os paradoxos da sacralidade da vida humana

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    [T]

    Os paradoxos da sacralidade da vida humana: questes

    tico-polticas do pensamento de W. Benjamin e

    G. Agamben

    [I]

    The paradoxes of the sacredness of human life: the ethical-political

    issues in W. Benjamin and G. Agambens thought

    [A]

    Castor Mari Martn Bartolom Ruiz

    Doutor em Filosofia pela Universidad de Deusto (UD), pesquisador do Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), coordenador da Ctedra Unesco-Unisinos Direitos

    Humanos e violncia, governo e governana, coordenador do Grupo de Pesquisa CNPq tica, biopoltica e

    alteridade, So Leopoldo, RS - Brasil, e-mail: [email protected]

    [R]

    Resumo

    A sacralidade da vida humana tornou-se um problema filosfico com desdobramentosticos e polticos. Este ensaio apresenta uma arqueologia da sacralidade a partir dos

    estudos de Walter Benjamin e Giorgio Agamben, estabelecendo uma comparao com

    o sentido da sacralidade nas polis antigas. A sacralidade (re)aparece como figura simb-

    lica marcada pelo paradoxo ao mesmo tempo que protege a vida pelo direito sagrado,

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 57-77, jul./dez. 2013

    DOI: 10.7213/aurora.25.037.DS.03 ISSN 0104-4443Licenciado sob uma Licena Creative Commons

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    o direito a captura e a ameaa com a exceo. Porm, o paradoxo insupervel, j que

    constitui o modo de ser do humano.

    Palavras-chave : Sacralidade da vida. Direito. Paradoxo. Benjamin. Agamben.

    [B]

    Abstract

    The sacredness of human life has become a philosophical problem with ethical and political

    ramifications. This essay presents an archeology of the sacredness reference to the studies of

    Walter Benjamin and Giorgio Agamben, and compared with the sense of sacredness in the

    ancientpolis. The sacredness (re)appears as a symbolic figure marked by paradox at the

    same time that it protects life through the sacred law, the law captures and threatens it with

    the exception. But the paradoxis unsurpassed, as is the way of being human. [#]

    [K]Keywords: Sacredness of life. Law. Paradox. Benjamin. Agamben.

    E se somos Severinosiguais em tudo na vida,morremos de morte igual,mesma morte severina:que a morte de que se morre

    de velhice antes dos trinta,de emboscada antes dos vintede fome um pouco por dia(de fraqueza e de doena que a morte severinaataca em qualquer idade,e at gente no nascida).

    (Joo Cabral de Melo Neto,Morte e vida severina)

    Gostaramos de tomar como referncia inicial de nossa reexoalguns versos do poemaMorte e vida severina, de Joo Cabral de MeloNeto (1983), quecontextualizam o problema losco que nos ocupa:a vida humana abandonada como pura vida nua, a vida que vive aexceo como norma e sobrevive normalizada na negao dos direi-tos. Essa a vida severina. O problema da vida humana se tornou um

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    dos temas loscos de maior relevncia do sculo XXI. O poema nosposiciona na reexo de um determinado tipo de vida, a vida severina,

    vida abandonada morte inimputvel. Esta, por sua vez, a condiodo homo sacer, categoria losca central na obra de Giorgio Agamben.O homo sacer , tambm, a vida severina.

    A arqueologia do homo sacer remete problemtica da sacrali-dade da vida, que perpassa de muitas formas a histria da tica e dalosoa poltica ocidental. A formulao de alguns vestgios de suaarqueologia nos possibilitar manter uma postura crtica com nossopresente, em especial na relao que estabeleceu entre a vida humanae os dispositivos de poder.

    A reconstruo de alguns vestgios arqueolgicos de nossasprticas excede qualquer pretenso historicista. Temos por objetivopossibilitar uma losoa crtica a partir do (re)conhecimento histri-co da arqueogenealogia de nossas verdades e prticas. A arqueologiano pretende achar o princpio originrio, nico ou universal das ver-dades, neste caso da sacralidade da vida humana, mas as condieshistricas que constituram seu sentido losco. O sentido histri-co assim como a histria construda pelo sentido. O archda arqueo-logia remete sempre a uma busca plural, fragmentria, polissmica econtroversa dos sentidos e das prticas, dos valores e das instituies.O arch um processo diacrnico, que moldura nosso presente comoparte constitutiva da histria que nunca foi porque ainda e de umamemria que no se restringe ao mero passado, porque est implica-da no presente que somos.

    O itinerrio de nosso ensaio se desenvolve em trs partes, comuma concluso. Incialmente tomaremos como ponto de partida aprovocao que Walter Benjamin fez, no seu ensaioPor uma crtica

    da violncia, sobre o sentido da sacralidade da vida em relao aodireito. Na sequncia o analisaremos comparativamente com os es-tudos de Giorgio Agambem a respeito da sacralidade da vida huma-na e, posteriormente, relacionaremos os estudos de Agamben como sentido da sacralidade nas sociedades greco-romanas, tomandocomo referncia, entre outras, a obra A cidade antiga, de Fustel deCoulanges.

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    Walter Benjamin: a sacralidade da vida

    Walter Benjamin, em seu ensaio de 1921, Zur kritik der Gewalt1

    (Por uma crtica da violncia) (BENJAMIN, 1999, 2012), prope-se ana-lisar as relaes entre o direito, a gewalt2e a vida humana. A tese deBenjamin abre uma linha crtica a respeito do direito e da violnciasobre a vida. Distanciando-se das teses clssicas, sejam ius naturalistasoupositivistas, que encaram o direito como uma mera ferramenta pol-tica para proteo formal da vida, Benjamin aponta que o direito estperpassado, em todos os momentos, pela gewalt. Benjamin entende odireito como ordem. O direito ordena a sociedade em torno da lei, que,

    por sua vez, dene a legitimidade ou a ilegitimidade de instituies,prticas e valores. Na sua origem, o direito se impe pela violncia so -bre a ordem precedente e sobre o direito anterior. o direito instituin-te. Na sua existncia, o direito se mantm tambm pela violncia, j quetoda lei uma ameaa sobre a vida, que a torna culpada por princpio ea ameaa permanentemente. direito institudo. Caso a vida humanano se adapte ao direito estabelecido, sofrer a violncia do direito.

    O direito parece capturar a vida pela violncia; o que encerra avida (e o direito) numa aporia de difcil soluo. Uma das possveisaberturas a essa aporia seria interpretar hermeneuticamente o conceitode gewaltno texto de Benjamin, de modo a perceber no direito com-plexidades do poder que escapam violncia. Ainda no seu ensaio,Benjamin esboa uma difcil sada captura da vida pelo direito dis-tinguindo o que ele denomina de violncia mtica e violncia divina. Aviolncia mtica se vale do direito para governar a vida na forma de

    1 Neste ensaio utilizaremos a traduo portuguesaSobre a crtica do poder como violncia(BENJAMIN, 2012).2 Foram amplamente analisadas, por muitos autores, as implicaes que a polissemia do conceito Gewalt tem no ensaio de

    Benjamin. Gewalt, dependendo do contexto, pode significar simplesmente violncia, mas tambm pode significar poder

    ou, ainda, fora. A diferena dos sentidos possveis do conceito essencial para discernir a argumentao de Benjamin, que

    nem sempre fica clara pela ambivalncia do termo Gewalt. O poder s vezes, ou muitas vezes, violento, mas nem sempre

    possvel associar violncia com poder. O poder tambm cria, uma potncia do cuidado e da criao. O poder muito mais

    que a violncia, embora em muitos casos seja pura violncia, quando esta o reduz a mero instrumento de dominao. A

    Gewalt, alm disso, teria o sentido de fora, fora que impele, fora imposta neste caso, violenta , mas tambm fora que

    supera, fora que cresce. Essa ambiguidade da Gewaltperpassar a argumentao desenvolvida por Benjamin, deixando em

    aberto o quanto o direito poder que violenta e o quanto ele pode at proteger da pura violncia (RUIZ, 2010).

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    ameaa permanente. Para ele, a violncia mtica se constitui num m em simesma, por isso mtica. A violncia divina, pelo contrrio, no ameaa a

    vida, seno que a defende, colocando-a como nalidade ltima, e por isso divina. A violncia divina denominada tambm depura3.Ao m do ensaio, Benjamin introduz o conceito demera vida ou

    vida nua (blo Leben), que a relaciona inicialmente com o sangue der-ramado pela violncia. O sangue, de fato, o smbolo da mera vida (blo Leben) (BENJAMIN, 2012, p. 79). A origem do direito remete-ria, segundo Benjamin, a um ato de violncia, tambm originrio, peloqual a violncia do direito remete para uma culpa inerente meravida natural que entrega o ser humano inocente e infeliz expiao

    de sua culpa(BENJAMIN, 2012, p. 79), enquanto absolve o culpado,no da culpa, mas do direito. Benjamin utiliza o conceito de mera vidacomo sinnimo de vida natural. No mbito da mera vida(blo Leben),o direito permanece desativado num duplo sentido. Ela uma meravida que existe sem direitos ou fora do direito, vive desprotegida soba ameaa de qualquer violncia e sem direito para se defender. Mas,paradoxalmente, o direito no a garantia ltima da vida. A vida, quenecessita do direito para se proteger contra a violncia, tem que se pro-teger tambm da violncia do direito. O direito tende a normatizar avida, normaliz-la na imposio da lei e da norma. A verdadeira vida aquela que consegue viver alm do direito. A pura vida excede o direi-to, tornando-o secundrio para os objetivos do viver. Porm a vida nopode prescindir do direito, sob pena de entrar numa zona de anomiaem que a vida tratada como mera vida natural. A melhor forma de odireito defender a vida silenciar-se como direito e deixar a vida viver.No o direito que dene a vida, mas a vida que supera qualquer di-reito. Essa a tenso que Benjamin pretende desenhar entre a vida nua

    e o direito. Nela, a violncia mtica (do direito) exerce uma violnciasangrenta sobre a vida nua em nome da prpria violncia, que se tornaum m em si mesma. Pelo contrrio, a violncia divina uma violncia

    3 Se o poder (gewalt) mtico instituinte de um Direito, o divino tende a destruir esse Direito; se aquele impe limites, este

    destri todos os limites; se o poder mtico arrasta consigo, a um tempo, culpa e expiao, o divino absolve; se aquele

    ameaador, este aniquilador; se um sangrento, o outro letal sem ser sangrento (BENJAMIN, 2012, p. 79).

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    pura porque defende a vida em nome da vida e, para tanto, coloca avida como m em si.

    Na sequncia desse ensaio, Benjamin discute que, em alguns ca-sos excecionais4, para defender a vida talvez seja necessrio matar o caso da legtima defesa e at da revoluo contra a tirania. Benjaminrebate as teses dos que negam de forma absoluta qualquer uso da le-gtima da violncia em qualquer circunstncia. Nesse ponto, Benjaminintroduz o conceito de sacralidade da vidaou vida sacra. Para Benjamin,aqueles que negam de forma absoluta o direito violncia (inclusivea violncia divina ou pura) tm como pressuposto um certo princpiodo carter sagrado da vida (BENJAMIN, 2012, p. 80). Alm disso,

    explicita que esse carter sagrado da vida pode estar limitado vidahumana, mas que a sacralidade tambm parece se estender a toda vidaanimal e at vegetal.

    Benjamin retoma e debate um texto de Kurt Hiller numa ediodo almanaque Ziel,em que este critica a violncia revolucionria con-tra os ditadores utilizando o argumento de que mais importante quefelicidade e justia a mesma vida. Kurt Hiller contrape a pura vidacomo valor supremo mera felicidade e justia. Esse o ponto queBenjamin no aceita e critica, dizendo que: falso e vil o postulado deque a existncia em si est acima da existncia justa, se por existnciano se entender mais do que vida nua(BENJAMIN, 2012, p. 80-81).Contudo, Benjamin arma que a existncia humana mais do que meravida nua, que no se pode reduzir uma na outra. A grande questo ,arma Benjamin, que o homem no coincide com a mera vida nua.Benjamin insiste em armar que o homem no pode se confundir nemcom a vida nua, nem com a dimenso fsico-biolgica ou quaisquerestados em que esta acontea. Por isso, ainda que a pessoa humana seja

    sagrada, reconhece Benjamin, no se deve confundir essa sacralidadecom a sacralizao dos estados da vida natural, j que o corpo estexposto interveno (por exemplo, amputao em doenas, operao

    4 O termo exceono utilizado aqui por Benjamin, mas consideramos pertinente e muito apropriado seu uso nesse exemplo

    (o exemplo um destaque excecional tirado da normalidade, como dir Agamben) pelo que vir a significar, posteriormente,

    na obra de Benjamin e em Agamben.

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    de tumores etc.). Insiste Benjamin em armar que a sacralidade davida humana no pode ser entendida no plano da mera vida biolgica,

    como a dos animais ou vegetais. Estes no podem ser sagrados da mes-ma forma que a pessoa humana. Assim como a vida nua no pode sersacralizada do mesmo modo que a existncia humana.

    Conclui Benjamin essa parte do seu ensaio, em que introduz otema da sacralidade, com uma questo e um desao para posteriorespesquisadores: Talvez valesse a pena investigar as origens do dogmado carter sagrado da vida. Talvez esse dogma seja recente, muitoprovvel que assim seja(BENJAMIN, 2012, p. 81). Benjamin v nessadistoro da sacralidade um ltimo erro do que ele denomina de

    enfraquecida civilizao ocidental. Esta procura a perdida dimenso dosagrado inserindo-o na dimenso cosmolgica, que interpreta comoalgo insondvel. Benjamin lana uma instigante e profunda insinuaocrtica sobre essa utilizao reducionista do sagrado, dizendo que dque pensar que essa mesma vida nua, que proclamada sagrada nacondio de mera biologia, utilizada pela cultura ocidental como su-porte da culpa. Ela, a vida nua, nasce culpada, perigosa, imprevisvel,e por isso o direito (sempre violento) tenta regrar seu modo de viver.

    A sacralidade da vida em Agamben

    Embora existam outras inuncias tericas no desenvolvimen-to da sacralidade da vida no pensamento de Agamben, reconhecidaa marcante inuncia das questes lanadas por Benjamin. Algumasdas categorias enunciadas por Benjamin, vida nua, sacralidade da vidae exceo, foram retomadas por Agamben numa tarefa arqueolgica.

    Especicamente, retoma a problemtica da exceo formulada porBenjamin na sua tese VIII, Sobre o conceito de Histria(BENJAMIN, 1996,p. 226),que por sua vez mantm um dilogo crtico com as teses deCarl Schmi.

    A pergunta de Benjamin pela origem histrica da sacralidade davida desenvolvida amplamente por Agamben no estudo arqueolgi-co do homo sacer: Se chamamos vida nua ou vida sacra a esta vida que

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    constitui o contedo primeiro do poder soberano, dispomos ainda deresposta para o quesito benjaminiano acerca da origem do dogma da

    sacralidade da vida (AGAMBEN, 2002, p. 91).O autor fazda sacralidade uma das chaves loscas da polticamoderna, correlativa com a exceo soberana.Na sacralidade do homosacer estaria o registro arqueolgico da biopoltica ocidental que vinculaa exceo soberana ao modo poltico de capturar a vida humana pelodireito, atravs de uma excluso inclusiva. A sacralidade do homo sacerseria a frmula jurdica que, ao retirar o direito da vida, a inclui numazona de anomia, capturando-a, desse modo, como controle e exposi-o da vida de modo inimputvel total vulnerabilidade da violncia.

    Quando se decreta a condio de sacersobre uma vida humana, a pessoa includa numa forma de exceo biopoltica em que sua vida ca redu-zida a mera vida natural, zoe, sobre a qual esto suspensos os direitos.Na interpretao de Agamben, a exceo biopoltica inerente gurajurdica do homo sacer decorrncia da condio sacral da vida desde assuas origens. Sacralidade e exceo biopoltica seriam guras conexas dodireito e da poltica ocidentais. Tal conexo continuaria ativa e imbrican-do a biopoltica moderna na captura instrumental da vida humana comcategorias secularizadas da sacralidade, como a dignidade humana, osdireitos humanos, a defesa, a segurana, a necessidade etc.

    Agamben rastreia a origem da sacralidade por meio do mtodoarqueolgico. A modo de inciso, permitimo-nos apontar as profundassemelhanas do mtodo arqueolgico com a imagem do trapeiro oucatador desenvolvida por Benjamin para recompor os restos de sen-tido achados na histria5. O catador e o arquelogo recolhem restos efragmentos da histria, dejetos no valorizados pela leitura dominantedo passado que, muitas vezes, coincidem com os rejeitados por uma

    hermenutica dos vencedores. A sacralidade representa um desses de-

    5 O trapeiro a figura mais provocadora da misria humana. Lumpem proletrio num duplo sentido: vestindo trapos e

    ocupando-se dos trapos. Eis um homem encarregado de recolher o lixo de cada dia da capital. Tudo o que a cidade grande

    rejeitou, tudo o que ela perdeu, tudo o que ela desdenhou, tudo o que ela destruiu, ele cataloga e coleciona. Ele consulta os

    arquivos da orgia, o cafarnaum dos detritos. Faz uma triagem, uma escolha inteligente; recolhe como um avaro um tesouro,

    as imundcies que, ruminadas pela divindade da indstria, tornar-se-o objetos de utilidade ou de prazer (BENJAMIN, 2009,

    p. 395). Sobre o trapeiro, conferir tambm: BENJAMIN, 2010, p. 9-12.

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    jetos que a epistemologia dominante do empirismo lgico e cientcotem jogado no lixo como elemento descartvel de uma histria ultra-

    passada. O trabalho losco do arquelogo e do catador consiste emrecuperar os restos e dejetos, que o pensamento dominante relegou apeas de museu sem sentido, e resgatar neles lampejos de sentido dopassado que condiciona o ser de nosso presente. O arquelogo e o ca-tador captam um sentido negado ou desconsiderado pelo pensamentolosco dominante e o propem como referncia losca do pre-sente6. Nos restos do passado pode habitar uma potncia para a crti-ca do presente, e essa potncia reside nos possveis sentidos negadospelos saberes ociais. A arqueologia da sacralidade da vida humana

    empreendia por Agamben representa um exemplo da tradio da lo-sca crtica, por meio da qual um dejeto losco descartado por suaaparente insignicncia conceitual resgatado e chega a conturbar deforma signicativa o presente.

    Por sua vez, a categoria de homo sacertambm tem certa genea-logia dentro da prpria obra de Agamben. Ela encontra seu pleno de-senvolvimento na obra homnima: Homo sacer: o poder soberano e a vidanua (1995), porm a categoria homo sacer aparece por primeira vez nasltimas pginas do excursusda sua obra de 1985,A linguagem e a morte(AGAMBEN, 2006).

    Agamben naliza a obraA linguagem e a mortecom uma ltimacoisa que resta a ser dita e uma questo: O que signica esta proxi-midade entre o indizvel saber sacricial, como iniciao destruio e violncia, e o fundamento negativo da losoa?(AGAMBEN, 2006,p. 141). Para Agamben, haveria na dimenso in-fundada do humanouma espcie de violncia que se manifesta no prprio fazer e que eleinterpreta como violncia prpria. O fazer humano teria algo constituti-

    vamente violento porque, ao criar o inexistente, violenta o institudo. Acriao do fazer uma espcie de violncia contra o feito. Essa seria umaverdade antiga cuja base se encontra na mais remota prtica religiosa do

    6 Agamben utiliza o mtodo arqueolgico proposto por Foucault, porm o amplia a outros campos de saberes desprezados pela

    modernidade, como a teologia. Destaca-se, nesse mtodo, a figura metafrica que Benjamin utiliza para mostrar a relevncia

    filosfica da teologia, como se fosse um ano corcunda e feio oculto sob o tabuleiro de xadrez da histria oficial (BENJAMIN,

    1996, p. 222). As pesquisas arqueolgicas de teologia poltica esto muito presentes nas ltimas obras de Agamben.

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    sacrifcio.Para Agamben, independentemente das interpretaes dadas funo sacricial, o fazer da comunidade humana , aqui, fundado

    em um outro fazer(AGAMBEN, 2006, p. 141), respondendo, dessa for-ma, etimologia do termo que torna ofacere um sacrum facere.No ncleo do sacrifcio encontra-se um tipo de fazer que separa-

    do e atingido por uma excluso, e essa separao excludente torna essefazer sacer.O sacer acometido por um conjunto de interdies e pres-cries rituais que conguram o seu fazer como algo no meramenteexcludo, seno acessvel a certas pessoas, sob certas condies. Essa sa-cralidade oferece sociedade uma co de que existiu um incio origi-nrio nico e universalizvel. A sacralidade separa algo do uso comum

    e torna a separao o princpio fundante e legitimador das instituiessociais. Esse incio ccional oculta uma excluso fundante da comunida-de, a qual ca camuada sob a aparncia de um passado imemorvel,mas do qual se faz memria. A sacralidade seria um dispositivo por in-termdio do qual se legitima o incio histrico como fundao imemor-vel, irremovvel, quando, na verdade, todo incio nada mais que umaconstante iniciao, assim como todo conditum (estabelecido) guarda emsi um abs-conditum (ocultamento)(AGAMBEN, 2006, p. 142).

    Ainda na obra A linguagem e a morte,Agamben reete sobre osentido ambguo e circular do sagrado. A etimologia do termo latinosacerindica signicados contrapostos e paradoxais ao mesmo tempo:objeto ignominioso e augusto; sacras so as leis, mas tambm quem aviola. Nesse ponto, Agamben faz meno, por primeira vez, frmulade Festo sobre o homo sacer: qui legem violavit, sacer esto.Essa frmulaser amplamente explorada na obra Homo sacer: o poder soberano e a vidanua.Agamben destaca j nesse texto aquela que ser a caractersticaessencial do homo sacer: o seu abandono da lei. O homo sacerque violou

    a lei, em particular, o caso de homicdio7

    . A condio de sacero con-dena a uma excluso da lei; ele expulso da civitas, cando imune lei da cidade, mas tambm ca totalmente desprotegido da lei. O homo

    7 Agamben utiliza o termo homicdio, contudo o termo latino para designar o tipo de morte que condena o homo sacerao

    banimento e abandono parricidi. Essa diferena qualitativamente significativa, uma vez que tambm qualitativamente

    diferente o sentido jurdico poltico do homicidiume doparricidium. Essa problemtica merece uma pesquisa complementar.

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    sacerse caracteriza pela total vulnerabilidade violncia, qualquer umque o violentar ou matar no cometer delito, porque sua condio de

    sacero exclui de qualquer direito: homo sacer is est quem populus iudi-cavit ob malecium: neque fas est eum imolari, sed qui occidit parricidi nom

    damnatur (FESTO apud AGAMBEN, 2002, p. 79).Dez anos depois, na obra de 1995, Homo sacer: o poder soberano e a

    vida nua, Agamben far uma minuciosa e aguda pesquisa a respeito daarqueologia do homo sacer. Agamben localiza na gura do homo sacerosresduos arqueolgicos da biopoltica originria de nossas sociedadesocidentais. Com essa tese, discorda parcialmente de Foucault e Arendt,que pensam a biopoltica como uma ruptura prpria das sociedades

    modernas, do Estado e dos mercados modernos.Para Agamben, o homo sacer representa uma gura arcaica do

    direito romano pela qual um cidado que era proclamado sacerperdiaautomaticamente sua cidadania e sua condio de pessoa para o direito(AGAMBEN, 2002). O decreto de sacerexclua legalmente a pessoa dodireito, despossuindo-a de seu estatuto de pessoa jurdica e poltica.Ao ser excluda do direito, era includa numa zona de anomia em quesua condio era de pura vida biolgica, mera vida nua, zoe. Ao serexcludo do direito, o homo sacer tambm no poderia ser legalmentemorto, era insacricvel. Sua paradoxal condio o tornava legalmenteinsacricvel, mas qualquer um que o matasse no cometia delito. Erauma mera vida nua contra a qual se poderia cometer violncia sem porisso cometer delito. A violncia contra o homo sacer era inimputvel,porque no tinha direito que o protegesse.

    Se a nossa hiptese est correta, a sacralidade , sobretudo, a forma ori-ginria da implicao da vida nua na ordem jurdico-poltica, e o sintag-ma homo sacer nomeia algo como a relao poltica originria, ou seja,

    a vida enquanto, na excluso inclusiva, serve como referente decisosoberana. Sacra a vida apenas na medida em que est presa exceosoberana (AGAMBEN, 2002, p. 92-93).

    Para Agamben, o sintagma homo sacer o resqucio do paradigmabiopoltico da exceo, que, por sua vez, seria o modo originrio comoa poltica ocidental capturou a vida humana pela ameaa do abandono.

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    A vida do homo sacer se encontra excluda (do direito) pela incluso(numa zona de anomia), ou includa na pura vida nua pela excluso da

    condio poltica de pessoa (AGAMBEN, 2002, p. 79). A sacralidade dohomo sacerrevela uma exceo que exclui a vida do direito, submeten-do-a a pura violncia, que no a mera violncia legal. Na exceo quesuspende o direito, vigora a arbitrariedade da violncia.

    Por tudo isso, Agamben considera o homo sacerum conceito dodireito romano que delimita o limiar que vincula a ordem social e a vidahumana na poltica ocidental8. No homo saceraparece de forma ntida opoder da soberania, e esta captura a vida humana pelo poder da exce-o. S uma vontade soberana, que est acima do prprio direito, pode

    suspender o direito da vida e decretar sua condio de sacer. Ambos,homo sacere poder soberano, seriam as estruturas originrias da polticaocidental, que se iniciou como biopoltica (AGAMBEN, 2002, p. 23).

    A cumplicidade originria da sacralidade como reverso da so-berania levaria a concluir, segundo Agamben, que qualquer forma desecularizao moderna da sacralidade, como a categoria dignidadehumana ou o discurso dos direitos humanos, oculta em seu seio odispositivo ameaador da exceo.

    A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o po-der soberano como um direito humano em todos os sentidos, expri-me, ao contrrio, em sua origem, justamente a sujeio da vida a umpoder de morte, a sua irreparvel exposio na relao de abandono(AGAMBEN, 2002, p. 91).

    Ou seja, neles, a despeito da defesa formal da vida humana, tam-bm operaria, de alguma maneira, o dispositivo biopoltico que captu-ra a vida pelo direito e a ameaa pela sua excluso9.

    8 A teoria da soberania desenvolvida por Agamben d continuidade ao debate travado entre Benjamin e Carl Schmitt. Ambos

    os autores reconhecem certa dvida com as teses de Schmitt, principalmente nas obrasO conceito do poltico (SCHMITT, 1992) e

    Teologia poltica(SCHMITT, 2006), porm Benjamin e Agamben se propem inverter suas concluses de Schmitt sobre a prerrogativa

    inexorvel do poder soberano, propondo, em seu lugar, a insurgente potncia humana de viver para alm do direito prescrito.9 Nas ltimas obras, Agamben tem desenvolvido o conceito de profanao como categoria filosfica e poltica que se ope

    sacralizao, confirmando-se, dessa forma, a influncia benjaminiana de procurar na teologia categorias polticas como

    potncia de ruptura e alternncia ao universo semntico estabelecido. Se consagrar (sacrare) era o termo que designava a sada

    das coisas do direito humano, profanar, por sua vez, significava restitu-las ao livre uso dos homens (AGAMBEN, 2007, p. 65).

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    A desconana de Agamben a respeito dos conceitos e discursosmodernos sobre a dignidade humana e os direitos humanos perten-

    ce a uma consolidada tradio de losca crtica que se iniciou emMarx e da qual so tributrios, de uma ou de outra forma, o pensa-mento de Benjamin, Arendt, Foucault, dentre outros. O que est emquesto nessa desconana o carter intrinsecamente paradoxal dasverdades e dos discursos. A tese que desenvolvemos neste ensaio temcomo premissa o paradoxo das verdades discursivas. Isso quer dizerque o elemento crtico reside no paradoxo, e no na negao de umdos elementos, nem na sntese de ambos. O paradoxo no dissolve atenso numa das partes anulando a outra, tampouco se resolve numa

    sntese dialtica ou dialgica dos termos. O paradoxo se mantm comotenso constitutiva das verdades e dos discursos que no conseguemser formalmente verdadeiros para sempre, nem podem ser plenamenteinvalidados como inverdades plenas num relativismo absoluto. O pa-radoxo a tenso agonstica do sentido que no existe fora do campodas relaes histricas das verdades e dos discursos, mas que constituio modo como as verdades se forjam como verdadeiras em determinadomomento histrico ou como deixam de s-lo em outro.

    A nossa tese de que o paradoxo constitutivo de seu prprioser e fazer humanos, do seu ser como fazer e do fazer que consti -tui seu modo de ser. O paradoxo no invalida as verdades nem osdiscursos, os contextualiza historicamente. Ou seja, remete o senti-do de sua validade e o valor de sua verdade aos efeitos de poder decada contexto histrico. No existe uma verdade formal abstrata, nempara a dignidade humana, nem para os direitos humanos, nem paraa sacralidade da vida. Mas essas verdades no esto despossudas desentido em si mesmas, como verdades vlidas com potencialidade

    de proteo da vida humana. Os desdobramentos ticos e polticosdessas categorias, como de qualquer outra verdade, so correlativos(sempre relativos) ao contexto histrico que os produz e aos efeitosde poder que eles produzem. H uma hermenutica crtica na com-preenso arqueolgica dos conceitos. Hermenutica e arqueologia,a despeito de serem mtodos loscos diferentes, no so contra-ditrios, pelo contrrio, funcionam imbricados. A sua imbricao ,

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    tambm, paradoxal. Essa tese nos permite uma aproximao crtica eenriquecedora ao pensamento de Agamben e Benjamin, em particular

    sobre o tema da sacralidade da vida humana.

    A sacralidade da vida na cidade antiga

    O paradoxo tambm constitutivo da sacralidade como verda-de e como prtica. A arqueologia poltica da sacralidade nos reenviaa escavar entre os restos e catar os rastos arqueolgicos das polis e dascivitas. Aspolis e as civitaseram instituies complexas cuja legitimida-

    de poltica remetia sempre ao sagrado. Um dos argumentos que nospermitiro explorar a tenso contraditria presente no sentido origin-rio da sacralidade da vida pode ser encontrado por meio da arqueolo-gia desse conceito nas cidades indo-europeias, em que se originaramo direito e a poltica ocidentais, em concreto, Grcia e Roma. Entre ou-tras referncias, na pesquisa de Fustel de Coulanges, A cidade antiga(COULANGES, 1988), o autor sublinha que o sagrado, longe de seruma categoria menor ou colateral, era o valor supremo que demarcavao sentido e a legitimidade de todas as instituies, prticas e valoresvividos pelas cidades indo-europeias.

    A cidade se origina a partir de um rito sagrado, tudo nela estvalidado ou no pela sacralidade (MONTANELLI, 1997). Aquilo queno sagrado no faz parte da cidade, no tem validade, no reco-nhecido como legtimo. Legitimidade, validade e cidadania so in-trinsecamente sagradas e esto inextricavelmente interligadas. No possvel pensar a cidadania, o direito ou as instituies polticas forada sacralidade (JAEGER, 2001). Inclusive no estdio tardio encontra-

    mos, na cidade da Roma republicana, instituies polticas como atribuna, na qual se faziam pronunciamentos polticos e que era essen-cialmente um lugar sagrado. O orador subia tribuna com uma coroana cabea e comeava invocando os deuses, porque o ato poltico eraum ato sagrado (COULANGES, 1988, p. 200). O senado romano sem-pre foi um templo e, nessa condio, exercia sua funo poltica. Eleera legitimado na cidade por ser sagrado, no por ter poder poltico.

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    O poder poltico do senado era respeitado pela sua sacralidade cons-titutiva. O presidente do senado, antes de qualquer deliberao, ofe-

    recia um sacrifcio ou orao. No senado havia um altar onde todosos senadores deviam derramar libaes aos deuses quando entravam.Era um espao sagrado, que dava legitimidade legal s decises alitomadas por serem sagradas. A legalidade das decises era conexacom a sacralidade do espao. As decises tomadas fora do senadoeram, por princpio, ilegtimas, porque decididas fora do recinto sa-grado. Elas eram nulas de pleno direito, porque no se haviam ela-borado em presena da divindade. Sem a sacralidade, todo o aparatojurdico e poltico perdia legitimidade e validade.

    Em Atenas, a situao era semelhante a Roma10. O senado ate-niense tinha um altar, ao que se aproximavam todos os senadores an-tes de comear a sesso, para pronunciar uma orao. Tanto em Romacomo em Atenas a justia s funcionava nos dias favorveis indicadospor seu carter sagrado. Em Atenas, o tribunal de justia se realizavajunto do altar. Nos tempos de Homero, os juzes reuniam-se num lugarsagrado. Inclusive a deciso e a organizao da guerra estavam per-passadas pelo carter sagrado11. Nas cidades italianas, havia colgiosde sacerdotes chamados feciais, que na Grcia chamavam-se arautos,encarregados de presidir as celebraes religiosas que eram a base dasrelaes internacionais.

    O sagrado estava na origem da cidade, no sentido estrito dotermo origem. O sagrado era seu arch, a arqueologia da polis e dassuas instituies originavam-se num ato sagrado de funo12. Sem a

    10 Hannah Arendt se serviu da obra de Fustel de Coulanges nas suas anlises sobre a Grcia Antiga. Embora mantivesse alguma

    discordncia com Coulanges, criticando-o porque no tinha levado em conta a diferente evoluo e a menor influncia

    da oikos na polis grega do que a domus na civitas romana, essa discordncia em nada afeta a tese que aqui estamos

    desenvolvendo (ARENDT, 2010, p. 29, nota 6).11 Tito Livio relata, entre outros episdios, que: Perseu, naquele tempo, reconhecendo que alguns dlopes no lhe obedeciam

    e tentavam apelar a Roma para resolver as suas pendncias com o rei, marchou cabea do seu exrcito e obrigou a nao

    inteira a se colocar sob suas leis e imprio. Depois, rodeando as montanhas de Eta, subiu a Delfos para consultar o orculo,

    pois lhe tinham assaltado escrpulos religiosos (LIVIO, 1990, p. 35).12 O estudo de Werner Jaeger, ainda que no tenha a preocupao pelo estudo do papel poltico do sagrado, constata que:

    Desde o sculo XIX h a tendncia cada vez maior a perder de vista, em face deste aspecto [a cincia], a funo religiosa da

    filosofia grega, ou pelo menos, a considerar esta solene roupagem como a simples casca de ovo (JAEGER, 2001, p. 873).

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    sacralidade originria, a polisno tinha legitimidade; isso significavaque no podia ter direito prprio, nem leis prprias, nem cidadania,

    nem instituies (COULANGES, 1988, p. 209).As pessoas que no pertenciam a uma casa eram pessoas semdireito, porque estavam fora da sacralidade instituinte das famlias.Sem a sacralidade do direito das casas, as pessoas cavam abandona-das. Nessa condio vemos reproduzir-se a gura do homo sacer, pormcom uma diferena importante: as pessoas que viviam sem direito, queeram muitas, viviam a condio da exceo de fato, embora no dedireito. O homo sacer um decreto de direito que retira o direito decidadania de um cidado e o condena a viver fora do direito. Porm a

    vida fora do direito j era a condio de grande parte das pessoas queviviam e perambulavam pelas cidades, e seus territrios anexos, comovidas sem direitos. Eram pessoas que viviam uma exceo de fato, ain-da que no decretada por um ato de direito, a no ser sua existnciafora da sacralidade do direito. Para elas, a exceo era sua norma devida. Viviam num estado de exceo permanente13porque no tinhamnenhum direito que lhes protegesse. Sua condio de vida abandonada exceo, sem decreto que retirasse o direito, decorre de sua impossi-bilidade de se acolher sacralidade do direito das famlias e das casas.

    A sacralidade fundamental e fundacional do Larinstitui o direitoque protege todos os habitantes da famlia e da domus. A condio deabandono por excelncia a do estrangeiro, porm a arqueologia desseelemento to importante para verificar o sentido da sacralidade, assimcomo a diferena de sentido entreparriciume homicidiumna frmula deFesto, haveremos de apresentar em outro ensaio.

    difcil defender,s com palavras a vida,

    ainda mais quando ela mas se responder no pude pergunta que fazia,ela, a vida, a respondeu

    13 Vemos ecoar aqui a tese VIII de Walter Benjamin: A tradio nos ensina que o estado de exceo em que vivemos para os

    oprimidos a regra geral... (BENJAMIN, 1996, p. 226).

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    com sua presena viva.esta que v, severina;mas se responder no pude

    pergunta que fazia,ela, a vida, a respondeucom sua presena viva.

    (Joo Cabral de Melo Neto,Morte e vida severina)

    Conclumos retomando nossa hiptese de que a sacralidade davida humana est marcada desde as suas origens pelo paradoxo do po-der que pretende defend-la como vida tica alm da mera vida natu-

    ral e, concomitantemente, utiliza a sacralidade como dispositivo pol-tico para tentar captur-la de forma instrumental. A sacralidade, comotoda verdade humana, est atravessada pela ambiguidade dos efeitosde poder que provoca. Ela, a sacralidade, pode defender a vida pelodireito (direitos humanos), assim como pode sujeit-la capturando-apela norma ou abandon-la pela exceo (homo sacer). A sacralidade paradoxal, e a vida humana no pode existir fora do paradoxo. Resta odesao permanente da losoa crtica por redenir o sentido tico dasacralidade diante de seu uso instrumental. a tenso que captura oudefende a vida severina.

    A necessariamente breve arqueologia da sacralidade na cida-de antiga que elencamos contm indcios sucientes para mostrarque a relao entre a sacralidade e a vida humana muito maisampla e complexa do que aquela que se percebe na gura jurdico--poltica do homo sacer. A anlise apresentada por Agamben pre-cisa e coerente no que diz respeito ao signicado da sacralidade nocontexto da frmula jurdica do homo sacer.O que opera nesse de-

    creto um dispositivo da exceo, de uma dupla exceo que ex-clui a vida do direito e a captura pelo abandono. Entendemos quea tese de Agamben brilhante ao perceber um conjunto de implica-es jurdico-polticas que subjazem na sacralidade do homo sacer.Ainda, concordamos com Agamben que a gura do homo sacer re-vela alguns vestgios originrios de dispositivos biopolticos, queno cariam restritos governamentalidade moderna, mas que se

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    mostram, de forma diferente, desde a sua origem, nos dispositivosde poder que criaram mecanismos jurdicos para controlar a vida

    humana, especialmente quando a vida se torna perigosa para a or-dem. O homo sacerseria um indicador de como a vida humana j eracapturada desde os primrdios do direito, naspolisocidentais, pelopoder soberano.

    Contudo, consideramos que da exposio anterior pode-mos coligir algumas teses complementares quelas expostas porAgambem, principalmente no que diz respeito aos sentidos origi-nrios da sacralidade. O estudo que zemos mostra que os sentidosoriginrios da sacralidade eram vrios, complexos e paradoxais. As

    implicaes jurdico-polticas da sacralidade da vida envolvem tan-to o poder de decretar a exceo como o poder de proteger a vida.A sacralidade, que condena a vida a uma zona de anomia pela exce-o soberana, tambm a condio necessria para que a vida sejaprotegida e se sinta protegida. Sem a sacralidade, a vida ca aban-donada condio de mera vida nua de fato. Sem a sacralidade, avida sequer tem a possibilidade de ser ameaada pela suspensodo direito, porque j uma vida sem direitos. Fora da sacralidadea vida existe sobrevivendo como zoenuma zona de anomia. Sem apossibilidade de se acolher sacralidade do direito, torna-se umapura vida nua, uma vida sem direitos e, por isso, exposta a qual-quer violncia. A sacralidade originria da proteo da vida pelodireito. Sem o direito, a vida se torna uma vida abandonada, vidaseverina, uma vida que no tem direito sequer ao sintagma do homosacerporque existe numa condio que nega o direito de fato.

    A arqueologia da sacralidade mostra que o puro direito noprotege a vida. O carter paradoxal da sacralidade se desdobra em

    outro paradoxo, qual seja, o da captura originria da vida pelo di -reito. O paradoxo da sacralidade o mesmo paradoxo do direito.A sacralidade que legitima o direito a mesma que protege a vida.Concomitantemente, sacralidade e direito ameaam a vida com a ex-ceo soberana. A vida que est fora da sacralidade do direito encon-tra-se abandonada, vulnervel a toda violncia, exposta a qualquerarbitrariedade. Porm, desde a origem das polis e civitas,a vida que

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    se submete ao direito sagrado da casa ca capturada sob a autorida-de daquele que implementa o direito. Ainda que o Estado de direito

    tenha tido a pretenso de abolir o absolutismo da vontade soberana eproclamar a isonomia da lei como garantia dos direitos, a vida que sesubmente ao direito encontra-se submissa aos decretos. uma vidanormatizada pela norma, normalizada pela lei. Nesse sentido, a leimoderna opera de forma secular com o mesmo dispositivo da sacra-lidade, separando a vida da vontade dos sujeitos e capturando-a pelanormatividade extrnseca que a sujeita. O mesmo direito que projete,sujeita, domestica e normaliza. A biopoltica moderna essencial-mente normalizadora, porm as formas de resistncia ao controle

    tambm so prticas biopolticas insurgentes da vida.A arqueologia da sacralidade indica que a tenso originria

    que vincula o direito vida no se resolve negando o direito, o quecondenaria a vida exceo. Mas tambm no se soluciona acolhen-do-se ao puro direito, que submeteria a vida norma. bem prov-vel que no possamos esperar criar um novo direito, como pensavaFoucault, nem viver na expectativa da violncia divina que anulaa violncia do direito, segundo a expectativa de Benjamin. No sevislumbra a possibilidade de uma condio ideal e denitiva da re -lao entre a vida e o direito, entre os direitos formais, os ideaispolticos e a vida concreta. Contudo, a impossibilidade do ideal nonega seu valor, seno que o reposiciona como potncia orientadorado agir. Longe de cairmos num niilismo individualista, a conscin-cia crtica de nossa prpria potncia criativa nos confronta com ainsupervel responsabilidade do que somos e fazemos. Temos denos confrontar com a condio agonstica do humano, que nos de-saa permanentemente, entre outras coisas, a pensar o direito como

    uma prtica poltica subsidiria da vida. O direito para a vida, eno a vida para o direito. Esse aparente princpio no se resolveem mximas prontas, mas se implica em lutas permanentes da vidapelo direito e do direito para ser um instrumento da vida. Nesseponto, reencontramos a alteridade humana como critrio tico dopoltico. A vida humana, uma alteridade tica que julga a validadede qualquer direito e a (i)legitimidade de toda lei, talvez seja esse

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    o novo campo semntico/simblico de disputa poltica em que sereveste a sacralidade secularizada, profanada em favor da Vida.

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    Recebido: 10/06/2013Received: 06/10/2013

    Aprovado: 21/06/2013Approved: 06/21/2013

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