etnoictiologia dos pescadores artesanais da barra do superagui - guaraqueçaba - paraná

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ETNOICTIOLOGIA DOS PESCADORES DA BARRA DO SUPERAGÜI, GUARAQUEÇABA/PR: Érika Fernandes-Pinto São Carlos 2001

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Dissertação de mestrado sobre conhecimento tradicional, etnobiologia e etnocologia dos pescadores artesanais da Barra do Superagui, comunidade situada na Ilha do Superagui, região de Guaraqueçaba, no Estado do Paraná Brasil. Uma das primeiras contribuições sobre etnobiologia nesse estado.

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  • ETNOICTIOLOGIA DOS PESCADORES

    DA BARRA DO SUPERAGI,

    GUARAQUEABA/PR:

    aspectos etnotaxonmicos, Etnoecolgicos e utilitrios

    rika Fernandes-Pinto

    So Carlos

    2001

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS CENTRO DE CINCIAS BIOLGICAS E DA SADE

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ECOLOGIA E RECURSOS NATURAIS

    EETTNNOOIICCTTIIOOLLOOGGIIAA DDOOSS PPEESSCCAADDOORREESS DDAA

    BBAARRRRAA DDOO SSUUPPEERRAAGGII,, GGUUAARRAAQQUUEEAABBAA//PPRR::

    AASSPPEECCTTOOSS EETTNNOOTTAAXXOONNMMIICCOOSS,, EETTNNOOEECCOOLLGGIICCOOSS EE

    UUTTIILLIITTRRIIOOSS

    Ps-graduanda: rika Fernandes-Pinto Orientador: Dr. Jos Geraldo W. Marques Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Ecologia e Recursos Naturais do Centro de Cincias Biolgicas e da Sade da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar) como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Ecologia e Recursos Naturais.

    - SO CARLOS - 2001

  • Ficha Catalogrfica

    Fernandes-Pinto, rika ETNOICITIOLOGIA DOS PESCADORES DA BARRA DO SUPERAGI, GUARAQUEABA/PR: ASPECTOS ETNOTAXONMICOS, ETNOECOLGICOS E UTILITRIOS/ rika Fernandes-Pinto, So Carlos: UFSCar, 2001 158p. ilust. Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal de So Carlos, 2001 1. Guaraqueaba; 2. Pescadores artesanais; 3. Etnobiologia e Etnoecologia; 4. Etnoictiologia; 5. Recursos pesqueiros.

  • AAGGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS

    Universidade Federal de So Carlos (UFSCar), atravs do Programa de Ps-Graduao

    em Ecologia e Recursos Naturais (PPG-ERN), pela oportunidade. CAPES (Coordenadoria de

    Aperfeioamento de Pesquisa de Nvel Superior) pela bolsa de estudos concedida. WWF (World

    Wildlife Foundation), atravs de seu programa Natureza e Sociedade, pelo apoio concedido para

    realizao do trabalho de campo.

    Ao apoio logstico do Centro de Estudos do Mar (CEM) da Universidade Federal do Paran,

    especialmente ao Laboratrio de Ictiologia. Ao IBAMA, na pessoa de Guadalupe Vivekananda,

    diretora do Parque Nacional do Superagi, pelo apoio para a realizao do trabalho de campo.

    Pousada Sobre as Ondas, por ter fornecido a hospedagem na Barra do Superagi. Aos amigos que

    me acolheram em suas casas durante minhas estadas em So Carlos, especialmente Carlos

    Henke ("Bixo") e Lus Augusto Mestre, Jos Mouro e Ana Th.

    Ao meu orientador, Jos Geraldo W. Marques, por sua dedicao, seus ensinamentos, pela

    oportunidade e por seu exemplo profissional. Ao finalmente "Dr." Marco Fbio Maia Corra, eterno

    "desorientador", pela identificao cientfica dos peixes e valiosas contribuies para o texto, pelo

    exemplo, amizade e apoio nos momentos difceis. Pedro Carlos Pinheiro, eterno "co-

    desorientador", por minha iniciao na ictiologia, apoio e amizade. Franco Amato pelo auxlio na

    elaborao do mapa da rea de estudo.

    Nivaldo Nordi, que quebrou inmeros "galhos", pela prontido em ajudar, abertura e

    disponibilidade em utilizar o material e infra-estrutura do Laboratrio de Ecologia Humana (UFSCar),

    pelas "etno-conversas" e por sua amizade. Aos colegas do Laboratrio de Ecologia Humana da

    UFSCar, Elisa Madi, Ana Th, Sineide Montenegro, Jos Mouro e Marcelo Cavallini, pela

    agradvel e divertida convivncia, apoio e discusses, apesar das minhas muitas passagens

    relmpago. Natlia Hanazaki, Nivaldo Peroni e Renato Silvano do NEPAM/UNICAMP pela troca

    de informaes, material bibliogrfico e pela amizade. Eraldo Costa-Neto, pela bibliografia cedida

    e Francisco Jos Souto ("Franz"), da UEFS/BA, pelo incentivo.

    todos os moradores da comunidade de Barra do Superagi, que me receberam com

    muita boa vontade, amizade e desprendimento. Aos pescadores que partilharam sua sabedoria

    comigo e aos que me permitiram participar de suas atividades. Ao Carioca (Valdeir da Silva

    Teixeira), Denise e Flavinho, pela hospitalidade, informaes, auxlio e principalmente pela amizade.

    Roberto Xavier, por ter me apresentado a etnobiologia, que mudou os rumos de minha

    carreira profissional e da minha vida pessoal. s amigas Sonia Nicolau e Cimone Rozendo,

    companheiras nas "misses impossveis", pelo apoio, incentivo e sugestes.

  • s minhas colegas do rafting, Mirela, Patrcia, Sirlene, Laine, Nayara, Rossana e Tatiana,

    cuja companhia permitiu que eu no enlouquecesse neste perodo, pelo apoio e pelas conquistas.

    Silvana Meira, minha amiga-irm e meu suporte emocional virtual, pelas palavras exatas nas horas

    certas.

    Ao meu pai, Jos Adriano Pinto, por ter se encantado com a regio de Guaraqueaba

    quando eu era pequena e me propiciado viver este mundo de forma livre e intensa. Pelas sugestes

    nos textos, apoio incondicional e discusses. ele e Elisabete Ferreira ("Bete"), por terem me

    aceitado em sua casa, permitindo que eu tivesse um pouco da paz de esprito necessria para

    terminar este trabalho.

    minha me, Maria Tereza Fernandes Abraho, por mais uma vitria, pelo exemplo de

    fora e coragem, pelo apoio incondicional e por sempre cantar "mezinha do cu" quando eu mais

    preciso. s minhas irms, Juliana e Ruth Fernandes Pinto e ao novo anjinho da casa, Gabriel, que

    j chegou fazendo barulho.

    Christoph Jaster, com quem partilhei "rebojos" e "tormentas", mas tambm "calmarias" e

    "noites de luar". Pela companhia nas idas para o campo, auxlio na reviso de textos infindveis, por

    ouvir meus "etnodevaneios". Agradeo enormemente por ter tido voc ao meu lado durante este

    tempo e pela certeza de poder contar com a sua amizade por todos os tempos. Ao Rapa Nui e ao

    Rapa Iti que sempre nos conduziram no mar com segurana e nos proporcionaram momentos de

    muita alegria e diverso.

    Ao Pai-do-Mato e Me-d'gua, que nos protegeram em todas as empreitadas floresta

    adentro e nas travessias noturnas mar afora. s ardentias, por sempre iluminarem nossos

    caminhos...

    este nenezinho, que meio de surpresa comeou a crescer dentro de mim. Se no

    planejado, de forma alguma menos desejado. Luis Renato Angelis, meu companheiro nesta nova

    empreitada, pelo enorme presente que foi encarregado de me conceder. Por fazer meus olhos

    brilharem e pela certeza de muitas coisas boas pela frente.

    Ao forr, que no deixou de tocar...

  • RREESSUUMMOO

    A regio de Guaraqueaba, litoral norte do Paran, engloba uma grande diversidade de

    ecossistemas e abriga cerca de 60 comunidades humanas, para as quais a pesca est entre as

    principais atividades econmicas. Nas ltimas trs dcadas esta regio tem passado por uma srie

    de transformaes econmicas, sociais e culturais, com influncias diretas sobre as relaes entre

    os pescadores artesanais e o ambiente. Como conseqncia, apesar da grande interao entre a

    populao e os ecossistemas circundantes, o conhecimento do universo local est ficando cada vez

    mais restrito e as comunidades esto passando por uma descaracterizao de sua forma tradicional

    de vida, num processo aparentemente irreversvel. O presente trabalho teve por objetivo principal

    estudar os modelos cognitivos dos pescadores da regio de Guaraqueaba, com nfase em

    aspectos etnotaxonmicos e no conhecimento etnoecolgico sobre peixes, e aspectos conexivos

    voltados para as formas de apropriao e uso dos recursos pesqueiros, tomando a comunidade da

    Barra do Superagi como estudo de caso. Os resultados obtidos demonstraram que pescadores

    desta comunidade possuem uma etnotaxonomia consistente e complexa, envolvendo nomeao,

    identificao e classificao dos peixes de seu ambiente. Na classificao dos pescadores mais

    idosos, a categoria "peixes" extensa e elstica e os sistemas envolveram classificaes

    hierrquicas, seqenciais e cclicas. O conhecimento sobre distribuio espacial e temporal das

    espcies cticas foi bastante detalhado. O ambiente pode ser categorizado de acordo com vrios

    critrios, que determinariam a distribuio diferenciada dos peixes nos habitats e pocas do ano.

    Possuem tambm um conhecimento complexo e detalhado sobre os hbitos alimentares dos peixes

    e das interaes trficas entre diferentes grupos de organismos, elaborando cadeias trficas com

    at seis nveis. Pescadores do Superagi atualmente realizam prticas pesqueiras voltadas

    principalmente para o ambiente marinho-costeiro e relacionadas com poucos recursos,

    especialmente camares e alguns peixes. Mantm uma estrita dependncia dos comerciantes da

    vila para escoamento da produo e do Municpio de Paranagu para comercializao final. O peixe

    a principal fonte de protena para a maioria da populao. Uma srie de tabus foram

    reconhecidos, regulando comportamentos e a utilizao alimentar dos recursos pesqueiros,

    principalmente aqueles relacionados aos perodos de "resguardo". Vrios recursos foram citados

    como de uso medicinal, reforando a "hiptese da universalidade zooterpica".

  • AABBSSTTRRAACCTT

    The Guaraqueaba's region, North coast of Paran State, includes a high diversity of ecosystems

    and cover about 60 human communities, for which fishing is among the main economic activities. In

    the last three decades this area has been going through a economic, social and cultural

    transformations, with direct influences in the relationships between artisanal fishermen and the

    environment. As consequence, in spite of the great interaction between the population and the

    surrounding ecosystems, the knowledge of the local universe is being more and more restricted and

    the communities are suffering a "descharacterization" of their traditional way of life in an apparently

    irreversible process. The main goal of this work is to study the cognitive model of the fishermen of

    Guaraqueaba's region, emphasizing the "ethnotaxonomic" aspects and "ethnoecological"

    knowledge about fishes and connective aspects linked to the appropriation forms and use of the

    fishing resources, taking Barra do Superagui's community as case study. The results obtained

    demonstrated that the fishermen of this community have a consistent and complex "ethnotaxonomy",

    involving nomination, Identification and classification of the fish in their environment. According to the

    oldest fishermen, the "fish" category is extensive and elastic and the systems involved hierarchical,

    sequential and cyclical classifications. The knowledge about spatial and temporal distribution of the

    fish species were quite detailed. The environment can be classified according several criterias, that

    determine the differentiated of fishes in the habitats and seasons of the year. They also have a

    complex and detailed knowledge about feeding habits of the fishes and of the trofic interactions

    among different groups of organisms, elaborating trofic chains with until six levels. Fishermen of

    Superagi accomplish fishing practices dedicated mainly to the coastal marine ecosystem and

    related with few resources, which include shrimps and some kind of fishes. They keep a strict

    dependence of the villa's merchants to drainage their production and of Paranagu city for the final

    commercialization. The fish is the main source of protein for the majority population. Many taboos

    are recognized, regulating behaviors and the feeding use of the fishing resources, mainly those

    related to protection periods called "resguardo". Several resources were mentioned as of medicinal

    use, reinforcing the "zootherapical universality hypothesis."

  • SSUUMMRRIIOO

    DEDICATRIA ............................................................................................................... AGRADECIMENTOS ...................................................................................................... RESUMO ........................................................................................................................ ABSTRACT .................................................................................................................... . SUMRIO ....................................................................................................................... LISTA DE TABELAS ....................................................................................................... I LISTA DE FIGURAS ....................................................................................................... II

    INTRODUO ......................................................... ......................................................... 1 METODOLOGIA ......................................................... ...................................................... 9

    CAPTULO 1 - GUARAQUEABA: PAISAGENS E PESSOAS ............................................ 14 1. CARACTERIZAO GERAL .................................................................................. 14 2. ASPECTOS FSICOS E BIOLGICOS ...................................................................... 16 3. ASPECTOS SCIO-ECONMICOS, HISTRICOS E CULTURAIS ................................ 20 4. SITUAO ATUAL ............................................................................................... 23 5. RELAES ENTRE A POPULAO E OS RECURSOS NATURAIS ............................... 26 5.1. A ATIVIDADE PESQUEIRA ..................................................................... 26 5.2. A ATIVIDADE AGRCOLA E PECURIA ..................................................... 27 5.3. EXTRATIVISMO E USO DAS PLANTAS NATIVAS ....................................... 29 5.4. CAA E USOS DA FAUNA SILVESTRE ..................................................... 31 6. OS MECANISMOS LEGAIS DE PROTEO AMBIENTAL ............................................ 32 7. SOBRE A APLICAO DA DENOMINAO "CAIARA" POPULAO DE

    GUARAQUEABA ............................................................................................................... 34 8. BARRA DO SUPERAGI: CARACTERIZAO DA COMUNIDADE ESTUDADA ................ 37

    CAPTULO 2 ASPECTOS ETNOTAXONMICOS ............................................................ 40 1. INTRODUO .................................................................................................. 40 2. RESULTADOS E DISCUSSO ............................................................. ................ 42

    2.1. PADRO DE INCLUSIVIDADE E EXCLUSIVIDADE ..................................... 43 2.2. NOMENCLATURA ................................................................................. 47 2.3. Classificao Etnobiolgica: "Os peixes da mesma gerao".......... 52

    2.3.1. CLASSIFICAO HIERRQUICA ............................................. 52 2.3.2. CLASSIFICAO SEQENCIAL ............................................... 57 2.3.3. CLASSIFICAO CCLICA ....................................................... 59 2.3.4. PADRO DE SOBREPOSIO HIERARQUIA/ ECOLOGIA ............. 60

    CAPTULO 3 ASPECTOS ETNOECOLGICOS ............................................................... 61 1. INTRODUO ..................................................................................................... 61 2. RESULTADOS E DISCUSSO ............................................................................... 61 2.1. DISTRIBUIO ESPACIAL HORIZONTAL ................................................. 61 2.2. DISTRIBUIO ESPACIAL VERTICAL ..................................................... 70 2.3. VARIAO TEMPORAL ......................................................................... 73 2.4. ECOLOGIA TRFICA ............................................................................ 77 2.9. PREDAO NATURAL .......................................................................... 82

  • CAPTULO 4 - ASPECTOS UTILITRIOS .......................................................................... 88

    1. INTRODUO ..................................................................................................... 88 2. RESULTADOS E DISCUSSO ......................................................................... ...... 89

    2.1. A ATIVIDADE PESQUEIRA ..................................................................... 89 2.1.1. A PESCA NA BARRA DO SUPERAGI ..................................... 90 2.2. UTILIZAO COMERCIAL ..................................................................... 95 2.2.1. FORMAS DE TRATAMENTO E ESCOAMENTO DA PRODUO ..... 95 2.2.2. RECURSOS COMERCIALIZADOS E VALOR COMERCIAL ............. 98 2.3. UTILIZAO ALIMENTAR ............................................................. ......... 102 2.3.1. IMPORTNCIA NA ALIMENTAO ............................................ 102 2.3.2. PREFERNCIAS ALIMENTARES .............................................. 103 2.3.3. QUALIDADE DA CARNE ......................................................... 104 2.3.4. FORMAS DE PREPARO .......................................................... 107 2.3.5. TABUS E RESTRIES ALIMENTARES .................................... 110 2.3.6. A QUESTO DOS "RESGUARDOS" ......................................... 115 2.4. UTILIZAO MEDICINAL ....................................................................... 121 2.4.1. RECURSOS UTILIZADOS ........................................................ 121 2.4.2. MATRIAS-PRIMAS, ELABORAO DOS MEDICAMENTOS E

    PRESCRIES ....................................................................................................... 126 2.4.3. EXEMPLOS SELECIONADOS .................................................. 127 2.4.4. SIMPATIAS ........................................................................... 130 2.4.5. OBTENO DOS RECURSOS ................................................. 131 2.4.6. CONHECIMENTO TRADICIONAL E UTILIZAAO ATUAL DOS

    ZOOTERPICOS ..................................................................................................... 133 2.4.7. HIPTESE DA UNIVERSALIDADE ZOOTERPICA E HIPTESE DA

    FARMCIA ............................................................................................................. 134 2.5. OUTROS USOS ................................................................................... 135

    CONCLUSES ................................................................................................................. 136 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................... 140 ANEXO ............................................................................................................................ 149

  • I

    LLIISSTTAA DDEE TTAABBEELLAASS

    CAPTULO 2

    TABELA 2.1 Padro de inclusividade/exclusividade na categoria "peixes": exemplos para a classificao dos pescadores antigos da comunidade de Barra do Superagi ....................... 43

    TABELA 2.2 - Caracteres e critrios utilizados por pescadores da Barra do Superagi para nomear os peixes de seu ambiente ......................................................................................... 50

    TABELA 2.3 - Critrios utilizados para identificao das etnoespcies da "famlia dos bagres" por pescadores da Barra do Superagi ................................................................................... 55

    TABELA 2.4 - Exemplos de genricos politpicos e nmero de especficos relacionados por pescadores da Barra do Superagi .......................................................................................... 56

    CAPTULO 3

    TABELA 3.1 - Grandes divises hidrogrficas percebidas por pescadores da Barra do Superagi e ictiofauna associada ............................................................................................ 62

    TABELA 3.2- Zonao do ambiente aqutico e microhabitats associados s reas marinha, estuarina e fluvial reconhecidos por pescadores da Barra do Superagi e ictiofauna correspondente ........................................................................................................................ 63

    TABELA 3.3 - Principais tipos de manchas de fundo ou substratos reconhecidos por pescadores da Barra do Superagi e ictiofauna associada ..................................................... 66

    TABELA 3.4 - Microhabitats associados aos principais tipos de manchas de fundo reconhecidos por pescadores da Barra do Superagi ............................................................. 66

    TABELA 3.5 - Caractersticas hidrolgicas relacionadas com a salinidade reconhecidas e categorizadas por pescadores da Barra do Superagi e ictiofauna associada ....................... 69

    TABELA 3.6 - Percepo de pescadores da Barra do Superagi sobre a distribuio vertical dos peixes na coluna d'gua .................................................................................................... 70

    TABELA 3.7 - Categorias reconhecidas por pescadores da Barra do Superagi com relao distribuio temporal da ictiofauna ........................................................................................ 75

    TABELA 3.8 Animais relacionados como predadores naturais de recursos pesqueiros por pescadores da Barra do Superagi .......................................................................................... 82

    CAPTULO 4

    TABELA 4.1 - Valorao do pescado segundo categorias micas estabelecidas por pescadores do Superagi ........................................................................................................ 99

    TABELA 4.2 - Valor de comercializao dos principais recursos pesqueiros citados por pescadores da Barra do Superagi (valores em R$ por kg, entre maro/1999 e maro/2000) 100

    TABELA 4.3 - Categorias micas estabelecidas por moradores da Barra do Superagi segundo o nvel de preferncia de consumo de peixes ........................................................... 103

    TABELA 4.4 - Critrios considerados para a categorizao dos recursos pesqueiros segundo a qualidade da carne por moradores da Barra do Superagi .................................................. 105

  • II

    TABELA 4.5 - Tipos de tabus alimentares e peixes e outros recursos pesqueiros relacionados por moradores da Barra do Superagi ............................................................... 111

    TABELA 4.6 - Recursos pesqueiros relacionados com a medicina popular por moradores da Barra do Superagi ..................................................................................................................

    121

    TABELA 4.7 - Recursos pesqueiros relacionados na medicina popular por moradores da Barra do Superagi .................................................................................................................. 122

    LLIISSTTAA DDEE FFIIGGUURRAASS

    FIGURA 1 - Pescador idoso identificando exemplares de peixe coletados durante as atividades de pesca .................................................................................................................. 12

    CAPTULO 1

    FIGURA 1.1 - Mapa de localizao da regio de Guaraqueaba: divisas e sede municipal, PR-405, limites da APA e do PARNA do Superagi e comunidade da Barra do Superagi (LAB.SIG-SPVS) ....................................................................................................................... 15

    FIGURA 1.2 - Vista geral da regio continental e estuarina de Guaraqueaba ......................... 17

    FIGURA 1.3 - Manguezal na regio de Guaraqueaba .............................................................. 17

    FIGURA 1.4 - Escola Municipal em uma das comunidades estuarinas da APA de Guaraqueaba .......................................................................................................................... 24

    FIGURA 1.5 - Canoas de "um pau s" utilizadas na pesca estuarina na regio de Guaraqueaba .......................................................................................................................... 26

    FIGURA 1.6 - Criao de bfalos na regio de Guaraqueaba ................................................. 28

    FIGURA 1.7 - Violeiro tocando em viola de caxeta utilizada para a prtica do fandango na regio de Guaraqueaba .......................................................................................................... 30

    FIGURA 1.8 - Menino com periquitos na regio de Guaraqueaba ........................................... 32

    FIGURA 1.9 - Faixa de praia e trapiche de desembarque na comunidade da Barra do Superagi ................................................................................................................................. 38

    CAPTULO 2

    FIGURA 2.1 - "Morera" (Famlia Muraenidae), exemplo de excluso total da categoria "peixes" por pescadores da Barra do Superagi ..................................................................... 45

    FIGURA 2.2 - "Baiacu" (Famlia Tetraodontidae), exemplo de excluso circunstancial da categoria peixes por pescadores da Barra do Superagi ........................................................ 46

    FIGURA 2.3 - Exemplos do sistema de classificao seqencial registrados entre pescadores da Barra do Superagi .......................................................................................... 58

    FIGURA 2.4 - Classificao cclica da tainha reconhecida por pescadores da Barra do Superagi com base no ciclo reprodutivo e migratrio ............................................................ 60

  • III

    CAPTULO 3

    FIGURA 3.1 - Ambiente denominado "ressaca", representado pela faixa do mar sujeita a ondas, de acordo com a percepo de pescadores da Barra do Superagi ........................... 64

    FIGURA 3.2 - Ambiente denominado "baixio", representado por depsitos arenosos que ficam aparentes nos perodos de mar baixa .......................................................................... 68

    FIGURA 3.3 - Categorias de distribuio temporal dos peixes reconhecidas por pescadores da Barra do Superagi ............................................................................................................. 77

    FIGURA 3.4 - Fragmento de uma cadeia trfica elaborada segundo o conhecimento de pescadores da Barra do Superagi .......................................................................................... 72

    FIGURA 3.5 - Fragmento de uma teia alimentar elaborada de acordo como conhecimento de pescadores da Barra do Superagi mostrando peixes que se alimentam de camaro ........... 79

    FIGURA 3.6 - Bigus (Phalacrocorax brasilianus), espcie predadora natural de peixes e outros recursos pesqueiros ...................................................................................................... 86

    CAPTULO 4

    FIGURA 4.1 - Principais recursos pesqueiros capturados nas pescarias na costa na Barra do Superagi, Guaraqueaba ....................................................................................................... 91

    FIGURA 4.2 - Bote equipado com "trangones" para a captura de camares na Barra do Superagi, Guaraqueaba ....................................................................................................... 91

    FIGURA 4.3 - Pescaria de mar aberto da cavala/sororoca com rede de nylon malha 10 cm na costa prxima Praia Deserta na Ilha do Superagi ............................................................... 92

    FIGURA 4.4 - Espinhu utilizado para captura de bagres e outros peixes de fundo ................. 93

    FIGURA 4.5 - Cerco fixo de taquara utilizado para captura de tainha e outros peixes .............. 94

    FIGURA 4.6 - Pescaria de praia da pescada-galhetera na Ilha do Superagi ........................... 94

    FIGURA 4.7 - Peixes in natura conservados no gelo em caixas de isopor na Barra do Superagi ................................................................................................................................. 95

    FIGURA 4.8 - Moradora da Barra do Superagi "consertando" peixes ..................................... 96

    FIGURA 4.9 - "Descascadeiras" na Barra do Superagi ........................................................... 97

    FIGURA 4.10 - Pedaos de raia secando ao sol na comunidade da Barra do Superagi, Guaraqueaba .......................................................................................................................... 107

    FIGURA 4.11 - Morador da Barra do Superagi consumindo camares secos ......................... 108

    FIGURA 4.12 - Tainhas assando na brasa na comunidade da Barra do Superagi .................. 109

    FIGURA 4.13 - "Mata-mo", exemplo de tabu total para consumo no Superagi ...................... 114

    FIGURA 4.14 - Acar, peixe que deve ter seu consumo evitado durante o resguardo quando presentes caractersticas morfolgicas especiais .................................................................... 120

    FIGURA 4.15 - Percentual das categorias taxonmicas dos recursos pesqueiros utilizados na medicina popular na Barra do Superagi ................................................................................. 121

    FIGURA 4.16 Recursos pesqueiros mais citados na medicina popular por moradores da Barra do Superagi e porcentagem relativa de citao ........................................................... 125

  • IV

    FIGURA 4.17 - "Cavalinhas-do-mar" secas utilizadas na medicina popular no Superagi ........ 129

    FIGURA 4.18 - Couro de "peixe-porco" utilizado na medicina popular da Barra do Superagi . 129

    FIGURA 4.19 - Recursos exgenos de aplicao medicinal comercializados em Paranagu ... 132

  • 1

    IINNTTRROODDUUOO

    Ecologia e etnoecologia podem ser definidas, em um sentido geral, como o estudo das

    relaes entre organismos e a totalidade de fatores fsicos, biolgicos e sociais com os quais

    interagem. Uma das diferenas entre estas abordagens o ponto de referncia de onde partem

    as explicaes para as inter-relaes: na ecologia a maioria dos autores estuda as relaes

    entre organismos no humanos; no caso da etnoecologia, o enfoque central est nas pessoas

    em interao com os sistemas (GRAGSON & BLOUNT, 1999).

    O conhecimento que vrios grupos humanos tem acumulado sobre o seu habitat e os

    recursos biticos e abiticos que utilizam e com os quais interagem, chamado na literatura

    especializada de conhecimento ecolgico tradicional ou local.

    A etnobiologia e a etnoecologia, de forma geral, estudam as interaes entre os seres

    humanos e os componentes do ambiente, buscando entender como a natureza percebida,

    conhecida, utilizada, categorizada e classificada por diversas culturas humanas. No existe

    consenso entre os diversos autores na conceituao destes termos e etnobiologia , muitas

    vezes, mais utilizada nos estudos dos sistemas de classificao etnobiolgica.

    O termo "etnoecologia" foi utilizado pela primeira vez na literatura cientfica por CONKLIN

    em 1954, em um estudo com os Hanunoo das Filipinas. A conceituao do termo ainda no

    chegou a um consenso, bem como a delimitao dos campos de pesquisa abordados.

    NAZAREA (1999) definiu etnoecologia como "um modo de olhar" as relaes entre seres

    humanos e o mundo natural, com nfase no papel da cognio em moldar comportamentos.

    MARQUES (1999) props a linha da Etnoecologia Abrangente, considerada como um campo de

    pesquisa (cientfica) transdisciplinar que estuda os pensamentos (conhecimentos e crenas),

    sentimentos e comportamentos que intermediam as interaes entre as populaes humanas

    que os possuem e os demais elementos dos ecossistemas que as incluem, bem como os

    impactos ambientais da decorrentes.

    At recentemente a maioria das discusses sobre manejo e sustentabilidade dos

    recursos naturais centravam-se em questes ambientais, econmicas ou tecnolgicas. A

    maioria dos estudos considerava isoladamente os aspectos scio-econmicos e ambientais,

    raramente ocupando-se das relaes culturais, causas e condies que influenciam a inter-

    relao homem/natureza. Esta viso tem contribudo para muitas deficincias nos processos

  • 2

    legislativos e fiscalizatrios, resultantes da falha no reconhecimento das complexidades

    culturais e tnicas. Em geral, as polticas ambientais no levam em considerao a importncia

    e utilizao dos recursos naturais pelas populaes locais, sendo estas informaes essenciais

    para o controle e a fiscalizao das atividades de caa, pesca e extrativismo.

    A partir da dcada de 1980 surgiu internacionalmente um interesse em incorporar as

    populaes nativas no manejo das reas naturais protegidas nas quais habitam. Tambm

    passou-se a valorizar a perspectiva cultural, onde o conhecimento tradicional e as pessoas que

    o possuem, antes vistas como obstculo ao desenvolvimento, passaram a ser consideradas

    essenciais a ele (HANBURY-TENISON, 1991).

    Nos ltimos anos, informaes etnobiolgicas obtidas junto a populaes humanas tm

    representado uma importante ferramenta para estudos conservacionistas, auxiliando no

    conhecimento da fauna, flora e ecologia dos ambientes e indicando vrios elementos teis para

    o desenvolvimento de uma regio. As pesquisas sobre uso de recursos biolgicos esto sendo

    apontadas como prioritrias para a biologia da conservao, ao identificar as condies que

    promovem padres de uso dos recursos (NAS, 1992). Alm disto, estes trabalhos tm

    contribudo para que a biodiversidade seja devidamente valorizada, no s do ponto de vista

    ecolgico, mas tambm do econmico e cultural, contribuindo para a implantao de planos de

    manejo e de conservao das espcies embasados em uma realidade social.

    A manuteno da diversidade biolgica tornou-se, em anos recentes, um dos objetivos

    mais importantes da conservao. Para a cincia moderna, a variabilidade biolgica

    entendida como produto da prpria natureza, sem a interveno humana. Vrios estudos, no

    entanto, tm mostrado que a biodiversidade pode tambm ser produto da ao das sociedades

    e culturas humanas, em particular das sociedades tradicionais no-industriais. O que os

    cientistas chamam de biodiversidade, traduzida em longas listas de espcies de plantas e

    animais, descontextualizadas do domnio cultural, muito diferente da biodiversidade em

    grande parte construda e apropriada, material e simbolicamente, pelas populaes tradicionais

    (DIEGUES & ARRUDA, 2001).

    O Brasil, alm de apresentar uma das maiores taxas de diversidade biolgica do

    planeta, um dos pases de maior diversidade cultural. Existem mais de quinhentas reas

    indgenas reconhecidas pelo Estado, habitadas por cerca de duzentas sociedades indgenas

    culturalmente diferenciadas. Acrescentam-se a estas as sociedades tradicionais no-indgenas,

  • 3

    hoje reconhecidamente representadas pelos aorianos, babaueiros, caiaras,

    caipiras/sitiantes, campeiros, jangadeiros, pantaneiros, pescadores artesanais, praieiros,

    sertanejos/vaqueiros, varjeiros (ribeirinhos no amaznicos), caboclos/ribeirinhos amaznicos e

    quilombolas (DIEGUES & ARRUDA, op. cit.).

    Em uma publicao recente o Ministrio do Meio Ambiente afirma que "o conhecimento,

    as inovaes e prticas das comunidades locais e populaes indgenas com modo de vida

    tradicional so essenciais para a conservao e utilizao sustentvel da diversidade biolgica

    e esto se perdendo em propores alarmantes. Salienta que fundamental realizar

    inventrios do conhecimento, usos e prticas das sociedades tradicionais indgenas e no-

    indgenas, pois estas so, sem dvida, depositrias de parte considervel do saber sobre a

    diversidade biolgica hoje conhecida (DIEGUES & ARRUDA, op. cit.).

    A busca da compreenso do fenmeno de interao entre seres humanos e os peixes,

    em particular, objeto de estudo da etnoictiologia (MARQUES,1995). Os primeiros estudos

    realizados especificamente nesta rea foram os de MORRIL (1967), que trabalhou com os

    pescadores Cha-cha do Caribe e os de ANDERSON JR. (1967), com os Boat People,

    pescadores artesanais de Hong-Kong. Internacionalmente destacam-se ainda os trabalhos de

    AKIMICHI (1978), que estudou aspectos ecolgicos do conhecimento sobre peixes do povo Lau

    e de JOHANNES (1978 e 1981), que relacionou o conhecimento tradicional de pescadores da

    Oceania com o manejo e a conservao dos recursos.

    No Brasil, os estudos em etnoictiologia iniciaram-se com o trabalho de MARANHO

    (1975) com pescadores da Praia de Icara no Cear, que descreveu os esquemas cognitivos

    por eles utilizados na navegao e as tcnicas e tomadas de deciso frente s informaes

    dadas por sinais naturais como condies do mar, do tempo, movimento das ondas, entre

    outros.

    Comunidades martimas foram tambm estudadas por FORMAN (1967 e 1970), que

    analisou o conhecimento de pescadores de jangada na costa do Nordeste brasileiro. MARQUES

    (1991) documentou um sistema etnoictiolgico muito detalhado entre pescadores do Complexo

    Lagunar Munda-Manguaba em Alagoas, realizando um dos mais significativos e abrangentes

    estudos da etnoictiologia brasileira. O autor analisou principalmente o conhecimento dos

    pescadores sobre etnotaxonomia, distribuio espacial e temporal e ecologia trfica.

    Posteriormente este mesmo autor estudou o comportamento dos peixes segundo a percepo

  • 4

    dos pescadores (MARQUES, 1994). COSTA-NETO (1998) avaliou a etnoictiologia dentro do

    contexto do desenvolvimento e sustentabilidade no litoral norte da Bahia. MOURO (2000)

    estudou os modelos cognitivos de pescadores artesanais do esturio do Rio Mamanguape na

    Paraba, com relao classificao dos peixes e compreenso de aspectos de sua ecologia

    e comportamento.

    Com relao a comunidades caiaras, MUSSOLINI (1980) descreveu o conhecimento de

    pescadores de So Paulo sobre ecologia da tainha (Mugil platanus), relatando detalhes de seu

    comportamento migratrio. SILVA (1988) analisou aspectos da classificao dos recursos

    naturais, especialmente peixes, para pescadores de Piratininga no Rio de Janeiro. As

    comunidades pesqueiras da Ilha de Bzios e da Baa de Sepetiba foram estudadas por

    BEGOSSI (1989 e 1992), BEGOSSI & FIGUEIREDO (1995) e PAZ & BEGOSSI (1996), com relao a

    escolhas alimentares e restries ao consumo de peixes, suas relaes com a medicina

    popular, etnotaxonomia e conhecimento dos pescadores sobre aspectos da ecologia e

    comportamento das espcies cticas. O uso do pescado na alimentao da populao da Ilha

    de Bzios foi estudado por BEGOSSI & RICHERSON em 1992, aplicando a teoria do

    forrageamento timo e em 1993, utilizando as teorias de nicho ecolgico. A relao entre os

    pescadores e os intermedirios na comercializao do pescado na Ilha de Bzios foram

    retratados em BEGOSSI (1996). Uso do pescado, incluindo tabus e preferncias alimentares,

    tambm foi estudado por SEIXAS & BEGOSSI (1996) em Ilha Grande (RJ) e na Ilha de So

    Sebastio (SP). As estratgias pesqueiras de pescadores na Ilha de Bzios foram relatadas em

    BEGOSSI (1996a e 1996b). KANT-LIMA (1997) avaliou vrios aspectos relacionados ao saber dos

    pescadores de Itaipu (RJ). HANAZAKI (1997) estudou a atividade de pesca e a dieta alimentar

    em comunidades de Ubatuba (SP) e HANAZAKI & BEGOSSI (2000) analisaram a pesca e a

    dimenso do nicho para consumo alimentar entre pescadores de Ponta da Almada (SP).

    Trabalhos etnoictiolgicos com pescadores ribeirinhos foram realizados por BEGOSSI &

    GARAVELLO (1990), com comunidades do mdio Rio Tocantins, sobre os sistemas de

    classificao usados pelos pescadores, definindo os critrios e as formas de utilizao.

    Posteriormente, nestas mesmas comunidades, BEGOSSI & BRAGA (1992) analisaram as

    restries alimentares relacionadas ao consumo de peixes e a utilizao dos mesmos na

    medicina popular.

  • 5

    MARQUES (1995a e b) descreveu a etnoictiologia de pescadores do baixo Rio So

    Francisco, atravs da abordagem da etnoecologia abrangente. A pesca e o uso dos peixes por

    comunidades ribeirinhas do Alto Juru (AM) foram estudados por BEGOSSI et al. (1999).

    No Rio Piracicaba, SILVANO & BEGOSSI (1998) estudaram a pesca artesanal e os efeitos

    da poluio e dos desmatamentos das margens sobre os estoques pesqueiros; MADI & BEGOSSI

    (1997) analisaram o consumo de pescado pela populao da Rua do Porto e a relao dos

    tabus alimentares com a poluio das guas do rio e SILVANO & BEGOSSI (2000) avaliaram a

    composio dos desembarques pesqueiros.

    Na Represa de Trs Marias (MG), TH (1998) estudou o conhecimento etnoecolgico

    dos pescadores e estimou a produo pesqueira e MADI (1999) analisou os usos e critrios de

    escolha do pescado por famlias de pescadores.

    Comunidades indgenas do alto Rio Negro foram estudadas por RIBEIRO (1995); a

    comunidade dos Wayana por VELTHEN (1990); a pesca dos ndios Kayap por PETRERE Jr.

    (1990) e a etnoictiologia dos ndios Desna por RIBEIRO & KENHRI (1996).

    Os estudos na rea da etnoictiologia tm mostrado que os conhecimentos adquiridos

    por comunidades tradicionais pesqueiras so aprofundados, ricos em detalhes e muitas vezes

    concordantes com as observaes cientficas, envolvendo relaes taxonmicas e vrios

    aspectos da biologia e ecologia de diferentes espcies de peixes.

    O conjunto de informaes terico-prticas que os pescadores apresentam sobre o

    comportamento, hbitos alimentares, reproduo e ecologia dos peixes oferece uma grande

    fonte de conhecimentos praticamente desconhecida pela cincia ocidental sobre como

    manejar, conservar e utilizar os recursos naturais de maneira mais sustentvel. Este

    conhecimento, que est baseado na experincia, em muitas regies est to ameaado de

    extino quanto os prprios recursos biolgicos.

    A rea de Proteo Ambiental (APA) de Guaraqueaba, localizada no litoral norte do

    Estado do Paran, engloba uma grande diversidade de ecossistemas e abriga cerca de 60

    comunidades humanas, constitudas principalmente por pescadores artesanais e agricultores

    familiares.

  • 6

    A populao local pode ser entendida como populao tradicional segundo a

    conceituao estabelecida por DIEGUES (1993)1, caracterizando-se por manter uma grande

    integrao com os ecossistemas circundantes. A pesca artesanal est entre as principais

    atividades econmicas, juntamente com a agricultura e o extrativismo.

    Diversas transformaes econmicas, ambientais, sociais e culturais vm acontecendo

    nas ltimas trs dcadas no litoral do Paran, com influncias sobre as relaes entre os

    moradores locais e seu ambiente. Ocorreram mudanas no panorama do desenvolvimento

    regional e ordenao territorial do litoral, como a criao de unidades de conservao (e

    conseqentes restries ambientais), a expanso turstica e influncias da economia de

    mercado, modificaes nas tcnicas e prticas de pesca e, ainda, modificaes das

    caractersticas ambientais.

    Conforme constatado por diversos autores (COUTO et al., 1990; LIMA, 1996; LIMA at al.,

    1998; KARAM & TOLEDO, 1997 e FERNANDES-PINTO, 1998), estas mudanas tm refletido no fato

    de que o conhecimento do universo local est ficando cada vez mais restrito e as comunidades

    esto sofrendo uma descaracterizao de sua forma tradicional de vida, num processo que,

    apesar de lento, parece irreversvel.

    As relaes das populaes de Guaraqueaba com os recursos naturais, de uma forma

    geral, e a atividade pesqueira em particular, tm sido negligenciadas no planejamento e manejo

    das unidades de conservao da regio, com implicaes tambm para a cultura e as

    condies de vida locais. O conhecimento de como o uso dos recursos acontece e em que

    contexto ocorre, pode fornecer informaes valiosas para o gerenciamento das unidades.

    Considerando-se ainda que, nesta regio, mais de 70% da populao tm na pesca a sua

    principal fonte de renda (CORRA et al., 1997), emerge tambm como prioritria a avaliao do

    grau de dependncia desta com relao aos diferentes tipos de recursos cticos.

    Partindo-se do princpio de que o conhecimento dos pescadores artesanais de

    Guaraqueaba sobre os peixes representa um importante recurso e uma ferramenta essencial

    1 Populaes tradicionais so entendidas como grupos sociais que tm um modo de vida diferente das populaes urbano-industriais e que, via de regra, mantm com os recursos naturais uma relao de dependncia pautada no respeito aos ciclos naturais. O manejo dos recursos ocorre atravs de um complexo de conhecimentos adquiridos pela tradio herdada dos mais velhos, resultando na adequao de uso e manuteno dos ecossistemas naturais (DIEGUES, 1993).

  • 7

    para o manejo e conservao da regio e que o mesmo encontra-se localmente ameaado de

    extino, considera-se o seu resgate e registro como de fundamental importncia.

    Desta forma, o presente trabalho tem como objetivo principal estudar os modelos

    cognitivos dos pescadores da regio de Guaraqueaba, com nfase em aspectos

    etnotaxmicos e do conhecimento etnoecolgico sobre peixes e aspectos conexivos voltados

    para as formas de apropriao e uso dos recursos pesqueiros, tomando-se a comunidade de

    Barra do Superagi como estudo de caso. Os objetivos especficos sero detalhados em cada

    captulo.

    Este trabalho pretende contribuir para a compreenso das populaes tradicionais da

    APA de Guaraqueaba como parte integrante do ecossistema em que esto inseridas e

    fornecer subsdios para o planejamento ambiental da regio e para futuras propostas

    conservacionistas embasadas na realidade das populaes locais.

    MMEETTOODDOOLLOOGGIIAA

    O trabalho de campo foi realizado na comunidade da Barra do Superagi, Municpio de

    Guaraqueaba, no perodo compreendido entre maro de 1999 e dezembro de 2000, atravs

    de idas mensais ao campo com durao de aproximadamente sete dias.

    Os dados foram inicialmente obtidos atravs de entrevistas casuais e no estruturadas2

    com 54 moradores da comunidade. As finalidades destas entrevistas foram identificar os temas

    gerais e as categorias micas3 reconhecidas pela populao nos aspectos relacionados

    ictiofauna local e obter uma lista de nomes vernaculares para os peixes.

    A transgeracionalidade do conhecimento etnoictiolgico local foi analisada

    entrevistando-se pessoas de diferentes idades. Alm disso, a homogeneidade do

    2 Considerou-se como entrevistas casuais aquelas realizadas informalmente, sem um contexto de entrevista; entrevistas no-estruturadas como aquelas realizadas sem um roteiro, mas onde o contexto de entrevista existe e a pessoa est informada disto; e entrevistas semi-estruturadas, aquelas que seguem um roteiro temtico pr-estabelecido. 3 Os conceitos "mico" e "'tico" derivam lingisticamente de "fonmico" e "fontico" e so usados na etnobiologia como pontos de vista diferenciados para analisar as informaes. A perspectiva "mica" considera a abordagem interna da populao em estudo, as categorias por elas nomeadas e descritas. A perspectiva "tica" a viso externa, que considera as categorias e interpretaes dos pesquisadores e da cincia oficial.

  • 8

    conhecimento foi testada entrevistando-se pessoas de ambos os sexos, de diferentes classes e

    papis sociais.

    A partir dos temas identificados, trabalhou-se com entrevistas semi-estruturadas, onde

    o nmero de entrevistados variou de acordo com o assunto, sendo abordados moradores

    reconhecidos como "especialistas" e indicados por outros membros da comunidade. No geral,

    foram realizadas um total de 60 entrevistas semi-estruturadas, com 38 moradores locais. A

    diferenciao social e cultural existente atualmente na Barra do Superagi dificultou a anlise

    de alguns temas, especialmente etnotaxonomia.

    Uma anlise preliminar da variao intracultural com relao nomeao dos peixes

    permitiu diferenciar um grupo mais ou menos homogneo, formado pelos pescadores mais

    antigos, com idade superior a 65 anos e que nasceram e sempre moraram na regio de

    Guaraqueaba. De forma a facilitar a anlise e na medida em que a principal proposta deste

    trabalho realizar um resgate do conhecimento tradicional, optou-se por separar as

    informaes provenientes deste grupo (n=11) no estudo da classificao etnobiolgica.

    Na parte de etnotaxonomia, as entrevistas semi-estruturadas foram conduzidas

    procurando obter a descrio de cada peixe nomeado e identificar possveis agrupamentos.

    Perguntas cruzadas foram utilizadas para averigar eventuais nomes esquecidos, a partir das

    categorias micas relacionadas. Para efeito de anlise das informaes foram considerados

    apenas os nomes citados por mais de um pescador e as referncias para os nomes

    considerados sinnimos foram agrupadas. Foi considerado como nome principal aquele citado

    pelo maior nmero de pescadores e os demais, tratados como sinonmias.

    A anlise dos padres classificatrios considerou o universo amostral de todos os

    peixes "conhecidos" pelos entrevistados e no apenas aqueles coletados. Para analisar a

    classificao hierrquica adotou-se neste estudo o modelo estabelecido por BERLIN (1973 e

    1992). Os demais padres classificatrios seguiram o proposto por MARQUES (1991).

    Foram adotadas tcnicas da observao participante para a descrio das prticas

    pesqueiras atuais e a "tcnica da turn" proposta por SPRADLEY & MCCURDY (1972), realizando-

    se excurses guiadas pelos pescadores, principalmente para o reconhecimento dos diferentes

    tipos de habitat. Alguns eventos observados foram documentados fotograficamente, bem como

    os atores sociais, as atividades de pesca e os recursos pesqueiros.

  • 9

    Para a anlise da importncia comercial do pescado, alm das entrevistas com os

    pescadores e com os comerciantes da comunidade, foram realizadas visitas sazonais aos

    mercados populares localizados nos centros comerciais prximos comunidade estudada.

    As entrevistas foram realizadas apenas pela autora e registradas por escrito e/ou

    eletromagneticamente. Todas as informaes levantadas foram transcritas e codificadas

    segundo o assunto relacionado, a partir dos temas e categorias micas previamente

    identificadas, sendo ento organizadas em um banco de dados.

    Optou-se por uma abordagem essencialmente qualitativa e de anlise de discursos,

    recorrendo-se quantitativa em situaes especficas. Os valores de freqncia relativa

    calculados representam o percentual de entrevistados que citaram espontaneamente um

    determinado recurso.

    Os dados foram analisados segundo o modelo de "unio das diversas competncias

    individuais" (HAYS in MARQUES, 1991) e a anlise dos discursos utilizou uma nova tcnica

    denominada anlise do discurso do sujeito coletivo, proposta por LEFVRE et al. (2000)4.

    Os controles foram feitos atravs da verificao de consistncia e de validade das

    respostas, recorrendo-se a entrevistas repetidas em situaes sincrnicas (quando uma

    pergunta feita a pessoas diferentes em tempos prximos) e diacrnicas (quando uma

    pergunta j feita anteriormente repetida mesma pessoa em tempos distintos).

    Exemplares de peixes e outros recursos pesqueiros foram adquiridos durante o

    acompanhamento das atividade de pesca, sendo registrado o nome vernacular correspondente

    citado pelos pescadores. Estes exemplares foram posteriormente apresentados a moradores

    idosos da comunidade para confirmao da identificao (FIGURA 1).

    4 Esta metodologia consiste em agregar discursos individuais e obter discursos coletivos atravs de quatro figuras metodolgicas bsicas: ancoragem (marcas lingsticas), idia-central (a essncia de cada discurso), expresses-chave (transcries literais) e discursos do sujeito coletivo, resgatando o total dos discursos existentes sobre um tema ou objeto.

  • 10

    FIGURA 1 - Pescador idoso identificando exemplares de peixe coletados durante as atividades de pesca.

    Recorreu-se, complementarmente, a identificaes cruzadas (quando exemplares

    identificados por um pescador eram submetidos a outros para confirmao) e identificaes

    repetidas (quando exemplares j identificados por um pescador eram novamente submetidos

    mesma pessoa, decorrido um certo espao de tempo, para nova identificao).

    Alm dos exemplares coletados durante o acompanhamento das atividades pesqueiras,

    outros foram doados por comerciantes de pescado da comunidade. Os peixes foram

    congelados e transportados para o Laboratrio de Ictiologia do Centro de Estudos do Mar

    (CEM/UFPR). A identificao cientfica foi feita por especialistas na ictiofauna da regio, com

    base na seguinte bibliografia: FIGUEIREDO, 1977; FISHER, 1978; FIGUEIREDO & MENEZES, 1978 e

    1980; MENEZES & FIGUEIREDO, 1980 e 1985; MENEZES, 1983; CORRA, 1987; BARLETTA &

    CORRA, 1992 e CERVIGN et al., 1992 e por comparao com exemplares depositados na

  • 11

    coleo ictiolgica do CEM. Os exemplares foram fixados em formol a 10%, conservados em

    lcool a 70% e depositados na coleo ictiolgica da referida instituio.

    Para os peixes cujos exemplares no foram coletados, procurou-se estabelecer uma

    relao com as identificaes populares consideradas no trabalho de CORRA (1987) e

    correspondncias tentativas a partir de "pistas taxonmicas" das descries fornecidas pelos

    pescadores. As identificaes cientficas para os peixes citados ao longo do texto encontram-se

    listadas no ANEXO.

    Os resultados foram apresentados na forma de captulos, sendo o primeiro referente

    caracterizao da regio estudada; o segundo, a aspectos etnotaxonmicos; o terceiro, ao

    conhecimento etnoecolgico e o quarto, a aspectos utilitrios da relao entre pescadores da

    Barra do Superagi e os peixes de seu ambiente. O tempo verbal utilizado no texto foi o

    presente etnogrfico. Procurou-se manter literalmente os depoimentos dos pescadores, sem

    adequaes e correes ortogrfica, de forma a aproximar o mximo possvel o texto escrito do

    discurso passado oralmente.

  • 12

    CAPTULO 1 - GGUUAARRAAQQUUEEAABBAA:: PPAAIISSAAGGEENNSS EE PPEESSSSOOAASS

    1. CARACTERIZAO GERAL

    O municpio de Guaraqueaba situa-se no litoral norte do Paran, entre as coordenadas

    UTM X 718.000 e 800.000 e Y 7.176.000 e 7.250.0005. A rea de Proteo Ambiental (APA)6

    de Guaraqueaba, unidade de conservao criada em 1985 com cerca de 314 mil ha, engloba

    integralmente este municpio, alm de partes dos municpios vizinhos de Antonina, Paranagu

    e Campina Grande do Sul (FIGURA 1.1).

    A estrada PR-405 a nica via de acesso virio regio, em um trecho de 78 km de

    estrada no pavimentada. Esta estrada foi aberta por volta de 1970, mas permaneceu

    intransitvel durante muitos anos. A dificuldade de acesso virio resultou num relativo

    isolamento poltico-geogrfico que, associado baixa densidade demogrfica (cerca de 4

    hab/km2) contribuiu para o bom estado atual de conservao ambiental e cultural da rea.

    A regio de Guaraqueaba, de uma forma geral, apresenta uma srie de

    particularidades climticas, hidrogrficas, topogrficas, ecolgicas, histricas, scio-

    econmicas e culturais que a distingue de outras regies do Paran e do Brasil.

    A APA de Guaraqueaba abriga um rico patrimnio natural, compreendendo, em sua

    extenso continental, costeira e estuarina, uma grande diversidade de ambientes, sobre os

    quais atualmente incidem uma srie de mecanismos legais federais e estaduais visando sua

    proteo. Permeando este rico mosaico de ecossistemas encontram-se diversas comunidades

    que revelam uma diversidade scio-cultural to importante quanto a diversidade fsica e

    biolgica, representando uma cultura peculiar e diferenciada.

    5 Projeo Universal Transversa de Mercator - Meridiano Central -51oW.Gr. Datum SAD-69. 6 As reas de Proteo Ambiental (APA) representam uma categoria de Unidade de Conservao de manejo sustentado, instituda em 1981 e regulamentada em 1990. Constitudas por reas pblicas e/ou privadas, tm o objetivo de disciplinar o processo de ocupao de terras e promover proteo dos recursos biticos e abiticos dentro de seus limites, de modo a assegurar o bem estar das populaes humanas que a vivem, resguardar ou incrementar as condies ecolgicas locais e manter paisagens e atributos culturais relevantes (IBAMA, 2002).

  • 13

    FIGURA 1.1 - Mapa de localizao da regio de Guaraqueaba: divisas e sede municipal, PR-405, limites da APA e do PARNA do Superagi e comunidade da Barra do Superagi (LAB.SIG-SPVS).

  • 14

    2. ASPECTOS FSICOS E BIOLGICOS7

    A parte continental da APA de Guaraqueaba constituda por vastas serras (como a

    Serra da Virgem Maria, Serra Negra, da Utinga e do Itaqui), reas de plancie litornea e

    planalto.

    A parte estuarina formada pelas baas das Laranjeiras, dos Pinheiros e de

    Guaraqueaba e pelas Enseadas do Benito e Itaqui, fazendo parte do Complexo Estuarino-

    Lagunar que se estende de Iguape a Paranagu (FIGURA 1.2). Grandes baixios (depsitos de

    areia e lodo) so encontrados em toda a regio, impondo limites e uma estreita dependncia

    dos ciclos de mar para a navegao.

    As baas so margeadas por extensas reas de manguezais, que ocupam cerca de 18

    mil ha na regio, ainda em bom estado de conservao (FIGURA 1.3). Vrios rios drenam para

    estas reas, sendo os principais o Rio Guaraqueaba, o Serra Negra, o Tagaaba, o Medeiros

    e o Itaqui.

    Nas baas tambm encontram-se vrias ilhas sedimentares de diversos tamanhos, que

    surgiram lentamente ao longo dos ltimos sete mil anos, atravs de sucessivas deposies

    marinhas. As maiores so a Ilhas das Peas, a Ilha Rasa e a Ilha artificial do Superagi8.

    Na parte exposta formam-se praias e na plataforma continental surgem pequenas ilhas

    ocenicas granticas, como a da Figueira.

    A linha de costa de todo o litoral paranaense encontra-se em contnua alterao, pela

    ao da eroso e sedimentao de material, num processo extremamente dinmico e que

    aparenta ter carter cclico.

    7 Texto escrito com base principalmente no "Zoneamento Ecolgico-Econmico da APA de Guaraqueaba", convnio IPARDES & IBAMA (1997). 8 Em 1953, a abertura do Canal do Varadouro transformou em ilha o brao do continente at ento denominado "Pennsula do Superagi", permitindo a comunicao marinha entre o litoral sul de So Paulo e o do norte do Paran.

  • 15

    FIGURA 1.2 - Vista geral da regio continental e estuarina de Guaraqueaba.

    FIGURA 1.3 - Manguezal na regio de Guaraqueaba.

  • 16

    O clima regional, segundo a classificao de KOEPPEN, do tipo "CFA", definido como

    subtropical mido mesotrmico. A temperatura mdia anual gira em torno de 20oC e a umidade

    relativa do ar em 85%, com pouca variao ao longo do ano. A pluviosidade elevada (mdia

    de 2.400 mm anuais e 207 dias de chuva por ano), com precipitaes regulares bem

    distribudas entre os meses, sem estao seca definida. Os maiores ndices pluviomtricos

    ocorrem no vero (dezembro a maro) e os menores no final do outono e durante o inverno

    (abril a agosto).

    A APA de Guaraqueaba faz parte do Domnio da Floresta Ombrfila Densa (Floresta

    Atlntica) e representa atualmente, junto com a poro de Iguape e Canania no litoral sul de

    So Paulo, a maior e mais bem preservada rea contnua de remanescente deste tipo florestal

    e de seus ecossistemas associados9. A vegetao na regio apresenta dois ambientes

    fisionmica e ecologicamente distintos: as reas de formaes pioneiras e a regio da floresta

    ombrfila densa propriamente dita.

    As formaes pioneiras so os ambientes de primeira ocupao, que se instalam sobre

    reas onde ocorrem deposies sedimentares ao longo do litoral. Abrangem tipos distintos de

    vegetao, diferenciados pela intensidade com que so influenciados pela gua do mar, dos

    rios ou pela ao combinadas de ambos. As formaes pioneiras de influncia marinha so

    representadas pela vegetao de dunas e de restinga; as de influncia flvio-marinha, pelos

    manguezais e reas de transio; e as de influncia fluvial, pelos brejos e caxetais.

    As regies de Floresta Ombrfila Densa, em funo da situao topogrfica e das

    condies edficas locais, so formadas por diferentes tipos florestais, subdivididos de acordo

    com a faixa altimtrica em de Terras Baixas ou das Plancies Quaternrias (at altitudes de 40-

    50 metros acima do nvel do mar - a.n.m.); Sub-Montana ou do incio das encostas (de 40-50 a

    500-700 m a.n.m.); Montana (500-700 a 1000-1200 m a.n.m.) e Alto-Montana (a partir de 1000-

    1200 m a.n.m.).

    Ao longo das vrzeas dos grandes rios estabelecem-se, ainda, reas de Floresta

    Ombrfila Densa das Plancies Aluviais.

    A maior parte das reas de floresta na APA de Guaraqueaba, especialmente a da

    9 Este bioma, que se estendia ao longo de toda a costa brasileira, sofreu grande presso antrpica ao longo da histria e atualmente encontra-se reduzido a menos de 8% de sua cobertura original, sendo considerado um dos ecossistemas mais ameaados do planeta (FUNDAO SOS MATA ATLNTICA & INPE, 1993).

  • 17

    plancie e a sub-montana, sofreram interveno humana em diferentes nveis a partir de

    meados do sculo passado, principalmente pela extrao seletiva de madeira e a abertura de

    roas. possvel observar nesta regio todos os estgios sucessionais da vegetao

    secundria, desde comunidades pioneiras de primeira ocupao at florestas secundrias bem

    desenvolvidas, passando por capoeiras e capoeires e formando um verdadeiro mosaico

    vegetacional. A APA representa atualmente um ambiente florestal extenso e relativamente

    contnuo que, associado diversidade de ecossistemas existentes, fazem desta regio um

    importante reduto natural, ocorrendo um grande nmero de espcies vegetais e animais.

    Com relao fauna de vertebrados terrestres, foram registradas para a regio cerca

    de 70 espcies de mamferos, 340 espcies de aves, 50 de rpteis e 35 de anfbios. A regio,

    no entanto, carece de levantamentos e estudos mais aprofundados e sistemticos, tendo-se

    pouco conhecimento da abundncia e distribuio das espcies, bem como de aspectos da sua

    biologia e ecologia. Ressalta-se a ocorrncia de muitas espcies endmicas da Floresta

    Atlntica e outras raras e/ou ameaadas de extino em outras regies do Estado do Paran e

    do Brasil.

    Quanto ictiofauna, no litoral do Paran foram registradas um total de 313 espcies

    pertencentes a 92 famlias, sendo 289 espcies e 80 famlias de Actinopterygii e as demais, de

    Chondrichthyes. Dentre os Actinopterygii, a famlia Myctophidae a que apresenta maior

    registro de nmero de espcies na regio da plataforma continental (37 espcies) e Sciaenidae

    e Carangidae, nas regies costeiras (com 22 e 17 espcies, respectivamente) (CASTELLO et al.,

    1994).

    Para o sistema estuarino da Baa de Paranagu foram registradas 173 espcies de

    Actinopterygii e 28 de Chondrichthyes. As famlias mais abundantes foram Mugilidae, Ariidae,

    Sciaenidae, Gerreidae, Atherinidae, Clupeidae, Carangidae, Serranidae e Tetraodontidae

    (CORRA, 1987 e 2001).

    A composio especfica desta regio apresenta uma similaridade maior com a fauna

    de guas quentes tropicais ou carabicas (CORRA, 1987). Por tratar-se de uma rea

    intermediria entre rios e o oceano, a regio est diretamente relacionada com migraes de

    vrias espcies cticas (CASTELLO et al., 1994). A temperatura e a salinidade da gua

    (associada pluviosidade e s mars) parecem ser os principais fatores determinantes da

    distribuio da ictiofauna (CORRA, 1987).

  • 18

    De modo geral, os trabalhos sobre recursos pesqueiros realizados no litoral do Paran

    mostraram que o conhecimento sobre composio e diversidade ctica evoluiu rapidamente

    para os ambientes estuarinos da regio. Contudo, aspectos do ciclo biolgico (reproduo,

    crescimento, alimentao), da dinmica das populaes naturais, da estrutura e dos padres

    de distribuio espacial e temporal, permanecem ainda pouco conhecidos (CORRA, 1995).

    3. ASPECTOS SCIO-ECONMICOS, HISTRICOS E CULTURAIS10

    Os primeiros indcios da ocupao humana e da utilizao dos recursos naturais no

    litoral do Paran foram constatados atravs de vestgios arqueolgicos denominados

    "sambaquis" ou "casqueiros" (formados por depsitos de restos alimentares, principalmente

    conchas de moluscos e, em alguns casos, utenslios diversos e urnas funerrias). Estima-se

    que existam mais de 100 espalhados pela regio de Guaraqueaba e os mais antigos datam de

    at 6.000 anos.

    Os grupos indgenas que habitavam a regio no incio do contato com os primeiros

    colonizadores europeus estavam representados por Carij e Tupiniquim, com uma populao

    estimada entre seis e oito mil. Estes grupos, alm de pesca, caa e coleta de frutos, cultivavam

    algumas plantas e eram exmios ceramistas. As causas do despovoamento indgena no litoral

    paranaense no so bem conhecidas, sendo que referncias diversas apontam para o

    aprisionamento de ndios como escravos, o processo de miscigenao e o abandono da regio.

    A colonizao portuguesa iniciou-se por volta de 1530, como conseqncia do

    povoamento de So Vicente no litoral de So Paulo, de onde partiram expedies para

    aprisionamento de ndios e busca de ouro. Entre 1630 e 1640 foram descobertas vrias jazidas

    de ouro na regio de Guaraqueaba, o que levou instalao de muitos mineiros na rea,

    intensificando a ocupao e a miscigenao. O ciclo do ouro comeou a declinar no sculo

    XVII, com a descoberta de minas mais produtivas no interior do pas.

    O primeiro povoado de Guaraqueaba foi a Vila do Ararapira, fundada em 1767. Por

    volta de 1770, missionrios de Canania criaram uma reduo agrcola-religiosa na regio do

    Superagi. A partir do final do sculo XVIII comearam a instalar-se grandes fazendas com

    mo-de-obra de escravos negros. Vrias localidades se desenvolveram, espalhadas por toda a

    10 Texto escrito principalmente com base nos trabalhos de BEHR (1991), SPVS (1994) e FERNANDES-PINTO & NICOLAU (2001).

  • 19

    regio.

    Em 1835 foi construda a capela de Bom Jesus dos Perdes de Guaraqueaba e em

    torno desta foram surgindo as primeiras edificaes que deram origem ao povoado de

    Guaraqueaba, que se tornou municpio em 1880.

    Na segunda metade do sculo XIX, imigrantes de vrios pases europeus e de outras

    partes do mundo vieram para a regio do litoral do Paran, tendo-se registro de italianos,

    suos, alemes, franceses, letos, mouros, rabes, entre outros. Em 1852 foi fundada na regio

    do Superagi uma colnia de imigrantes principalmente suos mas tambm franceses,

    alemes e italianos.

    Nessa poca, as populaes humanas da regio formavam pequenos ncleos

    baseados nas relaes de parentesco e desenvolviam principalmente a agricultura. A ocupao

    das terras era minifundista e a posse era estabelecida a partir do seu uso. As atividades

    produtivas caracterizavam-se por uma relativa auto-suficincia, por utilizarem fora de trabalho

    familiar e estarem organizadas a partir das habilidades pessoais e dos laos histricos com as

    produes. O modo de vida estava baseado na utilizao conjugada de uma grande

    diversidade de recursos e de diferentes ambientes, dependendo de um profundo conhecimento

    dos ecossistemas da regio, sua fauna e flora, atravs de um processo histrico passado e

    aperfeioado de gerao a gerao. O transporte fazia-se essencialmente por via fluvial e

    martima e o porto de Guaraqueaba centralizava as atividades comerciais do litoral

    paranaense.

    O apogeu econmico da regio ocorreu entre o final do sculo XIX e incio do XX.

    Excedentes da produo agrcola, principalmente banana e arroz, alm de produtos

    extrativistas, eram comercializados nos municpios vizinhos e exportados para a Argentina e

    Paraguai.

    Em meados do sculo XX, o crescimento populacional e econmico de Antonina e

    Paranagu e a ligao terrestre atravs destes municpios do litoral ao planalto paranaense

    do incio a um processo de estagnao econmica em Guaraqueaba. Alm disso, a abertura

    de novas fronteiras agrcolas no interior do Estado leva ao declnio da importncia da produo

    agrcola local, que se volta basicamente para a subsistncia familiar, conjugando-se com a

    pesca.

    O nmero de habitantes diminuiu consideravelmente entre a dcada de 1930 e 1950,

  • 20

    sendo que a partir desta data at os dias atuais, permanece estvel.

    No final da dcada de 1950 e ao longo da de 1960, instaurou-se na regio de

    Guaraqueaba um intenso processo de apropriao de terras por grandes grupos econmicos,

    principalmente empresas agropecurias, gerando vrios conflitos e excluindo parte dos

    produtores locais (sem vnculo legal com as propriedades) do acesso terra. Este processo,

    conjugado ao declnio da importncia comercial da atividade agrcola, gerou como

    conseqncia uma migrao de parcelas da populao para centros urbanos (Paranagu e

    Curitiba) e o deslocamento de outras para reas mais propcias para a pesca, onde esta

    atividade intensificou-se. O processo de especulao imobiliria aumentou ainda mais na

    dcada de 1970, com a abertura da estrada PR-405.

    Na dcada de 1980, uma "avalanche" de leis federais e estaduais e de Unidades de

    Conservao criadas na regio em um curto espao de tempo vo contribuir para limitar ainda

    mais o processo de trabalho artesanal e o modo de vida tradicional.

    Uma boa parte das atividades historicamente exercidas pelos moradores foram sendo

    sistematicamente proibidas ou regulamentadas por rgos externos, em geral sem a

    participao da populao local e sem levar em considerao a realidade social da regio. Para

    os moradores locais, aps um ciclo de perda de suas terras, d-se um novo processo, desta

    vez de tomada dos direitos de uso dos recursos naturais, no sendo reconhecidas suas

    necessidades de sobrevivncia.

    Com relao ao uso dos recursos naturais, os efeitos deste processo se fazem sentir na

    especializao das comunidades no uso de determinados recursos. Uma srie de conexes

    com a flora e fauna so perdidas ou enfraquecidas, como exemplo de muitas atividades

    relacionadas com a cultura material e o uso de plantas e animais na medicina tradicional.

    Por outro lado, atividades que encontram um mercado legal ou ilegal, vo se

    fortalecendo, como a extrao do palmito, por exemplo, que passou a ser realizada em toda a

    regio e o aumento da explorao de alguns recursos pesqueiros como camares e ostras.

    Resumidamente, o quadro passa a apontar para uma situao de concentrao das pessoas

    da regio, convivendo em reas cada vez menores e utilizando de forma mais intensa

    determinados recursos naturais.

  • 21

    4. SITUAO ATUAL11

    Estima-se que na regio da APA de Guaraqueaba existam atualmente cerca de 60

    comunidades espalhadas pela poro continental e nas ilhas do esturio, totalizando

    aproximadamente 10.000 habitantes.

    As principais atividades desenvolvidas pela populao ativa so a pequena lavoura, a

    pesca, o extrativismo (principalmente de palmito, Euterpe edulis), o pequeno comrcio, os

    servios pblicos (sendo a Prefeitura Municipal de Guaraqueaba o principal empregador) e

    uma remanescente prtica de artesanato ou, mais adequadamente, produo de objetos

    utilitrios.

    Nos ltimos anos tm aumentado a importncia de atividades como prestao de

    servios temporrios (pedreiro, carpinteiro, transporte de material, etc.) e servios voltados

    para o turismo e para os veranistas (servios em pousadas e restaurantes, acompanhamento

    de pesca esportiva e comrcio de iscas, guias para trilhas, caseiros, barqueiros, etc.).

    A APA de Guaraqueaba considerada uma das regies mais pobres do Estado do

    Paran, segundo os ndices que so utilizados como padres para avaliao econmica, com

    uma economia formal de pequeno crescimento e baixos nveis de qualidade de vida.

    No existe saneamento bsico nem coleta de resduos slidos. Atualmente quase todas

    as vilas possuem energia eltrica e a maioria no conta com sistema de tratamento de gua. O

    acesso aos cuidados mdicos precrio e a maioria das vilas no tem posto de sade ativo.

    Os ndices de mortalidade infantil na regio esto entre os mais altos do pas, sendo as

    parasitoses uma das principais causas.

    A maioria das escolas atende a alunos da primeira quarta srie em turmas

    multisseriadas e enfrentam problemas de manuteno da estrutura fsica, falta de material

    escolar adequado e de qualificao dos professores (FIGURA 1.4). Cerca de 65% da populao

    considerada semi-analfabeta.

    11 Texto baseado principalmente nos trabalhos de IPARDES (1989); SPVS (1992a e b); IBAMA & SPVS (1995) e KARAM & TOLEDO, 1997.

  • 22

    FIGURA 1.4 - Escola Municipal em uma das comunidades estuarinas da APA de Guaraqueaba.

    A regio tem srios problemas fundirios e de conflitos pela posse da terra. A

    sobreposio de ttulos de propriedade leva a uma situao em que a rea dos imveis

    declarados junto ao INCRA quase o dobro da rea total do municpio. A grande maioria dos

    pequenos proprietrios locais no tm ttulo de propriedade das reas que ocupam.

    A maior parte dos imveis declarados so de propriedade de no residentes no local

    (fazendeiros de Curitiba e outros municpios), gerando um quadro em que atualmente mais de

    95% da rea da APA no pertence populao que nela habita e dela vive.

    O intenso processo de transformaes econmicas, sociais e culturais, que

    Guaraqueaba vem passando nas ltimas dcadas, teve influncias diretas nas relaes entre

    a populao e os recursos naturais. Atualmente a regio marcada por uma srie de

    problemas de gesto, desenvolvimento e conservao, com graves conflitos fundirios, entre

    as atividades econmicas e entre as prticas humanas e a fiscalizao.

    A introduo de novos processos sociais, decorrentes da "modernizao" e

    "desenvolvimento" da sociedade vem provocando alteraes nos hbitos, valores e modo de

    vida da populao local, nas suas concepes de natureza e conseqentemente, na forma de

    utilizao do espao e dos recursos naturais. O quadro atual aponta para uma crescente

    descaracterizao scio-cultural das comunidades e esta situao reflete-se em um novo

    desafio frente questo ambiental e cultural da regio.

    A constituio de uma APA visa conciliar a preservao dos recursos naturais e a

    manuteno e melhoria das condies de vida das populaes que habitam a rea. No entanto,

  • 23

    na prtica a realidade observada bastante complexa e a conciliao do desenvolvimento com

    a conservao dos recursos apresenta-se como um grande desafio, ainda carente de exemplos

    de sucesso.

    5. RELAES ENTRE A POPULAO E OS RECURSOS NATURAIS

    5.1. A ATIVIDADE PESQUEIRA

    A pesca no Complexo Estuarino da Baa de Paranagu descrita como essencialmente

    artesanal e de subsistncia, com a comercializao dos excedentes de produo nos mercados

    regionais (KRAEMER, 1982; CORRA, 1987; SPVS, 1992; ROUGEULLE, 1993; IPARDES, 1989a e

    b e 1995; IBAMA/SPVS, 1995 e 1996).

    A atividade pesqueira na regio pode ser dividida em dois segmentos produtivos

    distintos: pesca estuarina e pesca marinha/costeira (SPVS, 1992). A pesca estuarina

    realizada principalmente pelas comunidades das regies internas das baas e utiliza-se de

    apetrechos de pesca diversificados. realizada com pequenas canoas monxilas ("canoa de

    um pau s"), produzidas localmente, movidas a remo ou impulsionadas por motores de centro

    de baixa potncia (5 a 11 Hp) (FIGURA 1.5). A pesca marinha/costeira realizada por

    comunidades praieiras localizadas nas barras de acesso regio estuarina. Utiliza

    embarcaes maiores confeccionadas com tbuas e motores mais potentes (15 a 30 Hp).

    FIGURA 1.5 - Canoas de "um pau s" utilizadas na pesca estuarina na regio de Guaraqueaba.

  • 24

    Nos ltimos anos ocorreram muitas mudanas na atividade, tanto com relao aos

    apetrechos, tcnicas e embarcaes utilizados, quanto s espcies capturadas. As poucas

    informaes disponveis sobre a pesca artesanal no litoral do Paran e informaes obtidas

    junto aos pescadores apontam, por um lado, uma diminuio no volume de pescado capturado

    e intensificao da explorao de outros recursos pesqueiros (como camares, ostras e

    caranguejo) e por outro, para o agravamento da situao scio-econmica das comunidades

    pesqueiras tradicionais (IPARDES, 1989; CUNHA et al., 1989; SPVS, 1992; CORRA et al., 1997;

    KARAM & TOLEDO, 1997).

    A legislao pesqueira atual incidente na regio foi reunida e revista por CORRA

    (2000). Segundo o autor, esta apresenta um carter eminentemente regulamentar, carecendo

    de dispositivos controladores. No so estimulados estudos de biologia e avaliao de estoque

    pesqueiro. Os controles de desembarque no esto sendo realizados e no se tem estatsticas

    sobre a produo. Contribuem ainda para o descontrole do setor, as freqentes criaes,

    extines e fuses, com transferncia das responsabilidades entre os rgos governamentais e

    sobreposies do poder do estado e da unio. A legislao no exige nem relaciona requisitos

    bsicos para o exerccio da pesca.

    5.2. A ATIVIDADE AGRCOLA E PECURIA

    Os solos da regio de Guaraqueaba apresentam, em geral, uma baixa aptido

    agrcola. O sistema tradicional de cultivo era o "pousio", chamado na regio de "roa de

    coivara". O Cdigo Florestal proibiu o corte de estgios avanados de sucesso florestal e o

    uso de terras de vrzeas de rios (os mais propcios para agricultura na regio). Nas

    comunidades continentais, a diminuio da atividade agrcola foi causada por imposies

    legais, influncias de mercado, limitaes do uso das terras e conseqentemente, a

    impossibilidade de utilizar o sistema tradicional de cultivo (IPARDES & IBAMA, 1997).

    A rea ocupada com agricultura pouco significativa, mesmo nas localidades onde a

    produo relevante. Atualmente, a atividade voltada principalmente para subsistncia, com

    poucas culturas comerciais (IPARDES & IBAMA, 1997).

    Os principais produtos plantados so mandioca, banana, arroz, milho e feijo. A

    bananicultura tem maior representatividade na regio em termos de rea ocupada e envolve

    grande parte das comunidades continentais. Espcies frutferas como goiaba, jaboticaba,

  • 25

    carambola, laranja-grande e laranja-mimosa tambm so cultivadas. O cultivo da mandioca

    (Manihot esculenta) foi muito importante no passado, mas hoje est voltado principalmente

    para o consumo familiar e para a produo de farinha (IPARDES & IBAMA, op. cit.).

    A pecuria na regio representada principalmente pela bubalinocultura extensiva nas

    grandes e mdias propriedades (FIGURA 1.6). J nas pequenas propriedades comum a

    criao de galinhas, patos ou porcos para consumo familiar (IPARDES & IBAMA, op. cit.).

    FIGURA 1.6 - Criao de bfalos na regio de Guaraqueaba.

    5.3. EXTRATIVISMO E USO DAS PLANTAS NATIVAS

    Resultados de estudos etnobotnicos em comunidades continentais da APA de

    Guaraqueaba encontram-se relatados em LIMA (1992); SPVS (1992b e 1995), LIMA (1996) e

    LIMA et al. (2000) e nas comunidades adjacentes ao Parque Nacional do Superagi em MATER

    NATURA (1998). Estes trabalhos demonstraram que as populaes que habitam a APA de

    Guaraqueaba possuem grande conhecimento sobre as espcies da flora regional e utilizam-

    nas com diversas finalidades (uso medicinal, para alimentao, desdobro de madeira, artefatos

    de pesca, uso comercial, artesanato, uso silvicultural, ornamental, agrcola, rao animal,

    mgico-religioso, uso veterinrio, obteno de fibras e cercas vivas, entre outros).

    Cerca de 320 espcies de plantas foram citadas como de uso medicinal nas

    comunidades continentais da APA de Guaraqueaba e aproximadamente 240 espcies, nas

  • 26

    comunidades adjacentes ao Parque Nacional do Superagi. Destacaram-se o cip-milome

    (Aristolochia spp.), o hortel (Mentha sp.), a goiabeira (Psidium guajava) e o quebra-pedra

    (Phyllanthus spp.).

    A cultura material desta regio representada por muitos tipos de objetos utilitrios,

    produzidos pela populao a partir dos recursos naturais locais, como balaios e cestos (de

    taquara e cip), esculturas em madeira (usando principalmente a caxeta e representando

    elementos da fauna da regio, miniaturas de "farinheiras" e embarcaes, etc.), instrumentos

    musicais (violas, rabecas e pandeiros, utilizados na prtica do "fandango" - FIGURA 1.7),

    utenslios para uso domstico (peneiras, gamelas, etc.), cabos de ferramentas manuais,

    gaiolas, esteiras, chapus, piles, redes de dormir, equipamentos das "casas de farinha ou

    farinheiras" (como tipiti, prensas, cochos, etc.), apetrechos de caa e pesca (redes, canoas,

    remos, armadilhas de pesca, "cvos", etc.), as prprias casas e ranchos, coberturas de palha,

    entre outros. Em algumas vilas estas produes ainda persistem, particularmente nas mais

    isoladas e com menor insero na economia de mercado.

    FIGURA 1.7 - Violeiro tocando em viola de caxeta -prtica do fandango na regio de Guaraqueaba.

  • 27

    A extrao de madeiras nativas j foi uma importante atividade no passado, mas,

    atualmente, principalmente em funo da legislao em vigor, declinou bastante. Segundo

    levantamento de LIMA et al. (2000), a populao de Guaraqueaba reconhece cinco categorias

    de uso para as espcies madeireiras da regio: tbuas, vigas, cerne, fabricao de mveis,

    cabo de ferramentas. Dentre as madeiras mais citadas esto as da guaricica (Vochisia

    bifalcata), do guapuruvu (Schizolobium parahybae) e do guanandi (Calophyllum brasiliensis).

    O extrativismo do palmito (Euterpe edulis) uma atividade muito importante na regio

    atualmente. Segundo dados da SPVS (1995), mais da metade da populao de Guaraqueaba

    obtm a maior parte da sua renda desta atividade.

    O beneficiamento d-se, em geral, nas fbricas instaladas na prpria regio, algumas

    delas legais e muitas outras clandestinas. A falta de controle da atividade e a existncia de

    inmeras fbricas no regulamentadas dificultam a avaliao da real importncia da atividade e

    do impacto por ela causado nos ecossistemas naturais. O palmito considerado uma espcie-

    chave da Floresta Atlntica, por fornecer alimento para uma grande parcela da fauna.

    5.4. CAA E USOS DA FAUNA SILVESTRE

    A importncia da fauna silvestre, a extenso e os impactos da atividade de caa na

    APA de Guaraqueaba, bem como para a maioria das regies de Floresta Atlntica, no bem

    conhecida. A atividade de caa em Guaraqueaba foi discutida por ANDRIGUETTO FILHO et al.

    (1998), KRGER & NORDI (1998) e KRGER (1999).

    ANDRIGUETTO-FILHO et al. (op.cit.) observaram 19 espcies utilizadas como alimento na

    regio. Posteriormente, KRGUER (1999) realizou um diagnstico geral da atividade, registrando

    45 espcies como alvo de caa, com finalidade alimentar (para o qu foram citadas 36

    espcies), para xerimbabos (criaes em cativeiro ou em condies semi-domsticas, para o

    qu foram relacionadas 20 espcies) e comercial (14 espcies).

    Alm destas, o uso de animais silvestres na medicina local foi relatado para a

    comunidade do Tromom por FERNANDES-PINTO & CORRA (1998); para as comunidades

    adjacentes ao Parque Nacional do Superagi por FERNANDES-PINTO et al. (1998) e MATER

    NATURA (1998); e para comunidades continentais de Guaraqueaba por LIMA et. al. (2000).

    Os animais mais citados dentre os mamferos foram paca (Agouti paca), tatu (Famlia

    Dasypodidae), cateto (Pecari tajacu), veado (Mazama spp.), porco-do-mato (Tayassu pecari),

  • 28

    quati (Nasua nasua) e capivara (Hydrochaeris hydrochaeris) e, dentre as aves, macuco

    (Tinamus solitarius) e jacu (Penelope obscura). Os mtodos de caa mais utilizados so

    praticados com mundu, trepeiros, armadilhas com laos, covos e armas de fogo de diversos

    calibres.

    Existem evidncias de que a atividade de caa, apesar de proibida, continue sendo

    praticada ao longo de toda a regio da APA de Guaraqueaba. No entanto, esta parece ser de

    pequena escala e necessita de mais estudos para a correta avaliao de sua importncia para

    a subsistncia das populaes locais e impactos decorrentes (FIGURA 1.8).

    FIGURA 1.8 - Menino com periquitos na regio de Guaraqueaba.

    6. OS MECANISMOS LEGAIS DE PROTEO AMBIENTAL

    No final da dcada de 1970 e incio da dcada de 1980 a acelerada devastao dos

    ltimos remanescentes de Floresta Atlntica gerou uma enorme presso nacional e

    internacional, levando o governo brasileiro a reconhecer a importncia de criar mecanismos

    legais para garantir a preservao das reas restantes. Desta forma, a dcada de 1980 foi

    marcada pela incidncia de numerosos instrumentos de conservao, que incidiram direta e

  • 29

    indiretamente sobre Guaraqueaba.

    Alm das vrias legislaes federais (como o Cdigo Florestal, a Lei de Proteo

    Fauna e o Decreto Mata Atlntica, entre outros) e estaduais (como a Legislao de uso e

    ocupao do solo e o Macrozoneamento do litoral do Paran), o bom estado de conservao

    dos ecossistemas naturais da regio do litoral norte do Paran levou criao de vrias

    Unidades de Conservao. Atualmente h em torno de dez unidades federais e estaduais12.

    Nos ltimos anos, tm-se tambm somado a estas as Reservas Particulares do

    Patrimnio Natural (RPPN) e outras reas de reserva no oficiais, adquiridas por entidades

    ambientalistas, universidades e particulares (que atualmente j somam pelo menos seis na

    regio).

    A legislao ambiental que atualmente incide sobre a regio da APA de Guaraqueaba

    extensa e numerosa, sendo que com freqncia vrios instrumentos jurdicos sobrepem-se

    em uma mesma rea.

    As leis implementadas so, de uma forma geral, altamente restritivas com relao ao

    uso dos recursos naturais e as unidades de conservao foram criadas sem participao da

    populao local e sem levar em conta suas origens e relaes com o ambiente. Estes fatores,

    dentre outros, tm gerado ao longo dos ltimos anos conflitos com as comunida