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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA USFC CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO CCE PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO EM LITERATURA SANDRA MARIA JOB EM TEXTO E NO CONTEXTO SOCIAL: MULHER E LITERATURA AFRO-BRASILEIRAS Florianópolis-SC 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA USFC

CENTRO DE COMUNICAO E EXPRESSO CCE

PROGRAMA DE PS-GRADUO EM LITERATURA

SANDRA MARIA JOB

EM TEXTO E NO CONTEXTO SOCIAL: MULHER E

LITERATURA AFRO-BRASILEIRAS

Florianpolis-SC

2011

SANDRA MARIA JOB

EM TEXTO E NO CONTEXTO SOCIAL: MULHER E

LITERATURA AFRO-BRASILEIRAS

Tese submetida banca de defesa do

curso de Doutorado em Teoria

Literria, na Universidade Federal de

Santa Catarina, como requisito parcial

para a obteno do ttulo de Doutora

em Teoria Literria.

Orientadora: Prof Simone Pereira

Schmidt, Dr

Florianpolis-SC

2011

EM TEXTO E NO CONTEXTO SOCIAL: MULHER E

LITERATURA AFRO-BRASILEIRAS

Esta tese foi julgada e considerada adequada para a obteno do ttulo de

Doutora em Teoria Literria e aprovada em sua forma final pelo

Programa de Ps-Graduao em Literatura, da Universidade Federal de

Santa Catarina-USFC.

Florianpolis, 28 de maro de 2011.

________________________________________________ Prof Susana Scramim , Dr .

Coordenadora do curso de Ps-Graduao em Literatura

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________

Orientadora: Prof Simone Pereira Schmidt, Dr

__________________________________________________

Prof Gizlda Melo do Nascimento, Dr

Universidade Estadual de Londrina-UEL

_________________________________________________

Prof Regina Dalcastagn, Dr

Universidade de Braslia UNB

____________________________________________________ Prof Cladia Lima Costa, Dr

Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC

_____________________________________________________

Prof Zahid L. Muzart, Dr

Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC

Para

Expedita Virgnia de Jesus (in memorian), Amlia Cndida de Jesus (in memorian),

E as que vieram antes delas,

Porque era tarde. Muito tarde da noite quando cheguei. E

as brumas pintadas no quadro negro da alma

impediram-nos de ver. Estvamos todos dormindo, acorrentados, sob o confortvel travesseiro de algo a que

chamam de vida. E chorar no puderam. As lgrimas

lhes foram roubadas. E era tarde. Muito tarde quando

cheguei...

Ao meu pai, Jos Job;

ao meu bisa, Jeremias Malachias Domingos, o vov

Jeremias (in memorian).

Ao Fernando....

AGRADECIMENTOS

Meus agradecimentos:

Aos membros da banca.

CAPES, pelos 20 meses de bolsa.

A minha orientadora, Simone P. Schmidt, pois nem s com livros

se faz o homem. preciso oferecer-lhe livros e oportunidades. E h

muito eu vinha buscando por uma. Por isso, um agradecimento mais

que especial, pela oportunidade dada. Muito obrigada! Odila Zani (eternamente Lila), que se revelou mais que uma

amiga...

Cleuza, pois o precipcio que se estende afora e sob o qual me equilibro aquele que me conduzir para no sei onde, para no sei o

qu. Pois s sei que no vou s. Uma estrela sem brilho, surda, muda e cega me guia. Ou me segue? J no sei. Eu sei! Eu sei! Seu nome, eu

sei... Cleu, Cleuza. Para sempre. Enquanto durar o sempre. Obrigada!

Voc bem sabe pelos muitos porqus.

minha famlia e parentes: exemplos de resistncia e unio,

ainda que meio s avessas. So muitos, cito alguns deles: Nilza, minha

me; Jos Job, meu pai; meus irmos, Neuza e Jos Carlos; tia Nomia

(tia Beca); tia Nela; tia Quide; e aqueles(as) que no esto entre ns. Por

serem (meus) exemplos de superao.

Cada um sabe a dor e a delcia de ser o que . (Caetano Veloso)

RESUMO

Quem , onde e como est a mulher negra na literatura e sociedade

brasileira? A partir desses questionamentos surgiu esta pesquisa que

para obter respostas a essas perguntas fez antes uma leitura do trajeto

trilhado pelas conquistas femininas no sculo XX, principalmente dentro

da academia, at esse momento atual, ressaltando, entre outros

aspectos, a necessidade da juno de gnero a discusses sobre raa,

classe . Pesquisa cuja maior proposta identificar a representao de

gnero e raa nas obras rsula e do conto A escrava (2004), de

Maria Firmina dos Reis (sculo XIX)); Quarto de despejo: memrias de uma favelada (1960), de Carolina Maria de Jesus; Ponci Vicncio

(2003) e Becos da memria (2006), de Conceiao Evaristo; e As

mulheres de Tijucopapo (1982), O lago encantado de Grongonzo (1992) e Obsceno Abandono: amor e perda (2002), de Marilene Felinto. Busco

com isso uma melhor compreenso da condio social e literria da

mulher negra na sociedade brasileira do sculo XIX at o XXI. Alm do

objetivo maior desta pesquisa, ela tambm tem o intuito de refletir

sobre a condio social e literria da mulher negra na literatura e

sociedade, a partir da presena das mesmas como sujeito e objeto de

suas escrituras.

PALAVRAS-CHAVE: Gnero. Literatura afro-brasileira de autoria

feminina. Mulher negra.

ABSTRACT

Who, where and how is the Black woman in Brazilian literature and

society? This search arose from such questions. To answer them, I have

completed a comprehensive study of womens achievements in the

twentieth century, particularly in academia, through which I have noted,

among other things, the need for gender to join discussions on race,

class, and/or ethnicity. The main purpose of this work is to identify the

representation of gender and race in the books rsula and of shortstory

A escrava (2004), by Maria Firmina dos Reis (nineteenth century);

Quarto de despejo: mmorias de uma favelada (1960), by Carolina

Maria de Jesus; Ponci Vicncio (2003) and Becos da memria (2006),

by Conceio Evaristo; and As mulheres de Tijucopapo (1982), O lago encantado de Grongonzo (1992) and Obsceno abandono: amor e perda

(2002), by Marilene Felinto. Search for a better understanding of the

social and literary condition of the Black woman in Brazilian society in

the nineteenth through the twenty-first centuries. And also to reflect on

the condition of Black women in literature and society, studying their

presence as subjects and objects of their writing.

KEYWORDS: Gender. Afro-brasilian literature by female authours.

Black woman.

SUMRIO

INTRODUO ...................................................................................

21

CAPTULO 1 ...................................................................................

DA HISTRIA DO MOVIMENTO FEMINISTA AO FEMINISMO

NEGRO NO BRASIL: BREVE ABORDAGEM .................................

Por que gnero e raa? ......................................................................

30

30

38

CAPTULO 2 .....................................................................................

CNONE, FEMINISMO, LITERATURA: RELAES E

IMPLICAES ....................................................................................

46

46

CAPTULO 3 ......................................................................................

MARIA FIRMINA DOS REIS: (RE)PRESEN(TA)(O) DE

GNERO E RAA .................... ......................................................

60

60

CAPTULO 4 ....................................................................................

CAROLINA MARIA DE JESUS

RUA A, BARRACO NMERO 9 - CANIND.................................

75

75

CAPTULO 5 .....................................................................................

PELOS BECOS DA MMORIA E DO CORAO DE PONCI

VICNCIO: GNERO E RAA EM CONCEIO EVARISTO ....

93

93

CAPTULO 6 ....................................................................................

NEM S GNERO, NEM S RAA: RSIA, DEISI E MARIA

DOIDINHA ..........................................................................................

CAPTULO 7 ......................................................................................

MARIA FIRMINA DOS REIS, CAROLINA MARIA DE JESUS,

CONCEIO EVARISTO E MARILENE FELINTO:

DISSONNCIAS E RESSONNCIAS .............................................

106

106

117

117

CONSIDERAES... .................................................................. 131

BIBLIOGRAFIA ............................................................................... 136

INTRODUO

Ao longo do meu aperfeioamento acadmico1, concomitante a

minha (con)vivncia com mulheres e homens negros, observaes e

conjecturas, de um modo geral, foram inevitveis. Observando

principalmente as mulheres negras e sondando aquelas cuja trajetria

acadmica era semelhante a que estava trilhando, questionava-as sobre

certas coisas que percebia ao redor de ns. Pelas respostas obtidas,

constatei que muitas daquelas percepes pessoais eram sentidas por

elas tambm. Aquelas observaes no eram, aparentemente, portanto,

fruto da minha imaginao, nem o resultado de resqucios rancorosos

pelo tratamento imputado a ns negros ao longo dos sculos. A partir

dessas observaes, ento, alguns questionamentos foram tomando

forma a tal ponto que saciar a sede de respostas e o desejo de

compartilh-los se tornou um caso pessoal. Afinal, quem , como e

onde est a mulher negra no Brasil?

Mas trazer esses questionamentos para a academia, mesmo na

condio de doutoranda, perturbou-me a princpio, visto que estava e

estou diretamente ligada a eles e poderia, por isso, entre outros

aspectos, ter meus discursos ou ideias castradas, mal interpretadas ou

ainda [...] despreciadas y silenciadas2, pois incorremos nesse risco ao

falarmos de temas que interessam a uma coletividade, mas cujo teor s

sentido e, por isso, talvez, compreendido em toda a sua dimenso na e

dentro da individualidade de quem o vive, como o caso, por exemplo,

de racismo, gnero... Em outras palavras, assim como certas obras so

abertas e esto em constante movimento3, certos temas tambm so

abertos e esto em contnuo movimento. Sendo assim, para compreend-

los nas suas diferentes possibilidades de interpretao e de emotivao

necessrio, muitas vezes, um determinado receptor, porque no basta ser mulher para aceitar e compreender as reivindicaes feministas,

assim como no basta ser negro(a) para entender as reivindicaes

deste(a), por exemplo. Por isso, temas abertos e em constante

movimento tero leituras e, portanto, interpretaes, recusas ouceitaes

1 Incluo nesse aperfeioamento inclusive o perodo destinado graduao, s participaes em

eventos e no somente aos cursos de ps-graduao. 2 hook, 2004, p. 45. 3 ECO, Umberco. Obra aberta. 2.ed. So Paulo: Ed. Perspectiva, 1971.

21

diversas ao longo dos tempos, mesmo e quando direcionado a um

determinado e especfico pblico.

Entretanto, durante a entrevista para a seleo de doutorado

nesta universidade, ao expor o tema para a minha naquele momento

futura orientadora e comentar sobre estas preocupaes por estar

diretamente envolvida com tal tema, ela foi taxativa na sua resposta: se

voc no falar, quem vai falar?4. Esta argumentao acompanhou-me

durante todo o desenvolvimento deste trabalho, principalmente porque

h na atualidade uma quase unanimidade na constatao de quo poucos

trabalhos existem acerca da mulher negra na literatura, em particular.

Gregory Rabassa, na obra O negro na fico brasileira5, por exemplo,

faz um amplo estudo sobre a presena do negro nos textos literrios no

Brasil, porm com brevssimas e superficiais referncias presena da

mulher negra na literatura brasileira. Entre outros aspectos, para ele o

negro tem sido um importante personagem na Literatura Brasileira

desde o incio da escravido em 15316, e ele no ignora que h, em

alguns casos, descries de figuras negras abjetas7, todavia esses

personagens so comparativamente raros no romance brasileiro8. Ainda

segundo ele, aparentemente, os autores brasileiros [...] no tentaram

dotar seus personagens negros de quaisquer qualidades que eles no

possussem na vida real [...]9. , sem sombra de dvida, um estudo

relevante acerca do negro, mas que em nada contribui para uma melhor

compreenso da mulher negra no perodo abordado por ele.

Tambm h trabalhos mais recentes e/ou mais centrados nas

escritoras e/ou personagens negras como, por exemplo, o da

pesquisadora Maria Lcia de Barros Mott que faz um trabalho voltado

para o resgate das escritoras afro-brasileiras, assim como os da

professora Gizlda Melo do Nascimento e os trabalhos de Eduardo de

Assis Duarte. Estes so alguns dos nomes da atualidade cujas pesquisas

enfocam escritoras afro-brasileiras e/ou a representao literria da

mulher negra na literatura. Nomes como Sueli Carneiro, Llia Gonzles,

Kia Lilly Caldwell, por sua vez, tambm so recorrentes quando o

assunto raa e gnero dentro do contexto social brasileiro. Contudo,

uma lacuna em meio a todas essas discusses tem sido observada, pois

4 Fala da Prof D Simone P. Schmidt durante entrevista para seleo de doutorado em 2006. 5 RABASSA, 1965. 6 RABASSA, 1965, p. 22. 7 RABASSA, 1965, p. 443. 8 RABASSA, 1965, p. 443. 9 RABASSA, 1965, p. 443.

22

ainda h muito para ser discutido e so poucos os estudiosos que se

voltam para os temas gnero, raa, classe, em especfico.

Partindo, portanto, de questionamentos pessoais a constataes

tericas, chegou-se a esta pesquisa: um olhar reflexivo, a partir da

literatura afro-brasileira de autoria feminina, para o quem , como e

onde est a mulher negra na literatura e sociedade brasileira. Um olhar

que se cr oportuno e necessrio. Oportuno e necessrio pelos motivos

j expostos e, alm disso, por que poder acrescentar algo novo em

relao aos discursos acadmicos.

Contudo, ao trazer temas como raa, classe e gnero10

para

uma pesquisa preciso considerar alguns porns. Por isso, em relao

raa, por exemplo, necessrio ressaltar que

h posies divergentes nas Cincias Sociais

quanto ao uso do termo raa. Aqueles que se

negam a utiliz-lo, o fazem apoiando-se no fato de

que biologicamente no existem raas na espcie

humana, bem como no argumento de que esta

categoria encontra-se carregada de contedo

ideolgico discriminatrio.11

Porm, embora o termo raa, biolgica e cientificamente, no exista,

[...] o conceito persiste tanto no uso popular como

em trabalhos e estudos produzidos na rea das

cincias sociais. Estes, embora concordem com as

concluses da atual Biologia Humana sobre a

inexistncia cientfica da raa e a

inoperacionalidade do prprio conceito, eles

justificam o uso do conceito com a realidade social

e poltica, considerando a raa como uma

construo sociolgica e uma categoria social de

dominao e de excluso.12

Por isso (pelo seu carter de dominao e excluso), [...] para alm dos problemas do conceito, e do

intenso debate que suscita, necessrio que a

categoria raa continue a ser convocada para que

10 Gnero ter uma discusso um pouco maior no primeiro captulo. 11 SILVA, 2007, p. 45. 12 Excerto da palestra proferida por MUNANGA, no Terceiro Seminrio Nacional Relaes

raciais e Educao, PENESB, Rio de Janeiro, 2003, [s/p].

23

os problemas em torno dela, de fundo histrico e

muito presentes nas sociedades que, como a nossa,

vivenciaram a experincia do colonialismo tais

como o preconceito racial, a mestiagem, etc. ,

possam ser discutidos em profundidade. Assim,

temas to difundidos como aqueles ligados ao

controverso e problemtico conceito de raa,

tornam incontornvel a sua abordagem.13

Portanto, j que raa [...] um dos marcadores sociais mais

importantes em nossa sociedade14

, mister a apropriao do termo

aqui para que, na interseco com gnero, seja possvel melhor

delimitar/especificar do que e sobre quem exatamente se quer falar e em

que base contextual a abordagem ser encaminhada (que, nesta

pesquisa, no a biolgica, no a cientfica, mas sim no campo social

e a tudo que ele remete pois onde, de fato, termos como gnero raa

e classe tendem a ganhar uma existncia real).

To complexo e discutvel quanto raa o conceito de classe15

,

pois, entre outros aspectos, h divergncias quanto concepo da

13 SCHMIDT e ROSSI, in: STEVENS (org.), 2010, p. 215-216. 14 CORRA, 2009, p. 49. 15 Segundo o Dicionrio de Filosofia, classe em sentido sociolgico, corresponde, ao que os antigos chamavam de parte da cidade e designa um grupo de cidados definido pela natureza

da funo que exercem na vida social e pela parcela de vantagens que extraem de tal funo. [...]. A noo de C. (sic) ficou muito acentuada no sculo XVIII, por obra da Revoluo

Francesa e de todo o movimento cultural que a promoveu e a acompanhou. Em filosofia,

porm, ela s ganha destaque graas a Hegel, que considerava a diviso das C. (sic) como um ajustamento necessrio da sociedade civil, devido a bens privados, ou seja, ao capital [...]. O

conceito de C. , [...] elaborado por Hegel, foi usado por Marx como fundamento da sua

doutrina da luta de classes. [...]. Para Marx, a C. tem aquela espcie de unidade substancial slida que Hegel atribua ao esprito de um povo [...], isto , ela age na histria como uma

unidade e subordina o indivduo, que conta apenas como membro da sua C., da qual derivam

seus modos de pensar e de viver, seus sentimentos e suas iluses. Essa rigidez do conceito de C. foi mantida pela ideologia comunista e, mais que um conceito

cientfico, um instrumento de luta poltica. [...]. As anlises contemporneas mostraram uma

estrutura mais complexa e elstica de classe. [...]. (ABBAGNANO, 2001, p. 170). No Dicionrio do pensamento social do sculo XX, entre outras informaes, consta que em

seu sentido social, a palavra (classe) indica grupos amplos, entre os quais a distribuio

desigual de bens econmicos e/ou a diviso preferencial de prerrogativas polticas e/ou a diferenciao discriminatria de valores culturais resultam respectivamente da explorao

econmica, da presso poltica e da dominao cultural. [...]. Na traduo do pensamento

social, classe social um conceito genrico utilizado no estudo da dinmica do sistema social, enfatizando mais o aspecto da relao do que o de distribuio da estrutura social. Nesse

sentido, as classes so consideradas no apenas como agregados de indivduos, mas como

grupos sociais reais, com sua prpria histria e lugar identificvel na organizao da sociedade. [...]. [...], os sentidos ligados expresso classe social variam e se referem a tipos diferentes de ESTRUTURAO da sociedade. Na sociologia terica e histrica surgem vrios

24

palavra, visto que cada corrente ideolgica possui suas definies.

Contudo, de acordo com Codato e Leite,

o emprego cientfico desse nome deve enfatizar que

a expresso classe social no sugere somente a

existncia de categorias de indivduos diferentes

entre si (isto , a existncia de diferenas sociais

entre as pessoas); mas classes de indivduos que so

subordinadas umas s outras. Assim, o

pertencimento a uma determinada classe nos indica,

alm de variedades sociais, desigualdades sociais.16

Ainda segundo eles, classe (o conceito) seria um modo de

classificao que percebe distncias sociais reais e capaz de traduzi-las

em relaes de dominao e subordinao17

. De uma forma mais

sistematizada, os autores apontam trs sentidos para classe. O

primeiro seria puramente terico, isto , um recurso intelectual que

ordena e distribui os indivduos em categorias mais ou menos fixas. O

segundo descritivo, pois tem o intuito de representar de maneira

sistemtica e abrangente a estrutura social. J o terceiro interpretativo,

pois possibilita ler e exprimir a realidade social e, alm disso, entender

sua dinmica18

.

Alm das divergncias conceituais e/ou de aceitao da

existncia de classe, raa e classe tm um determinante em comum no

contexto das relaes sociais: so elementos de/para dominao e

excluso. Sendo assim, trazer o tema classe para ler uma determinada

realidade social, como a inteno dessa pesquisa, uma forma de

compreender possveis mecanismos subjacentes norteadores do

comportamento e da relao social de um determinado grupo na

sociedade brasileira para, entre outras coisas, avaliar a existncia e/ou

consequncia das desigualdades sociais, visto que o pertencimento a

tipos de estruturao em discusses substantivas sobre classes econmicas, classes polticas e classes culturais. [...]. (DICIONRIO, 1996, 92). 16CODATO e LEITE, 2009, [s/p]. Disponvel em: . Esse excerto parte da introduo do livro destes autores e consta neste site. A introduo na ntegra, assim como de todo o contedo do texto est, segundo os

autores, in: ALMEIDA, Heloisa Buarque e SZWAKO. (Eds). Diferenas, igualdades. So

Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009 esta informao tambm consta no site acima citado. 17 CODATO e LEITE, 2009, [s/p]. 18 CODATO e LEITE, 2009, [s/p].

25

http://adrianocodato.blogspot.com/%202009_05_01_archive.htmlhttp://adrianocodato.blogspot.com/%202009_05_01_archive.html

uma determinada classe (no sentido de classe de indivduos onde um

subordinado ao outro) nos indica19

as possveis desigualdades sociais.

A partir da concepo de que raa e classe ganham, dentro das

relaes sociais, as propores e uma existncia nocivas na e para a

vida do indivduo, a juno dos temas gnero, raa e classe comungam

mais que complexidades quanto conceituao e/ou aplicao, j que na

prtica podem ser os causadores dos mesmos males:

excluso/discriminao/dominao. Por isso, nesta pesquisa (e tambm

nos debates tericos), a relevncia da interseco de gnero e raa e,

consequentemente, classe, principalmente em se tratando de Brasil.

Portanto, ciente dessa relevncia e visando aos propsitos dessa

pesquisa, o trabalho foi estruturado da seguinte forma. No primeiro

captulo, Da histria do movimento feminista ao feminismo negro no

Brasil: breves abordagens, a proposta retomar a trajetria do

movimento feminista e suas reivindicaes para evidenciar como e por

que se chegou ao discurso e s reivindicaes do feminismo negro.

A trajetria do movimento feminista tem sido relevante para

vrios segmentos da sociedade, inclusive para a academia na qual

ganhou outras dimenses. Sendo assim, o segundo captulo, Cnone,

feminismo, literatura: relaes e implicaes, discute a importncia da

crtica feminista no campo da literatura. Alm disso, como forma de dar

visibilidade a elas, tambm traz alguns nomes de escritoras negras e

suas respectivas obras.

J os demais captulos visam a atender o objetivo maior desta

pesquisa: identificar a representao20

de gnero e raa na literatura

afro-brasileira de autoria feminina, atravs da anlise das personagens.

Para isso, as autoras e obras selecionadas foram: rsula e o conto A escrava

21, de Maria Firmina dos Reis (sculo XIX)); Quarto de

despejo: memrias de uma favelada22

, de Carolina Maria de Jesus;

19

CODATO e LEITE, 2009, [s/p]. 20 Segundo Butler (2003, p. 18), a representao tambm a funo normativa de uma

linguagem que revelaria ou distorceria o que tido como verdadeiro sobre a categoria das

mulheres. Nesse contexto, esta pesquisa adotar essa concepo, visto que busca, atravs do discurso literrio, respostas para melhor compreender quem , como e onde est a mulher negra

no contexto literrio e social brasileiro. Contudo, far isso sem desconsiderar a noo

referenciada pela discusso elaborada por Roger Chartier (1990). Essa noo atua no no sentido da representao enquanto imagem de um objeto que o ir reconstituir em memria e

de o figurar tal como ele , mas no sentido de que a representao opera no campo do

simblico. 21 REIS, 2004. 22 JESUS, 1960.

26

Ponci Vicncio 23

e Becos da memria24

, de Conceiao Evaristo; e As

mulheres de Tijucopapo25

, O lago encantado de Grongonzo26

e Obsceno

Abandono: amor e perda27

, de Marilene Felinto. Para melhor visualizar

a anlise das obras de cada autora, elas foram trabalhadas em separado.

Desta forma, o terceiro captulo, ocupou-se da narrativa oitocentista em

Maria Firmina dos Reis e da representao de gnero e raa em rsula e no conto A escrava; o captulo quatro, de Carolina Maria de Jesus e

a sua Rua A, Barraco nmero 9 - Canind. No quinto captulo, o

enfoque direcionado aos Becos da memria e do corao de Ponci

Vicncio para ler gnero e raa em Conceio Evaristo. No sexto,

possvel vislumbrar nem s gnero, nem s raa, mas meninas como

Rsia, Deisi e a Maria Doidinha que so espelhos das diversificadas

faces femininas, mas que nem por isso se apresentaro menos

racializadas. Para o captulo sete, retomo Maria Firmina dos Reis,

Carolina Maria de Jesus, Conceio Evaristo e Marilene Felinto para

ressaltar as dissonncias e ressonncias nas obras dessas autoras. Findo

este percurso, abro as ltimas pginas no para concluir algo, mas para

fazer algumas consideraes a partir das anlises obtidas ao longo desta

trajetria.

Trajetria que busca uma melhor compreenso da condio

social e literria da mulher negra na sociedade brasileira desde o sculo

XIX at o XXI. Por isso, alm do objetivo maior desta pesquisa, ela

tambm tem o intuito de refletir, brevemente, sobre a condio social e

literria da mulher negra na literatura e sociedade brasileira, a partir da

presena das mesmas como sujeito e objeto de suas escrituras,

comparando as representaes de gnero e raa obtidas nos textos das

quatro escritoras.

Quanto s autoras selecionadas, no recorte realizado, optei por

manter Maria Firmina dos Reis por vrios motivos, entre eles pela

relevncia de buscar no passado uma representao literria da mulher

negra como estratgia para comparar o seu possvel crescimento literrio

e social, e tambm como forma de ratificar o resgate desta autora

esquecida pela historiografia literria brasileira. De Maria Firmina dos

Reis s contemporneas Evaristo e Felinto havia uma lacuna que

necessitava ser preenchida, por conseguinte foi assim que

23 EVARISTO, 2003. 24 EVARISTO, 2006. 25 FELINTO, 1982. 26 FELINTO, 1992. 27 FELINTO, 2002.

27

afortunadamente cheguei ao Barraco nmero 9 de Carolina Maria de

Jesus. Afortunadamente, pois a obra desta traz, por um lado, a realidade

ainda atual do lugar de onde a grande maioria dos negros fala e, por

outro, traz essa realidade a partir da voz de uma mulher negra e, mais

importante, como sujeito da sua histria e do lugar de onde profere o

seu discurso, ou seja, discursa sobre o que vive, v e sente na prpria

pele. E isso de suma relevncia, pois a mulher negra , falando da

sua realidade, j que praticamente impossvel algum falar com a voz de outrem

28, ou seja, nem sempre cabvel e/ou possvel a uma

terceira pessoa discorrer com propriedade de causa e conhecimento

sobre uma determinada realidade que ela no tenha

vivenciado/experimentado na prtica. Por outro lado, Carolina M. de

Jesus, enquanto produtora de discurso sobre a sua realidade e o mundo

no qual vive, pe por terra (mas no s ela) a presuno letal global

(inconsciente) no discurso dominante de que as mulheres de cor so

geralmente incapazes de descrever e muito menos de analisar o mundo

elas mesmas ou seu lugar no mundo29

, ainda que essa presuno j no

seja, creio, to gritante atualmente. Para intermediar as escolhas por

Maria Firmina dos Reis e Carolina M. de Jesus e a ltima que

Marilene Felinto a opo foi Conceio Evaristo. Esta autora, entre

outros aspectos, tem produzido uma literatura cujo teor marcadamente

racial. Por isso, ela se torna pea indispensvel quando se quer falar

sobre raa. Alm disso, tem um texto de uma rara e sutil beleza potica e

isto se torna relevante numa pesquisa to em branco e preto como,

aparentemente, esta poder se apresentar. J a ltima escolha, Marilene

Felinto, no poderia se ausentar desta pesquisa, porque ela o

(des)equilbrio necessrio para uma pesquisa que se quer linear, na

medida do possvel. Em outras palavras, sua literatura aquela que

possibilita, por um lado, trazer outras faces para a representao da

mulher negra. Nesse aspecto, ela , portanto, o desequilbrio, ou seja,

atravs da representao literria nas obras desta autora, conhecer-se-

uma mulher negra que, sob certos aspectos, fugir sobremaneira ao

papel socialmente construdo e difundido: o da mulher negra domstica,

residente em favelas, por exemplo. Mas, por outro lado, o matiz que

subjaz na representao da mulher negra na literatura dessa autora da

mesma nuance encontrada nas trs outras escritoras e, nesse aspecto ela

o equilbrio. Em outras palavras, na literatura de Marilene Felinto,

tem-se uma representao diferenciada da mulher negra, contudo,

28 WALLACE, 1994, p. 77. 29 WALLACE, 1994, p. 77.

28

vislumbra-se tambm uma representao na qual certas

particulariedades vm ao encontro do que pode ser lido nas demais

escritoras j citadas.

Portanto, de posse do tema, do caminho a ser trilhado, do objeto

de trabalho, entre outros aspectos, nas pginas seguintes, buscar-se-

nas entrelinhas dos discursos literrios e tericos uma compreenso

sobre quem , como e onde est a mulher negra no contexto social e

literrio no Brasil.

29

CAPTULO 1

DA HISTRIA DO MOVIMENTO FEMINISTA AO

FEMINISMO NEGRO NO BRASIL: BREVE ABORDAGEM

Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as

histrias mal escritas sobre mim, sobre

voc. (Gloria Anzalda)

As relaes desiguais de gnero designaram e vm tentando,

at hoje, designar a todos os indivduos a posio, o papel e como eles

devem ser e se portar na sociedade. Contudo, no que concerne mulher

ocidental, em especfico, sempre houve aquela(s) que ousou(ram), antes

mesmo do sculo passado, transgredir o modelo imposto fugindo

regra, isto , fazendo algo no condizente ao papel social imputado a

elas como, por exemplo, escrever. Muitos dos escritos e muitas das

atitudes contrrios(as) a regras sociais de outrora alaram voo e vm

repercutindo de forma significativa na sociedade, possibilitando

mudanas lentas, mas relevantes na vida da mulher no panorama

histrico, social e poltico. Dentre tantas atitudes e escritos, aqueles

oriundos dos movimentos feministas tm contribudo sobremaneira para

estas mudanas. Por isso, o objetivo deste captulo lanar um olhar a

determinados fases desse movimento, trazendo uma breve introduo

histrica acerca dos momentos significativos para o feminismo na

literatura at os discursos do feminismo negro no contexto social

brasileiro. Ao trilhar esse caminho, contudo, preciso sempre considerar

que o movimento feminino (branco e negro) no surgiu do nada ou de

um momento de insight. Ele foi a expresso (em atos) da conscincia de

algumas mulheres da sua injusta condio na sociedade e dos direitos

humanos e sociais negados a elas por sculos.

As mulheres que ousaram escrever em tempos to inspitos

para elas so exemplos de vozes que se manifestaram, de certa forma,

contra a dominao e hegemonia masculina ao escreverem quando isso

era, exclusivamente, ofcio de homens. Embora ciente da existncia de

escritoras bem antes do sculo XIX, quero, contudo, iniciar esta

30

discusso a partir de um perodo mais especfico e historicamente

(de)marcado: o sculo XX30

.

Ele trouxe no seu bojo uma herana legada por duas grandes

revolues: a Revoluo Francesa (sculo XVIII) e a Industrial (sculo

XVIII e XIX); ou seja, trouxe, entre outras coisas, os ideais de liberdade,

igualdade e fraternidade e a necessidade dos avanos tecnolgicos e

cientficos. No mundo, o legado destas duas revolues tambm se fez

ouvir nas vozes femininas que, de forma mais incisiva e contundente,

vo reivindicar seus direitos e viver, no sculo XX, o seu apogeu, pois

as mulheres, embora consideradas intelectualmente incapacitadas pela

sociedade, no ficaram margem dessa nova conscincia de ser e poder

sentida pelos homens e que permeava a sociedade no incio do sculo

XX. Sendo assim, no tardou a se fazer ouvir uma voz mais contundente

para questionar o poder restrito aos homens apenas. Consequentemente,

a criao da Associao Poltica e Social das Mulheres, na Inglaterra,

em 1903, foi a resposta de quem h anos tentava inscrever na plataforma

dos partidos polticos o direito de voto feminino31

. Apesar da

modernidade tecnolgica da poca, o pensamento e o comportamento

social, principalmente o masculino, ainda eram antiquados, dos sculos

anteriores e, por isso, naquele momento, as reivindicaes at foram

ouvidas, mas nem por isso foram aceitas de imediato. A indiferena do

poder dominante s reivindicaes feministas, contudo, no as impediu,

muito pelo contrrio, levou outras mulheres a criarem um movimento

independente32

para lutar contra esse poder, principalmente o poltico,

que tinha desprezado tais reivindicaes.

Assim, os anos iniciais do sculo XX testemunharam algo at

ento improvvel de acontecer, isto , o clima de indignao entre as

mulheres que se transformou rapidamente em aes violentas33

. Elas

buscavam chamar ateno para a justia de sua causa. Invadiram

sees eleitorais, quebraram urnas, depredaram vitrinas [...]34

. O

considerado sexo frgil vinha para, se no pr fim, fazer a sociedade,

de fato, (re)pensar sobre essa fragilidade e sobre tudo a que ela

remete, pois, aps essa quebradeira, essas mulheres, embora presas,

30 Vale ressaltar que muitos(as) tericos(as) trazem a histria do movimento feminista demarcada por ondas. Primeira onda, segunda onda do feminismo .... Porm, aqui, eu trao a

histria do feminismo sem me apropriar desse formato didtico. 31 OLIVEIRA, 2000, p. 56. 32 Merece destaque a britnica Emmeline Pankhurst. Ela considerada uma das fundadoras do

movimento britnico do sufragismo. Seu nome est associado com a luta pelo direito de voto

para mulheres j antes da Primeira Guerra Mundial. 33 OLIVEIRA, 2000, p. 57 34 OLIVEIRA, 2000, p. 57.

31

ainda fizeram greve de fome. Estava, pois, instaurado um novo

momento e um novo caminho para a mulher dentro da sociedade na

Inglaterra. Mas as chamas lanadas pelas inglesas atravessaram os

mares, atingindo os Estados Unidos e lanando a semente do que viria

a ser a mais inesperada e inslita revoluo do sculo XX, a invaso

pelas mulheres dos territrios do masculino35

. Inesperada porque a

sociedade masculina estava segura do controle e da condio submissa e

dependente na qual a mulher era mantida e, talvez, jamais tenha

considerado possvel que elas pudessem ter e manter uma postura to

determinada. Inslita, justamente por causa dessa segurana que a

sociedade tinha em relao condio submissa, obediente na qual as

mulheres (sobre)viviam sob a dominao masculina. Sendo assim,

quebrar, opor-se a essa gaiola invisvel qual estavam presas sob

extrema dependncia, principalmente econmica, era uma atitude

considerada por muitos como impraticvel, visto que essas mulheres

pertenciam elite intelectual e/ou financeira, obviamente branca, cuja

formao educacional e social era muito rgida.

Sem o barulho e a quebradeira, naquele momento, pelo

menos, as sufragistas no teriam conquistado o direito ao voto. Contudo,

relevante frisar o aspecto alm quebradeira desse momento do

feminismo, pois mais importante que as aes em si o aspecto

implcito na reivindicao proposta por elas: o direito ao voto. Em uma

sociedade na qual as mulheres no tinham direito a nada, isto , no

podiam expor sua opinio sobre assuntos externos ao lar e, s vezes,

nem sobre o prprio lar, no podiam escolher o prprio marido em se

tratando das burguesas , no saam sozinhas, enfim, no tinham direito

a nada, exceto cuidar da casa e viver para a casa, sair rua para reivindicar um dos maiores direitos do indivduo requeria inteligncia e

uma grande compreenso de algumas leis que regem o mundo.

Requeria saber/conhecer quais os mecanismos que do acesso, entre

outras coisas, ao poder de se tornar algum com direitos sociais,

polticos e econmicos, podendo exercer sua plena cidadania. O direito a

escolher nossos representantes o primeiro passo para a conquista dos

direitos constitucionais, sociais e humanos, pois caber a esses

representantes elaborar e aprovar as leis para homens e mulheres

(con)viverem na sociedade. Por isso a relevncia dessa primeira

bandeira ir alm da coragem de fazer barulho e protestar, pois a

proposta reivindicada foi e o mago, uma das armas (juntamente com

35 OLIVEIRA, 2000, p. 57.

32

a educao) de que a sociedade dispe para mudar. Portanto, alm da

conquista do direito ao voto, a sociedade deve prestar homenagem

semntica implcita nos atos e na luta do movimento, naquele

momento: o direito cidadania. Para isso h sempre que enfatizar o

aspecto social e humano reivindicado, exigido atravs daquela

manifestao pblica, pois nesta est subentendida uma luta coordenada

por mulheres para a mudana da sociedade naquele momento. Essas

mudanas s poderiam ser concretizadas a partir do direito do homem e

da mulher escolherem seus representantes polticos na sociedade.

Embora tudo isso seja bvio, deve-se esclarecer, de forma contundente,

as propostas subjacentes nas atitudes e nas aes daquele movimento,

porque as novas geraes tendem a interpretar essas manifestaes

como atos histricos de algumas mulheres, numa interpretao

equivocada de um movimento que permite a ns, hoje, tantos benefcios

como, por exemplo, a liberdade social e humana.

Uma vez, portanto, lanada a semente em um terreno frtil e

propcio a mudanas, a germinao foi uma consequncia que culminou

na [...] aventura coletiva, o movimento feminista que,

sem pretenses picas, sem bandeiras e sem

soldados, apenas munido de uma impenetrvel

carapaa contra os danos do ridculo com que foi

sistematicamente atacado, conseguiu impor-se

como revolucionrio e conquistou os basties do

saber e do poder em que os homens acreditavam-se

para sempre encastelados. 36

Quanto aos danos do ridculo, citado por Oliveira, ainda

persiste, dentro da sociedade brasileira, pelo menos, um olhar de

discriminao e usos de palavras pejorativas para aquelas que se

autodenominam feministas e/ou mantm um discurso igualitrio entre

homens e mulheres. Isso, certamente, consequncia do

desconhecimento do que foi e do significado, de fato, do movimento

feminista ao longo dos tempos. Mas, discriminaes parte, o

movimento feminista, ainda de acordo com Oliveira, imps-se como

revolucionrio e conquistou os basties do saber [...]37

, mudando,

enquanto revoluo, a estrutura social, poltica, histrica e econmica

da sociedade ocidental, at certo ponto. E, para isso, a conquista dos

36 OLIVEIRA, 2000, p. 57. 37 OLIVEIRA, 2000, p. 57.

33

basties do saber tem sido primordial para que essas mudanas

estruturais ocorram.

Nesse contexto do saber, Um teto todo seu38

, publicado em 1929,

abriria as portas para as outras futuras vozes de cunho feminista para

questionarem o papel da mulher na sociedade e na literatura, a partir da

ausncia de literatura escrita por mulheres e das literaturas de autoria

masculina que falavam sobre mulheres ou acerca do que eles concebiam

sobre o que ser mulher. Outro livro relevante O segundo sexo, de Simone de Beauvoir

39. Ele tambm um marco para a histria do

feminismo. Contudo, lanado em 1949, esta obra s seria

compreendido na sua totalidade e dimenso nos anos 60, pois, na poca

do lanamento, o livro no teve uma boa acolhida por ter sido

considerado obsceno. Somente anos depois sua importncia seria

reconhecida a ponto de originar as bases do feminismo. Considerado

pela crtica feminista como obra pioneira e obra mxima de referncia

do feminismo contemporneo, nele Beauvoir demonstra a construo

social das categorias mulher/homem. Alm disso, para as mulheres, ele

tambm foi a resposta a todas as indagaes, experincias e medos de

uma sociedade feminina reprimida pela ignorncia de no (re)conhecer

o prprio sexo no sentido biolgico do termo, neste caso, a prpria

sexualidade inerente a cada sexo. Por todo um contedo que prima pelo

desnudamento das questes relacionadas ao que ser mulher e

condio qual muitas mulheres (sobre)viviam, O segundo sexo

acabaria influenciando o movimento feminista, pois traria baila o

como e o porqu da hierarquizao dos sexos, isto , discutiria como ser

mulher e ser homem na sociedade uma construo social e no

biolgica. A partir dessa lgica poltico-social, os movimentos

feministas tambm iriam discutir os porqus das desigualdades entre os

sexos.

O movimento feminista de 1960 e 1970, nas diversas reas de

estudo, segundo Constncia Lima Duarte40

, pretendeu, entre outras

coisas, destruir os mitos de inferioridade, resgatar a histria das

mulheres, reivindicar a condio de sujeito na investigao da prpria

histria e tambm rever o que os homens tinham escrito a respeito delas.

Com a insero em diversas reas, o movimento feminista vai acoplar

parcerias, e as discusses e reivindicaes acerca de visibilidade e

direitos sociais ganham uma dimenso cultural. Desta forma, os estudos

38 WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 39 BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, v. 1. 40 DUARTE, 1990, p.70.

34

feministas desenvolvidos a partir de 1970 vo reivindicar uma (re)leitura

terica em relao ao cnone literrio, por exemplo.

Em relao ao Brasil, em especfico, o mesmo no s

acompanhou esses momentos como houve mulheres aqui que

participaram de forma ativa desse movimento41

. Por isso, quando em

1960/1970 as reivindicaes feministas abarcavam mais que o direito

ao voto (j conquistado dcadas atrs), isto , as reivindicaes

comeavam a exigir o direito de a mulher decidir sobre seu prprio

corpo em relao maternidade e ao prazer sexual desvinculados da

maternidade, no Brasil, as feministas lutavam por esses mesmos

direitos, contudo, segundo Constncia Lima Duarte, o movimento

feminista, naquele momento, teria marcas distintas aqui, pois alm

daquelas reivindicaes, as mulheres brasileiras tambm tiveram que se

engajar e sair s ruas para lutar contra a ditadura militar e a censura42

.

Por outro lado, concomitantemente s reivindicaes propostas

por este feminismo, acontece a emergncia de novos grupos no

panorama social, tambm em termos de Brasil, isto , a ascenso

daqueles que estavam margem (gays, negros, negras...). Eles

comeavam a se afirmar como sujeitos polticos no cenrio social

brasileiro. Em outras palavras, este ser o perodo no qual alguns dos

excludos socialmente (ndios, negros, por exemplo) comearam a se

tornar e se fazer visveis e ter voz dentro da sociedade. E relevante

deixar registrado que os(as) negros(as) participaram de toda essa

(trans)formao social, cultural, histrica, pois o Movimento Negro

Unificado (MNU), por exemplo, surgiu nessa dcada (70) e, segundo

Schwarcz, ao lado de outras organizaes paralelas, passava a discutir as

formas tradicionais de poder43

.

Com a emergncia desses grupos, portanto, novas vozes

comearam a ser ouvidas. Algumas discordando dos discursos

41 Constncia Lima Duarte, no texto Literatura e Feminismo no Brasil: primeiros

apontamentos (in: MOREIRA, Nadilza Martins de Barros e SCHNEIDER, Liane (orgs.) Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e dispora. Joo Pessoa: Editora Universitria,

2005), faz uma leitura, atravs de literaturas existentes, dos textos de algumas escritoras no

Brasil, a partir do sculo XIX, que dialogam com a histria e ideologia do movimento feminista. Neste texto, ela retrocede no tempo e comea a analisar o feminismo (ou o que ela

mesma diz entender como feminismo) a partir do sculo XIX, em termos de Brasil, e delimita

quatro ondas do feminismo aqui. A primeira onda ela denomina de ensinando o b a ba, primeiras dcadas do sculo XIX; segunda onda, ampliando a educao e sonhando com o

voto (por volta de 1870); a terceira onda construindo a cidadania, j no incio do sculo XX;

e, por fim, a quarta onda, ainda construindo a cidadania (anos 70, do sculo XX). 42 In: MOREIRA e SCHNEIDER, 2005, p. 230. 43 SCHWARCZ, 1998, 182.

35

feministas vigentes, visto que um lado minoritrio44

do mesmo se

mostrou insatisfeito com a direo e preocupaes engajadas naqueles

discursos; outras para produzir discursos que fossem alm da mulher

branca, classe mdia/alta. Nos EUA, por exemplo, desde o final da

dcada de 1970, feministas negras e chicanas como Gloria Anzalda,

Patricia Hill Collin, Debora King e Chela Sandoval defenderam a

existncia de formas de conscincia mltiplas e distintas entre norte-

americanas no brancas45

. Alis, as feministas norte-americanas foram

as pioneiras na incorporao do tema das diferenas em suas

abordagens, ocupando-se em discutir a presena do racismo, bem como

o entrecruzamento entre gnero, raa e classe como elemento

representativo das diferenas nas experincias das mulheres46

. E a partir

de 1980/90, at ento, a produo de teoria feminista por mulheres

negras47

como Angela Davis, bell hooks, Audre Lorde e Patricia Hill

Collins tem contribudo para aprofundar a anlise e a compreenso da

marginalizao social, econmica e poltica das mulheres negras nos

EUA.48

Em se tratando de bell hooks e Angela Davis, Barbosa, ao

estudar a produo das mesmas, concluiu que analisando de forma

bem ampla as produes das feministas negras norte-americanas, [...],

nota-se muitos aspectos convergentes49

. Para ela, a produo de bell

hooks, por exemplo, enfatiza a relao entre produo intelectual e

experincia pessoal. Em outras palavras, mas ainda segundo Barbosa,

bell hooks fala de si mesma como recurso para aproximar-se da

realidade de outras mulheres negras e seus temas se referem relao

das mulheres negras com a academia, sexismo, racismo, teoria

feminista, dentre outros50

. O fato de bell hooks falar de si mesma nos

seus discursos vem ao encontro do pensamento feminista negro de

Patricia Hill Collins, pois para ela, esse pensamento reside em um

conjunto de experincias e ideias compartilhadas por mulheres afro-

44 Sueli Carneiro, Chandra Talpade Mohanty, Angela Davis e Alice Walker so alguns nomes que questionaram esse olhar exclusivamente direcionado do movimento feminista s propostas

e necessidades de mulheres brancas, classe mdia/alta. 45 CALDWELL, 1970, 2000, p. 93. 46 SILVA e BARBOSA, 2008 (apud BARBOSA, 2010, p. 1) 47 De acordo com Barbosa (2010, p. 1-2) desde o sculo XIX, as mulheres negras norte-

americanas como Sojouner Truth, Maria W. Stewart, Anna Julia Cooper e Ida B. Wells-Barnett tiveram papel fundamental no desenvolvimento de uma crtica feminista negra, revelando as

experincias da mulher negra na sociedade escravocrata e nas pocas ps-escravido. 48 CALDWELL, 2010, apud BARBOSA, 2010, p. 1-2. 49 BARBOSA, 2010, p. 2. 50 BARBOSA, 2010, p. 2.

36

americanas que oferecem um ngulo particular de viso do eu, da

comunidade e da sociedade... ele envolve interpretaes tericas da

realidade de mulheres negras por aquelas que a vivem51

. Ainda para

Patricia Hill Collins, alguns temas fundamentais caracterizariam o ponto

de vista feminino, entre eles: o legado de uma histria de luta; a natureza

interconectada de raa, gnero e classe e o combate aos esteretipos52

.

Quanto ao Brasil, segundo Schmidt e Malta, devido ao menor

acesso academia, diferentemente das feministas norte-americanas, a

trajetria das feministas negras53

tambm marcada por um caminho

muito particular, de afirmao de sua presena em espaos onde no

eram percebidas54

. Apesar disso, a luta das mulheres negras contra a

opresso de gnero e de raa vem desenhando novos contornos para a

ao poltica feminista e anti-racista, enriquecendo tanto a discusso da

questo racial, como a questo de gnero na sociedade brasileira55

.

Para Carneiro, um feminismo negro, construdo no contexto de

sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas

como so as sociedades latino-americanas tem

como principal eixo articulador o racismo e seu

impacto sobre as relaes de gnero, uma vez que

ele determina a prpria hierarquia de gnero em

nossas sociedades.56

A questo do racismo tambm a tnica do pensamento de

Llia Gonzalez, pois segundo Bairros, ele marcado por um conjunto de

questes relacionadas s mulheres negras que revelam aspectos

simblicos do racismo e sexismo da sociedade brasileira atravs da ideia

de que as mulheres negras esto no planeta para servir57

.

Em resumo, o feminismo negro, entre outros aspectos, avalia

que a conexo entre a prtica e a teoria uma dimenso importante

dentro do mesmo; que as suas concepes tericas recolocam no centro

das discusses feministas a persistente dicotomia entre igualdade e

diferena e, mais contemporaneamente, a questo das diferenas na

51 COLLINS apud BAIRROS, 1995, p. 463. 52 COLLINS apud CARNEIRO, [s/d]. Disponvel em: http:/ www. unifem.org.br/sites /700/ 71

0/0000690.pdf 53 Algumas feministas negras: Llia Gonzalez, Luza Bairros, Sueli Carneiro, Matilde Ribeiro, Edna Roland, Ftima Oliveira, Jurema Werneck 54 SCHMIDT e MALTA, in: STEVENS (org), 2010. 55 CARNEIRO, (s/d). Disponvel em:http://www.unifem.org.br/sites/700/710/00000690.pdf > . 56 Idem. 57 BAIRROS, 2000, apud BARBOSA, 2010, p. 5.

37

http://www.unifem.org.br/sites/700/710/00000690.pdf

diferena58

. Outro aspecto relevante, em se tratando do feminismo negro

brasileiro, o fato de que aqui as polticas afirmativas tm funcionado

como instrumento para a formao de ONGs de mulheres negras, que

subsidiam a formulao de polticas sociais voltadas para este setor59

.

Do discurso feminista negro norte-americano ao brasileiro,

embora em contextos sociais, polticos, geogrficos e econmicos

distintos, encontra-se presente a relevncia da questo racial como fator

determinante para as relaes de gnero. Alm disso, alguns discursos

(mais em algumas autoras que outras) tambm defendem a

prtica/experincia pessoal como uma forma engajada e relevante de

produo intelectual para discorrer sobre gnero/raa. Contudo,

semelhanas e/ou diferenas entre esses dois discursos parte, o fato

que o trajeto percorrido aqui, obviamente, no traduz todo o histrico do

movimento feminista (branco e/ou negro), possibilita, porm, uma

viso, ainda que superficial, do avano das discusses feministas.

Avano que possibilitou enxergar no hoje a necessidade da busca de

outros caminhos. Um que possa nos levar a um atalho entre uma

negritude redutora da dimenso humana e a universalidade ocidental

hegemnica que anula a diversidade. Ser negro sem ser somente negro,

ser mulher sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser somente

mulher negra60

. Isso, segundo Carneiro, o sentido final dessa luta,

ao que acrescentaria: dessa luta e daquilo que deveramos conceber

como sendo uma das grandes metas para a convivncia respeitosa e

igualitria entre os cidados, independente de cor, religio,

nacionalidade...

Por que gnero e raa?

Desde os anos 80 do sculo passado, sob o vu de uma suposta

neutralidade61

, o termo gnero vem sendo usado para designar estudos

acerca de mulheres. E, naquele momento, pelo menos, o termo gnero

pareceu ajustarse a la terminologia de las cincias sociales y se

desmarca asi de la [...] poltica del feminismo62

. Desta forma, portanto,

58 BARBOSA, 2010, p. 2. 59 BARBOSA, 2010, p. 7. 60 CARNEIRO, [s/d]. Disponvel em: . 61 SCOTT, Joan, apud LAMAS, 1996. 62 SCOT, Joan, 1986, apud LAMAS, 1996, p. 329.

38

o termo gnero, em substituio ao substantivo mulheres63

, tem sido

utilizado para promover dilogos e teorias acerca das mulheres. Mas no

decorrer desses dilogos e teorias, o feminismo, segundo Butler,

apontou um problema poltico no termo mulheres, visto que ele supe

a existncia de uma identidade comum64

. E supor uma identidade

comum, pertinente e compatvel a todas as mulheres, respaldando-se no fato de se viver em uma sociedade patriarcal comum a todas as

mulheres, desconsiderar realidades histricas outras. Sendo assim,

quaisquer termos cuja concepo remeta a mulheres, mesmo que no

plural, deveria ser usado com ressalvas, mesmo porque se tornou

impossvel separar a noo de gnero das interseces polticas e

culturais em que invariavelmente ela produzida e mantida65

. Isto,

consequentemente, desabilita o termo gnero a suprir a diversidade

poltica e cultural relacionadas ao diversificado pblico feminino. Alm

disso, ou justamente por isso, son varias y de diferentes ndoles las

dificultades para utilizar esta categoria66

. Uma das dificuldades

apontada por Lamas se refere concepo de gnero. Em algumas

lnguas, como a portuguesa, gnero utilizado para designar outros

elementos como, por exemplo, o gnero (feminino ou masculino) dos

substantivos; o gnero literrio ou gnero textuais. Porm, creio, o

maior problema se apresenta quando o mesmo usado de forma

generalizada para se referir a mulheres, ignorando ou no acoplando

raa ou classe, por exemplo. Ao ser utilizado de forma generalizada,

quaisquer estudos de gnero partem de um senso comum, isto , de que

todas as mulheres viveram a mesma histria social, cultural e humana e,

por isso, convivem com os mesmos problemas sociais na mesma

proporo e forma, apresentando um ou outro aspecto diferenciador para

eles. Isso quando esse aspecto diferenciador apresentado.

Apesar do aspecto cultural na construo do gnero67

, o

emprego generalizado do mesmo ainda uma recorrente. Ora, em se

tratando de algo intrinsecamente relacionado a fatores culturais,

impraticvel discorrer sobre gnero de forma generalizada, ampla, visto

que a diversidade cultural impera, principalmente em pases como o

Brasil onde muitas raas, culturas distintas convivem numa

63 De acordo com Butler (1990, p. 7, gnero tanto substitudo por mulheres como

igualmente utilizado para sugerir que a informao sobre o assunto mulheres necessariamente informao sobre os homens, que um implica o estudo do outro. 64 BUTLER, 2003, p. 20. 65 BUTLER, 2003, p. 20. 66 LAMAS, 1996, p. 328. 67 CONWAY; BOURQUE; SCOTT, 1998, p. 168.

39

harmoniosa democracia. Mas, segundo Butler, a concepo da

existncia de uma base universal para o feminismo advm da busca

empreendida no sentido de encontrar uma identidade que,

supostamente, existe dentro de vrias culturas distintas68

. Tal proposta

parte da ideia de que a opresso feminina tem um aspecto singular e

discernvel na forma hegemnica da dominao patriarcal. Porm, ainda

segundo Butler, a ideia de um patriarcado universal est sendo criticada,

pois ele no consegue explicar os mecanismos de opresso de gnero em

contextos culturais nos quais essa opresso acontece69

.

Pensar e empregar de forma generalizada o termo pode

desencadear consequncias indesejadas na sociedade. Uma das

consequncias perpetuar (in)conscientemente uma discriminao

racial ou de classe, por exemplo, em nvel de discurso e de

reivindicaes para determinados grupos de mulheres. Consequncia

esta, talvez, inevitvel para ns, pesquisadores/as, visto que o escopo de

toda pesquisa nos obriga a recortes dentro do objeto de trabalho. A outra

consequncia, embora no seja provavelmente a mais grave, , com

certeza, preocupante, pois est relacionada ao outro, isto , queles

cujas teorias no os contemplam. E no contemplam porque o que

considerado teoria na comunidade acadmica dominante no

necessariamente o que teoria para as mulheres de cor70

. Da mesma

forma que, muito possivelmente, no para as mulheres indgenas, para

as orientais, etc.

Por isso preciso estar atento, pois, segundo Lamas, por

exemplo, aunque muchas cuestiones dificultan uma unificacin total en

el uso de esta categora (gnero), creo que podemos distinguir entre dos usos bsicos: el que habla de gnero

refirindo a las mujeres; y el que se refiere a la construccin

cultural de la diferencia sexual, aludiendo a las relaciones sociales de los sexos.71

Mas, quanto ao primeiro uso citado pela autora, cabe a uma indagao:

gnero refirindo a las mujeres, quais mulheres, exatamente? E em

relao ao segundo uso tambm, pois construo cultural da diferena

sexual de quais mulheres? Pois, se houve uma construo cultural da

diferena sexual entre os negros (homem e mulher) em tempos de

68 BUTLER, 2003, p. 20. 69 BUTLER, 2003, p. 20. 70ANZALDA,apud SADLER.Disponvel em: 71 LAMAS, Marta, 1996, p. 331, (parntese meu).

40

http://www.letras.ufrj.br/litcult/revista_mu%20lheres/http://www.letras.ufrj.br/litcult/revista_mu%20lheres/

escravido, como, exatamente, ela foi construda? E mesmo aps a

escravido, qual exatamente a diferena cultural entre o homem negro

e a mulher negra? Se existe diferena, em que moldes histrico e social

ela se realiza? A discusso no to simples, pois as razes histricas

no o permitem. No permite porque enquanto escravos, na viso do(a)

colonizador(a) branco(a), mulher e homem negros eram tratados e

considerados da mesma forma, isto , eram mercadorias, propriedades

particulares, algo para ser usado. Sendo assim, at que ponto essa viso

impregnou (ou no) a construo cultural no seio das relaes sociais

deles (negros)? At que ponto interferiu e de que modo interferiu (ou

no) nesta construo cultural da diferena sexual entre os prprios

negros? Aps a escravido, o que permaneceu e sob que moldes? No

quero, com essas indagaes, negar que houve uma diferena entre a

mulher e o homem escravos, entre outras coisas. Certamente houve uma

diferena em relao ao tratamento e pensamento dos brancos para com

a mulher negra que, (in)conscientemente, a sociedade, tambm

representada pelo homem negro, introjetou ao longo dos sculos.

Contudo ou exatamente por tudo isso, apenas distinguir entre dois usos

bsicos o termo gnero para se utilizar do mesmo ainda querer

simplificar demais algo que nunca foi to simples assim.

Por outro lado, preciso considerar que gnero vem a ser um

elemento constitutivo das relaes sociais e ele a primeira instncia

dentro da qual ou por meio da qual se articula o poder, segundo Scott72

.

E as relaes sociais entre mulheres negras e as brancas, principalmente

nos sculos anteriores ao XX, ocorreram em forma de inferioridade de

uma para com a outra. Mesmo com o homem negro, as relaes sociais

entre eles (homem negro e mulher negra) tm aspectos distintos em

comparao com a relao social da mulher branca e do homem branco.

Esse contexto, portanto, s vem reforar o quanto os discursos

feministas, principalmente os iniciais, vinham e muitos ainda vm

somente ao encontro das possibilidades e anseios de mulheres brancas

de classe mdia e alta. Haja vista, por exemplo, o estudo precursor do

feminismo de Virginia Woolf em Um teto todo seu (1985). Neste,

discutindo sobre mulheres e a fico, ela enftica ao argumentar sobre

a necessidade de a mulher dispor de um espao particular e de

independncia pessoal e financeira para escrever. Fica subentendido

neste argumento que para dar vazo e qualidade escrita literria a

mulher precisa ser dona de si mesma, isto , ter um lugar no qual possa

72 In: LAMAS, Marta, 1996, p. 330 (traduo minha).

41

estar livre das presses da vida cotidiana, de filhos, marido, problemas

financeiros ou similares para ser e viver o que est escrevendo sem ser

constantemente interrompida durante a escrita. Nas palavras da prpria

autora, em resumo, a liberdade intelectual depende de coisas

materiais73

. Nestas esto includas conhecimento de mundo na prtica e

na teoria, experincia de mundo e de vida e, claro, um teto todo seu.

Elementos, aparentemente, relevantes para quaisquer atividades

intelectuais e para o crescimento pessoal. Elementos difceis de serem

articulados pelas mulheres brancas de classe mdia/alta do incio do

sculo passado, sem dvida, mas no impossveis. Porm, se

trouxermos esse discurso para o cenrio brasileiro daquele mesmo

sculo visando a atingir, atravs dele, as mulheres negras, as propostas

contidas no mesmo se tornariam no s impraticveis, como soariam

ridculas, diante da situao social delas naquele perodo. Mesmo para o

contexto contemporneo, pois se as propostas de Woolf ainda so

atuais, no que tange mulher negra ele ainda no se aplica realidade

da grande maioria delas (na verdade nem da grande maioria das

mulheres brancas). Em outras palavras, as reivindicaes bsicas

proferidas no discurso de Virginia Woolf no so as necessidades

bsicas da mulher negra, embora seja um direito e necessidade desta,

mas nem por isso so as mais prementes, pois em termos de liberdade

para trabalhar, por exemplo, a mulher negra a mesma de outrora, isto

, ela dona de si mesma, visto que trabalhava e continua trabalhando,

embora no ganhe quinhentas libras anualmente. So mulheres (a

negra e a branca) que se (re)conhecem biologicamente, mas cuja vida

de mulher tem sido construda em realidades sociais distintas, com

buscas, s vezes, especficas a cada uma delas. E para as buscas em

comum, essas buscas no acontecem no mesmo plano temporal.

Enquanto estas, em sculos passados, por exemplo, proferiam

discursos, escreviam ou saam s ruas reivindicando seus direitos, pois

eram pessoas letradas, mesmo que no fossem no mesmo nvel dos

homens naquele momento, a mulher negra ainda estava, e de certa forma

ainda est, vivendo a canga da escravido imposta a todos os escravos

e, posteriormente, aos ex-escravos que foram, segundo Florestan

Fernandes74

, deixados prpria sorte e com a misso de se

(re)ergueram sozinhos na sociedade, nos moldes e padres dos brancos.

Em outras palavras, eram analfabetas, escravas e hoje algumas ainda no

possuem nenhum nvel de instruo e outras, na sua grande maioria,

73 WOOLF, 1985, p. 141. 74 FERNANDES,1978.

42

semialfabetizadas, trabalhando nas senzalas modernas75

, salvo as

rarssimas excees.

Desta forma, as mulheres negras estiveram certas em seu

processo de luta: para serem condizentes com a histria, decidiram que

poderiam incidir em todas as questes sociais e polticas e demarcaram

o "toque de cor"76

nas propostas de gnero e no feminismo77

. Neste

contexto, para Carneiro,

enegrecer o movimento feminista brasileiro tem

significado, concretamente, demarcar e instituir na

agenda do movimento de mulheres o peso que a

questo racial tem na configurao, por exemplo,

das polticas demogrficas, na caracterizao da

questo da violncia contra a mulher pela

introduo do conceito de violncia racial como

aspecto determinante das formas de violncia

sofridas por metade da populao feminina do pas

que no branca; introduzir a discusso sobre as

doenas tnicas/raciais ou as doenas com maior

incidncia sobre a populao negra como questes

fundamentais na formulao de polticas pblicas

na rea de sade; instituir a crtica aos mecanismos

de seleo no mercado de trabalho como a boa

aparncia, que mantm as desigualdades e os

privilgios entre as mulheres brancas e negras.78

Desigualdades que mantm a quase invisibilidade de mulheres negras na

academia e, em contrapartida, a sua notvel visibilidade trabalhando

como faxineiras, por exemplo. Por tudo isso, imperativo um eterno e

sensvel olhar para o cotidiano e ao redor da casa, mas tambm para a

conjuntura nacional [...]. imprescindvel um olhar planetrio, porm

sem perder a dimenso do cho79

, pois esse olhar planetrio e o que

advm dele tambm uma possvel forma de quebrar inrcias

sociais80

.

75 Chamo de senzalas modernas o local no qual as mulheres negras, na sua grande maioria,

ainda habitam/trabalham como domsticas: as casas de famlia. 76 CARNEIRO, apud, RIBEIRO, 2006, [s/p]. 77 RIBEIRO, 2006, [s/p]. 78 CARNEIRO, [s/d], [s/p].Disponvel em:< www.unifem.org.br /sites/700/710/00000690.pdf

>. 79 RIBEIRO, 2006, [s/p]. 80 RIBEIRO, 2006 [s/p].

43

http://www.unifem.org.br/

Mediante todo este contexto, alcanar uma sociedade sem

hierarquia de gnero (e dentro do prprio gnero) requer sim, como

prope Gayle Rubin81

, uma anlise das causas da opresso das

mulheres, visto que esta anlise constitui a base de qualquer evoluo

do que teria que mudar para chegarmos a uma sociedade mais justa,

mas requer tambm, principalmente em termos de Brasil, uma anlise

das causas da opresso de mulheres brancas, negras, indgenas..., visto

que cada uma delas sofreu e sofre uma opresso muito particular e

intransfervel. Requer, portanto, os temas fundamentais que

caracterizariam o ponto de vista feminino negro82

. [...], a natureza

interconectada de raa, gnero e classe [...].

Apesar de ainda vivermos em uma sociedade na qual impera

uma hierarquia de gnero, de raa e de classe, indiscutvel a relevncia

da crtica feminista (negra e branca) e dos estudos de gnero para a e

na vida de muitas mulheres ocidentais. Os frutos colhidos ao longo da

existncia dos mesmos produziram, por sua vez, outros frutos, visto que

o termo gnero no conseguiu explicar tantas outras possibilidades

alm do binarismo homem x mulher. Inevitvel foi, portanto, a

ampliao da abrangncia dos estudos de gnero, cujo crescimento

conquistou outras dimenses. Isso, por um lado, tambm justifica a

necessidade de se evitar (escre)ver o termo gnero, acreditando ser o

mesmo arquipotente em uma terra de multiexpresses: de pele, de raa,

de sonhos e, principalmente, de vivncias. Respeitar isso uma forma

de evitar consequncias como, por exemplo, um estranhamento e

desconforto para as mulheres negras diante de discursos feitos por e para

mulheres brancas. Ou ainda para evitar uma introjeo de verdades

tericas que no so as verdades que respondero s lacunas

existentes na vida das afro-brasileiras, pois

o que considerado teoria na comunidade

acadmica dominante no necessariamente o que

teoria para as mulheres de cor. A teoria produz

efeitos que modificam a gente e a maneira pela qual

se percebe o mundo. Por isso precisamos de teorias

que nos permitam interpretar o que acontece no

mundo, que expliquem como e porque nos

identificamos com certas pessoas de maneiras

especficas, que reflitam o que acontece entre os

81 RUBIN, Gayle. In: NAVARRO, STIMPSON, 1998, p. 15 (traduo minha). 82 COLLINS, apud CARNEIRO. Disponvel em: .

44

eus internos, externos e perifricos e entre os

eus pessoais e o ns coletivo de nossas

comunidades tnicas.83

Da a relevncia da imbricao de teorias enfocando gnero e

raa e, inevitavelmente, classe, pois, a partir delas, muitas outras

mulheres negras podero se reconhecer e compreender melhor a si

mesmas, a sua condio de cidad e cidad negra assim como o mundo

ao seu redor e alm. Para vir ao encontro deste intuito que trago o

olhar direcionado dos captulos posteriores, visando a refletir sobre o

quanto os perigos que enfrentamos como mulheres de cor no so os

mesmos das mulheres brancas, embora tenhamos muito em comum84

.

Acredito que de posse dessa conscincia, mais e mais mulheres negras

teriam a arma do conhecimento para pleitear visibilidade, exercer e

cobrar seu direito cidadania plena. Alm disso, ter conscincia

daquilo que nos aprisiona / Equivale a deixarmos de ser perigosos / Para

ns mesmos85

(as). Mas para isso, precisamos aqui, no presente, entre

muitas coisas, olhar para ns mesmas e ao redor de ns, buscando

respostas para melhor compreendermos quem somos, como e onde

estamos dentro do contexto social, literrio, poltico e econmico

brasileiro.

83ANZALDA,apud SADLER. Disponvel em http:// www. letras. ufrj. br/litcult/revista_

mulheres/vol.8/Darlene/pos-colonialismo . htm 84 ANZALDA, 2000, p. 229. 85 CRUZ, Ana, apud ARAJO, 2008, p. 333.

45

CAPTULO 2

CNONE, FEMINISMO, LITERATURA: RELAES E

IMPLICAES

- [...]. A perplexidade a nica moral literria.

86

Na sociedade brasileira h, atualmente, inmeras escritoras

produzindo e publicando literatura. Porm, as literaturas de fico

expostas nas livrarias brasileiras no trazem nas suas capas e nos

discursos as marcas do percurso trilhado pelas suas autoras at chegarem

ali. Para uma melhor compreenso dos mecanismos sociais e

intelectuais que interferem na disseminao da literatura de autoria

feminina, em especial da brasileira, quero, agora, deter-me na questo

do cnone e sua relao com o feminismo e, alm disso, discorrer

brevemente sobre em algumas escritoras afro-brasileiras. O intuito

refletir sobre a relevncia das propostas feministas para as conquistas

das mulheres (negras e brancas) na literatura e ressaltar particularidades

sobre obras e/ou escritoras afro-brasileiras como forma de dar

visibilidade a algumas delas e ratificar o resgate de outras.

Em relao ao cnone, partindo da prpria concepo do termo,

cuja origem do grego antigo Kanon , nele h uma semntica rgida,

pois a designao para o termo uma vara de junco ou de bambu usado

como instrumento de medida.87

Com a acepo de valorao, o termo

foi primeiramente usado para se referir ao princpio de seleo aplicado

aos livros da Bblia pelos primeiros telogos cristos88

. A partir desse

princpio, as obras eram medidas sob o ngulo do seu contedo e s

eram merecedoras de serem lidas e preservadas aquelas nas quais o

contedo expressasse as verdades a serem ensinadas e transmitidas.

Verdades e ensinamentos ditados por homens de uma determinada

cultura e que se pautavam em uma verdade particular, subjetiva. Em

outras palavras, partindo de um sentido de verdade criado por um

pequeno grupo, ditador de normas, de valores universais, esse grupo

exclua quaisquer outras formas de verdade, de pensar e ou agir que

no fossem iguais as suas. Isso, portanto, incorria numa seleo feita a

86 COMPAGNON, 2010, p. 256. 87 SCHMIDT, Rita Terezinha. Para que crtica feminista? (Anotaes para uma resposta

possvel). In: XAVIER, Eldia (Org.). Anais do VII Seminrio Nacional- Mulher e literatura. Rio de Janeiro: Folha Carioca Editora, 1995. 88 SCHMIDT, 2002, p. 143.

46

partir de um ponto de vista unilateral, mas considerado (pelas partes

interessadas) como soberano, excluindo assim as obras que fugiam s

verdades e no traziam os ensinamentos esperados por aquele pequeno

grupo. J no final do sculo XVIII, a medida para valorao de uma

obra passa a ser a do valor esttico. A partir da presena desse carter

esttico, ainda pautado numa viso subjetiva, as obras poderiam vir a ser

objeto do universo cannico; caso contrrio, a obra estava condenada

excluso, ao esquecimento, devido a um julgamento subjetivo e

direcionado. Poderiam vir a ser, pois aparentemente o teor esttico no

o nico julgamento ou preceito a valorar uma obra. Existem outras

questes subjetivas a permear tal julgamento. Independente disso,

buscar por um valor esttico na obra literria apresenta o mesmo

problema que a proposta anterior em relao a verdades e ensinamentos

que os textos deveriam trazer: a questo da subjetividade ao usar este ou aquele conceito de medida para julgar uma obra. L ou aqui, a

concepo utilizada para tornar uma obra cannica parte de um

julgamento subjetivo articulado pela hegemonia de um grupo, levando a

um processo seletivo sempre excludente, pois na intimidade ratifica as

identidades (a do grupo que julga o que verdade e/ou certo ou que

concebeu um determinado conceito/padro para a obra se tornar

cannica), excluindo aquilo que lhe diferente, pois

todo julgamento de valor ocorre dentro de certas

condies scio-histricas e em funo de

referncias terico-estticos variveis no contexto

daquelas condies. [...], nesse contexto, a

formao do chamado cnone ocidental uma

decorrncia do poder de discursos crticos e

instituies que, numa determinada poca e em

nome de uma identidade cultural, sustenta o

monoplio cultural dos valores simblicos, atravs

de mecanismos de excluso.89

Estando a formao do cnone, portanto, na estreita

dependncia de grupos que detm o poder dos discursos crticos e das

instituies, no de causar admirao a ausncia, nos sculos passados,

de mulheres, negros e negras, enfim, dos ex-cntricos das listas

cannicas. Afinal, que identidade cultural monopolizou e monopoliza o

poderio social; quem proferia e ainda profere os discursos crticos e, por

89 SCHMIDT, 1995, p. 143.

47

fim, quem /so o/a(s) representante(s) das instituies cujo(s)

discurso(s) perpetua(m) o cnone, excluindo o(s) que no /so seu(s)

espelho(s)? Homens, homens brancos, classe mdia ou alta, ainda e

mesmo que seja notvel a presena feminina (predominantemente

branca) nos discursos crticos e nas instituies, pois poucas delas no

reproduzem o discurso eurocntrico e androcntrico. Por isso, a

presena feminina nas instituies nem sempre sinnimo de abertura

para o novo, o diferente, a minoria, os excludos, mesmo e quando

esse novo, diferente, minoria, excludo tm seus mritos

intelectuais/profissionais (re)conhecidos, pois mesmo com e apesar

(d)isso perpetua-se uma linha, ainda que invisvel, dividindo, mas raras

vezes somando, os dois lados dos discursos sociais: o dominante x o

dominado.

Por tudo isso, entre outros aspectos, a questo do cnone torna-

se complexa, visto que em meio a esse processo encontra-se, segundo

Muzart, at mesmo o fator acomodao, isto , a tendncia a reproduzir

o estudo de autores(as) j consagrados(as), canonizadas(os)90

; em outras

palavras, literaturas de homens brancos e de algumas mulheres brancas.

Seja porque o novo ou diferente cause estranheza; seja porque falta

atitude nessas pessoas acomodadas. Toda essa concentrao de poder

para determinar quem merecedor de pertencer ao cnone e,

principalmente, a ausncia de uma imparcialidade ao exercer tal poder e

superioridade intelectual, muitas vezes, gerada por uma apropriao

interiorizada de hegemonia de raa, cultura e gnero. Harold Bloom,

por exemplo, defende calorosamente o cnone ocidental, apresentando

argumentos para esta defesa que no deixam de ser subjetivos, pois,

entre outros aspectos, para ele sem o cnone deixamos de pensar.

Pode-se idealizar interminavelmente a substituio de padres estticos

por consideraes etnocntricas e de gnero sexual, e as metas sociais

podem ser de fato admirveis. Mas s a fora pode juntar-se fora

[...]91

. Ainda segundo o autor, no podemos livrar-nos de

Shakespeare, nem do Cnone do qual ele o centro92

. Indiscutveis

quaisquer aspectos em relao genialidade deste poeta. Contudo, a

disseminao de pensamentos to fechados como o de Bloom contribui

para deixar uma lista considervel de escritoras (principalmente) e

escritores, independente da raa, excludos do cnone ocidental porque

ele s enxerga como bom o que ele j julgou e determinou como

90 MUZART, 1995, p 85. 91 BLOOM, 1995, 47. 92 BLOOM, 1995, p. 46.

48

bom. Por isso, diminui o valor de um trabalho maior, o do resgate

literrio, ao colocar que o Cnone Ocidental, seja l o que seja, no

um programa de salvao social93

. Infelizmente, ele no o nico,

nem ser o ltimo, a pensar e agir assim e tecer comentrios desse

porte. Principalmente por isso, h sim a necessidade de (re)avaliar obras

e autores(as) outros, no como uma forma de assistencialismo social,

mas de possibilitar a insero na historiografia literria daqueles que

escreveram da margem, abrindo-lhes espao, outrora fechado, para se

tornarem visveis ao mundo literrio . Quanto a se imortalizar no

mesmo, a j outra questo. Questo essa que no pode ser

antecipadamente determinada por (pr-)conceitos de gnero, raa,

classe... nem por posicionamentos centralizadores de espao, poder e

julgamentos de valores subjetivos.

O cnone, portanto, tem sido determinado por um poder

centralizador e tambm por um processo de omisso por parte dos

representantes da academia. Essa situao s comearia a ser

desconstruda quando algumas posturas (re)visionistas, ensaia(m) seus

primeiros passos na academia pelas mos do feminismo, bem como a

partir das demandas oriundas do movimento negro e da Fundao no

Brasil de grupos como o Quilombhoje 94

, no decorrer dos anos de

1980. O surgimento do feminismo no contexto acadmico95

, por

intermdio de grupos de pesquisa formados basicamente por professoras

universitrias da rea de estudos literrios96

, vem para questionar, pr

em xeque a hegemonia das prticas cannicas. E

foi o questionamento da hegemonia desse sujeito

nos processos de instituio e institucionalizao

dos significados social, poltico, cultural, esttico e

terico reguladores do campo literrio que

inaugurou a interlocuo crtica com as histrias

literrias, com as configuraes dos cnones

nacionais, com as convenes discursivas, com os

cdigos estticos e retricos, com os prprios

93 BLOOM, 1995, p. 36. 94 DUARTE, 2005, 115 (parntese meu). 95 Aparentemente, a insero das discusses sobre gnero na academia, na incluso de tal tema

como disciplina, ainda que optativa, ainda encontra resistncia por parte de algumas coordenaes e ou professores mais conservadores que no veem necessidade de discutir

gnero, assim como de discutir raa, racismo, pois acreditam (pelo menos dizem acreditar) na

cordialidade do povo brasileiro para com o outro. 96 SCHMIDT, R.T. A crtica feminista na mira da crtica. Disponvel em

conceitos de literatura, de identidade e de valor,

gerados e mantidos pela crtica literria e pelo

discurso historiogrfico, compactuados com o

sistema patriarcal da cultura ocidental e, por

extenso, das culturas nacionais, vistas sob o

prisma de valor inquestionvel e universalizante.97

Ao lanar questionamentos hegemonia reguladora do campo

literrio, a crtica feminista do final da dcada de 70 e dos anos 80 inicia

o trabalho de questionar o porqu da excluso das mulheres da

literatura, assim como o rebaixamento da produo literria feminina98

.

Paralelamente, desconstruiu e vem desconstruindo, nas grandes obras

canonizadas, a representao da mulher nestes textos, revelando-nos o

quanto a literatura produzida pelo alto escalo cannico masculino trazia

uma imagem feminina estereotipada, calcada no binarismo, no qual a

parte feminina caracterizada como anjo ou demnio, em se tratando

da mulher branca. Quando e se aparece uma personagem negra esta

caracterizada como um objeto do lar99

; se a personagem mulata ela

vem envolta em sensualidade ou promiscuidade100

. Em outras palavras,

ela tem o status de um utenslio domstico: de uso para o lar e do lar ou para servir s necessidades do(a) dono(a) do lar, muitas vezes sendo

considerada pela famlia da casa como uma negra de estimao

parafraseando Monteiro Lobato101

, ou como se fosse da famlia, mas

sem direito a qualquer uma das regalias vividas pelos mesmos, exceto a

de partilhar da mesma comida. Todo esse trabalho da crtica feminista,

consequentemente, desmontou os argumentos e critrios cannicos que

sustentavam a ausncia da produo feminina no campo literrio e o

conceito de literatura. Da para a (re)leitura de obras e autores

esquecidos, assim como do seu resgate, o processo lento devido a

97 SCHMIDT, 2002, p. 108. 98 CAMPOS, In: SCHMIDT, 1997, p. 129. 99 Nesse caso, fao uma ressalva, pois as personagens negras em Machado de Assis no tm

esse perfil. 100 Fao uma ressalva, nesse caso, s personagens negras e mulatas nas obras de Lima Barreto, pois por detrs de quaisquer aspectos de sensualidade, promiscuidade ou da condio de

domstica das personagens femininas h implcita uma denncia social para com o descaso

poltico, social e humano para com a condio social dessas mulheres (e tambm do homem) no Brasil. 101 Fao referncia aqui ao livro infantil de Monteiro Lobato, As reinaes de Narizinho, no

qual a empregada da dona Benta, tia Nastcia, descrita pelo narrador como negra de estimao. Texto disponvel em : . Acesso em: 20 jun 2011.

50

certas dificuldades pertinentes a quaisquer buscas por algo cuja

divulgao sofreu srios percalos.

O trabalho da crtica feminista na esfera acadmica102

vai

abranger outros aspectos tambm. No Brasil, em se tratando da crtica

feminista, em especfico, ela tem dado especial ateno aos

questionamentos dirigidos historiografia literria e ao cnone103

. Estes

questionamentos no tm contemplado a mulher negra (na dimenso em

que a mulher branca tem sido colocada em evidncia), tanto que

algumas feministas104

questionaram e/ou chamaram a ateno para o

foco direcionado dessas pesquisas. Maria Consuelo Cunha Campos105

e

Kia Lilly Caldwel106

so exemplos dessas vozes questionadoras da

pouca visibilidade em relao questo de gnero e raa. Campos, no

texto Gender e literatura107

, traz uma crtica implcita ausncia de

uma discusso maior em relao produo de escritoras negras; j

Caldwel denuncia a parca quantidade de estudos abarcando gnero, raa

e classe no Brasil. Quanto a esses questionamentos, Schmidt108

defende

o foco das pesquisas da crtica feminista, argumentando que a

historiografia literria tem resgatado uma significativa produo

marginalizada. Esta produo, ela admite, construda por uma

determinada classe social e racial pertencentes elite, visto que as

escritoras eram provenientes da classe mdia/alta.

Muito da literatura afro-brasileira e, consequentemente, dos

nomes de escritores(as) anteriores ao sculo XX, principalmente, so, de

fato, frutos do trabalho de resgate de pesquisadores(as) empenhados em

(re)escrever o cnone e a historiografia da litera