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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO - UFPE CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO MEMÓRIAS DO MAR: A EDUCAÇÃO INFORMAL NA COLÔNIA DE PESCADORES Z-9 DE SÃO JOSÉ DA COROA GRANDE - PE AYRTON PEREIRA CORREIA DE BARROS JUNIOR RECIFE, 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO - UFPE

CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM EDUCAÇÃO

MESTRADO EM EDUCAÇÃO

MEMÓRIAS DO MAR:

A EDUCAÇÃO INFORMAL NA COLÔNIA DE PESCADORES Z-9

DE SÃO JOSÉ DA COROA GRANDE - PE

AYRTON PEREIRA CORREIA DE BARROS JUNIOR

RECIFE, 2016

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AYRTON PEREIRA CORREIA DE BARROS JÚNIOR

MEMÓRIAS DO MAR:

A EDUCAÇÃO INFORMAL NA COLÔNIA DE PESCADORES Z-9

DE SÃO JOSÉ DA COROA GRANDE - PE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação Stricto sensu em Educação da

Universidade Federal de Pernambuco, na linha

de pesquisa Subjetividades Coletivas,

movimentos sociais e educação popular, sob a

orientação do Prof. Dr. Rui Gomes de Mattos

de Mesquita, como requisito para obtenção do

título de Mestre em Educação.

RECIFE, 2016

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AYRTON PEREIRA CORREIA DE BARROS JÚNIOR

MEMÓRIAS DO MAR: A EDUCAÇÃO INFORMAL NA COLÔNIA DE

PESCADORES Z-9 DE SÃO JOSÉ DA COROA GRANDE – PE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação.

Aprovada em: 21/06/2016.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________________________

Profº. Dr. Rui Gomes de Mattos de Mesquita (Orientador) Universidade Federal de Pernambuco

______________________________________________________________________

Profª. Drª. Karina Mirian da Cruz Valença Alves (Examinadora Externa) Universidade Federal de Pernambuco

_______________________________________________________________________

Profº. Dr Gustavo Gilson de Oliveira (Examinador Interno) Universidade Federal de Pernambuco

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Ao meu pai, Ayrton Pereira Correia de Barros

(in memoriam)

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AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

Aos meus filhos, Adriel e Mariana, e a minha esposa, Sandra Freitas.

Vocês são a razão e o sentido da minha vida.

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AGRADECIMENTOS

A minha mãe, Irene de Sá Cavalcante, pelo apoio incondicional, pelo seu amor infinito e por

tudo que me proporcionou ao me pôr neste mundo.

As minhas irmãs: Keyla, Kylma e Kelly Barros, pela ajuda nos afazeres do dia-a-dia,

evitando que eu perdesse tempo de estudo durante o mestrado.

Ao meu orientador, Rui Mesquita, que me guiou como um farol, conduzindo-me com sua luz

de sabedoria, com muita paciência e humildade, para um porto seguro, na construção do

conhecimento em educação.

Ao meu amigo, Luis Lucas Dantas, que me ajudou com os estudos e que foi um irmão, nos

momentos que mais precisei.

Aos meus colegas de trabalho, que de uma forma ou de outra, colaboraram através de

palavras de afirmação e incentivo.

Aos meus professores e aos meus colegas de mestrado em educação, com os quais caminhei

lado a lado, ora perdidos, ora achados, mas na certeza de que compartilhamos o melhor da

amizade.

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RESUMO

Investiga-se a relação entre a educação informal e a manutenção da pesca artesanal e do modo

de vida dos pescadores na Colônia de pescadores Z-9 em São José da Coroa Grande, cidade

do litoral sul pernambucano. Utiliza-se, desde uma articulação metodológica entre Paul

Ricoeur e Ernesto Laclau, a história oral, explorando categorias como trabalho artesanal,

economia solidária, economia popular, educação informal. Os dados coletados foram

transcritos e analisados de forma cautelosa, a partir de categorias estabelecidas pelo encontro

entre teoria e dados empíricos. Concluímos que a identidade dos pescadores é essencialmente

discursiva, construindo ou perdendo potência política na medida de sua capacidade de não se

deixar enredar pelas lógicas sociais dominantes, hegemonizadas pelos interesses do capital e,

especificamente falando, da pesca industrial. Nisto, a educação informal se relaciona

intrinsecamente com a pesca artesanal, sendo essencial a sua manutenção, na medida em que

possa se contrapor aos efeitos nefastos de uma escolarização voltada para o mercado.

Palavras-chave: Educação Informal. Pesca artesanal. Narrativas. Ernesto Laclau. Paul

Ricoeur.

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ABSTRACT

We investigate the relationship between the informal education and the maintenance of

artisanal fisheries and the livelihood of fishermen in the colony of fishermen Z-9 in São José

da Coroa Grande, a city of the southern coast of Pernambuco. We used, since a methodology

joint between Paul Ricoeur and Ernesto Lacrau, the oral history, exploring categories such as

craftsmanship, solidarity economy, popular economy, informal education. The collected data

were transcribed and analysed carefully, using categories established by the encounter

between theory and empirical data. We concluded that the identity of the fishermen is

essentially discursive, building or losing political power to the extent of its ability to not to get

caught by the dominant social logic, equalized by the interests of the Capital and, specifically,

by the Industrial fisheries. This informal education is closelyrelated to artisanal fisheries,

being essencial for its maintainance, to the extent that it can counteract the harmful effects of

a market-oriented schooling.

Keywords: Informal Education. Artisanal fishing. Narratives. Ernesto Laclau. Paul Ricoeur.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 12

2 A COLÔNIA DE PESCADORES Z-9: TRABALHO ARTESANAL E

EDUCAÇÃO INFORMAL ............................................................................................ 29

2.1 CENÁRIO DA PESCA ARTESANAL EM PERNAMBUCO E SEUS

DESDOBRAMENTOS COM A EDUCAÇÃO INFORMAL .......................................... 38

2.2 ORGANIZAÇÃO DA COLÔNIA DE PESCADORES Z-9: AS ARTICULAÇÕES

COM A EDUCAÇÃO NÃO FORMAL E O ESTADO ................................................... 44

2.3 EMBATES ATUAIS DA COLÔNIA Z-9: PROBLEMAS, DILEMAS DA

EDUCAÇÃO INFORMAL E POTENCIALIDADES DA PESCA ARTESANAL ........ 50

3 ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICO DA PESQUISA ................................. 56

3.1 ANÁLISES DAS MEMÓRIAS E NARRATIVAS COM FUNDAMENTO NA

TEORIA DO DISCURSO DE ERNESTO LACLAU ...................................................... 59

3.1.1 Conceito de demanda ..................................................................................................... 60

3.1.2 Conceito de demanda democrática e demanda popular .............................................. 61

3.1.3 Conceito de identidade ................................................................................................... 63

3.1.4 Conceito de discurso ....................................................................................................... 65

3.1.5 Lógica da diferença e lógica de equivalência ............................................................... 65

3.1.6 Relação entre tríplice mímesis da narrativa em Ricoeur e a teoria do discurso em

Laclau ............................................................................................................................... 67

3.1.7 Integração, antagonismo e intriga ................................................................................. 70

3.1.8 Metáfora, metonímia, ambiente metonímico e hegemonia.......................................... 71

3.1.9 A relação, o sujeito e o discurso .................................................................................... 73

3.1.10 A metáfora viva, o significante, o significado e os significantes vazios ..................... 74

4 MEMÓRIAS DO MAR – A EDUCAÇÃO INFORMAL NA COLÔNIA DE

PESCADORES Z-9 ........................................................................................................ 76

4.1 ANÁLISES DA PESCA ARTESANAL E O DISCURSO DA

SUSTENTABILIDADE..... .............................................................................................. 76

4.2 ANÁLISES DA TRANSMISSÃO DE SABERES DOS ―MESTRES

PESCADORES‖..... .......................................................................................................... 83

4.3 ANÁLISES DO PROCESSO DE INTEGRAÇÃO A EDUCAÇÃO FORMAL NA

COLÔNIA DE PESCADORES Z-9..... ............................................................................ 89

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 94

REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 97

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1 INTRODUÇÃO

Pensar educação exige atenção à determinada sócio-lógica, de contornos pragmáticos,

mas também, de maneira não dicotômica, voltar-se para certa dimensão antropológica, que

parte de uma ontologia do político para pensar a constituição mesma do ser social. Assim, é

fundamental saber e atentar para o fato de que conflitos socialmente estruturados limitam e

constituem apenas em parte o ―fazer‖ educacional. Pensar educação é, então, pensar o

humano inserido em contextos sociais específicos, particulares, e como tais contextos se

relacionam com a continuidade dos projetos, razões e ideias que toda sociedade faz de si.

Pensar educação é, por isso tudo, não apenas pensar a escola na sociedade, mas também os

espaços extraescolares entendidos como espaços de ensino-aprendizagem que podem

estabelecer relações com a estrutura social que fujam às lógicas sociais hegemônicas.

Não se pode dissociar educação de vida e como tal, é fundamental observar a história e

questionar sua pretensa linha evolutiva: da vida nômade para a vida fixa, da caça aleatória

para o cultivo, do cultivo para a formação de propriedades e assim por diante. Desta forma, na

perspectiva aqui adotada, a lógica industrial não nasceu como um momento necessário, como

já se fizesse presente, geneticamente, como atividade real, a partir da atividade artesanal que a

antecedeu. Em todas estas circunstâncias históricas, o ensino-aprendizado, as formas

educativas, o confronto de múltiplas possibilidades para a emergência de subjetividades se

fizeram necessários para se construir a vida em sociedade, nos tempos e respectivos espaços.

Há quem restrinja a educação à escola e há quem diga que a função social da educação

enquanto escola é preparar para o mercado de trabalho. Mas, antes mesmo de chegar à escola

(espaço institucionalizado), o indivíduo já aprendia os ―costumes‖ (ethos) de casa, bem como

os ofícios que eram produzidos no âmbito do lar. De alguma forma, ―o homem é aquilo que a

educação dele faz‖ (KANT, 1996, p. 15). O pensamento de Kant atribui à educação um valor

cultural para a humanidade, na qual a cada geração se constrói e, consequentemente, se

transforma.

Obviamente, o filósofo considerava a educação do ponto de vista intencional de um

indivíduo auto-centrado. Tal indivíduo estava inserido em um projeto político específico, a

saber, o projeto liberal que terminou hegemonizando a modernidade. Mas, ainda assim, Kant

não desconsiderava o papel primário da família neste processo. Ou seja, há processos

coletivos de subjetivação por mais que as instituições democráticas liberais teimem em

atomizar o indivíduo. Com isso, queremos sublinhar que a ideia de uma educação formadora

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do sujeito numa dimensão coletiva e comunitária é o foco no qual a presente pesquisa se

debruça. Isso por considerarmos que a formação da subjetividade se dando para além da

escola (instituição estruturante das democracias liberais), pode comportar múltiplos

paradigmas de educação.

A escolha do objeto desta pesquisa foi motivada pela inquietação (entender como e

por quê) advinda do exercício da minha profissão de docente em uma instituição federal de

ensino técnico profissional, inserida numa região litorânea, onde boa parte dos alunos são

filhos de pescadores artesanais ou lavradores comunitários. Sempre quis entender quais as

razões ou expectativas que levam tais estudantes a buscarem na escolarização uma atividade

profissional bem diferente dos seus pais.

Daí vieram os questionamentos quanto à eficiência, à maneira, e ao sentido de ser e

fazer a educação técnica profissionalizante para aqueles que vivem tradicionalmente numa

cultura do trabalho artesanal, rica em valores e conhecimentos da pesca que eu, como

professor, nos primeiros momentos desconhecia. Com o passar do tempo fui inevitavelmente

pensando na comparação entre os distintos processos de ensino-aprendizagem: da educação

informal, feita pelo pai pescador, e da educação formal adquirida através dos professores na

escola.

Diante deste contraste, entre a busca do conhecimento da educação informal feita

através do trabalho artesanal (aparentemente mais criativo e livre) e a educação formal

(técnica), pensada pragmaticamente para o mercado de trabalho, me propus a pesquisar como

o pescador artesanal ensina os saberes da pesca artesanal aos seus filhos e os desdobramentos

deste processo.

Dito isto, faz-se necessário trazer à luz o ambiente no qual o objeto de estudo está

inserido. A atividade da pesca artesanal e a educação informal constituem a base da história

de muitas comunidades litorâneas e ribeirinhas do país. No entanto, considerando toda a

abrangência e influência da vida industrial na história social hodierna, as potencialidades e

riquezas desse modo de viver e produzir artesanalmente encontram-se sobre sérias ameaças,

dentre as quais se ressaltam o super incentivo do Estado à atividade industrial e a consequente

desvalorização das atividades artesanais, com seus valores e modos de vida alternativos.

Assim, além dos pontos de vista político e econômico, há também uma questão cultural: a

geração mais nova, assim que tem condições, sente-se propensa a abandonar o ofício familiar

para trabalhar nas grandes cidades, geralmente em indústria ou comércio. Já os mais idosos

não pensam em abandonar o ofício, mas não gozam de saúde para sustentá-lo.

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Neste contexto, é sabido que o Brasil possui um imenso litoral marítimo e ambientes

aquáticos com infinita quantidade de espécies de peixes, crustáceos, moluscos, entre outros,

considerados popularmente como frutos do mar ou do rio, todos ricos em nutrientes

significativos para alimentação humana. Os povos nativos, nossos ancestrais, ao longo de toda

sua existência, realizavam a pesca artesanal para se apropriar dos recursos naturais como meio

de vida:

Os índios desconheciam a agricultura, vivendo da caça e da pesca.

Cultivavam a mandioca e colhiam frutos e outros vegetais da floresta, como

não estavam acostumados ao trabalho pesado, não se adaptaram ao serviço

na agricultura, como desejavam os portugueses. Por essa razão, foram

trazidos para o Brasil os escravos negros da África (CAMARGO, 2001, p.

203).

Percebe-se, na referência acima apresentada, que a atividade nativa deixa de ser

valorizada pela atividade de interesse de outro grupo. Esta dinâmica é histórica e faz parte

também da herança cultural nacional. Assim, facilmente se percebe como a lógica industrial

assume o lugar da lógica artesanal: com o avanço das relações capitalistas de produção a

partir do continente europeu e a difusão de valores vinculados ao acúmulo de excedentes da

produção de alimentos, com finalidade comercial e obtenção de lucro, foram se modificando

qualitativamente e quantitativamente as relações da atividade da pesca artesanal.

Antes apenas para auto sustento, agora em uma profissão: pescador/a profissional, que

foi tendo sua força de trabalho apropriada gradativamente pelos aglomerados da pesca

industrial, com embarcações de grande porte e fazendo uso da pesca em grande escala de

produção de acordo com as razões capitalistas do trabalho e seus interesses e lógicas de

mercado. Este processo de industrialização da pesca destoa do trabalho artesanal, que pode,

numa perspectiva popular, assumir sentidos contra-hegemônicos, o que remeteria a uma

politização da economia. Tal politização corresponde, nos nossos termos, a um trabalho da

"subjetividade" para além daquelas determinações estruturais (formação de trabalhadores

eleitores), ou seja, de uma pretensa determinação do econômico a partir de um suposto

desenvolvimento imanente das forças produtivas.

Esta análise é pertinente, pois faz uma alusão à atividade educativa: antes se aprendia

para viver, agora se aprende para corresponder aos interesses do capital. Deste modo, o

aprendizado passa a ter valor distinto perante a vida, uma vez que a educação assume o que

antes era ―meramente‖ um sentido: sentido de viver.

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Diante destas análises preliminares, para contextualizar o atual cenário da pesca

artesanal no país, atento às dimensões políticas, sociais e econômicas, é preciso observar o

que diz o site do Ministério da Pesca e Agricultura (2014):

Um em cada 200 brasileiros são pescadores artesanais. Considerada uma das

atividades econômicas mais tradicionais do Brasil, a pesca artesanal é

exercida por produtores autônomos, em regime de economia familiar ou

individual, ou seja, contempla a obtenção de alimento para as famílias dos

pescadores ou para fins exclusivamente comerciais. É uma atividade baseada

em simplicidade, na qual os próprios trabalhadores desenvolvem suas artes e

instrumentos de pescas, auxiliados ou não por pequenas embarcações, como

jangadas e canoas. Esses pescadores atuam na proximidade da costa, dos

lagos e rios.

Ciente do caráter constituinte da dimensão econômica, apresentada acima, que remete

a certo estilo de vida, se faz pertinente refletir a relação entre a pesca artesanal e a educação

informal, pois esta nos parece ser uma dimensão importante para o processo de reprodução,

resistência e reinvenção das vidas dos/as pescadores/as artesanais. Busca-se compreender o

quanto e como tal relação contribui para a permanência das comunidades e colônias de

pescadores. Esta relação é, pelo que vimos defendendo, articuladora, no sentido de que a

identidade dos elos articulados - educação informal e pesca artesanal – modificam-se como

efeito da própria articulação. Contestando, nesses termos, uma centralidade do econômico,

Laclau entende por articulação:

Em outros contextos históricos, as posições do nível das relações de

produção irão se articular com as outras de formas diferentes, sem que seja

possível a priori garantir a centralidade de nenhuma delas. Um problema,

porém, permanece insolúvel: o que é que garante a separação entre as

diferentes posições de sujeito. A resposta é: nada, nenhuma delas é imune à

ação das outras. A diferenciação relaciona-se, certamente, com a

impossibilidade de se estabelecer uma conexão necessária e prévia entre

elas; mas isto não significa a inexistência de esforços constantes para

estabelecer entre elas conexões variáveis e historicamente contingentes. A

este tipo de conexão, estabelecendo entre várias posições uma relação

contingente e sem predeterminação, é que chamamos de articulação.

(LACLAU, 1985, p. 4)

A citação acima nos indica definir articulação como a possibilidade de estabelecer

relações não necessárias entre objetos, mesmo que, aparentemente, desde as lógicas sociais

hegemonicamente estabelecidas, eles sejam diferentes entre si, não relacionáveis. As relações

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sociais, assim, por mais estáveis e naturalizadas que possam parecer, são da ordem da

contingência. No nosso caso, quando chamo a atenção para uma articulação entre a pesca

artesanal e a educação informal, o faço como verificação empírica, mas também como

possibilidade, como potência para além de sua objetividade estruturalmente ancorada.

É desde esse entendimento que leio o seguinte relato de Trilla (1985, p. 19) sobre

educação informal: "não existe o reconhecimento social generalizado do papel educacional do

agente como função própria ou específica, este não apresenta nenhum atributo especial e

explícito que, no marco do processo educacional de que se trate, credite-o propriamente como

educador‖. Refletindo sobre esses processos informais de educação, chamo a atenção para

essa ausência de caracterização profissional do educador. É que a partir daí podemos construir

as condições para entender alguns sinais de resistência emitidos por essas comunidades à

racionalidade das práticas tecnicistas da educação formal para o mercado de trabalho

industrial. Isso no sentido preciso de que tal ausência pode, potencialmente, promover desvios

nos padrões de sistematização e segmentação do modo produtivo da pesca.

Esse nosso entendimento do conceito de educação (informal / sem escola) a partir da

perspectiva enunciada acima por Trilla pode ser associado ao pensamento de Ivan Illich:

A educação pode ser o resultado de uma instrução, mas de um tipo de

instrução totalmente distinto de treino prático. Deriva de uma relação entre

colegas que já possuem algumas das chaves que dão acesso à informação

memorizada e acumulada na e pela comunidade. Baseia-se no esforço crítico

de todos os que usam estas memórias criativamente. Baseia-se na surpresa

da pergunta inesperada que abre novas portas para o pesquisador e seu

colega (ILLICH, 1973, p. 45).

Acreditamos, portanto que a educação pode e deve acontecer fora da escola (formal /

institucionalizada) e realizar-se plenamente na comunidade, através do trabalho e das

atividades comuns ao seu grupo de pertencimento. Deste modo, pensamos que o pescador

artesanal não tem que ser escolarizado para desempenhar bem suas habilidades de pescador,

até mesmo porque, os currículos escolares não formam diretamente o pescador. Sua formação

imediata se dá no barco em alto mar, na colônia de pescadores na beira da praia, nas relações

e articulações com seus pares, colegas pescadores, familiares inseridos na pesca, da sua

criatividade e do seu esforço para sobreviver deste meio.

Contrapomo-nos ao discurso hegemônico de que fora da escola não há salvação para

os mais pobres, ou que estes, só poderão alcançar uma condição de vida melhor através da

escola. O que percebemos é que a igualdade não é promovida pela escolarização, porém o

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discurso da necessidade da escola impossibilita ou dificulta a apropriação dos processos de

aprendizagem por parte de indivíduos ancorados nas comunidades. Entendemos que a escola e

seus processos de educação formal alienam o indivíduo, como afirma Illich:

A alienação, na concepção tradicional, era consequência direta do fato de o

trabalho ter-se convertido em trabalho assalariado, o que tirava do homem a

possibilidade de criar e ser recriado. Agora, os jovens são pré-alienados

pelas escolas que os isolam, enquanto pretendem ser produtores e

consumidores de seus próprios conhecimentos, concebidos como mercadoria

que a escola coloca no mercado. A escola faz da alienação uma preparação

para vida, separando educação da realidade e trabalho da criatividade. A

escola prepara para institucionalização alienante da vida ensinando a

necessidade de ser ensinado. Aprendida esta lição, as pessoas perdem o

incentivo de crescer com independência; já não encontram atrativos nos

assuntos em discussão; fecham-se às surpresas da vida quando estas não são

predeterminadas por definição institucional. A escola, direta ou

indiretamente, emprega a maior parte da população. A escola ou retém a

pessoa por toda vida, ou assegura que se ajustarão a alguma instituição.

(ILLICH, 1973, p.87).

A citação demonstra um dos efeitos negativos da educação formal, a alienação do

conhecimento técnico, que é apresentado sem que se tenha uma noção a que projeto

civilizacional se está servindo. Consideramos tal alienação extremamente nociva à formação

do indivíduo, pois limita sua criatividade, que é subsumida numa história linear, teleológica e,

por consequência, lhe torna dependente dos valores fundantes do sistema capitalista. Nossa

ótica do processo ensino-aprendizagem tem como princípio a concepção de que educar é

emancipar, promover e capacitar às competências do sujeito para que este seja independente e

criativo para além da instituição escolar, e isto não se encontra presente nas propostas das

escolas tradicionais brasileiras. Uma educação que não diz respeito às realidades das

comunidades, as quais, a escola deveria fazer parte. Uma educação que pouco ou nada

aproveita do conhecimento empírico dos seus alunos para construir o saber e permitir a

criatividade e a liberdade de pensamento. Uma educação que não atende às necessidades

básicas da comunidade, não estimula o trabalho comunitário tão pouco valoriza os costumes e

tradição, por exemplo, os saberes da pesca artesanal.

É significativa, nesse contexto, a escassez de literatura acadêmica na região Nordeste

sobre o tema da pesca artesanal. Tal escassez é especialmente verdade se considerarmos a

possibilidade de relacionar tal tema à educação informal e, ainda mais, se o fizermos sob a

perspectiva de articulação acima apresentada e que tomamos da teoria do discurso de Ernesto

Laclau.

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Nas pesquisas bibliográficas realizadas encontram-se algumas teses e dissertações com

o tema da pesca artesanal. Entretanto, as pesquisas apresentavam este objeto sob a lente dos

aspectos geográficos da atividade pesqueira, com viés etnográfico, antropológico, sociológico

e com textos descritivos sobre a divisão do trabalho, dados hidrográficos, quantidades de

produção do pescado, números econômicos do segmento, enfim, análises voltadas para as

disciplinas de geografia, economia, sociologia, antropologia, etc. Ou seja, com pouca ou

nenhuma relação direta com a educação informal na pesca artesanal e, tão pouco, uma análise

discursiva das narrativas dos pescadores.

Foram percebidos como principais autores e referenciais teóricos, na quase totalidade

dos textos, dois autores: Antônio Carlos Díegues, em seu livro Pescadores, camponeses e

trabalhadores do mar, e Cristiano W. Noberto Ramalho, no seu texto Artesãos do Mar da

Praia de Suape, PE e sua Tese de Doutorado, defendida na UNICAMP em 2007,

Embarcadiços do Encantamento: Trabalho como Arte, Estética e Liberdade na Pesca

Artesanal de Suape. Mesmo com objetivos e perspectivas do objeto bem diferentes da nossa

pesquisa, alguns tópicos dos textos acima colaboraram no entendimento e construção do

estado da arte sobre a pesca artesanal e as comunidades praieiras e ribeirinhas. Como uma

bússola, nortearam a delimitação do campo da pesquisa, bem como, na imersão dos estudos

da pesca.

Este trabalho possui como lócus de investigação o litoral Sul de Pernambuco,

especificamente a Colônia de Pescadores Z-9 de São José da Coroa Grande. Há duas questões

centrais aqui, que diante do contexto já problematizado, foram causa-motora da investigação:

como se dá a educação informal na colônia de pescadores Z-9 de São José da Coroa Grande

e qual a relação desta com a manutenção da pesca artesanal, considerando sua importância

para a reprodução do modo de vida dessa comunidade pesqueira?

Para responder tais questões, é fundamental uma apresentação da comunidade a

colaborar com a investigação: a Colônia de Pescadores Z-9 distancia-se cerca de 110 km da

capital pernambucana. Já nas primeiras visitas realizadas ao campo de pesquisa, percebe-se

que, assim como a literatura especializada nos indica que ocorre em todo país, a pesca

artesanal em Pernambuco, especialmente no que se refere à Colônia de Pescadores de São

José da Coroa Grande, sofre com conflitos, limites e desafios de toda ordem social,

econômica, estrutural e de políticas públicas para o setor.

Alguns destes conflitos são intermediados pelas entidades de representação dos

movimentos sociais dos pescadores que demandam junto aos órgãos competentes de

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regulamentação, organização e de investimento, como o Ministério da Pesca. Na luta por

melhores condições para desempenhar a atividade e proteger seus direitos, essas

representações em nível nacional realizaram a I Conferência Nacional da Pesca Artesanal, em

Brasília – DF em setembro de 2009. Nesta Conferência, os pescadores apresentaram um

relatório descritivo em que constava o seguinte diagnóstico da pesca artesanal no país:

Os pescadores e pescadoras artesanais são responsáveis por 65% da

produção pesqueira nacional que representa mais de 500 mil toneladas por

ano (dados do MPA). Muito da pesca desembarcada não é contada e a forma

de recolhimento dos dados é muito precária, sendo que esses dados

subdimensionam a real produção do setor da pesca artesanal. Esta produção

é resultado da atividade de mais de 700 mil trabalhadores em todo o país,

segundo o governo. Estima-se que exista mais de 1 milhão de pescadores e

pescadoras e a maioria não possui documentação profissional. Apesar dos

números, a categoria ainda possui baixa escolaridade, enfrenta condições

precárias de trabalho e conta com pouca ou nenhuma infra-estrutura para

beneficiamento e venda do pescado. (I CONFERÊNCIA NACIONAL...,

Brasília, 2009)

Diante do exposto, passados quase sete anos, outras conferências nacionais

aconteceram, porém, nas entrevistas realizadas por ocasião da pesquisa, analisando as

narrativas dos pescadores, constatei que essa situação pouco mudou. Todavia, não abordo

todas as questões e dilemas deste segmento, até porque não é este o presente objetivo. Faço o

registro de que os movimentos sociais da pesca artesanal possuem representatividade e se

articulam politicamente na defesa das comunidades praieiras e ribeirinhas para preservar o seu

modo de vida, a pesca artesanal e a sustentabilidade da economia familiar.

Entretanto, a presente pesquisa explora apenas subsidiariamente, nas entrevistas,

processos informais de educação que ocorrem no âmbito dos movimentos sociais. Isto porque,

estes movimentos sociais interessam mais no sentido preciso de participarem da constituição

de um ambiente discursivo (metonímico, como veremos) no qual as narrativas dos pescadores

podem ser enunciadas com maior ou menor efetividade social, entendida aqui como

verossimilhança ou, alternativamente, poder de convencimento. As enunciações discursivas

estão conformadas por lógicas espacialmente materializadas que, segundo a teoria do discurso

de Laclau (LACLAU; MOUFFE, 1985, p. 109), podem ser de dois tipos básicos: 1) Sociais:

são de predomínio das lógicas da diferença, quando ocorrem aproximações metonímicas,

paradigmáticas, entre elementos de um sistema de significação e 2) Políticas: são de

predomínio das lógicas da equivalência, quando tais aproximações são de ordem metafórica,

formam uma cadeia de equivalência capaz de produzir legitimidade às demandas (solicitações

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/ exigências) não satisfeitas, para além de determinado sistema de significação. Quando não

atendidas, essas demandas podem gerar os pontos de tensão com a lógica estrutural

dominante; quando atendidas são absorvidas por tal lógica (diferencial).

Em síntese, a filosofia política de Laclau desenvolveu duas lógicas na construção do

discurso, que para sua análise são essenciais: a lógica da diferença e a lógica da equivalência.

A lógica da diferença é o conjunto complexo do social, uma realidade simbolicamente

estruturada; enquanto que a lógica da equivalência corresponde a uma subversão política

dessa lógica relacional, o que implica numa simplificação do tecido social. Estas lógicas são

mutuamente dependentes, intrínsecas e constitutivas de um mesmo processo. Por isso, a

lógica da equivalência só existe a partir da existência de um efeito discursivo, decorrência da

lógica da diferença: ―dois termos para serem equivalentes devem ser diferentes - de outro

modo seriam simplesmente idênticos. A equivalência existe através do ato de subversão

destes termos.‖ (LACLAU; MOUFFE, 1985, p. 109).

A presente pesquisa analisa a experiência da Colônia Z-9 exatamente nesse liame entre

a integração ao sistema diferencial hegemônico de significação (o que compreende a lógica

industrial de produção pesqueira) e a construção, por lógica equivalencial, de ambientes

metonímicos funcionalmente deslocados de tal sistema e que, portanto, não se subtraem à

hegemonia desse modo de produzir. Assim, ao chamar a atenção para a existência de lógicas

sociais e políticas se configurou como um importante aporte para o entendimento da tensão

entre produção capitalista e produção artesanal. Um exemplo simples nesta relação opositora

é considerar o ambiente metonímico construído pela produção capitalista e como tal saber que

os valores da produção artesanal não têm nesse ambiente um terreno fértil para sobreviver.

Neste sentido, a tensão pode, na tradição marxista, ser entendida como dualidade dialética,

quando o trabalho artesanal, sendo negado como ―com-tradição‖, é tão somente superado -

teleologicamente - pelo trabalho industrial. Para contrastar com a teoria laclauniana, vejamos

como Erich Fromm, quando estuda o conceito marxista de homem, termina cedendo a essa

noção de superação dialética, mesmo que não deixe de considerar a dificuldade de se romper

com um "véu místico" do trabalho artesanal:

O processo vital da sociedade, estribado no processo de produção material,

não rompe seu véu místico até ser tratado como produção por homens

livremente associados, e é conscientemente regulado por eles de acordo com

um plano assentado. Isso, entretanto, exige da sociedade um certo

fundamento material ou conjunto de condições de existência que, a seu

turno, são o produto espontâneo de um longo e penoso processo evolutivo.

(FROMM, 1962, p. 26).

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O pensamento em questão tem, entretanto, o mérito de chamar a atenção para o valor

social do trabalho artesanal, na medida em que deixa claro que sua extinção só viria a se

concretizar depois de um "penoso processo evolutivo", ou seja, através da força tanto

impositiva como de convencimento do capital.

Entretanto, pensando tal absorção do trabalho artesanal não como uma necessidade,

mas como processos que, mesmo em sua concretude, podem ser considerados como

contingentes, como desenvolvimentos possíveis dentre outros, a discussão sobre a tensão

entre o ofício da pescaria artesanal frente aos valores da lógica industrial ganha outro alento,

outra perspectiva política. O que importa aqui não é a existência ou não do ofício

propriamente dito, mas o valor deslocado da ordem capitalista que daí pode advir. Por isso,

este – o valor social do trabalho – nunca foi o problema, pois sempre existiu.

O problema surge no modo de configurar-se socialmente, isto é, no ―como‖ ele pode

existir no agora: como uma demanda democrática, plenamente absorvida na lógica relacional

dominante, ou como demanda popular, potencialmente capaz de inaugurar lógicas políticas -

equivalenciais - que destoem do modo industrial, capitalista, de produzir. Daí a necessidade

de pensar o sentido (como se constrói na colônia de pescadores o processo educativo e o valor

cultural da herança dos saberes ali testemunhados pelos que compõem a colônia) e a questão

social (a busca pela preservação da cultura de pesca nos moldes artesanais da Colônia frente

às demandas sociais e a produtividade em massa e tecnológica que a caracteriza no tempo

hodierno).

Portanto, para verificação das demandas oriundas da relação entre educação informal e

pesca artesanal, ambas, responsáveis pela subsistência e construção da existência da colônia

de pescadores, acreditamos ser relevante pensar, a tensão entre tais estruturas e o conflito

social, utilizando-se como base para esta análise a teoria do discurso de Ernesto Laclau. Em

Laclau (2013, p. 133), a equivalência e a diferença são incompatíveis entre si. Elas, no

entanto, como vimos, precisam uma da outra como condição necessária para construção do

social ou, em outros termos, a construção da unidade de um espaço discursivo. O social,

assim, nada mais é do que o lócus dessa irredutível tensão.

Diante deste contexto, na observação de campo, detectei que a realização de cursos

teórico-práticos (educação formal), como treinamentos para os pescadores, eram um canal de

articulação com as lógicas sociais hegemônicas das quais faz parte o modo industrial de

produzir. Isto me levou aos seguintes questionamentos: Que tipo de racionalidade/lógica esses

processos formais de educação ensejam? Que valores são rechaçados por tal racionalidade?

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Que tensões guardam com os processos educacionais informais a serem analisados? O que

esses últimos têm de potencial e quais os limites discursivos que se lhes impõem?

Portanto, levando em consideração o ambiente cotidiano dos pescadores – em seus

aspectos econômicos, culturais, afetivos, políticos – e vendo aí certas instabilidades

estruturais, seus constantes movimentos internos/externos, observando a tensão entre as

lógicas da equivalência e da diferença em seus debates, foi que analisei as narrativas como

objetos discursivos, que dentro de uma cadeia de significados que conseguem produzir e

transmitir conhecimento, de modo informal, entre seus agentes sociais.

Tendo como principal fonte da pesquisa as entrevistas narrativas (que nos propiciaram

o delineamento de certo ambiente discursivo), produzimos um material (fonte oral) que nos

serviu nas análises destas narrativas, através da teoria do discurso de Laclau. Para melhor

compreensão do que trataremos no decorrer deste trabalho, faz-se necessário apresentar aqui,

mesmo que em síntese, o que entendemos como discurso. Segundo Laclau:

Ao invés de encarar o sujeito como uma fonte que forneceria um significado

ao mundo, vemos cada posição de sujeito ocupando locais diferentes no

interior de uma estrutura. A esta estrutura ou conjunto de posições

diferenciais, damos o nome de discurso. (LACLAU, 1985, p.4).

A ideia de Laclau é pertinente porque não aborda o sujeito de uma perspectiva

voluntarista ou subjetivista, como se os atores sociais fossem portadores de identidades auto-

referente. O sujeito é uma categoria formal em Laclau; é muito mais um sujeito que emerge

da falha da estrutura em se fechar como um sistema diferencial de significação, e que Laclau

capta naquela necessidade mútua e tensão irreconciliável entre as lógicas sociais e políticas -

diferença e equivalência. É assim que Laclau rompe tanto com o estruturalismo quanto com o

subjetivismo, na tensão entre a fixação e a falha da subjetividade.

Neste sentido, compreendendo o discurso como conjunto de posições diferenciais no

interior de uma estrutura – no caso, o campo da pesca artesanal – há de se questionar também

sobre onde se dão as práticas discursivas que analisamos, ou seja, o espaço social ou cenários

possíveis onde ocorrem tais práticas. Em um raciocínio redutor, para efeito de exposição,

pode-se dizer que temos, de um lado, um discurso competitivo, formado pela indústria,

caracterizada pelo progresso, pelas relações impessoais, pelo desenvolvimento. Por outro

lado, um discurso artesanal, associativista, solidário. Esses discursos, entretanto, não existem

em essência pura, ao contrário, como comentamos em relação às gerações mais novas que são

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interpeladas pelo desejo de posicionamento no mercado de trabalho formal, eles se

interpenetram em uma malha interdiscursiva.

Assim, a atribuição de determinado sentido à atividade laborativa, que dá factibilidade

a determinada forma de existir, necessita de um ambiente onde circulem valores favoráveis ao

sentido desejado. Isso proporciona a reflexão sobre como se relacionam tais discursos, que

valores rechaçam e negam, que valores mobilizam, como se dá nesse jogo político a tensão

entre as lógicas da equivalência e diferença, dentre tantos outros aspectos.

Ressaltando os trabalhadores artesanais e o modo como vai se delineando sua

subjetividade coletiva, identifiquei que produzem uma discursividade potencialmente capaz

de resistir, em alguns aspectos, à lógica capitalista da industrialização que oprime e rechaça

valores afins às relações de trabalho sob a ótica da pesca artesanal. Escapam parcialmente,

portanto, à lógica diferencial hegemônica operada pela economia de mercado, não permitindo

que esta última tudo abarque, como se reduzisse a colônia de pescadores, o mercado

pesqueiro e o próprio Estado a meras diferenças estruturais.

Para lidar com a problemática, já exposta, utilizo como fundamentação teórica, além

da teoria do discurso de Ernesto Laclau, alguns elementos da teoria hermenêutica de Paul

Ricoeur. As teorias em tela são plenamente articuláveis na medida em que ambas levam em

consideração - conforme meu argumento - o contexto de cada enunciação discursiva. Para

Ricoeur, nesse sentido, “todo discurso se produz como um acontecimento, mas se deixa

compreender como sentido” (RICOEUR, 2005, p.113).

Como acontecimento, entende-se a experiência do sujeito registrada pelas suas

narrativas como um ou mais fatos vivenciados que não estão capturados obrigatoriamente por

um sentido histórico objetivado, específico, podendo deste estar deslocados. Fazemos uso do

entendimento de Larrosa (2002) ao afirmar que: ―[...] palavras criam sentido, criam realidades

e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação‖ (LARROSA, 2002, p.21).

Para ele, a experiência é sempre impura, confusa, demasiada ligada ao tempo, à fugacidade e

à mutabilidade do tempo, demasiado ligada a situações concretas, particulares, contextuais,

essa é ligada ao corpo, a paixão, ao amor, ou, ao ódio. Enfim, a experiência é um

acontecimento. Como se observa, por exemplo, na fala do Mestre pescador entrevistado:

Cheguei logo pra praia, pequeno assim né, aí ficava ajudando no barco né.

Indo limpar o barco por ali, 10 anos, 11 anos... Aí quando foi lá pelos 13

anos... Eu já fui pro mar já! Comecei com 13, 14 anos eu já tava indo pro

mar já. Aí, daí segui, sai pescando, aprendendo, aprendendo... Aí essa

maioria de tempo eu pesquei mais com uma pessoa só, um mestre só... Aí fui

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aprendendo com ele, aprendendo com ele... Ainda hoje pesco com ele ainda.

(Mestre Pescador, 35 anos, Colônia Z-9).

Vislumbramos na narrativa acima o caráter de um acontecimento, uma vez que relata

uma experiência que se dá à margem do processo das lógicas industriais de produzir. Tal

acontecimento pode, como nos ensina Ricoeur, ser compreendido como sentido, mas, não

estando atado, de antemão, à lógica diferencial hegemônica, pode, como pensa Larrosa, se

abrir para a construção de subjetividades potentes. A educação informal ali posta em relação

com o trabalho artesanal, pode, assim, ganhar múltiplos e inescrutáveis sentidos. Dá-se de

forma aparentemente inconsciente, mas esta forma de aprender ganha um sentido político

mais intencional na medida em que se vincula a uma tradição do próprio ofício, ou seja, à

manutenção daquele "véu místico" observado por Fromm.

Outro aspecto importante deste acontecimento é o reconhecimento do mestre,

enquanto ser de autoridade, enquanto ser que possui riqueza porque tem conhecimento

teórico-empírico do ofício. Na educação informal ali construída, o mestre relatado nada mais

era que o professor: ―os professores desempenham papel importante na legitimação da

distribuição do conhecimento feita pelas escolas e na preparação dos papeis sociais futuros

das crianças com base nas classes sociais‖ (CARNOY, 1993, p. 162). Naquele discurso, no

acontecimento mencionado, o mar era a sala de aula, o pescador era o mestre-professor e o

jovem era o aprendiz. Eis a educação informal (sem intenção consciente de ensino) em

potência e ato.

Neste pequeno relato, o pescador narra como foi iniciado na pesca, ou seja, o início de

sua educação informal para o trabalho. É nesse ambiente discursivo que acontece a

transmissão/construção dos saberes da pesca artesanal, que se dá na observação de ver fazer e

fazer para aprender – pescar (dimensão extralinguística do discurso) e pela repetição das

narrativas dos pescadores (dimensão linguística).

Trabalho, portanto, com uma perspectiva antiessencialista de sujeito, que é comum aos

autores em tela. No ofício da pescaria, por mais religiosidade que tenha a comunidade, não

existe – como poderia supor abordagens mais românticas – no seu cotidiano, nenhuma

referência a qualquer dom no agir. Ao contrário, fica clara certa percepção de que é preciso

interesse, atenção e dedicação para que, desde cedo, se possa aprender o ofício e buscar

construir, cada qual, suas competências e habilidades, consolidando dessa maneira as

experiências e vivências particulares, as quais são únicas. Nesse ambiente informal de

educação, percebemos, assim, que os aprendizes vão tomando as rédeas de seu processo de

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aprendizagem de uma forma muito ativa, desde sua própria experiência. Tal experiência é

mais fácil de ser vivida como um acontecimento, na medida em que este processo não é

conformado por conteúdos escolares sistematizados externamente a sua vida e não

respondem, dessa maneira, a sentidos historicamente conformados.

É nesse sentido que trabalhamos com a categoria do tempo como o eixo organizador

da experiência. A investigação atenta-se ao fato de que os discursos metodologicamente

delimitados no espaço discursivo se estruturam a partir de diferentes noções de tempo.

Desnaturalizar o tempo torna-se, portanto, fundamental para não aceitar a unidade (refere-se

aqui àquela tensão apontada por Laclau entre lógicas da diferença e da equivalência) dos

discursos hegemônicos como dada objetivamente, ou seja, como "a" racionalidade desde a

qual deveríamos fundamentar nossa análise. Já segundo a filosofia de Paul Ricoeur, ―o tempo

torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo, e a narrativa

alcança sua significação plenária quando se torna uma condição da existência temporal‖

(RICOEUR, 2012, p.93). Desde essa abordagem, ao desvencilhar nossa abordagem de uma

linearidade do tempo histórico, podemos vislumbrar, nos sujeitos pesquisados, indícios de

autonomia para organização temporal de suas próprias experiências.

É nessa perspectiva que a pesquisa corrobora com Laclau e Mouffe, para quem algo

sempre escapa ao discurso, pois o discurso é prática e, como tal, articula dimensões

linguísticas e extralinguísticas:

Nossa análise rejeita a distinção entre práticas discursivas e não discursivas.

Afirma: a) que todo o objeto é constituído como um objeto de discurso, na

medida em que nenhum objeto é dado fora das suas condições de

emergência; b) que qualquer distinção entre os usualmente chamados

aspectos linguísticos ou comportamentais da prática social é, ou uma

distinção incorreta, ou necessita achar seu lugar como diferenciação dentro

da produção social de sentido, que é estruturada sob a forma de totalidades

discursivas. (LACLAU; MOUFFE, 1985 p. 107).

Entendo assim a prática da pesca artesanal e a transmissão dos saberes do pescador

como dimensões inexoravelmente articuladas e inseridas num campo de discursividade, do

qual a colônia de pescadores é parte, e que, como consequência das relações que aí

estabelece, ao longo das gerações, podem sofrer cambiamentos na sua identidade como

resultante das articulações discursivas que os afetam. Tais cambiamentos, de acordo com a

abordagem em tela, para se deslocarem do tempo histórico, teriam que ir abrindo mundos que

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lhes dessem factibilidade. Temos como resultado ambientes discursivos múltiplos e

heterogêneos e não uma unidade sócio-histórica homogênea.

Para melhor compreensão desses ambientes discursivos complexos, adotamos a teoria

do discurso de Ernesto Laclau, que apresenta como suas principais teses as relações

incomensuráveis entre o universal e o particular; o antagonismo e o deslocamento como

exteriores constitutivos do discurso; a identificação e subjetivação constituída politicamente;

o significante vazio e a impossibilidade do social, entre outros conceitos que, por sua

complexidade, explicarei apenas no decorrer dos capítulos desta dissertação.

Portanto, trata-se de uma teoria do discurso que servirá de apoio para análise das

narrativas dos pescadores na transmissão de saberes através da educação informal, objeto de

estudo. As enunciações discursivas serão aqui analisadas não como um ato subjetivista, mas

como ações performáticas inseridas em contextos onde a categoria de relação (tensão entre

equivalência e diferença) joga um papel central. Nesse contexto, Laclau afirma que:

O discurso constitui o território primário da objetividade enquanto tal. Por

discurso, como tentei esclarecer várias vezes, não tenho em mente algo que é

essencialmente relativo às áreas da fala e da escrita, mas quaisquer conjuntos

de elementos nos quais as relações desempenham o papel constitutivo. Isso

significa que os elementos não preexistem ao complexo relacional, mas se

constituem através dele. Assim, ―relação‖ e ―objetividade‖ são sinônimos.

(LACLAU, 2013, p. 116).

A relação ou a objetividade são categorias fundamentais para Laclau, é nas relações

entre as demandas que a significação ocorre. Segundo ele:

―[...] um acúmulo de demandas não atendidas e uma crescente inabilidade do

sistema institucional em absorvê-las de modo diferenciado (cada uma delas

de forma isolada das outras). Estabelece-se entre elas uma relação de

equivalência. O resultado, caso a situação não seja contornada por fatores

externos, poderia facilmente ser um abismo cada vez maior a separar o

sistema institucional das pessoas.‖ (LACLAU, 2013, p. 123-124).

As demandas, mesmo que aparentemente isoladas, criam entre si uma relação de

equivalência. Portanto, é considerando as demandas coletivas dos pescadores e como se dão,

no bojo de sua construção política, as relações (articulações) entre prática pesqueira artesanal

e educação informal que podemos detectar quais são os pontos de tensão entre equivalência e

diferença existentes nas suas narrativas e como as escolhas aí envidadas conformam ou

modificam aquela prática.

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Esses pontos de tensão referem-se às questões centrais que prejudicam a pesca

artesanal no estado de Pernambuco, segundo levantamento da Pastoral da Pesca, como por

exemplo:

1- Crimes ambientais praticados pelas empresas de carcinicultura (criação de camarões

em viveiros) blindadas por políticas específicas e agraciadas com incentivos

governamentais;

2- Construção de barragens, transposições de rios, a exemplo dos empreendimentos de

suporte aos grandes projetos econômicos, que na implantação não consideram os

territórios tradicionais pesqueiros e a pesca artesanal como atividade produtiva;

3- Políticas de financiamento e investimentos inadequadas para a atividade pesqueira

artesanal;

4- Desconsideração da cultura local;

5- Investimentos em pesquisa e assistência técnica distante dos interesses dos pescadores

e pescadoras;

6- Reservas extrativistas ignoradas e políticas públicas específicas insuficientes e/ou

desconsideradas;

7- Falta de compromisso político para enfrentamento dos problemas ambientais

crescentes que afetam diretamente a pesca artesanal.

Todavia, não discutirei todas as demandas acima citadas. A pesquisa focou naquelas

que foram identificadas nas narrativas dos pescadores/as entrevistados/as. Bem como, as

demandas mais relevantes (que constituem uma relação significativa com a educação informal

na pesca artesanal) notadas na observação do campo e da pesquisa como um todo.

Para organizar melhor os estudos, este trabalho foi estruturado em três capítulos

análiticos, mais esta introdução (capítulo 1) e das considerações finais (capítulo 5). No

segundo capítulo, contextualiza-se a pesca artesanal em Pernambuco, sendo esta fundamental

para situar historicamente as seções seguintes. Também este apresenta os embates atuais da

colônia: problemas, dilemas da educação informal e potencialidades da pesca artesanal,

importantes para identificar empiricamente as categorias com as quais se trabalha nesta

pesquisa e no método construído para as análises.

Posteriormente, apresenta-se a Colônia de Pescadores Z-9, de São José da Coroa

Grande-PE, em sua organização e estrutura, inclusive no que tange às ameaças cotidianas que

as práticas artesanais sofrem da razão técnica/tecnicista através de processos de educação

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formal como parte de políticas públicas e os efeitos dessas para a constituição da

subjetividade coletiva dos pescadores.

O terceiro capítulo expõe ainda os aspectos teórico-metodológicos da pesquisa, onde

se desenvolve o desenho aqui iniciado para a análise da articulação entre o trabalho artesanal

e a educação informal, pois é sobre esse eixo que repousa a pergunta central da pesquisa.

Trarei, nesse contexto, conforme anunciado, as contribuições teóricas de Paul Ricoeur e

Ernesto Laclau ao debate.

Na abordagem deste debate, busca-se compreender como se dá efetivamente o

processo de transmissão dos saberes (aprendizagem e ensino) para permanência da pesca

artesanal, diante da modernização e industrialização do modo de produção do segmento

pesqueiro, que "aliena" o trabalhador e destrói a cultura e a tradição das comunidades de

pescadores. Para o fechamento deste capítulo, num esforço de articulação entre Laclau e

Ricoeur, discuti-se a aprendizagem narrativa como construção de ambientes favoráveis à

Educação Informal, a partir da tese ricoeuriana de que a explicação é sempre ancilar da

compreensão. Este capítulo alicerça o objeto de estudo e demonstra a relevância desta

pesquisa na compreensão das narrativas dos pescadores que enfrentam ou sucumbem às

ameaças e ora resistem, ora não, às transformações do seu "modo de produzir" em face da

industrialização da pesca.

Ainda num último capítulo, demonstra-se, no caso específico da colônia em tela, como

ocorre este processo de Educação Informal, no aprendizado e ensino da pesca artesanal,

através das narrativas obtidas nas entrevistas com os pescadores. Utilizando, para isto, o

desenho do método construído no capítulo anterior.

Ao final do quarto capítulo, analiso as evidências de transformações sofridas na

colônia e os esforços para manutenção e resistência da atividade da pesca artesanal como

sobrevivência da colônia. Com isto, acredita-se responder o problema exposto - como se dá a

educação informal na colônia de pescadores Z-9 de São José da Coroa Grande e qual a

relação desta com a manutenção da pesca artesanal, considerando sua importância para a

reprodução do modo de vida dessa comunidade pesqueira - bem como, atingir as demais

problemáticas deste trabalho.

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2 A COLÔNIA DE PESCADORES Z-9: TRABALHO ARTESANAL E EDUCAÇÃO

INFORMAL

A pesquisa histórica mantém com a teoria da história uma relação de

fecunda tensão: por um lado, toma-a como direcionadora do seu olhar, por

outro, nega-a, para sustentar que o vivido é sempre novo e alheio a toda

teoria (REIS, 2006, p.7).

Na construção deste capítulo, utilizamos como fonte, a história oral da colônia de

pescadores de São José da Cora Grande, obtidas nas entrevistas narrativas realizadas no

campo de estudo com os pescadores. A escolha deste tipo de fonte na constituição do corpus

da pesquisa nos pareceu coerente aos propósitos da pesquisa uma vez que:

"História oral" é termo amplo que recobre urna quantidade de relatos a

respeito de fatos não registrados por outro tipo de documentação, ou cuja

documentação se quer completar. Colhida por meio de entrevistas de variada

forma, ela registra a experiência de um só indivíduo ou de diversos

indivíduos de uma mesma coletividade [...] Dentro do quadro amplo da

história oral, a "história de vida" constitui uma espécie ao lado de outras

formas de informação também captadas oralmente (QUEIROZ, 1991, p. 5-

6).

Neste sentido, objetivando captar os valores, tradições e lógicas discursivas que

conformam às práticas laborais e educativas que nos propomos a investigar, adotamos como

matéria-prima principal as narrativas dos pescadores, por nos darem acesso a uma estrutura

narrativa que conforma o modo como constroem a história da colônia, os seus modos de vida,

os seus dilemas e, por fim, a própria pesca artesanal na região. Nesse contexto, fiz uso

também do diário de campo e das observações empíricas, que ajudaram na análise do discurso

dos/as pescadores/as.

Reflito, neste capítulo, sobre trabalho artesanal, economia solidária, economia popular,

educação informal e educação não formal, tentando perceber a maneira como esses temas se

fazem presentes na colônia de pescadores. Ao assim proceder, estive atento a toda uma

discussão sobre certa disputa quanto ao sentido político dessas alternativas econômicas e os

riscos de absorção pela lógica de mercado capitalista e integração ao controle de Estado,

assim como, alternativamente, a sua construção como atividades organicamente vinculadas a

um projeto contra-hegemônico de sociedade. Cotejo, dessa maneira, com a lógica analítica

apresentada na Introdução, que procura, em síntese, captar as tensões entre as lógicas da

diferença e da equivalência num campo discursivo no qual está inserida a Colônia Z9, para

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então identificar a relação entre educação informal e os pontos efetivos ou potenciais de

tensão entre as pescas industrial e artesanal.

Faz-se necessário, antes de tudo, expor nossa compreensão de trabalho artesanal,

tendo como referência inicial Marx (2008), ao explicar que trabalho é o resultado da relação

entre o homem e a natureza. Vejamos:

No processo de trabalho, a atividade do homem opera uma transformação,

subordinada a um determinado fim, no objeto sobre que atua por meio de

instrumento de trabalho. O processo extingue-se ao concluir-se o produto. O

produto é um valor-de-uso, um material da natureza adaptado as

necessidades humanas através da mudança de forma. O trabalho está

incorporado ao objeto sobre que atuou (MARX, 2008, p.214).

Desta forma, Marx entende que o trabalho é o esforço (físico/mental) promovido pela

livre criação, numa ação intencional do ser humano, para produção de insumos ao utilizar-se

dos recursos naturais e assim transformando-os em objetos (coisas), ou em alimentos.

Entretanto, observando que a sua definição comporta a categoria de relação entre duas partes

(homem e natureza) - e que esta relação pode ser entendida, desde a teoria do discurso

laclauniana, como uma articulação -, consideramos que os elos articulados modificam ambas

identidades prévias ao processo de trabalho.

Neste sentido, como trabalho artesanal (arte - do latim = técnica/habilidade - manual),

a arte de pescar foi uma das primeiras técnicas e/ou habilidades de trabalho desenvolvidas

pela humanidade, e que até os dias atuais resiste em boa parte do mundo, através das

comunidades tradicionais. A ontologia desse "ser" tradicional, certa maneira de estar no

mundo a qual já nos referimos, depende em boa parte dessas relações de articulação que se

dão no trabalho. Esta pesca é definida como artesanal porque é realizada de determinada

forma (e não de outra): livre e manual, com uso de utensílios criados e desenvolvidos pelo

próprio pescador artesanal, que detém o conhecimento de todo processo do seu trabalho.

Vejamos como esse entendimento pode dialogar com Diegues (1983), quando define os

pescadores artesanais como aqueles:

[...] que exercem a pesca como atividade exclusiva, utilizando meios de

produção próprios ou de um grupo familiar ou de vizinhança, não

estabelecendo vínculos de assalariamento entre os produtores, utilizando

instrumentos de produção com baixo emprego de tecnologia, entre outras

características que diferem estes pescadores daqueles conhecidos como

embarcados de empresas pesqueiras (DIEGUES, 1983, apud CARDOSO,

2009, p.6)

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Primeiramente temos que considerar que deste trabalho da pesca artesanal realizada na

colônia Z-9 resulta na formação de uma economia significativa para manutenção de uma certa

maneira de estar no mundo dos pescadores e que se materializa em práticas de não

assalariamento, de organização em grupos familiares e vizinhanças. Vê-se que a relação que o

homem tem com o trabalho não se restringe a uma descrição técnica restrita ao chamado

mundo do trabalho.

É a partir desse entendimento que podemos dialogar com dois modelos nominados e

conceituados de economia, a saber: o modelo de economia popular o outro modelo de

economia solidária. Essas economias giram em torno da produção excedente da pesca

artesanal e do seu beneficiamento na colônia. A quantidade de pescado que o pescador não

necessita para seu sustento é comercializado para suprir outras necessidades para sua

manutenção, que não apenas o próprio alimento. Essas duas práticas econômicas tentam se

diferenciar do modelo econômico capitalista, que visa apenas o lucro em cima da produção e

na exploração na mão de obra do trabalhador. Nesse sentido corrobora ainda a explicação de

Diegues (1983):

O pescador artesanal (...) vive exclusivamente da pesca e é dessa atividade

que ele deve retirar não somente os seus meios de subsistência, mas o

excedente, que, transformado em dinheiro, irá pagar os seus compromissos

com o comerciante-financeiro onde adquiriu o seu motor ou sua rede. No

entanto, o próprio caráter de pequena produção não lhe permite uma

acumulação constante, na medida em que vive ainda ao sabor dos ciclos

naturais. A possibilidade de se reproduzir como produtor independente

reside na abundância relativa do pescado, nas áreas costeiras, que pode

alcançar com sua embarcação. A dependência cada vez maior do mercado

pode induzi-lo a explorar esses recursos acima de sua capacidade de

reprodução natural. A predação desordenada desses recursos poderá

significar também seu fim como produtor independente e sua proletarização

em algum barco de pesca industrial ou sua marginalização como

subempregado nas áreas urbanas. (DIEGUES, 1983, p.216).

A citação ajuda a entender que a pesca artesanal promove uma economia que gira

praticamente apenas em torno da manutenção do próprio trabalho, do sustento do pescador e

da colônia. Seu "fracasso" em lidar com a natureza segundo determinado ritmo pode ter como

corolário, para o autor em tela, a marginalização e/ou o sob-emprego. Nesse contexto, a

economia solidária, que quer beneficiar diretamente os trabalhadores e não tem o caráter

capitalista da apropriação da força de trabalho em troca de um salário, não trata

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obrigatoriamente de diferenças que devem conviver organicamente em um mesmo sistema

social de relações.

Ao contrário, percebemos uma resistência da colônia de pescadores contra a pesca

industrial, na medida em que esta devasta os recursos naturais em grande escala, não deixando

cardumes suficientes para os pescadores independentes, prejudicando a economia solidária da

colônia. Abre-se, assim, espaço para que a experiência desses pescadores artesanais seja

apreendida equivalencialmente no bojo de um movimento popular, ou seja, contra a economia

capitalista hegemônica.

Paul Singer, nesse contexto, mesmo que não opere em abordagem discursiva, reforça

nossa lógica analítica - que observa, lembremos, a tensão entre lógicas sociais e políticas -

quando considera a economia solidária uma estratégia de luta do movimento popular e/ou

operário contra a exclusão social e o desemprego. Neste sentido, afirma:

A construção da economia solidária é uma destas outras estratégias. Ela

aproveita a mudança nas relações de produção provocada pelo grande capital

para lançar os alicerces de novas formas de organização da produção, à base

de uma lógica oposta àquela que rege o mercado capitalista. Tudo leva a

acreditar que a economia solidária permitirá, ao cabo de alguns anos, dar a

muitos, que esperam em vão um novo emprego, a oportunidade de se

reintegrar à produção por conta própria individual ou coletivamente.

(SINGER, 2000, p. 138).

A citação endossa o que observamos empiricamente na colônia, quanto ao movimento

dos pescadores na manutenção da pesca artesanal. Nota-se que novas formas de organização

da produção, à base de uma lógica oposta àquela que rege o mercado capitalista - nos nossos

termos se configurando uma tensão entre lógica da equivalência (articuladora de demandas

populares) e da diferença (que remete à absorção das demandas sociais como demandas

democráticas, isoladas de outras) - estão presentes na colônia de pescadores, através do

trabalho cooperativo e da livre organização do trabalho, que permite reintegrar o pescador à

produção por conta própria, independente da produção industrial.

Isso porque o pescador artesanal, neste caso, não trabalha e produz para atender a

demanda de uma empresa da pesca industrial, em troca de um salário, por um tempo (horário)

e local (lugar) pré-determinados e com rígidas atividades pré-estabelecidas ou segmentadas de

todo processo da pesca. Ao contrário, o pescador artesanal trabalha para ele mesmo, com livre

escolha e discernimento sobre o melhor momento (tempo e local) para realizar a pesca,

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atividade que ele domina todo o processo e a produção destina-se ao sustento da sua própria

família e da comunidade, dentro do modelo, como veremos, de economia solidária.

Importante perceber que, conforme Tiriba (1998), nem toda economia popular é

solidária e nem toda economia solidária é popular. Foi necessário fazer essa distinção para

melhor identificarmos o que acontece na colônia pesquisada. Sendo assim, fazemos aqui a

diferenciação conceitual entre a economia popular e a economia solidária para "esclarecer" ou

entender o sentido contextual que adquirem as práticas laborais-educativas artesanais

(experiência) que investigamos e o quanto significam na sua relação com a educação informal

e trabalho artesanal.

Ao abordar a economia popular nos referimos a um determinado público, composto

por desempregados, com ou sem qualificação técnica, bem como, por outros grupos de

excluídos dos processos de desenvolvimento de tecnologias, dos programas sociais

(assistenciais) do governo, da distribuição de renda e do sistema econômico formal. Seguindo

o conceito de economia popular defino por Lia Tiriba (2001):

La economía popular es el conjunto de actividades económicas y prácticas

sociales desarrolladas por los sectores populares con miras a garantizar, a

través de la utilización de su propia fuerza de trabajo y de los recursos

disponibles, la satisfacción de las necesidades básicas, tanto materiales como

inmateriales. (TIRIBA, 2001, p. 176).

Desta forma, entendemos que a pesca artesanal na Colônia Z-9 tem o caráter de

economia popular porque ela é feita por pescadores e marisqueiras, pessoas simples de um

segmento popular, sem escolarização ou curso técnico-profissional, que utilizam a própria

força de trabalho e os recursos naturais disponíveis para garantir seu sustento. Bem como

nunca tiveram carteira de trabalho assinada e que se encontram às margens do sistema

econômico formal.

Enquanto que, por economia solidária, o sentido do termo solidariedade que

percebemos no campo empírico não se confunde com caridade, nem com paternalismo, ou

com filantropia. Ao contrário, tem a ver com a ideia do trabalho coletivo, comunitário,

cooperativo, capaz, ao menos potencialmente, de proporcionar um comprometimento com

uma nova ética nas relações de trabalho, nas relações econômicas e comerciais advindas de

práticas articulatórias concretas. É nesse sentido político que entendemos a pesca artesanal

realizada na colônia de pescadores Z-9 como solidária, pois os pescadores realizam um

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trabalho coletivo em seus barcos, sempre com 3 a 4 pessoas e em pró da comunidade, onde a

colônia propicia a cooperação para o beneficiamento do pescado.

Entretanto, percebemos que nem todas as atividades desenvolvidas na economia

popular têm o caráter solidário. O objetivo principal da economia solidária é possibilitar a

subsistência dos que a praticam. Contudo, conceitualmente falando, na economia solidária,

podemos notar que nem todas as iniciativas são populares ou coletivas. Tiriba (1998) nos

alerta para possibilidade de encontrarmos elementos de solidariedade em relações de outros

extratos sociais, que não os populares.

Essa discussão sobre economia popular e economia solidária nos parece importante

para o entendimento da colônia de pescadores Z-9, pois o sentido concreto que esta

experiência pode ganhar depende, em parte, da relação ora estudada entre pesca artesanal e

educação informal. É desta relação entre trabalho e educação informal para o trabalho que

acontece a economia popular e/ou a economia solidária, sendo ambas de suma importância

para a afirmação de um estilo de vida ou forma de se estar no mundo por parte dos pescadores

analisados. Nessa última, o trabalho solidário e/ou cooperativo humanizam as relações entre

os pescadores em boa medida porque se dão através de uma educação informal (sem um

currículo específico ou alguma intencionalidade com o fim pragmático de mercado), o que,

supomos, aproxima vida e trabalho. Assim foi observado no campo empírico e na narrativa da

pescadora marisqueira:

É assim... É a gente vive assim em regime de economia familiar. Agora cada

um pega sua produção, eu vou com a minha irmã, com a minha cunhada,

mais ela pega a produção dela, eu pego a minha... Entendeu? Agora assim,

tem vez que eu vou, eu num pego meio quilo aí ela pega um quilo entendeu?

Cada uma tem a sua produção. É uma base assim que eu tô contando. Assim,

aqui a gente não tem uma cooperativa pra chegar e entregar o produto, a

gente mesmo que vende. (Marisqueira, 29 anos – Colônia Z-9).

A construção dessas economias populares e/ou solidárias pelos pescadores é o que

diferencia a essência do modo de vida da colônia Z-9 do sistema econômico capitalista

utilizado na pesca industrial de grande escala.

Diante do que já foi explicado, para melhor compreensão do nosso objetivo, faz-se

necessário explicitar o uso que temos feito dos conceitos de educação informal e não formal.

Vejamos o que diz Maria Lúcia de Arruda Aranha (2006):

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[...] a educação informal caracteriza-se por não ser intencional ou

organizada, mas casual e empírica, exercida a partir das vivências, de modo

espontâneo. O comportamento da criança vai sendo modelado por meio da

repetição; depois ela interioriza a expressão ou o gesto aprendido, que se

tornam normas de comportamento: agradecer com um ―obrigado‖

transforma-se em hábito de polidez. Ou o contrário, caso não tenha sido

educada para tal. (ARANHA, 2006, p.94)

Nota-se, na citação, que a educação informal é desprovida da intencionalidade de

ensinar por ensinar, como também não utiliza uma metodologia sistematizada de ensino. Essa

educação informal se dá na transmissão da cultura, primeiramente realizada na família, depois

no convívio com os amigos, no trabalho e no lazer, promovendo um processo de

aprendizagem que não se percebe claramente o que está se aprendendo. Podendo acontecer

alguns atos deliberados nessa aprendizagem, mas em sua maioria são atos acidentais.

Simplificando a definição: é a educação que acontece fora da escola, sem intenção de ensinar

e sem planejamento ou organização para que ela aconteça.

Na atividade da pesca artesanal a educação informal permeia todo ambiente narrativo

na família e na colônia, a criança desde pequena, antes de tornar-se pescador (a), vivencia

experiências relativas ao trabalho da família e apreende os saberes da pesca de maneira

informal (sem formas pré-definidas), como constatamos nas entrevistas narrativas, numa das

falas da marisqueira, quando perguntamos: Quando e como começou a pescar?

É... Minha família toda, toda ela vive nessa atividade de pesca né! E foi um

negócio que eu fui indo, porque também não tinha outra opção, aqui a maior

fonte de renda que eu acho que é a pesca e... Meu pai ia pescar... Eu pegava

vinha com a vizinha, com a outra por que minha mãe foi-se embora, me

deixou com 3 (três) anos, mais ou menos... Aí assim, eu ia com a vizinha,

com minhas irmãs também né, com meus irmãos. Meus irmãos a maioria

pesca embarcado, mas eu pesco mais assim no mangue, na foz, assim entre o

mar e o rio. Desde que eu me entendo de gente. Desde sempre... A gente

começa indo pequeno né? O caminho é aquele é uma jornada já!

(Marisqueira, 29 anos - Colônia Z-9).

Na fala da marisqueira, identificamos que sua educação informal foi realizada através

do trabalho da pesca artesanal, sendo ela iniciada ainda na primeira infância, bem como, toda

sua família era formada por pescadores e marisqueiras da colônia. Assim, entendemos que

existe uma relação intrínseca entre o trabalho da pesca artesanal e a educação informal e

inseparável do ambiente narrativo que constitui a colônia de pescadores. Note-se, nesse

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sentido, que, na ausência de sua mãe, é com a família e com a vizinhança que ela aprende a

pescar.

Portanto, é na vivência do cotidiano da colônia que as experiências de educação

informal acontecem: com a prática da pesca embarcada em alto mar, na pesca de marisco na

praia, na caçada do caranguejo no mangue, na limpeza do pescado e no seu preparo para

venda ou consumo é que os pescadores e as marisqueiras constroem os saberes da

comunidade e suas tradições. Mesmo sem terem a intencionalidade de ensinar, essas

experiências vivenciadas são ensinadas livremente aos mais jovens, sem que eles tenham

consciência plena de que fazem, reproduzem e assim perpetuam tais conhecimentos.

Quanto ao conceito de educação não formal, faremos aqui uma breve explicação, para

diferenciarmos do conceito de educação informal, e assim deixar claro a nossa escolha e uso,

por um e não o outro, na elaboração do tema objeto da pesquisa. A princípio, concordamos

com o entendimento de Aranha (2006), ao afirmar:

Na educação não formal os modelos de aprendizagem não se confundem

com a educação formal, que é oficial e deve cumprir exigências legais, mas

dela se aproxima pela intenção explícita de educar, muitas vezes usando

recursos metodológicos para sua realização. Resultam, por exemplo, da

iniciativa de grupos que se empenham na alfabetização de adultos, de

empresas que oferecem cursos de aperfeiçoamento de habilidades para seus

funcionários, de igrejas que reúnam os fies para o ensino de religião, de

comunidades que preparam os jovens para o exercício da cidadania.

(ARANHA, 2006, p.94)

A autora segue o mesmo pensamento defendido pela professora Maria da Glória

Gohn, que faz um aprofundamento na compreensão do que seria o processo de aprendizagem

pela educação não formal, vejamos:

Um dos supostos básicos da educação não formal é o de que a aprendizagem

se dá por meio da prática social. É a experiência das pessoas em trabalhos

coletivos que gera um aprendizado. A produção de conhecimentos ocorre

não pela absorção de conteúdos previamente sistematizados, objetivando ser

apreendidos, mas o conhecimento é gerado por meio da vivência de certas

situações-problema. (...) A maior importância da educação não formal está

na possibilidade de criação de novos conhecimentos, ou seja, a criatividade

humana passa pela educação não formal. (GOHN, 2005, p.104-105).

Diante dos conceitos, até aqui observados, inferimos que a educação não formal

refere-se a uma ampla variedade de atividades educacionais que são intencionalmente

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organizadas e desenvolvidas fora do sistema educacional formal, em geral, a atender a

interesses específicos de determinados grupos. Ensino por correspondência, cursos livres,

universidade aberta, etc., são exemplos de sistemas de educação não formal. Enquanto que a

educação informal distingue-se das demais por não se constituir num sistema organizado ou

estruturado, sendo frequentemente acidental ou não intencional. Ocorre na experiência do dia-

a-dia, através de jornais, revistas, programas de rádio e televisão, na visita a um museu,

zoológico, centro de ciências, etc. (DIB, 1988).

Trata-se de processos de diferentes dimensões e procedimentos. Enquanto a educação

formal de origem ocidental decorre de um sistema estruturado, organizado e sistematizado

realizado por profissionais em lugar apropriado (escola), que tem como objetivo promover os

princípios e valores associados à cidadania democrática reportados ao interesse nacional, a

educação informal é um processo da antiguidade que surge com as próprias sociedades

humanas, por isso, pode ser considerada como ―a escola da vida, de mil milênios de

existência‖, desprovida de quaisquer formalismos estrutural e institucional. A sua intervenção

na vida social humana processa-se por via de socialização no quotidiano através do cântico,

da dança, da caça, da pesca, etc., visando moldar o indivíduo com atitudes e comportamentos

que vão ao encontro do perfil das exigências da comunidade a que pertence (GUEBE, 2012).

Dentro desta perspectiva, da educação informal como processo milenar que molda e

socializa o indivíduo no seu cotidiano através de atividades do dia-a-dia, como a pesca

artesanal numa colônia de pescadores, buscaremos no próximo tópico deste capítulo

contextualizar o cenário da pesca artesanal no litoral de Pernambuco, através de dados de

pesquisas sobre o segmento, para melhor compreensão e familiarização do meio ambiente

onde ocorre o trabalho da pesca e seus principais dilemas. Com esses dados, tentaremos

exemplificar e analisar os problemas que atingem a Colônia Z-9, bem como, identificar nessas

análises das narrativas elementos da prática pedagógica deste processo fundamental para

transmissão dos saberes, presentes nas narrativas dos pescadores que são relevantes ao

trabalho artesanal e que "expressam" (no sentido de que produzem um sentido que lhes é

factível contextualmente) seu modo de vida, sua economia popular, seu sustento e a

viabilidade econômica solidária da colônia. Nessa análise faremos um esforço no sentido de

fazer se notar as tensões presentes entre lógicas sociais e políticas.

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2.1 CENÁRIO DA PESCA ARTESANAL EM PERNAMBUCO E SEUS

DESDOBRAMENTOS COM A EDUCAÇÃO INFORMAL

Faremos aqui, uma breve imersão no cenário da pesca artesanal no Estado de

Pernambuco, contextualizando alguns dados que julgamos importantes para que nosso

objetivo, neste capítulo, seja alcançado.

Na construção do estado da arte sobre a pesca artesanal em Pernambuco, encontramos

em fontes bibliográficas, uma pesquisa realizada em 2010, da UFRPE, que aponta o perfil

socioeconômico dos pescadores artesanais do Estado. Considerando esta fonte e diante da

observação do nosso campo empírico, fizemos uma análise verificando os contrastes e

aproximações dos dados e as narrativas dos pescadores. Demonstraremos o que esses dados

aqui apresentados têm de relevantes para nosso estudo da relação entre educação informal e

pesca artesanal.

O litoral de Pernambuco possui 187km de extensão e ocupa 2,3% de todo o litoral

brasileiro. Apesar de sua estreita faixa litorânea, é marcado historicamente pela presença de

regiões estuarinas, as quais lhe conferem características ambientais que promovem uma

intrínseca relação entre homem-natureza. A zona costeira, com 2.968 km², abriga 21

municípios, onde a costa é baixa, chegando a atingir cotas inferiores ao nível do mar.

Essa zona constitui ambientes transicionais – o lugar de encontro do mar com o rio, a

exemplo da região costeira de São José da Coroa Grande, e 20 estuários e manguezais, que

fertilizam o mar e são responsáveis por grande parte da produtividade pesqueira artesanal do

estado. Essa produção de alimentos é responsável por mais de 60% do pescado estadual e se

destacam por gerar alternativa de renda para milhares de pessoas que encontram, no

manguezal e na plataforma continental, fontes importantes de alimento e de renda

(PEDROSA; LIRA; MAIA, 2013).

Segundo o ESTATPESCA a produção total de pescado, no Estado, proveniente da

pesca artesanal, para o ano de 2006, correspondeu a 13.999,5 t. Deste total, o município de

São José da Coroa Grande representou 9,9%.

Na pesquisa realizada, em 2006, pelo Instituto Oceanário de Pernambuco em parceria

com o Departamento de pesca da UFRPE, foi feito um levantamento da pesca artesanal em

todo litoral pernambucano e foi apresentado um extenso relatório, como diagnóstico da pesca

artesanal, com vários dados: números, gráficos sobre diversos aspectos econômicos e sociais

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relacionados ao trabalho da pesca. Foram entrevistados mais de 5.000 pescadores entre

homens e mulheres. Vejamos uma síntese deste diagnóstico:

Em relação aos pescadores artesanais entrevistados 41% possuíam renda

entre 1 e 2 salários mínimos e 31% de até 1 salário mínimo, indicando a

carência do setor. É importante citar também que o setor (96% dos

pescadores não proprietários de embarcações) possui uma forma de contrato

de trabalho diferenciada, chamada de parceria. Na parceria o pescador, após

a retirada dos custos da pescaria, divide com o dono do barco o lucro gerado.

A pesquisa identificou que apenas 57% dos entrevistados possuíam carteira

de pescador, documento que dá direito a uma série de benefícios, incluindo

seguro defeso e aposentadoria. O nível de escolaridade é baixo, sendo 55%

das pessoas entrevistadas sem o primeiro grau completo e 25% nunca tinham

ido à escola. Na pesquisa foi encontrada uma idade média de 40 anos para o

pescador e 23 anos de tempo médio de profissão. (INSTITUTO

OCEANÁRIO..., Recife, 2010).

Nesse diagnóstico, nos interessa observar que a pouca escolaridade dos pescadores

entrevistados, ou o fato de 25% deles nunca terem frequentado a escola, ou seja, nunca se

valeram de um ensino institucionalizado para exercerem seu trabalho, contribui e dá sentido a

perspectiva adotada aqui, a respeito da educação informal, como uma fonte de saberes de

grande importância na formação do pescador. Pois estas pessoas, mesmo que fora da escola,

construíram, ao longo da vida, através da educação na pesca artesanal, todo conhecimento

necessário para pescar e viver. Este conhecimento que foi produzido por si só, e pela

comunidade, foi capaz de formar o pescador através do trabalho e para vida em sociedade. De

modo a pensar e afirmar que: ―fora da escola há salvação‖. Porque, mesmo com pouca

escolaridade e pouca remuneração, eles se sentem livres e "realizados‖. Assim é o sentimento

do pescador, quando fala sobre a pesca:

(...) Meu amigo oie!... Pescaria é coisa melhor do mundo! Agora uma coisa:

no verão. No inverno não... No inverno a gente é só tomar chuva lá fora, se

acorda de duas hora da manhã pra pegar garapau, botar no viveiro, no outro

dia ir lá pras paredes, pra pegar um peixinho, meu amigo pense numa

situação difícil! Chuva, chuva... Muita chuva! No verão é a coisa melhor do

mundo! Eu preferia passar uma semana na maré, do que preferia passar um

dia trabalhando de servente pedreiro! Pra ganhar o mesmo dinheiro... Eu

gostava de tá na maré! Você acredita num negócio desse? (Pescador – 43

anos – Colônia Z-9).

Portanto, ao nosso entendimento, a pouca ou nenhum escolaridade não é um dado

negativo e determinante para que o trabalho na pesca artesanal seja marginalizado ou este

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dado responda pela pouca produção. Ao contrário, pensamos que algumas ações

intervencionistas do Estado prejudicam e contribuem para a exclusão social do pescador

artesanal. Como exemplo, o discurso da escolarização universal – para o mercado, legalizada

pelo Estado (na obrigatoriedade do ensino médio), como única alternativa para o futuro dos

jovens. Acreditamos se tratar de um discurso ideológico que ressalta valores hegemônicos do

capital, porque na imposição deste ideal, acaba-se promovendo a desvalorização da cultura

local, que, como temos visto, passa pela educação informal, e assim enfraquecem os

conhecimentos e saberes que poderiam ser mobilizados em sentido popular, contra-

hegemônico.

Observamos também que o diagnóstico aponta como um dado negativo a renda de um

a dois salários mínimos obtida pelos pescadores e parece relacionar este dado a pouca

escolaridade. Contudo, na região onde as comunidades pesqueiras estão instaladas, parte da

população que completa o ensino médio não recebe mais que um salário mínimo no comércio

local, como aponta o IBGE no senso de 2010. Ao verificarmos o rendimento mediano da

população que trabalha como empregado, com carteira assinada, em São José da Coroa

Grande, percebe em média R$ 689,60. (IBGE, 2010).

Observando os dados do IBGE, nota-se também, que, dos que possuem ensino médio

completo, apenas 22,3% estão empregados, enquanto que aqueles sem instrução e ensino

fundamental incompleto representam 59,3% dos ocupados. Diante destes números e das

observações em campo, constatamos que muitos dos escolarizados se encontram

desempregados e sem qualificação (estudo técnico formal) para algum trabalho específico.

Portanto, a escolarização não garante a inclusão ao mercado de trabalho, tão pouco autonomia

para o trabalho livre, ou a independência econômica do aluno. Na verdade, o discurso da

escolarização como imprescindível na formação do sujeito para uma vida melhor em

sociedade, vinculada à necessidade de diplomação para realizar um trabalho, pode e deve ser

questionado. Neste sentido, segundo Illich, ―menospreza-se o trabalho realizado fora de

empregos remunerados, se é que não se ignora de todo. A atividade autônoma é uma ameaça

para os níveis de emprego, gera desvios e diminui o PNB‖. (ILLICH, 1978, p.72).

Desta forma, percebemos que muitas pesquisas socioeconômicas, ou que verificam a

qualidade de vida das comunidades, não consideram como importantes os trabalhadores

artesanais (autônomos) e sem formação escolar. Pelo contrário, apresentam muitas vezes estas

atividades - segundo valores ligados à colonialidade ocidental e sua linearidade histórica -

como um trabalho precário e que para serem desenvolvidos, devem-se integrar à lógica do

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mercado capitalista. Em nossa análise, somos contrários a esse discurso do capital, pois

entendemos que o processo de industrialização da pesca, por exemplo, e obrigatoriedade da

educação formal não promovem melhor qualidade de vida e não valorizam o trabalho como

algo criativo que dignifique o pescador. Neste sentido, concordamos plenamente com Illich,

ao afirmar sobre o trabalho no modelo capitalista:

O trabalho já não significa esforço, labor, mas esse misterioso complemento

das inversões produtivas que constituem o capital. O trabalho não significa

mais a criação de um valor recebido pelo trabalhador, mas meramente um

emprego que é só uma relação social. (ILLICH, 1978, p.72).

No entendimento do autor, o trabalho perdeu sua essência ao eliminar a criação e o

prazer do homem de fazer algo útil para si mesmo ou para outro.

―O que conta numa sociedade de mercado intensivo não é o esforço por

agradar ou o prazer que brota deste esforço, mas o acoplamento da força de

trabalho com o capital. O que conta não é conseguir a satisfação que brota da

ação, mas o status da relação social que a produção exige, isto é: o emprego

[...]‖ (ILLICH, 1978, p.72).

Portanto, muitas vezes o ócio dos pescadores à beira da praia é descrito, por algumas

pesquisas, como vagabundagem, assim como a mulher que trabalha em casa e educa seus

filhos ou ajuda a criar os filhos dos vizinhos é vista como desocupada; ou seja, não se

reconhece o valor de estar livre para fazer coisas úteis. Por isto, na sociedade contemporânea,

Illich, entende que: ―A atividade, o esforço, a realização, o serviço feito fora de uma relação

hierárquica, não avaliável pelos padrões profissionais, são uma ameaça para qualquer

sociedade de mercado intensivo‖. (ILLICH, 1978, p.72).

O que se percebe é que se valorizam outros tipos de trabalho e suas divisões –

pensadas para o mercado capitalista, que apresentam verdadeiras castas hierárquicas entre os

mais e menos escolarizados, e isto é um critério para exclusão social do trabalhador. Vejamos

o que disse, a marisqueira sobre a perspectiva de outro tipo de trabalho na região:

Existe uma resistência ainda viu, existe uma luta ainda... Porque quando tava

aí, por exemplo, muitas empresas aí... Você sabe, o pessoal aí investiram

muito aqui em Pernambuco, não foi? Muitas empresas... Aí muita gente sai

né, pra procurar emprego né, mas com esse desmantelo, tem muita gente

voltando de novo pra pesca, sabia? Muita gente voltando direto pra pesca de

novo. E tem muitos pescadores, aqui em São José mesmo a gente ainda tem

muito pescador que ainda resiste que não sabe fazer outra coisa, eu tenho um

filho que é exemplo disso, que não quer fazer outra coisa, o negócio dele é

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pescar. Você chega aí na praia e vê que têm muitos. Eles contam as

dificuldades que é isso é aquilo, mas terminam na pesca. (Marisqueira, 50

anos – Colônia Z-9).

Nota-se na narrativa da marisqueira que existe uma resistência entre os pescadores que

são atraídos por proposta do mercado de trabalho ou, nos nossos termos, uma resistência a ser

integrado numa lógica social (diferencial) que tem como eixo fundante os valores do capital e

da produção industrial. Na sua concepção, ela acredita que eles não deixam a pesca, ou

simplesmente voltam: por não saberem fazer outra coisa, mas o que nos parece, é que eles na

verdade, não se adaptam ou não se submetem a outras práticas e atividades laborais que não

seja a pesca artesanal, conforme diz o pescador sobre por que escolheu pescar e se antes da

pesca, tentou outro trabalho diferente:

Eu fui pescar por uma opção de emprego... A primeira vez eu ia mais meu

pai, mas por esporte. Estudava, estudava... Quando eu tinha férias no colégio

eu ia... Só ia nas férias. Era uma lazer. E hoje eu tô por profissão por conta

do desemprego. Comecei e não saí mais não! Antes da pesca, tentei...

Trabalhei de vigilante, trabalhei por 6 anos de vigilante, em 3 firmas de

vigilância, trabalhei de porteiro em um hotel de Maragogi, com carteira

assinada. Trabalhei de almoxarife, trabalhei em construção, trabalhei em um

bocado de coisa já, servente de pedreiro. Na pesca pra mim é melhor do que

tá por aí sem fazer nada e certos serviços que tem por aí, a pesca é melhor.

(Pescador, 42 anos – Colônia Z-9).

Observa-se, na fala, que este pescador foi iniciado na pesca pelo seu pai, também

pescador, e que no início aquilo era para ele o mesmo que um lazer (atividade prazerosa) – em

nossa perspectiva de análise, uma forma criativa de quebrar o ócio durante as férias escolares

– e que foi bastante significativo o seu aprendizado. Porque, mesmo com acesso a educação

formal, ele não conseguiu, através deste conhecimento escolar, manter-se trabalhando em

outros empregos para os quais essa educação é pensada. Desta forma, acreditamos que os

saberes empíricos da pesca artesanal, transmitidos de maneira livre e informal, no esforço do

trabalho e na prática da atividade em cooperação com seus familiares e pares, criaram laços

mais significativos, no seu processo de aprendizagem, para que este pescador não se

identificasse com algum trabalho diverso da pesca. Neste sentido, corrobora a explicação de

Illich, sobre a aprendizagem fora da escola:

Na realidade, a aprendizagem é a atividade humana menos necessitada de

manipulação por outros. Sua maior parte não é resultado da instrução. É,

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antes, resultado de participação aberta em situações significativas. A maioria

das pessoas aprende melhor estando ―por dentro‖; mas a escola faz com que

identifiquemos nosso crescimento pessoal e cognoscitivo com refinado

planejamento e manipulação. (ILLICH, 1973, p.76).

Notamos que a aprendizagem resulta da participação aberta em situações

significativas, nas quais a imaginação do jovem, ao se lançar no mar para pescar, abre um

horizonte de possibilidades de experiências práticas.

Portanto, na pesca artesanal este pescador cresceu, adquirindo conhecimentos

vivenciados na prática, que foram e são essenciais a sua existência e realidade, numa

experiência acumulativa, em que se aprende por livre e espontânea vontade. Isto proporciona

o prazer e uma autonomia do fazer, por si só, a atividade com satisfação, pois domina todo o

processo do trabalho, daí a resistência em exercer ou apreender outro ofício. Além disso, os

horários de trabalho na pesca são flexíveis, o patrão é o próprio pescador e o produto da pesca

é comercializado por ele mesmo; o pescador é dono do seu pescado (produto do seu trabalho),

uma autonomia que nenhum outro emprego dentro da lógica do capital proporciona ao

proletariado.

Dentro da colônia de pescadores Z-9, não observamos castas hierárquicas na relação

entre os pescadores que estudaram mais ou os que não estudaram, não há divisão do trabalho,

todos pescam seu próprio pescado e são donos da sua produção. Quanto ao mestre de barco,

sua escolha não é pela sua formação escolar, mas sim pela confiança pessoal do dono do

barco na pessoa do pescador quanto a sua habilidade e tempo de experiência no mar. Na

partilha, o pescado é divido por igual com os pescadores e meio a meio com o dono do barco;

seu ganho a mais se dá pela responsabilidade de cuidar e preparar o barco: com equipamentos

e compra de insumos, recebendo do dono do barco por este serviço.

Diante das análises, entendemos, mesmo que nos pareça distante, passados quase dez

anos de realizada a pesquisa do Instituto Oceanário de Pernambuco em parceria com o

Departamento de pesca da UFRPE, que esta realidade pouco mudou, ao que observamos na

Colônia de Pescadores Z-9 de São José da Coroa Grande. Todavia, ainda que a publicação

deste diagnóstico só tenha acontecido em 2010, podemos considerar como parâmetro tais

informações para efeitos de contextualização do cenário da pesca no Estado, porque nosso

objeto de estudo não se propõe a trabalhar com números ou estatísticas, mais sim com a

história oral no depoimento dos pescadores através das suas narrativas.

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Portanto, agora já ambientados na pesca artesanal, cientes da sua dimensão política e

importância para as comunidades ribeirinhas e litorâneas, no próximo tópico deste capítulo,

apresentaremos a organização da Colônia Z-9, como ela funciona na articulação com outras

instituições para manutenção da pesca artesanal na região e integração dos pescadores.

2.2 ORGANIZAÇÃO DA COLÔNIA DE PESCADORES Z-9: AS ARTICULAÇÕES COM

A EDUCAÇÃO NÃO FORMAL E O ESTADO

A ideia deste tópico é apresentar a organização da Colônia de Pescadores Z-9 e seu

funcionamento, entendendo à importância desta instituição, que foi pensada para defender os

interesses dos pescadores. Contudo, nos interessa analisar seus desdobramentos nas

articulações e ações políticas, bem como, as práticas de educação formal e não formal –

implantadas através de cursos específicos em contrapartida de bolsas assistenciais.

A sede da Colônia Z-9 é situada às margens da praia de São José da Coroa Grande,

localizada por trás da Igreja Matriz no centro do município - conta com cerca de 1.100

pescadores cadastrados, tendo uma mulher como atual presidente e administradora, uma

marisqueira, de 50 anos de idade. Na colônia, os pescadores contam com um suporte técnico

de um engenheiro de pesca e também cursos para beneficiamento do pescado (educação não

formal), para produção de artesanato e produtos derivados dos peixes sem alto valor

comercial.

A colônia possui apoio governamental através do programa assistencial ―Chapéu de

Palha‖ que ajuda com um salário mínimo para o pescador registrado no programa, no período

de defeso1 – proteção ambiental da lagosta e outras espécies, regida por lei federal n

o

10.779/2003. Esta lei dispõe sobre a concessão do benefício de seguro desemprego durante o

período de defeso ao pescador profissional que exerce a atividade pesqueira de forma

artesanal.

1 O defeso é a paralisação das atividades de pesca que constitui uma política estratégica, de caráter ambiental,

visando a proteger as espécies durante o período de reprodução, garantir a manutenção de forma sustentável dos

estoques pesqueiros e, conseqüentemente, manter a atividade e a renda dos pescadores. Assim, todo pescador

profissional que exerce suas atividades de forma individual ou em regime de economia familiar fica impedido de

pescar durante a época de reprodução das espécies-alvo de suas pescarias. Nesse período, quando o tempo de

proibição da pesca é definido por legislação específica, os pescadores profissionais recebem o Seguro-

Desemprego ou Seguro-Defeso em parcelas mensais, na quantia de um salário-mínimo, em número equivalente

ao período de paralisação. (BRASIL, 2014).

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O defeso da pesca é um direito compensatório, que garante o valor de um salário pago

em dinheiro por mês ao pescador da colônia que possui a licença para pescar lagosta. Isto

ocorre no período de maio a agosto, onde a lagosta está em reprodução. Portanto, é proibida a

sua captura, com intuito de preservar a espécie.

A estrutura física do prédio é boa, ampla, limpa e dividida em salas que propiciam

cursos teórico-práticos (educação formal), confraternizações e treinamento para os

pescadores, como o beneficiamento dos peixes de menor valor comercial e produção de

artesanato no uso de escamas.

A organização e estrutura da colônia são percebidas pelos pescadores como

instrumento importante na defesa e reconhecimento dos seus direitos como trabalhadores. Isso

porque a colônia cadastra, informa, articula parcerias e orienta todos os associados na busca

por diversos auxílios e benefícios estatutários e previdenciários. Trata-se aqui de uma relação

entre a colônia e o Estado que será mais bem explorada nas análises que se seguem. Notamos

que há aqui uma clara função de proteção, essa vantagem é percebida na medida de uma

forma de integrar os pescadores através do discurso das políticas públicas institucionalizadas,

como indispensáveis para seguridade do trabalhador, como observamos na fala da pescadora

marisqueira, quando entrevistada sobre os benefícios de ser membro da colônia:

―Ah... O beneficio é de garantir os direitos né? A gente... paga a mensalidade

da colônia, é 12 reais mensal. Aí a gente tem salário maternidade, auxílio

doença, se aposenta com 55 anos, têm auxílio reclusão, todos os benefícios‖.

(Pescadora, 29 anos, Colônia Z-9).

Neste sentido, também corrobora o discurso do Mestre pescador, quando diz:

―Hoje em dia é bom que você tem todos os seus direitos né... Hoje o

pescador tem seus direitos reconhecidos, mas antigamente não era assim

não, tem a colônia que luta pelo cara... tem todos os direitos reconhecidos

como um trabalhador qualquer né. Eu acho assim pescaria como uma

profissão qualquer. Profissão normal que você vai trabalha e vive daquela

profissão‖. (Mestre pescador, 35 anos, Colônia Z-9).

Nota-se nas narrativas certa absorção à lógica das profissões, ou seja, a ideia de que os

profissionais são treinados para exercer as profissões que existem para atender as

necessidades do mercado. Os pescadores associados à Colônia, mesmo sem perceberem, são

absorvidos pelos direitos trabalhistas adquiridos através da Colônia. Esses direitos criam uma

dependência de inclusão à lógica diferencial que coloca a colônia de pescadores como espaço

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articulado ao sistema hegemônico, através das formalidades institucionalizadas das relações

de trabalho. Uma prova disso é adesão em massa de pescadores e marisqueiras associados a

Colônia Z-9, como afirma a atual Presidente da Colônia:

―A gente hoje tem mil... Mil pescadores assim... Entre homens e mulheres

documentados. Mas a quantidade da população é maior, porque muita gente

não se liga de se documentar, né. Só associado tem 600 e pouco... 627

mulheres e o restante são homem, quinhentos e poucos homens... Dá mais de

mil‖. (Presidente, 50 anos – Colônia Z-9).

Essa integração promovida pelos direitos e garantias de ser um pescador artesanal

legalizado, com carteira registrada, junto aos órgãos estatais, cria a mesma condição de

relação dos empregos técnicos, pensados pela lógica capitalista de mercado de consumo, onde

a profissão serve para atender os desejos de uma clientela específica.

Diante das narrativas acima analisadas, percebemos que participar como membro da

colônia parece ser de suma importância para a sobrevivência individual de cada pescador. Tal

participação, entretanto, força uma situação de relação de dependência entre pescador e

políticas públicas. Isso faz circular no ambiente cotidiano desses pescadores, valores

circulantes pertencentes à esfera estatal.

Entretanto, por outro lado, torna certas atividades pesqueiras atadas à mitigação dos

efeitos danosos e excludentes da economia capitalista, como por exemplo, o tempo que ficam

no ócio forçado (pela proibição de pescar) recebendo o beneficio do defeso, o que leva parte

dos pescadores durante este tempo parado a ficarem na beira da praia bebendo, e por

consequência danosa dessa bebedeira diária, muitos já apresentam problemas de alcoolismo.

Como foi constatado no campo empírico e nas narrativas, como conta a pescadora:

―É um problema que o pessoal se acostuma assim, com essa vida de praia,

pensa que é turista o tempo todo. O turista vem, toma as cachaças um mês,

fim de semana e vai embora pra suas atividades. E tem gente que fica

naquilo, quer ficar o tempo todo assim e aí se enturmava com outros

pescadores essas coisas tudinho e acaba ficando, e depois vai pro mar. Meu

menino bebe que só, toma as cachaça, quando volta ele bebe e lá fica 10, 12

dias bebendo né isso? Quando sente uns sintomas, ele para uns dias e a vida

de pescador é assim‖. (Pescadora, 50 anos – Colônia Z-9).

Na fala da pescadora, identificamos que ela não entende as razões que levam ao

consumo exagerado de bebida alcóolica pelos pescadores, incluindo o filho. Acredita que isto

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decorra da má influência comportamental dos turistas ou veranistas da praia de São José da

Coroa Grande. Em nossa análise, acreditamos que os benefícios do defeso, ao mesmo tempo

em que pagam para os pescadores não pescar, criam uma lacuna de tempo ocioso muito

extenso, sem ter o que fazer por quase cinco meses. O tédio da espera, associado ao costume

do consumo de aguardente e ambiente praieiro induz a beber enquanto esperam o dia de voltar

para o mar. Isto propícia a marginalização da imagem do pescador artesanal, como

"alcoólatra" (alcoólico) ou vagabundo, prejudicando a educação informal na pesca e gerando

sequelas nas novas gerações. É essa precarização que, no nosso entender, vulnerabiliza os

pescadores artesanais na sua relação de dependência com o Estado.

Outro ponto de integração à lógica diferencial é a imersão dos pescadores em cursos

de treinamento (educação não formal), que são realizados dentro da sede da colônia por

organização do Estado, como contrapartida dos programas assistenciais e de defeso da pesca.

Nas entrevistas, o que foi relatado pelos entrevistados, é que os programas assistenciais vêm

para colônia como bolsas e que, para recebê-las, o pescador (a) deve estar inscrito e assistir às

aulas. Vejamos o que disse a pescadora sobre a instalação dos cursos:

―Não, ficou assim, eles mapearam o Estado, aí viram que a gente tinha, a

maioria das mulheres diziam que viviam com a renda do bolsa família, essas

coisas e alguma coisa da pesca e assim a renda era pouca, aí ele contemplou

com uma bolsa de R$ 256,00. Na época era 254,50 e agora é R$ 256,00 que

é num período de quatro meses, que da 1027,00 reais. Aí disso, como na

cana-de-açúcar eles no Chapéu de Palha lá tem os cursos né? Aí eles

ofereceram os cursos pra gente, neste período fazer alguma coisa. E essa

idéia de querer estes cursos aí foi da gente. Os cursos que eles queriam

colocar não tinham nada a ver com a gente, né de pesca‖. (Pescadora, 50

anos – Colônia Z-9).

Na narrativa da pescadora fica evidente que os cursos oferecidos pelos órgãos do

Estado foram introduzidos como uma forma de compensação pelas bolsas durante o período

do ócio. Para que as pescadoras não ficassem recebendo sem trabalhar, criaram-se os cursos

para, em contrapartida, pagar as bolsas. Isso foi feito, mesmo que de início, os cursos não

servissem para região litorânea, bem como, não atendessem a todas as mulheres, porque nem

todas podiam ser contempladas pelo programa. Esses cursos representam a educação não

formal (intencional e promovida por órgão que não a escola) com a finalidade de treinar o

profissional para técnicas diferentes do seu meio e do processo natural do seu trabalho.

Vejamos o que disse a pescadora, quando perguntada sobre as razões e motivos de participar

dos cursos oferecidos pelo governo:

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―Nas necessidades, nas reuniões que a gente faz na escola aí tudo, a gente

viu a necessidade de quais os cursos que a gente queria. Pra pesca, pra

trabalhar o beneficiamento do pescado, até curso que você viu aí de

navegação náutica, GPS essas coisas... E a gente... Os resíduos... E as

mulheres também aprenderam, tem até um grupo aqui trabalhando com isso

de artesanato né, aí a gente conseguiu esses cursos aí, a secretaria da mulher

vem e coloca, elas dá políticas públicas que são as informações mais

interessante e as mulheres hoje estão mais esclarecidas, porque com

informação elas sabem dos direitos né‖ (Pescadora, 50 anos – Colônia Z-9).

Percebe-se, com a implantação de cursos formais (escola) e não formais, que foram

inseridos como necessários para as pescadoras (através da dependência da bolsa) e que depois

foram também ampliados para os pescadores. Esses cursos promovidos pelo Estado,

funcionam como elemento integrador dos pescadores e da colônia ao processo tecnicista do

modelo de educação formal do Estado. A absorção desta lógica de educação formal como

necessidade, reflete no pensamento dos pescadores mais velhos e entre os pescadores mais

jovens, a não quererem seus filhos e netos pescando, ou seja, eles têm que ir para escola para

ser alguém na vida, promovendo assim, em nosso entendimento, uma negação da sua própria

identidade de pescador. Portanto, notamos que existe certo desencorajamento das atividades

pesqueiras por parte das gerações mais velhas aos jovens e que a existência destes cursos

formais concorrem de maneira significativa para isso. De modo a inculcar nos jovens

pescadores outros valores, como nos advertiu Illich, sobre os valores da escola:

―Os valores institucionalizados que a escola inculca são valores

quantificados. A escola inicia os jovens num mundo onde tudo pode ser

medido, inclusive a imaginação e o próprio homem. Mas o crescimento

pessoal não é coisa mensurável. É crescimento em discordância disciplinada

que não pode ser medido nem pelo metro nem por um currículo, nem mesmo

comparado com as realizações de qualquer outra pessoa. Neste tipo de

aprendizagem pode alguém rivalizar com outros apenas em esforço

imaginativo, seguir seus passos, mas nunca imitar seu procedimento. A

aprendizagem que eu prezo é re-criação imensurável‖. (ILLICH, 1973,

p.77).

Os valores institucionalizados pela educação formal manipulam a relação entre as

gerações de pescadores da colônia, mitigando o encanto e o interesse dos jovens pelo

conhecimento empírico da pesca, fazendo desaparecer gradativamente a população de

pescadores artesanais. Visto que os jovens buscam no mito do diploma escolar por uma

profissão que seja mais reconhecida, mais valorizada e mais lucrativa.

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Percebemos então, que essas políticas públicas que chegam aos pescadores pela

colônia em forma de cursos, são elementos que se interpõem na articulação estudada entre

pescaria artesanal e educação informal. Esse novo elemento na articulação leva a uma

desvalorização dos processos informais de aprendizagem. Vejamos o que disse a pescadora

sobre a ideia do filho ser pescador:

―É... Porque uma... A maioria deles, muitos aí... Não tiveram a chance de

estudar e pra conseguir hoje alguma coisa no mercado de trabalho aí tem que

ter pelo menos um curso, um diploma, um estudo, pelo menos ensino médio,

não é assim? E eles não têm, muitos deles a opção é o mar. Hoje mesmo...

Do jeito que é a pesca do jeito que tá situação eu estimularia ele a estudar...

Infelizmente a realidade mesmo é essa aí. Entendeu? Porque é muito difícil

mesmo. A gente vê a situação... A luta, eu vejo a hora e digo: meu Deus do

céu, até quando a gente fica? A gente não tem certeza das coisas... Até

quando vai isso aí?‖ (Pescadora, 50 anos – Colônia Z-9).

A pescadora em sua fala reproduz a crença coletiva da necessidade da escolarização,

ou seja, a busca do diploma para que a pessoa possa ser alguém, ou obter um maior valor

social e assim conseguir um bom trabalho, melhor remuneração. Nesta narrativa, observa-se

uma situação de tensão entre o mercado de trabalho ligado ao capital e um espaço social

comunitário que, potencialmente, pode ser afim ao desenvolvimento de lógicas alternativas de

estar no mundo. As políticas públicas podem estar "integrando" esse espaço, mas de forma a

desmerecer/despotencializar o que essas pessoas aprendem informalmente esse aprendizado,

como temos visto, se dá em meio a valores estranhos à lógica industrial de produção. Neste

sentido, a narrativa do experiente mestre de barco, endossa a integração ao viés da

escolarização como solução de uma vida melhor:

―Não, não, não... Se eu tivesse um filho, hoje na época de hoje, não queria

que ele fosse pescador não. Porque eu gostaria que ele estudasse e fosse

outra coisa. Porque você sendo outra coisa, você tem mais espaço das coisas

entendeu? E na pesca hoje a gente não têm... A pescaria tá muito fraca. Hoje

quem tá lá, não vai sair porque não sabe fazer nada, não sabe fazer outra

coisa a não ser pescar. Eu prefiro que ele tenha um estudo, pra fazer um

concurso público, pra se formar, fazer uma faculdade pra ser alguma coisa. Eu acho porque se você tiver um concurso, assim do Estado, ou um concurso

federal, com aquilo você tá seguro pro resto da vida. Você tem seu salário

bom, tem sua dignidade de fazer mais alguma coisa, e a pesca é pesca e

pesca. Toma à vida toda, você vai dormir mal dormido, comer mal comido...

Enfrentar temporal lá fora. Todo serviço que você arruma hoje é arriscado,

mas a pesca é mais né? Enfrentar temporal lá fora... Se eu tivesse um filho

hoje não incentivava ele a ser pescador não‖ (Mestre de Barco, 60 anos –

Colônia Z-9).

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Notamos aqui, ainda mais forte, a crença no mito da escola, como instrumento para

uma vida mais digna na opinião do mestre. O que confirma a adesão também dos mais velhos

à ideia da necessidade de uma formação escolar para ser alguém na vida, acreditando como

ideal, ter uma profissão diplomada, bem como, ser concursado em emprego público.

Entretanto, como sintoma que estamos diante de um campo (ainda) em disputa, apresenta

certa contradição quando ele fala do orgulho das suas conquistas advindas da pesca:

―Tenho orgulho sim, disso eu tenho... O que eu tenho hoje, graças as Deus,

foi tudo da pesca, não foi de outra coisa não, foi só pesca mesmo. E quando

eu comecei a gente ganhava dinheiro e se quisesse fazer alguma coisa,

construí o que eu quis construir. Hoje eu investi né, hoje eu tenho 3 casas,

moro em uma e tem as outras duas alugadas, já é pra ajudar o salário,

completa a aposentadoria. Tem mais de um ano que eu parei. Tinha um

barco, mas botei um boxzinho ali no mercado, uma lanchonetezinha, meus

investimentos‖. (Mestre de Barco, 60 anos – Colônia Z-9).

Como observamos, chega a ser contraditória a fala do mestre que construiu sua vida

inteira na pesca artesanal, na qual diz sentir orgulho de ser pescador, mas não acreditar mais

na pesca como um trabalho digno, que tanto proveu seu sustento e sua experiência de vida.

Diante deste dilema, entre o orgulho de ser pescador e a descrença do valor da atividade para

os mais jovens, evidenciamos que esse conflito se fez presente nas narrativas de todos os oito

entrevistados. Inferimos então, que este impasse é a fonte dos problemas que afetam a

transmissão dos saberes da pesca entre as gerações.

Feita toda essa análise introdutória, abordaremos no próximo tópico os efeitos danosos

dessa integração à lógica diferencial do campo discursivo analisado, e como ela afeta o

convívio entre os pescadores, especificamente os dilemas aí postos para a relação entre

educação informal e pesca artesanal.

2.3 EMBATES ATUAIS DA COLÔNIA Z-9: PROBLEMAS, DILEMAS DA EDUCAÇÃO

INFORMAL E POTENCIALIDADES DA PESCA ARTESANAL

Com relação à educação informal e sua importância na transmissão de saberes,

percebemos que o foco desta, na pesca artesanal, na comunidade, independente da faixa etária

ou gênero, está em ensinar o uso dos utensílios para pesca. Contudo, ao indagar outros

aspectos do trabalho, como dificuldades para pescar, as pescadoras/marisqueiras narram os

riscos e técnicas para pescar. Vejamos:

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―A gente faz tudo. Quando não tá dando num lugar tem que dar em outro.

Pega caranguejo, pega siri, pega aratu. Agora só que é... cada um a pesca é

diferente, né? O marisco a gente fica dentro da praia, fica de molho ali o dia

todinho, trabalha mais com as mãos, com os pés. O aratu a gente já tem que

ficar dentro do mangue, a gente se atola dentro da lama, né? Tem o risco

maior assim porque o rio Una traz muito...o povo diz que não tem poluição

nenhuma, mas quando dá as enchente vem muitas coisas, né? Resto de

hospital, essas coisas. E aquilo ali fica tudo na lama, não sai. Aí a gente

pesca mais nesse manguezal aí onde é a foz do rio Uma, que deságua aí na

Várzea do Uma‖. (Pescadora, 29 anos, Colônia Z-9).

Nota-se que as técnicas de captura são rudimentares e que elas criam suas estratégias e

ferramentas de acordo com cada tipo de pescado ou crustáceo, isto caracteriza o fazer

artesanal da pesca, além do conhecimento dos fenômenos da natureza adquiridos pela simples

observação, enfrentar as mudanças no tempo, saber da tábua das marés e perceber a hora de

voltar, tudo isto vai sendo descrito como importante e é transmitido para os mais jovens.

Ainda no tocante à necessidade de transmissão de saberes da pesca se pode observar

que mulheres mais velhas e de baixa escolaridade consideram que a observação direta ou o

acompanhamento de quem pesca (ou seja, educação e trabalho comungam do mesmo espaço

social) é suficiente para transmitir ensinamentos às pessoas mais jovens. Aprenderam

acompanhando seus pais ou familiares às marés e rios, fizeram disso brincadeira e depois

guardaram os ensinamentos que hoje lhes permitem sobreviver.

O uso de utensílios ou ferramentas para pesca artesanal é o ensinamento mais

corriqueiro entre pescadores e pescadoras. As mulheres possuem ferramentas simples da

pesca como tarrafa, cova, foice, cesto, redes pequenas, etc.. O que geralmente as diferencia

dos homens é não possuir embarcação e alguns recursos técnicos mais elaborados na pesca

em alto mar. Como observamos a narrativa do Mestre sobre as técnicas da pesca de linha:

―... Porque pescar de linha você batalha muito... Você arreia uma linha pra

baixo, pro fundo pra vê se pega uma Arabaiana, arreia uma linha pra vê se

pega um Dourado por cima d água... Você arreia a outra na meia água, que

chama: linha de corte, pra ficar nem lá no fundo, nem cá em cima... na meia

água, pra vê se pega uma Albacora‖. (Mestre pescador, 35 anos, Z-9).

Ao narrar suas habilidades e técnicas desenvolvidas na pesca de diferentes espécies de

peixe o mestre demonstra todo seu conhecimento sobre o ambiente onde vive cada tipo de

peixe e qual técnica utiliza para capturar um ou outro. Entretanto, o que merece uma atenção é

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o destaque de que o modo industrial de produzir, que ameaça esses saberes explicitados na

fala do mestre, afeta a natureza e prejudica a pesca artesanal.

Voltando a situação das mulheres, nota-se que parte delas entrou para pesca como uma

alternativa de ganho financeiro para complemento da renda familiar, ora por falta de trabalho

mais qualificado na região, ora por não terem melhor formação escolar (educação formal) e

principalmente após conhecerem um pescador que se tornou seu companheiro e passaram a

viver juntos. Neste sentido, confirma o discurso da marisqueira:

São mais pessoas, antigamente... A população tá aumentando né? E aqui em

São José parece que tem 22 mil habitantes, aqui só tem a prefeitura, dois

supermercado, um armazém... Não emprega isso tudo né, aí a maioria das

pessoas vive de quê? Se o marido arrumou um serviço em um lugar, a

mulher tá no mangue, se o marido tá sem trabalho é pescador, a mulher tá

fazendo outra coisa, mas sempre esse regime né, nunca sai da pesca não... Eu

acho que não. (Pescadora, 29 anos, Colônia –9).

Portanto, nesta narrativa, observa-se uma situação de exclusão do mercado de trabalho

que permite o vivenciar uma espacialidade do social potencialmente afim ao desenvolvimento

de lógicas alternativas de estar no mundo - as políticas públicas podem estar "integrando" esse

espaço, mas, como já observamos, de forma a desmerecer/despotencializar o que essas

pessoas aprendem informalmente.

Assim, a absorção da lógica da necessidade da escola pela comunidade pesqueira,

como saber absoluto, despotencializa os conhecimentos construídos e aprendidos

informalmente pelos pescadores ao longo do tempo, impacta negativamente na pesca

artesanal da Colônia Z-9, que tem sofrido com a negação da profissão, por aqueles que seriam

seus principais perpetuadores. Essa frustração aparece nos discursos dos mestres pescadores,

como, por exemplo, o fato da maioria não querer que o filho siga a mesma profissão do pai.

Seriam então indícios de que o espaço familiar/comunitário em que se dá a educação informal

está se escasseando. Quando questionado se o filho de 11 anos se interessava pela pesca e se

já havia levado ele junto, vejamos o que disse o Mestre:

―Não!... Eu não pretendo nem levar ele! Por que eu não queria que ele

aprendesse a pescar não... Eu acho que é por causa disso... Hoje em dia que

tá acabando mais esse negócio de pescador aqui visse! Tem vez da gente

ficar aí dois, três dias pra arrumar um pescador pra completar a tripulação

pra ir pro mar que tá faltando. Que não tem mais hoje em dia não pô. Na

minha época era muito menino pela praia assim pô... Que vinha pela praia,

não queria estudar mais... Tinha preguiça de estudar, na minha idade mesmo

têm muitos, da minha idade que começou estudando depois deixou largou

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tudo e... Se interessou por pescar e até hoje pescam. (Mestre, 35 anos,

Colônia Z-9)‖.

Na narrativa do mestre, percebemos que existe uma negação a profissão de pescador e

um conflito entre trabalhar ou estudar, bem como, o pouco ou nenhum interesse em frequentar

a escola, que por seu turno, encontrasse fora da comunidade e estar desassociada da cultura

local, das experiências do seu cotidiano no trabalho da pesca. Essa dicotomização entre

educação e trabalho, leva a questionar: por que não pode ser educado por dentro do trabalho?

Essa discussão está muito avançada na articulação da "educação do campo", inclusive com

metodologias bem interessantes, como o princípio metodológico da alternância, que ao nosso

entendimento, poderia ser um ponto de partida para sanar uma ―crise da negação‖ do trabalho

como pescador na Colônia Z-9. Pois, o princípio da alternância se dá entre o tempo e o espaço

onde ocorre a educação através do trabalho, uma maneira de aprender pela vida, ―partindo da

própria vida cotidiana, dos momentos experienciais, colocando assim a experiência antes do

conceito‖ (GIMONET, 1999, p. 45).

Entendemos a alternância como uma interação entre diferentes modelos de atividades

em que não apenas a teoria e prática são indissociáveis à construção de conhecimentos

culturais, sociais, políticos, dentre outros, necessários à formação integral, aplicada aqui, no

caso dos jovens pescadores, como também a articulação dos espaços - tempo escola e tempo

comunidade - onde tais conhecimentos e valores circulam. Neste sentido, corrobora o que diz

Roseli Caldart, sobre o princípio da alternância na educação do povo do campo:

―Uma educação que seja no e do campo. No: o povo tem direito a ser

educado no lugar onde vive; Do: o povo tem direito a uma educação pensada

desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas

necessidades humanas e sociais‖ (CALDART, 2009, p. 149).

A citação faz referência à educação voltada ao povo do campo, porém, entendemos

que os pescadores artesanais vivenciam condições análogas a dos trabalhadores das zonas

rurais, e, por isto, também poderiam se beneficiar da mesma prática da metodologia da

alternância, por exemplo, como as adotadas nos assentamentos do MST, e que, segundo

Mesquita (2014), apresentam-se como um modelo de educação não capitalista através do

trabalho:

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―A eficácia e factibilidade das estratégias pretendidas no processo de

(re)orientação da experiência por meio do princípio da alternância parecem

depender da construção de elos "funcionais" contra-hegemônicos que

ofereçam aos militantes do MST aquele esteio material a que nos referimos.

Em um país em que a "educação rural" é tida como dispensável para a

reprodução do capital (Damasceno; Beserra, 2004, p. 77-78), sendo que o

investimento nela não se demonstra historicamente atrativo, investir, no

presente, em relações não capitalistas de produção é o que permite imprimir

factibilidade ao sentido político pretendido ao princípio da alternância na

tradição marxista. Essa percepção, ainda que não nos nossos termos, hoje

está pautada no MST quando este se propõe a disputar o sentido de

"desenvolvimento sustentável". Na perspectiva do Movimento, os

assentamentos devem ser entendidos como "territórios sob a hegemonia do

MST" (MST, s/d.a, p. 24) – o que implica resistir ao controle do processo

produtivo no campo pelas grandes corporações internacionais, que contam

com a colaboração do Estado e latifundiários tradicionais. Isso significa

denunciar valores cruciais do modelo exportador: monocultura;

mecanização; assalariamento; dependência de agrotóxicos, fertilizantes,

hormônios e sementes transgênicas‖. (MESQUITA; NASCIMENTO, 2014,

p.1077).

Portanto, o princípio da alternância tem como objetivo investir em relações não

capitalistas de produção, para que se torne possível à formação integral do camponês ou

pescador artesanal e o desenvolvimento do meio campo/litoral. Pois, de acordo com Gimonet

(2007, p. 15), a metodologia da Alternância está fundamentada em quatro pilares: dois pilares

da ordem das finalidades que buscam o projeto pessoal e o desenvolvimento socioeconômico,

político, etc.; e outros dois pilares da ordem dos meios que buscam a associação dos pais, dos

profissionais, das famílias e a alternância. Dessa forma, a Alternância significa ―uma outra

maneira de aprender, de se formar, associando teoria e prática, ação e reflexão, o empreender

e o aprender dentro de um mesmo processo‖ (GIMONET, 1999, p. 45).

Cientes desta outra maneira de aprender, em nossas observações de campo, também

foram encontrados sinais de modernização tecnológica para navegação e orientação marítima.

Um conhecimento técnico/cientifico, advindo da industrialização, que foi integrado pela nova

geração de pescadores. Sendo cada vez mais frequente a presença de equipamentos

industrializados para o trabalho da pesca, criando uma dependência de aparatos não

convencionais na prática da pesca artesanal, como registramos na fala do mestre de barco,

quando questionado se fazia anotações dos seus conhecimentos da pesca e técnicas para

pescar cada tipo de peixe, nos revelou que:

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―Não, faço não... Anoto nada não. Tudo isso fica na cabeça mesmo! O que

eu tenho anotado, eu tenho muita coisa anotado, mas é posição de GPS2

assim, que agora hoje em dia é tudo mais sofisticado, eu trabalho mais com

GPS... aí eu tenho muita posição anotada de GPS‖. (Mestre, 35 anos,

Colônia Z-9).

Nota-se outro tipo de conhecimento, que muda da tradição da observação (informal)

peculiar ao pescador, para o uso das novas tecnologias (formal), apontando os sinais de

transformação nos saberes da nova geração de pescadores, já que antes, o mestre de barco

utilizava para se localizar em alto mar, elementos da natureza que lhe serviam de referencial,

ou mesmo a secular bússola.

Todavia, a pesquisa aponta para a necessidade de um aprofundamento teórico para dar

conta das questões, impasses, limites, potencialidades da educação informal e a relação com

pesca artesanal aqui levantadas, sendo fundamental uma análise mais profunda das narrativas

com base na teoria do discurso de Ricoeur e Laclau que apresentaremos no próximo capítulo

metodológico.

2 O sistema de posicionamento global (do inglês global positioning system, GPS) é um sistema de navegação

por satélite que fornece a um aparelho receptor móvel a sua posição, assim como informação horária, sobre todas

condições atmosféricas, a qualquer momento e em qualquer lugar na Terra, desde que o receptor se encontre no

campo de visão de quatro satélites GPS. Encontram-se em funcionamento dois sistemas de navegação por

satélite: o GPS americano e o GLONASS russo. Existem também dois outros sistemas em implementação: o

Galileo da União Europeia e o Compass chinês. O sistema americano é detido pelo Governo dos Estados Unidos

e operado através do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Inicialmente o seu uso era exclusivamente

militar, estando atualmente disponível para uso civil gratuito. No entanto, poucas garantias apontam para que em

tempo de guerra o uso civil seja mantido, o que resultaria num sério risco para a navegação. O GPS foi criado em

1963 para superar as limitações dos anteriores sistemas de navegação já ultrapassados.

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3 ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA PESQUISA

Como adiantamos na Introdução, para analisar as entrevistas narrativas dos pescadores

articulamos elementos das teorias de Ricoeur e Laclau. Para isto, definimos alguns critérios

que permitiram construir categorias estruturantes da referida análise. Planejamos, nesse

contexto, passos metodológicos os quais, tendo-os percorrido, nos permitiram pensar uma

lógica analítica voltada ao nosso estudo:

1- Identificamos pontos de tensão considerando essas pistas: temas que lhes são

caros; resistências em suas vidas cotidianas; desdém pelo que negam; situações em que se

sentem ameaçados em sua existência; rancores e ódios; medos; etc.. Esses pontos de tensão

são objetos reconhecíveis na realidade pesquisada, ou tratam-se, em boa medida, de

"esquecimentos", objetos que rondam um campo de discursividade sem dele fazer parte. Esse

é um ponto para análise dos processos radicais de exclusão que, potencialmente antagônicos,

podem ou não gerar subjetivação (emergência do sujeito) pela articulação de demandas

populares. Esses pontos de tensão evidenciam fixações hegemônicas de sentido e/ou disputas,

em vários níveis de profundidade, o que nos revela eventuais tentativas de construção de

novos sentidos.

2- Evidenciamos as disputas de sentido que estão sendo postas nesse campo.

Analisamos como os sujeitos pesquisados se enquadram ou mesmo teimam em não se

enquadrar em determinadas racionalidades. Aqui captamos a lógica estrutural contra a qual

os sujeitos pesquisados se opõem em seu cotidiano com maior ou menos efetividade ou

mesmo consciência. Esse passo é, portanto, um aprofundamento a partir da identificação dos

pontos de tensão acima mencionados. Os termos em que se dão esse embate é que definem se

estamos tratando de processos mais colados à lógica da diferença ou da equivalência.

3- Analisamos como os sujeitos estão construindo seus discursos. Apontando os

elementos que estão mobilizando/articulando (valores, emoções, objetivos) nos seus

discursos. Ou seja, como se dá seu esforço "expressivo" em termos discursivos. Em outros

termos, quais as aproximações metafóricas (lógica equivalencial) e quais articulações

metonímicas (lógica diferencial) estão sendo postas em ação e/ou desafiadas. Percebemos,

entretanto, que muitas vezes o discurso dos pescadores está restrito aos pontos de tensão

(passo 1), exatamente por estarem atados à lógica diferencial (metonímica) do espaço

dominante capitalista. Laclau entende que essa espacialidade é o oposto do tempo que, por

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sua vez, pode ser despertado por aproximações metafóricas insólitas (relações equivalenciais)

- aquilo que Ricoeur chama de metáfora viva. Fica claro então, que a construção de sentidos

(passo 2) dependerá da capacidade dos pescadores de manejarem nos dois eixos - metafórico

e metonímico - construindo um processo de subjetivação com um nível relativo de autonomia.

4- Poderemos então, como quarto passo, demonstrar como as disputas em termos

espaciais têm influenciado (para o bem ou para o mal) esses esforços expressivos. Os tipos de

relações que estão submetidos e/ou lutando contra os sujeitos pesquisados. Para o fechamento

da fundamentação teórica da pesquisa, abordaremos o fato de que os discursos são

constituídos de dimensão lingüística e extralingüística, de maneira que o posicionar-se na

topografia do social tem um efeito no horizonte de enunciação.

Neste sentido, serão consideradas também as proposições da pesquisa narrativa

apresentadas por BAUER e GASKELL que serve como um norte para o pesquisador iniciar a

metodologia das entrevistas narrativas.

No primeiro momento, a tarefa do pesquisador social é escutar a narrativa de um

modo desinteressado e reproduzi-la com todos os detalhes e considerações possíveis. Na

verdade, extrema fidelidade em reproduzir as narrativas é um dos indicadores de qualidade da

entrevista de narrativa. A este primeiro momento do processo de pesquisa aplicam-se as

proposições: 1) A narrativa privilegia a realidade do que é experienciado pelos contadores de

história: a realidade de uma narrativa refere-se ao que é "real" para o contador de história. 2)

As narrativas não copiam a realidade do mundo fora delas: elas propõem

representações/interpretações particulares do mundo. 3) As narrativas não estão abertas à

comprovação e não podem ser simplesmente julgadas como verdadeiras ou falsas: elas

expressam a verdade (tentativa de construção de sentido) de um ponto de vista, de uma

situação específica no tempo e no espaço. 4) As narrativas estão sempre inseridas no contexto

sócio-histórico. Uma voz específica em uma narrativa somente pode ser compreendida em

relação a um contexto mais amplo: nenhuma narrativa pode ser formulada sem tal sistema de

referentes (BAUER; GASKELL, 2011, p. 109-110).

Neste caso, comumente recorremos a informantes-chaves, especialistas no assunto,

para ouvir e dar voz às narrativas dos mais antigos e experientes pescadores, mergulhando nas

memórias da geração mais velha da colônia. A partir daí, analisaremos como se deu a

transmissão dos saberes da pesca em relação à aprendizagem e ensino, através das narrativas

entre as gerações. Para tanto, ―é crucial levar em consideração a dimensão expressiva de toda

peça narrativa, independentemente de sua referência ao que acontece na realidade‖ (BAUER;

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GASKELL, 2011, p. 19). E mais, é por meio dela que se obtém uma melhor compreensão de

uma pessoa ou grupo social (GILBERT; POPE, 1984), como é o caso do campo da presente

pesquisa, uma colônia de pescadores.

O percurso metodológico em que se dará a pesquisa envolve fontes orais a partir de

entrevista com pescadores (de idade mais antiga, intermediária e mais nova) através dos quais

pretendemos obter relatos de como era trabalhada a temática ―saberes e experiências do mar‖.

Além das narrativas pretendemos utilizar como fonte uma bibliografia de pesquisas nesta

área, inclusive, busca por projetos já defendidos. Esta intenção busca evidenciar a especulação

de uma possível insuficiência de pesquisas nesta área ou perspectiva.

Na pesquisa foram entrevistados 08 pescadores entre homens e mulheres, na faixa

etária de 29 a 60 anos, utilizamos o método de entrevista informal (não estruturada): objetiva

uma visão geral do problema pesquisado, quase uma conversa. Nosso grupo de entrevistados

foi formado por quatro mestres mais antigos (velhos) e outros quatro mestres mais novos

(jovens) da colônia.

De acordo com Parra Filho e Santos (1998), o método ―é o caminho a ser trilhado

pelos pesquisadores na busca do conhecimento‖, ou seja, a forma na qual um sujeito apreende

determinado objeto (material ou imaterial). Os enfoques teóricos aqui utilizados apontam para

uma dimensão ontológica das narrativas: é ao narrar suas experiências que os sujeitos se

constituem.

Por possibilitar os procedimentos necessários à investigação e a própria compreensão

das ―interpretações que os atores sociais possuem do mundo‖ (BAUER; GASKELL, 2002), a

história desse segmento, associada à própria contextualização dos arranjos que envolvem a

prática dos mesmos na atualidade, confere o caráter científico desse método e explicita de tal

modo a existência do processo pedagógico de ensino-aprendizagem que perpassa além da

herança cultural, a própria memória e educação que deve continuar a existir.

Os dados coletados serão transcritos e analisados de forma cautelosa, a partir de

categorias previamente estabelecidas nas teorias de Paul Ricoeur e Ernesto Laclau, no intuito

de verificar, nas narrativas das entrevistas, o processo pedagógico a partir dos saberes e

experiências do mar conforme já se evidenciou na proposta metodológica.

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3.1 ANÁLISES DAS MEMÓRIAS E NARRATIVAS COM FUNDAMENTO NAS

TEORIAS DE ERNESTO LACLAU

Escolhemos para a análise das memórias e narrativas dos pescadores a teoria do

discurso de Ernesto Laclau. Para tal teoria o político é entendido como constitutivo do social

e, portanto, das identidades coletivas, ou seja, Laclau trabalha com uma ontologia do político.

Nas palavras de Mendonça (2014, p. 143-144), o filósofo argentino:

―... o papel da teoria, primeiramente, é o de conhecer os elementos

ontológicos do político, ou seja, promover uma reflexão do ser enquanto ser.

Essa reflexão perpassa o conhecimento do discurso como categoria

ontológica central. Entender como o discurso é articulado, como sua exis-

tência é precária e contingente, ajuda-nos compreender o porquê são inócuas

as formulações normativas que visam congelar o fluxo inconstante da vida e

das relações sociais.‖

Portanto, a metodologia desta pesquisa fundamentada na teoria do discurso de Laclau,

tem o intuito de promover uma reflexão do ser (pescador) enquanto ser (humano), com suas

subjetividades sempre em constituição - posto que não correspondem a uma essência ou a

normas encarnadas em leis preditivas do social. Suas identidades sofrem interferências

políticas e normativas, nas relações sociais, em especial no seu trabalho, a pesca, nos

discursos articulados e constituídos de dentro e de fora da colônia de pescadores.

Sua constituição, como vimos, como cidadãos desterritorializados, trabalhadores com

carteira assinada e a entrada num sistema educativo funcionalmente articulado a um

determinado modo de produzir e um modelo específico de democracia pode - mas apenas

potencialmente como temos insistido - respaldar a construção de novos telos/temporalidades.

É nessa dinâmica de construção de novas intrigas, que se realiza a tríplice mímesis, em Paul

Ricoeur, como um processo criativo e reflexivo que operam simultaneamente um triplo

presente: o presente das coisas futuras, um presente das coisas passadas e um presente das

coisas presentes nas narrativas que promovem o discurso. Contudo, abordaremos este tema

mais adiante, no tópico 2.1.6, que trata da relação da tríplice mímesis com a teoria do discurso

em Laclau.

Todavia, devido à complexidade da teoria de Laclau, faz-se necessário apresentar e

posteriormente contextualizar alguns conceitos que foram adotados na pesquisa, tais como:

demanda, identidade, discurso, lógica da diferença, lógica da equivalência, hegemonia,

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significante vazio, mito, antagonismo, deslocamento e subjetivação (emergência do sujeito)

que são fundamentais na análise das narrativas que constituem os discursos dos respectivos

pescadores do campo de pesquisa.

3.1.1 Conceito de demanda

Segundo Laclau, a unidade mínima considerada para a possibilidade de uma

experiência popular é uma categoria classificada por ele como demanda. Para Laclau, existem

duas formas de compreender esta categoria. Demanda pode ser um pedido (ou seja, uma

simples solicitação), ou uma reivindicação. Na primeira forma, a demanda é vista como uma

solicitação diretamente feita aos canais institucionais formais. Assim, a falta de uma creche

em um bairro pode ensejar tal pedido à municipalidade. Se a creche é construída, o problema

termina, a demanda exaure-se. O atendimento da mesma dá-se no plano administrativo,

instância em que opera a lógica da diferença, no sentido expresso por Laclau.

No entanto, se a demanda não for atendida, apesar da frustração gerada, esta pode até

mesmo desaparecer, a menos que outras demandas também não atendidas passem a

estabelecer uma relação articulatória entre si. Neste caso, as demandas mudam o status de

simples pedidos para o de reivindicações. Há aqui a construção de um novo ambiente

metonímico que (com uma diferencialidade que se insinua por dentro da cadeia de

equivalência construída), por sua vez, serve de esteio para a construção de outras articulações

metafóricas.

Assim, segundo Laclau, um corte antagônico passa a dividir negativamente o espaço

social entre essas demandas populares articuladas contra a institucionalidade dominante. Esta

é a pré-condição para uma ruptura popular, que desarticula certa estabilidade na lógica

diferencial/metonímica constitutiva dos espaços sociais hegemonicamente integrados.

É preciso dizer que o campo popular constitui o seu próprio processo de representação.

Tal processo tem lugar quando uma das demandas articuladas, num dado momento, precário e

contingente, passa a representar a cadeia de equivalências popular — que evidentemente a

excede em sentidos — exercendo, assim, uma tarefa hegemônica. Quanto mais extensa for a

cadeia equivalencial, mais frágeis serão os sentidos da(s) demanda(s) particular(es) que

assume(m) o papel de representação desta cadeia. É aqui que podemos notar a

diferencialidade na cadeia de equivalências porque esses elos "frágeis" tendem a funcionar

como elementos excluídos e não como momentos, o que remete à formação de outras cadeias

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de equivalência a partir de uma anterior e com telos igualmente alternativos. Essa discussão

perpassa nosso método de análise na medida em que a construção de novos telos necessita,

como vimos, trabalhar articuladamente nos eixos metafórico e metonímico. Isso implica,

portanto, falar em processos coletivos de subjetivação - uma vez que não se pode falar de

construção de espacialidade (abertura de mundos) desde uma subjetividade individual.

3.1.2 Conceito de demanda democrática e demanda popular

Assim como foi dito acima, Laclau define o conceito de demanda dando-lhe o duplo

sentido de: solicitação (um pedido) e/ou reivindicação (exigir uma explicação quando o

pedido não é aceito). Demanda social ou simplesmente demanda: é a menor unidade de

representação do grupo para existência de uma experiência política. Para Laclau, a unidade do

grupo é o resultado de uma articulação entre tais demandas sociais, que são classificadas em

sua teoria como: Demandas Democráticas e Demandas Populares. Essa unidade, para Laclau,

como temos dito, é resultado de articulações metafórico-metonímicas.

Deve-se entender por Demanda Democrática sendo aquela demanda que, satisfeita ou

não, permanece isolada, ou seja, não cria uma relação com as demais demandas ao ponto de

promover uma reivindicação. Aqui ficaríamos restritos ao primeiro passo de nosso método,

posto que teríamos apenas uma tensão com a lógica diferencial dominante. Na colônia,

percebe-se que a demanda democrática presente é a luta na demarcação entre as áreas de

pesca e as áreas de preservação ambiental. Pois os órgãos ambientais demarcaram uma área

maior do que os pescadores entendem como ideal. Entretanto, usa-se o discurso da ciência

como fundamento para justificar a limitação da área de pesca, ignorando o conhecimento

empírico dos pescadores. Atribuindo muitas vezes a eles por serem responsáveis pelos

impactos ambientais. Fazendo com que os pescadores artesanais sejam vistos pelos órgãos

governamentais, como predadores ―criminosos‖. A fala da pescadora, colabora com o

exemplo:

A gente fez, a gente puxou o pessoal da APA pra discussão aqui com os

pescadores, por que botaram uma área muito grande ali... E iria prejudicar

muita gente assim, e a área que tava no papel era muito maior do que a

própria área mesmo, aí foi quando a gente chamou. Que eu tenho esses

conflitos com pessoal da prefeitura, essas coisas e tal... Porque o pessoal diz

que eu queria atrapalhar né e mas né não... As coisas tem que ser feitas

discutindo nas bases né? Aí foi quando eu chamei o pessoal da APA pra

discussão, à gente fez um trabalho de base nas comunidades, entendeu? Pra

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gente escolher as áreas exclusivas para pesca, por que se a gente não tiver,

não lutar pela área exclusiva pra pesca, aí daqui a pouco só vai ficar tudo pra

turismo, que nem Maragogi. E cadê as áreas de pesca? Porque muita gente

depende desta área aí, pra pescar agulha, pra arrastar. (Pescadora, 50 anos –

Colônia Z-9).

No que tange às Demandas Populares, elas são as que formam uma pluralidade de

demandas, que através de sua articulação de equivalência, constitui uma subjetividade social

mais ampla. (LACLAU, 2013, p. 124).

Sendo mais ampla, a demanda popular, articula por equivalência outras demandas

democráticas e deixa de ser um pedido, para se tornar uma reivindicação (exigência). Caso

não seja atendida, pode gerar conflitos para além do plano linguístico do discurso, ou seja,

abrindo espaços sociais alternativos. As dimensões do discurso estão sempre

inextricavelmente articuladas.

Na colônia, a última demanda popular, reconhecida e atendida na entrevista dos

pescadores, foi a conquista do Chapéu de Palha (meio salário) pago pelo Governo do Estado

para os pescadores que não possuem o defeso da lagosta. Aqui podemos identificar quais os

sujeitos que se articularam para o atendimento dessa demanda, observando este resumo do

histórico da disputa, na narrativa da pescadora:

A gente lutava pra ter um salário durante estes quatro meses. Aí foi quando o

governo do Estado, aí foi e fez um mapeamento lá, a gente trouxe pro

estadual, aí não, como a gente lutava pelo defeso pesca, que era um salário,

aí no caso a secretaria da mulher lutava por uma ajuda, uma bolsa, o chapéu

de palha pras mulheres. Aí a gente no geral lutava pelo defeso pesca para os

pescadores e marisqueiras, os pescadores artesanais nesse período, aí

juntou uma coisa com a outra e terminou a gente fazendo uma mobilização,

que a gente sempre faz no dia 22 de novembro que é o Dia do Grito da

Pesca. A gente sempre tem uma pauta, a gente escolhe uma pauta do que ta

mais prejudicando muito a gente, aí articula com os outros Estados, que

sempre sai pra rua pra lutar pelos direitos da gente neste período, no dia 22

de novembro, aí foi quando a gente saiu pra rua e a gente fez a mobilização,

esse foi em 2011 que a gente já vinha desde 2009, 2010 fazendo e não tinha

resultado. Aí quando foi em 2011 a gente fez diferente, a gente ocupou a

Secretaria de Agricultura e foi quando a gente tinha uma articulação assim

dentro, tinha um grupo de trabalho na Secretaria de Agricultura na SEAFE,

aí foi quando a gente fez a mobilização lá e queria falar com o governador,

por que eles sempre ficavam enrolando, aquela coisa, aí nesse dia a gente

decidiu que queria falar com o governador. Foi quando a gente aqui do

litoral sul, conseguiu um ônibus com um deputado aí pra fazer essa

mobilização que tava São José, Barreiros e Tamandaré, e conseguimos

esse ônibus, que na volta aconteceu um acidente lá em Ipojuca, um acidente

muito feio lá com a gente, lá no ônibus... Um carro bateu no ônibus e foi

moto e foi tudo. Aí foi quando chamou à atenção, o governo mandou um

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ônibus pra pegar a gente tudinho... A gente foi no dia 22, e agente já saiu

com uma pauta do dia 25 com uma reunião com o governador do

Estado, Eduardo Campos. E aí foi quando a gente se sentou lá no Palácio

do Governo e a gente entrou num acordo, como a secretaria já vinha

trabalhando com o chapéu de palha mulher, e a gente pelo defeso pesca, aí

juntou e contemplou o Chapéu de Palha pra Pesca de todo Estado.

(Pescadora, 50 anos – Colônia Z-9).

Na narrativa, notamos que a mobilização iniciada pelos pescadores artesanais da

Colônia Z-9, que se articularam com outras colônias da região sul e de outros Estados,

conseguiram um apoio político local na aquisição de um ônibus para transportar os pescadores

até a capital, e que lá chegando decidiram fazer a ocupação da Secretária de Agricultura,

como tática de luta, contra o descaso e demora por parte das autoridades governamentais em

atender suas reivindicações. Tal resistência instalou um caos, que incomodou chamando a

atenção da população e do governador do Estado, que resolveu então, recebê-los e ceder as

exigências da demanda popular feita através do movimento dos pescadores. Portanto, depois

de atendida está demanda torna-se democrática.

Todavia, não significa que não existam outras demandas em luta no momento, o

exemplo acima, serve para ajudar na compreensão da metodologia da pesquisa. O

aprofundamento se dará no capítulo das análises das narrativas dos pescadores.

3.1.3 Conceito de identidade

Primeiro, deve-se saber que, para Laclau, toda identidade é sempre uma identidade da

falta. Em outras palavras, ela nunca é plena ou absoluta em seus sentidos (objetivação), ou

seja, não está atada a um espaço metonímico, e busca constantemente, através da relação com

outras identidades, sem obter êxito, encontrar uma totalização (universalidade). Esta relação

ocorre a partir da articulação, ou seja, elementos (não fixados diferencialmente) distintos que

se articulam em torno de um ponto nodal (sentido discursivo privilegiado). O resultado desta

articulação é o discurso.

Na definição do conceito de identidades coletivas, utiliza-se a discussão em Laclau

(2011), considerando as questões culturais. Para Laclau, a pós-modernidade faz suscitar uma

ideia mais democrática de multiplicidade cultural, e é na premissa de que as identidades se

apresentam em grupos e no confronto desses grupos que pode se constituir a identidade. Tal

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confronto se refere à relação com outros grupos, pois na medida em que um grupo afirma sua

identidade, ao mesmo tempo, ele afirma a identidade do outro que lhe é diferente.

Assim, tendo em mente a importância da noção de relação em sua teoria, Laclau

pondera acerca da existência de uma diferença pura: ―pois uma identidade puramente

diferencial em relação a outros grupos tem de afirmar a identidade do outro simultaneamente

à sua e, como resultado, não pode pretender interferir na identidade daqueles outros grupos‖

(LACLAU, 2011, p. 81). Por isso, um grupo não consegue se estabelecer de forma unívoca;

haverá sempre uma relação com um grupo que lhe seja diferente e que pode não aceitar sua

interpelação, de maneira que é impossível, racionalmente, se estabelecerem regras e acordos

universalmente aceitos, que estariam acima de qualquer particularidade organizada.

Portando, não apenas as identidades coletivas são constituídas a partir de referenciais

internos e externos ao grupo, através de demandas que aproximam ou afastam os sujeitos

destes grupos de pescadores de suas identidades populares, como esse jogo implica em

constantes rearranjos de articulação entre os mencionados eixos metafórico e metonímico.

Isso implica no entendimento de que novos telos sempre podem ser construídos e é nesses

termos que entendemos nossa imputação de "popular" à as identidades dos pescadores que

investigamos.

Para Laclau, as identidades populares podem sempre se constituir como totalidades,

uma vez que as demandas e lutas parciais acabam por funcionar como totalidade; ou seja, há a

abertura de uma espacialidade para além da lógica diferencial dominante. É por isso que a

formação das identidades populares, segundo ele, se apresenta como uma ―sobre

determinação de demandas democráticas‖, sendo que sua centralidade depende em grande

medida desse espaço de articulações com outras demandas em um cenário de totalidade

popular (LACLAU, 2005).

Cientes destes conceitos iniciais, colocaremos nosso método de análise para funcionar

em torno de um ponto fundamental, qual seja, como certa articulação discursiva é capaz de

organizar as reivindicações de sujeitos sociais, no caso, os pescadores da colônia Z-9, contra

o(s) "seu(s) inimigo(s)" (Estado, sistema econômico, político, etc.). Trata-se de pensar acerca

das condições de possibilidade para a construção de sentido, de telos, mímesis criativa, que é

a mímesis I em Ricoeur, onde ele trata do ponto de partida da narrativa e da condição de pré-

compreensão. Tudo isso, como vimos argumentando, implica na capacidade de se abrirem

espaços sociais relativamente autônomos. Fundamental para captar tal processo de abertura

(ou se repressão a tal abertura) é estar atento ao conceito de discurso em Laclau.

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3.1.4 Conceito de discurso

Na teoria do discurso laclaniana, deve-se entender, de partida, que os discursos não se

limitam a sua dimensão linguística. Ou seja, muito além de captar os conteúdos que enunciam

os sujeitos desta pesquisa, tenta-se compreender o contexto social que conformam os sentidos

dos ditos enunciados. Assim, para Laclau (2000, p. 10):

Um espaço social deve ser considerado como um espaço discursivo se por

discurso não se designar somente a palavra e a escritura, mas todo o tipo de

ligação entre palavras e ações, formando assim totalidades significativas.

Fica, pois, evidente no pensamento laclauniano que há uma abrangência do espaço

para além da condição geográfico-espacial. Com isso, Laclau instaura uma nova condição de

ser do espaço (enquanto categoria ontológica) à medida que o mesmo atribui à esfera do

geográfico a também condição discursiva. É fundamental observar a condição política que o

espaço geográfico adquire quando observado na perspectiva discursiva. O discurso impõe

uma presença e, com isso, o espaço adquire voz. Nesta presença, o discurso expõe um

pensamento, instaura uma (in)satisfação, propicia reflexão, possibilita diálogo, interação e,

consequentemente, provoca mudanças.

Neste sentido, observa-se um duplo dinamismo: por um lado, que lógicas articulam os

sujeitos e demandas identificados na Colônia Z-9 e, por outro, que lógicas articulam a própria

Colônia a outros espaços sociais que foram identificados em nosso campo empírico. Nesse

esforço, há uma atenção ao contraste entre lógica da diferença e lógica da equivalência, estes

são termos criados por Laclau para tentar explicar como funciona a dinâmica dos processos

discursivos e suas articulações.

3.1.5 Lógica da diferença e lógica de equivalência

Por lógica da diferença compreende-se que esta se dá pela percepção identitária como

tal, o que Laclau (2005) denominou como demandas democráticas, que nascem isoladas num

primeiro momento (primeiro passo de nosso método) e que, por estarem isoladas, estão

imersas numa lógica de diferenças, pois não estão articuladas com outras demandas

democráticas. São demandas que isoladas não conseguem passar de simples solicitações, não

produzem efeito suficiente para ―quebrar‖ o discurso hegemônico.

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Já a lógica da equivalência, nada mais é para Laclau (2005) que a articulação entre as

demandas democráticas isoladas em torno de um ponto nodal, que possa constituir um

discurso privilegiado, que faria sentido a todas elas, ou seja, uma relação de equivalência,

possibilitando que as mesmas se articulassem em torno de uma lógica equivalencial (onde se

interconectam os passos 2, 3 e 4 de nosso método). Abrir-se-ia aqui um novo ambiente

metonímico, potencialmente capaz de gerar novas articulações metafóricas em torno de

significantes dos pontos de tensão, que podem liberar mais ou menos a fixação de sentidos.

Esse é precisamente o núcleo da nossa lógica analítica. Desta forma, passariam de demandas

democráticas isoladas, para se tornar demandas populares, como maior força de

representação, promovendo um discurso que emerge como reivindicações que tendem a uma

universalidade da sociedade. Um intento de romper com a diferencialidade do espaço

dominante e não ser mais apenas uma particularidade de um grupo específico (um momento).

Percebe-se, pois, que as lógicas mencionadas estão presentes no seio da comunidade

de pescadores, através das relações existentes entre suas demandas, tais como: mobilizações

contra as proibições da pesca de algumas espécies de pescado, na luta pelo pagamento do

seguro defeso da pesca, nas ações da colônia de pescadores na promoção dos direitos

previdenciários, na resistência dos pescadores em face da pesca industrial; ou seja, algumas

demandas democráticas dos pescadores que se apresentavam isoladas, e não eram atendidas

pelas instituições formais (Estado), depois da organização da Colônia Z-9, passaram a serem

articuladas e tornaram-se (ao menos potencialmente) demandas populares dos pescadores da

região do Litoral Sul de Pernambuco.

Tais demandas, que foram articuladas também com as demandas de outras colônias de

pescadores da Região Metropolitana (com o apoio da Pastoral da Pesca) e Litoral Norte,

promoveram a reunião de diversos grupos de pescadores, heterogêneos em suas

particularidades, como, por exemplo, nas modalidades de pesca: marisqueiras, pescadores

ribeirinhos, pescadores embarcados, etc., em torno do ponto nodal, um discurso articulado e

homogêneo a todos estes grupos de trabalhadores que tem como ocupação a pesca artesanal.

Desta forma, podem transformar várias demandas democráticas em demandas populares na

medida em que o Estado atual, estruturado em torno de valores da produção industrial e do

mercado capitalista, não as consiga atender.

A metodologia desta pesquisa parte, então, das análises das entrevistas narrativas dos

pescadores, buscando verificar as tensões (políticas, econômicas, culturais, etc.) existentes, ou

não, entre tais lógicas, para tentar identificar e responder:

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1- Quais tipos de demandas existem entre os pescadores da Colônia Z-9?

2- São demandas populares ou demandas democráticas presentes nas narrativas dos

pescadores?

3- Quais as implicações e desdobramentos das narrativas para a permanência da

atividade da pesca artesanal?

Para tanto, a pesquisa tem como base, a teoria do discurso de Laclau e a relação com a

tríplice mímesis da narrativa em Ricoeur.

3.1.6 Relação entre tríplice mímesis da narrativa em Ricoeur e a teoria do discurso em

Laclau

Para início do estudo da tríplice mímesis da narrativa em Ricoeur, é primordial que

apresentemos a categoria que fundamenta sua tese narrativa e que, como veremos, tem uma

grande afinidade com a teoria do discurso de Laclau: o Tempo. Para Ricoeur o tempo é um

elemento estruturante da narrativa. Isso porque, em suas palavras, o tempo se torna humano

através das narrativas. De acordo com Ricoeur ―existe, entre a atividade de narrar uma

história e o caráter temporal da experiência humana, uma correlação que não é puramente

acidental, mas apresenta uma forma de necessidade transcultural‖ (RICOEUR, 2012, p.93).

Segundo Ricoeur, existe uma relação entre tempo e telos da narrativa: se o tempo não

é natural e sim humano, então se podem organizar diferentes narrativas que fujam ao telos de

uma história linear hegemônica. Veremos mais adiante no que isto tem a ver com o processo

de resistência dos pescadores e sua integração à lógica tecnicista.

À luz do entendimento sobre narrativa, tempo e experiência humana, analisaremos o

discurso do Mestre pescador sobre o processo de aprendizagem e ensino, através da sua

narrativa:

―... O que eu aprendi com o mestre que eu pesquei com ele né, às vezes eu

sempre converso com os meninos, digo: oia! Você vai aprendendo vendo eu

fazer as coisas... Às vezes... tem coisas que pescador não sabe fazer, você vai

dizendo a ele como faz. Uma vez um material tava enganchado na pedra, a

garateia, não queria sair, aí eu fui lá... folga aí, tira aí! Desatou, folgou ...

aí eu peguei a corda, balancei, balancei... aí saiu! Ela desenganchou da

pedra. Aí ele ficou olhando assim: como é que tu fez isso pô?” (Mestre,

35 anos, Colônia Z-9).

Na fala do Mestre, destacamos em negrito a narrativa onde ele compreende que sua

vivência prática, experienciado no passado, foi significativa para formação dos seus

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conhecimentos como mestre de barco e transmitido para os novos pescadores. Desta forma, a

transmissão dos saberes da pesca, em especial a técnica da pesca de linha, perpetua na

construção narrativa do mestre através do tempo narrativo da experiência.

Para analisar as entrevistas narrativas dos pescadores, adotamos a Tríplice Mímesis

presente na obra Tempo e Narrativa de Paul Ricoeur (2010), por se aproximar da teoria do

discurso em Laclau. A lógica da equivalência de Laclau, que articula demandas populares se

relaciona com o momento criativo de invenção de novas intrigas em Ricoeur, ou seja, remete

à articulação entre metáfora e metonímia como processos que se implicam mutuamente dentro

de uma narrativa, o que ele conceitua como Mímesis I. Para compreensão desta relação, faz-se

necessário uma prévia explicação da ideia de intriga e de narrativa em Ricoeur, e sua

contextualização com as lógicas de equivalência e diferença resultantes da articulação das

demandas, identificadas nas narrativas dos pescadores e observadas no campo empírico.

A priori, para Ricoeur (2010), como já falamos, em sua teoria da Tríplice Mímesis, o

tempo é a base da estrutura narrativa. Pois, é a narrativa que torna acessível a experiência

humana do tempo, o tempo só se tornar humano através da narrativa. As narrativas revelam-se

mediadoras entre um ponto de partida e um ponto de chegada, entre uma determinada

configuração do mundo e outra. Portanto, é nessa mediação que as narrativas produzem um

conhecimento do mundo e, ao mesmo tempo, participam de sua configuração, em particular

de sua dimensão temporal.

Na explicação dessa articulação entre o tempo e narrativa, o autor dividiu em três

momentos (intertemporais) o processo narrativo e nomeou-os: Mímesis I, Mímesis II e

Mímesis III. Por Mímesis I, seria o momento da criação, ou seja, o ponto de partida, a pré-

configuração, na qual entende-se que existe uma base ética pré-narrativa, numa estrutura de

criação regrada, ou seja, a construção da intriga narrativa está enraizada na pré-compreensão

do mundo da ação, desta forma, a composição da intriga é uma imitação ou representação da

ação. Por Mímesis II, seria o momento da mediação, ou seja, o percurso pelo qual a narrativa

passa da pré-configuração pela operação da configuração. Ricoeur (2010, p.94), assim afirma:

―constitui o eixo da análise; por sua função de corte, ela abre o mundo da composição poética

e institui, como já sugeri, a literariedade da obra literária‖. E mais adiante ―(...) Mímesis II

extrai sua inteligibilidade de sua faculdade de mediação, que é a de conduzir do antes ao

depois do texto, de transfigurar o antes e o depois por seu poder de configuração.‖

(RICOEUR, 2010, p.94). Por fim, Mímesis III, seria o momento da recepção, ou seja, o

ponto de chegada da narrativa, sua reconfiguração, sem este ponto de recepção a narrativa não

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se completaria. Segundo Ricoeur (2010, p. 122-123), ―A narrativa alcança seu sentido pleno

quando é restituída ao tempo do agir e do padecer na mímesis III‖.

Ricoeur (2010) faz uma separação entre a narrativa histórica e a competência de se

contar uma história, e faz isto em três níveis, a saber: 1- ao nível dos acontecimentos

explicativos, a trama da narrativa está separada do processo explicativo; 2- ao nível do objeto,

ocorre a automatização das entidades: os personagens são sujeitos anônimos (nações, classes

sociais, sociedades, civilizações, mentalidades); 3- ao nível do tempo histórico, a

temporalidade parece desligada da memória dos agentes individuais; sua estrutura é adequada

apenas as entidades que a história-ciência põe em jogo, isto é, na historiografia, em geral, o

tempo é contrário ao tempo da ação.

Portanto, esses três níveis de ruptura (cortes epistemológicos) só se religariam através

de uma intencionalidade narrativa, que se dá através da composição de intrigas - que é a

Mímesis II. Segundo Ricoeur, a intencionalidade teria o mérito de rearticular os termos do

corte epistemológico, ao nível dos procedimentos explicativos, ao nível do objeto e ao nível

da temporalidade histórica. Enfim, seria a composição de intrigas exatamente o elemento que

cumpriria ambos os objetivos epistemológicos, propiciando a junção efetiva entre o

conhecimento histórico e a narrativa. Pois contar é o mesmo que explicar.

Neste sentido, a construção da intriga visa restituir a experiência do tempo vivido,

através da intratemporalidade, que para Ricoeur (2010, p. 109): ―define-se por uma

característica básica do Cuidado: a condição de estar jogado entre as coisas tende a tornar a

descrição de nossa temporalidade dependente da descrição das coisas de nosso Cuidado. Esse

aspecto reduz o Cuidado às dimensões da preocupação (Besorgen) (op. Cit.,p. 121)‖.

Desta forma, a intriga conjuga um componente narrativo, que organiza e torna

inteligível a experiência do tempo, e um componente histórico, pois ela apresenta

imediatamente a maneira pela qual os homens vivem essa experiência historicamente.

Contudo, esta ambivalência da noção de intriga não implica na redução à identidade de um

termo à outro. Neste sentido, Ricoeur entende que este tempo narrativo restituído pela intriga,

na verdade, é uma intratemporalidade, ao afirmar:

―[...] que não há um tempo futuro, um tempo passado e um tempo presente,

mas um triplo presente, um presente das coisas futuras, um presente das

coisas passadas e um presente das coisas presentes‖ (Ricoeur, 2012, p.106).

Tal intratemporalidade narrativa se dá com as novas intrigas e suas intencionalidades,

que são momentos criativos onde se promove os discursos narrativos de um determinado

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grupo social. Fazendo uma relação paralela com a teoria do discurso em Laclau, são nestes

ambientes discursivos que se promovem as articulações das demandas democráticas e/ou

populares; a relação entre as lógicas de equivalência (eixo metafórico) e diferença (eixo

metonímico) acontecem simultaneamente no plano da ação, bem como, no plano narrativo. O

discurso é, portanto, ação.

Cientes da relação entre o momento de criação da narrativa e sua repercussão como

discurso de um determinado grupo, a recepção deste discurso pode produzir dois momentos,

classificados por Laclau de processo de integração (quando prevalece a lógica diferencial

hegemônica), e processo de antagonismo (quando novas espacialidades do social são abertas

através de tensões entre os polos metafórico e metonímico dos discursos).

3.1.7 Integração, antagonismo e intriga

Nas análises fundadas nas entrevistas e observações de campo, como já deixamos

entrever, evidenciou-se que estamos estudando um processo mais de integração do que de

antagonismo. Para Laclau, o processo de integração é aquele em que o discurso produzido

pelas instituições formais, ou seja, o Estado e suas normativas burocráticas, conseguem

impor, convencer e dominar o ambiente discursivo frente às pretensões das demandas

democráticas, já que estas não conseguem se articular dentro da lógica de diferença junto as

instituições formais, quando das suas solicitações ao ponto de não serem atendidas, ficando

isoladas e enfraquecidas. Desta forma, passam a integrar o discurso institucionalizado e se

conformam.

Nesse contexto, Laclau considerada o antagonismo como constitutivo tanto da

fundação como dos limites do social. Embora, a princípio, antagonismo e reconhecimento

sejam opostos, pode-se desenvolver a hipótese de que o confronto entre identidades, ainda que

irreconciliáveis, sempre assumirá a forma de um reconhecimento mútuo. O conceito presume

que o oponente é construído como tal. Na sua visão, não existe nenhum elemento a priori que

torne possível determinar onde o antagonismo irá surgir. Ele é relacional e oposicionista, pode

constituir-se em qualquer lugar.

O antagonismo, antes de ser uma relação entre objetividades já dadas, representa o

próprio momento em que as mesmas passam a ser constituídas. Assim,

[...] antagonismo é condição de possibilidade para a formação de identidades

políticas e não meramente um campo de batalha que se forma entre duas

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forças já prontas. [...]. Na medida em que há antagonismo, eu não posso ser

uma completa presença de mim mesmo (LACLAU; MOUFFE, 1985, p.

125).

Há, no antagonismo, a presença de algo - um espaço potencial - ausente, no sentido de

não estar integrado, positivado, na totalidade social hegemônica (lógica da diferença).

Antagonismo é, portanto, uma experiência de negatividade, uma relação que apresenta o

limite da objetividade ou da constituição plena das identidades como momentos positivos de

um sistema de diferenças.

Neste sentido, a proibição da pesca de determinadas espécies, tidas como tradicionais

pelos pescadores e a limitação de áreas para pescar, impõe ao pescador a incapacidade de se

realizar pescador em sua plenitude. Este é um antagonismo presente na relação entre pescador

e Estado.

No campo de pesquisa e nas entrevistas foi notado e registrado, que alguns pescadores

resistem no caso da proibição da pesca da lagosta sem o devido uso de covas e durante o

período do defeso. Mesmo contra o risco de serem presos e/ou multados, muitos ainda

arriscam a vida fazendo mergulhos em apneia (palavra do latim que significa ―ausência de

entrada de ar‖), para capturar os animais com o arpão. Também fazem uso de equipamentos

como cilindros de ar, muitas vezes improvisados em botijão de gás de cozinha, o que causa

graves sequelas físicas e problema de saúde, quando não há morte ainda em mar por embolia

pulmonar.

Constitui assim, para o pescador, uma narrativa de que o mar é do pescador e que este,

tem que tirar o seu sustento, não cabe ao governo dizer o que pode ou não pode pescar.

Portanto, existe aqui um antagonismo, que nega a existência do pescador em sua plenitude

como ser, mas não suficiente para transgredir o sistema em sua maioria numa cadeia

equivalencial. Isso faz com que as narrativas dos pescadores obedeçam - majoritariamente,

mas não 100% - ao ambiente metonímico e hegemônico.

3.1.8 Metáfora, metonímia, ambiente metonímico e hegemonia

A metáfora é uma figura de linguagem que indica duas características semânticas

comuns entre dois conceitos ou ideias. Linguisticamente, a metáfora é verificada entre dois

significantes, existindo uma substituição, onde na cadeia significante um assume o lugar do

outro.

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A metonímia, também uma figura de palavra, está relacionada com uma relação de

contiguidade/proximidade entre duas ideias ou conceitos. Em nível linguístico, a metonímia

tem uma função significante, em que a parte é tomada pelo todo. Isso é catacrese/sinédoque.

Já o ambiente metonímico - que aqui se articula com a noção de abertura de mundos -

é o espaço no qual as narrativas produzem efeitos entre seus interlocutores que criam ou

fazem uso de metáforas e metonímias (re)significando suas ideias, conceitos e ações.

Portanto, o ambiente metonímico é o meio onde o discurso opera e produz seus efeitos, no

campo empírico estudado, o ambiente metonímico que estamos focando é a Colônia de

Pescadores Z-9. Claro fique portanto, que esse ambiente é visto na sua articulação com outros,

podendo ser alterado em sua identidade como resultado das relações em curso.

A hegemonia consiste em falar pela comunidade a partir de um dos ―campos‖

separados pelo antagonismo. Ela é definida por Laclau como um universal contaminado por

particularismos, ou uma unidade construída na diversidade. Para ele, a hegemonia é concebida

como uma forma de sinédoque. Sinédoque é uma figura de linguagem que consiste em tomar

a parte pelo todo, ou o inverso (o que envolve uma forma de metonímia). Para Laclau, o

conceito de hegemonia consiste em:

―... é o que estabelece o laço entre uma variedade de lutas e mobilizações

concretas ou parciais – todas são vistas como relacionadas entre si, não

porque seus objetivos concretos estejam intrinsecamente ligados, mas porque

são encaradas como equivalente [substituição metafórica, AB & RM] em sua

confrontação com o regime opressivo. O que estabelece a sua unidade não é,

por conseguinte, algo positivo que elas compartilham, mas negativo: sua

oposição a um inimigo comum‖ [contiguidade no polo metonímico, AB &

RM]. (LACLAU, 2011, p.73)

Diante desta ideia de hegemonia, inferimos que os pescadores da colônia

compartilharão uma posição em comum em relação ao governo (federal, estadual, municipal),

com suas leis e impostos, como sendo algo negativo para as suas vidas na medida em que

consigam construir um ambiente em "oposição a um inimigo em comum".

Para a aplicação dessa lógica analítica, tem-se que compreender o que sublinhamos

acima, ou seja, que é nas relações que a significação ocorre. Desta forma, Laclau considera

importante observar a posição relacional dos sujeitos que produzem suas falas e narrativas, ou

seja, a relação é uma categoria essencial para a constituição do discurso e sua compreensão.

Essa relação está circunscrita num tipo de intriga específico, por exemplo, a discussão

sobre classes sociais, num tipo de intriga alimentada pela narrativa marxista, que não foge do

telos evolucionista ocidental, o trabalho artesanal - e sua espacialidade - estariam condenados

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ao desaparecimento e/ou integração à sociedade capitalista. Entretanto percebemos, no campo

empírico, através das narrativas, que essa relação pode ocorrer de forma distinta entre os

sujeitos de um mesmo grupo. Notamos que existe uma resistência, por parte dos pescadores

mais velhos, que ainda se dedicam apenas a pesca artesanal, como também, coexistem a

integração à lógica capitalista do mercado, por parte dos jovens, na busca de outras profissões

remuneradas e com melhores salários. Essa narrativa articulada a outras ações integradoras

promovidas por órgãos governamentais, em nosso entendimento é uma ameaça à pesca

artesanal e propicia o seu desaparecimento.

3.1.9 A relação, o sujeito e o discurso

As relações são campos de possibilidades por onde o discurso ganha vida, se

materializa, torna-se pragmático. Por isso, entende-se a importância dada a ela por Laclau, na

sua teoria do discurso. O discurso partilhado gera compromisso, uma vez que o discurso agora

deixa de ser posse do discursante e passa a ser também presente na realidade do interlocutor.

Sendo assim, o discurso através da partilha comum gera "compromisso" - não no sentido de

adesão aos seus termos, mas no de relação - de ambos (discursante e interlocutor) perante a

verdade que ali é anunciada.

Segundo Laclau, a relação entre os sujeitos vai construir o discurso hegemônico que

será aceito e compreendido por determinado grupo narrativo, ao mesmo tempo, para que esse

grupo exista, ele deverá ―excluir‖ o outro grupo oponente. De maneira que algo sempre

escapará ao discurso que se pretende hegemonizar. Esta seria uma das características da

cadeia de equivalência: ―a busca do equilíbrio entre estes grupos discursivos vai

transformando as relações, nas práticas articulatórias, ocorrendo mudanças nas relações‖

(LACLAU, 2011, p.68).

Todavia, é sabido que existe uma relação direta entre o discurso e o poder. Na qual se

percebe que, quem possui uma liderança em meio a um determinado grupo, acaba impondo

seu discurso. Relação que ocorre e promove a dominação de grupos e de comunidades. O

papel de liderança entre os sujeitos pode influenciar nisso, pois aquele que usufrui de uma

autoridade no grupo pode fazer prevalecer a sua ideia e, além disso, conquistar outras pessoas

para também compartilhar do discurso proferido.

A pesquisa utilizou-se como fonte, as narrativas obtidas durante as entrevistas dos

pescadores, por isto, teve de se aprofundar no campo da metáfora e seus desdobramentos na

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construção dos discursos dos pescadores, para identificar seus significantes e seus

significados, bem como, o que Laclau conceituou como significantes vazios.

3.1.10 A metáfora viva, o significante, o significado e os significantes vazios

Na abordagem dos pescadores e analisando suas narrativas, notamos a presença de

alguns termos cujos significados e significantes tinham os mesmos sentidos já conhecidos,

digamos assim, já cristalizados pela linguagem do cotidiano. Entretanto, vislumbramos outras

criações narrativas que a primeira audição, não nos significou, o fez menor sentido para

entendimento da fala presente na narrativa do pescador.

Esse processo de criação narrativa, capaz de substituir ou aproximar coisas e atribuir

novos sentidos e significados, fazem parte da habilidade de um bom narrador em narrar suas

memórias, que são reconstruídas com metáforas e metonímias e muitas vezes através de

metáforas vivas. Cabe aqui, trazer o entendimento de Ricoeur sobre o termo, metáfora viva:

La metáfora viva no son evidentes a primera vista: 1) Mientras parece que el

relato ha de incluirse entre los «géneros» literarios, la metáfora parece

pertenecer, en primer lugar, a la categoría de los «tropos», es decir, de las

figuras del discurso. 2) Mientras que el relato engloba entre sus variedades

un subgénero tan considerable como la historia, que puede pretender ser una

ciencia o describir, al menos, acontecimientos reales del pasado, la metáfora

parece caracterizar únicamente a la poesía lírica, cuyas pretensiones

descriptivas resultan muy débiles, por no decir nulas. (RICOUER, 2000).

Para um melhor entendimento, a metáfora cria, via substituições, uma rede de

interações e faz emergir uma nova significação que é passível de repetição ao longo do tempo.

Nesse sentido a metáfora é o telos, e esta abertura se dá à medida que a palavra adquire valor

existencial. Certamente, a palavra proferida produz efeito no mundo a medida que transforma-

se em ação, em realidade prática. Seja na concordância ou na discordância, há uma mudança,

inclusive na consciência, quando se pensa, sobretudo, quando se pensa em si e se pensa

também o si mesmo no mundo.

Neste sentido, é um acontecimento semântico, ou seja, uma criação que atribui sentido

dentro de um contexto metonímico. Com o uso frequente desta construção semântica, ao

mesmo tempo em que ela torna-se parte de uma comunidade linguística, mesmo léxico, essa

metáfora pode se sedimentar e tornar-se parte da linguagem cotidiana e corrente de um grupo.

Para Laclau, metonímia e metáfora são contínuas de um mesmo eixo. É por essa lógica que se

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pode entender hegemonia: quando as metáforas estão estabilizadas e naturalizadas a partir de

uma metonímia originária.

Portanto, Ricoeur faz uma distinção entre as metáforas já sedimentadas na linguagem

e a metáfora viva, pois esta cria acontecimento e novo sentido, porém, não se transformou em

uma linguagem rotineira - incorporada em um ambiente narrativo; metonímico. A lógica é

que metáforas só fazem sentido em ambiente em que ela nos diz algo dentro de uma lógica

conflitual específica, ou seja, num ambiente metonímico. Em nossas análises finais,

demonstraremos como esse conflito se relaciona com a relação de fundo entre educação

informal e manutenção de um modo de vida artesanal.

Entretanto, Laclau também aborda a metáfora na sua teoria do discurso ao afirmar que:

[...] os ambientes metonímicos devem ser subvertidos para que um sistema

de significação quebre a hegemonia dentro do mesmo campo lexical.

Através das metáforas e metonímias, na cadeia de equivalências, romperá o

laço entre significante e significado (LACLAU, 2011, p.73).

A diferença e a equivalência estão simultaneamente presentes em cada valor/signo.

Sendo o signo a composição de significante e significado. Por significante entende-se a grafia

ou fluxo de som do objeto, por exemplo, a "pesca artesanal". Enquanto, por significado o que

ela, a pesca artesanal representa de valores para o indivíduo (o que vai depender, como vimos

insistindo, das tensões entre polos metafórico e metonímico). Na colônia de pescadores os

significantes estão presentes na luta pela permanência da pesca artesanal, como sustento da

família e manutenção da cultura pesqueira, nas demandas por melhores condições e espaço

para trabalhar na pesca, de modo geral. Enquanto que o significado da pesca, é a satisfação

de ocupar-se com algo produtivo, o conhecimento adquirido na prática, a bravura de enfrentar

os perigos do mar, o orgulho.

A hegemonia é, portanto, no sentido que Laclau lhe imprime, um processo catacrético:

significantes que perdem seu sentido original, significantes que, sem ter um conteúdo preciso,

mesmo assim significam. A importância dos significantes vazios está justamente em

homogeneizar um espaço social (numa articulação dos ditos polos), essencialmente

heterogêneo, vago e impreciso. (LACLAU, 2013, P. 15).

Para Laclau, significante vazio é um significante sem significação, mas que ainda

assim faz parte de um processo de significação – não deve ser analiticamente apreendido

como conceito, mas como ―nome‖ sem conteúdo previamente definido.

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4 MEMÓRIAS DO MAR – A EDUCAÇÃO INFORMAL NUMA COLÔNIA DE

PESCADORES

Como foi visto, no capítulo anterior definimos alguns critérios que permitiram

construir categorias estruturantes que foram utilizadas para identificarmos os pontos de tensão

no nosso campo de análise; evidenciarmos as disputas de sentido nesse campo; analisarmos

como os sujeitos estão construindo seus discursos e, por fim, demonstrar como as disputas em

termos espaciais têm influenciado as narrativas dos pescadores. Apresentamos também os

conceitos da teoria laclauniana e como ela nos auxiliou analiticamente na construção do

objeto de investigação e na leitura dos dados da pesquisa.

Agora, neste último capítulo, faremos, seguindo a lógica analítica desenhada, a análise

das narrativas coletadas nos próximos três tópicos. No primeiro, evidenciamos os efeitos

produzidos pelo discurso hegemônico da sustentabilidade e o quanto ele afeta a pesca

artesanal. No segundo tópico, analisamos a transmissão de saberes dos ―Mestres Pescadores‖

como processo natural e de suma importância para permanência e construção da memória da

pesca artesanal. Por fim, no terceiro tópico, analisamos o processo de integração a educação

formal na Colônia de Pescadores Z-9 e suas consequências.

4.1 ANÁLISES DA PESCA ARTESANAL E O DISCURSO DA SUSTENTABILIDADE

A organização social da pesca artesanal, vista através de seus embates (pontos de

tensão) e de suas formas de interação (produção de sentido), produz um sujeito social, o

pescador, dotado de conhecimento tradicional que viabiliza não só sua atividade profissional,

mas, também, sua reprodução sociocultural em bases comunitárias (questão espacial).

A vivência em comunidade e em sociedade abrange as relações sociais e as formas de

associação imprescindíveis aos processos sociais. Estes são entendidos através das diferentes

maneiras pelas quais os agentes sociais e seus grupos atuam uns sobre os outros, isto é, as

formas que eles se relacionam, se associam (que, na abordagem aqui construída se dão desde

uma "retórica generalizada"). Para que ocorra qualquer associação humana, seja em

comunidade ou em sociedade, seja o sujeito social a pessoa ou o indivíduo, faz-se necessário

o contato social – considerado a base da vida social humana (FREYRE, 1945).

Dos contatos, derivam a interação social, na qual os sujeitos, ao estabelecerem

comunicação, aprendem e ensinam coisas, modificam e sofrem modificações de

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comportamento, influenciam e são influenciados a mudar de opinião etc.. Neste sentido, a

sustentabilidade da comunidade de pescadores depende diretamente das relações entre seus

pares, na cooperação para o trabalho da pesca artesanal, tendo na colônia o elo entre o

individual e o coletivo, favorecendo as articulações em prol da categoria e das suas práticas

produtivas para escoamento, beneficiamento e arrecadação de renda com os pescados obtidos

pela colônia e seus associados. Acontece, como vimos anteriormente, que essas relações de

interação não se dão dentro de uma unidade social fechada e estável. Dependem, ao contrário,

de uma série de tensões que mobiliza a comunidade em torno de lógicas diferenciais e

equivalenciais e assim estabelecem o escopo ou horizonte discursivo desse sujeito coletivo.

Do ponto de vista da sustentabilidade do ecossistema, um ponto de tensão que aqui

elegemos para analisar, observamos que, historicamente, os pescadores artesanais sempre

tiveram, e continuam tendo, grande conhecimento sobre a estrutura e dinâmica ecossistêmica

do que entende como sendo o "território da pesca". Eles sabem quais os tipos de ambientes

propícios à vida de certas espécies de peixes; conhecem o hábito, o comportamento e a

classificação dos peixes; sabem manejar os instrumentos de pesca com propriedade;

conseguem identificar os melhores pontos de pesca (identificação dos pesqueiros)

(DIEGUES, 1983) e reconhecem que a tecnologia utilizada na pesca artesanal é uma forma de

intervenção não predadora se comparada à pesca industrial moderna (VALENCIO;

MENDONÇA, 1999; VALENCIO et al., 2003; FURTADO; SIMÕES, 2002).

No caso da colônia dos pescadores Z-9, nota-se que todos os pescadores entrevistados

se encontram insatisfeitos com as limitações impostas por leis e normativas ambientais, a

respeito de proibição da pesca de espécies, mas aceitam e se conformam com o discurso da

ameaça de extinção, sob alegação de que a pesca artesanal seria responsável pela diminuição

dos cardumes de pescados sob ameaça, mesmo sem que tenha sido feito um estudo detalhado

e que realmente comprovasse para os pescadores, da tal situação.

Portanto, isto seria um processo de integração da comunidade ao discurso da

existência de espécies vulneráveis, imposto pelo Ministério do Meio Ambiente. Tal

integração, entretanto, não se dá de forma voluntária, uma vez, que são sabedores de que as

coisas não acontecem exatamente assim, porque o impacto sobre os cardumes se dá pela pesca

industrial, por conta da grande escala e capacidade de carga de seus barcos, e não pela pesca

artesanal, que conta com barcos bem menores e, por isso, com menor poder de dano. Sua

resistência ao discurso da sustentabilidade não se dá no espaço público, onde seus argumentos

teriam pouco poder de convencimento, mas no fato de continuarem pescando de forma ilegal.

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Analisando as narrativas dos pescadores na colônia, percebemos que eles constituem

suas identidades através dessa tensão contra as políticas públicas e órgãos governamentais que

sabem interferir de forma prejudicial na sua atividade de pesca. Suas demandas na realidade

operam segundo uma racionalidade bastante distinta da que circula no espaço público e no

discurso oficial. Tais demandas podem, em tese, serem articuladas equivalencialmente, posto

que excluídas das formas como se estruturam as políticas públicas. Apontariam, assim, para a

construção de uma unidade discursiva que, para Laclau, não corresponde a uma identidade

naturalizada e essencialista de classe (como interesses prévios aos embates políticos). É

através desse "jogo" político, cuja dinâmica nunca pode ser pré-estabelecida, que lemos a

eleição, pelos pescadores, do governo como inimigo comum:

―Eu não comecei, eu nasci na pesca. Por que meu pai sempre foi pescador e

minha mãe sempre foi pescadora e a gente... tudo que entrou... foi da pesca.

Mas a gente hoje... a gente não pode mais contar com a pesca. Por que a

pesca hoje tá o que? Tá... a gente é pescador artesanal e a gente não ta tendo

apoio. Não ta tendo apoio nem de governo federal, nem de governo de nada,

nem de porra nenhuma. A gente pesca um peixe hoje aqui, o barco da gente

chega do mar... a gente vai vender o peixe e tem que pagar imposto, 17% .

Um peixe que a gente vende por 10 tem que pagar 1,70 ao governo... a gente

vai ficar sem nada. Eu tô aqui me mobilizando com o pessoal aqui pescador,

pra gente parar de pescar...Porque? Por que a gente não ganha nada... a gente

é melhor parar do que ta pescando. Cada um viver a sua vida trabalhando em

outro canto, por que a pesca ta... Hoje precária dentro do Brasil e

principalmente aqui no Nordeste. Por que no Sul tem ainda tem pescaria

industrial e a gente aqui não tem pesca industrial porque os barcos aqui são

pequenininhos. O governo manda a gente pescar de cova, mas a gente não

pode pescar de cova porque os barquinhos da gente não cabem. Lagosta é

raro, lá fora, para a gente aqui é uma desgraça, não pode. E eu digo uma

coisa a você meu amigo, tudo que to dizendo a você pode escrever e botar

até na televisão, eu tô certo... Sabe porque? A gente pequenininho é o que

toma no caneco! Tá entendendo? E me desculpa aí! Se você quiser que eu

não falo mais...‖ (Pescador, 43 anos – Colônia Z-9).

Nota-se na narrativa acima, a existência de um "eles" contraposto a um "nós" - o

Estado/sistema - praticamente nega a existência dos pescadores artesanais com as cobranças

de impostos vistas como abusivas, ou seja, mesmo que tenha políticas públicas para a pesca

artesanal, tais políticas operam segundo uma racionalidade do grande capital e, por isso, não

são capazes de atender as demandas (até o momento democráticas) da colônia.

Acontece que, como apontamos em outras passagens desse relatório, estamos diante

de uma situação em que há mais integração do que antagonismo. Depreende-se, nesse sentido,

nas narrativas dos pescadores, o fato de que na Colônia existe uma ―consciência‖ sobre o

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dever do Estado e ao mesmo tempo sobre o descaso produzido por este. Evidencia-se que essa

opinião contra o Estado termina sem ganhar o vigor político de quem vive a exploração na

pele. Um sentimento difuso de injustiça que recomenda que a Colônia pague os impostos,

mesmo que isso não gere o sentimento do direito garantido.

Portanto, diante da narrativa deste pescador percebe-se o sentimento de revolta e

desilusão com a sua atividade, não por não gostar de ser pescador, mas sim, pelas dificuldades

encontradas para exercê-la, atribuindo a culpa ao governo, ora por não apoiar a pesca, ora por

imposição legal em regular e limitar a atividade, gerando a pouca produção e baixa

rentabilidade com o resultado do pescado. Além, o alto custo dos impostos cobrados pelo

governo sobre a produção e limitação do uso de utensílios para captura dos animais.

Essa insatisfação, insistimos, é difusa. Resulta daí que o sentido (o significado) de toda

luta concreta dos pescadores não tem promovido um espaço de maior coesão ou

"unanimidade" entre eles. Suas reivindicações tidas como relevantes estão parcialmente

atendidas, integradas à lógica diferencial hegemônica, e parcialmente não atendidas. Por

exemplo, para os pescadores, uma demanda relevante seria a ampliação da licença que dá

permissão da pesca da lagosta, pois hoje, na colônia, apenas 23 barcos possuem a liberação.

Isto beneficia apenas 115 pescadores de quase 1000 cadastrados na colônia Z-9. A colônia

entende que não se libera mais licenças para não ter que pagar mais durante o período do

defeso da pesca. Esse caráter parcial no atendimento da demanda parece ser um motivo de

inibição de sua articulação equivalencial com outras demandas não atendidas. É como se não

conseguissem, por conta dessa tensão entre lógicas diferencial e equivalencial, construir uma

narrativa coesa, capaz de dar um sentido mais firme a sua existência como comunidade.

Vemos essa comunidade internamente dividida.

A tensão entre lógicas diferencial e equivalencial aparece ―equilibrada‖ na Colônia Z-

9, na observação das narrativas; na fala, os pescadores demonstram-se satisfeitos com os

direitos previdenciários conquistados na formalização da colônia (instituição) onde opera a

lógica diferencial. Mesmo com insatisfação na perspectiva de um futuro promissor para pesca

artesanal, devido às limitações impostas pelos órgãos de controle, além dos elevados custos

com pagamento de impostos, os pescadores entrevistados não conseguem, até o momento em

que estivemos com eles, articular equivalencialmente suas reivindicações que tencionariam

com a lógica hegemônica da pesca industrial.

Nesse sentido, o que vimos no campo empírico estudado foi a ausência de demandas

populares, o que corrobora o entendimento de que a colônia está mais integrada do que em

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movimento de antagonismo. Ao contrário, o que se demonstra empiricamente nas narrativas

dos pescadores é que persistem demandas que permanecem "democráticas" - isoladas - ainda

que não satisfeitas e, portanto, potencialmente populares. A reação do pescador entrevistado

em dizer que os pescadores artesanais ―só tomam no caneco” é um bom exemplo disso.

Como resultado deste "jogo" - que aparenta estar num momento de ―equilíbrio‖, mas

que consideramos aberto para futuras disputas - percebe-se que há, gradativamente, entre as

novas gerações, uma evasão de pescadores. Isso acontece porque a colônia de pescadores

atende em parte os anseios dos sujeitos, por exemplo, no que se refere à aposentadoria depois

de longos anos de trabalho ou mesmo ao seguro defeso, mas não consegue criar um sentido de

orgulho de pertencimento à ―categoria‖ de pescador. Quanto ao significado concreto da luta

de uma categoria, Laclau afirma que:

O objetivo concreto dela não é somente esse objetivo em sua concretização;

também significa oposição ao sistema. O primeiro significado estabelece o

caráter diferencial dessa reivindicação ou mobilização em confronto com

todas as outras demandas ou mobilizações. O segundo significado estabelece

a equivalência de todas as reivindicações em sua comum oposição ao

sistema. Como podemos observar, toda luta concreta está dominada por esse

movimento contraditório que simultaneamente afirma e anula a própria

singularidade. (LACLAU, 2011, p. 73).

Percebe-se que a fala de revolta do pescador, na verdade, é um ―grito‖ de denúncia

contra o sistema (o Estado - o defeso da lagosta), mas que configura apenas como o primeiro

significado (caráter diferencial) descrito por Laclau na citação acima. Entretanto, este caráter

diferencial isolado, não promove a representatividade da categoria de pescadores da colônia,

pois não estabelece a equivalência com outras reivindicações em sua comum oposição ao

sistema. Portanto, mantém-se como uma demanda isolada e não será atendida, já que parte

dos pescadores se integra ao sistema através do pagamento do defeso e não se mobilizam para

reivindicar os efeitos negativos da proibição da pesca da lagosta.

Como vimos no capítulo anterior, para que um campo popular se consolide a partir de

um processo hegemônico de representação, faz-se necessária a produção de significantes

vazios. Isso significa que se deve considerar que tal processo seja, no âmbito do discurso

popular, simbolicamente representado para além da mera soma de demandas articuladas.

É importante aqui definir o que são para Laclau "significantes flutuantes": aqueles que,

submetidos a um processo de disputa, permitiriam pontos de fuga do ambiente metonímico

hegemônico. Isso apenas para dizer de sua ausência no campo empírico da presente pesquisa.

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Ou seja, como o espaço discursivo estudado está em boa medida integrado sistemicamente,

não se observa a existência de articulação de demandas não satisfeitas - por equivalência -

mas o predomínio de lógicas diferencias - que evidenciam a articulação de demandas

democráticas vinculadas funcionalmente ao Estado e mercado capitalistas.

Analisando as narrativas observa-se que as demandas dos pescadores se caracterizam

como demandas democráticas, pois se encontram isoladas das demais demandas sociais mais

amplas. Segue fala de um dos pescadores com a abordagem que aqui foi explicitada:

―Há dificuldade por quê? Hoje tem um mói de lagosta, a gente não pode

pescar, por quê? A gente é proibido pescar de rede. Ah! Porque se a lagosta

tivesse liberada de rede era bem melhor. A de cova é liberada seis messes de

julho a novembro. Tem a pesca de cova, mas é pouquinho, tem mais prejuízo

do que lucro. Pescar de cova hoje é mais prejuízo do que lucro. O governo

quer que pesque lagosta e faça um mapa de tudo que vendeu e mande pro

ministério. Aí vai pro ministério vai pro Ibama vai pra tudo. A vida da gente

toda ele sabe. Se você não fizer o mapa, você não vai ter a licença pro outro

ano, não é assim?‖ (Pescador – 43 anos – Colônia Z-9.).

Observa-se acima a insatisfação com os mecanismos de controle, ou seja, a

regulamentação do governo e órgãos ambientais quanto ao uso de determinados utensílios e a

prática de algumas técnicas de pescar, que restringem algumas espécies, como no caso da

lagosta que não pode ser capturada com rede. Este é um ponto de reivindicação em comum de

parte dos pescadores da colônia, pois alguns afirmam da inviabilidade de fazer a cova

(armadilha em forma de gaiola, feita de madeira e tecida de fios de nylon) devido a proibição

de cortar o manguezal (ecossistema ribeirinho dos estuários – habitat de várias espécies em

reprodução) de onde extrai-se a madeira.

Por outro lado, outros pescadores alegam ser inviável o uso de covas devido ao

pequeno tamanho das embarcações e que a quantidade de cova é limitada a esta pouca

capacidade de carga. Desta forma, considerando que o custo e as limitações para produzir a

cova se soma a pouca durabilidade da armadilha, bem como a baixa produção na captura por

quantidade de covas levadas por embarcação, o resultado é que seus rendimentos não

compensam o investimento.

Nota-se também que este discurso do governo está amparado em valores ecológicos de

sustentabilidade que dominam esse campo de discursividade (lógica da diferença), o que de

certa forma fragiliza o discurso dos pescadores, perante a sociedade, no sentido de construir

uma narrativa que se contraponha a tais valores ambientais. Trata-se, entretanto, de um

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ambiente metonímico hegemônico e que serve aos interesses da pesca industrial. Isso porque

o grande capital pesqueiro se beneficia desse discurso e explora áreas, quantidades e espécies

em proporções muito, mais muito maiores do que todo o litoral brasileiro de pescadores

artesanais juntos. Uma saída para essa situação de impotência por parte dos pescadores

artesanais só poderia ser levada a cabo, como temos aqui argumentado, na medida de sua

capacidade de construir ambientes (metonímicos) alternativos (quarto passo de nosso método)

capazes de gerar verossimilhança para a articulação (metafórica) de valores não fixados e

excluídos do referido campo de discursividade,

A título de informação atualizada, durante a pesquisa, a Polícia Federal revelou, em

Brasília, um esquema de corrupção dentro do Ministério da Pesca, que apontou para várias

licenças liberadas para pesca industrial, através do pagamento de propinas. Isto

institucionalizado, partindo do próprio ministro segundo a reportagem publicada no site G1

(g1.globo.com). Ou seja, de um lado se impõe a lei ambiental para os ―mais fracos e leigos‖,

do outro se libera em troca de favores e dinheiro aos ―mais fortes e instruídos‖. Assim, o

mesmo ministério que promove a integração dos pescadores artesanais, que pretensamente os

protege de uma "carência" social, é, na verdade, um construtor dessa carência e um momento

(nos termos de Laclau) do sistema.

Podemos perceber que o que é legal muitas vezes não é justo. Muitos destes projetos

de proteção ambiental não levam em conta a integridade física e moral do ser humano. O que

realmente está em jogo por "trás" da cortina do discurso da pesca artesanal contra a

preservação ambiental é a legitimação de um sentido ao referente "proteção ambiental" que

vai ao encontro dos interesses do capital, que detém os meios de produção, contra aqueles que

se quer manipular, dominar ou exterminar. Poderia, portanto, ser percebido, pelos pescadores,

como uma luta de classes.

Entretanto, ao analisar esta demanda em face da teoria de Laclau, notamos que a

mesma se caracteriza como uma demanda democrática, uma demanda que, satisfeita ou não,

permanece isolada, ou seja, não cria uma relação com as demais demandas ao ponto de

promover a emergência de uma subjetividade coletiva. Isso porque, insatisfeitos ou não, a

maioria dos pescadores acatam as leis de proibição, como o defeso da lagosta, sendo

compensados com um salário mínimo durante o período de reprodução e crescimento da

lagosta. A acomodação de grande parte dos pescadores, mesmo com um ganho menor, com o

pagamento do defeso, porém certo e sem todo o trabalho de produzir a cova e sair para pescar

a lagosta, caracteriza, como dissemos, um processo mais de integração do que antagonismo.

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Ou seja, não existe mais o embate entre os pescadores e governo em torno deste ponto, que

ainda é uma insatisfação difusa dos pescadores entrevistados, uma vez que falta um ambiente

que lhe dê plausibilidade, não tem força de criar outras relações capazes de deslocar os

sujeitos para uma nova articulação, tornando-a uma demanda popular.

Entretanto, salvo a questão ambiental, há os riscos deletérios que esse dinheiro pode

causar para a Colônia: se por um lado supre as necessidades durante a reprodução da espécie,

também gera acomodação e o ócio não produtivo, como o que foi notado no campo empírico,

na desocupação dos pescadores neste período do defeso, pois muitos ficam na praia entregues

a bebida alcoólica por dias, o que propicia o alcoolismo freqüente na comunidade, causando

um transtorno social, afetando a saúde do pescador, gerando conflitos de forma violenta entre

marido e mulher e com consequências negativas para manutenção da pesca artesanal.

É preciso ampliar a noção de discurso e saber que o mesmo não é somente a palavra

proferida, mas todo o contexto que a envolve. Desta forma, a ação do governo é um discurso

assistencial que interfere na constituição a própria realidade da Colônia durante o período de

reprodução da espécie. É fundamental pensar que este discurso ao suprir uma necessidade

gera, em contrapartida, uma acomodação de efeitos nocivos à comunidade investigada. A

Colônia ainda parece não refletir sobre o peso que há no ―não poder pescar‖ e nesse sentido, a

vida e o dia-a-dia, com as proibições causadas pela lei, lançam margem para uma nova

realidade existencial, inclusive, porque neste período determinado não se vive o principal

ofício laboral aprendido, sua principal fonte de renda.

Com a análise desse ponto de tensão em torno do discurso (hegemônico) da

sustentabilidade, que limita a pesca artesanal na Colônia Z-9, identificamos os efeitos

negativos das proibições da pesca impostas pelos órgãos de Estado. Faz-se imprescindível

no próximo tópico analisarmos, a partir desse quadro, as narrativas de transmissão de saberes

dos mestres pescadores, que são os ―guardiões das memórias‖ e produtores do conhecimento

da pesca artesanal.

4.2 – ANÁLISES DA TRANSMISSÃO DE SABERES DOS ―MESTRES PESCADORES‖

Quem ensina sem emancipar, embrutece. E quem emancipa não tem que se

preocupar com aquilo que o emancipado deve aprender. Ele aprenderá o que

quiser, nada, talvez. Ele saberá que pode aprender porque a mesma

inteligência está em ação em todas as produções humanas, que um homem

sempre pode compreender a palavra de um outro homem. (RANCIÈRE,

2002, p.37)

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A educação, entendida como um processo de desenvolvimento da capacidade

intelectual da criança e do ser humano tem um significado tão amplo e abrangente que, em

geral, prescinde de adjetivos. É um processo único, associado quase sempre à escola

(GASPAR, 1990).

Esta é talvez uma das concepções espontâneas mais arraigadas de nossa sociedade.

Sabemos, entretanto, que o processo educacional é muito mais complexo e se desenvolve

tanto na escola como em casa, na experiência do dia-a-dia, enfim, numa multiplicidade de

formas e meios (GASPAR, 1992).

A educação com reconhecimento oficial, oferecida nas escolas em cursos com níveis,

graus, programas, currículos e diplomas, costuma ser chamada de educação formal. É uma

instituição muito antiga, cuja origem está ligada ao desenvolvimento de nossa civilização e ao

acervo de conhecimentos por ela gerados (GASPAR, 1990).

Na educação informal não há lugar, horários ou currículos. Os conhecimentos são

partilhados em meio a uma interação sociocultural que tem, como única condição necessária e

suficiente, existir quem saiba e quem queira ou precise saber. Nela, ensino e aprendizagem

ocorrem espontaneamente, sem que, na maioria das vezes, os próprios participantes do

processo deles tenham consciência (GASPAR, 1990).

A educação informal distingue-se das demais por não se constituir num sistema

organizado ou estruturado, sendo freqüentemente acidental ou não intencional. Ocorre na

experiência do dia-a-dia, através de jornais, revistas, programas de rádio e televisão, na visita

a um museu, zoológico, centro de ciências etc. (DIB, 1988).

Segundo Guebe (2012), trata-se de dois processos de diferentes dimensões e

procedimentos. Enquanto a educação formal de origem ocidental decorre de um sistema

estruturado, organizado e sistematizado realizado por profissionais em lugar apropriado

(escola) que tem como objetivo promover os princípios e valores associados à cidadania

democrática reportados ao interesse nacional, a educação informal é um processo da

antiguidade que surge com as próprias sociedades humanas, por isso, pode ser considerada

como ―a escola da vida, de mil milênios de existência‖, desprovida de quaisquer formalismos

estrutural e institucional. A sua intervenção na vida social humana processa-se por via de

socialização no quotidiano através do cântico, da dança, da caça, da pesca, etc. visando

moldar o indivíduo com atitudes e comportamentos que vão de encontro ao perfil das

exigências da comunidade a que pertence (GUEBE, 2012).

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Dentro desta perspectiva da educação informal como processo milenar, que molda e

socializa o indivíduo no seu cotidiano, através de atividades do dia a dia, como a pesca

artesanal numa colônia de pescadores, buscamos identificar alguns elementos deste processo

de transmissão dos saberes, analisando as narrativas dos mestres, que guardam as memórias

da pesca artesanal. Neste sentido, vejamos o que disse o Mestre pescador, ao narrar como se

deu seu aprendizado na pesca:

―No mar, o cara sempre... O cara vai fazendo as coisas assim, e eles vão

dizendo assim, tem muita gente que tem paciência de dizer: Oia, tu faz esse

negócio assim desse jeito que fica melhor, tu faz isso e lá vai... Oia, tal hora

tu tem que fazer isso... E o cara vai aprendendo a fazer as coisas... Aí chega

um, mostra como o cara amarra um anzol, aí chega outro, mostra como você

dá um nó no negócio... Aí você vai aprendendo... Mas, na maioria quem

ensina mais é o Mestre, que ensina mais o cara assim, começa levando o cara

que não sabe nada e ele fica mostrando... Oia vem cá, dá uma costura numa

corda, emendar uma corda aqui, vem cá dá um nó aqui numa corda e lá vai...

Vem cá amarrar um anzol... E às vezes ele tá amarrando e aí você curioso

você vai prestando atenção... Aí ele: tu sabe amarrar? Sei não... Oia você faz

assim e lá vai...E o cara vai amarrando, vai fazendo as coisas e aí vai

aprendendo‖. (Mestre, 43 anos – Colônia Z-9).

Analisando a narrativa do Mestre, fica evidente o caráter da educação informal no

processo de aprendizagem. Fundamentado na vivência e na prática de atividades do cotidiano

do trabalho da pesca artesanal, onde o jovem iniciante aprende através das experiências

vivenciadas e as experiências compartilhadas com outros pescadores mais velhos, que se dão

através da observação, da conversa, da curiosidade e da criatividade na produção artesanal de

ferramentas e utensílios para capturar os peixes.

Esta forma de transmissão e aprendizado dos saberes da pesca permite uma relação de

trabalho solidário, que acontece através da ajuda mútua entre os pescadores embarcados em

alto mar e, tendencialmente, uma vez que aprendem uns com os outros, aumenta o sentimento

de pertencimento. Promove também a emancipação do jovem pescador, pois ele apreende

todo processo do trabalho, o que possibilita o desenvolvimento de técnicas próprias e uma

autonomia para produzir seu sustento.

Percebemos como as memórias – tempo passado e como é importante o registro da

história presente nas narrativas do Mestre - produzem um conhecimento que é transmitido

informalmente e descaracterizado da função, da forma e da intencionalidade de ser educador,

mas que possibilita a continuação do trabalho artesanal e constitui uma discursividade que,

pelo espaço social que cultiva, tende a resistir às transformações das relações sociais,

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econômicas e políticas pelo telos evolucionista do trabalho industrial como fase necessária do

desenvolvimento histórico. Neste sentido, Ricoeur explica por que contamos histórias:

―Contamos histórias porque, afinal, as vidas humanas precisam e merecem

ser contadas. Essa observação ganha toda a sua força quando evocamos a

necessidade de salvar a história dos vencidos e dos perdedores. Toda a

história do sofrimento clama por vingança e pede narração‖. (RICOEUR,

2012, p. 129).

A partir das narrativas dos mestres, as histórias de vida dos pescadores se expressam e

produzem sentidos na busca da identidade pessoal e coletiva que garante a continuidade da

história da comunidade. Contudo, para compreender os processos de transmissão cultural nas

famílias de pescadores, já que envolvem processos de aprendizagem no cotidiano, distinto do

existente em espaço de educação formal, como a escola, destacamos como se dá a relação do

sujeito com o trabalho da pesca. Bem como, o quanto a experiência do aprender fazendo –

prática – contribui positivamente no processo de ensino-aprendizagem que se dá também na

observação do fazer. Analisamos o aprender fazendo na fala do mestre, na sua lembrança do

primeiro peixe pescado:

―Rapaz... Parece que o primeiro peixe que eu peguei, se eu me lembro, foi

um serigadozinho que eu peguei. Serigado que chama badege... Acho que

ele tinha uns 8 quilos, ainda cortei a mão visse! (risos) Fiquei agoniado, mas

os meninos não veio ajudar não... Vai pra aprender...Bota força, lá vai... Aí

eu peguei ele! Aí o mestre chegou, aí e botou em cima. Serigado já é peixe

de lá de baixo de fundo né... Foi na linha mesmo, arreia a linha pra baixo

com anzol... Aí ele ferrou lá embaixo. Serigado é peixe de lá de baixo da

pedra... Mas hoje em dia a turma não tá mais pescando muito de linha mais

não, né... Assim linha de mão, mas a pescaria agora aqui em São José é mais

de espinhel, quase todos barcos agora pesca espinhel. O espinhel são muitos

anzóis né?‖ (Pescador, 60 anos – Colônia Z-9).

Ao narrar sua lembrança da captura do primeiro peixe, o mestre já nos ensina (sem

intencionalidade) qual e como usar a técnica da pesca de linha, bem como nos apresenta

espécies de peixes e seus nomes populares, além de registrar uma das modificações sofridas

pela pesca artesanal, no uso do espinhel (conjunto de vários anzóis), diferente do período de

quando começou, para os dias atuais. Nota-se, portanto, a riqueza deste conhecimento que se

dá na observação do fazer, no aprender fazendo sem que "os meninos viessem ajudar" e

também ao ouvir a sua narrativa.

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Por outro lado, na escola existe um profissional que se propõe a ensinar conteúdos pré-

definidos - apartados da experiência do aprendiz - e direciona objetivos e práticas artificiais

para que o educando aprenda. Na comunidade, ao contrário, a aprendizagem e o

desenvolvimento ocorrem nas próprias relações cotidianas, através de observações, repetição

de atividades rotineiras realizadas em conjunto, padrões de interação e conhecimento cujo

nível de complexidade é dado contingencialmente pelo tipo de situação que se vive e não

como um programa a seguir que vai do simples ao complexo, afetividade,

equilíbrio/desequilíbrio de poder e valores presentes nas relações interpessoais entre os

membros do contexto familiar. Como bom exemplo de aprendizado por observação,

analisamos a narrativa do mestre:

―O que eu aprendi com o mestre que eu pesquei com ele né, às vezes eu

sempre converso com os meninos, digo: Oia! Você vai aprendendo, vendo

eu fazer as coisas... Às vezes tem coisas que pescador não sabe fazer, você

vai dizendo a ele como faz. Uma vez um material tava enganchado na pedra,

a garateia, não queria sair, aí eu fui lá... Folga aí, tira aí! Desatou, folgou ...

Aí eu peguei a corda, balancei, balancei... Aí saiu! Ela desenganchou da

pedra. Aí ele ficou olhando assim: ―como é que tu fez isso pô?’ Eu digo: Isso

é a experiência pô! ... Já venho aprendendo isso já, aprendi isso com quem

eu pesquei pô! Aí hoje em dia uns que pesca comigo aí já não deixa lá a

corda esticar, esticar ao ponto de torar lá e quebrar tudo não. Ele vê que não

vai sair, vai lá balança e saia. Aí eles ficam só olhando, muitos vão

aprendendo, mas muitos ... nem se liga, aí tem gente que você vê que ele vai

aprendendo as coisas e tem jeito pra no futuro assumir um barco, maestrar

um barco, não ficar só trabalhando de pescador, de pescador toda a vida

toda!‖ (Mestre, 35 anos – Colônia Z-9).

Nesta narrativa, o mestre fala de uma técnica própria aprendida, que caracteriza a

transmissão dos saberes adquiridos na observação do fazer, no que ele aprendeu vendo seu

antecessor (mestre) fazer, da mesma forma transmitiu para seus sucessores (pescadores), na

certeza de que muitos aprenderam, ao o ver fazer, bem como, acredita que, assim como ele,

serão os futuros mestres de barco. Portando, é uma educação através do trabalho que

emancipa individualmente (formação como pescador, reconhecimento para atuar como

mestre), mas de uma maneira que, ao promover a manutenção da pesca artesanal, o faz

mobilizando uma memória coletiva. Isso reforça o sentimento de pertença e unidade da

comunidade a partir do momento que esse saber não está sistematizado de uma maneira

formal, em manuais de pesca manejados por profissionais formados nos bancos da escola.

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Segundo VALENCIO (2006), para o pescador profissional artesanal, o trabalho é tido

como memória que se transmite quase que como num devaneio, tendo orgulho do fazer dos

antigos e continuando a fazê-lo com o mesmo orgulho – isto é, como cultura.

Assim, romper com o passado não seria apenas romper com lembranças dos que já se

foram, mas com o entendimento sobre si (uma pertença), sobre o que ainda é referido a um

lugar e a outras pessoas. Dando continuidade ao passado, o mestre de barco, assim narra o que

e como aprendeu com os seu mestre:

―Na época que eu fui, eu tinha 14 anos, 13 pra 14 anos, naquela época ainda

se pescava lagosta de rede ainda né? Aí quando eu fui... O mestre disse: ―tu

vai cortar a isca!‖ Na rede naquele tempo, botava a isca também né. Aí era

mais fácil, o cara aprendia... O outro serviço fica pros outros dois ali. Tu vai

cortar a isca e amarrar. Aí depois ele já mandava fazer outra coisa quando

terminava. Primeiro você vê com os mais velhos que vão logo fazendo né, e

quando você chega logo lá e não sabe muita coisa fica mais olhando ali

curioso. O cara quando chega na maré vai logo pesca.. O cara vai lá pra

pescar e é só pescar mesmo! Você para assim pra conversar um pouquinho,

mas ao mesmo tempo tá pescando, você não fica parado não, você só para

quando vai dormir, ou comer ou dormir. O mais velho vai logo pescar logo.

Chega assim que encora o barco, ele vai logo pegar a linha dele, já vai logo

pegar um garapau, quando anoitece, você vai logo cuidar de pegar linha pra

pegar garapau e pegar a vara‖. (Mestre, 60 anos – Colônia Z-9).

Analisando sua fala, percebemos que a aprendizagem também é transmitida através do

exemplo na postura do mestre: mais do que dizer ou manda fazer, ele ensina trabalhando;

nota-se a admiração ao mais velho pela determinação deste com a pesca. Infelizmente, como

abordaremos no próximo tópico, foi percebido nas novas gerações a falta de admiração ou

respeito pelos mestres, o que em nosso entendimento é uma ameaça em potencial que pode

romper com a memória (passado), tornar vazio o presente e desacreditar no futuro da pesca

artesanal.

Portanto, do ponto de vista pedagógico, o conhecimento tradicional da pesca artesanal

poderia ser usado como fonte de informações complementares para estudos ecológicos ou

como indicador de processos ou alterações nos ecossistemas não estudados ou verificados

pela ciência (POIZAT; BARAN, 1997). Sobre este aspecto, vejamos a narrativa deste outro

mestre:

―Maré de lua não é bom para pescaria de peixe. Só vai ser bom daqui pra

frente em diante que tá aumentando o escuro. Quanto mais escuro é melhor

pra pescar peixe. Agora mesmo tá começando o escuro, o cara vai e dá uma

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viagem passa 8 ou 9 dias, aí quando vier, passa 3 a 4 dias aqui de novo e vai

e dá outra. No escuro no mês só tem um escuro só‖. (Mestre, 35 anos –

Colônia Z-9).

Notamos na narrativa a revelação de um conhecimento empírico, que surge da

observação da natureza, o qual o mestre e outros pescadores compartilham, entretanto, não

sentem necessidade de explicar e sistematizar esse conhecimento formalmente uma vez que

este último se destina a própria vida na comunidade, num nível local. Talvez por isso tal

conhecimento da pesca, assim como outros, seja ignorado no processo de integração à

educação formal. Veremos no próximo tópico como a integração da colônia à educação

formal, indo no sentido oposto ao aqui vislumbrado, tem consequências nefastas para a pesca

artesanal na comunidade de pescadores estudada.

4.3 ANÁLISES DO PROCESSO DE INTEGRAÇÃO A EDUCAÇÃO FORMAL NA

COLÔNIA DE PESCADORES Z-9.

Entre outras possíveis demandas, percebe-se outro aspecto, já mencionado e que

remete diretamente a esta pesquisa, que é a integração da colônia com a educação formal -

tanto para aceitação dos cursos técnicos, oferecidos por entidades governamentais, para os

pescadores (como beneficiamento do pescado, mecânica e manutenção de motor, navegação

por GPS), quanto para crença e valorização da escola institucional, pois alegam que seus

filhos não terão um futuro promissor fora da escola.

Assim, reproduzem um discurso ideológico que se pretende hegemonizar, de que a

educação escolar é mais importante do que a aprendizagem e conhecimentos adquiridos na

pesca de maneira habitual e informal. O ―ser pescador‖ é tido como uma inferioridade, uma

negação ao seu próprio ofício, numa lógica determinista, já que não estudou, vai ser pescador.

Observe a narrativa abaixo, quando indagada pelo pesquisador ―Porque ser pescador?‖.

―É.porque muitos aí... não tiveram a chance de estudar e pra conseguir hoje

alguma coisa no mercado de trabalho aí tem que ter pelo menos um curso,

um diploma, um estudo, pelo menos ensino médio, não é assim? E eles não

têm, muitos deles a opção é o mar. Hoje mesmo... Do jeito que é a pesca do

jeito que tá situação, eu estimularia ele a estudar... infelizmente a realidade

mesmo é essa aí. Entendeu? Porque é muito difícil mesmo. A gente vê a

situação... a luta, eu vejo a hora e digo: meu Deus do céu, até quando a gente

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fica? A gente não tem certeza das coisas... até quando vai isso aí?‖

(Marisqueira, 50 anos – Colônia Z-9).

Este é o sentimento percebido nas entrevistas quanto às expectativas da pesca artesanal

e a relação com a expectativa através da escola, os pescadores não querem deixar o trabalho

da pesca como herança para seus filhos e netos. Entretanto, entendem e aceitam a escola como

única possibilidade de uma vida mais digna e sem sacrifícios e riscos, como no trabalho da

pesca artesanal.

Entretanto, faz-se necessário dizer que esta relação não é estanque, acabada, definitiva,

pois existe um movimento que se tenciona de acordo com as articulações das demandas e suas

narrativas. Esta é apenas uma de outras situações posto que, ao mesmo tempo em que a

maioria se conforma, uma minoria também se rebela e causam potencialmente um

antagonismo ao discurso dominante.

Na Colônia de Pescadores Z-9, a atual presidente possui uma liderança nata e foi

indicada para eleição por vontade dos pescadores, conforme observado nas entrevistas, já que

eles queriam uma mudança na antiga direção, que permanecia à frente da colônia há 23 anos,

porém tal gestão não atendia às demandas dos pescadores. Os pescadores se articularam e

formaram uma comissão eleitoral para destituir a antiga gestão. Com essa nova liderança, as

relações entre os pescadores têm passado por modificações modernizantes dignas de nota.

Importante dizer que a liderança na colônia de pescadores não é uma prerrogativa do

mestre pescador. Diferente do que se pensava, quando se trata de alguém com o

reconhecimento de mestre. O mestre de barco, segundo a fala dos mais novos pescadores,

nada mais é do que o pescador que assume a responsabilidade do comando da embarcação e

que fica encarregado de prestar conta de tudo. Como vimos na seção anterior, este mestre

possui uma riqueza de conhecimentos específicos da pesca artesanal, adquiridos pela

experiência no mar. Entretanto, isso não faz dele um líder nem uma autoridade capaz de

mobilizar a colônia em torno de um discurso de autoridade.

Mesmo não sendo, necessariamente, o mestre do barco uma liderança política da

colônia, foi percebido, nas entrevistas realizadas, que este sujeito é o responsável pela

transmissão dos saberes e das memórias da pesca artesanal. Portanto, deveria ser reconhecido

pelos demais pescadores, principalmente entre os mais jovens com admiração e respeito. A

perda do reconhecimento da autoridade dos mais velhos, pais e mestres é comum entre a nova

geração de pescadores.

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Neste sentido, observa-se que o respeito e admiração ao mestre, por exemplo, se perde

na medida em que se rompe a relação entre mestre e aprendiz, mudando o sentido do signo

Mestre, que perde certa autoridade política com o passar do tempo. Pois, o ambiente

metonímico hegemonizado pela autoridade da escola e de um saber chancelado por manuais

escolares e articulado com os valores da pesca industrial e do mercado capitalista como um

todo rompe com aquele "véu mágico" do trabalho artesanal a que se referia Fromm. Em nossa

análise esta é uma das possíveis causas da não continuidade da pesca artesanal, vejamos o

discurso do Mestre pescador:

É o Mestre... Tudo é ele, dizer quantos dias vai passar, o dia que vai

simbora! A hora que vai trabalhar... bora menino vamos começar a trabalhar

agora, olha hora menino, olha hora acorda! Vamos levantar oia o serviço!

Por que se você não fizer isso, às vezes o pescador morde você se você não

tiver aquela liderança e aquele controle da embarcação. É muita

responsabilidade, você tá ali pra trabalhar, pra tirar seu sustento dali, viver

daquilo ali, pagar suas contas... Não é brincadeira não! Pescaria é um

negócio sério, tem que ser muito responsável, eu sempre digo aos meninos:

você preste atenção ao que tá fazendo, pra não tá fazendo coisa errada, o

serviço tem que ser bem feito... (Mestre pescador, 35 anos, Z-9).

Como observado, na parte sublinhada acima, trata-se do uso de uma metáfora, a qual o

mestre emprega a palavra: morde, para demonstrar a insubordinação ou desrespeito a sua

autoridade. Percebe-se, neste contexto, as mudanças nas relações entre mestre e aprendiz,

quando em outro tempo este tipo de atitude não ocorria.

Faz-se útil explicar que ao analisar o último exemplo, presente na entrevista do mestre,

foi ele, o mestre, quem cria em sua narrativa a metáfora "morde", como analogia à

insubordinação, o que parece fazer sentido em um ambiente narrativo - metonímico - em que

impera um incômodo com o trabalho: esse "ambiente" aparece na própria comunidade de

pescadores, ou seja, no processo de integração da pescaria na economia e Estado capitalistas

que revelaria certo processo de "alienação" do trabalho.

Ao analisar a colônia de pescadores, procurou-se observá-la como uma pluralidade de

sujeitos sociais (os pescadores locais) que se encontram reunidos em um aparato institucional

(a colônia Z-9 de São José da Coroa Grande – PE). Observou-se que as razões e motivos que

os levaram a atividade da pesca são variados, alguns sendo filhos de pescadores e tiveram de

trabalhar com o pai para ajudar na renda da família, outros por falta de oportunidade em outra

profissão e alguns por preferir pescar. Em comum eles apresentam a rejeição de permitir que

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seus filhos iniciem na pesca, o que de certa forma, pode a médio prazo acabar com a pesca

artesanal na região.

Esta limitação presente na vida da Colônia, entre a tradição de pescar e o desejo de

que os filhos tenham uma sorte melhor, busquem por uma educação formal para garantir uma

ascensão profissional que proporcione mais renda, mais qualidade de vida e menos riscos,

parece ser uma constante no discurso dos pescadores da colônia. Trata-se, portanto, de

indivíduos concretos, de carne e osso, ao transitarem entre diferentes posições de sujeito,

desafiam a noção de unidade identitária e o fazem pela absorção de valores pertencentes a

lógicas não artesanais/comunitárias de trabalho. Foram identificados nos discursos coletados

valores que estão atados ao mercado capitalista e outros - talvez - ainda à lógica de trabalho

artesanal e comunidade, veja-se o que diz o mestre de barco:

―Aprendi com meu pai... mas não quero meu filho pescador....de jeito

nenhum. Tenho três filhos, o mais velho com 21 anos... pescava, mais já

saiu. Tá trabalhando no hotel, foi trabalhar de garçom... São três homens,

tem um novinho de 4 anos e o outro de 19. Trabalha em hotel também. Esse

nunca foi pro mar não! Nem quero que ele vá não... Ele trabalha de animador

no Hotel Gran Oca. Eu fui pescar por opção de emprego. A primeira vez eu

ia mais meu pai, mas por esporte. Estudava, aí quando eu tinha férias no

colégio eu ia pescar. Ia só nas férias... Era um lazer. E hoje eu tô por

profissão por conta do desemprego... comecei e não sai mais não. Tentei

trabalhar como vigilante, trabalhei 6 anos como vigilante, em três firmas de

vigilância. Trabalhei como porteiro de um hotel em Maragogi, com carteira

assinada, trabalhei de almoxarife... em construção... trabalhei em um bocado

de coisa já... servente de pedreiro... Pra mim é melhor tá na pesca, do que tá

por aí sem fazer nada. E certos serviços que tem por aí a pesca é muito

melhor.‖ (Mestre de Barco, 42 anos – Colônia Z-9).

Portanto, essa dualidade encontrada nas narrativas dos pescadores entre continuar a

pescar e não querer o filho pescador, ao que parece, enfraquece as articulações discursivas,

dos pescadores da colônia Z-9, na luta por seus objetivos contra os inimigos em comum, que

seja o Estado, a pesca industrial, os grandes empreendimentos turísticos nas áreas de pesca,

entre outros. Isso porque eles não acreditam, individualmente ou coletivamente, num futuro

promissor da pesca artesanal como a principal e necessária atividade de sustento da colônia

como um grupo, como uma unidade. Eles querem que seus filhos estudem e trabalhem em

outras profissões e fiquem longe da pesca. Entretanto, se não tiver outro jeito, a pesca seria

sua cruz.

Hoje já é percebido por eles a falta de pescadores dispostos para ir ao mar, pois a

pouca renda obtida com a pesca, além dos riscos e os poucos, insuficientes ou nenhum apoio

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dos governos, desestimula aqueles pescadores que ainda resistem ao tempo. Tendo muitas

vezes que pescadores aposentados pela idade, acima dos 60 anos, serem convidados para

compor a tripulação, eis o que diz o mestre de barco:

―Se passar um mês da maré em terra vai ganhar quanto? Nada! Só na época

do defeso, a gente recebe um salário por mês, durante cinco meses da pesca

da lagosta parada, antes eram seis meses, agora apenas cinco pagos pelo

governo federal. O chapéu de Palha é apenas para quem não pesca lagosta, aí

recebe meio salário... Hoje tem até aposentado pescando comigo... tá

faltando pescador na praia! Aí temos que chamar quem ainda topa... Meu pai

mesmo ainda tá pescando... tem outro que tá aposentado lá que tá pescando,

outro que já vai se aposentar‖. (Mestre de Barco, 42 anos – Colônia Z-9).

Percebe-se que essa quebra na tradição inter-geracional se dá como um processo de

integração, exatamente pelas vias da ocupação de outras posições de sujeito e incorporação de

valores de mercado e sistêmicos. A integração ao discurso do mercado se faz presente entre as

gerações, que vão criando lacunas entre as narrativas, perdendo os saberes das técnicas

essenciais da pesca artesanal.

Essa perda é notória no campo empírico, por exemplo, quando se observa que os

pescadores mais novos não sabem mais se orientar no mar sem o uso do equipamento de GPS,

ou não conseguem mais pescar algumas espécies sem o uso do espinhel. Pois as práticas

―antigas/tradicionais‖, aos poucos foram perdendo espaço para a frequente sistematização do

uso de equipamentos impostos pelo mercado do capital. Isto desloca os sujeitos dentro desta

nova estrutura, de uma pesca mais instrumentalizada, seguindo uma lógica da pesca industrial,

de forma a não articular os mesmos interesses entre as gerações de pescadores e desta forma

promove uma perda na memória da pesca artesanal.

Deve-se considerar que cada pescador (particular), possui sua subjetividade, que cria

narrativas para além da objetividade discursiva em seu ambiente metonímico, a própria

colônia.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa objetivou compreender como se dá a educação informal na

Colônia de pescadores Z-9 de São José da Coroa Grande e qual a relação desta com a

manutenção da pesca artesanal, considerando sua importância para a reprodução do modo de

vida dessa comunidade pesqueira.

Nosso trabalho utilizou a história oral, presente nas narrativas, para aproximar-se da

comunidade na tentativa de resgatar nas lembranças a marca de uma história, do sentido de

pertença e de construção da memória da Colônia. Neste sentido, alguns fatores tornam-se

importantes chaves de compreensão da vida comunitária pesqueira tais como: trabalho

artesanal, economia solidária, economia popular, educação informal.

Neste contexto, ressaltamos a economia popular formada por um determinado público,

composto por desempregados, com ou sem qualificação técnica, bem como, por outros grupos

de excluídos dos processos de desenvolvimento de tecnologias, dos programas sociais

(assistenciais) do governo, da distribuição de renda e do sistema econômico formal.

Quanto à educação informal, distinguiu-se esta das demais por não se constituir num

sistema organizado ou estruturado, sendo frequentemente acidental ou não intencional e que

identificamos como essencial modo de aprendizagem na pesca artesanal.

Considerando os aspectos teóricos, adotamos um método de análise das narrativas dos

pescadores, utilizando como referencial teórico para nossa metodologia a teoria do Discurso

de Ernesto Laclau articulada a Tríplice Mímesis de Paul Ricouer. Neles se observam questões

que envolvem identidade, discurso, metáfora, bem como os significados, significantes

(vazios) possíveis, existentes. Também identificamos os pontos de tensão (temas que lhes são

caros); resistências em suas vidas cotidianas; disputas de sentido (nas quais se analisou os

sujeitos pesquisados e como se enquadram ou mesmo teimam em não se enquadrar em

―determinadas racionalidades‖). Analisamos como os sujeitos estão construindo seus

discursos apontando os elementos que estão mobilizando/articulando valores, emoções,

objetivos nos seus discursos. Ou seja, como se dá seu esforço "expressivo" em termos

discursivos. Em outros termos, quais as aproximações metafóricas (lógica equivalencial) e

quais articulações metonímicas (lógica diferencial) estão sendo postas em ação e/ou

desafiadas. Deste modo, os discursos são constituídos de dimensão linguística e

extralinguística, de maneira que o posicionar-se na topografia do social tem um efeito no

horizonte de enunciação.

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Tratando-se do percurso metodológico, o mesmo envolveu fontes orais (através de

entrevista com pescadores de idade mais antiga, intermediária e mais nova) através das quais

se obteve relatos de como era trabalhada a temática ―saberes e experiências do mar‖. Os

dados coletados foram transcritos e analisados de forma cautelosa, a partir de categorias

previamente estabelecidas nas teorias de Paul Ricoeur e Ernesto Laclau, conforme já descrito

acima no intuito de verificar nas narrativas das entrevistas o processo pedagógico a partir dos

―saberes e experiências do mar‖.

Analisando as narrativas dos pescadores na Colônia Z-9, percebemos, portanto, que

eles não formam uma unidade discursiva como classe; mas sim, uma equivalência entre si,

sobretudo, quanto as suas demandas contra as políticas públicas e órgãos governamentais que

interferem de forma prejudicial na sua atividade de pesca. Contudo, as dimensões linguísticas

e extralinguísticas do discurso, apreendidas e compreendidas durante o estudo e na aplicação

destas teorias sobre as narrativas dos entrevistados, nos apontaram para outras três questões,

que se fizeram pertinentes e se apresentaram como imprescindíveis para que chegássemos ao

nosso objetivo geral, são elas:

1- Quais tipos de demandas existem entre os pescadores da Colônia Z-9?

2- São demandas populares ou demandas democráticas?

3- Quais as implicações e desdobramentos das narrativas para a permanência da

atividade da pesca artesanal?

Portanto, respondendo a nossa primeira pergunta, podemos, então, diante das

narrativas apresentadas e analisadas, afirmar que temos tipos diversos de demandas, com

vertentes políticas, educacionais, econômicas e sociais, tais como: a falta de apoio

governamental e excesso de regulamentação; o alto custo para pescar e pouco rendimento

com a produção pela pouca capacidade de carga dos barcos, no uso de covas para pesca da

lagosta; a busca de uma nova profissão através do acesso à educação formal, vislumbrando

uma melhoria de classe social, diferente da atual realidade dos pais pescadores, etc.

Quanto a segunda questão, as demandas dos pescadores aqui apresentadas possuem o

caráter democrático. Tais demandas democráticas se encontram isoladas apenas em relação ao

processo de equivalência e não se articulam a ponto de serem absorvidas pelo sistema, pois,

uma vez atendidas, elas não permanecem isoladas.

Quanto a terceira questão, são várias implicações, pois no decorrer das análises das

narrativas e das leituras para a presente pesquisa, evidenciou-se que é através das narrativas

que se estabelece uma estrutura discursiva, na qual são construídos e fixados: os sentidos (a

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pesca), os conhecimentos (as técnicas) e as memórias (as subjetividades) de um indivíduo (o

pescador) e/ou de um grupo social (colônia de pescadores).

Portanto, os pescadores da Colônia Z-9 de São José da Coroa Grande se encontram em

meio a uma estrutura discursiva que apresentam demandas democráticas que poderá criar

novas relações: de equivalências e/ou diferenças, desde que, eles consigam articular tais

demandas em torno de algo negativo que aproxime os discursos. Daí seria capaz de gerar

demandas populares, não mais solicitações, mais em algo maior, como reivindicações capazes

romper com a negação, não entre os pares, mas sim, contra o sistema hegemônico dominante

(inimigo comum – o Estado) e assim modificar as relações atuais da pesca e construindo outro

social.

Diante das afirmações acima, e por tudo que foi dito até aqui, podemos então

responder a nossa questão central, como se dá a educação informal na colônia de pescadores,

inferindo que ela acontece em sua maioria, entre pais pescadores e seus filhos, entre os mais

velhos e os mais jovens, no seio da família de descendentes de pescadores, na comunidade

praieira e ribeirinha da colônia, em tempo integral, de maneira não intencional, com

dedicação, esforço e orgulho, por dentro do trabalho da pesca, ora coletiva, ora solitária, mas

que articula a comunidade, a vivência, a prática, a experiência e a observação da natureza,

promovendo a transmissão de saberes e valores da pesca artesanal, que podem ser

reproduzidos nas narrativas dos pescadores e/ou apreendidos no silêncio, em alto mar, na

espera do peixe para pescar.

Portanto, a educação informal se relaciona intrinsecamente com a pesca artesanal,

sendo essencial a sua manutenção. Ainda se conclui que a intervenção negativa ocorrida

gradativamente através do discurso da escolarização voltada para o mercado, as restrições

impostas por leis ambientais e a industrialização da atividade pesqueira tende a ameaçar o

ensino-aprendizagem (e toda herança) gerada pelos saberes e experiências conectados com a

educação informal.

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