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194 , Goiânia, v. 19, p.194-216, 2021. Jacqueline Siqueira Vigário**, Enrique Porta Lopez Puigcerver*** ENTRE O CLÁSSICO E O MODERNO: ELEMENTOS DE SACRALIDADE EM LASAR SEGALL E NAZARENO CONFALONI* ––––––––––––––––– * Recebido em: 11.12.2021. Aprovado em: 18.03.2023. ** Doutora e Mestre em História (UFG e PUC Goiás). Membro do Grupo de Estudos de História e Imagem da UFG e da Rede de Pesquisa em História e Culturas no Mundo Contemporâneo da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). E-mail: vigario.jac- [email protected] *** Doutorando em Letras (PUC Minas). Mestre em Teologia (FAJE). Graduado em Filosofia (FAJE; Universidad Pontificia de Comillas, Madri). Professor na PUC Minas. E-mail: [email protected]. DOI 10.18224/cam.v19i1.8723 Resumo: o artigo apresenta uma análise comparativa entre os quadros “Mãe Preta” (1929), de Lasar Segall, e “Maternidade” (1969), de Frei Nazareno Confaloni, ambas produzidos em períodos e culturas distintas. Parte-se da ideia de que há elementos de conexão entre as obras, cujo tema sacro e estética clássica está em discussão na construção do ideário moderno, que toca nos problemas da realidade histórica e social brasileira. A análise das obras centra-se em dois momentos: no primeiro, destacam-se os elementos formais de tradição clássica e identitários da cultura nacional e regional em confronto com o imaginário moderno que compõe a cultura artística da época. No segundo, a partir do exercício de interpretação pelo princípio de semelhanças e comparações, des- tacam-se mutuamente sensibilidades na concepção de gestos do caráter sacral. Por fim, a modernidade é pensada desde as perspectivas estética, sacra e teoló- gica e da construção da identidade nos projetos modernistas no país. Palavras-chave: Segall. Confaloni. Modernismos. Sacro. Clássico. E m julho de 2019, em leitura conjunta sobre o Modernismo no Brasil, chamou-nos a atenção o caráter sacral das obras “Morro Vermelho” (1926) e “Mãe Preta” (1930), ambas de Lasar Segall. Posteriormente, ao mergulharmos na análise das

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Page 1: ENTRE O CLÁSSICO E O MODERNO: ELEMENTOS DE SACRALIDADE EM …

194 , Goiânia, v. 19, p.194-216, 2021.

Jacqueline Siqueira Vigário**, Enrique Porta Lopez Puigcerver***

ENTRE O CLÁSSICO

E O MODERNO: ELEMENTOS

DE SACRALIDADE EM LASAR

SEGALL E NAZARENO CONFALONI*

–––––––––––––––––* Recebido em: 11.12.2021. Aprovado em: 18.03.2023.

** Doutora e Mestre em História (UFG e PUC Goiás). Membro do Grupo de Estudos de

História e Imagem da UFG e da Rede de Pesquisa em História e Culturas no Mundo

Contemporâneo da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). E-mail: vigario.jac-

[email protected]

*** Doutorando em Letras (PUC Minas). Mestre em Teologia (FAJE). Graduado em Filosofia

(FAJE; Universidad Pontificia de Comillas, Madri). Professor na PUC Minas. E-mail:

[email protected].

DOI 10.18224/cam.v19i1.8723

Resumo: o artigo apresenta uma análise comparativa entre os quadros “Mãe Preta” (1929), de Lasar Segall, e “Maternidade” (1969), de Frei Nazareno Confaloni, ambas produzidos em períodos e culturas distintas. Parte-se da ideia de que há elementos de conexão entre as obras, cujo tema sacro e estética clássica está em discussão na construção do ideário moderno, que toca nos problemas da realidade histórica e social brasileira. A análise das obras centra-se em dois momentos: no primeiro, destacam-se os elementos formais de tradição clássica e identitários da cultura nacional e regional em confronto com o imaginário moderno que compõe a cultura artística da época. No segundo, a partir do exercício de interpretação pelo princípio de semelhanças e comparações, des-tacam-se mutuamente sensibilidades na concepção de gestos do caráter sacral. Por fim, a modernidade é pensada desde as perspectivas estética, sacra e teoló-gica e da construção da identidade nos projetos modernistas no país.

Palavras-chave: Segall. Confaloni. Modernismos. Sacro. Clássico.

E m julho de 2019, em leitura conjunta sobre o Modernismo no Brasil, chamou-nos a atenção o caráter sacral das obras “Morro Vermelho” (1926) e “Mãe Preta” (1930), ambas de Lasar Segall. Posteriormente, ao mergulharmos na análise das

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duas pinturas, percebemos inúmeras conexões de caráter afetivo, cultural e re-ligioso. Talvez, em um sentido mais direto, poderíamos fazer uso das seguintes palavras de Roland Barthes (1984, p. 17-18): “A imagem é um campo de estudo (studium) e é, também, um momento e um espaço de paixões e de emoções: o lugar de múltiplas outras memórias (punctum)”.

Essas conexões associadas a lugares, contextos e memórias múltiplas que nos susci-tavam as figuras das duas pinturas assinaladas, em um momento de análise posterior, pela via da intuição, nos levaram à necessidade de estabelecermos um diálogo, uma relação, uma interação com outros autores dentro da tradição das artes.

Explicitamente, desse âmbito expressionista no qual se projetavam as duas obras de Segall sobre a maternidade e conscientes da relevância de pensarmos em ou-tra esfera artística e cultural que fizesse uso de constantes poéticas e estéticas próprias e que ao mesmo tempo dialogasse com o expressionismo desse pin-tor, encontramos uma obra expressiva, “Maternidade” (1969), de Giuseppe Nazareno Confaloni, considerado pela crítica goiana como um precursor do modernismo nas artes.

De início, o que nos chamou a atenção foi a possibilidade de aproximação entre as obras “Mãe Preta” (1930), de Lasar Segall, e “Maternidade” (1969), de Na-zareno Confaloni. A partir do modo como interpretarmos ambos os quadros, as críticas sobre eles e, também, as leituras acerca do modernismo no Brasil, em suas três fases, chegamos inevitavelmente, do ponto de vista da forma, ao seu caráter sacral. Já no que concerne à análise dos conteúdos, três pontos podem ser ressaltados: o primeiro alude ao problema da construção da iden-tidade nacional no projeto modernista, conforme o pensamento pictórico de Lasar Segall e de Nazareno Confaloni. O segundo trata do sacro como aspecto problemático ao vinculá-lo ao modernismo: em Segall o veremos desde um olhar ambivalente, enquanto em Confaloni o moderno é captado a partir de uma constante social e regional. Por último, destacamos que a poética, em termos éticos e sociais, muda de um pintor para outro. Em “Maternidade”, de Confaloni, capta-se um interesse de ordem religiosa profética, enquanto na obra “Mãe Preta”, de Segall, destacam-se aspectos formais procedentes da tradição do quattrocento e do humanismo objetivo, universal e transcendente da tradição do Ocidente.

Dessa análise preliminar e entre os muitos itens que poderiam ser destacados, aquilo que inferimos como um dos pontos mais problemáticos tem relação com a es-tética e suas diversas vias de linguagem. A esse respeito, não há como omitir que, ao nos predispormos a discutir arte, por exemplo, como veículo cultural, social e político, ou seja, a arte vinculada a temas de fronteira, de conflitos étnicos, de pluralidade sexual, de carácter ideológico, corremos o risco de fi-

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carmos reféns de uma concepção vertical, proveniente do idealismo kantiano. Pensamos, de qualquer modo, que a maneira como os dois pintores analisados repensam a arte na modernidade brasileira, ou, para sermos mais precisos, a arte sacra na modernidade brasileira, já é suficiente para nos fornecer instru-mentos que remetam a novos desafios, desafios esses em consonância com o nosso tempo.

Para concluir, do ponto de vista metodológico, no que concerne à maneira de olhar para as imagens, levamos em consideração um critério que no uso de pinturas na história fosse ao encontro do modo como trabalhar a estrutura desse arti-go, certificando a ampliação do uso de imagens como documentos históricos, optamos pela “leitura” das obras à luz, do olhar de Aby Warburg e a ideia de pathosformel1 na arte pensando em termos de princípios e não de métodos efetivos de análise de imagens2. Warburg repensou desde a Vênus de Sandro Botticelli as ninfas e o dionisíaco, a questão do gesto e do movimento da arte no Renascimento sob enfoque das “sobrevivências” e dos “sintomas” como apresentados por Philippe-Alain Michaud em sua obra “Aby Warburg e a ima-gem em Movimento” (MICHAUD, 2013, p. 23) e Georges Didi-Huberman no livro “Diante da Imagem - Questão colocada aos fins de uma história da arte” (HUBERMAN, 2013, p. 185).

AUTONOMIA E IDENTIDADE EM SEGALL

Figura 1: “Mãe Preta”, óleo sobre tela obra de Lasar Segall (1930)Fonte: Itaú Cultural, Coleção Acervo particular

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O artista Lasar Segall nasceu em Vilna, capital da República da Lituânia, foi para Ale-manha aos 15 anos para estudar arte e, em sua formação, sofreu a influência de artistas como Max Liebrmann e de movimentos como A Ponte. De 1911 em diante, já participava do movimento expressionista com obras bastante ra-dicais, com figuras humanas semelhantes a máscaras, pintadas em cores arbi-trárias (“Máscaras”, 1913). Depois de 1919 esteve mais próximo do Realismo Sintético, localizado nas obras do chamado período brasileiro (1923-1927) e da Nova Objetividade (CATANNI, 2011).

Radicou-se no Brasil em 1923, e nos anos seguintes manteve-se próximo do grupo modernista. Entre dezembro de 1928 e abril de 1932, Segall opta por morar em Paris. Nessa época, produz obras com motivos brasileiros e também utiliza temas recorrentes, tal como o da emigração. Os quadros “Família do Pintor” e “Maternidade”, ambos de 1931, apresentam uma superfície mais espessa e mantêm um paralelo com as esculturas que o artista começa a realizar. Há no pintor uma busca pela capacidade real da síntese ou do equilíbrio, como se pode conferir em “Menino com cavalo de pau” (1928) e “Mãe Preta” (1930) (CHIARELLI, 2012). Em 1935 pinta paisagens de Campos de Jordão/SP, obras de um cromatismo muito refinado. Os temas ligados a dramas humanos perma-necem em quadros de grandes dimensões: “Navio de Emigrantes” (1939/1940, com 230 X 275 cm) e “Guerra” (1942, com 290 X 204 cm), dentre outros. Na década de 1950, sua arte revela mais liberdade plástica, aproximando-se da abstração, por exemplo, em “Floresta Crepuscular” (1956).

A obra “Mãe Preta” (1930), objeto de análise deste artigo, é considerada pela crítica de arte brasileira como uma das mais instigantes que Segall produziu em uma de suas idas e vindas ao Brasil. A pintura é a representação de uma mulher negra acalentando o filho e pode ser analisada, primeiramente, pelo interesse temáti-co do artista, pois logo se percebe sua ousadia ao trabalhar o negro na materni-dade sacra cristã. A mãe preta encontra-se destacada no centro da composição, quase que delimitando a pintura, e podemos até mesmo afirmar que sua ima-gem cria uma ‘moldura sutil’. As figuras da mulher e da criança salientam-se a partir de uma verticalização fortemente estrutural, rígida, que o pintor insere em um primeiro plano ou espaço. Mas a verticalidade predominante que sus-tenta as expressões solenes do gesto da mãe que segura o filho é contrastada por linhas horizontais e diagonais mais discretas3.

As duas figuras do quadro de Segall são subordinadas ao que poderíamos denominar hieratismo intencional4. O modo como o pintor lituano as representa é conce-bido em uma estrutura espacial que ultrapassa e delimita quase que a totalida-de material da pintura do quadro. É como se estivesse a sugerir, por meio da exagerada abrangência das duas figuras, aspectos concernentes a elementos culturais étnicos, sociais e religiosos.

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O gesto da mãe preta, que segura ou acalenta o menino branco, reflete uma linha hori-zontal e outra vertical, significando assim a sustentação do filho. A verticali-dade e a centralidade constituídas nas duas figuras deixam entrever no pintor lituano justamente o seu empenho em transcender e conduzir essa particulari-dade da maternidade local para o terreno do universal5. Por último, podemos concluir que, no uso solene que o pintor atribui ao tema, além de sua signifi-cação plástica, material e técnica, seria apropriado vincularmos essa pintura à tradição das madonas ocidentais, tais como as do quattrocento, conforme afirma o crítico de arte Tadeu Chiarelli (2012).

No período entre o fim dos anos 1910 até o da década seguinte, percebemos Segall bus-cando sair do legado expressionista que adotara poucos anos antes de emigrar para o Brasil. Já sobre a fase parisiense, aponta Chiarelli (2012, p. 117-118):

O artista superava o expressionismo e o realismo com a pintura apenas preocupa-do com a realidade plástica, ou seja, adotava uma figuração equilibrada entre a abstração da forma e sua síntese, em composições estáveis, serenas, sem nenhum tipo de arroubo cromático gráfico. A essa busca de estabilidade, presente na arte europeia, sobretudo a partir dos anos 1920, Franz Roh chama novo classicismo. Interessado em diferenciar o “antidinamismo”, típico desse novo estágio da pin-tura europeia de entreguerras, e a produção das vanguardas, o autor divide os vá-rios momentos da história da arte em geral entre ‘’dinâmicos’’ e ‘’estáticos”. [...]. Por essas características assumidas pela pintura da época é que o autor atentava para uma série de momentos da história da arte, ou mesmo para alguns artistas isolados, que vinham sendo recuperados: os pintores do Quattrocento italiano, Rafael, David, os nazarenos, Puvis de Chavanes e outros. Esses antigos mestres e períodos, para Roh6, informavam ‒ quer pela ênfase à pureza estrutural, quer pelo “desenho de contorno” um número significativo de artistas em atividade naquele momento. [...]. Lasar Segall, sobretudo a partir da fase parisiense, poderia, com todo o direito, integrar tal listagem (grifo do original).

Cabe ressaltarmos que, mesmo concebendo suas obras como um meio de adesão ao modernismo paulista da década de 1920, não é certo que o artista reproduzisse um pensamento pictórico imposto pelo projeto nacionalista modernista paulis-tano, como asseguram diversas fontes. Para tal afirmação, tomamos como base o fato de o avanço das correntes pictóricas europeias nesse período histórico ter sido irreversível, e Segall era muito receptivo a todas elas. Salientamos ain-da que uma prática constante do pintor era justamente a de conciliar correntes pictóricas que aparentemente eram contrapostas.

Por outra parte, o artista não era indiferente aos movimentos teóricos que avançavam mundo afora; pelo contrário, ele se via impactado por eles, a ponto de repre-

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sentá-los. Seu interesse pelos movimentos surgidos nas duas primeiras déca-das do século XX, todavia, não era visto com bons olhos pela crítica brasileira, cabendo destacar, sobretudo, o escritor e crítico Mário de Andrade (1927), que em inúmeras ocasiões não poupou comentários sobre a maneira como Segall interpretava o humano. Mas, como afirma Chiarelli (2012, p. 93), “[...] a obra de um artista tão significativo como Lasar Segall é elemento constitutivo e fru-to de embates e dos diálogos com a cultura visual e com as discussões críticas de seu tempo”.

O artista, no entanto, emergia no cenário brasileiro não exatamente como uma ameaça ao projeto modernista; ao contrário, manter-se no foco da oficialidade do pro-jeto nacional de construção de uma identidade brasileira já era suficiente para não levantar suspeitas. Por exemplo, a construção de retratos de figuras negras anônimas e os temas relacionados à maternidade negra são prova disso7.

Ao mesmo tempo em que Segall, por meio da plástica negra, dá à matéria uma iden-tidade nacional em sua pintura, ele obriga o espectador a mover-se em vários níveis da pintura, escondendo, por meio da síntese, certos aspectos relacio-nados à sua estratégia plástica e poética. As alegorias não são simples, pois são arquitetadas por correntes pictóricas diferentes, como é o caso de “Mãe Preta”, pintada durante a fase do modernismo brasileiro em que os artistas adeptos dessa corrente buscavam a construção de uma identidade nacional em suas obras. Contudo, a consciência de identidade brasileira de Segall nunca foi muito declarada, pois suas estadas no Brasil foram constantemente interrom-pidas pelas suas viagens internacionais.

Com certa densidade, Segall absorve elementos característicos do modernismo brasi-leiro, e, a esse respeito, escreve Chiarelli (2012, p. 107): “Trata-se da resposta segalliana àquela necessidade de constituição de uma arte brasileira ao mesmo tempo moderna e ‘típica’”. Podemos falar aqui de um realismo sui generis. Se nos ajustarmos à produção dos temas nativos brasileiros, podemos inferir que Segall não nega a identidade nacional, pois basta atentarmo-nos para um dos itens centrais deste artigo, a obra “Mãe Preta”, para constatarmos isso. Dessa obra podem derivar os traços marcantes de etnia negra e indígena, ou das tra-dições fortemente afro-brasileiras.

O primeiro dado impactante de “Mãe Preta” é a representação de uma mulher negra com o filho branco no colo. Contudo, ao olharmos para os detalhes fisionô-micos da mãe e da criança, podemos destacar a parecença da boca, dos olhos e do nariz entre elas. Há uma quase simetria entre os traços da criança e os da mãe, mas, por sua vez, essa simetria poderia ser interpretada, talvez, como um recurso adotado por Segall para relatar a fusão ideal ou transcendente, em termos afetivo-morais, do tema da maternidade, ou, dito de outro modo, do arquétipo sagrado da maternidade no âmbito do cristianismo ocidental. Agora

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bem, essa fusão não alude apenas ao diálogo natural entre as duas figuras, na medida em que ambas são interpeladas a desempenhar papéis naturais no con-texto familiar, porém, faz referência tanto à origem natural quanto à sagrada na constituição familiar. No entanto, Segall transfere essa fusão de caráter sacro ou universal para uma significação social, por exemplo, quando sinaliza para o tema da miscigenação.

Também a significação social da fusão das duas figuras pode ser captada na força des-proporcional (ou gigantesca) dos braços da mãe preta, que acolhem, sustentam e delimitam o espaço figurado e utópico da criança. Por último, esses ele-mentos descritivos fazem-nos pensar na realidade árida, nativa, periférica do Brasil. É como se Segall, mesmo em sua declarada intenção sacro-universal do arquétipo da maternidade, confessasse a impossibilidade de simular as evidên-cias dos conflitos étnicos, culturais, econômicos e sociais do Brasil histórico e colonial. Ao final, na representação do arquétipo da Mãe Preta, ou do arquéti-po da Mãe da Ternura, o que o espectador vê é uma pintura de denúncia social.

Desde uma aproximação mais formal e temática da pintura “Mãe Preta”, ainda pode-mos acrescentar três outras percepções. Primeiro, quando olhamos de modo geral para o conjunto da tela, o que de imediato identificamos são as constan-tes geométricas responsáveis tanto do fundo como das figuras. Segundo, em relação às figuras que abrangem o núcleo da tela, observamos que essas são descritas em círculos e, sobretudo, em linhas verticais8. Há uma clara moti-vação ascendente na linearidade rígida que exalta a figura da mãe, motivação de ordem sacral ou transcendente. Mas essa verticalidade rígida não ocorre apenas na imagem da mãe, pois o rosto da criança no seu colo revela-se me-diante um comportamento de incorporação e de acompanhamento, como ex-pressão de associação a essa ascendência matriz, atribuindo-lhe maior solidez. Finalmente, ao se tratar de uma pintura localizada no período neoclássico de Segall (1930), podemos concluir que a ascendência de “Mãe Preta” é estática e universal.

Em face de tudo o que foi salientado anteriormente, a seguir, não há como omitir o chamado expressionismo de Segall. Observamos que esse pode ser descrito a partir de várias vertentes, por exemplo, podemos falar de um expressionis-mo de tradição alemã ou de tendência realista sintética ou abstrata. Não seria exagerado inferirmos que várias das constantes do expressionismo clássico o acompanharam até o fim de seus dias. Essa percepção nos levará a descortinar, uma vez que retomamos a visão poética e geométrica de Paris, um ponto de grave contradição: a racionalidade linear projetada sobre suas pinturas no perí-odo francês. Se captarmos com atenção, veremos que, mais do que um critério interno, ela age como um critério de confronto ou negação do expressionismo clássico, pois os temas representados com uma constante temática social não

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serão fruto de uma experiência realizada a partir do sentimento da subjetivida-de, e sim do distanciamento frio e indiferente da razão humana.

No final dos anos de 1940 até o ano de sua morte, agosto de 1957, Segall pintou várias obras cujos temas estiveram voltados para uma ética social tais como: emigração, exclusão, marginalização, prostituição e indigência.

TEOLOGIA DA IMAGEM EM CONFALONI

Figura 2: “Maternidade”, óleo sobre tela de Confaloni (1969)Fonte: Acervo da artista Sáida Cunha

Giuseppe Nazareno Confaloni nasceu em Grotti di Castro, centro da Itália, em 23 de janeiro de 1917. Aos 10 anos de idade, foi admitido na Escola do Convento Dominicano de San Marco, em Florença, e aos 23 ingressou na Academia de Belas Artes de Florença. Frequentou aulas no Instituto Beato Angélico de Pintura e na Escola de Arte de Brera, ambos em Milão, e na Escola de Pintura Al’Michelângelo, em Roma. Confaloni chegou ao Brasil em 1950, a convite de Dom Cândido Bento Maria Penso (1895-1959), bispo dominicano suíço da prelazia da antiga capital de Goiás, a Cidade de Goiás, para pintar os afrescos da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, mas seus feitos não se resu-mem a esse tipo de pintura. Mudou-se para Goiânia em 19529, onde veio a falecer em 1977.

Na história das artes plásticas do Centro-Oeste brasileiro, Confaloni é considerado um dos pioneiros da arte moderna. Em sua obra, a temática social foi a sua inspira-

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ção, o que, entretanto, não o desvinculou de sua vocação religiosa dominicana. Ao ter contato com o escritor, poeta e compositor Primo Conti (1900-1988), um dos líderes do Movimento Futurista italiano do começo do século XX, seu estilo “ousado” foi enriquecido, além de ter assimilado o movimento cultural da época, o novecento italiano, que pregava o retorno a uma figuração próxi-ma do primeiro renascimento e, simultaneamente, às paisagens metafísicas de Giorgio de Chirico10.

Mesmo tendo como trabalho principal as pinturas sacras, Confaloni aprendeu rapi-damente os fundamentos da arte moderna, em um diálogo constante com mo-vimentos que eclodiram no começo do século XX. No campo da arte sacra, os modernistas representaram um mundo secular em sua arte, tornando as repre-sentações de madonas e santos humanizadas, e Frei Confaloni não ficou alheio às transformações artísticas ocorridas no Brasil e no mundo.

Um breve percurso por suas obras desde que chegou ao Brasil permite observarmos que o frei artista sinaliza, em suas incursões pelo moderno, para um diálogo profundo com o contexto sociocultural latino-americano, sobretudo no que se refere à visão progressista voltada para a ideia da Teologia da Libertação. Contudo, se observarmos com um pouco mais de atenção, veremos que em suas obras convergem elementos que estão no âmago do cristianismo.

O artista não se aprisionou a um gênero, pois trabalhava intensamente em seu ateliê todos os dias e gostava muito de fazer experimentações. Sáida Cunha, em en-trevista aos autores11, afirmou que Confaloni pegava meias, pedaços de trapos velhos, e daquilo saía uma técnica nova trabalhada em sua pintura. A partir do fim da década de 1960, das aventuras experimentais em seu ateliê começaram a surgir suas madonas negras, pobres, singelas, algumas de feições quase in-fantis. São Marias do povo. A partir de um simples risco, em vez de um olho, ele criava sentimento, trabalhava na tela a ideia do aconchego com crianças no colo materno, o amor da mãe pelo filho, que se apresentam felizes no colo materno. Conforme Cunha (2017), Confaloni foi tirando partido do que via por perto, pois na época havia aberto uma creche no Convento São Domingos, onde provavelmente teria se deparado com essas mães. Cunha (2017) aponta alguns aspectos da pintura do frei:

A Maternidade era algo muito forte para o frei, ele absorveu muito as pessoas do campo, do meio rural, a Nossa Senhora dele é uma mulher goiana, do campo, pobre, e o Cristo criança parece feliz. O frei elevou o conceito de maternidade em sua obra, pois trabalhava com fusão das tintas, trazia o fundo para o plano principal, e com isso criava o ar, a atmosfera. Você sente a variação do plano, e ele fazia isso com uma delicadeza muito grande. A síntese das cores e os de-talhes transportam a expressão, e você entra nos quadros e sente a ternura e o

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carinho. Quanto à sua paleta de cores, ele foi limpando com o passar dos anos, houve um momento em que ele foi para Itália e trouxe o verde da paisagem da Toscana, trabalhando nossos personagens, então ele vai fazendo essa transição. O frei tinha uma liberdade de expressão gestual do desenho; desenhava batendo o lápis no papel, deixando-o correr espontaneamente, e é preciso ter muito domínio do traço para fazer isso. Isso é uma característica do seu desenho. A luz nas suas pinturas não é marcada como se quisesse um foco, ela escorrega pela tela, porque é assim na natureza, ela sai da sombra e vem escorregando e se transformando em luz.

Utilizando aspectos pictóricos (nuances, cores, sombras, luz, traços, desenho e pincela-das mais soltas), Confaloni cria uma atmosfera humana nas figuras, esboçadas em uma espécie de denúncia social, mas sem agressão. O crítico de arte Emílio Vieira (informação verbal)12 reconheceu o esforço de atualização do artista:

Esse sincretismo pictórico a que chegou resulta na combinação de soluções compositivas e de traços bem delineados que vão do desenho clássico ao de-senho expressionista, associado a um colorido que resulta da combinação de cores naturais e tons emocionais fortes, num sentido de expressão poética e lírica. Em síntese, esses recursos estilísticos condensam a linguagem pictórica de Nazareno Confaloni. Consciente disso, o próprio artista anota, no rodapé de um de seus projetos, o que serve como importante subsídio para o estudo da evolução estética em Goiás: “Apresento para a cultura goiana, a minha última experiência pictórica sem a pretensão de novas propostas, apenas o esforço e o anseio de fazer boa pintura”.

O pintor buscava, com essas experimentações, algo que o ajudasse a construir seu per-curso pelo moderno, usando como pano de fundo essencial o elemento sacro. É nesse sentido que as madonas de Frei Confaloni se tornaram negras, muitas delas inspiradas em tipos sertanejos. Siron Franco (1982) destacou o amor de Confaloni à negritude e o quanto o artista executava imagens de nossas senho-ras negras.

A representação dessas madonas são imagens que transmitem a ideia de amor e aten-ção, por exemplo, a inclinação da cabeça para a criança, imagem que cria um sentimento de muita ternura, porém, representado de maneira mínima, com poucos traços. O pintor não dá atenção às vestimentas, que são simples e sem detalhes, mas há algo que nos chama atenção nessas pinturas: o detalhe do branco de Confaloni. Conforme Cunha (2017), “[...] há uma variedade de cores em seu branco, não era puro, ele fazia uma fusão, e dessa alquimia e do próprio movimento do pincel na tela ele chegava ao branco almejado. Seu

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branco era único!”. Confaloni, com poucos traços e linhas, consegue transmi-tir um sinal de amor e afeto.

Outro aspecto ligado ao novecento italiano é o fato de ele jogar com a forma, com o desenho arredondado e simples. Em relação à posição com a qual são retra-tados, os corpos das madonas transmitem sentimento. Pinturas de madonas foi o tema pictórico predileto do artista antes de morrer, o que não é de se estranhar, afinal, a relação dos dominicanos com a figura materna de Maria é muito próxima, e isso provavelmente o teria influenciado. A referência pa-rece-nos estar mais acentuada nas formas arredondadas de algumas madonas com a criança. Há nessas composições tanta graça e interação entre a mãe e a criança que lembram quase um útero materno. Algumas delas trazem a crian-ça de costas, enquanto outras a mostram de lado e com os olhos arregalados para o espectador, ou com os olhos cerrados e com quase total ausência de elementos na forma.

A temática social também está presente nas madonas negras de Confaloni, pinturas que têm influência de personagens locais. A imagem da mãe que ampara o filho em “Maternidade” é a de uma mulher de aparência comum, negra, mas que também traz fortes traços indígenas. Seu gesto lembra escultura sacra “Deposição”, de Michelangelo, que se encontra na Galleria dell’Accademia de Firenze, Itália. Em Confaloni, a mãe amorosa ampara o filho nos braços, de olhos cerrados, cheia de gestos de ternura. Em algumas de suas madonas, as crianças estão com a cabeça levemente inclinada no ombro da mãe, algumas de lado e em sentido oposto a ela, mas todas elas parecem se entregar com confiança ao colo materno. Há um sentimento de apatia da criança na primeira figura da madona negra de “Maternidade”, e o vaso de cactos em frente a ela nos remete à ideia de sertão, o que garante à obra uma atmosfera profética e ao mesmo tempo telúrica.

Quanto à roupa, as personagens apresentam-se vestidas de modo simples, como mu-lheres humildes. Em “Maternidade”, vale ressaltar o brilho da cor branca das vestes da mãe e da criança, detalhes que revelam um pintor esforçado em re-presentar um retrato essencial que, com poucos traços e linhas e com apenas o destaque para as cores da paleta, consegue jogar com a forma e o desenho simples, destacando a posição do corpo. O principal efeito expressivo de Confaloni está na habilidade artística de provocar uma terna humanidade nas figuras de suas pinturas, cujos gestos são cuidadosamente trabalhados. O artista trouxe para sua cena pictórica sacra uma Maria humanizada e, em algumas ocasiões, com as mãos calosas e gigantes, que denotam a grandeza de sua humanidade histórica como a mãe que acolhe o filho com gestos de proteção. É um gesto de doação, mas que aparenta ser também um gesto de entrega ao filho.

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A mulher de “Maternidade”, de Confaloni, é aquela que vive a dor da pobreza e da exclusão social e econômica. A imagem carrega o tom de denúncia. Apesar de o artista ter inserido nessa obra temas e elementos regionais, a imagem de “Maternidade” revela, por outro lado, a grandeza histórica da figura de Maria. Além das referências aos traços de Maria como figura da Igreja futura (Maria Peregrina), há ainda a concepção de Maria que congrega a comunidade. Como mulher e como ser divino, Maria exerce, ao mesmo tempo, um ato de entrega e cuidado.

Em Dicionário de Mariologia, Fiores e Meo (1995, p. 300) mantêm aberto o discurso sobre a tradução cultural da nova imagem da Virgem Maria, que possui caráter mais humano:

O cap. VIII da Lumen gentium (1964) do Vaticano II, apresenta Maria inserida na História da Salvação e modelo na peregrinação da fé, sob o critério antropológi-co. Na reflexão teológica contemporânea, este critério enfatiza o valor da pessoa humana na realização da história da salvação e diante da vontade de Deus, bem como faz que o homem não seja considerado por Deus simples objeto de salvação, mas também sujeito que, embora se mantendo dentro dos limites de criatura ‒ que é ‒, coopera com ele. Aplicado a Maria, com o apoio dos textos bíblicos de Lucas, Mateus e João, este critério permitiu dar maior evidência tanto aos valores pesso-ais expressos pela Virgem na sua vida histórica como à riqueza da sua experiência cristã, o testemunho da sua fé vivida na obscuridade dos acontecimentos e das do-res, da sua obediência à vontade do Senhor e da sua esperança e caridade, quanto à generosa cooperação, livre, consciente e responsável, expressa como serviço prestado à pessoa e à obra de Cristo. Mais do que privilégios e a singularidade de Maria, elementos que a mariologia pré-conciliar acentuava, o concílio quis sublinhar o elemento humano, próprio da sua condição criatural, o qual a torna modelo de todas as criaturas e expressão de cooperação humana no plano de Deus e na obra do Salvador. Este critério antropológico, aplicado com equilíbrio, permite apresentação mais real e aceitável da personalidade feminina e religiosa da serva do Senhor, fá-la sentir-se membro, expressão eminente, figura e modelo da igreja histórica e imagem perfeita da igreja escatológica.

Com efeito, Maria torna-se humana nas mãos de Frei Confaloni, e a sacralização do humano apresenta-se em gestos de figura humilde, inserida no contexto so-ciocultural latino-americano. Mas o que estaria por trás dessa obra, a ponto de o próprio artista prostrar-se diante dela e rezar? Nela, vemos claramente a perspectiva espiritual na cosmovisão do frei artista que dá à obra histórica o conteúdo simbólico inserido nas concepções do pensamento da Teologia da Libertação latino-americana.

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Em seus constantes refúgios e deslocamentos, surge a inspiração de um modo de pen-sar a vida e a missão da Igreja inserida em um contexto de modernidade, penetrado nas preocupações históricas do mundo. Ao que parece, as escolhas e atitudes artísticas de Confaloni, que implicaram na forma da madona negra com a criança, têm uma significação sacra que assume um sentido social. Con-faloni reafirma nesse quadro o compromisso sociológico latino-americano.

DILEMAS DOS MODERNISMOS NO BRASIL Considerando a capacidade da obra “Mãe Preta” (1930), de Lasar Segall, de dialogar

com “Maternidade” (1969), de Nazareno Confaloni, é pertinente analisar al-guns elementos pictóricos de forma e conteúdo dessas duas pinturas. Tal pro-cedimento enfatiza elementos de modernidade e tradição em ambos os artistas. Se atentarmos para as duas pinturas, perceberemos dados de composição que remetem ao sacro, tais como os gestos, as cores, o simbólico, os temas ligados às narrativas bíblicas e concernentes ao estilo do hieratismo.

Ao abordarmos a questão do hieratismo como via que nos remete para o sacro, deve-mos pontualizar que existem diferenças significativas de um pintor para outro. Na pintura “Mãe Preta”, de Segall, o estilo hierático reflete-se nos seguintes detalhes da composição do quadro: este é representado por uma linha forte, vertical, acentuada no pescoço da mãe com a criança, que está rígida e parece erguer-se e incorporar-se nos braços de sua genitora. O caráter ascendente das linhas com contornos, além de indicar a significação do transcendente no horizonte do quattrocento, também ressalta, pela estrutura bidimensional da composição, a dimensão de ruptura das duas figuras com seu entorno espacial. É pertinente advertirmos que o hieratismo de Segall, de modo algum, limita-se a reproduzir as constantes históricas da visão clássica europeia, porém, ele supõe conotações próprias. O caráter rígido-hierático das figuras presentes no centro da composição não esconde os índices da identificação racial: o tom es-curo da pele da mãe, os lábios grossos, os narizes achatados, o cabelo crespo. Portanto, podemos concluir que o hieratismo de Lasar Segall carrega um tom de denúncia social13.

Em “Maternidade”, de Confaloni, o hieratismo aparece pelas motivações do tema que ele traz como uma constante no contexto local associado às tradições da vida consagrada do catolicismo. É possível afirmarmos que seu hieratismo aparece revestido de uma sacralidade pretensiosa, deliberada, mas que só pode ser per-cebida a partir da teologia da exclusão e da negação.

Outro ponto de conexão com o sacro é aquele que Lasar Segall e Nazareno Confaloni desenvolvem em função de aspectos da história da arte. Por exemplo, o gesto da mãe na obra “Mãe Preta”, de Segall, remete, como vimos anteriormente,

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ao quattrocento italiano, sendo a expressão fiel do gesto de Maria na pintura “Madona e a criança” (1508), do pintor Florentino Rafael Sanzio Da Urbino. Já o gesto da mãe em “Maternidade”, de Confaloni, contém semelhança com a escultura “Pietà Palestrina” ([s.d.]), de Michelangelo. Provavelmente essas representações teriam sido as matrizes às quais os dois artistas recorreram em suas composições.

Em relação ao cromatismo como recurso para o sacro, ambos os pintores abusam da cor branca. Em Segall, o branco celeste transmite a ideia de pureza, e podemos aven-tar ser bem provável que o pintor trabalhe com uma visão cultural judaico-cristã. Já em Confaloni, o branco remete à ideia de Páscoa, do batismo dentro do uni-verso litúrgico da tradição cristã. Por outro lado, a estrutura bidimensional de “Mãe Preta” é captada na diferenciação dos tons fortes (terroso, marrom, preto) dos suaves (cinza, branco). Os primeiros concentram-se na superfície das duas imagens, enquanto os segundos apenas se restringem a delimitar ou estruturar o fundo da pintura. No entanto, ambos os tons têm como ponto de convergência a atmosfera geometrizante que o artista projeta na tela. Sem dúvida, Segall faz uso de elementos do classicismo, tal como a geometria aplicada no âmbito das artes. No referente à “Maternidade”, a composição de fundo é resolvida por meio de uma organização de cores, do ponto de vista plástico, e não sugere a ideia de espaço interno de uma casa, apesar de no lado inferior esquerdo haver peque-nas linhas de cantos de desenho visíveis, indicando que a mãe e a criança estão em frente a uma janela. Seguindo uma perspectiva cromática, em Confaloni, a mistura de tons amarelos e terrosos indica uma extensão das figuras, designa um simbolismo sacral associado à ideia da encarnação14.

Figura 3: Escultura em mármore de MichelangeloFonte: Galleria dell'Accademia di Firenze, Itália15

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Figura 4: “Maternidade”, de Frei Confaloni

Fonte: Acervo da artista Sáida Cunha

Figura 5: “Mãe Preta”, de Lasar SegalFonte: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Culturas Brasileiras16

Em relação ao sacro, todavia, tanto Confaloni quanto Segall fazem uso do gigantismo dos membros, superiores e inferiores, porém, com pretensões diferentes. Em Confaloni, o rosto abatido da mãe em “Maternidade” denota ausência de força, que é recuperada pelo gigantismo de suas mãos e dos pés da criança. O gigan-tismo designa a ideia da mãe pobre, trabalhadora, o que traz o tom de denúncia social. Quando olhamos para essa obra, um dos pontos que se capta de ime-

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diato é a relação do gigantismo com a miséria, a pobreza, a injustiça, ou seja, com aspectos da natureza humana. Não seria menos certo se associássemos o gigantismo à ideia do Deus que, mediante a encarnação, atribui dignidade à vida humana. O pintor busca, por meio dessas representações, ressaltar a soli-dariedade do Deus que abraça o projeto humano assumindo-o e acolhendo-o.

Figura 6: Madona e a criança, de Rafaello Sanzio Da Urbino

Fonte: Pinacoteca de Munique, Alemanha17

Em Segall, o gigantismo dos membros da mãe preta não está ligado apenas à forma

física das figuras, pois também é utilizado pelo pintor como recurso da bus-ca de um protótipo de identidade nacional. Por exemplo, se repararmos no exagero das linhas rígidas que traçam os pescoços de mãe e filho, poderemos inferir que elas atribuem volume e peso escultórico ao significado universal que é pretendido no quadro18. De um ponto de vista temático e étnico, não é lícito dizermos que Segall, mediante o significado da composição das duas figuras, se propõe resolver um problema social, na linha da denúncia social. Acreditamos que ele propõe outra coisa, qual seja a de representar a questão étnica desde um ideário utópico europeu: o branco e o negro são colocados no mesmo patamar.

Outro recurso para o sacro está associado ao tema da deposição, que está representado na obra de Confaloni. Ao determo-nos no gesto da criança em “Maternidade”, percebemos que esse lembra ao de uma deposição, e, por isso, o olho do espec-tador se move de cima para baixo. Desde o olhar do espectador, a deposição, segundo essa obra de Confaloni, pode ser representada por meio de uma linha que se inicia na inclinação do rosto da mãe e segue para o rosto da criança, de onde vai para o seu braço direito para concluir em suas pernas19.

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Em relação ao tema do compromisso histórico e cultural com o Brasil nos dois pintores, também se apreciam diferenças relevantes. Percebemos que o compromisso de Segall com o período histórico no qual viveu no Brasil (1923-1927) e, conse-quentemente, com as questões socioculturais do país, é muito mais superficial do que se acredita. São temas apresentados sob uma perspectiva quase aciden-tal ou casual, o que nos provoca a indagar quão brasileira é a sua pintura, tal como o fez parte da crítica do período20. A sua indiferença ao universo brasi-leiro é lembrada, por exemplo, pelo historiador da arte Jorge Coli (1991, p. 6): “[...] para Segall, o universo brasileiro é quase indiferente. Por certo existem paisagens de Campos do Jordão, existem as imagens do Mangue, mas se trata de episódios quase acidentais”. Todavia, em vários momentos e movidos por interesses políticos nacionais, alguns críticos exaltaram o nacionalismo brasi-leiro apresentado em seus temas, como é o caso das obras “Bananal” (1927), “Mangue” (1949) e “Paisagens de Campos do Jordão” (1937)21.

No caso de Confaloni, apesar de se estabelecer em um contexto regional periférico, tinha conhecimento do que estava acontecendo nos dois grandes centros de arte do Bra-sil na época, Rio de Janeiro e São Paulo. Sua pintura de afrescos na Estação Ferro-viária de Goiânia, “Os Bandeirantes: antigos e modernos” (1954), é prova de que o artista teria assimilado o espírito do modernismo brasileiro, sobretudo, da obra do pintor ítalo-brasileiro Cândido Portinari. Esses argumentos ainda podem ser mais reforçados se nos remontarmos ao ano 1950, quando o pintor chegou ao Brasil.Nesse período havia uma arte de apelo social que paulatinamente foi desaparecen-do, em razão da criação do Museu de Arte Moderna (MAM) e do Museu de Arte de São Paulo (MASP), e da realização da I Bienal Internacional do Brasil, resul-tando em um mercado forte e com pouca evidência de crítica social. Assim, entre as tendências de movimentos internacionais e uma realidade local, Confaloni deu forma ao chamado “modernismo tardio” que surgia em Goiânia no ano de 1950.

O fato de ter se comprometido com uma linguagem singular, comum, que traduzia a rea-lidade local, porém, sem perder o diálogo com correntes forasteiras, fez de Con-faloni um artista reconhecidamente apropriado pelos intelectuais como um ícone do modernismo em Goiânia. É um pintor que mergulha na cultura local, e que denuncia a verticalidade institucional e as estruturas de poder. O artista vive uma pintura periférica que vai a contrapelo de uma teologia oficial legalizada.

Diferentemente de Confaloni, a produção segalliana acentua-se na herança clássica. Se-gall cria arquétipos que não provêm necessariamente de uma tradição milenar ocidental, e sim de seu processo de aculturação em várias partes do mundo e, no caso de “Mãe Preta”, de seu aprendizado em Paris. Em relação aos aspectos for-mais, podemos afirmar que o classicismo de Segall remonta às fontes da tradição greco-helênica, mais explicitamente da tradição platônica. Assim como em Pla-tão, afirma-se que a visão metafísica se fundamenta no uso da geometria, como

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esforço de absolutizar os grandes temas que abrangem a vida humana: o Belo, o verdadeiro, o justo, o amor; em algum sentido, podemos também dizer que, em Segall, o uso das figuras e das estruturas geométricas no período parisiense tem como objetivo ressaltar a universalidade ou a transcendência de temas como a maternidade, a questão étnica, a família. É certo que ambas as visões metafísicas pressupõem variáveis e contextos bem diferentes22.

Por se tratar de dois pintores que experimentaram o modernismo em contextos históri-cos e espaços distintos, a circulação de ideias é também da ordem geográfica. No caso de Lasar Segall, o contato direto com o expressionismo alemão e a Escola de Paris foram determinantes nas suas representações, tanto na forma quanto no conteúdo. Outrossim, ao trabalhar critérios historiográficos, dentre eles, os vários elementos de herança europeia com os quais se movia, como é o caso do quattrocento e do novecento italiano, Confaloni conseguiu literal-mente levar para Goiás tais referências culturais, representadas em sua fortuna artística legada ao povo goiano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente artigo propusemo-nos, sobretudo, a traçar algumas linhas relativas ao cam-po da pintura modernista no Brasil em face do sacro, do estético, da identidade e do teológico. E o fizemos dentro de contornos históricos específicos: o ex-pressionismo neoclássico e sintético de Segall e o realismo social de Confalo-ni. A seleção e o aprofundamento na imagem da maternidade nas composições de um e de outro pintor surgiram a partir de algumas premissas ou preocupa-ções de ordem cultural e social. Se repararmos, na narrativa artística, cultural e política do Ocidente, o arquétipo do feminino quase sempre foi descrito no cenário epifânico da concepção, segundo o marco da narrativa bíblica. Já em outro cenário ocidental, mais recente, a representação do feminino, da mater-nidade, também pode ser analisada desde o mito do patriarcado.

Como mostramos ao longo do artigo, podemos dizer que os elementos pictóricos for-mais, temáticos, épicos dos quais ambos os artistas se serviram em suas compo-sições da maternidade – e não só a partir de linhas artísticas diferenciadas, mas também desde posicionamentos políticos, teológicos e de identidade – vão ao encontro dos dois arquétipos indicados. Por exemplo, em Segall, a sacralidade subjacente em “Mãe Preta” resulta da síntese entre elementos afro-brasileiros associados ao modernismo artístico e cultural da primeira e da segunda gera-ção. Em face de uma identidade utópica que se projeta ou transcende a figura da mãe preta, o pintor universaliza o sofrimento nativo da mãe preta brasileira, e ao mesmo tempo o omite. No que concerne à “Maternidade”, de Confaloni, a sacralidade ou o epifânico presente no quadro não mais resulta de um retorno

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ao classicismo platônico ou ao quattrocento italiano, e sim de uma releitura do transcendente a partir da imanência social e histórica. No artista italiano, é notável que a via do sofrimento se torna ferramenta decisiva para a descoberta da injustiça e a criação de uma consciência materna não alienada.

Para concluir, portanto, gostaríamos de tomar emprestadas as lentes interpretativas de Schwartz (2013) sobre aspectos relevantes para pensarmos as nossas moder-nidades tardias que preferiram olhar para Paris ‒ capital da cultura na primeira metade do século XX, e, no caso de Confaloni, a cultura do novecento italiano, a olhar umas para as outras. Tal afirmativa nos remete a uma questão imperati-va colocada por Mário de Andrade em vários de seus textos de crítica: a de que a construção do projeto modernista nacionalista no Brasil sempre esteve vol-tada para questões que envolvem a cultura popular. Os modernismos apontam para o entendimento do duplo sentido que pressupõe a modernidade no Brasil: de um lado, o processo que marca a expectativa de progresso e desenvolvimen-to das cidades; de outro, a tradição que vai reconstruir identidades, por meio de continuidades com o passado histórico marcado pela exploração do negro.

BETWEEN CLASSIC AND MODERN: ELEMENTS OF SACRALITY IN LASAR SEGALL AND NAZARENO CONFALONI

Abstract: the article presents a comparative analysis between the paintings “Mãe

Preta” (1929), by Lasar Segall, and “Maternidade” (1969), by Frei Nazareno Confaloni, both produced in different periods and cultures. It starts from the idea that there are elements of connection between the works, whose sacred theme and classical aesthetics are under discussion in the construction of the modern ideology, which touches on the problems of Brazilian historical and social reality. The analysis of the works focuses on two moments: in the first, the formal elements of classical tradition and identities of national and regio-nal culture stand out in comparison with the modern imaginary that composes the artistic culture of the time. In the second, from the interpretation exercise by the principle of similarities and comparisons, sensibilities in the concep-tion of gestures of the sacral character stand out mutually. Finally, modernity is thought from the aesthetic, sacred and theological perspectives and the con-struction of identity in modernist projects in the country.

Keywords: Segall. Confaloni. Modernisms. Sacrum. Classics.

Notas

1 O termo Pathosformel, consta dos escritos de Aby Warburg. O termo não é uma teoria,

tampouco metodologia. Trata-se de uma forma observar as obras de arte com olhar intui-

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tivo e anacrônico, considerando o corpo em movimento (gestos) e as modificações de tais

imagens no decurso do tempo, em épocas, e em culturas diversas. A grande preocupação

de Warburg era o significado do corpo, em especial do corpo em movimento como um

“veículo expressivo da psiquê humana”. Para Warburg, muitos dos impulsos primitivos

que faziam parte do humano estavam assentados de alguma forma num determinado tipo

de cultura, nunca estavam de todo ausentes nas imagens artísticas. Muitas dessas imagens

artísticas, como é o caso da imagem da “Vênus” de Sandro Boticelli (“O nascimento

da Vênus”, 1484 circa, têmpera sobre tela, 172,5cm x 278,5cm, Galleria Degli Uffizi),

traziam detalhes nos gestos (movimento do corpo), que em muito o faziam lembrar a

simplicidade e a nobreza da arte clássica antiga. Didi-Huberman retoma o pensamento

de Aby Warburg, tratando o movimento de obras artísticas no tempo como “Sintomas e

Sobrevivências” das imagens.

2 Aby Warburg entendia que elementos da emoção na iconografia antiga eram reapropriados

em outros momentos históricos com diversos sentidos. Tal procedimento é baseado na ob-

servação dos movimentos e modificações das imagens em épocas e culturas diversas. Para

tanto, é preciso constituir um saber-movimento das imagens, construindo relações, com-

parações, associações, desmontando-as e remontando-as. Além de exigir um conhecimento

vasto de imagens e culturas, por meio de formação de um banco de imagens nomeado por

Warburg como Atlas Mnemonsyne. O termo Atlas Mnemosyne, significa Atlas de memória

de imagens. Sabe-se que o Atlas Mnemosyne foi um projeto idealizado por Warburg, que

acreditava haver similitudes entre as imagens, particularmente de corpos em movimentos,

desviando da ideia clássica do historicismo de Winckelman que, aliado ao pensamento es-

tético do idealismo, que colocou o ideal clássico como modelo de arte no século XVIII, o

ideal de beleza clássico da arte na Antiguidade. A preocupação de Warburg para época vinha

ao encontro da descoberta da fotografia e das imagens do cinema que começaram aparecer,

despertando questões que abarcam a relação do espectador com a imagem, sobretudo as

imagens que apresentavam a ideia de movimento (fotografia e cinema).

3 Chiarelli (2012) afirma que durante o período em que esteve em Paris (1928 a 1932), Segall

atinge a maior síntese em suas pinturas. Ressalta o autor que, apesar do encantamento com

as cores e as paisagens tropicais do Brasil, o artista opta por uma paleta fria e discreta.

4 A expressão hieratismo intencional é significativa para entender uma das linhas estruturais

do quadro. O termo hieratismo está intimamente ligado ao sagrado, ao religioso, a uma

concepção helênica ocidental, ou seja, àquilo que não sofre as mudanças do devir. Por

outra parte, dentro dessa verticalidade hierática, Lasar Segall se propõe ressaltar o caráter

inerente e universal da maternidade (REALE, 1991).

5 A atitude hierática pressupõe sempre uma ligação universal, conforme colocado na nota

anterior.

6 Chiarelli (2012) refere-se ao historiador e crítico de arte alemão Franz Roh.

7 É importante ressaltarmos que essa é uma alegoria constante identificada pelo crítico de

arte Tadeu Chiarelli (2012) como Realismo Sintético.

8 O quadro “Mãe Preta” é determinado, conforme assinala Chiarelli (2012), por um “ra-

ciocínio plástico”, no sentido de tornar interno o que seria pura exterioridade, de modo

semelhante ao que ocorre com outras pinturas. Assim, de acordo com o autor, o artista “[...]

integra igualmente outros aspectos da raça negra ao todo geral das pinturas, como o lábio

grosso, o nariz largo e o cabelo crespo das figuras, tornando-os elementos não estranhos

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à economia do quadro” (p. 91-92). E prossegue: “[...] o fundo dessas obras, realçando o

‘exotismo’ das imagens em primeiro plano, tende a soluções geometrizantes (o morro e as

palmeiras em Morro vermelho, as bananeiras em Bananal). A geometrização era presente

no primeiro expressionismo do artista judeu. Como foi indicado em diversos apartados do

artigo, Segall foi sempre um pintor aberto às vanguardas de seu tempo: futurismo, cubismo,

abstracionismo. Daí lhe vieram as constantes geométricas” (CHIARELLI, 2012, p. 108).

9 Em contato com Luís Augusto Curado (1919-1996) e Henning Gustav Ritter (1904-1979),

surgiu a ideia de abrir uma escola de pintura em Goiânia. Um ano depois, nascia a Escola

Goiana de Belas Artes (EGBA), primeira instituição escolar de ensino superior especializada

no ensino artístico em Goiás.

10 O retorno à ordem iniciou-se nos primeiros anos de 1910.

11 Entrevista concedida por Sáida Cunha aos autores em Goiânia, no dia 20 de janeiro de 2017.

12 Entrevista concedida por Emílio Vieira aos autores em Goiânia, no dia 4 de fevereiro de

2017.

13 É importante levarmos em consideração que a vida de Lasar Segall se moveu entre várias

culturas, e a construção do sagrado é algo que vem sendo estabelecido desde a tradição

ocidental. Assim, Segall carrega esse imaginário cultural cristão de modo indireto.

14 Na Teologia da Libertação, encontramos a premissa do Deus encarnado que norteia grande

parte da representação pictórica em Confaloni. O termo encarnação não é simplesmente um

mero elemento periférico na hora de fazer uma descrição da natureza divina, pois o devir

histórico – o que seria o terroso no quadro de Confaloni – exprime o espaço por excelência

no qual o Deus bíblico se deu a conhecer.

15 Disponível em: http://www.vivatoscana.com.br/2016/04/galleria-dellaccademia-o-que-ver-

-alem.html. Acesso em: 9 dez. 2020.

16 Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1491/mae-negra/. Acesso em: 9

dez. 2020.

17 Disponível em: https://virusdaarte.net/rafael-madona-tempi/ . Acesso em: 9 dez. 2020.

18 Segall, em vários de seus quadros produzidos na “fase parisiense” (“Mãe Negra” (1931),

“Mãe Preta” (1930) e “Casa na Floresta” (1931), transfere para o terreno da pintura a expe-

riência com a argila e, sobretudo, com a escultura. Com relação a esta, suas primeiras obras

datam de 1928. Podemos assim entender, em face desses dados, que o artista se serve da

composição e da estruturação aplicadas nas suas esculturas para posteriormente deslocá-las

para o terreno da pintura. Esse deslocamento atende à seguinte finalidade: reafirmar mais

seu interesse pela “poética objetiva ou sintética” nos temas da maternidade, dos negros, da

família (PERLINGEIRO, 2007).

19 Annateresa Fabris (1990, p. 79) afirma, em sua obra intitulada Portinari Pintor Social, a

presença de elementos iconográficos cristãos nos murais mexicanos, segundo Fabris (Rivera

pinta pietás em cenas de revolução social) fundidos com a ideologia marxista. Esse tipo de

imaginária está ausente da arte de Portinari, excetuando alguns quadros da série Retirantes,

em que a composição que lembra uma Pietá tem um caráter humano, mas não político.

20 Entendemos que grande parte dos textos críticos sobre a obra segalliana reverberam sobre

a maneira como o pintor tratou temas tão caros ao projeto nacional modernista da época.

Sobre a questão que aborda o caráter brasileiro da obra de Segall, ver: Andrade (1927),

Amaral (1983), Chiarelli (2012) e Schwartz (2013).

21 Duas questões importantes podem ser extraídas da fase parisiense do pintor: a primeira talvez

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tenha a ver com as demandas do nacionalismo modernista no Brasil por uma identidade

nacional, pois é nítida a diferença entre uma fase e outra. Os ditames do projeto nacional

modernista do começo da década de 1920 influenciaram na linguagem pictórica da paleta

de Segall com cores mais fortes, como é o caso da pintura “Morro Vermelho”. A segunda

questão, sublinhada por Chiarelli (2012), refere-se às mudanças de cenário vividas pelo

artista na época. Desde a Alemanha, na década de 1910, até o fim dos anos 1920, em Paris,

Segall persegue uma forma própria, agora mais sintética, e opta por conferir às composições

um caráter estático em termos de equilíbrio e síntese.

22 No expressionismo abstrato de Segall, ao falarmos da prevalência geométrica na composição

de suas pinturas, é relevante ressaltarmos que, em algum sentido, esse caráter geométrico

pouco tem a ver com a noção metafísica platônica. Na verdade, a preocupação que o

artista manifesta em relação à geometria em suas pinturas deriva do período de entre-

guerras. O parâmetro da guerra e de tudo que está subscrito nela condicionam de modo

significativo parte da produção artística segalliana, que transfere para a tela elementos de

sofrimento e irracionalidade mediante procedimentos geométricos.

Referências

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