficar com seus amigospara ficar com a irmã "chata" de sete anos o tempo inteiro?

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Naquela época das séries iniciais, eu dizia que seria médica de crianças, ou melhor,Pediatra, mas nem sabia o nome certo. Quando comecei a perceber o comentário dos adultosque este seria um curso difícil, por ser um curso com relativos gastos e muito concorrido novestibular, passei a dizer que seria professora, mas só de crianças.

No ensino fundamental continuei sendo sempre uma aluna muito aplicada, sempretirava notas ótimas.

Quando fui para o segundo grau meu pai não queria que eu estudasse à noite e noColégio próximo a minha casa, no qual cursei até a oitava série, só ofereciam segundograu à noite. Então, meus irmãos começaram a dizer que eu tinha de fazer Escola TécnicaFederal, eles a fizeram e era a que possuía o melhor ensino; pagaram a inscrição doprocesso seletivo, mas tudo isso sem me consultar e eu não queria estudar no CEFET,pois eu dizia que lá não tinha magistério e era o que eu queria fazer. Mas eles não meouviam! Mesmo assim eu decidi que não, me inscrevi para sorteio no Instituto Estadualde Educação e fui sorteada para uma vaga à tarde, porém o curso de Magistério que eutanto queria era só a noite...

Fui então contra a vontade de todos para o IEE, como era chamado. Lá entrei emdesespero com minha primeira prova de matemática, tirei 1,5 e me perguntava como issoaconteceu se sempre fui tão dedicada, e ali comecei a sentir os reflexos de uma péssimaeducação a que tive acesso, onde muitas vezes achamos que estamos aprendendo muitobem, porque tiramos boas notas, sem nos darmos conta de que o ensino era mesmo fraco.Reflexos estes que senti e sinto até hoje e para se ter uma idéia dessas conseqüências tive decursar pré-vestibular duas vezes.

Quando terminei o segundo grau, já não era mais aquela aluna tão dedicada enem me interessava por fazer faculdade, queria mesmo era trabalhar, já tinha sidobabá durante o ensino fundamental e médio e queria algo de carteira assinada, achavaque seria fácil.

Nessa época eu e uma amiga queríamos ir para Mato Grosso do Sul, em Corumbá,divisa com a Bolívia, então decidi juntar dinheiro para a viagem. Comecei a vender vestidosna praia, os quais pegava de uma senhora que morava na Cachoeira do Bom Jesus e osvendia na praia dos Ingleses no Norte da Ilha. Eram feitos de fraldas com rendas e tingidosde diversas cores, a sensação do verão entre os argentinos, que naquela época ainda gastavamrios de dinheiro aqui em Florianópolis. Todos os dias eu percorria a praia das 13:00 às 19:00e os argentinos já me conheciam, faziam encomendas, me chamavam de Florisa, achavamque este era o meu nome, mas na verdade era o nome de uma revendedora de carro da qualeu usava o boné. Alguns turistas, principalmente os psicólogos me perguntavam se eu tinhaestudo e queriam saber de minha estrutura familiar. Foi cansativo, mas uma experiênciainesquecível. Ao final de 20 dias consegui economizar R$700,00 o que era mais que suficientepara minha viagem.

Após conseguir o dinheiro, mais uma batalha: conseguir a permissão de meus paispara a viagem. No dia da partida, que seria às 14 horas, minha amiga já tinha comprado apassagem e feito suas malas até as 11 horas da manhã. E minha mãe que é a mais "durona"ainda não tinha permitido que eu fosse; ela estava estendendo roupas no varal, eu meajoelhei ao lado dela e disse: "Mãe, por favor, deixa eu ir, se você deixar eu prometo quequando voltar eu me dedico para o vestibular e faço faculdade". Ela olhou pra mim, com osolhos cheio de lágrimas e um rancor visível e respondeu com uma pergunta: "Você promete,

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que vai estudar para o vestibular e tentar fazer uma faculdade?". "Prometo sim", então elame liberou. Ah! E lá em casa é assim: se a mãe deixar está tudo bem. Não precisava mepreocupar com meu pai, ela conversaria com ele.

Então, eu tinha outro problema: menos de 3 horas, para comprar a passagem, conseguir umamala emprestada e arrumar minhas coisas. Minha amiga Juliana foi comprar a passagem para mim,enquanto eu fui até a casa do meu irmão Neuso, o mais próximo, pegar uma mala emprestada.

Enfim, deu tudo certo, foi muito legal conhecer o Pantanal, mas voltei antes de minha amiga,fiquei só 10 dias e ela ficou 20, pois não agüentei o calor e os mosquitos por causa de alergia.

Em meu primeiro pré-vestibular, meu irmão mais velho, que é professor de Física noCEFET de Florianópolis, me conseguiu uma bolsa em um cursinho que pertencia a um professoramigo seu. Eu trabalhava como agente de saúde da Dengue na Prefeitura de São José, andavao dia inteiro no sol, indo de casa em casa fazer vistorias e passar informações sobre a prevençãoda proliferação do mosquito e quando chegava ao cursinho eu não conseguia prestar atençãona aula! Além de parecer tudo grego, tudo muito além do que tive acesso em todo meusegundo grau, estava sempre muita cansada, às vezes chegava a dormir em sala de aula.Resultado, não passei no vestibular que naquele ano prestei para Engenharia Sanitária, seguindoos conselhos do meu chefe.

No ano seguinte meu irmão Anésio o mais velho de todos que havia conseguido abolsa para mim disse que pagaria meu cursinho junto com minha irmã Neiva, mas que teriaque cursá-lo de dia e me dedicar só aos estudos. Então, fiz um extensivo que era junto coma turma de terceirão pelo período de um ano, era como se estivesse tendo meu segundo graunaquele ano. Lembro que dizia para minha mãe que mesmo se eu não passasse no vestibularestaria muito satisfeita, pois só naquele ano tive acesso a um segundo grau sem greves oucortes de matérias.

Passei no vestibular, mas como não foi na primeira chamada eu já nem pensava maisnisso... foi quando minha mãe me ligou dizendo que tinha chegado uma carta em casaconstando o dia em que eu deveria fazer a matrícula. No momento nem acreditei, falei "paramãe deixar de ser mentirosa". E ela dizia do outro lado da linha mais surpresa do que eu; "éverdade minha filha, estou com a carta em minhas mãos". Fiquei eufórica e em um segundocomecei a receber ligações de meus irmãos me parabenizando e então passei a ter certeza deque finalmente havia conseguido entrar na federal.

Ao entrar na faculdade, minha primeira dificuldade foi o horário do curso, pois noprimeiro dia de aula cheguei ao Centro de Ciências da Educação pela manhã e oresponsável pela portaria me disse que o Curso de Pedagogia é à tarde não no períodomatutino. Entrei em desespero, liguei para casa chorando: "Mãe! O curso é à tarde eagora?". Ela bem calma, falou: "Larga o emprego minha filha, depois você arrumaoutro". Eu trabalhava em uma Vídeo Locadora, das 14:00 às 22:00, era um trabalhomuito bom, eu adorava, podia ver filmes de graça, tinha total liberdade para escolher osfilmes do mês a serem comprados dos fornecedores, meu chefe me dava muita autonomia,eu era como a gerente da locadora e o salário também era muito bom, não queria largarde forma alguma.

À tarde fui falar com meu meu chefe e ele disse que teria que sair da locadora por causada faculdade, ele logo disse: "Não, imagina então você trabalha das 18:00 às 22:00 e eudiminuo seu salário". Fiquei muito feliz porque não sabia como daria conta de me manter nafaculdade sem este trabalho.

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Universidade Federal de Santa Catarina 57

Logo fiz meu cadastro na PRAE (Pró Reitoria de Assuntos Estudantis) e iniciei emuma bolsa pela manhã no Núcleo de Desenvolvimento Infantil, tanto para adquirirexperiência na minha área quanto para tentar igualar minha renda mensal à renda quepossuía antes de entrar na faculdade, assim eu ia para a bolsa no período matutino, para aaula a tarde e para Vídeo Locadora à noite.

Quando cheguei à quarta fase tranquei a faculdade durante um ano por razõesfinanceiras e fui trabalhar como vendedora em uma loja de roupas. Neste momento aquelaexperiência como vendedora ambulante na praia me ajudou muito para conseguir esteemprego. Enquanto trabalhava no comércio, não me sentia bem, me achava inútil por nãoestar estudando.

Em 2005 retornei a faculdade fui bolsista de extensão, depois de IniciaçãoCientífica e em 2006 conheci o Programa Conexões dos Saberes, me identifiqueimuito com ele, principalmente por causa das barreiras encontradas por mim tantono acesso quanto na permanência na Universidade. Talvez se esse programaexistisse antes na UFSC antes eu não teria perdido um ano de minha vida forada Academia.

Hoje estou na 8ª fase do curso de Pedagogia, apesar de todas as dificuldades parachegar até aqui, neste semestre me formo. Faço habilitação em Educação Infantil e é comcrianças que pretendo trabalhar, mas confesso que às vezes fico desiludida com adesvalorização do profissional da educação, tanto que quando fui bolsista de IniciaçãoCientífica tinha plena convicção de que queria fazer Mestrado e Doutorado. Mas quandoem uma disputa por uma vaga em concursos públicos perco a vaga para pessoas que temapenas o Magistério, por terem mais experiência do que, eu fico indignada com a situação!No momento não penso em parar de estudar, mas não sei se farei minha pós-graduaçãovoltada para área da educação. Sei apenas que não quero fazer Mestrado e Doutorado antesde entrar no mercado de trabalho.

Voltando à história de minha família, posso dizer que enfrentamos muitasdificuldades, os outros irmãos muito mais do que eu, pois como diz minha irmã Neiva eupeguei a melhor parte da história, pois sou a caçula e não cheguei a vivenciar o períodoem que meu pai viajava com seu caminhão e ficava meses na estrada sem dar notícias, eminha família ficava muitas vezes sem ter o que comer em casa e sem saber se meu paiainda estava vivo.

Contudo, sempre me diverti muito com meus irmãos, tendo eles como referência jáque meus pais têm uma grande diferença de idade em relação a mim, (minha mãe me tevecom 42 anos) sendo assim, com este conflito de gerações sempre vi em meus irmãos umapoio para meus anseios na infância e principalmente na adolescência.

Agora, depois de muitos anos de batalha, e graças à coragem de meus pais deabandonarem a vida no campo para tentar recomeçar na cidade, oferecendo para seusfilhos o primordial, acesso à educação, tudo está muito diferente. Temos nossa casaprópria e conforme descrevi no começo deste relato, moramos apenas eu e meus paisjuntos, não é fácil vivemos com a aposentadoria de meu pai. Porém todos os meusirmãos também possuem casa própria e estabilidade financeira, com uma ótimaformação, quase todos com nível superior. Na verdade somente dois deles possuemapenas o nível técnico, pois eu e meus dois irmãos, que ainda não possuímos o nívelsuperior, estamos quase terminando.

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58 Caminhadas de universitários de origem popular

Para finalizar gostaria de homenagear Augusta Böger Brand e Aluízio Brand, osprotagonistas desta história, que completam neste ano cinqüenta anos de casamento etambém de luta para que tivéssemos um futuro com uma trajetória diferente da deles. E eucontinuo a sonhar e lutar para que um dia possa retornar aos meus pais tudo que fizeram eainda fazem por mim.

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* Graduando em Odontologia na UFSC.

Em busca dos sonhos!Não desista, seja vitorioso!

Jeder Fernando Martins*

No pequeno Município de Palmitinho, interior do estado do Rio Grande do Sul, nodia 21 de abril de 1983, feriado de "Tiradentes", nascia um pequenino menino, que desdeeste momento já foi um vitorioso. Filho de mãe em idade avançada (46 anos), gravidez derisco, mas aí se mostrava já, que seria um grande batalhador.

Gostaria aqui de fazer um gancho com a vida de Joaquim José da Silva Xavier, oumelhor, "Tiradentes", líder da Inconfidência Mineira, que viveu no século XVIII lutandopela independência do Brasil em meio à dominação dos portugueses. Ficou órfão cedo, aos11 anos. Trabalhou como mascate, pesquisou minerais e foi médico "prático". Diz-se quetinha a habilidade de extrair dentes e colocar novos que ele mesmo fazia. Quando aInconfidência Mineira foi delatada, em 1789, Tiradentes não contava com influênciaspolíticas ou econômicas suficientes para reduzir a sua pena. Alguns filhos da aristocraciaforam condenados a penas mais brandas quando houve o julgamento dos inconfidentes em1792. Os castigos podiam ser, por exemplo, o açoite em praça pública ou o desterro. ATiradentes - e apenas a ele, entre todos os membros da Inconfidência - restou a execução em21 de abril de 1792 e ainda a exposição de partes de seu corpo em postes da estrada queligava o Rio de Janeiro a Minas Gerais. Sua casa foi queimada, seus bens foram confiscadose seus descendentes foram declarados infames. Ainda hoje nota-se e protesta-se contra otratamento "vip" dado a pessoas com condições financeiras ou influências favoráveis. Nota-seem qualquer lugar o desprezo que é dado a um ser humano de classe popular, ou seja, pobre.

Mas retomando minha vida, às dez horas da manhã do dia 21 de Abril de 1983, nasciaum pequenino menino. Logo depois registrado e batizado pelo nome de Jeder FernandoMartins. Era um nenê muito pequeno mesmo, muitos o olhavam, e diziam: "será que vaicrescer?" Minha mãe, após uma gravidez não planejada, sendo muito forte, dizia assim: "meuleite é muito forte e do jeito que ele mama, será um menino muito 'viçoso' ". Foi também nestaépoca que recebi do meu irmão mais velho o apelido carinhoso de Preto. O tempo foi passandoe fui crescendo muito rápido. Logo, com três anos já estava indo para o pré-escolar. A professoraestagiária Rosane Arboit me levava junto. Passava em minha casa todos os dias para meapanhar. Eu morava em frente ao colégio, mesmo local em que minha família reside até hoje.Meus pais não aceitavam muito bem esta idéia de eu ir tão cedo para as aulinhas, afinal eunesta época só ia para lá para incomodar mesmo e eles achavam que eu ia enjoar da escola.Mas assim tudo começou, uma grande paixão pelos estudos, a vontade de aprender, de entender.

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60 Caminhadas de universitários de origem popular

O tempo foi passando e já no final do primário (4ª série), lembro-me até hoje deste dia,em que minha Professora Iracema Balestrin, da qual tenho muito orgulho, fez uma rodaconosco e ali ela perguntou sobre nossos sonhos, o que queríamos ser quando crescêssemos.Eu logo respondi: "quero ser médico, professora". Desde este momento ficou plantada estasementinha em mim.

Como toda criança, além das aulas e dos estudos, eu brincava muito. Fazíamosuns carretões de madeira e todos os finais de semana andávamos nas ladeiras. Quantoscalções ali se foram e à tardinha ao chegar em casa, todo sujo e rasgado, além docansaço, quantas vezes apanhei. Muitas travessuras aprontei. Mas o bom mesmo era ofutebol, às tardinhas, no campo em frente a minha casa, ficávamos ali horas e horas,todos os dias, até o escurecer... tempo muito bom este! Dentre as travessuras, sempreem tempo de bergamota, nos reuníamos os mais pestinhas, e íamos incomodar umvizinho, roubando as bergamotas do pomar. Era muito divertido, sempre ele vinhanos dar um "corridão". Mas voltando ao futebol, aos 11 anos fui para a escolinha defutebol, lá joguei muito tempo, muitos campeonatos ao lado do Professor Léu Piaia,nosso treinador. Viajávamos muito nesta época, para ir enfrentar as outras equipes,muitos campeonatos, era a maior paixão de minha época. Mas o Prof. Léo sempre deolho no nosso desempenho escolar.

Voltando aos meus estudos, estudei todo o meu 1º Grau, hoje Ensino Fundamental,no colégio em frente a minha casa, a Escola Estadual de 1º Grau Olavo Bilac, interior dePalmitinho. Sempre fui um aluno muito disciplinado, boas notas, sempre entre os doismelhores da turma, Meu melhor amigo sempre concorria comigo, lado a lado nas notas.Isto era muito legal, motivava tanto a mim quanto a ele a estudar muito, se dedicar. Apósacabar o 1º grau passei a estudar na cidade, no Instituto Estadual 22 de Maio, ondeconcluí o ensino médio.

Deixei assim a pacata cidade de Palmitinho e fui morar em Santa Maria, eu mais meuamigo, aquele que disputava o melhor desempenho no colégio. Trocar a cidade dePalmitinho, pacata, simples, povo muito humilde por um centro maior foi muito difícil nocomeço. Iniciava aí mais uma batalha: um menino saindo do interior de Palmitinho, de umbairro muito pequeno, Boa Vista, enfrentando muitos preconceitos, um dos principais erame chamarem de colono - "oh, colono de Palmitinho". Longe de casa, sozinho, pela primeiravez, tendo que aprender tudo: lavar roupa, cozinhar, era até muito engraçado, mas ao mesmotempo muito difícil. Voltando às provocações, eu não ficava brabo, pois eu era mesmo dointerior, de língua pesada e isto não me atingia.

Sou mesmo filho de uma família muito humilde e tenho muito orgulho disso. Paiagricultor e mãe comerciante e dona de casa, muito simples e foi com esta humildade esimplicidade que eles criaram seus cinco filhos homens, para maior desespero de minhamãe. Cinco marmanjões incomodando! Tive pouco contato em casa com meus irmãos,pois como sou o chamado "filho temporão", alguns deles já estavam casados, ou casaramalguns anos após meu nascimento. Mas sempre fui muito querido por todos eles, por todaa minha família.

Em Santa Maria, residi por um período de dois anos, fazendo cursinho pré-vestibular,intercalando este período com um ano que acabei ficando em casa estudando. As dificuldadeseram várias, principalmente financeiras, mas mesmo assim meus pais sempre me deram omaior apoio. Meus irmãos, também, todos ajudavam como podiam.

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Estudávamos muito, nossa vida era só estudar, estudar. Tanto eu como meu amigoqueríamos Medicina, mas ele acabou desistindo e optou por odontologia. Eu seguia firmee forte correndo atrás do meu sonho, Medicina, com unhas e dentes. Lutei muito duranteestes anos, muitas dificuldades, mas nunca nem sequer pensei em desistir. Até que chegou odia, em que acompanhado de meu pai, fui olhar o listão dos aprovados para Odontologia novestibular 2004 da UFSC, (que alegria!), gritos muitos gritos, meu nome estava lá entre os12 primeiros. A felicidade foi geral, família, amigos, todos muito felizes, até quem nãoacreditava nos meus esforços. Muita festa, minha mãe e meu pai, falavam para todos commuito orgulho, que o filho tinha passado para Odontologia, em Florianópolis. Nossa! Muitogratificante vê-los felizes: o investimento todo em mim, com muitas dificuldades! E nestemomento eu sabia que estava retornando aos meus pais um pouco do que eles fizeram pormim e é claro fazem até hoje.

Em Florianópolis, cheguei em março de 2004, não conhecia nada, ninguém, nem umamigo. Mas isso não importava, pois logo eu estaria iniciando o curso de Odontologia efazendo novas amizades. Falando em Odontologia, lembro em tirar dentes. Isto lhes lembraalgo caros leitores? Lembram no início de minha história, o nosso humilde herói Tiradentes?Estou eu aqui hoje, com a habilidade do líder Tiradentes, que também filho de famíliahumilde, lutou muito pelos seus objetivos e dos outros também, porém uma traição o levoua execução. O admiro muito, a forma como ele encarou seus obstáculos e assim também voulutando, encarando as dificuldades, sonhando e buscando um presente e um futuro melhor.

Atualmente estou na sétima fase de Odontologia, a um ano e meio do fim do curso,muito contente e realizado. E bem perto de dar mais uma grande alegria, emoção aos meusqueridos pais, minha família.

Neste período todo aqui em Florianópolis, saudades senti e muita da minha família,dos meus amigos, mas aqui novas amizades se formaram, uma nova vida teve início,amadureci muito.

Sempre estudando muito, tentando ser o melhor da turma, com o objetivo de conseguiruma bolsa, um trabalho de pesquisa, extensão, algo que tivesse ligação com a Odontologia,mas nada aparecia. Até que em maio de 2006, passando pela coordenadoria da Odontologia,vi no mural, um panfleto que dizia: "Programa Conexões de Saberes abre inscrições, serão25 bolsas, necessitamos de alunos da Nutrição, Odontologia, Enfermagem...", etc. Vi nestea grande chance de conseguir um trabalho, com atuação na minha área. Corri, arrumei todaa documentação e me inscrevi na seleção. Passaram-se 15 dias e fui chamado até a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão, para falar com os coordenadores do Projeto: a Pró-Reitora,Eunice, e o Coordenador de Apoio à Extensão, Gilson. Deste recebi a boa notícia: "Jedervocê foi selecionado a bolsista do Programa Conexões de Saberes". Fiquei muito felizmesmo, muita idéias se passavam pela minha cabeça. Como ia ser? O que ia fazer? Qualseria minha atuação?

Em Junho de 2006, iniciamos as atividades no Programa. Conhecemo-nos, bolsistas ecoordenadores. Ali tinha início mais uma experiência em minha vida. Interagir com diferentespessoas, de diferentes áreas, com idéias muitas vezes bem opostas. Assim fui fazendo novasamizades, conhecendo, aprendendo. Desde então, até hoje, o Programa Conexões de Saberesrepresentou muito pra mim. Amadureci muito e convivi com realidades, embora eu sendo deorigem popular, as quais nunca tive contato. Como a vivida por muitos moradores daComunidade da Serrinha, que conheci no local de atuação do Programa. No consultório do

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62 Caminhadas de universitários de origem popular

Colégio de Aplicação, montado pela Odontologia/UFSC, eu mais meus colegas bolsistasda Odontologia, realizamos atendimentos clínicos e na Casa São José (comunidade daSerrinha), trabalhos preventivo-educativos junto às crianças do local. Embora muitosproblemas tenhamos enfrentado no decorrer deste um ano de Programa, conseguimosdesenvolver algumas ações, as quais nos deixam muito gratificados e nos fazem crescer,adquirir experiência profissional, acadêmica e social. O Programa representa muito pramim, além de tudo, auxilia na minha permanência na Universidade.

Meus caros, me sinto honrado em estar contando-lhes um pouco de minha vida avocês e quero muito que saibam de uma coisa, e levem para suas vidas, nunca digam nuncaa nada, pois tudo é possível. Sonhem, tracem metas, objetivos em suas vidas. Depois corramatrás, batalhem, lutem com unhas e dentes, confiança em si próprio, que serão vitoriosos.

Deixo aqui uma mensagem final:

Nunca desistamesmo que a vidaseja difícil...

Nunca desista de viverseja forte para superar...Toda e qualquer situação

Nunca desista de ser feliz...Existem pedrasnão desista de andar...

Existem barreirasnão desista de passar...

Existem os nósé preciso desatar...

Existe o desânimoé a pior coisa que há...A estrada é longanão desista de chegar...

Existe o cansaçoé preciso caminhar...

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Existe a derrotavocê nasceu para ganhar...Existe o desamoré fundamental amar.....

Nunca Desista Autor Desconhecido

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64 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduanda em Agronomia na UFSC.

Meu caminho

Juliana Mazurkievicz*

Meus avós paternos e maternos moravam na mesma cidade, Canoinhas, em SantaCatarina e na mesma comunidade tragicamente chamada de Serra das Mortes, nome esteoriginado devido à morte de dezesseis pessoas da mesma família pelos bugres, fato ocorridono final do século XIX.

No entanto, meu avô paterno nasceu na cidade de Palmeira no Paraná e, como eraprofessor, foi chamado para dar aulas em Serra das Mortes. Lá conheceu minha avó, casaram,tiveram sete filhos, dentre eles meu pai que é o penúltimo.

Já meus avós maternos nasceram em outras comunidades, Rio Bonito e Lança. Nessaúltima eles se conheceram, casaram e moraram os cinco primeiros anos de casados, depoismudaram para Serra das Mortes onde meu avô herdou alguns hectares de terra. Tiveramnove filhos, dentre eles a minha mãe que é a mais velha.

Meus pais se conheceram quando crianças, estudaram na mesma escola apenas oprimário e aos dezenove anos de suas vidas começaram a namorar, casaram-se aos vinte eum anos, em julho de 1979. Logo em janeiro do próximo ano nasce meu irmão mais velho,Toni. Dois anos depois minha mãe perdeu um casal de gêmeos que nasceram mortos. Em 28de maio de 1982 nasce a protagonista dessa história, eu. Um ano e sete meses depois veio aomundo o Cleiton e quatro anos depois nasce o caçula Dioni. Em 1992 minha mãe teve suaúltima gravidez, mas infelizmente a Janini viveu apenas cinco dias, devido a complicaçõesno parto juntamente com irresponsabilidade médica. Minha mãe não pôde mais ter filhos,devido à retirada do útero e ovário. Mas o que importa é que minha mãe sobreviveu a isso tudo.

Sempre tivemos uma vida simples, trabalhando na roça, plantando fumo. Aprendi atrabalhar desde criança, acompanhando meus pais na roça, fazia de tudo, capinava, plantavamilho, feijão, e principalmente fumo de onde sempre saiu nosso sustento, além de outrasverduras e legumes que minha mãe sempre plantou. No entanto, tive uma infância invejável,sem brinquedos caros "comprados", porém tínhamos a tranqüilidade do meio rural, a liberdadepara correr nos campos, brincar, subir em árvores, convivendo com animais, sem medo,havia mais dois primos, duas primas e dois vizinhos, que moravam próximos. Nossosbrinquedos eram inventados bem como nossas brincadeiras.

A escola onde estudei o primário era ao lado da minha casa, mas lembro que eu nãogostava, não tinha a menor graça chegar à escola em dois minutos. Sempre ouvia históriados colegas que voltavam a pé para casa e iam catando amoras no caminho. Já da 5ª a 8ª

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séries eu ia de ônibus doze km até o colégio. Adorava ir à escola e apesar de ter que levantaràs 5:30 da manhã com muita geada no inverno, esses foram os melhores anos de minha vida.Fiz muitas amizades, algumas que cultivo até hoje. Em 1996 estando eu na 8a série, meuspais venderam o terreno em Serra das Mortes e mudaram para outra comunidade distante12km, chamada Pinheiros, onde permanecem até hoje. Mudança de comunidade, pessoasdiferentes, novas amizades, mas por pouco tempo.

Ao terminar o ensino fundamental, surgiu a oportunidade de eu ir estudar em Curitiba,em um colégio de freiras e fui. Morava na casa das freiras, de manhã fazia atividades na casa,aulas de música e de crescimento pessoal, à tarde estudava em um colégio público, juntamentecom mais oito meninas. Lá permaneci dois anos, até que elas decidiram que não queriammais as meninas lá se não quisessem seguir a vida religiosa.

Então voltei para Canoinhas, onde morei um ano na cidade com minha avó, faziacompanhia à ela e estudava. Terminei assim naquele ano de 1999 o ensino médio. Nãoqueria continuar morando na cidade, logo, voltei a morar com meus pais. Nessa época meusirmãos estavam trabalhando e estudando fora, meu irmão mais novo ficava apenas meioperíodo em casa e o pau para toda obra lá em casa era eu! Eu me dividia entre ajudar minhamãe no trabalho da casa e o pai em outros trabalhos, como: guiar o cavalo para arar o solo,adubar, ou mesmo vacinar as ovelhas.

Apesar de cansativo eu adorava aquele trabalho; foi aí que descobri que queria estudarmais coisas nessa área e pensei em fazer um curso de Técnico Agrícola, no colégio ondemeus irmãos estudaram. Mas demoraria três anos e como era um colégio particular não teriacomo pagar, nem como morar lá, visto que só tem alojamento masculino. Meus irmãosconseguiram metade da bolsa pela prefeitura e o restante pagavam com trabalhos no colégio.E tinha mais uma lista de materiais que o colégio solicitava. Resumindo, ficaria inviável ocurso técnico, então pensei em sair de casa e tentar direto a faculdade e o único curso comqual me identifiquei foi Agronomia, mesmo tendo pouco conhecimento sobre ele. Foientão que minha mãe incentivou-me à sair para trabalhar e correr atrás do meu sonho, aindaum pouco insegura.

Em setembro de 2001 vim para Florianópolis, pois já tenho cinco tias, irmãs da minha mãeque moram aqui e elas me deram muita força no início. Apenas duas semanas fiquei na casa daminha tia, depois já comecei a trabalhar como doméstica na casa da dona Luciana, que conheciem uma agência de empregos. Mas como eu queria estudar e era um pouco longe tanto do centro,como do ponto de ônibus, acabei indo trabalhar na LBV (Legião da Boa Vontade), comtelemarketing, morava em Palhoça e pagava um quarto na casa da tia avó do meu tio.

Não conseguindo me identificar com o trabalho e com a filosofia da LBV, saí e fuitrabalhar novamente como doméstica, pois assim não precisaria pagar aluguel. Por indicaçãoda dona Luciana, fui morar e trabalhar com a família da dona Ana no Cacupé. Eu adoravamorar lá era um condomínio e tinha muita área verde, muito sossego e tranqüilidade. Eucuidava da casa e dos meninos, um de cinco e outro de sete anos; todas foram pessoasmaravilhosas que me ajudaram muito. Mas eu continuava com a idéia de estudar, queriafazer cursinho e como a dona Ana estudava à noite, depois de um ano e meio saí de lá e fuimorar com a dona Iracy, no centro de Florianópolis. E como ela morava sozinha eu poderiaestudar. Então, com a ajuda da dona Luciana, consegui uma bolsa no colégio Energia umdos melhores do estado, assim, trabalhava de dia e estudava à noite. Ao final de cinco mesesprestei vestibular na UFSC e UDESC, mas não passei.

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66 Caminhadas de universitários de origem popular

No ano seguinte, 2004, consegui bolsa de novo e voltei a fazer cursinho no Energia,mais cinco meses, em seguida o vestibular e enfim consegui passar e entrei para UFSC. Umsonho realizado! Esperei cinco meses, pois havia passado para a segunda turma. Nessetempo fui morar com a Nely, uma amiga que conheci através da ex-esposa do meu primo,pois ambas trabalhavam no mesmo salão de beleza. Morávamos eu ela e a filha dela, Simonede seis anos. Eu a ajudava na casa e ela me ajudava financeiramente. Até eu conseguir a bolsano Conexões e, um ano depois, consegui uma vaga na Casa do Estudante da UFSC. Saí da casada Nely, no entanto continuamos muito amigas, sempre vou visitá-la, ela é uma grande amiga.

Na faculdade conheci pessoas maravilhosas, amigos que tenho certeza jamais ireiesquecer. Eles me ensinaram, me apoiaram e incentivaram. No entanto, sem esquecer deagradecer a minha família, que mesmo de longe sempre me apoiaram também e torceram pormim. Quanto ao meu pai, sei que por ele os filhos não teriam saído de perto, contudo hojeele tem o maior orgulho de dizer que a filha dele será uma agrônoma. Minha mãe foi a maisincentivadora, que sempre batalhou para conseguir o mínimo para nós. E meus irmãos amados...foram poucas as brigas, na verdade não tivemos muito tempo para brigar, pois saímos de casacedo. E agora longe de todos vejo o quanto é importante se ter uma família apoiando.

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* Graduando em Engenharia Elétrica na UFSC.

A vida ao estudo

Luiz Henrique Battaglin*

Nasci em um bairro humilde de um município simples de interior, chamado São Josédo Cedro, lugar agradável onde a maioria dos vizinhos, incluindo meus tios, tinham filhosde minha idade. Em minha casa, tão antiga quanto grande, viviam meus pais, minha avópaterna e eu em ampla harmonia.

Com mais ou menos cinco anos lembro-me de minha mãe dizendo que no próximoano eu iria para a escola e respondia que não iria, apesar de ficar a cem metros de casa. Eentrava a voz de meu pai com sua total autoridade dizendo que iria sim. No primeiro dia deaula eu estava desesperado, mas em poucos dias fiz amigos e estava muito bem lá.

A escola São José, onde cursei meu ensino fundamental, tinha suas limitações emrelação ao aprendizado, mas nos transmitia um ambiente familiar, onde fiz quase todos osmeus amigos e me divertia acima de tudo, em horário de aula ou não, pois vínhamos nosfinais de semana utilizar a única quadra de esportes do bairro fazendo bolhas nos péssempre atrás de uma bola.

Aos dez anos ganhei um irmão e perdi meu avô materno, pessoa incrível. Em casa foiuma barra: o pai, caminhoneiro sempre fora, me tornou assim o homem da casa com deverese obrigações, mas também com mais liberdade. A minha mãe não trabalhava fora e o paiganhava pouco, não dava para muita coisa. Às vezes, a avó entrava em cena para ajudarfinanceiramente na forma de empréstimo com seu dinheiro de professora aposentada.

Quando terminei o ensino fundamental tive de mudar de colégio para cursar o ensinomédio. Optei pelo período noturno, pois meus amigos também optaram. A primeira série foiestranha, lugar, matérias, pessoas, tudo novo, mas gostava. Foi quando comecei a trabalharo dia todo em uma fábrica de confecções, a ganhar a recompensa merecida pelo esforço,uma sensação que nunca esqueci e que me fez dar mais valor para o dinheiro.

Ao mesmo tempo meus pais passaram em um concurso para prefeitura municipal, amãe no posto de saúde e o pai na administração, então tivemos mais estabilidade. A segundae a terceiras séries foram melhores, onde pude aproveitar muito mais a estabilidade financeirada qual desfrutava. Foi também nessa época que fiz bons amigos. No final do terceiro anofui fazer o vestibular da UFSC, para Engenharia Sanitária e Ambiental, e achei que iria bem,pois sempre fui um dos melhores alunos da turma, mas a maioria das questões da prova eunão fazia idéia da existência de tal assunto, completo fracasso que mostrou a fracaescolarização que tive.

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68 Caminhadas de universitários de origem popular

Dias depois do “vestiba” toda minha turma de terceiro ano fez uma viagem para ficardez dias nas praias da capital. Imagina a alegria da gurizada do extremo oeste do estado emficar a beira-mar por tantos dias com poucas despesas, já que tínhamos ganhado a viagem.Quando retornamos é que fui me dar conta que tinha acabado uma das melhores fases quetive até então e que não tinha aprendido tudo o que devia e a tradicional pergunta me vinhaà cabeça "fazer o que agora?" Foi quando uns colegas e eu tivemos a idéia de fazer um cursopré-vestibular em São Miguel do Oeste, a única cidade vizinha que disponibilizava talserviço. Éramos quatro "malucos", como muitos diziam, que trabalhávamos o dia todo,pegávamos oitenta quilômetros de estrada, estudávamos três horas e meia, dormíamos seishoras por noite de segunda a sexta, com gastos de metade do salário durante um ano paranão ganhar sequer um diploma, mas para ver se conseguíamos a almejada vaga gratuita.

Assim passou o ano: parei de trabalhar, com seguro desemprego, para ter mais tempopara estudo. E fiz vestibular de novo, agora para Engenharia Elétrica, fui até razoavelmentebem, mas não o suficiente. Percebi então o quanto ruim foi meu ensino médio e também ocursinho e, não tendo condições de pagar coisa melhor, achei melhor trocar de ares.

Meses depois saí de casa, vendo meu pai chorando pela tristeza de não ter condiçõesde pagar o estudo do filho. Fui morar com tios meus em Jaraguá do Sul, onde trabalhei cincomeses como louco, juntando dinheiro e meus pais também para custear um bom cursinho nosegundo semestre.

Com o fim da trabalheira fomos fazer matrícula em um bom cursinho da capital, doisprimos e eu. Alugamos uma quitinete barata com bastante baratas e problemas elétricos, ondeum sempre dormia no sofá. Fazíamos cursinho no período vespertino e estudávamos noiteadentro até que o sono nos pegava, e assim foram quatro meses. Inscrevi-me em três vestibulares,UFSC, UDESC e UFSM, todos para Engenharia Elétrica. Fiz as provas da UFSC e UDESC emFlorianópolis no início de dezembro e voltei para casa depois de um ano, até porque não tinhamais dinheiro. Aquilo foi o pior, a espera pelo último dia do ano para o resultado.

Na manhã do dia vinte e sete meu pai me liga do trabalho dizendo que eu estava narelação de aprovados da UFSC! Passei o resto do dia pensando não somente na vaga quetinha conseguido, mas em como iria me manter na capital, pois já tinham sido difíceisquatro meses, imagina cinco anos. Contudo, meus pais me encheram de esperança dizendoque não importava o que tinham que fazer, mas eu iria me formar. Como passei para osegundo semestre começamos a economizar. Quando aconteceu um dos fatos mais tristesque vivi, o falecimento de minha avó paterna devido a um infarto; ela nos ajudou emgrandes dificuldades e quando parecia que iríamos colher os frutos, ela se vai... fiquei umbom tempo mal.

Dia dois de agosto, no primeiro dia de aula, lá estava eu na sala de aula não entendendonada, mas insistindo. E me senti muito orgulhoso quando um dia uma professora fez apergunta: "quem veio de colégio estadual público?" e só tinha um, eu! Estar no quarto cursomais difícil de entrar sendo o único representante do povão na sala de aula foi muita honra.

Meio ano depois entrei no Programa Conexões de Saberes e evoluí muito,principalmente na questão humana, pois como adorador das exatas sempre tive dificuldadescom palavras e debates.

No início deste ano pedi transferência para Engenharia Civil, pois não estava fazendoo que realmente queria. Hoje estou mais animado, começando um novo curso visando umfuturo estável para minha família.

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Universidade Federal de Santa Catarina 69

* Graduanda em Educação Física na UFSC.

Viva e deixe viver!

Natália Cristina Santos Cipriani*

Devemos ter as memórias como sentimentos e lembranças boas, que nos fazem crescere aprender com aquilo que fizemos, enfim fazer das memórias ensinamentos e aprendizados.

Hoje, sou acadêmica de Educação Física, da UFSC, mas para eu chegar até auniversidade passei alguns momentos ruins e por muitos bons. Vou ressaltar os bons, quesão melhores de ler!

Por ser o que sou, dedico todas as minhas memórias aos meus pais que fizeram de suatrajetória de vida um espelho para a minha. Se um dia eu me tornar metade do que meus paisrepresentam para mim, penso que serei uma grande pessoa, um bom ser humano!

Na minha infância brincava muito em casa, não saía para a rua, pois minha mãe sempreviu muitos perigos. Morávamos do lado de uma indústria têxtil e a rua era muito movimentadaprincipalmente por operários da fábrica. Como tenho mais dois irmãos (Cláudio e Nayara),brincávamos muito entre nós mesmos. Então, nunca fui muito chegada a fazer amizades,sempre fui a mais tímida e desengonçada também.

Meus pais me consideravam a "tansinha" entre meus irmãos, a filha que nunca iaconseguir fazer nada. Os anos foram passando até que fui matriculada no jardim de infânciae lá não consegui fazer muitas amizades a princípio... meus pais me mudaram de escola e aífiz grandes amizades. Era mágico ir para o jardim!

Depois veio a fase de aprender a escrever e a ler e na primeira série era tudo fantásticotambém, mas o que mais me deixava triste nesse período era que nenhum de meus amigos foipara o mesmo colégio que eu. Mas logo fiz algumas amizades, nada igual às do jardim - asquais se preservam até hoje. Fui sempre uma aluna exemplar e isso deixava os meus paisorgulhosos da sua filhinha "tansinha" e me deixava feliz também ver meus pais orgulhosos demim. Sempre fazia o possível para que isso acontecesse.

Na segunda ou terceira série do ensino fundamental, comecei a treinar vôlei no colégio,nunca faltava aos treinos, era demais o esporte! Isso me deixava extremamente realizada.Mas o que eu mais queria era entrar para o time que representava a cidade, só que para entrarnesse time eu teria que passar por um processo de seleção chamado de "peneirão". E lá eu fuitodos os anos, fazer o "peneirão" e por três anos consecutivos sem conseguir nada, até que,quando consegui entrar, eu já estava pela quinta série. E daí para frente o esporte foi algoimprescindível na minha vida, até a oitava série, era dedicação total ao colégio e aostreinos. Pode parecer até um pouco chato contar, porém foi uma das mais deliciosas rotinas

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70 Caminhadas de universitários de origem popular

da minha vida! Viagens, campeonatos, o grupo em si, o clima, era tudo de melhor queexistia... não pensava em parar nunca. Fiz amizades, e fazia o que pra mim era o melhorde tudo: jogar!

Até o dia em que rompi os ligamentos do meu pé esquerdo, fiquei um mês de gesso,engordei uns oito quilos devido ao costume da alimentação de atleta e não fazia maisnenhum tipo de atividade. Quando retornei aos treinos estava totalmente fora de ritmo, commuitas dores ainda, precisava de um período de adaptação. E o que não seria possíveldevido aos campeonatos estarem em andamento. Foi aí que me desiludi com o vôlei, acheique estava prestes ao fim com este esporte...

Como estava em um período escolar de transformações de oitava série para o primeiroano, em que mudam os professores, mudam algumas matérias, eu tinha aulas em dois períodosdevido aos laboratórios de Física e Química. Então, comecei a me dedicar totalmente aosestudos, isso me ajudou a esquecer um pouco do vôlei e me focar mais. Mas com tanta coisapara estudar, tudo começou a complicar.

Resolvi entrar em uma academia de ginástica para emagrecer, perder o peso queestava em excesso para depois talvez retornar aos treinos de vôlei. Mas encantei-me pelaacademia, pelas pessoas que encontrei lá, colegas antigos que não via mais no meucotidiano, novas amizades e resolvi continuar. Nessa época, praticava o vôlei como apenasdiversão e não mais como rendimento.

Dediquei-me ao colégio, cheguei ao terceirão e na metade do ano de 2003 presteivestibular para Engenharia Química. Passei, mas queria terminar o terceiro e me formar coma turma, isso ainda em 2003. Até o final do ano minha intenção era prestar o vestibular parao curso de Engenharia Química. Mas uma semana antes do vestibular, não queria mais fazeraquilo, fiquei em depressão em casa, olhando os formulários que eu tinha de preencher. Foiuma péssima semana, até que entreguei meus formulários. E foi assim: escolhi EngenhariaQuímica mesmo, para a FURB, que é uma universidade de Blumenau, cidade perto daminha; para a UNIVALI tentei comércio exterior; pelo SAEM, me inscrevi para Biotecnologiae para a UFSC escolhi Educação Física. Minha mãe não estava entendendo nada das minhasescolhas, pois primeiro eu estava muito convicta de Engenharia Química e de uma semanapara outra resolvi mudar tudo! Um curso parecia ter nada a ver com o outro, era visívelminha indecisão.

Mas assim segui pelo ano até o resultado das provas. Muito feliz, passei para todosos cursos. Algo inacreditável, mas era verdade: a tansa da família conseguiu passar paratodos os cursos!

Daí veio o dilema, o que fazer? Que curso fazer? Pois, meu pai tinha se oferecido apagar qualquer curso que eu quisesse prestar, não precisava ser público, pois o dinheiroque ele iria gastar para me manter fora de casa, era o mesmo valor da mensalidade dosoutros cursos. Nunca quis sair de casa, mas universidade pública... um dilema... por fim,resolvi fazer Educação Física com o qual sempre me identifiquei. O esporte a educaçãofísica me faziam vibrar!

Vim com meus pais para Florianópolis procurar um apto para morar. Deu tudo certo,em agosto de 2004 iniciavam-se as aulas na UFSC e estava eu sozinha dentro do meu novolar, sem conhecer nada da cidade. No início tive de pedir ajuda para alguns amigos que jámoravam em Florianópolis, pois não conseguia saber para que lado da universidade eu saíapara voltar para casa. Estava desesperada!

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Universidade Federal de Santa Catarina 71

Não tinha um final de semana que eu não voltava para casa dos meus pais! Fiquei umsemestre voltando todos os finais de semana para Brusque.

Depois fui me acostumando com a universidade, conheci amigos verdadeiros que meacompanham até hoje, os quais considero minha segunda família, amigos tão verdadeirosque irei levar para toda minha vida. E aproveitando o espaço quero dizer que amo vocêsdemais, vocês são muito importantes para mim!

Depois que saí de casa parece que comecei a crescer mais como pessoa. Não que issonão acontecesse quando eu estava morando com os meus pais, mas é algo que você demoramais a perceber quando está com eles. Fui me desprendendo das asas dos meus pais, comeceia perceber nesses anos de faculdade que consigo ser alguém longe deles. Eles são tãoespeciais na minha vida ainda que sinto saudades enormes! Às vezes chego a chorar desaudades, mas acho que é até saudável.

Gostaria de ressaltar aquilo de melhor na minha experiência: foi e é toda a dedicação,atenção, compreensão, amizade que recebi e ofereci. E um dos principais valores que aprendie ainda lembro meu pai repetindo-o na mesa do almoço, ou café é a humildade acima detudo: para saber que errou, que pode consertar e que tudo na vida pode ser diferente, a partirda hora em que você tomar atitude e querer lutar.

Valores? Sim... valores são o que eu mais prezo em toda a minha existência, lembrodos meus pais falando, principalmente nas refeições - esses momentos tão importantes parauma família - ou até em conversas mais casuais, das suas trajetórias, com problemas, comdeslizes, mas acima de tudo com humildade e muita força para lutar por seus ideais.Verdadeiros guerreiros, eles enfrentaram suas famílias e a si próprios com muita persistência.É por isso que hoje eu tenho uma família espetacular.

Vou citar uma parte da história que me comove muito até hoje. Lembro como sefosse agora, o dia em que meu pai pegou os papéis para renovar a bolsa de estudos docolégio, sendo que ele sempre trabalhou como um "louco" para dar os estudos aos seusfilhos e nunca precisou destes papéis para conseguir a bolsa. Ele sempre conversava como padre, que era o coordenador do colégio, e conseguia as bolsas de estudo, e naquele anoele estava exigindo que preenchêssemos uns papéis. E as bolsas? Talvez conseguiria, nãoestavam dando certeza... meu pai principalmente, ficou alucinado, desesperado! Mastambém revoltado. Ele sempre pediu, mas nunca precisava de papéis, ele sempre ia até opadre falava com ele e estava tudo solucionado. E nesse ano, não lembro exatamente oano, o colégio iria estudar o caso dele e ele estava como um louco, porque se não dessema bolsa de estudos, ele não iria ter o dinheiro para deixar todos os filhos no colégio.Sentados todos na mesa, meu pai pediu para eu ir preenchendo os papéis e ao fazer apergunta: "por que você está entrando com o pedido de bolsa?" Meu pai simplesmenterespondeu: "estou pobre".

Nossa! Isso me comove até hoje, pois sempre vi meu pai trabalhar de segunda asegunda, sem tirar nenhum dia de folga! E posso até escutar ele falando: "estudem, aproveitemessa oportunidade, que o estudo é a única herança que se posso dar para vocês."

Hoje estou muito feliz com a universidade. Estou prestes a terminar a faculdade,falta apenas um ano e meio e me considero preparada para enfrentar o mundo, a sociedade,como alguém formada. Tenho sonhos de entrar para o mestrado. Estou me dedicando aesta área desde que entrei na universidade, há três anos, ministrando aula de ginásticapara os idosos, estudando e produzindo artigos e resumos, todas na área de idosos. Vim

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72 Caminhadas de universitários de origem popular

parar no Programa Conexões devido, a princípio, a bolsa que é oferecida, mas hoje acreditonos seus ideais e acredito que, se as pessoas tiverem mais oportunidades e a universidadeestiver aberta para todos, a nossa educação pode mudar para melhor. E espero concretizartodos os meus sonhos.

A última coisa que tenho a completar nessa história é que se não fosse a existência daminha mãe, sempre ao lado do meu pai, hoje não seria o que eu sou, minha família não seriatão espetacular quanto é e eu não teria as mesmas oportunidades que eu tenho. Meu pai é ohomem extraordinário que é, por causa do companheirismo da minha, mais espetacularainda, mãe!!

Agradeço a tudo e a todos que passaram na minha trajetória até hoje, pois só crescicom tudo o que me aconteceu.

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* Graduanda em Serviço Social na UFSC.

Caminhadas

Patrícia Gonçalves*

Há muitos anos você anda em círculosJá não lembra de onde foi que partiuTantos desejos soprados pelo ventoSe espatifaram quando o vento sumiu.

Raul Seixas/Marcelo Nova

Sabe aqueles dias em que a sua imaginação está em qualquer lugar menos aonde vocêgostaria ou que ela deveria estar? Pois é, aquele foi um desses dias...

Estava chegando o prazo da entrega da história da minha vida(!) e eu não conseguiaescrever uma linha sequer, pensava em tudo (juro que me esforçava para que fosse diferente!)menos na tarefa que tinha para cumprir... talvez porque me sentisse saturada e obrigada maisuma vez a cumprir tarefas vindas da Universidade. Olhava para o computador, a página embranco e para o lado... na minha escrivaninha uma pilha de textos atrasados das disciplinaspara ler e na mente uma história de vida para (re) lembrar!

O que fazer primeiro? Não seria muita coisa para uma pessoa só, em pleno finalde semana?

Talvez já devesse estar acostumada, já que depois que entrei na UFSC os meusfinais de semana na grande maioria são aproveitados para tais fins - estudar e fazertarefas, pois durante a semana fica impossível dar conta de tudo o que é solicitado(alguns exigem mesmo e você fica sujeito à reprovação ou punição se você não o faz...)pelos professores e outros.

Já que acordo diariamente às 6h da manhã, vou para a Universidade de ônibus, nascondições que toda a massa trabalhadora e explorada conhece: superlotação, tarifa abusiva,atrasos nos horários, estradas e ônibus em condições precárias, péssimas, indignas e aindapor vezes os funcionários do ônibus e passageiros que, alienadamente, em conseqüência doesgotamento acumulado por tais situações diárias, se ameaçam e se agridem, culpando unsaos outros pelos acontecimentos do mundo! Quando consigo passar por tudo isso semmaiores complicações (como o ônibus quebrar ou um acidente que interrompe o trajeto,greve dos funcionários da empresa do ônibus, atrasos ou adiantamentos nos horários dositinerários etc.) chego a Universidade após uma hora, para assistir quatro aulas que quandonão são monótonas, exaustivas e reprodutoras da ideologia dominante, são produtivas.

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Ao término das aulas, sigo apressadamente com alguns amigos para a gigantesca filado restaurante universitário e após uns quarenta minutos, almoço. No período vespertinoaté metade do noturno me desdobro em atividades da bolsa e atividades extracurriculares.Volto para casa novamente de ônibus, num trajeto que agora no horário noturno pode durarentre uma hora e vinte até duas horas, devido ao "horário de pico", pois a grande massa dostrabalhadores é liberada das suas atividades produtivas para realizarem "livremente" as suasatividades privadas (faça se for capaz!). Eu, como boa filha da classe subalterna, chego emcasa tento estudar (quando agüento!) e dormir, porque no outro dia a produção continua!

E a pergunta... o quê, para quem e por que escrever?Teria algo relevante a dizer para além do já citado?

Não sei pois nasci para isso e aquiloE o enguiço de tanto querer.

Raul Seixas/Marcelo Nova

Desde pequenina a minha trajetória de vida seguiu a lógica descrita anteriormente: ada produção, ida, ônibus, volta para casa, e no outro dia, tudo de novo... quando eu tinhapoucos meses de idade, minha mãe saía de casa cedo para ir trabalhar, me levava junto,íamos de ônibus, pois o trabalho dela ficava longe, me deixava em uma creche, lá eu ficavadurante todo o dia. À noite ao sair do trabalho ela me buscava, voltávamos para casa e nooutro dia, tudo de novo. Assim, seguiu a minha vida até os três anos de idade.

Com essa idade eu já poderia freqüentar o jardim de infância do nosso bairro e entãofui matriculada. Ia para o jardim apenas em um período. A mãe de um vizinho que estudavacomigo me dava uma carona de carro, ou ia de ônibus. Na grande maioria das vezes euficava no período oposto às aulas na casa do mesmo vizinho brincando com ele e com todaa vizinhança que se reunia ali. Pois eles tinham um montão de brinquedos e um pátioenorme e um tanto seguro - a não ser pelas as altas árvores e janelas que já fizeram muitoscaírem, quebrarem braço, machucarem os pés, como também no fim do pátio que acessavaa uma lagoa e a um barco, que fizeram alguns levarem um susto!

Na idade de ir para a escola, sete anos, as coisas não se modificaram muito, fui tambémpara a escola de ensino fundamental do bairro. Agora minha mãe tinha comprado umabicicleta para eu ir à escola. Adorava estudar na escola e em casa, passava as tardes lendo,escrevendo, pintando... "sempre com esses papéis nas mãos, Patrícia? Vai fazer algumacoisa!" dizia minha mãe. Ela não entendia porque eu gostava tanto de estudar, talvez porquepara ela aquilo não teve sentido quando foi o momento dela ou talvez porque ela tenhaparado de estudar quando muito pequena e nunca mais retornou os estudos. O fato é quepara mim naquele momento, no meu momento de aprendizagem da escrita e da leitura, erauma coisa diríamos: significativa.

Também porque talvez me sentisse útil por isso, pois minha avó, com quem morávamos,era presidente de um grupo de idosos do nosso bairro e sempre ficava responsável porelaborar documentos e cartazes para esse grupo; ela os fazia e sempre pedia para que eu osreescrevesse, ela dizia que eu tinha a "letra bonita e não comia as letras" como ela. Depoisde reescritos sempre dizia o quão bonito e caprichoso tinha ficado. A minha mãe dificilmenteme elogiava ou comentava o que minha avó falava sobre mim, mas eu sabia que ela sentiamuito orgulho, pois estava sempre de canto ouvindo e por vezes pegava ela sorrindo.

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Universidade Federal de Santa Catarina 75

Às vezes eu ia estudar na casa do meu vizinho que era meu colega, pois sendo a mãedele professora, sentava conosco para estudar, tirar dúvidas e corrigir os exercícios. Talvezela tenha sido nessa fase escolar a minha melhor incentivadora, pois ela sabia a importânciado estudo e passava isso para nós e eu absorvia.

Aos doze anos de idade minha mãe decidiu não morar mais na casa da minha avó, poisaté aquele momento, desde que nasci morávamos com ela. Fomos então morar somente eue a minha mãe, na nossa casa. No início eu não aceitava, foi um momento de transiçãoconflituoso, agravado pelo desemprego e problemas de saúde da minha mãe. Foi então quecomecei a trabalhar para ajudar em casa. Isso durou três anos.

Uma nova fase estava por vir, a entrada no ensino médio e na adolescência. Estudavano período noturno e trabalhava no vespertino como estagiária no Centro de Saúde donosso bairro. Este foi um período da minha vida em que eu aprendi muito, a ser humana, tersensibilidade, ser paciente, respeitar as pessoas, me indignar e mais, descobri o quanto lentoe ineficiente é o nosso sistema de saúde e o significado atribuído às demandas da populaçãopelos governantes que as ignoram e limitam.

Foi a partir da realidade vivenciada diariamente naquela instituição, que no últimoano do ensino médio, decidi que iria fazer uma faculdade que me proporcionasse futuramentea oportunidade de trabalhar na área da saúde, onde eu acreditava que poderia contribuirpara que a lógica fosse diferente, ou talvez melhor, pelo menos no local em que atuasseprofissionalmente. Neste ano me dediquei intensamente aos estudos na escola e em casa,pois sabia que só assim, decorando muito (é isso que o sistema exige) seria possível passarno filtro do vestibular para ingressar em uma universidade pública.

Neste momento foi de fundamental importância o incentivo e apoio dado pelo meuinesquecível amor e fiel amigo, que dizia ser possível o que eu queria. Como este já estudavana Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), me levou até lá e abriu as portas douniverso e diversidade que é a universidade, a sua estrutura interna, até então desconhecidapor mim assim como pela maioria da população, que apesar de contribuir para a existênciae manutenção dessa instituição, contraditoriamente não tem acesso a ela. Decidi então queaquele era o lugar em que eu gostaria de estar ali por diante. E no início do ano de 2005ingressei na UFSC para o curso de Serviço Social.

Que o mundo foi e será uma porcaria eu já seiEm 506 e em 2000 tambémQue sempre houve ladrões, maquiavélicos e safadosContentes e frustrados, valores, confusãoMas que o século XX é uma praga de maldade e lixoJá não há quem negueVivemos atolados na lameiraE no mesmo lodo todos manuseados.

Enrique Santos Discépolo

Antes de ingressar na UFSC, já tinha visitado algumas vezes tal instituição e esta paramim parecia ser um lugar de liberdade, satisfação das necessidades e vontades,independência. Diferente do sistema de ensino até então conhecido, constituía em umespaço de exposição de opiniões e idéias! Nela as pessoas podiam entrar e sair da sala de

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76 Caminhadas de universitários de origem popular

aula sem autorização do professor, podiam comer e beber e até mastigar chiclete na aula,poderiam ir vestidas com a roupa que quisessem. Havia uma multiplicidade de festas nopátio da universidade, uma biblioteca enorme (quantos livros!) e ainda depois de terminadaa aula e atividades extra classe os alunos poderiam ir até o bosque, deitar debaixo dasárvores quando o dia era de sol. Relaxar... quando de noite, apreciar a lua e as estrelas... eainda não fazer nada, não pensar em nada... ou pensar sobre tudo...

Ao ingressar na UFSC, foi imediato o rompimento dessa concepção de universo queeu criara no meu inocente (in) consciente. Descobri que a subalternidade nas relaçõessempre existirá, inclusive entre docente e discente, a liberdade de expressão de um terminaonde começa a do outro. Através de mecanismos silenciosos a universidade te impõeobstáculos, te exclui te limita te ridiculariza, não permite a satisfação das necessidades evontades. Agora eu poderia até mastigar chiclete dentro da sala de aula e ir com qualquertipo de roupa, mas só que agora contraditoriamente não tinha recursos financeiros para aaquisição dos mesmos, já que se torna necessário priorizar outras coisas indispensáveis paraa minha manutenção na universidade e fora dela. Os livros que pareciam tantos e dispostosa qualquer momento, agora já não são tantos assim, se restringem mais ainda quando dentroda área estudada. As festas na universidade, estas realmente têm muitas. Mas a falta detempo e de às vezes afinidade com elas não permite a freqüência. Ir até o bosque pararelaxar, refletir sobre o mundo ou para simplesmente namorar, não fica diferente. O tempotambém se torna um inimigo, você é impossibilitado de realizar e participar de ações quealegram e dêem prazer ou servem para refletir sobre e para a vida.

No finalCarpinteiro de mim.

Raul Seixas e Marcelo Nova

A minha entrada no Programa Conexões de Saberes foi contraditória e até mesmoconstrangedora, pois apesar de apresentar o perfil requisitado, ao contrário de algunscandidatos inscritos e aprovados, somente mediante a intervenção de um advogado foipermitido o meu direito à educação, através da permanência na universidade, conformeobjetivo do Programa. Isso por conta da universidade possuir mecanismos silenciosos quepodem ser utilizados sobre o pretexto da burocracia, hierarquia, competitividade emeritocracia, mas que realmente servem para em momentos julgados oportunos oestabelecimento da ordem, a não ruptura da maquiagem da eficiência e eficácia e aconsolidação dos interesses.

Apesar de alguns obstáculos impostos, a minha participação neste Programa, o convíviocom os outros bolsistas e pessoas que estiveram presentes nesta trajetória, foi uma experiênciaválida. Os espaços de discussões e reflexões levantados acerca de assuntos pertinentes àuniversidade e sua lógica histórico-estrutural e ainda temas relevantes ao cotidiano dasociedade, foram importantes para a minha auto-reflexão enquanto aluna em processo deformação e enquanto ser humano que não pode deixar de se sentir mobilizado em lutar, emconjunto com os demais interessados, por mudanças na estrutura e nas relações da sociedade.

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Universidade Federal de Santa Catarina 77

* Graduanda em Odontologia na UFSC.

Sonho de criança que só se realizou agora...

Patrícia Nahirniak*

Meus pais me contam que quando eu ainda era muito pequena, ao me fazerem aquelavelha pergunta: "o que você quer ser quando crescer?" eu sempre respondia que seria umadentista... realmente não me lembro em nenhum momento da minha vida ter pensado emoutra profissão.

Naquela época, como ainda era permitido, passavam muitas propagandas de brinquedose eu queria muito ter o "dentista da Estrela". Naquela situação meu pai disse que não iria medar este brinquedo, com a justificativa de que eu poderia enjoar e desistiria de ser dentista.

O tempo passou, entrei no colégio do meu bairro e sempre fui considerada uma boaaluna. Quando terminei o primeiro grau quis mudar para um colégio melhor, então conseguivaga em uma escola pública no centro da cidade. Tive muitas dificuldades para acompanharo ritmo de estudo, então percebi o quanto o meu colégio era "fraco", mas consegui meadaptar e me tornar novamente uma boa aluna.

Chegou a época do vestibular; como sempre gostei de estudar achei que seria fácilpassar para odontologia na federal, ou caso não passasse eu ficaria muito perto. Quando eufiz as provas me deparei com inúmeras questões das quais eu nem havia ouvido falar, oresultado foi negativo, não cheguei nem a me classificar. Decidi então trabalhar até a metadedo ano para juntar dinheiro e poder, com a ajuda do meu pai, pagar um curso semi-extensivo.Novamente não passei, mas melhorei muito a minha pontuação, e percebi que era possívelpassar no vestibular.

Durante todo este tempo foi muito difícil ouvir, e de muitas pessoas, que seriaimpossível e até mesmo um absurdo achar que eu poderia concorrer com alunos dosmelhores colégios do estado e que por isso estava perdendo tempo. E mesmo se eu passassecomo iria comprar os materiais que são tão caros. Muitos me diziam que deveria tentar umcurso mais fácil ou deixar de lado a faculdade porque já estava na hora de ficar sótrabalhando e ajudar meus pais. Meus pais pelo contrário sempre acreditaram em mim eme apoiaram a continuar e só não desisti porque buscava força e motivação em Deus paracontinuar e superar todos estes obstáculos.

Voltei novamente a trabalhar e desta vez fiz um curso extensivo, era o meu terceirovestibular, e estava decidida, se eu não passasse tentaria de novo. Não foi preciso, Deus medeu a alegria de passar no vestibular para odontologia e hoje tenho uma enorme satisfaçãode estar cursando o que eu sempre sonhei.

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78 Caminhadas de universitários de origem popular

Lembra do brinquedo que eu queria quando era criança?Pois é, quando eu fiquei maior meu pai me disse que na verdade ele não comprou por

que era um brinquedo muito caro, e ele não tinha condições de me dar... mas disse tambémacreditar que um dia eu seria uma dentista. Com a graça de Deus eu vou ser.

Odontologia UFSC 2003

Passei para o segundo semestre de 2003 e devido a uma greve, um tanto comum emnossa universidade, entrei dois meses depois da data prevista. Neste tempo entre o resultadodo vestibular e o início das aulas trabalhei em uma loja para guardar dinheiro e poder ajudarnos gastos que estavam por vir.

Como eu já sabia os gastos eram muitos, para poder pagar o meu material odontológicoa família toda ajudava com um pouco, só que ao chegar na quinta fase o orçamento domaterial foi de quase cinco mil reais e era inviável para nossa família. Tínhamos a opção defazer um empréstimo, mas e depois como pagar? Foi nesta fase que descobri um serviço dauniversidade de apoio ao aluno que através de uma entrevista e cadastro sócio econômicome permitiu cursar regularmente o curso através do pagamento dos meus materiais.

Todos os dias, que salto do ônibus e percorro o caminho até o meu centro, agradeçoa Deus por estar fazendo o que eu gosto. Mas nem tudo era da maneira que eu esperava,imaginava que na universidade encontraria muitos colegas do curso e professoresempolgados e dispostos a trabalhar em movimentos sociais, e desta forma poder aproveitarde forma prática tudo aquilo que estávamos aprendendo. Infelizmente não é assim que ascoisas acontecem...

Procurei aproveitar todas as oportunidades para aprender e exercitar aquilo queconvencionalmente não é passado na graduação, para isso apesar do meu horário superpuxado sempre busquei fazer estágios que me permitissem trabalhar de forma humanizadae não somente técnica como alguns professores da minha área preconizam.

Foi nesta condição que entrei para o programa Conexões de Saberes.

Conexões de Saberes

O Conexões pra mim foi e está sendo uma ótima oportunidade de aprender. Aprendia dividir, compartilhar, discutir as diversas questões e situações que surgiram em nossogrupo. Com certeza a possibilidade de trabalhar junto com tantas áreas diferentes dauniversidade como Engenharia, Nutrição, Serviço Social, Ed. Física,

Pedagogia... é o que eu mais gosto. Essa convivência abriu muito a minha visão da universidade e mais uma vez sou

agradecida a Deus por ter participado de um grupo tão polêmico, divertido, às vezes confuso,mas muito legal. Valeu!

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Universidade Federal de Santa Catarina 79

De onde venho!

* Graduando em Agronomia na UFSC.

Rafael Brandalise*

Nasci ao meio-dia do dia 24 de abril, início da década de 80, mais precisamente 1981.Fui o último dos três irmãos a vir ao mundo. Cresci em Videira, um município do interior deSanta Catarina, do qual tenho muito orgulho.

No inicio meus pais moravam na casa de nossa avó-paterna, mas com o passar dotempo construíram uma casa ao lado. Ambos os avós-paternos eram de origem italiana,tendo migrado da região da serra gaúcha para o meio-oeste catarinense, vindo a estabelecer-se em uma vila que na época chamava-se Perdizes. Em Perdizes moravam os descendentesde italianos e no outro lado do rio moravam os descendentes de alemães, sendo Vitória onome dado a sua vila.

A nona (avó-paterna) era uma pessoa muito forte, ficara órfã de pai e mãe muito novae seu marido, o nono, veio a falecer quando meu pai, tio e tias eram crianças. Eu gostava desentar e ouvi-la contar suas histórias, sempre relatando como naquela época a vida eradifícil, mas ao mesmo tempo era uma vida muito rica, pois praticamente todos se conheciame cooperavam para o bem comum. Ela acompanhou todo o crescimento de Videira, poisviveu seus 96 anos com uma lucidez que impressionava.

A família de minha mãe é uma família grande, sendo 10 irmãos. Moravam todosem Liberata, uma vila próxima a Videira. A irmã mais velha e logo depois o irmão maisvelho mudaram-se para Videira, onde começaram a trabalhar em uma lanchonete quetambém funcionava como rodoviária. Com o passar do tempo, toda a família trocou omeio rural pela cidade. Meu avô faleceu quando eu era pequeno e não tenho lembrançasdele. A avó materna atualmente mora com duas filhas, duas netas e o filho, que doshomens é o mais novo.

Meu pai começou a trabalhar cedo e casou-se bem jovem também, o que era comumnaquela época. Identifico-me muito com meu pai, herdei algumas de suas qualidades edefeitos também. Minha mãe é uma pessoa sensível, calma e muito atenciosa, principalmentecom os filhos e netos.

Na infância cresci em uma convivência bem próxima dos amigos. Sendo Videira umacidade pequena onde boa parte das famílias se conhece, nós brincávamos na rua até denoite. Em cada bairro é comum ter uma rua onde converge toda a gurizada e as brincadeirasmais comuns eram: jogar bulica (bolinha de gude), bets, bola e brincar de se esconder,pegador entre outros...

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80 Caminhadas de universitários de origem popular

Estudei em Videira até o segundo ano do ensino médio. Em 1998 me mudei paraFlorianópolis para finalizar o segundo grau e prestar vestibular. Meu irmão já morava nailha há seis anos e estava acabando o curso de arquitetura na UFSC. Ele foi e é uma pessoamuito importante na minha caminhada.

Terminado o ensino médio, prestei vestibular para a federal e para a UNOESC deJoaçaba. Passei para o curso de Psicologia na UNOESC, mas nem cheguei a efetuar a matrícula,pois conciliar os gastos com mensalidade e moradia ficava inviável. Acabei fazendo maisum semestre de cursinho prestando vestibular somente para a federal, acabei não passando.Entre os anos 2000/2001 passei alguns apertos, aos quais consegui superar com o apoio dafamília e dos amigos.

Em 2002 trabalhei o primeiro semestre como operador de telemarketing, guardandodinheiro afim de no outro semestre pagar uma parte do cursinho. No final de julho deixei otrabalho e comecei o pré-vestibular. Estava mais decidido quanto à profissão a seguir,Biologia era o curso escolhido. Prestei vestibular para a UFSC e para a UNOESC de Videira,acabei passando na UNOESC e decidi começar o curso.

No início comecei o curso um pouco desapontado por não ter conseguido ingressarem uma universidade pública, mas alguns fatores como: à volta pra casa, o contato com afamília, os amigos de infância e os novos amigos da faculdade foram criando um ambientepositivo para novas conquistas.

Comecei a trabalhar como voluntário em um projeto de pesquisa e na terceirafase surgiu uma oportunidade de uma bolsa para trabalhar com tratamento de resíduosquímicos dos laboratórios da UNOESC, o que trouxe muito conhecimento, seja pelotrabalho em si como o contato com os demais professores, além de custear praticamenteo valor total da mensalidade.

Ao final de 2004, já cursados dois anos de Biologia, prestei vestibular para a UFSCnovamente, só que para o curso de Agronomia, com o intuito de pedir transferênciaposteriormente para o curso de Biologia. Como fiquei classificado em 113, enterrei osplanos de ingressar na federal e continuei seguindo meu rumo. Logo que começou a quintafase surgiu uma nova oportunidade de bolsa. Um projeto de pesquisa para produção decogumelos comestíveis utilizando bagaço de uva como substrato, sendo uma fonte derenda alternativa aos agricultores da região. Passado mais ou menos um mês que já estavatrabalhando nesse projeto, recebo um telegrama da UFSC, dizendo que eu havia sidochamado para o segundo semestre.

A notícia me pegou de surpresa, pois não esperava ser chamado. Fiquei muito feliz,corria pela casa! Passada a euforia comecei a refletir sobre a decisão que iria tomar.

Em casa, estava perto da família e dos amigos, tinha um trabalho e a faculdade iabem. Por outro lado mudar-se para a UFSC significava começar tudo novamente, conseguirum trabalho, fazer novos amigos, mas com boas perspectivas de crescimento pessoal eprofissional. Depois de colocar na balança os pontos positivos e negativos que cada caminhopoderia me trazer, de várias conversas com a família, amigos e até mesmo com os professores,decidi trancar o curso de Biologia e começar Agronomia na UFSC.

No primeiro semestre já nos deparamos com uma longa greve, porém, nosso cursoteve aula normalmente. Nossas férias foram longas, até o fim de abril, período que aproveiteipara fazer estágios em Videira mesmo. Na volta às aulas, em maio, me recordo como se fossehoje, estava no laboratório de informática do CCA quando a Juliana entrou me comunicando

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Universidade Federal de Santa Catarina 81

que eram os últimos dias para se candidatar a uma vaga de bolsa relativa a um programa deextensão, envolvendo 25 bolsistas de várias áreas. Era o Programa Conexões de Saberes,com ações de extensão na comunidade da Serrinha, localizado no entorno da UFSC.

Formou-se um grupo de trabalho, onde os pontos de vistas são bem heterogêneos, oque causa alguns conflitos e ao mesmo tempo enriquece o grupo e o indivíduo em si. OConexões veio a acrescentar em minha vida não só profissionalmente, mas também por vero mundo sobre outra ótica.

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82 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduando em Agronomia na UFSC.

Aprender e aprender

Rafael Rodrigo Burato*

Aprender. Essa é minha grande busca para me tornar uma pessoa melhor e crescer.Sempre que possível, tentei valorizar os fatores corriqueiros do dia-a-dia. Escutar

pessoas mais vividas ou experientes é e sempre foi pra mim uma questão de sobrevivência.Durante a minha trajetória aprendi o quão importante é respeitar oportunidades e acima detudo, as pessoas com quem convivo.

No decorrer dos anos e após passar por tantas dificuldades, acabei despertando umavisão mais realista e crítica da sociedade e da vida como um todo. Talvez tenha me tornadoum ser social possuidor de uma alma matemática. Ter uma visão social seria o potencialdiferenciado e mais claro do meio popular do qual convivo e convivi. Ter um carátermatemático seria o fato de encarar as possibilidades com mais frieza e não me encantar compossibilidades e sim com aquilo que de fato é ou foi concretizado. Esse aprendizado medeixou mais apto a encarar os grandes obstáculos que sucedem os meus dias.

Estar na universidade é um sonho do qual me orgulho a cada dia e fazer bom proveitodesta chance é algo de que não abro mão. Foram sete vestibulares para chegar até aqui.Trabalhando todos os dias em busca de um sonho e mantendo a moral em alta afim de nãoabandonar esse objetivo. Ainda lembro da bolsa conquistada no cursinho por ter tiradoboas notas no ensino médio. Também lembro das palavras de algumas pessoas dizendo paraque desistisse, que estudar em uma universidade pública não era coisa para muitos e que sóos privilegiados tinham tais condições. Ser pobre e negro numa sociedade exclusivista nãofoi nada animador também.

Entrar na universidade foi a chance de alcançar autonomia e ter força e incentivo paraencarar as realidades com outras perspectivas. Poder transitar no meio acadêmico me deu aoportunidade de conhecer pessoas sérias e com histórico de vivência profissional e pessoalmuito além daquilo que esperava. Novos conceitos são apresentados a todo momento eparar para cultuar a reflexão é algo inerente a minha rotina. Isso me possibilita maiorindependência visto que a cada dia adquiro mais conteúdo para defender minhas idéias egerenciar ferramentas para poder ir mais distante.

Por fim, em algum momento sairei do mundo acadêmico e agora será possíveldar a volta por cima. A cada dia tenho a chance de conquistar embasamento teórico eprático possibilitando novas perspectivas e uma visão mais abrangente e mais críticado meio em que vivo.

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* Graduanda em Enfermagem na UFSC.

Minha nada mole vida

Rosiane da Rosa*

10 de junho de 1985 foi um dia muito significativo para minha família, foi quando aminha mãe deu a luz a uma menina linda que iria se chamar Vanessa. Quando o meu pai foiregistrar essa menina veio com uma surpresa, tinha mudado o nome dela, registrou comoRosiane, mas isso não foi motivo para seus pais deixarem de amá-la.

Assim que acabou a licença maternidade do meu nascimento eu e minha irmã tivemosque ir morar com a minha avó materna, pois minha mãe precisava trabalhar, já que o saláriodo meu pai não era suficiente. Nos finais de semana íamos para casa, era aquela alegria. Aminha mãe conta que quando passava na casa de minha avó para nos dar um beijo eu semprequeria ir com ela, mas não tinha como ela me levar. Então ela falava que sábado viria mepegar e eu dizia: "tu sempre diz isso e nunca vem". Ela ia embora e eu ficava na portachorando. Sempre que lembro disso me emociono. Como era difícil para minha mãe querernos levar, mas não podia.

Ao começar freqüentar a escola fui finalmente morar com os meus pais. Comecei aestudar numa escola junto com a minha irmã, onde minha mãe era docente. Depois da aulaíamos para casa, ficávamos eu e minha irmã sozinhas até os meus pais chegarem, geralmenteà noite. Estudei nesta escola até a quarta série. Nesse período passamos por muitasdificuldades financeiras.

Quando eu tinha 10 anos minha mãe veio com a notícia de que iríamos ter umirmãozinho, fiquei muito contente. Quando ele nasceu foi um momento muito especial, eleia ser o "homenzinho da casa". Lembro que ele era bem chorão, apelidado como o "cantadordo avô" e que todas as noites eu o fazia dormir. Quando a mãe ia trabalhar, eu e minha irmãcuidávamos dele.

No ensino fundamental fui estudar em outra escola, que era mais difícil, tinha umestudo mais puxado, era tudo diferente para mim. A quinta série foi complicada, pois nãoconhecia ninguém, havia muitos professores, eu tinha vindo de uma escola isolada, ondeobtive uma educação fraca, mas consegui passar de ano.

Comecei a dar mais importância aos estudos na oitava série. Era uma das melhoresalunas da sala, não possuía notas abaixo de nove. Neste ano tive a oportunidade de concorrerpara uma bolsa de estudos para o Colégio Catarinense. Com surpresa e extrema alegriaconsegui a bolsa, fui uma das poucas pessoas que conseguiram, pois havia alguns critériosde seleção, como: ser de origem popular e possuir boas notas.

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84 Caminhadas de universitários de origem popular

Desde que ingressei no ensino médio procurava por estágios, queria minhaindependência. No final do terceirão foi quando consegui um emprego em um café noShopping Beiramar, teria uma jornada de trabalho de oito horas. A partir de então ficoumuito difícil conciliar os estudos com o trabalho, pois ficava muito cansada ao final do dia.Na maioria das vezes dormia em sala. Nesse ano não consegui me dedicar ao vestibular, masjá sabia o curso que iria fazer: Enfermagem.

No ano seguinte, estava decidida a fazer um cursinho pré-vestibular, mas para isso tiveque trabalhar até a metade do ano e o restante do ano seria para me dedicar aos estudos.Apesar de todo o esforço não consegui passar, mas obtive outras conquistas. Aos 18 anostirei a carteira de motorista para carro e conheci uma pessoa muito especial, meu atualnamorado. Começamos a namorar neste ano e foi muito bom.

Em 2004 tentei novamente o vestibular e finalmente consegui passar em duasuniversidades: na UDESC (Universidade Estadual de Santa Catarina) para Pedagogia e naUFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) para Enfermagem. Foi o dia mais feliz detoda a trajetória da minha vida. Eu soube que tinha passado através de uma amiga, portelefone; não conseguia acreditar, apenas olhei para minha mãe e falei para ela que haviaconseguido, então começamos a chorar de tanta alegria. Em seguida liguei pra minha avó emeu namorado para dar esta notícia e todos ficaram muito orgulhosos.

Em janeiro de 2005 comecei as duas faculdades, foi um pouco puxado uma vez quetambém trabalhava. Mas era tudo tão bom, tudo novo. O desconhecido me fascinou, mudoua rotina da minha vida. No 2° semestre optei fazer apenas Enfermagem, pois estava sendomuito cansativo e também queria me dedicar mais a esse curso, pois é uma profissão que mefascina. Amo estudar enfermagem, apesar de ter que acordar todo o dia de madrugada parair aos estágios, ficar durante todo o dia fora de casa. Contudo, no final tenho sempre arecompensa de ter realizado um cuidado humanizado em alguém que necessitava.

No ano seguinte comecei a fazer Pedagogia novamente, tive que me organizar muitobem para dar conta de todas as minhas atividades. Apesar de alguns problemas que estavaenfrentando, não deixei meus compromissos de lado, pois tenho muita responsabilidade esei que os problemas vêm e vão e devo seguir em frente, pensar na construção do meufuturo. Pensar em qual ser humano que eu pretendo ser daqui alguns anos, o que eu possofazer para ajudar as pessoas. Não devo me apegar às coisas que me fazem mal e pensarrealmente em fazer o bem.

Neste ano comecei a procurar uma bolsa desesperadamente quando vi na fila do RU(Restaurante Universitário) um cartaz informando 25 vagas para trabalhar numa bolsa deextensão, Conexões de Saberes. Fiquei muito interessada e no mesmo dia fui obter maisinformações, aproveitei e fiz a inscrição. Consegui ser selecionada, já que possuía todos oscritérios da seleção.

Em maio comecei o Programa, estava muito empolgada, era um dos meus objetivosatuar na área de extensão, principalmente com uma comunidade humilde que precisavadeste tipo de trabalho. Vi que seria de extrema relevância o Programa Conexões de Saberes.

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* Graduando em Ciências Sociais na UFSC.

Simplistória

Thiago Arruda Ribeiro dos Santos*

Não quero através deste artigo, explicitar minha história de vida como uma lástima sofrida.O sensacionalismo eu deixo para as páginas de cotidiano dos jornais. Por mais que tenha sidosofrido, sou daqueles que "respeito muito minhas lágrimas, mais ainda minhas risadas". Minhavida é só uma parte presente no grande livro do mundo, tão trágico e tão cômico como um tombo.

Mamãe (é assim que irei me referir a esta entidade que todos os animais possuem) foia presença marcante na minha pequena vida. Filha de açougueiros da classe média baixa deSão Paulo, trabalhava com pesquisa e trabalhos autônomos quando nasci. Vendia bolos edoces no centro de São Paulo onde trabalhava. Já havia minha irmã, vítima de um casamentofrustrante. Muito sintonizada à cultura hippie (por ideologia), digo que a negação do mundomaterial e a superação da sociedade de consumo funcionaram para minha mãe tanto comoideais como por necessidade. Sim, e a ideologia é sempre mais leal quando se precisa delapara a sobrevivência. E foi assim minha vida toda.

Meu pai nasceu na periferia do Rio de Janeiro, no Morro do Pasmado para ser maisexato. Com a “higienização social” do Rio, na década de 60, o morro foi queimado e asfamílias transferidas para a periferia. A família do meu pai foi para a favela Vila Kennedyonde vive até hoje. Família muito simples e grande. Meu pai nasceu de uma relação entreminha avó, empregada doméstica e seu patrão da classe alta carioca. O pai de meu pai, meupai nunca viu. Engravidou minha avó e foi embora. Bem assim mesmo. Era até engraçadoouvir meu pai contando. E contava muita coisa. Da época de quando guri vendendo picoléna rua, ou da época do internato dos militares para famílias carentes em Minas. Eram boassuas histórias. Saiu de casa aos quinze anos em busca de melhores condições de vida,materiais e existenciais.

Voltando ao foco, meu pai e mamãe se conheceram em São Paulo. Ele tinha ido embusca de trabalho e ela saía do trabalho. Os dois meio hippies gamaram na hora. Mas achoque era só amor de verão mesmo, porque eu nasci e eles se separaram.

Aos seis anos de idade, eu, minha mãe e minha irmã mudamos para São Paulo paraficar mais perto do trabalho e talvez do movimento. Minha mãe começava a trabalhar comocamelô vendendo roupas no centro da cidade. Eu e minha irmã estudávamos no centro edesde pequenos pegávamos ônibus sozinhos, sempre lotado. Nessa época minha mãeconheceu o Santo Daime (doutrina que não cabe ao espaço destas palavras explicá-la) ejunto com isso meu padrasto, o Clau.

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86 Caminhadas de universitários de origem popular

Logo, o Clau foi morar em casa. Com isso a nossa renda familiar melhorou um pouco.Mas foi só por pouco, pois logo depois ele ficou desempregado. Outro fato marcou estemomento: o nascimento de minha outra irmã, a Yandara. A barriga grande da minha mãerendeu sua despedida do trabalho no IBGE, fato que busca uma indenização até hoje.

Minha mãe e o Clau começaram então a vender roupas juntos no centro. Muitas vezesacontecia de ficar eu e a Carol em casa cuidando da Yandara enquanto eles trabalhavam. Ásvezes nem ia para escola por isso. Eu andava muito de ônibus pela cidade. Comecei a fazeraula de canto no centro, perto de onde minha mãe trabalhava. Era bom porque além de serde graça eu me divertia. O lugar era um prédio antigo do séc. XIX e funcionava como umaescola de música do governo. Eu adorava andar pelo lugar olhando as gravuras bizarras ououvindo os tipos de música que saíam daquelas salas misteriosas.

O contato com meu pai era bem limitado. Não por falta de afinidade afetiva, mas pordificuldade mesmo. Ele não podia ajudar muito minha mãe na educação e coisa e tal. De vezem quando ele ia me buscar na escola. Geralmente isso acontecia quando estavadesempregado e assim tinha tempo. Eu gostava muito porque ele me levava para passear nocentro e às vezes até íamos ao teatro. Ele tinha muito contato com meio teatral suburbano dacidade. Às vezes trabalhava como ator em alguma praça do centro para ganhar uma grana ouapenas por amor mesmo. Nunca tinha feito algum curso de teatro e a sua relação com a arteera bela. Sempre muito simples, lembro que costumava me dizer tão poeticamente: "se liguena lida do solo fecundo e não se desligue um segundo da poesia do grande livro do mundo".Só fui compreendê-lo muito tempo depois. Logo não conseguiu mais se manter em SãoPaulo e acabou voltando para o Rio. E assim, como dois amigos nos separamos.

Em casa a situação não estava fácil. Ser camelô em São Paulo demanda certo desgaste.A isso se somavam outros problemas: desemprego, material na escola, criança pequena...lembro do Clau saindo de casa cedo com o currículo embaixo do braço para andar a cidadeem busca de emprego.

Até que conseguiu um trabalho numa fábrica em Pindamonhangaba, interior doestado. A idéia de ir morar numa cidade pequena não soava bem para mim e a Carol,mas não tínhamos escolha. Morávamos na periferia da pequena cidade, creio que obairro mais pobre.

Lá também estudávamos no centro, porém não havia ônibus, poluição ou trânsito.Todos em casa usavam a bicicleta. Digo "a bicicleta" porque no início só tínhamos umamesmo, que todos usavam. Nunca tivemos carro e devido à ausência de bicicletas, meacostumei a andar muito.

Sempre que saía da escola ia pra alguma cachoeira ou fazia uma trilha no mato. Eugostava muito da época de São Cosme e Damião, quando a criançada toda do bairro ia de casaem casa pedindo doce. Eu juntava doce para vários meses, pois adorava. Minha mãe faziaquestão de dividir com os vizinhos as guloseimas que eu juntava, dizendo que eu não precisariade tudo aquilo. Eu odiava esta atitude e só depois consegui admirá-la como uma das qualidadesde minha mãe. Lembro também que ela costumava dividir com os vizinhos os alimentos dacesta básica que ganhávamos do governo. Mesmo estando mal financeiramente ela não negavaajuda a ninguém. É assim até hoje.

No interior fui conhecendo a vida simples. Em casa eu e a Carol ajudávamos minhamãe a fazer e vender doce no bairro. Isso ajudava muito a nossa renda familiar, pois o saláriode meu padrasto era baixíssimo.

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Outra contribuição eram as cestas básicas assistencialistas do governo, mas que porsinal não davam para nada. As dificuldades financeiras deixavam o Clau e minha mãe bemnervosos e devido a isto as brigas eram constantes.

Não acredito muito em superstição, mas acredito que as brigas em casa contribuírammuito para a despedida do Clau de seu local de trabalho. A partir daí as coisas que nãoestavam boas, pioraram. Nós crianças não entendíamos muito o que acontecia, mas osadultos se desesperaram e tentaram achar alguma solução para o problema que já estávamosacostumados. Porém, agora era pior porque além de três crianças minha mãe estava grávida.

Vendemos quase todos os nossos móveis (velhos por sinal), minha Mãe trabalhou de babá,de faxineira e meu padrasto que tinha um breve conhecimento em manutenção técnica seaventurou em consertar aparelhos, o que não deu certo. Creio que as dificuldades no interior sãomenos perceptíveis para as crianças, talvez pelo fato de no interior existir muitas formas dedivertimento. Por isso enquanto nossos pais penavam, gozávamos brincando na rua ou no mato.A dificuldade era evidente e nós sabíamos: a comida em casa era pouca, as brigas constantes e aspossibilidades distantes. Porém, enquanto criança preferíamos ignorar essa situação.

O tempo foi passando e as coisas apertando, até que uns amigos do Clau e da minhaMãe souberam de nossa situação e nos convidaram a morar num sítio da Comunidade doSanto Daime em outra cidade do interior paulista, São Lourenço da Serra. Era um lugarremoto bem diferente de onde morávamos. Uma casa simples, de pau a pique que ficava emcima do morro a uns trinta quilômetros do centrinho da cidade.

Quando morávamos em São Paulo, freqüentávamos este sítio que antes era sede damaior igreja do Santo Daime no estado. Era um lugar muito interessante no meio da florestamesmo. Quando fomos para lá a igreja do Santo Daime já tinha se transferido para outroslocais, sendo que desta maneira éramos os únicos habitantes do sítio, além de algumaspessoas que por lá passavam um tempo.

Como não tínhamos carro, mesmo matriculado na escola da cidade eu faltava muito àsaulas. O transporte escolar passava a uns dez quilômetros de casa e esse trajeto fazia a pé. Devez em quando não chegávamos a tempo e perdíamos o ônibus. Aí, voltávamos para casa ouíamos para alguma cachoeira. Devo esclarecer que escrevo em primeira pessoa do plural,porque se trata de mim e minha irmã mais velha, a Carol e toda a minha história estádefinitivamente ligada a ela.

Nessa época descobri a leitura como um belo instrumento de imaginação e superaçãoda realidade. No sítio havia vários livros velhos cheios de pó. Meu primeiro livro foi "Opequeno príncipe". Era Fantástico. Mas eu gostava mesmo era das enciclopédias comaquelas figuras e aqueles fatos incríveis. O corpo humano, a muralha da China, Alexandre,o Grande, a biologia dos sapos... debruçava-me com gosto nestes universos que para mimeram paralelos.

Logo, meu irmão Beijamin nasceu. Como era difícil sustentar no sítio uma criançapequena fomos morar num chalé na cidade. Fomos para lá um pouco antes de meu irmãonascer. A idéia de minha mãe era fazer um brechó junto com mais algumas pessoas dacomunidade que aos poucos foram chegando. Era um lugar muito ruim. Uma casinha dedois andares (e dois cômodos, diga-se de passagem) que em baixo funcionava o brechó e emcima dormíamos todos: eu, minha mãe, a Carol, a Yandara, o Clau e o Zé Reis, um cara dacomunidade parceiro no brechó que também tinha muitas dificuldades financeiras. Meuirmão acabou nascendo no chalé mesmo com o parto feito pelo meu padrasto.

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88 Caminhadas de universitários de origem popular

Depois disso foram chegando outras pessoas do Santo Daime na cidade para formaroutra igreja. A partir deste movimento minha família se juntou a estas pessoas e fomos morarem outro sítio, mais perto da cidade, para fazer comunidade. Lá moravam várias pessoas elogo a vida se tornou um pouco melhor, pois as dificuldades se equilibravam. Plantávamose dividíamos tudo entre todos. Uma experiência muito boa que serviu para mim na formaçãode certo espírito coletivo.

Só que aos poucos as coisas foram se dificultando novamente. Depois de uns doisanos na comunidade acabamos saindo. Nos mudamos para um sítio, onde minha mãe eracaseira. Cuidava do terreno e o melhor é que não pagávamos aluguel, como sempre fizemos.O lugar era bom, mas para mim e a Carol era uma dificuldade, pois ficávamos longe daescola novamente. Até que eu e minha irmã resolvemos ir morar em São Bernardo do Campocom os nossos avós. Minha mãe ficou muito triste em se separar de nós, mas éramos jovense queríamos as oportunidades da cidade. A partir daí minha vida mudou muito.

Meus avós moravam (e moram), num Conjunto Habitacional (COHAB) de prédios,muito populares em São Paulo (São Bernardo faz parte da Grande SP). O apartamento eramuito pequeno, bem diferente dos lugares onde já havia morado.

Logo minha irmã arrumou um emprego e eu fui ajudar meu avô em seu comércio. Naescola fui tomando um contato maior com a música e descobrindo cada vez mais o sentidoopressor da escola. Lembro que reclamava muito dos professores autoritários e da falta demerenda para os alunos. Fui descobrindo a poesia que foi me abrindo a cabeça e a descobertade Raul Seixas foi sensacional!

Aos poucos arrumei uns bicos de garçom para ajudar meus avós em casa. Minhavontade mesmo era ajudar minha mãe, mas até hoje nunca consegui por completo.

Com o tempo passando me empenhei cada vez mais nos trabalhos de garçom e nostrabalhos eventuais. Trabalhei em bufê infantil como animador com aquelas fantasiasridículas e uma vez consegui até um trabalho de figurante em comercial. Era difícil porquetrabalhava muito e ganhava pouquíssimo. Na época prestei um concurso para um cursomédio técnico, mas não consegui entrar.

Em 2003 comecei a freqüentar o PCO (Partido da Causa Operária), que para mim funcionavamais como uma experiência do que uma militância. Gostava de ver a visão política e cultural deum partido radical. Também comecei a freqüentar uma ONG ambiental, a S.O.S. Mata Atlântica,na qual adorava participar, pois meu trabalho era com crianças da periferia da cidade.

Resolvi tentar a universidade. Na realidade nunca vi a universidade como o campomaior do saber ou como uma obrigação essencial na vida de um ser humano, como é impostomoralmente pela nossa sociedade. Apenas a via como uma possibilidade de conhecimento,entre tantos outros que existem. Em 2003 prestei para USP em filosofia, mas não consegui.Tinha estudado sozinho o ano inteiro. Em 2004, consegui um cursinho vestibular comunitárioperto de casa e me empenhei em estudar. Era muito bom o clima porque o pessoal, geralmentemais popular não se bitolava só no vestibular. Fazíamos muitos saraus e encontros artísticos.Acho que esse clima me ajudou muito para passar no vestibular deste ano em Santa Catarina,na UFSC. Como o curso só começava no meio do ano consegui um emprego num shoppingonde levantei um dinheiro para me manter na cidade.

Hoje vivo em Florianópolis, me mantendo a custa da UFSC. Somando-se à frágilpolítica de permanência, as dificuldades dentro da universidade são grandes e pioramcrescentemente com a criminalização massiva do movimento estudantil. Isso é um problema

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na medida em que interrompe um processo de transformação para uma universidade maispopular. Creio que não há sentido chegar à universidade se não ousarmos transformá-la,pois calar-se é apoiar a exaltação de uma universidade elitista e meritocrática.

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90 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduando em Cinema na UFSC.

Pouca informação facilita a digestão

Thiago Mendes Guieiro*

Fui educado para adentrarUm mundo onde os pais não viveramE mesmo sem conhecer o lugarMe ensinaram como entendê-lo

No começo em Guarulhos cinzentoPassava o tempo na casa dos avósSem deveres no mesmo momentoQue os pais trabalhavam por nós

Era eu e elaIrmã IsabellaMotivo da austeraLabuta sem dó

Queriam nos darAlgo que nunca tiveramE a custo de acúmulo de empregosAssim o fizeram

Vibrei cedoNo primeiro lazer da vidaO contato com o elemento ventoNa arte de soltar pipa

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Universidade Federal de Santa Catarina 91

Pai me iniciou no esporteE por vezes empinava juntoMuitos praticavam, pois se não zeroPróximo eram os custos

Após aceitarem transferência de emprego da mãeMigramos para o interiorPois em novas terrasPai virou segurador

Ambiente diferenteCostumes tambémSoltando pipa aliNão havia quase ninguém

Sozinho não há muita graçaMesmo com todo céu dispostoFalta a interação da laça(cruza) Fazer o que, cada praça tem seu gosto

Era apenas o inícioDe um estado de deslocamentoQue se apresentariaEm muitos momentos

Cercados de cana em RibeirãoPais somaram capitalE trocando aluguel por prestaçãoConquistaram seu próprio local

O apartamento era um alívioConquista para os filhosFinanciamento de longo prazoLonge de ser quitado

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92 Caminhadas de universitários de origem popular

Entrei cedo na escolaDo estilo privadaMesmo com bolsa parcialArcar com as despesas foi tarefa árdua

Houve uma grande eraEstendida por mais de dez anosDurante toda esta etapaSinto que rastejamos

Inúmeras trocas de emprego do paiTroca de imóveis tambémSempre para outros mais baratosDilui-se um patrimônio menor que vintém

Instabilidade emocional na famíliaDesde sempre afetou a criaçãoMotivos comuns, dinheiro e mentiraEufemicamente intitulo, falta de comunicação

Pais não se divorciaramSeguinte o MotivoSeguir estratégiaDe estruturar os filhos

Entre um emprego e outroO desempregoFazia o pai se complicarE vamos nós a dívida empilhar

Com tanto esforçoUm retorno foi requisitadoDa universidade públicaDevemos sair formados

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Universidade Federal de Santa Catarina 93

Isabella já se formouEu no meio do caminhoPenso que não vingouNão sei se vou virar doutor

E as oportunidades da universidade?Elas muito me apetecemMas o sistema interno é sufocanteSeguirei eu adiante?

Como fica o compromisso?Aquele tratado com os paisDevo minha vida a elesOu posso voltar atrás?

Entrei na universidade diretoDo terceiro ano para a AgronomiaSegundo pesquisas um lugar de grupo seletoAbandonei a história na primeira linha

Difícil foi a compreensão da famíliaEu aleguei no momentoQue retornariaMas não para a agronomia

Após cursar 6 mesesDe um pré-vestibularDecidi que no cinemaIria ingressar

Dentro da faculdadeConheci o trabalhoE as dificuldadesDe se manter alimentado

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94 Caminhadas de universitários de origem popular

Enquanto meus colegas de classeVisivelmente bem alimentadosTratam dos próprios enlacesMeu ideal me leva ao debate

Restaurante Universitário deficitárioMontante irrisório de vagas na casa do estudanteA Bolsa Trabalho mal paga o funcionárioCondições que geram levante

O movimento estudantilApesar de desarticuladoSe mostra visível a olho nuParticipei de algo como sempre havia desejado

Unir cinema e movimento socialEra exatamente o que eu pensavaAgora, com as dificuldades na frenteNoto a disposição requerida na jogada

Fácil escrever uma músicaApenas dizendo o que pensoDifícil é definir numa assembléia lotadaQual será o consenso

Reconhecendo esta discussãoE meus próprios instintosTomo a decisãoDe agir pelo coletivo

Com rumo traçadoSou encontrado pelo programa idealPara fazer valer meu postuladoDe agir pelo social

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Universidade Federal de Santa Catarina 95

Atuando mais na filosofiaMenos no cinemaDesenvolvi pequena bagagemSobre os temas

ConexõesDiálogosSaberesDeveres

Houve muitas oportunidadesE aproveitei como me foi permitidoDe acordo com minhas prioridadesConstruí antes de ter partido

Hoje meu pai é porteiroMãe esteticista autônomaTrilhas sem sucesso,Por não ter diploma?

Minha irmã é quem tem diplomaSó lhe falta o empregoO qual deixo nesse momentoAinda com muito medo

Minha nova trilhaPermeia a universidadeMas tem como meta número umViver de Arte

Arte como permanênciaFica o desejoFica o idealMedo é o combustível do corpo marginalCorpo que conecta, sem metasQue ajuda, sem culpasAprende, não menteE a medida do possível, entende

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