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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA POLÍTICA MESTRADO INTERINSTITUCIONAL EM SOCIOLOGIA POLÍTICA PATRÍCIA DE SOUSA FERNANDES QUEIROZ HUMANIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SAÚDE: avanços, paradoxos e desafios FLORIANÓPOLIS 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

PROGRAMA PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA POLTICA

MESTRADO INTERINSTITUCIONAL EM SOCIOLOGIA

POLTICA

PATRCIA DE SOUSA FERNANDES QUEIROZ

HUMANIZAO DOS SERVIOS DE SADE:

avanos, paradoxos e desafios

FLORIANPOLIS

2015

2

3

Patrcia de Sousa Fernandes Queiroz

HUMANIZAO DOS SERVIOS DE SADE:

avanos, paradoxos e desafios

Dissertao apresentada ao Programa de

Ps-graduao em Sociologia Poltica da

Universidade Federal de Santa Catarina

para obteno do ttulo de Mestre em

Sociologia Poltica.

Orientadora: Prof. Dr. Mrcia Grisotti

Florianpolis

2015

Ficha de identificao da obra elaborada pelo autor,

atravs do Programa de Gerao Automtica da Biblioteca Universitria da UFSC.

Queiroz, Patrcia de Sousa Fernandes

Humanizao dos Servios de Sade: avanos, paradoxos e desafios /

Patrcia de Sousa Fernandes; orientadora, Mrcia Grisotti Florianpolis, SC,

2015.

177 p.

Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de

Filosofia e Cincias Humanas, Programa de Ps-Graduao em Sociologia

Poltica.

Inclui Referncias

1. Sociologia Politica. 2. Sistema nico de Sade. 3. Poltica Pblica. 4. Humanizao da ateno e gesto de sade. I. Grisotti, Mrcia. II. Universidade

Federal de Santa Caarina. Programa de Ps-Graduao em Sociologia Poltica. III.

Ttulo.

5

Patrcia de Sousa Fernandes Queiroz

HUMANIZAO DOS SERVIOS DE SADE:

avanos, paradoxos e desafios

Esta Dissertao foi julgada adequada para a obteno do Ttulo de

MESTRE em Sociologia Poltica e aprovada em sua forma final pelo

Programa de Ps-Graduao em Sociologia Poltica da Universidade

Federal de Santa Catarina UFSC.

____________________________

Prof.Dr Yan de Souza Carreiro

Coordenadora do Programa

________________________

Prof. Dr. Mrcia Grisotti

orietadora

Banca Examinadora:

______________________________________

Prof. Dr. Sandra Noemi Cucurullo de Caponi

Membro

___________________

Prof. Dr. Jacques Mick

Membro

___________________

Prof. Dr. Marta Verdi

Membro

Florianpolis, 11 de Fevereiro de 2015

6

7

DEDICATRIA

Dedico este trabalho ao meu pai, Eualdo Fernandes (in memorian et

corde), ao meu marido Fabrcio, minha me, Maria Amlia e aos meus queridos irmos, Juliana, Junior e Jssica razes do meu viver.

8

9

AGRADECIMENTOS

Agradeo, em primeiro lugar, a Deus que ao longo de toda

minha vida tem me abenoado ricamente e me conduzido pelos

caminhos de flores e espinhos que tenho percorrido;

Agradeo ao meu marido, Fabrcio, que me apoiou desde o

momento em que decidi pleitear uma vaga no Mestrado

Interinstitucional, por suportar com sabedoria e pacincia os meus

destemperos e, sobretudo, por compreender a minha ausncia quando

estive em Florianpolis. Agradeo ainda por todo o seu carinho,

compreenso e companheirismo.

Agradeo a minha me, Maria Amlia, por sempre acreditar

em mim, por me motivar a lutar pelos meus sonhos e por ser o meu

exemplo maior de que com f, humildade e persistncia somos capazes

de grandes coisas.

Agradeo aos meus irmos, Juliana, Junior e Jssica e aos

meus cunhados Rmulo, Suzanny e Wagner por todo apoio e carinho.

Agradeo s minhas avs, Luiza e Lavnia e aos meus sogros,

Rubens e Neuza pelas oraes e pelo entusiasmo com as minhas

vitrias.

Agradeo a Mrcia Grisotti pela orientao deste trabalho, por

compartilhar generosamente os seus conhecimentos e pela acolhida em

Florianpolis.

Agradeo aos colegas do Mestrado Interinstitucional pela

companhia e amizade, e por se tornarem o meu porto seguro em

Florianpolis. Encontr-los pelos corredores da UFSC, na padaria, nos

restaurantes, na praia era como se um pedao da minha querida Minas

Gerais estivesse no sul e aquecia o meu corao.

Agradeo Clara Cynthia pela colaborao e apoio ao longo

do desenvolvimento desta dissertao e por dividir comigo as alegrias,

mas, sobretudo, as preocupaes que esse processo envolve.

Agradeo ao Centro de Filosofia e Cincias Humanas da

Universidade Federal de Santa Catarina e ao Instituto Federal do Norte

de Minas Gerais pela dedicao na viabilizao deste Mestrado

Interinstitucional.

10

Agradeo aos Consultores da Poltica Nacional de

Humanizao que aceitaram participar desse estudo e desnudar a

poltica, discutindo as suas foras e fraquezas. No seria possvel este

trabalho sem a colaborao e generosidade desses consultores.

Agradeo tambm aos gestores e trabalhadores do SUS do

municpio de Januria MG que dedicaram um tempo para

conversarmos sobre humanizao e pelas importantes contribuies para

a construo deste trabalho.

Agradeo, por fim, a todos os amigos e familiares que me

apoiaram ao longo da elaborao desse trabalho, por me (re)animarem

quando, por diferentes motivos, enfraqueci e por entenderem a minha

ausncia e a importncia deste momento.

11

RESUMO

Este trabalho refere-se ao estudo dos avanos, paradoxos e desafios da

Poltica Nacional de Humanizao na ateno e gesto dos servios de

sade encontrados nos discursos dos consultores dessa poltica e dos

trabalhadores e gestores do SUS de Januria MG. Atravs das

entrevistas foi possvel identificar: 1) a polissemia que o termo

humanizao assume nos territrios refora uma concepo romntica e

desloca a perspectiva apresentada pela Poltica Nacional de

Humanizao, sendo necessrio, portanto, uma ressignificao do termo

para que o movimento da humanizao das prticas de ateno e gesto

seja desviado de uma possvel idealizao do humano e passe a ser

compreendido como um processo de carter instituinte e que se constri

coletivamente atravs da incluso dos diferentes sujeitos envolvidos na

produo de sade; 2) a lgica hegemnica de produo de sade

encontra-se alicerada num modelo autoritrio e no favorece a

democratizao institucional; 3) as instituies formadoras reiteram o

modelo biomdico e exclui a produo de subjetividades do processo de

produo de sade; 4) os consultores percebem uma tensionalidade entre

a lgica da PNH e o modo de fazer das outras polticas de sade. Sobre

este ltimo item, percebemos que essa incongruncia faz com que os

gestores de sade encontrem pouca ou nenhuma correspondncia entre a

PNH e as demais polticas do MS e, como consequncia, a gesto tende

a concentrar os seus esforos prioritariamente nos aspectos quantitativos

da produo de sade em detrimento da qualidade dos processos e da

valorizao do trabalho e do trabalhador. Conclumos com esse trabalho

que embora a fora instituinte da PNH seja uma ferramenta precpua

para a defesa do SUS, ainda necessria uma articulao mais

fortalecida com as demais polticas pblicas de sade e um esforo

multissetorial para fortalecer a humanizao nos mais diversos e

singulares territrios, fomentando nos gestores e trabalhadores do SUS

um modo mais reflexivo e cogerido de executar as polticas de sade.

Palavras-chave: Sistema nico de Sade; Poltica Pblica;

Humanizao da ateno e gesto.

12

13

ABSTRACT

This work refers to the study of the advances, paradoxes and challenges

of the Humanization National Policy in care and management of health

services found in the speeches of consultants from this policy, workers

and managers from SUS at Januria MG. Through this interview was

possible to identify: 1) The polysemy from the term humanization

assumed on the territory reinforces a romantic conception and deviates

from the perspective presented by the Humanization National Policy,

being necessary, then, to reframe the term so the care and management

practices from the humanization movement is diverted from a possible

idealization of human and starts to be comprehended as an establishing

character process that is collectively build thorough the inclusion of

different individuals involved in the health production; 2) The health

production hegemonic logic lies in an authoritarian model and does not

help institutional democratization; 3) The institutions formed reinforce

the biomedical model and excludes the subjectivities production of the

health production process; 4) The consultants notice a tension between

the Humanization National Policy logic and the way to perform the

other health policies. About the last item, we noticed that this

inconsistency leave the health managers with little or none

correspondence between Humanization National Policy and the other

Ministry of Health policies and, as a consequence, the management

tends to focus its efforts in quantitative aspects of health production

impairing the process quality and the work and worker valuation. We

conclude with this work, although the Humanization National Policy

establishing force is the main tool for the SUS defense, that it is still

needed some powerful articulation with other health public policies and

a multisectoral effort to strengthen the humanization in unique and

many other territories, promoting in SUS managers and workers a

reflexive and co-managed way to perform health policies.

Key words: Single Health System; Public Policy; Care and

Management Humanization.

14

15

LISTA DE QUADROS E TABELAS

Quadro 01 - Documentos oficiais lanados pelo Ncleo

Tcnico da PNH....................................................

49

Tabela 01 - ndice de Desenvolvimento do SUS do municpio

de Januria (2008-2011)........................................

94

16

17

SIGLAS

AC Anlise de Contedo

CNS Conselho Nacional de Sade

DCN Diretrizes Curriculares Nacionais

GTH Grupo de Trabalho de Humanizao

OMS Organizao Mundial de Sade

MS Ministrio da Sade

PNH Poltica Nacional de Humanizao da Ateno e Gesto do SUS

PNHAH Poltica Nacional de Humanizao da Ateno Hospitalar

SUS Sistema nico de Sade

18

19

SUMRIO

INTRODUO ............................................................................... 21

PERCURSO METODOLGICO ................................................. 27

DESENHO DO ESTUDO ................................................................. 27

PARTICIPANTES DO ESTUDO ..................................................... 27

COLETA DE DADOS ...................................................................... 29

ANLISE DOS DADOS .................................................................. 30

ASPECTOS TICOS ........................................................................ 31

CAPTULO I A HUMANIZAO COMO POLTICA

PBLICA: HISTRIA DE AVANOS E

ENFRENTAMENTOS ....................................................................

33

1.1 TRAJETRIA HISTRICA DA HUMANIZAO DO SUS . 33

1.2 O SURGIMENTO DA HUMANIZAO COMO POLTICA

PBLICA ..........................................................................................

39

1.3 HUMANIZAO COMO UM PROBLEMA CONCEITUAL:

MOVIMENTO DE MUDANA DE MODELOS x CONCEPO

ROMNTICA ...................................................................................

51

1.4 OS PROBLEMAS ENFRENTADOS PELOS APOIADORES

NA CAPILARIZAO DA PNH ....................................................

58

1.4.1 As foras e fraquezas da no institucionalizao da PNH ..

59

1.4.2 O impasse da ausncia de financiamento ............................. 63

1.4.3 As descontinuidades provocadas pela alternncia de

poder..................................................................................................

68

1.4.4 Cultura autoritria e poder biomdico como cerceadores

da humanizao................................................................................

71

1.4.5 A democratizao institucional como ameaa ..................... 75

1.4.6 A temporalidade da humanizao dos processos ................ 82

CAPTULO II OS DESAFIOS DA HUMANIZAO

FRENTE AO CAOS SANITRIO DE UM MUNICPIO

NORTE-MINEIRO .........................................................................

87

2.1 O RETRATO DA SADE DE UM MUNICPIO NO

INTERIOR DE MINAS GERAIS .....................................................

87

2.2 OS ENTRAVES PARA A INTERIORIZAO DOS

PRINCPIOS DA PNH ......................................................................

97

2.2.1 Condies de trabalho insatisfatrias ................................... 97

2.2.2 Desvalorizao do fator humano em sade .......................... 102

2.2.3 Sobrecarga do trabalho mdico ........................................... 109

20

2.2.4 Verticalizao da gesto ......................................................... 111

2.2.5 Desorganizao da rede de ateno sade .........................

117

CAPTULO III A HUMANIZAO DO CUIDADO

ATRAVS DA HUMANIZAO DA FORMAO

PROFISSIONAL .............................................................................

125

3.1 HUMANIZAO DO CURRCULO DOS CURSOS DA

REA DE SADE.............................................................................

128

3.2 A REVERBERAO DA HUMANIZAO NA

FORMAO PROFISSIONAL NO CUIDADO .............................

141

CONSIDERAES FINAIS .......................................................... 147

REFERNCIAS .............................................................................. 155

APNDICE A Instrumento para coleta de dados ..................... 171

APNDICE B Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

para Participao em Pesquisa........................................................

173

ANEXO A Parecer Consubstanciado do Comit de tica em

Pesquisa ............................................................................................

175

21

INTRODUO

O reconhecimento da sade como bem-estar, satisfao, bem

coletivo e direito, configura um paradigma civilizatrio da humanidade,

construdo num processo de embates de concepes e de presses dos

movimentos sociais por estabelecerem uma ruptura com as

desigualdades e as iniquidades das relaes sociais, numa perspectiva

emancipatria, levando-se em conta, evidentemente, as diferentes

culturas e formas de cuidado do ser humano (BRASIL, 2006).

No Brasil, em 1988, as lutas sociais resultaram no

estabelecimento do Sistema nico de Sade (SUS), cujas propostas

esto centradas no cidado e no somente no funcionamento do sistema

de sade (GARCIA et al., 2009). Benevides e Passos (2005a) afirmam

que o SUS o resultado de lutas pela redemocratizao da sociedade

brasileira que aconteciam em meio a movimentos de resistncia

ditadura militar que impunham no s a recolocao das funes e

deveres do Estado, como tambm, os direitos dos cidados.

Em 1990, a lei nmero 8.080 regula as aes e servios de

sade em todo o territrio nacional e dispe sobre as condies para a

promoo, proteo e recuperao da sade, a organizao e o

funcionamento dos servios correspondentes, alm de outras

providncias. O art. 2 desta lei dispe que a sade um direito

fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condies

indispensveis ao seu pleno exerccio. O 1 do art. 2 aponta que o

dever do Estado de garantir a sade consiste na formulao e execuo

de polticas econmicas e sociais que visem reduo de riscos de

doenas e de outros agravos e no estabelecimento de condies que

assegurem acesso universal e igualitrio s aes e aos servios para a

sua promoo, proteo e recuperao.

Garcia et al. (2009) afirmam que apesar da estruturao do

sistema pblico de sade brasileiro ter sido considerada um grande

avano, a mesma no se deu sem uma srie de percalos, muito menos

conseguiu, at o momento, responder ao que preconiza, uma vez que a

sade pblica brasileira ainda vive momentos de agonia e tem sido protagonista de cenas inaceitveis, considerando as condies tcnicas e

econmicas atuais.

Rios (2009) aponta que o SUS o sistema idealizado para os

anseios de sade do povo brasileiro, porm tambm o sistema de sade

22

pblico que apresenta as contradies e heterogeneidades que

caracterizam nossa sociedade: servios modernos e de ponta tecnolgica

ao lado de servios sucateados nos quais esto presentes a cronificao

do modo obsoleto de operar o servio pblico, a burocratizao e os

fenmenos que caracterizam situaes de violncia institucional.

Resende (2007) afirma que, no contexto brasileiro, o setor

sade um dos campos que espelha nitidamente a limitada eficcia

humana, quer pelo modelo de ateno sade, ou pelo modelo de

gesto, quer pela formao dos profissionais, suas condies de

trabalho, que constituem o conjunto de fatores indutores de atitude e

decises consideradas desumanas.

Assim, o SUS continua um sistema em construo e ainda

enfrenta um conjunto de desafios como a instabilidade e insuficincia do

financiamento, investimentos reduzidos, distribuio desigual dos

recursos e da infraestrutura, acesso insuficiente, baixa eficcia,

qualidade insatisfatria, ineficincia na gesto dos recursos,

humanizao deficiente, desrespeito ao cidado, desateno e maus-

tratos (PAIM, 2008).

Os problemas relacionados, mais especificamente, baixa

qualidade da ateno dispensada ao usurio e s condies deficientes

nas quais os trabalhadores da sade atuam, levaram o Ministrio da

Sade (MS) no final dos anos 1990 a entender que a humanizao do

SUS poderia constituir como uma estratgia de enfrentamento dessas

dificuldades (MATIAS, 2012).

De acordo com Deslandes (2004), o termo humanizao tem

sido utilizado largamente no mbito da sade, porm a legitimidade da

temtica ganha novo status quando, em maio de 2000, o MS

regulamenta o Programa Nacional de Humanizao da Assistncia

Hospitalar (PNHAH) e a humanizao tambm includa na pauta da

11 Conferncia Nacional de Sade, realizada em dezembro do mesmo

ano e que tinha como ttulo Acesso, qualidade e humanizao da

ateno sade com controle social.

O PNHAH no compasso de outras iniciativas como a

Humanizao do Parto e da Sade da Criana propunha um conjunto de aes integradas com o objetivo de mudar o padro de assistncia ao

usurio nos hospitais pblicos do Brasil e aprimorar as relaes entre

profissional de sade e usurio, dos profissionais entre si e do hospital

com a comunidade. Esse conjunto de aes inclua investimentos para a

23

recuperao da estrutura fsica das instituies, renovao de

equipamentos e aparatos tecnolgicos, diminuio do custo de

medicamentos, capacitaes do quadro de recursos humanos e, para

garantir o melhor uso dessa infraestrutura, melhoria do contato humano

presente em toda interveno de atendimento sade (BRASIL, 2001).

De acordo Matias (2012, p. 24), o fato do PNHAH enfocar

apenas hospitais, restringir-se dimenso assistencial e estar estruturado

como programa, sem um mtodo que avanasse efetivamente sobre as

causas associadas ao cenrio de esgotamento da sade, levou o MS a

extingui-lo em 2003.

Ainda em 2003, o MS decidiu fazer uma aposta na

humanizao como re-encantamento do SUS (PASCHE e PASSOS,

2008, p. 92). Benevides e Passos (2005a, p. 562) relatam que nesse

perodo iniciou-se no MS um debate envolvendo a priorizao do tema

da humanizao como aspecto fundamental a ser contemplado nas

polticas pblicas de sade. Os autores afirmam que nesse momento

houve uma tenso entre concepes diferentes, pois haviam escolhas

que priorizavam focos e resultados dos programas e outras que

problematizavam os processos de produo de sade e de sujeitos, no

plano mais amplo da alterao de modelos de ateno e de gesto.

Os debates foram construdos em torno das condies

precarizadas do trabalho, das dificuldades de pactuao das diferentes

esferas do SUS, do descuido e da falta de compromisso na assistncia ao

usurio dos servios de sade. O diagnstico feito com todas essas

discusses apenas ratificava a complexidade da tarefa de se construir de

modo eficaz um sistema pblico que garantisse acesso universal,

equnime e integral a todos os cidados brasileiros (BENEVIDES e

PASSOS, 2005a).

Assim, o PNHAH, a partir de 2003, cede lugar Poltica

Nacional de Humanizao da Ateno e Gesto do Sistema nico de

Sade (doravante PNH), tambm chamada de HumanizaSus, que passa a

incorporar alm dos hospitais, todos os outros nveis de ateno sade

do SUS. Conforme aponta Brasil (2004a), a partir desse momento, a

humanizao passa ser vista como uma das dimenses fundamentais

para a construo de uma Poltica de Qualificao do SUS, no podendo

ser compreendida apenas como um programa a mais a ser aplicado

aos diversos servios de sade, mas, sim, como uma poltica que opera

transversalmente em toda a rede SUS.

24

A humanizao como poltica pblica que transversaliza as

diferentes aes e instncias gestoras do SUS, implica em (1) traduzir os

princpios do SUS em modos de operar dos diferentes equipamentos e

sujeitos da rede de sade; (2) orientar as prticas de ateno e gesto do

SUS a partir da experincia concreta do trabalhador e usurio,

construindo um sentido positivo de humanizao, desidealizando o

homem; (3) construir trocas solidrias e comprometidas com a dupla

tarefa de produo de sade e produo de sujeitos; (4) destacar os

aspectos subjetivos das prticas de sade; (5) contagiar por atitudes e

aes humanizadoras, a rede do SUS, incluindo gestores, trabalhadores

da sade e usurios; (6) posicionar-se como poltica pblica nos limites

da mquina do Estado onde ela se encontra com os coletivos e as redes

sociais e nos limites dos Programas e reas do Ministrio da Sade,

entre este e outros Ministrios (BRASIL, 2012a).

Brasil (2004a, p. 06) afirma que

Devemos tomar cuidado para no banalizar o que

a proposio de uma Poltica de Humanizao traz

ao campo da sade, j que as iniciativas se

apresentam, em geral, de modo vago e associadas

a atitudes humanitrias, de carter filantrpico,

voluntrias e reveladoras de bondade, um favor,

portanto, e no um direito sade. Alm de tudo,

o alvo dessas aes , grande parte das vezes, o

usurio do sistema, que, em razo desse olhar,

permanece como um objeto de interveno do

saber do profissional. Raras vezes o trabalhador

includo e, mesmo quando o , fica como algum

que tambm ser humano(!) e merece ganhar

alguma ateno dos gestores.

De acordo com Benevides e Passos (2005b), a humanizao

dos servios de sade enfrenta alm de um desafio conceitual, um

grande desafio metodolgico a fim de ganhar a fora necessria que d

direo a um processo de mudana que possa responder aos justos

anseios dos usurios e trabalhadores da sade. Neste sentido, afirmam

que a PNH apenas se efetivar caso consiga sintonizar o que fazer

com o como fazer, o conceito com a prtica, o conhecimento com a

transformao da realidade.

25

Sobre isso, Rios (2009) afirma que, embora importantes, no

so necessariamente as aes consideradas humanizadoras que

determinam um carter humanizado ao servio como um todo, mas a

considerao aos princpios conceituais que definem a humanizao

como a base para toda e qualquer atividade. Portanto, o desafio criar

uma nova cultura de funcionamento institucional e de relacionamentos

na qual, cotidianamente, se faam presente os valores da humanizao.

Pasche e Passos (2008, p. 98), corroboram ao afirmar que melhor do

que envelhecer o HumanizaSUS poder se dissolver enquanto poltica

de Estado e de governo para se tornar um modo de fazer corporificado

nos trabalhadores e usurios.

Cada vez mais constatamos que a dimenso humana,

vivencial, psicolgica e cultural da doena, assim como os padres e as

variabilidades na comunicao verbal e no-verbal, precisam ser

considerados nas relaes entre o profissional da sade e o paciente

(GOURLART e CHIARI, 2010). Para isso, talvez o grande n ainda no

desatado tenha a ver com a necessidade de desenvolver nos profissionais

o interesse legtimo pelo paciente. Tarefa nada fcil nos tempos atuais,

em que prevalece o individualismo e o jeito narcsico de ser, inclusive

na prpria formao acadmica dos profissionais da sade (RIOS,

2009).

Percebe-se que os problemas que envolvem a efetivao da

humanizao dos servios de sade perpassam no apenas as questes

metodolgicas e gerenciais que, por si s, j demandam um enorme

esforo, mas tambm os aspectos que envolvem a formao acadmica

dos prprios profissionais que atuam na rea da sade. De acordo com

Gomes et al. (2011), a tendncia a uma formao predominantemente

tecnicista na rea de sade um dos aspectos que contribuiu para o

empobrecimento do vnculo humanstico da relao teraputica. Na

transio para uma medicina cientfica, a formao tornou-se cada vez

mais especializada e perdeu o carter pluralista.

Esse fato de grande relevncia, uma vez que um dos

aspectos que mais tem chamado ateno, quando da avaliao dos

servios, o despreparo dos profissionais e demais trabalhadores para

lidar com a dimenso subjetiva que toda prtica de sade supe (BRASIL, 2012a).

Diante do exposto, foram elaboradas as seguintes perguntas de

pesquisa: quais os problemas enfrentados pela PNH para sua

capilarizao nos diferentes territrios? Qual a compreenso e

26

experincia dos trabalhadores e gestores do SUS sobre as possibilidades e desafios da humanizao? As instituies formadoras

tm contribudo para a formao de profissionais de sade

comprometidos com a qualificao do SUS? Para responder essas perguntas, o projeto de pesquisa foi

configurado com o objetivo de analisar os avanos, paradoxos e desafios

da PNH na ateno e gesto dos servios de sade no discurso dos

consultores da PNH e dos trabalhadores e gestores do SUS do municpio

de Januria, localizado no Norte de Minas Gerais e, especificamente: (1)

identificar e analisar o entendimento e a experincia dos trabalhadores e

gestores do SUS do municpio de Januria MG sobre a humanizao e

a sua articulao na execuo da poltica de sade; (2) caracterizar o

cenrio sanitrio do municpio de Januria MG sob a tica dos

gestores e trabalhadores do SUS; (3) identificar e analisar os fatores

facilitadores e dificultadores da capilarizao da PNH nas prticas de

ateno, gesto e formao acadmica sob a tica dos Consultores da

poltica do MS e trabalhadores e gestores do SUS de Januria MG.

A hiptese inicial que existe um distanciamento dos

princpios e diretrizes da PNH e a realidade dos servios de sade do

SUS e que a racionalidade biomdica reforada pela formao tecnicista

dos profissionais de sade, alm da verticalizao das relaes e

tomadas de deciso, sejam fatores que contribuam para a dissonncia

entre a humanizao entendida pela PNH e a ateno e gesto no sentido

prtico dos servios pblicos de sade.

27

PERCURSO METODOLGICO

DESENHO DO ESTUDO

Para esta pesquisa foi utilizada uma abordagem qualitativa dos

dados, sendo o estudo de carter exploratrio-descritivo.

A abordagem qualitativa se justifica, pois, de acordo com

Denzin e Lincoln (2006), essa abordagem implica em uma nfase sobre

os processos e os significados que no so examinados ou medidos

experimentalmente em termos de quantidade, volume, intensidade ou

frequncia e ressalta a natureza socialmente construda da realidade.

Alm disso, Poupart et al.(2010) afirmam que a pesquisa

qualitativa contribui com a pesquisa social por proporcionar uma

renovao do olhar lanado sobre os problemas sociais e sobre os

mecanismos profissionais e institucionais de sua gesto. Visando a

modificao da percepo do problema e tambm da avaliao de

programas e servios, a pesquisa qualitativa pretende mudar tanto a

prtica quanto o seu modelo de gesto. Os autores consideram que mais

do que uma tcnica de coleta de dados, o procedimento qualitativo traz

um novo questionamento, permitindo reconceituar problemas sociais.

Sobre o carter exploratrio do estudo, Gil (1987) afirma que

o principal objetivo o desenvolvimento, esclarecimento e modificao

de ideias e conceitos, alm da formulao de problemas mais precisos

para estudos posteriores.

PARTICIPANTES DO ESTUDO

Os participantes da pesquisa foram:

1) Consultores da PNH.

De acordo com Mori e Oliveira (2009), os consultores so

profissionais contratados pelo MS/PNH e que so responsveis pelo

apoio institucional atravs da divulgao e sensibilizao para

implantao da PNH no SUS; divulgao, sensibilizao, formao e

capacitao de trabalhadores, gestores e usurios do SUS, para

28

implementao das diretrizes e dos dispositivos da PNH; construo de

interfaces com outras reas tcnicas do MS; participao de reunies

pautando a divulgao da PNH, dentre outras atividades.

Para a formao do grupo composto pelos consultores da PNH

foi utilizada uma amostragem no probabilstica em bola de neve ou

snowball. Este tipo de amostra composto por respondentes que

indicam outros respondentes potenciais para serem includos no estudo

(HAIR JR et al., 2008).

O convite para a participao da pesquisa foi enviado para o

endereo eletrnico de 18 consultores, sendo que apenas 10

responderam ao contato e aceitaram participar do estudo. As entrevistas

foram realizadas em local e horrio conforme a disponibilidade do

participante ou atravs de software que possibilitou a comunicao com

voz via internet.

Os consultores foram identificados ao longo deste trabalho

atravs da letra C seguida de nmeros de 1 a 10, como, por exemplo,

C1, C2... C10.

2) Trabalhadores do SUS e gestores de sade que atuam

em Januria/MG.

Januria localiza-se no Norte de Minas Gerais, na regio do

Mdio So Francisco, a 600 km da capital mineira, Belo Horizonte. De

acordo com o ltimo senso demogrfico realizado em 2010 pelo

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), a cidade possua

65.463 habitantes e estimou-se para 2014 um total de 68.065 habitantes,

sendo considerado o 3 municpio em populao geral do Norte de

Minas Gerais. Essa cidade foi escolhida pela facilidade de acesso da

pesquisadora, mas, sobretudo, pelo sistema de sade ser palco de

constantes crticas por parte da populao e dos profissionais de sade

devido, especialmente, a infraestrutura deficiente; a falta de

profissionais de sade, principalmente, mdicos; a relativa qualidade

dos servios oferecidos; alm de outros problemas perenes de ordem

poltica. Assim, a melhoria da sade torna-se sempre objeto de

campanha eleitoral, porm, at o momento, no conseguiu responder aos

anseios dos cidados januarenses.

Identificar o conhecimento dos trabalhadores e gestores do

SUS do municpio de Januria MG e, sobretudo, as suas experincias

com a humanizao foi uma forma de verificar como efetivamente a

Poltica Nacional de Humanizao tem influenciado ou no a

29

(re)organizao da ateno e gesto de sade do local e, tambm, avaliar

a interiorizao da PNH e assimilao desta por parte dos diferentes

atores que compe o sistema de sade.

Para a formao do grupo composto pelos trabalhadores do

SUS foi seguida a orientao de Minayo (2000) que afirma que o

critrio de escolha para uma amostragem na pesquisa qualitativa no o

numrico, sendo necessrio privilegiar os atores sociais que detm os

atributos que o pesquisador pretende conhecer, refletindo a totalidade

em suas mltiplas dimenses.

Para compor essa amostra, foram convidados trabalhadores do

SUS que atuam na Estratgia de Sade da Famlia do municpio de

Januria MG devido facilidade para acess-los e agendar as

entrevistas. Alm destes, foram convidados os gestores municipais de

sade. Esses participantes foram abordados discretamente em seus

locais de trabalho e conforme a sua adeso pesquisa, foram agendadas

as entrevistas em horrio e local conforme a sua disponibilidade.

Foram entrevistados 14 profissionais de sade, sendo 05

enfermeiros (identificado pela letra E seguido dos nmeros de 1 a 5); 06

Tcnicos em Enfermagem (identificados pela letra TE seguido dos

nmeros de 1 a 6); 03 Mdicos (identificados pela letra M seguido dos

nmeros de 1 a 3). Foram entrevistados tambm 03 gestores municipais

de sade (identificados pela letra G seguido dos nmeros de 1 a 3).

Durante essa etapa, tivemos a oportunidade de conversar com

um Conselheiro Municipal de Sade que se colocou a disposio para

colaborar com a pesquisa. Assim, tambm agendamos uma entrevista

com esse ator que ao longo do trabalho ser identificado pelas letras

CMS.

COLETA DE DADOS

Para a coleta de dados foi utilizada a entrevista semi-

estruturada. Para Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (2002) a entrevista

um importante instrumento para o tratamento de temas considerados

complexos e que dificilmente poderiam ser adequadamente investigados

atravs de questionrios, permitindo uma explorao em profundidade.

No que concerne entrevista semi-estruturada, Marconi e

Lakatos (2007) afirmam que o pesquisador tem liberdade para

desenvolver cada situao em qualquer direo que considere adequada.

Essa flexibilidade na conduo da entrevista importante para captao

de informaes que fogem do roteiro previamente pensado, mas que

30

demonstram um forte potencial para uma nova discusso, sem perder de

vista o objetivo pretendido pela pesquisa.

As entrevistas foram realizadas com 28 sujeitos do estudo, a

partir de um roteiro semi-estruturado (Apndice A). As entrevistas

foram realizadas individualmente e aps a autorizao do(a)

participante, foram gravadas na forma de udio, transcritas na ntegra e,

posteriormente, sero apagadas. De acordo com Gill (2002) uma boa

transcrio deve ser um registro to detalhado quanto possvel do

discurso que ser analisado. Ressalta que a transcrio no pode

simplesmente sintetizar a fala, nem deve ser limpada ou corrigida,

mas registradas literalmente, com todas as caractersticas possveis da

fala, uma vez que transcries detalhadas so fundamentais para no se

perder as caractersticas centrais da fala.

ANLISE DOS DADOS

Gomes (2009) afirma que em uma pesquisa qualitativa a

finalidade no contabilizar opinies e/ou participantes, mas,

principalmente, explorar essas opinies e representaes sociais sobre o

tema em investigao. Ainda orienta que na anlise e interpretao dos

dados necessrio caminhar tanto na direo do que homogneo

quanto no que diferencia dentro de um mesmo meio social, uma vez que

num grupo sempre haver pontos comuns, mas tambm uma diversidade

de opinies e crenas.

Para o tratamento dos dados gerados atravs das entrevistas

foi realizada a Anlise de Contedo (AC) proposta por Bardin (2011). A

autora define o terreno, o funcionamento e o objetivo da AC como:

Um conjunto de tcnicas de anlise das

comunicaes visando obter por procedimentos

sistemticos e objetivos de descrio do contedo

das mensagens indicadores (quantitativos ou no)

que permitam a inferncia de conhecimentos

relativos s condies de produo/recepo

(variveis inferidas) dessas mensagens

(BARDIN, 2011, p. 44).

A autora ainda destaca que o objetivo da AC inferir

conhecimentos sobre o emissor da mensagem ou sobre o seu meio a fim

31

de responder a dois tipos de problemas: o que levou determinado enunciado?; quais as consequncias que determinado enunciado vai

provavelmente provocar?. Assim, a AC busca encontrar outras

realidades por meio das mensagens.

As entrevistas foram analisadas conforme os parmetros

apresentados por Bardin (2011), sendo utilizados trs polos

cronolgicos sugeridos pela autora, que sero, a seguir, apresentados

sumariamente:

1 Pr-anlise: perodo de intuies que tem por objetivo

tornar operacionais e sistematizar as ideias iniciais a fim de conduzir um

esquema preciso de desenvolvimento das operaes sucessivas. Neste

polo cronolgico foram realizadas leituras flutuantes das transcries

das entrevistas realizadas e de documentos (corpus de anlise) que

forneciam informaes sobre os problemas levantados pelos sujeitos da

pesquisa, respeitando as regras da exaustividade, da representatividade,

da homogeneidade e de pertinncia. Posteriormente, foram feitas a

(re)formulao dos objetivos e hipteses do estudo.

2 Explorao do material: consiste na aplicao sistemtica

das decises tomadas. Neste polo, o texto das entrevistas e o material

coletado foram organizados em categorias e subcategorias para a anlise

temtica dos dados, conforme as caractersticas comuns das unidades de

registro.

3 Tratamento dos resultados, inferncia e interpretao: os

dados brutos so tratados de maneira a serem significativos e vlidos.

Neste polo, foram realizadas as inferncias e interpretao dos

resultados, com apoio de estudos relacionados ao tema, para identificar

os avanos e desafios da Poltica Nacional de Humanizao tanto a nvel

nacional quanto na circunscrio do municpio de Januria MG.

ASPECTOS TICOS

Este estudo foi aprovado pelo Comit de tica em Pesquisa

(CEP) das Faculdades Unidas do Norte de Minas (FUNORTE), em

conformidade com a Resoluo 196/96 do Conselho Nacional de Sade/MS, sob o parecer n 776.323 (ANEXO A). O projeto foi

apreciado pelo CEP da FUNORTE devido greve da UFSC em 2014 e,

consequentemente, a paralisao das atividades do CEP/UFSC. Assim,

optamos por submeter o projeto ao CEP/FUNORTE para garantir o

32

cumprimento do cronograma e, sobretudo, cumprir com os padres

ticos da pesquisa.

Todas as pessoas envolvidas neste estudo foram informadas sobre os

objetivos, metodologia, riscos, benefcios do estudo e confidencialidade

das informaes e, aps aceitarem participar da pesquisa, foram

convidadas a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

(TCLE) (APNDICE B).

33

CAPTULO I A HUMANIZAO COMO POLTICA

PBLICA: HISTRIA DE AVANOS E ENFRENTAMENTOS

1.1 TRAJETRIA HISTRICA DA HUMANIZAO DO

SUS

Embora a temtica da humanizao como uma poltica de

sade seja algo relativamente novo, a sua discusso tem despertado

grande interesse de trabalhadores de sade, de gestores, intelectuais,

polticos e pesquisadores no sentido de compreender e analisar a

humanizao dos servios de sade, e de desencadear aes concretas

neste sentido (PALHETA e COSTA, 2012). Os textos sobre o tema so

produzidos a partir dos mais diversos campos e agendas, como

programas polticos, conferncias e debates, jornadas, declaraes

internacionais, muitas vezes transformadas em leis ou diretrizes para a

ao na rea da sade (GURGEL e MOCHEL, 2007).

Diante dessa pluralidade de vozes, pretende-se aqui

contextualizar o surgimento da discusso da humanizao nas polticas

pblicas de sade no Brasil, tendo como momento de destaque a

Reforma Sanitria Brasileira ocorrida em 1988. Essa trajetria histrica

se faz importante, uma vez que nenhuma anlise poltica pode ser

competentemente realizada se desassociada do seu contexto

historicamente determinado (GURGEL e MOCHEL, 2007, p. 73).

Lima et al. (2005, p. 29) afirmam que

O papel das polticas de sade na formao das

noes de cidadania, na construo dos estados

nacionais e das burocracias pblicas e nas

mudanas nas relaes entre Estado e sociedade

tem sido crescentemente reconhecido. No Brasil,

pesquisas realizadas desde a dcada de 1980

apontam para o fato de as polticas, instituies e

ideias mobilizadas em torno desse tema serem

constitutivas da formao do Estado Nacional, dos

processos de extenso da cidadania e da

imaginao social.

34

Deslandes (2005) afirma que, no campo da medicina, o auge

da reflexo sobre a humanizao do atendimento ocorreu a partir da

dcada de 1970, perodo em que se observa um exerccio crtico e

autocrtico a respeito da racionalidade biomdica, da falta de

protagonismo dos pacientes, alm das possibilidades de iatrogenia da

prtica clnica. No Brasil, estas reflexes vo ser retomadas de forma

mais intensa no final da dcada de 1980, a partir dos amplos

movimentos de redemocratizao poltica, no esprito do movimento

sanitrio.

Atuando sobre forte presso do regime autoritrio, o

movimento sanitrio caracterizou-se como uma fora poltica construda

a partir da articulao de uma srie de propostas contestatrias ao

regime. Alm disso, foi, tambm, um instrumento de luta pela

democratizao do pas e pela racionalizao na organizao dos

servios de sade (ESCOREL et al., 2005). De acordo com Rodrigues e Santos (2011), as debilidades do modelo brasileiro de sade pblica

foram ficando claras para setores crescentes da populao que, no final

dos anos 1970, comeou a buscar uma soluo para os seus principais

problemas, como as dificuldades de acesso aos servios de sade e a

ausncia de polticas pblicas de promoo e preveno da sade.

Arretche (2005, p. 291) reitera que desde o final da dcada de

1970, o movimento sanitrio propunha uma reforma abrangente e de

orientao redistributiva e defendia a universalizao da cobertura, a

extenso dos programas preventivos e de ateno bsica populao de

baixa renda, o aumento do controle sobre os provedores privados e a

descentralizao.

De acordo com Lima et al. (2005), muito frequente nos

estudos sobre a gnese e os desafios do SUS, o legado com o qual a

implantao do projeto de Reforma Sanitria teve de lidar, como as

aes verticalizadas, a centralizao no governo federal, importncia do

setor privado na rea de assistncia mdico-hospitalar e a setorializao.

Ainda afirmam que essa herana no pode ser creditada unicamente

ditadura militar, mas tambm ao expressivo crescimento da medicina

privada, promovido pelas polticas de Estado naquele perodo.

O movimento sanitrio foi constitudo, principalmente, por

mdicos e intelectuais, e originado nos Departamentos de Medicina

Preventiva das faculdades de medicina (ESCOREL et al., 2005). Alm

desses, Guimares (2005) ainda destaca a virtuosa associao dos

usurios de sade, em particular o movimento sindical, dos

trabalhadores em sade, alm da representao poltica parlamentar de

todos esses segmentos. Tambm enfatiza o papel dos intelectuais

35

acadmicos, cuja participao no processo poltico de desenvolvimento

da reforma foi contemporneo e intimamente associado construo de

um campo especfico de prtica de interveno, de formao

profissional e de pesquisa denominado Sade Coletiva, bastante original em seu desenho e bem-sucedido em sua performance acadmica, em

termos nacionais.

Em 1978, Organizao Mundial de Sade (OMS) promoveu a

Conferncia Internacional sobre Ateno Primria de Sade, realizada

entre os dias 06 e 12 de setembro em Alma-Ata (Cazaquisto). Essa

conferncia representou um importante marco na sade mundial ao

ampliar o conceito de sade estado de completo bem-estar fsico,

mental e social, e no simplesmente a ausncia de doena ou

enfermidade , e enfatiz-la como um direito social direito humano

fundamental, e que a consecuo do mais alto nvel possvel de sade

a mais importante meta social mundial, cuja realizao requer a ao de

muitos outros setores sociais e econmicos, alm do setor sade

(DECLARAO ALMA-ATA, 1978).

O conceito de sade proposto em Alma Ata partia da crtica

de que o setor sade estava estruturado em torno da doena e das aes

voltadas para a sua cura, o que condicionava suas aes e servios a uma

viso estreita do processo sade-doena e a uma prtica cuja nfase era a

assistncia mdica exercida principalmente em unidades hospitalares

(RODRIGUES e SANTOS, 2011).

Em 1985, o regime militar chega ao fim e com o advento da

Nova Repblica, lideranas do movimento sanitrio assumem

efetivamente posies em postos-chave nas instituies responsveis

pela poltica de sade no pas. Com expresso desta nova realidade,

destaca-se a convocao, em 1986, da 8 Conferncia Nacional de Sade

(CNS), cujo presidente foi Srgio Arouca, ento presidente da Fundao

Oswaldo Cruz (ESCOREL et al., 2005). Esses autores ainda afirmam que foi na 8 CNS, entre 17 e 21

de maro de 1986, em Braslia, que se lanaram os princpios da

Reforma Sanitria. Rodrigues e Santos (2011) ressaltam que pela

primeira vez na histria houve a participao de representantes da

sociedade em uma CNS, e que o fato de ter ocorrido no auge do

processo de redemocratizao do pas foi decisivo tanto para amplitude

do evento que contou com mais de 4 mil participantes e mil delegados

eleitos por todo o pas quanto pelo forte tom poltico de suas decises.

Em 1988, conclui-se o processo constituinte e promulgada a

oitava Constituio do Brasil. A chamada Constituio Cidad foi um

marco fundamental na redefinio das prioridades da poltica do Estado

36

na rea da sade pblica (ESCOREL et al., 2005). No artigo 196 da Constituio Federal, a sade descrita como um direito de todos e

dever do Estado, garantido mediante polticas sociais e econmicas que

visem reduo do risco de doenas e de outros agravos e ao acesso

universal s aes e servios para sua promoo, proteo e

recuperao.

Com a promulgao da Constituio Cidad, o Sistema

nico de Sade foi institudo e, em 1990 foi criada a lei 8.080 que

regula as aes de promoo, proteo e recuperao da sade, alm da

organizao e funcionamento do sistema em todo o territrio nacional.

A lei 8.080 evidenciou a centralidade de uma concepo de

sade ampliada e complexificada proveniente dos debates do

movimento de reforma sanitria que vinha sendo difundido pelo pas

(JUSTO, 2010). Essa lei define como fatores determinantes e

condicionantes de sade, entre outros, a alimentao, a moradia, o

saneamento bsico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educao, o

transporte, o lazer e o acesso aos bens e servios essenciais (BRASIL,

1990).

Para que o Estado cumpra seu dever constitucional na sade

se estabeleceu, ento, que necessria a implementao de polticas

sociais e econmicas justas, que distribuam renda e dignifiquem a vida,

pois a sade resulta dos modos de vida, que definem a qualidade de

vida, que tanto melhor quanto maior for a capacidade da sociedade de

produzir regras em que prevaleam o interesse e o bem comum

(PASCHE, 2009).

Apesar da concepo alargada, no restrita aos aspectos

puramente biolgicos, Justo (2010) afirma que incorporar esse novo

conceito de sade ao cotidiano da gesto e das prticas de sade no

uma tarefa simples, pois esbarra em noes e prticas reducionistas que

marcaram a trajetria da ateno sanitria no pas.

Essa afirmao corroborada por Teixeira e Solla (2005) que

apontam que a reorientao do modelo de ateno sade no SUS

enfrenta, de fato, uma srie de obstculos, dando destaque a recriao

permanente das condies favorveis medicalizao da sade, sendo

este o ponto de partida para reflexo crtica sobre a crise do sistema. Em seu livro A expropriao da sade: nmesis da medicina,

Illich (1975) em suas crticas acerca da medicalizao da vida afirma

que o aparelho biomdico, atravs de sua mscara sanitria, transforma

o cidado em um produto no humano e a medicina, por sua vez, em

37

uma oficina de reparos e manuteno, destinada a conservar o homem

em funcionamento. Diante dessa tecnicidade do cuidado, a negligncia

passa a ser compreendida como um erro humano aleatrio, a

insensibilidade como um desinteresse cientfico e a incompetncia se

transforma em falta de equipamento especializado. Assim, a

despersonalizao do diagnstico e da teraputica transferiu as falhas do

campo tico para o mbito do problema tcnico (ILLICH, 1975, p. 37).

A lei 8.080/1990 definiu, entre outros, os seguintes princpios:

universalidade de acesso, integralidade da assistncia, preservao da

autonomia das pessoas, igualdade da assistncia em sade, participao

da comunidade e descentralizao poltico-administrativa. Sobre esse

ltimo, Arretche (2005, p. 291) afirma que a descentralizao no era

apenas um mecanismo para aumentar a eficincia da poltica. Era

tambm, e principalmente, uma estratgia para enfraquecer a influncia

dos provedores privados sobre o processo decisrio da poltica de

sade.

A afirmao de Arretche pode ser justificada pelo fato de,

ainda hoje, os prestadores hospitalares do nosso sistema nacional de

sade serem predominantemente privados, sendo o Estado proprietrio

da maior parte das instalaes ambulatoriais (UG e MARQUES,

2005). Essas autoras ainda apontam que, em grande medida, a expanso

do setor privado foi promovida pelo prprio pas na dcada de 1970, no

mbito da Previdncia Social.

Em 1994, o MS criou o Programa de Sade da Famlia (PSF)

que reorganiza a modelo assistencial e reafirma os princpios do SUS.

Gurgel e Mochel (2007, p. 85) cita a criao do PSF como uma

proposta de Humanizao do Programa de Sade da Famlia, cujo

enfoque tem sido o de uma ateno integral voltada para o indivduo e a

famlia, surgida a partir da consolidao do discurso sobre a

humanizao do parto e expanso da forma simblica de uma

humanizao na sade em geral baseada no cuidado.

Brasil (2012b) afirma que a Ateno Bsica deve ser o contato

preferencial do usurio e a principal porta de entrada para os demais

servios que compem a rede de sade. Assim, fundamental que ela

se oriente pelos princpios da universalidade, da acessibilidade, do

vnculo, da continuidade do cuidado, da integralidade da ateno, da

responsabilizao, da humanizao, da equidade e da participao

social (BRASIL, 2012b, p. 09). Apesar dos avanos que essa estratgia

proporcionou ao sistema de sade brasileiro, Teixeira e Solla (2005, p.

465) fazem um importante apontamento:

38

Um dos resultados indesejados desse processo

vem sendo o aumento da demanda por servios de

mdia e alta complexidade, decorrentes da

extenso de cobertura da Ateno Bsica, sem que

ao mesmo tempo se verifique um aumento da

resolutividade desse nvel de ateno.

Principalmente nos municpios de pequeno porte

que constituem a imensa maioria dos municpios

brasileiros , a implantao da Sade da Famlia,

ainda que represente a garantia do direito

constitucional do acesso a servios de sade, no

se fez acompanhar de impacto positivo sobre as

condies de sade da populao como um todo,

concentrando, na maioria das vezes, os efeitos

positivos sobre alguns indicadores de sade como

o caso da mortalidade infantil.

Bahia (2005) afirma que apesar de ser consenso entre os

estudiosos que o direito universal sade representa uma ruptura com as

formas pretritas de organizao da poltica de sade no Brasil, o SUS

ainda considerado por uma grande parcela dos profissionais de sade,

rgos de imprensa, determinadas autoridades governamentais,

empresrios e sindicalistas como um sistema para os pobres. Ainda

afirma que a soluo aparentemente realista e eficaz para acomodar as

tenses tem sido encarada pelos otimistas como uma etapa em processo

de amadurecimento que evoluir para a conformao de um sistema

nico e pelos pessimistas como demonstrao cabal da ineficincia do

pblico e imprescindibilidade do mercado. Ambas as interpretaes

supem a impossibilidade de uma universalizao, em curto prazo, e, de

certo modo, admitem uma complementariedade harmoniosa entre

sistemas diferenciados pelo status econmico das demandas (BAHIA,

2005, p. 410).

Teixeira e Solla (2005, p. 470) ressaltam que

(...) apesar dos esforos realizados e dos avanos

alcanados, a mudana operada na organizao

dos servios e no perfil das prticas de sade

apenas arranha a superfcie do modelo

hegemnico. Desse modo, apesar do aumento

extraordinrio na produo de servios bsicos,

cabe reconhecer que, no geral, o perfil de ofertas

de servio revela a reproduo, em escala

39

ampliada, do modelo mdico, assistencial,

hospitalocntrico. E ainda que isso evidencie o

atendimento de uma demanda reprimida

historicamente pela insuficincia e ineficincia do

sistema pblico, do ponto de vista de cobertura,

acessibilidade, integrao sistmica e de qualidade

de ateno, expressando a garantia de um direito

conquistado, tambm evidencia o quo distante

ainda se est de um sistema de servios de sade

que opere segundo a lgica da interveno sobre

determinantes, riscos e danos, nesta ordem de

prioridades, e no contrrio, como continua a

acontecer.

Diante desse desafio, nas duas ltimas dcadas, um conjunto

de medidas tem sido adotado na perspectiva de promover mudanas no

modelo de ateno sade no Brasil. Tais medidas passam pela

introduo de alteraes em diversas esferas do campo da sade,

passando pelo processo formador e de capacitao dos profissionais da

rea, pelas formas e mecanismos de financiamento e gesto setorial e

ainda pela adoo de polticas e programas voltados reviso da

produo do cuidado em sade na busca da integralidade. E nesse

contexto que ganha destaque a PNH (JUSTO, 2010).

1.2 O SURGIMENTO DA HUMANIZAO COMO

POLTICA PBLICA

Hodiernamente, a sade tem sido tema de debate nos mais

diversos setores da populao brasileira. A mdia aponta frequentemente

ora as mazelas dos servios, a lotao dos hospitais, o preo dos planos

de sade; ora as inovaes tecnolgicas, os milagres da Medicina. Em

meio a todo esse debate, uma ampla parcela da populao queixa-se da

falta de cuidado com que tem sido tratada nos servios de sade

(BARROS e GOMES, 2011).

Souza e Moreira (2008, p. 329) afirmam que no setor da

sade, a humanizao resgata ideias muito caras a uma poltica que

entende a sade como um direito e como cidadania. Ainda atestam que

a ideia ou a necessidade de se humanizar algum aspecto da vida social

40

no algo novo no campo das prticas sociais, nem muito menos

simples, pois comporta a necessidade de se colocarem em dilogo

reflexes conceituais, vivncias, crenas/saberes populares e a

cidadania, ampliando o campo de debate das polticas pblicas.

No Brasil, o caminho da humanizao como poltica pblica

de sade, iniciou-se quando, conforme aponta Ghellere (2004) apud

Gurgel e Mochel (2007), o ento Ministro da Sade, Jos Serra, em

parceria com o Conselho Nacional de Secretrios de Sade,

encomendou uma pesquisa para mensurar o grau de satisfao dos

usurios do SUS e o resultado apontou que as queixas mais frequentes

dos usurios se referiam aos maus tratos sofridos no atendimento em

hospitais.

Sobre isso, Merhy (2003) assegura que, do ponto de vista do

usurio, possvel afirmar que este no reclama da falta de

conhecimento tecnolgico no atendimento, mas, sim, da falta de

interesse e de responsabilizao dos diferentes servios em torno de si e

do seu problema. Assim, os usurios se sentem inseguros,

desinformados, desamparados, desprotegidos, desrespeitados,

desprezados (MERHY, 2003, p. 82).

Percebe-se, portanto, que os avanos tecnocientficos no

foram acompanhados pela humanizao dos servios pblicos de sade

e nem tampouco foram suficientes para qualific-los por completo, uma

vez que no so capazes de suplantar as questes ticas e relacionais que

permeiam a relao profissional de sade-usurio, gerando um grande

descontentamento.

Alguns consultores da PNH que foram entrevistados

descreveram o cenrio sanitrio que desencadeou o incio da discusso

da humanizao como uma estratgia de reorganizao do modelo de

sade vigente no Brasil:

O tema da humanizao tem um apelo social muito grande e

pelo diagnstico que, de fato, no existia um conjunto de proposies no

SUS que pautasse a centralidade dos sujeitos nos processos de ateno e de

gesto. (...) Ela nasce por uma conjuntura de fatores. multifatorial assim.

No uma coisa que se arranja num gabinete (C1).

Ento, ela (a PNH) tomada a partir do momento e muito

tambm em funo de toda uma percepo de que o SUS apesar de ser um

processo em construo, percebia-se a necessidade de qualificar a

41

assistncia, de mudar tanto o modelo de ateno quanto o modelo de

gesto (C2).

(...) a humanizao vem no momento que socialmente eu

considero que a gente j tinha uma caminhada no Sistema nico de Sade

e a gente estava se dando conta e comeando a produzir todo um saber de

como que a gente no estava conseguindo muito fazer funcionar a lei

orgnica do SUS. Porque a forma de ateno, ela no receitava, por

exemplo, um conceito de sade ampliado, como a gente tem um conceito de

sade que o SUS usa e lindo, um conceito amplo, da integralidade. A

somatria das diretrizes no estava dando um resultado que a gente queria.

(...) Ento ela [a PNH] comea por um movimento assim, a gente percebe

que tem muita fila nos hospitais, ento comea ter aquele discurso ah, isso

desumano, gente precisa humanizar o servio, no humano isso que

a gente vive, as violncias institucionais. Ento muito pra combater as

violncias institucionais que ela surge (C7).

O cenrio era de muita avaliao do SUS. (...) E a tem

algumas anlises de que a partir do momento que o SUS torna uma lei

institucional, numa conquista, numa poltica pblica... esse movimento da

Reforma [Reforma Sanitria] que era um movimento instituinte muito forte,

ele acaba perdendo... vai perdendo a fora que uma coisa at natural,

entre aspas, dos movimentos. A partir do momento que ele se transforma

em institudo, n, ele perde um pouco essa fora de mudana, de instituinte (C10).

Sobre essa perda do carter instituinte dado ao SUS

mencionado por C10, Benevides e Passos (2005a) afirmam que o fato

de o SUS ter se constitudo como texto legal e alcanado a dimenso de

direito, no pode esgotar o que na experincia concreta se d como

movimento constituinte e contnuo de reinveno do SUS. necessrio

o trabalho constante de produo de outros modos de vida e de outros

modos de produo de sade e este trabalho somente possvel quando

nos organizamos coletivamente em movimentos de resistncia ao j

dado, como assistimos outrora no processo constituinte do SUS.

Para enfrentar esses problemas destacados pelos consultores entrevistados e demais autores, foi formado um Comit Tcnico que

tinha como a incumbncia criar uma proposta de trabalho para a

humanizao dos servios hospitalares pblicos de sade. De acordo

com Brasil (2001), esse comit, formado por profissionais da rea de

sade mental, apresentou em maio de 2000 a proposta de um Programa

42

Nacional de Humanizao da Assistncia Hospitalar, com o objetivo de promover uma mudana de cultura no atendimento de sade no Brasil.

Antes [da PNH] j existia o PNHAH, esse programa vem

trabalhando com vrias iniciativas de remodulao do espao hospitalar,

discusso sobre ambincia, discusso sobre as prticas clnicas e de gesto

que acontecem dentro do hospital (C3). Como programa, ele ainda

ficava restrito e, de certa forma, reproduzindo a fragmentao que a gente

sabe que a sade tem a, n! (C9).

Na apresentao do documento lanado pelo MS com as

propostas e aes do PNHAH em 2001, Jos Serra revela que os

resultados de pesquisas de avaliao [dos servios de sade]

demonstraram que a qualidade da ateno ao usurio uma das questes

mais crticas do sistema de sade brasileiro e que, a forma do

atendimento, a capacidade demonstrada pelos profissionais de sade

para compreender suas demandas e suas expectativas so fatores que

chegam a ser mais valorizados que a falta de mdicos, a falta de espao

nos hospitais, a falta de medicamentos (BRASIL, 2001, p. 05).

Diante dessa tela, os principais objetivos do PNHAH foram

melhorar a qualidade e a eficcia da ateno dispensada aos usurios dos

hospitais pblicos no Brasil; capacitar os profissionais dos hospitais para

um novo conceito de assistncia sade que valorize a vida humana e a

cidadania; desenvolver um conjunto de indicadores de resultados e

sistema de incentivos ao tratamento humanizado e modernizar as

relaes de trabalho no mbito dos hospitais pblicos, tornando as

instituies mais harmnicas e solidrias, de modo a recuperar a

imagem pblica dessas instituies (BRASIL, 2001).

Benevides e Passos (2005a) apontam que o carter

fragmentado dos programas de humanizao devido no s a sua baixa

horizontalidade, mas tambm a forma vertical como se organizavam no

MS e no SUS, e a prpria banalizao do tema demandaram a

necessidade de uma redefinio do conceito de humanizao, bem como

dos modos de construo de uma poltica pblica e transversal de

humanizao da sade. E foi diante desse quadro que a Secretaria

Executiva do Ministrio da Sade props a criao da PNH.

Vale destacar que entre os anos 1999 e 2002, alm do

PNHAH, outras aes e programas tambm foram propostos pelo MS

voltados para o que ia se definindo como campo da humanizao,

43

dentre eles: Carta ao Usurio (1999), Programa Nacional de Avaliao dos Servios Hospitalares PNASH (1999); Programa de Acreditao

Hospitalar (2001); Programa Centros Colaboradores para a Qualidade

e Assistncia Hospitalar (2000); Programa de Modernizao Gerencial dos Grandes Estabelecimentos de Sade (1999); Programa de

Humanizao no Pr-Natal e Nascimento (2000); Norma de Ateno

Humanizada de Recm-Nascido de Baixo Peso Mtodo Canguru (2000).

Ainda que a palavra humanizao no aparea em todos

esses programas e que haja diferentes intenes e focos, podemos

acompanhar uma tnue relao que vai se estabelecendo entre

humanizao-qualidade na ateno-satisfao do usurio. Essas

iniciativas encontravam um cenrio ambguo, em que a humanizao era

reivindicada por usurios e alguns profissionais, mas no contava com o

apoio integral de grande parte dos gestores (BENEVIDES e PASSOS,

2005b). Aqui vale destacar que esse cenrio ambguo ainda se faz sentir

atualmente. Ao longo do tempo houve conquistas preciosas, contudo,

ainda no suficiente para reverter uma lgica de gesto centralizadora e

a cultura biomdica das instituies de sade.

Um acontecimento que tambm merece destaque a 11

Conferncia Nacional de Sade realizada entre 15 e 19 de dezembro de

2000 que tinha como temtica Efetivando o SUS: Acesso, Qualidade e

Humanizao na Ateno Sade com Controle Social. Justo (2010) afirma que as discusses que surgiram dessa conferncia, ainda que

timidamente, lanaram luz importante discusso acerca da

humanizao no cuidado.

Foi em 2003, com a posse do presidente Lus Incio Lula da

Silva (doravante Lula) que a discusso da humanizao como poltica

pblica se iniciou. Como menciona C6 (...) Em 2003 com a vinda, com

a mudana, com a entrada do PT e todo um contexto poltico, com a

vinda do Gasto Wagner para Secretaria Executiva aqui dentro do

Ministrio (da Sade), tem um momento propcio pra desenhar e

implementar a PNH. C1 tambm destaca esse momento poltico:

Ele [referindo-se a Lula] chama, monta uma estrutura de

governo diferente que vinham montando at ento e nessa leva vem alguns

pensadores que se alinham com a ideia do PT e nesse alinhamento com a

proposta do PT vem ento o ministro da sade Humberto Costa, e o Gasto

Campos entra na Secretaria Executiva e a vai tendo desdobramentos

polticos e uma ideia de transformar o Ministrio [da Sade] em algo que

44

desse a ideia de colegiado gestor que no fossem decises tomadas por uma

ou outra pessoa e sim tomadas coletivamente.

Sobre isso, C3 menciona que (...) a PNH surge pra

fortalecer o prprio SUS, pra questionar tanto os modelos de gesto pra dentro da mquina estatal, poder interferir atravs das ofertas de apoio

institucional e tambm transformar as realidades de clnica e gesto

nos prprios territrios. Assim, ainda em 2003, C4 menciona que a Regina Benevides

convidada pelo Gasto Campos para integrar o MS. Eles pensam a Poltica Nacional de Humanizao enquanto um salto do PNHAH pra

uma poltica de humanizao que amplia a ateno, o campo da

humanizao, no s pro campo da ateno hospitalar, mas pra toda a Rede SUS (C4).

De fato, Benevides e Passos (2005a) afirmam que no incio de

2003 enfrentaram um debate no MS defendendo a priorizao da

humanizao como aspecto fundamental a ser contemplado nas polticas

pblicas de sade. Para isso, fora necessrio enfrentar a tarefa de

redefinio do conceito de humanizao, bem como dos modos de

construo de uma poltica pblica e transversal de humanizao na/da

sade.

C10 destaca a importncia de Gasto Wagner de Sousa

Campos (doravante Campos) na elaborao da PNH: (...) O Gasto uma das referncias da PNH, referncia-guia, vamos dizer assim, todas

as diretrizes, toda essa discusso da cogesto, do mtodo da roda, tudo

isso vem do Gasto, que a PNH toma e procura reelaborar e ressignificar trazendo a pra poltica. C6 tambm fez uma deferncia a

Campos um dos inspiradores da poltica.

Campos (2000) critica a gerncia de moldes tayloristas que

naturaliza a dominao e cria um abismo entre dirigentes e executores.

A democratizao institucional e o fortalecimento de sujeitos e coletivos

seriam considerado um Mtodo anti-taylor que inicialmente foi

chamado por Campos de Mtodo Paidia (palavra de origem grega

que traz a ideia de formao integral do ser humano), contudo, de

acordo com o autor, a palavra no colou muito bem, sendo

posteriormente denominado Mtodo da Roda inspirado na roda que os pedagogos construtivistas iniciam o dia de trabalho na escola e tambm

na roda de samba, de candombl e da ciranda em que cada um entra com

sua disposio e habilidade sem desrespeitar o ritmo do coletivo.

O Mtodo da Roda uma tecnologia muito utilizada na PNH,

uma vez que, conforme aponta Campos (2000), a roda um espao

45

democrtico, um modo para operacionalizar a cogesto atravs da

construo de espaos coletivos. (...) mais do que anti-taylorista, o

Mtodo da Roda pensa novos modos para analisar e operar Coletivos

Organizados para a Produo. Reconstruir os arranjos estruturais, as

linhas de produo de subjetividade e os mtodos de gesto

(CAMPOS, 2000, p. 43).

Campos e a sua equipe formulam o documento-base da PNH e

trazem uma discusso filosfica, tica e poltica do humano concreto

com o objetivo de buscar alternativas mais humanas, mais humanizadoras, mais humanizantes das relaes e dos processos... das

relaes no trabalho que vai desembocar ento nessas prticas do

SUS, como afirma a consultora entrevistada, C10.

O documento-base para gestores e trabalhadores do SUS

aponta que a PNH, como movimento de mudana dos modelos de

ateno e gesto, possui 03 princpios a partir dos quais se desdobra

enquanto poltica pblica de sade, a saber:

1- Transversalidade: que compreende o grau de comunicao intra e intergrupos, e a transformao dos modos de relao e de

comunicao entre os sujeitos implicados nos processos de produo de

sade, produzindo como efeito a desestabilizao das fronteiras dos

saberes, dos territrios de poder e modos institudos na constituio das

relaes de trabalho.

2- Indissociabilidade entre ateno e gesto: compreende a alterao dos modos de cuidar inseparvel da alterao dos modos de

gerir e se apropriar do trabalho; inseparabilidade entre clnica e poltica,

entre produo de sade e produo de sujeitos; integralidade do

cuidado e integrao dos processos de trabalho.

3- Protagonismo, corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e dos coletivos: enfatiza que trabalhar implica na produo de si

e na produo do mundo, das diferentes realidades sociais, ou seja,

econmicas, polticas, institucionais e culturais, e que as mudanas na

gesto e na ateno ganham maior efetividade quando produzidas pela

afirmao da autonomia dos sujeitos envolvidos, que contratam entre si responsabilidades compartilhadas nos processos de gerir e cuidar.

Sobre esses princpios, Benevides e Passos (2005b, p. 392)

apontam que a humanizao enquanto poltica pblica de sade se

46

constri com as direes da inseparabilidade entre ateno e gesto e da

transversalidade e que essas direes indicam o como fazer da poltica

e se caracterizam como tecnologias relacionais. Observam ainda que

a partir da transformao dos modos de os sujeitos entrarem em

relao, formando coletivos, que as prticas de sade podem

efetivamente ser alteradas.

Como diretrizes, a PNH oferta a clnica ampliada; a cogesto

contrapondo-se ao modelo de gesto hegemnico; o acolhimento; a

valorizao do trabalho e do trabalhador; defesa dos direitos do usurio;

fomento das grupalidades, coletivos e redes; e a construo da memria

do SUS que d certo (BRASIL, 2012a).

Essas diretrizes se atualizam atravs de dispositivos que so

postos a funcionar nas prticas de produo de sade, envolvendo

coletivos e visando promover mudanas nos modelos de ateno e

gesto, sendo os principais: o Colegiado Gestor; o Grupo de Trabalho de

Humanizao (GTH), Cmara Tcnica de Humanizao e Coletivos

Ampliados; Contrato de Gesto; Sistemas de escuta qualificada para

usurios e trabalhadores, como ouvidorias, grupos focais, dentre outros;

Visita Aberta e Direito Acompanhante; Programa de Formao em

Sade do Trabalhador (PFST); Comunidade Ampliada de Pesquisa

(CAP); Acolhimento com Classificao de Risco; Projeto Teraputico

Singular, dentre outros (BRASIL, 2012a).

Como poltica pblica, a humanizao reafirma princpios

outrora apresentados na Lei Orgnica de Sade, a lei 8080. Tal fato

confirmado por C3 que menciona que se voc pegar o documento-base

da poltica, pelo modo como ele foi escrito e o que ele est se propondo a fazer, que seria a nossa carta de apresentao pra sociedade civil, a

PNH quer efetivar, de fato, os princpios e diretrizes do SUS.

Santos-Filho (2007) corrobora com essa perspectiva ao

afirmar que a proposta da PNH coincide com os prprios princpios do

SUS, enfatizando a necessidade de assegurar ateno integral

populao e estratgias de ampliar a condio de direitos e de cidadania

das pessoas. Tal fato reiterado por Gurgel e Mochel (2007) que

asseguram que as causas polticas que aceleraram a elaborao da PNH

esto associadas ao processo de discusso por direitos na assistncia sade e luta pela garantia dos direitos sociais em geral, atravs do

processo que levou Constituio Federal de 1988 e que dela decorre.

Se h uma consonncia entre os princpios do SUS e da PNH,

o que leva a acreditar que uma ratificao de princpios pode construir

47

um SUS humanizado? Mais ainda, como uma poltica, apesar dos seus

dispositivos, pode incutir em gestores e trabalhadores dos servios

pblicos de sade uma perspectiva de humanizao de gesto e ateno

visando a um SUS que d certo? A essas indagaes, acrescenta-se a

que foi feita por Benevides e Passos (2005b, p. 392):

(...) qual o sentido de uma poltica de

humanizao que no se confunda com um

princpio do SUS, o que a tornaria ampla e

genrica, nem abstrata porque fora das

singularidades da experincia, nem que aceite a

compartimentalizao, mas que se afirme como

poltica comum e concreta nas prticas de sade?

De acordo com C2 (...) Quando se sistematiza essa poltica

[a PNH], vamos dizer assim, ela parte de experincias do SUS que j vem dando certo, n. (...) Ela no nasce do nada, vamos dizer assim, ela

nasce a partir de experincias que so vivenciadas. C7 menciona que:

(...) tem vrios lugares que a Poltica de Humanizao j

conseguiu estar prxima da equipe, dos estados, pra discutir plano de

carreira, pra pensar na organizao da instituio respeitando os direitos

dos trabalhadores. Isso fazer o SUS funcionar! (...) Eu acho que isso

uma conquista! Tem PNH no hospital, tem PNH na Unidade Bsica, ento

tem poltica a espalhada por muita coisa que, sim, a gente consegue

reafirmar [refere-se reafirmao dos princpios do SUS atravs da PNH].

Essas experincias falam da factibilidade da PNH, porm a

realidade do sistema de sade brasileiro revela a limitao de sua

extensividade. bvio que no podemos negar as experincias do SUS

que d certo, contudo o que se espera que essas experincias sejam,

na verdade, uma realidade social que faa valer a sade como direito de

todos e dever do Estado, conforme se apresenta no artigo 196 da

Constituio Federal de 1988.

Justo (2010) ressalta que as iniciativas de reorientao das

prticas em sade na busca por uma ateno integral, mais horizontal e

que contemple a complexidade das dimenses biolgicas, sociais e

subjetivas no cuidado em sade, de fato, no so simples de serem

operadas. Alm disso, afirma que alguns dos primeiros desafios que

podem ser apontados para operacionalizao das propostas de um

cuidado humanizado se referem banalizao e fragilidade do tema da

48

humanizao e fragmentao das prticas ligadas a diferentes

programas de humanizao.

Sobre a fragmentao das prticas de humanizao citada por

Justo, Brasil (2012c, p. 04) afirma que a PNH no um mero conjunto

de propostas abstratas que esperamos poder tornar concreto. Ao

contrrio, partimos do SUS que d certo. Assim, com a inteno de

disseminar os diferentes dispositivos que operam o HumanizaSUS e o tornam uma experincia concreta, surgem as cartilhas e cadernos do

HumanizaSUS. Elaboramos um quadro (Quadro 1) para apresentar essas diferentes cartilhas e cadernos que foram lanados a partir de 2004 cujo

intuito disseminar algumas tecnologias de humanizao da ateno e

da gesto no campo de sade (BRASIL, 2012c, p. 04).

49

Quadro 1 - Documentos oficiais lanados pelo Ncleo Tcnico da PNH

Ano de

Publicao

Documento

2004 Acolhimento com avaliao e classificao de

risco: um paradigma tico-esttico no fazer em

sade

2004 Acolhimento nas prticas de produo de sade

2004 Grupo de Trabalho de Humanizao

2004 Gesto e formao nos processos de trabalho

2004 Visita aberta e direito a acompanhante

2006 Ambincia

2009 Gesto participativa e cogesto

2009 Acolhimento e classificao de risco nos servios

de urgncia

2009 Clnica ampliada e compartilhada

2009 Gesto participativa e cogesto

2009 O HumanizaSUS na Ateno Bsica

2009 Redes de produo de sade

2009 Trabalho e redes de sade

2010 Cadernos HumanizaSUS, volume 1 Formao

e Interveno

2010 Cadernos HumanizaSUS, volume 2 Ateno

Bsica

2011 Cadernos HumanizaSUS, volume 3 Ateno

Hospitalar

2011 Sade e Trabalho

2014 Cadernos HumanizaSUS, volume 4 Humanizao do parto e do nascimento

s/d Monitoramento e Avaliao na Poltica Nacional

de Humanizao na Ateno Bsica e Hospitalar

50

Cuidar e gerir os processos de trabalho em sade compem

uma s realidade e no h como mudar os modos de atender a populao

num servio de sade sem que se alterem tambm a organizao dos

processos de trabalho, a dinmica de interao da equipe, os

mecanismos de planejamento, de deciso, de avaliao e de

participao, sendo portanto necessrios arranjos e dispositivos que

interfiram nas formas de relacionamentos e nas diferentes esferas do

sistema (BENEVIDES e PASSOS, 2005b).

Sobre isso, C3 aponta que a PNH tambm foi pensada para

mudar as formas de gesto dentro do prprio MS:

(...) a PNH chega ali dentro [do Ministrio da Sade] para

tambm pensar os espaos de cogesto, pra poder pensar a coletivizao

das formas de fazer poltica pblica dentro da prpria Secretaria de

Ateno Sade, dentro do prprio Ministrio [da Sade], porque

inicialmente a PNH chega e fica dentro da Secretaria Executiva do

Ministrio da Sade, que uma secretaria de gesto de todo o Ministrio

da Sade e ela chega muito por lei dura, por uma demanda, n, de dentro

do prprio Ministrio da Sade de que era preciso reverter algumas

prticas de gesto que estavam muito centradas dento do prprio gabinete,

de onde se tomavam as decises. E reas de gabinete elas sempre

reproduzem o funcionamento de reas tcnicas, que onde voc define

como se dar o modelo de ateno e a voc comea a repassar esse seu

modelo para estados e municpios, n! De alguma forma o Ministrio [da

Sade] pensou que isso precisava ser melhor capilarizado, mais

descentralizado, fortalecendo a autonomia dos prprios estados e

municpios, trabalhar de forma mais cogerida, trabalhar utilizando melhor,

de fato, os mecanismos de cogesto j institudos pelo SUS.

Santos-Filho et al. (2009) chamam a ateno que os servios

de sade no devem pautar-se em uma idealizao de um modo

harmnico de trabalho, que se efetiva a partir de perspectivas abstratas,

descoladas do que se vive efetivamente no dia-a-dia dos servios, mas,

sim, de pr em anlise o prprio trabalho, fazendo isso nos espaos

coletivos com a incluso dos trabalhadores, gestores e usurios. Trata-

se, portanto, de tomar o plano de produo dos servios e sujeitos como

um plano estratgico, uma vez que o processo de trabalho tambm um processo de constituio de sujeitos.

Percebe-se, portanto, que o que se produz neste processo so,

a um s tempo, a sade e os sujeitos a implicados. A humanizao do

SUS como processo de subjetivao se efetiva atravs da alterao dos

51

modelos de ateno e de gesto em sade, ou seja, atravs de novos

sujeitos implicados em novas prticas de sade. Assim, pensar a

sade como experincia de criao de si e de modos de viver tomar a

vida em seu movimento de produo de normas e no de assujeitamento

a elas (BENEVIDES e PASSOS, 2005a, p 570).

1.3 HUMANIZAO COMO UM PROBLEMA

CONCEITUAL: MOVIMENTO DE MUDANA DE MODELOS x CONCEPO ROMNTICA

De acordo com Benevides e Passos (2005b), para ganhar a

fora necessria que d direo a um processo de mudana que possa

responder aos justos anseios dos usurios e trabalhadores da sade, a

humanizao impe o enfrentamento de dois desafios: conceitual e

metodolgico. Os autores apontam que, do ponto de vista conceitual, a

concentrao temtica aponta certo modismo que padroniza as aes e

repete formas de funcionar de maneira sintomtica, a isso denominam

conceito-sintoma. Assim, no lugar de propor mudanas das prticas de

sade, essa noo paralisa e reproduz sentidos estabilizados, sendo

necessrio, portanto, forar os limites do conceito resistindo ao seu

sentido institudo.

Essa concepo muito aberta do que humanizao permite

que coexistam nos servios de sade uma diversidade de conceitos que

nem sempre vo ao encontro da humanizao pretendida pela PNH.

Como menciona C4 esse conceito de humanizao ele muito

polissmico (...) naturalmente polissmico.

Gurgel e Mochel (2007, p.72) afirmam que o significado de

humanizao, tanto a nvel conceitual quanto de formulao de

polticas pblicas, no homogneo, mas pautado por disputas e

negociaes. De fato, Deslandes e Mitre (2009) apontam que o

conceito de humanizao conta com um acmulo de representaes no

campo de sade. Primeiramente, foi entendido, por muitos atores

envolvidos no processo de sade, como uma possvel acusao

unilateral e culpabilizante de maus-tratos ao usurio; a seguir, o conceito

ultrapassou a noo de caritas e, hoje, possvel dizer que j enfrenta certo processo de banalizao dos desafios que ele anuncia.

Deslandes (2004, p. 08) afirma que questionamentos como o

que designa humanizar?, subentende-se que a prtica em sade era

52

(des)humanizada ou no era feita por e para humanos? revelam o grau

de estranhamento que este conceito ainda provoca em tempos hodiernos.

Nesse mbito, Heckert et al. (2009) alerta que a PNH no pretende ter o

monoplio e a exclusividade de imprimir o sentido verdadeiro

humanizao, mas, apenas, construir mais um sentido, visando ao

redimensionamento de um modo naturalizado de concepo do humano,

alm de abrir novas possibilidades para o debate sobre essa questo.

Sobre a ideia da humanizao como uma estratgia de

humanizar o homem ou enquadr-lo em um determinado padro, C2

elucida que (...) na Poltica Nacional de Humanizao a gente fala da

humanizao dos processos, das prticas da ateno e da gesto em sade. Ento quando a gente fala da humanizao, a gente no fala da

humanizao das pessoas, a gente fala da humanizao de prticas.

De acordo com Santos Filho et al. (2009), a PNH procura resistir ao que se concebe como homem ideal, uma vez que a

humanizao no um processo que visa a aproximar os diferentes

sujeitos de um determinado modelo padro. A humanizao est voltada

para homens e mulheres comuns que compem o SUS e produzem o

cotidiano dos servios de sade. no encontro entre estes sujeitos

concretos, situados, que a poltica de humanizao se constri. C8

tambm se expressa nesse sentido

(...) ento humanizar no voc achar que existem pessoas mais

ou menos humanas, mas que existem prticas desumanas. (...) o humano

que a PNH prope no um homem ideal, mas incluir toda diversidade,

toda diferena, toda singularidade que compe o humano, n! Ento o

humano a um humano necessariamente diferente um do outro, a questo

da alteridade, a questo da singularidade, a questo dos diferentes modos

de vida, das diferentes estruturas, ento o humano que no um humano

essencial, transcendental, mas um humano da diferena, n!

Essa perspectiva tambm percebida por C1, o qual considera

que (...) a gente sofre at hoje com essa questo. Para ns a poltica no veio para humanizar o homem. A gente entende que o homem j

est humanizado h muito tempo. A poltica no vem com esse intuito. Excluindo-se, portanto, a possibilidade de uma poltica

objetivar humanizar o homem, que de pronto j humano, buscamos

construir um alinhamento conceitual de humanizao, tomando como

referncia o que os consultores da PNH expuseram sobre humanizao

ao responderem o que consiste humanizar a ateno e gesto dos

53

servios de sade. Dar significado ao termo humanizao a partir da

fala dos consultores uma forma de analisar em que medida as suas

falas esto conectadas, uma vez que existem dezenas de consultores

distribudos nas diferentes regies do Brasil, as quais apresentam

cenrios sanitrios singulares e compreenses distintas acerca da

humanizao.

Embora, primeira vista, possa parecer uma pergunta

simplista ou talvez bvia demais para ser discutida com um consultor

que apoia a PNH, essa questo comporta uma certa complexidade, uma

vez que as diferentes compreenses de humanizao disputam sentido

com a humanizao pretendida por essa poltica. Isso pode ser

observado atravs da fala de C3:

Na verdade, essa uma pergunta bastante difcil, se ela est se

espraiando em diversos lugares por onde voc anda, voc pode ver que no

pergunta to fcil da gente conseguir responder. Se fosse, a gente no

teria depois de 10 anos da poltica de humanizao ainda pessoas fazendo

essa pergunta. Que uma pergunta que t a, feita no s especificamente

para quem trabalha com a PNH, mas uma pergunta que inquieta todo

mundo que trabalha com o SUS e se depara em algum momento com a

humanizao.

De acordo com C5 o nome Poltica de Humanizao um

nome infeliz porque muita gente acha que humanizao respeitar, dar bom dia, boa tarde, boa noite, pintar o servio de rosa pra t bonito e

tal. C6 reitera ao declarar que (...) se a gente pensar o prprio nome,

o termo, o conceito humanizao ento assim... ele no suficiente pra demonstrar tudo isso, toda essa complexidade que a gente prope. C4

menciona que a PNH ainda no conseguiu reverter a lgica da discusso

da humanizao nos servios de sade e reconhece que (...) no

conseguimos fazer essa disputa de sentido. A humanizao ainda vista

pela grande maioria como um conceito ainda muito superficial e

restrito as boas prticas do humano, entendeu?.

Apesar desse embate conceitual, C7 afirma que necessrio

investir mais para alterar o sentido que h