universidade federal de pernambuco centro … ezin... · universidade federal de pernambuco centro...

411
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO CURSO DE DOUTORADO EZIR GEORGE SILVA FENOMENOLOGIA DA METAFÍSICA DO SER E DO TER: CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO FILOSÓFICO DE GABRIEL MARCEL PARA A EDUCAÇÃO NUMA PERSPECTIVA DA FORMAÇÃO HUMANA Recife 2014

Upload: ngodan

Post on 05-Jul-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

CURSO DE DOUTORADO

EZIR GEORGE SILVA FENOMENOLOGIA DA METAFÍSICA DO SER E DO TER: CONTRIBUIÇÕES DO

PENSAMENTO FILOSÓFICO DE GABRIEL MARCEL PARA A EDUCAÇÃO

NUMA PERSPECTIVA DA FORMAÇÃO HUMANA

Recife 2014

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

EZIR GEORGE SILVA

FENOMENOLOGIA DA METAFÍSICA DO SER E DO TER: CONTRIBUIÇÕES DO

PENSAMENTO FILOSÓFICO DE GABRIEL MARCEL PARA A EDUCAÇÃO

NUMA PERSPECTIVA DA FORMAÇÃO HUMANA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Educação. Orientador: Prof. Dr. Ferdinand Röhr Co-orientador: Prof. Dr. Joaquim José Jacinto Escola – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Portugal - UTAD

Recife 2014

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

Catalogação na fonte

Bibliotecária Giseani Bezerra, CRB-4/1738

S586f Silva, Ezir George.

Fenomenologia da metafísica do ser e do ter: contribuições do

pensamento filosófico de Gabriel Marcel para a educação numa

perspectiva da formação humana / Ezir George Silva. – Recife: O autor,

2014.

409 f. : il. ; 30 cm.

Orientador: Ferdinand Rohr.

Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de

Pernambuco, CE. Programa de Pós-graduação em Educação, 2014.

Inclui Referências.

1. Educação. 2. Filosofia. 3. Fenomenologia. 4. Formação Humana.

5. UFPE - Pós-graduação. I. Rohr, Ferdinand. II. Título.

370.1 CDD (23. ed.) UFPE (CE2014-87)

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

EZIR GEORGE SILVA

FENOMENOLOGIA DA METAFÍSICA DO SER E DO TER: CONTRIBUIÇÕES DO

PENSAMENTO FILOSÓFICO DE GABRIEL MARCEL PARA A EDUCAÇÃO

NUMA PERSPECTIVA DA FORMAÇÃO HUMANA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Educação.

Aprovada em de de 2014.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________ Prof. Dr. Ferdinand Röhr - 1º Examinador – Presidente

_________________________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Simão de Freitas – Examinador Interno

_________________________________________________________ Prof. Dr. André Gustavo Ferreira - Examinador Interno

________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Betânia do Nascimento Santiago - Examinador Externo

_________________________________________________________ Prof. Dr. Everaldo Fernandes - Examinador Externo

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

DEDICATÓRIA

Aos Mestres com meu carinho!

A Neide Valones, minha amiga e terna orientadora, pelo tempo dedicado, o

zelo-atenção ofertado e por sua presença insubstituível. Uma grande mulher e

educadora magnífica que tem encontrado, na audácia da confiança no humano,

a compreensão de que quem ensina põe-se à procura do homem, escuta o que

ele diz, observa o que ele faz e se interessa por sua palavra e ação, desejoso de

partilhar, com seus educandos, a busca pela ressignificação da nossa própria

humanidade. Este trabalho também é fruto da sua crença de que todo homem é

um devir e de que toda educação deve colocar-se em direção à transcendência.

Ao professor Ferdinand Röhr, orientador, amigo, conselheiro e parceiro... em

quem encontrei a encarnação do sentido de ensinar e o exemplo de presença

espiritual e humana, que se expressam através do testemunho vigoroso de seu

modo próprio de Ser, saber e fazer acadêmicos. Um educador brilhante, cuja

voz tranquila, nada insinuante, não transmite receita nem orientação, mas,

simplicidade sublime, maturidade acadêmica, experiência e sabedoria.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

AGRADECIMENTOS

Ao Divino, cujo mistério da transcendência não cessa no caráter objetivo do saber dogmático,

mas revela-se, como presença filosófico-existencial, por meio da liberdade e da consciência

que o homem tem de si e em sua forma de Ser no mundo.

À minha mãe, Maria das Neves (in memoriam), pelo exemplo de dignidade deixado, as

lágrimas e o suor derramados, o amor dedicado e a esperança partilhada através do tear de

uma existência, que, mesmo em face às situações-limite, pretendiam nos orientar sobre os

caminhos da vida e a importância do anelo pelo Absoluto, que se mostra como o suporte da

vida que clarifica o existir e nos põe em direção ao infinito.

Aos meus irmãos, Enéas Tonini, Eliel Teodoro, Eulalia Silva e Esdras Levi, que me apoiaram,

ajudaram e incentivaram diante dos receios, das mudanças e dos dramas existenciais

vivenciados por mim nos últimos anos. Obrigado por suas compreensões.

Ao amigo Joaquim José Jacinto Escola e toda sua família, pelo acolhimento e disponibilidade

durante o tempo em que estive na Europa: meu afeto e inesquecível lembrança.

Ao meu irmão-amigo Junior Elias, sua esposa Luciana e filhos; Caio e Juliana, por sua

dedicação, acolhimento, parceria e provisão, num tempo em que muitos me faltaram.

Aos amigos, Tony Emanuel e Malú Silva, pelo abraço, apoio e presença tanto nos momentos

difíceis como nos mais alegres de toda minha trajetória.

Aos amigos José Edson e Avanira Adenilce, pela amizade sincera e saberes partilhados.

Aos mestres e mestras do curso de pós-graduação da UFPE, por compartilharem comigo seus

conhecimentos e visões de mundo.

Aos colegas da turma onze (b), pelos abraços dados, o tempo vivido, as experiências

compartilhadas e as angústias inquietas, eivadas pela esperança de uma educação digna do

humano.

Às amigas e companheiras Delma Evaneide, Mônica Sales, Maria do Carmo e Nyrluce

Marília, pela parceria e apoio significativos.

Aos professores doutores Maria Betânia do Nascimento Santiago, Alexandre Simão, André

Gustavo e Everaldo Fernandes, pelo rigor acadêmico e serenidade intelectual com que

contribuíram para a concretização deste trabalho.

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

À Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru - FAFICA, lugar de vida, construção

de conhecimentos, novas aprendizagens e muitas alegrias.

À Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, pela possibilidade de poder viver momentos

significativos e experiências inesquecíveis.

À CAPES, pelos proventos.

Agradeço a todos e a todas que, com um gesto de carinho, uma palavra amiga ou uma atitude

de apoio, contribuíram para o resultado desta pesquisa.

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

“[...] quem não viveu um problema filosófico,

quem não foi inquietado pelo mesmo, não pode,

de modo algum, compreender o que este

problema significou para os que o viveram de

antemão: a este respeito as posições se invertem,

e a história da filosofia pressupõe a filosofia, e

não o inverso [...] A filosofia (educação)

concreta nasce somente de uma tensão criadora,

continuamente renovada, entre o eu e as

profundezas do Ser, da mais estrita e rigorosa

reflexão, fundada na experiência vivida até o

limite de sua intensidade”.

(Gabriel Marcel)

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

RESUMO

A temática da pesquisa em torno do pensamento filosófico de Gabriel Marcel inscreve-se nos discursos e debates sobre Filosofia, Educação e Formação Humana. Sua investigação consiste em examinar a possível interação entre os fenômenos estáveis e instáveis das estruturas das vidas pessoal e interpessoal do sujeito existente, a partir dos pressupostos da Filosofia da Existência e da Filosofia da Esperança. À luz desse interesse, buscamos indagar: como a abordagem filosófica de Gabriel Marcel se articula entre a descontinuidade da Filosofia da Existência e a continuidade da Filosofia da Esperança? De que modo a dialética do ter sobre o ser contribui para a despersonalização das relações humanas e do processo educativo? Qual a interligação que existe para Marcel entre intersubjetividade e formação humana? Que elementos da filosofia marceliana são relevantes para a educação? A forma como concebemos a nós mesmos, aos outros e ao mundo interfere nos resultados pretendidos pela prática pedagógica? De que maneira a prática pedagógica, com base nos pressupostos antropológicos da abordagem filosófica marceliana, pode contribuir para o desvelamento do ser em face de sua condição de sujeito inacabado? Neste sentido, Marcel procura problematizar as diferenças entre as concepções técnica-funcional e humano-relacional, por compreender que elas representam as tendências que reconhecem o conceito de formabilidade como o princípio que caracteriza a educação numa determinada época, como ato de produzir ou deixar desenvolver do humano/educando, para atingir o fim que se encontra essencialmente nele ou que foi pretendido em suas possibilidades. Este teórico busca analisar, ainda, as consequências da Filosofia da Esperança para a compreensão do homem na sua concretude, a partir das tensões políticas, fraturas sociais, problemas educacionais e da transformação da imagem problematizadora do homem, nos anos que antecederam, mediaram e sucederam as duas grandes guerras mundiais. Sua reflexão pretende destacar outras categorias que conseguem contemplar novas e duras experiências do homem a partir de si e sua realidade. Seu interesse não é descartar a forma da concepção do pensar filosófico clássico, como se esta estivesse superada, nem fundar um método filosófico-pedagógico da existência, mas procurar tematizar processos antropológicos e ontológicos, que consigam superar a recíproca alienação entre o pensar e a existência, visando seu inter-relacionamento e transcendência. Refletimos e discutimos também, a partir de Gabriel Marcel, sobre a consciência dos limites teórico-antropológicos da Filosofia da Existência e da necessidade de alargar sua compreensão sobre o humano e o modo de conceber sua formação, a partir das contribuições da Filosofia da Esperança. Nesta perspectiva, o trabalho teve como objetivo: analisar a abordagem fenomenológica da metafísica do Ser e do ter no Pensamento Filosófico de Gabriel Marcel e suas contribuições para a educação, numa perspectiva da formação humana. Do ponto de vista metodológico, optamos pela reflexão hermenêutico-ontológica, por compreendermos que a mesma está voltada para o tratamento interpretativo das informações e contribuições teóricas, à medida que visa desvelar as estruturas do desenvolvimento da existência do Ser e estabelecer uma íntima relação entre o sujeito pesquisador e sua pesquisa. A partir destas considerações, vimos que o diálogo entre as categorias da descontinuidade e da continuidade apontam para a construção de uma educação esperançosa, que encontra na confiança no Ser o fulcro de toda prática pedagógica que pretende a humanização dos homens em seus processos formativos.

Palavras-Chave: Filosofia. Fenomenologia. Educação. Formação Humana. Gabriel Marcel.

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

ABSTRACT The theme of the research on Gabriel Marcel's philosophical thought is part of speeches and discussions on Philosophy, Education and Human Formation. His studies are to examine the possible interaction between stable and unstable phenomena of the structures of personal and interpersonal lives of existing subject, from the assumptions of the Philosophy of Existence and the Philosophy of Hope. In the light of this interest, we seek to ask: how does Gabriel Marcel's philosophical approach articulate between the Philosophy of Existence discontinuity and the Philosophy of Hope continuity? How does the dialectic of having over being contribute to the depersonalization of human relations and the educational process? What is the interdependence that exists for Marcel between intersubjectivity and human formation? What elements of Marcel's philosophy are relevant to education? Does the way that we design ourselves, the others and the world affect the results proposed by the teaching practice? How can the teaching practice, based on anthropological presuppositions of Marcel's philosophical approach, contribute to better understand the self in the face of its incomplete subjectivity? This way, Marcel intends to discuss the differences between the technical-functional and human-relative conceptions once he understands that they represent trends which recognize the concept of form as the principle that identifies education in a given time, while the act of producing or allowing to develop of the human/student to achieve the purpose that is essentially in him, or that it was desired in his possibilities. This theoretician further tries to analyze the consequences of the Philosophy of Hope for the understanding of man in his exactness, from the political tensions, social breaks, educational problems and the transformation of man's questionable image, in the years that came before, during and after the two World Wars. His reflection intends to highlight other categories that can include man's new and though experiences from himself and his reality. His interest is neither to exclude the conception form of the classic philosophical thinking as if it were outdated nor to create a philosophical -pedagogical method of the existence, but to try to discuss the anthropological and ontological processes that can overcome the mutual alienation between the thinking and the existence, aiming at their interrelationship and transcendence. From Gabriel Marcel, we also reflect and talk about the awareness of the theoretical - anthropological limits of the Philosophy of Existence and the need to broaden its understanding of the human and the way to design his formation, from the contributions of the Philosophy of Hope. The study goal was to analyze the phenomenological approach of the metaphysics of Being and Having in Gabriel Marcel's Philosophical Thought and his contributions to education in the perspective of the human formation. Based on the methodological view, we chose the hermeneutic-ontological reflection by understanding that it is facing the interpretative information processing and the theoretical contributions, as it attempts to unveil the structures of the existence development of Being and establishes an intimate relationship between the researcher and his research. From these considerations, we have seen that the dialogue between the categories of discontinuity and continuity points out the constructions of a hopeful education which finds in the confidence in Being the fulcrum of the entire pedagogical practice that plans men's humanization in their formative processes. Key words: Philosophy, Phenomenology, Education, Human Formation, Gabriel Marcel

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

RÉSUMÉ La thématique autour de la pensée philosophique de Gabriel Marcel s’inscrit dans les discours et débats sur la philosophie, l’éducation et la formation humaine. Son investigation scientifique consiste à examiner la possible interaction entre les phénomènes stables et instables des structures des vies personnelles et interpersonnelles du sujet existant, à partir des présuposés de la Philosophie de l’Existence et de la Philosophie de l’Espoir. Dans ce cadre nous avons cherché à questionner : comment l’approche philosophique de Gabriel Marcel s’articule entre la discontinuité de la Philosophie de l’Existence et la continuité de la Philosophie de l’Espoir ? De quelle manière la dialectique de l’avoir sur l’être contribue-t-elle à la dépersonalisation des relations humaines et du procès éducatif ? Quel est le lien existant, selon Marcel, entre l’inter-subjectivité et la formation humaine ? Quels éléments de la philosophie Marcelienne sont-ils relevants pour l’éducation ? Le mode comme nous nous concevons nous-mêmes, les autres et le monde, intervient-il dans les résultats prétendus pour la pratique pédagogique ? De quelle manière la pratique pédagogique, fondée sur les présuposés anthropologiques de l’approche philosofique Marcelienne peut-elle contribuer au dévoilement de l’être vis-à-vis de sa condition de sujet inachevé ? Dans ce sens, Marcel cherche à analyser les différences entre les conceptions technique-fonctionnelle et l’humaine-relationnelle, en comprenant le fait qu’elles représentent les tendances qui reconnaissent le concept de la formalité tel un principe qui caractérise l’éducation d’une époque donnée, en tant qu’un acte de produire ou laisser développer l’humain/éduquant, pour atteindre le but qui se retrouve essentiellement en soi ou celui qui a été prétendu dans ses possibilités. Ce théoricien cherche encore, à analyser les conséquences de la philosophie de l’Espoir pour la compréhension de l’homme en son essence concrète, à partir des tensions politiques, des fractures sociales, des problèmes éducationnels et de la transformation de l’image problématisatrice de l’homme dans les années qui ont précédées, durées et succédées les deux grandes guerres mondiales. Sa réflexion prétend mettre en relief d’autres catégories qui contemplent de nouvelles et dures expériences de l’homme à partir de soi-même et de sa réalité. Son intérêt n’est pas celui d’écarter la forme de la conception de la pensée philosophique classique, comme si celle-ci était dépassée, ni celui de créer une méthode philosophique-pédagogique de l’existence, mais celui de chercher à systématiser des procès anthropologiques et ontologiques capables de dépasser la réciproque aliénation entre la pensée et l’existence envisageant son inter-relationnement et transcendance. Nous avons réfléchi et discuté aussi, à partir de Gabriel Marcel, à propos de la conscience des limites théorique-anthropologiques de la Phiilosophie de l’existence et le besoin d’élargir la compréhension sur l’être humain et le mode de concevoir sa formation, à partir des contributions de la Philosophie de l’Espoir. Dans cette perspective, ce travail a eu par but: d’analyser l’approche phénoménologique de la métaphysique de l’Être et de l’avoir dans la Pensée Philosophique de Gabriel Marcel et ses contributions pour l’éducation, dans une perspective de la formation humaine. Du point de vue méthodologique, nous avons retenu la réflexion herméneutique-ontologique, car nous l’apercevons tournée vers le traitement interprétatif des informations et des contributions théoriques, une fois qu’on vise à dévoiler les structures du développement de l’existence de l’Être et établir une relation intime entre le chercheur lui-même et sa recherche. À partir de ces considérations, nous avons vu que le dialogue entre les catégories de la discontinuité et de la continuité vers de la construction d’une educação esperançosa (éducation pleine d’espoir) trouvant dans la confiance de l’Être le soutien de toute pratique pédagogique qui prétend l’humanisation des hommes dans leurs procès formatifs. Mots-clès : Philosophie, Phénoménologie, Éducation, Formation Humaine, Gabriel Marcel.

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

SIGLAS

DH La Dignité Humaine et ses Assises Existentielles

DS Le Déclin de la Sagesse

EA, I Être et Avoir (Journal Métaphysique – 1928 – 1933), v. I

EA, II Être et Avoir (Réflexion sur l’irréligion et la foi), v. II

EAGM Entretiens Autour de Gabriel Marcel

EC Existentialism Chrétien

ECVQE En Chemin vers Quel Éveil ?

EMS El Misterio del Ser

EPC Ennsai de Philosophie Concrète

EPRGM Entretiens Paul Ricoeur et Gabriel Marcel

GPIPB Gabriel Marcel Interrigé par Pierre Boutang

HCH Os Homens Contra o Humano

HP L’Homme Problématique

HV Homo Viator

JM Journal Métaphysique

ME, I Le Mystère de l’Être (Reflexion et mystère), v. I

ME, II Le Mystère de l’Être (Foi et réalité), v.II

OS I Obras Seletas v. I

OS II Obras Seletas v. II

PAC Position et Approches Concrètes du Mystère Ontologique

PI Présence et Immortalité

PST Pour une Sagasse Tragique et son au-delà

RI Du Refus à l’Invocation

ST Ser y Tener

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14

CAPÍTULO 1 DESPERSONALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES HUMANAS NA

CIVILIZAÇÃO TÉCNICO-INDUSTRIAL ........................................................................ 56

1.1 Ambiente espiritual da sociedade técnico-industrial ................................................. 57

1.1.1 Civilização industrial e funcionalização humana ..................................................... 66

1.1.2 Abstração do ser e a desumanização do mundo ....................................................... 74

1.1.3 Técnicas de Aviltamento .......................................................................................... 87

1.2 Desumanização do humano face ao espírito de abstração ...................................... 101

1.2.1 Influência do conhecimento técnico no processo de degradação do humano ........ 101

1.3 Despersonalização das relações humanas ................................................................. 114

1.4 Os limites da civilização industrial: entre a condição subvertida do ‘homem da

barraca’ e a situação agônica do homem problemático ................................................ 118

CAPÍTULO 2 CARACTERIZAÇÃO ANTROPOLÓGICA E METAFÍSICA DO

PENSAMENTO FILOSÓFICO DE GABRIEL MARCEL ............................................. 128

2.1 Pensamento antropológico ......................................................................................... 129

2.1.1 Encarnação: o homem como ser de presença ......................................................... 133

2.1.2 Itinerância: o homem como ser a caminho ............................................................ 148

2.1.3 Liberdade: o homem como ser aberto .................................................................... 159

2.1.4 Intersubjetividade: o homem como ser de comunhão fraterna .............................. 180

2.1.5 Transcendência: o homem como ser voltado para o absoluto ................................ 195

CAPÍTULO 3 PENSAMENTO ONTOLÓGICO DE GABRIEL MARCEL: ENTRE O

MISTÉRIO E O DESVELAMENTO DO SER ................................................................. 209

3.1 Descrição metafísica do mistério do Ser ................................................................... 209

3.1.1 O mistério do Ser ................................................................................................... 209

3.1.2 A exigência concreta do Ser ................................................................................... 213

3.1.3 A indeterminação do Ser ........................................................................................ 216

3.2 Metafísica da Morte: da decisão existencial a eternização do Ser ......................... 220

3.2.1 O mistério da morte ................................................................................................ 223

3.2.2 O fascínio da morte ................................................................................................ 225

3.2.3 A possibilidade de transcender o desespero ........................................................... 229

3.2.4 O ter e a morte ........................................................................................................ 232

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

3.3 Da minha morte à tua morte ...................................................................................... 234

3.3.1 O ser-para-a-morte em Martin Heidegger .............................................................. 234

3.3.2 A morte como situação-limite em Karl Jaspers ..................................................... 240

3.4 A Morte do ser amado ................................................................................................ 246

3.4.1 A condição itinerante do Ser face à morte ............................................................. 249

3.4.2 A morte como fim do ser-com ............................................................................... 251

3.4.3 A morte como manutenção de uma recordação ..................................................... 255

3.4.4 A morte como afirmação da presença do tu ........................................................... 260

3.4.5 Experiência metapsíquica: a comunicação com o além ......................................... 260

3.4.6 A afirmação da presença ........................................................................................ 265

3.5 Metafísica da Esperança ............................................................................................ 268

3.5.1 Confiança e Fidelidade ........................................................................................... 268

3.5.2 Comunhão e cuidado .............................................................................................. 275

3.5.3 Desespero e esperança ............................................................................................ 283

CAPÍTULO 4 CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO DE GABRIEL MARCEL

PARA A EDUCAÇÃO NUMA PERSPECTIVA DA FORMAÇÃO HUMANA:

DESAFIOS E POSSIBILIDADES ...................................................................................... 290

4.1 Exigências educativas da formação humana na era da técnica e tecnologia ......... 292

4.1.1 Resgatar e responder à formação integral do ser humano ...................................... 292

4.1.2 Responder às necessidades da era da técnica e da tecnologia ................................ 300

4.1.3 Possibilitar a redescoberta da noção de sabedoria ................................................. 309

4.2 Perspectivas ontológicas e pedagógicas da relação entre educador e educando: da

formação humana à construção da consciência engajada ............................................ 319

4.2.1 Dimensão comunicativa: comunhão entre o eu e o tu ............................................ 319

4.2.2 Dimensão da presença: compromisso e participação ............................................. 324

4.2.3 Dimensões da paciência: serenidade e confiança ................................................... 329

4.2.4 Dimensões da vivência: diversidade e tolerância ................................................... 334

4.3 Papéis do educador-filósofo na era da técnica e da tecnologia ................................ 343

4.4 Desafios das tarefas pedagógicas ao fazer concreto: exigências da formação

humana .............................................................................................................................. 356

4.4.1 Desenvolver uma prática pedagógica geradora de sentido humano ...................... 357

4.4.2 Cultivar uma prática pedagógica promotora da dignidade humana ....................... 363

4.4.3 Vivenciar uma prática pedagógica que se move numa perspectiva do mistério e da

transcendência do Ser ...................................................................................................... 368

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 386

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 395

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

14

INTRODUÇÃO

Se é factível cumprir o tempo de existência como loureiro, de verde um pouco mais escuro que os outros verdes, e com folhas levemente onduladas nas bordas (como sorriso da brisa) -: por que então ter de ser homem – que se esquiva do destino e anseia por ele?... Oh! Não porque a felicidade exista, este precipitado ganho sobre perda iminente. Nem porque se queira que estaria igualmente no loureiro... [...] Aqui é o tempo do dizível, é aqui a sua pátria. Fala, pois, e proclama. Mais que nunca, ora perecem as coisas visíveis, porque aquilo que as desloca e substitui é um fazer sem alma. Um fazer sob crostas que por si mesmas vão romper-se Assim que a ação reponte de lá dentro e se imponha outro limite [...] Vê, eu vivo. De quê? Nem a infância nem o futuro mínguam... Inúmera, a existência transborda-me do coração.

(Rainer Maria Rilke1).

A Existência Humana é expressão da condição itinerante do Ser que jamais se define.

A existência, tomada na sua singularidade, jamais poderá perder-se em anormalidades,

abstrações, degenerações, perversões, caricaturas e/ou alienar-se de si mesma. Por fundar-se,

fazer-se e ressignificar-se em si mesma, “[...] a experiência existencial é praticamente

ilimitada, em extensão e profundidade” (JOLIVET, 1953, p. 350). A existência não se

identifica a partir de uma direção invariável, desconexa e difusa; nem sua apreensão se realiza

no reconhecimento de modelos positivos, padrões negativos e/ou estruturas fluídas do

pensamento. No desejo por desvelar a existência, o homem jamais poderá submetê-la a um

1 Nascido em Praga na Alemanha e falecido num sanatório suíço, Rilke uniu sua Poesia à Filosofia; e, assim,

expressou, em sua obra literária, a imagem de uma vivência dividida entre a angústia contínua face à miséria e o espanto do mistério da existência, que se desvelava perante a luz ardente da aspiração do ser, que deseja sempre ser-mais. A referência deste poeta, neste trabalho de pesquisa, se dá em virtude do valor que Gabriel Marcel atribui à sua produção poética. Para Marcel, Rilke é mais que um simples artista, ele “representa um testemunho de uma presença espiritual criadora, capaz de unir o Espírito as figuras e as imagens em sua obra se encarna” (MARCEL, 2005, p. 224). Sobre a relação de Rilke com sua filosofia, Marcel acrescenta: “para meu trabalho, a obra de Rilke representa, mais que um sistema construído por um especialista sobre bases pessoais [...] Aqui, pelo contrário, os fundamentos são grandiosos, quase inexploráveis onde o alcance das suas afirmações supera todos os limites que poderiam se atribuir de início” (2005, p. 225). Além dessas referências, Gabriel Marcel dedica um capítulo da obra O Homo Viator (2005) ao estudo da relação entre poesia e existência, nas produções de Rainer Maria Rilke.

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

15

conjunto de fórmulas e sistemas que pretendam concebê-la e/ou condicioná-la, a partir de um

mero quadro teórico, de injunções e concepções, que desarticule o Ser de sua própria

realidade.

O que orienta o processo de apreensão da existência é a experiência concreta do

existir. A situação metafísica fundamental do Ser2 é o que a torna original, irrepetível,

singular, subjetiva e única. A busca pela convergência entre o Ser e a Existência é o eixo

condutor e o ponto fulcral do Pensamento Filosófico de Gabriel Marcel. Sua investigação não

se dirige a uma totalidade pensada, mas ao modo como a condição de sujeito se articula com a

realidade que acredita participar, uma vez que seja ele mesmo. Há um esforço filosófico pela

construção de uma ‘filosofia concreta’ “[...] que se expressa e se orienta deliberadamente

contra todos os ‘ismos’” (MARCEL, 1951a, p. 11)3 e esquemas que pretendam confundir a

condição do Ser-pessoa com as ideias de função, de código, de coisa e/ou objeto.

Conforme Marcel (1951a, 1987), a compreensão do Ser não pode limitar-se ao

dualismo objetivista da oposição entre o sujeito e o objeto. Um não pode estar separado do

outro, porque o eu já é, em si, uma afirmação existencial daquilo que o Ser é4. A postulação

indissolúvel da unidade entre a existência e o existente. Queremos dizer de alguém que,

existindo no mundo e na forma de ‘ser-com-o-outro’ e ‘em-situação’, não pode assumir uma

postura de alienação, indiferença, encolhimento, isolamento e neutralidade perante seu

próprio existir. Sobre esta postulação defenderá Marcel:

Que a existência não possa ser tratada como um demonstrandum, é o que não se pode, mais a mais, deixar de perceber, por pouco que se observe, ou ela é primeira ou ela não é, - mas em nenhum caso pode ser vista como redutível, como derivada. A afirmação de que se trata aqui não é mais da ordem dos princípios que se encontram por via regressiva; os princípios não se desenrolam, com efeito, senão num mundo infra (ou supra), - existencial, de onde nós procuramos justamente evadir-nos. Pois, nós encontramo-nos aqui em presença de uma garantia que coincide estreitamente, que faz corpo com a realidade sobre a qual ela incide, realidade maciça, global como ela própria (MARCEL, 1927, p. 314).

2 Queremos destacar que a discussão sobre “a situação metafísica fundamental do Ser” será realizada no capítulo

dois desta pesquisa, mais especificamente, quando estivermos analisando a compreensão de Gabriel Marcel sobre a temática da ‘Encarnação: o homem como ser de presença’.

3 A tradução das referências do francês, do alemão, do inglês e do espanhol para o português é de responsabilidade nossa.

4 Conforme Marcel de Corte, a filosofia de Gabriel Marcel, enquanto análise da experiência existencial, “peut comporter un véritable enjeu, une option authentique, une volonté d’être ou de ne pas être. Sur le plan de l‘ontologie concrète et vécue, il doit même en être ainsi, mais parce que l’ontologie de l’existence suppose l’ontologie de l’essence” (CORTE, 1970, p. 91).

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

16

É movido por esta busca da não indiferença do Ser diante de si mesmo, dos outros

seres, do mundo e do mistério que o envolve, afeta e o transcende, que a presente dissertação

de doutoramento pretende pensar sobre a “Fenomenologia da Metafísica do Ser e do Ter:

contribuições do pensamento filosófico de Gabriel Marcel para a educação numa perspectiva

da formação humana”. Para além da mera pretensão articulativa de categorias e aproximação

de ideias, propomo-nos o desafio de investigar, no âmbito do universo da obra multifacetada

deste filosófico francês, o modo como o Ser se interroga filosoficamente, diante das

exigências e alterações dos processos de inovação e imposição da técnica, sobre o humano, a

respeito da sua existência e das possíveis implicações que a tecnocracia infunde sobre as

relações humanas e os desdobramentos das propostas e dos processos educacionais.

Nossa intenção é colocar em relevância a formação humana, em torno da qual as

relações homem-mundo, ser-existência, eu-tu, imanência-transcendência, professor-aluno,

sublinham a constante preocupação dos educandos, dos educadores e demais atores que

compõem o universo educacional. Queremos ressaltar que, diante das limitações da

empostação pedagógica do modelo educativo despersonalizante da técnica, em torno do qual

se foi erigindo a educação contemporânea, faz-se necessário destacar a importância dialógica

do paradigma existencial da educação5. A atitude interpeladora do Ser, que, em comunhão

5 A discussão mais ampla sobre a diferença entre as Pedagogias da Existência, Essencialista e Existencialista,

encontra-se no nosso trabalho de Dissertação de Mestrado intitulada “Pensamento Pedagógico de Otto Friedrich Bollnow Diante da Filosofia da Existência e da Filosofia da Esperança”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, na cidade do Recife, Brasil (SILVA, 2011). Como parte de sua abordagem, destacamos que a caracterização conceitual das perspectivas pedagógicas acima precisa ser considerada à luz dos respectivos contextos políticos, sociais, educacionais e espirituais dos seus principais agentes influenciadores. Na base de suas tensões descritivas, destacamos que durante as três primeiras décadas do século vinte, na Europa, uma imagem do homem bem definida orientou pais e mestres na tarefa de educar as novas gerações. A concepção antropológica acerca do humano, que apontava para um desenvolvimento paulatino, seguro e linear de sua formação, foi fruto de uma fé nas boas energias criadoras de um homem que se desenvolvia contínua e ininterruptamente para melhor. Em virtude do progresso tecnológico e científico alcançado, falamos sobre a evolução do tempo e das condições de vida, do cuidado com o corpo e sua higiene, do desenvolvimento psíquico, como fator de impulso para o aperfeiçoamento humano e prenúncio do surgimento de uma nova e melhor civilização. Com base nestas “certezas”, houve um investimento na formação da criança e na preservação da juventude, através de uma educação que visava despertar suas qualidades vitais e garantir a prevenção e solução dos problemas individuais e sociais da presente era. A tendência pela busca originária da essência do homem atrelada à crença de que estava surgindo uma nova e melhor sociedade, segundo Bollnow, “[...] acabou dominando o movimento pedagógico da década de vinte. Este movimento estava profundamente compenetrado da confiança no bom cerne originário no homem; cerne esse já existente. Restava só a tarefa de libertá-lo. Essa confiança era, ao mesmo tempo, a fé nas forças interiores do homem, forças que se desenvolvem a partir do seu próprio centro, segundo uma lei todo peculiar” (BOLLNOW, 1971, p. 15-16). No centro desta compreensão pedagógica estava a concepção Essencialista de homem, onde o professor partia de uma definição pré-concebida sobre o que constituía o humano e o que se queria fazer dele; e/ou formar nele uma ideia universal sobre o que era o homem e o modo como devia ser sua educação. “Neste sentido a tarefa da educação consiste em atuar da mesma maneira em todos” (SUCHODOLSKI, 2002, p. 15), visando um mesmo fim. O objetivo era procurar estabelecer, a partir de um único modelo ou padrão educacional, uma prática que pudesse, não só proteger as crianças das más influências, como corrigir a juventude das ideias e comportamentos que desorientam a vida humana e comprometem o bem-estar social. Assim como em outras épocas, o fim e o modo de pensar a

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

17

educação foram determinados pela concepção que os homens tinham deles mesmos e de seus ideais formativos. No caso da Alemanha, todo ideário pedagógico acabou desmoronando nos anos que mediaram e sucederam as duas Grandes Guerras. A visão confiante que se tinha no homem e o otimismo que se projetou com relação ao futuro, por meio da educação, acabaram perdendo vigor e vitalidade. Na base deste arrefecimento antropológico e pedagógico encontraram-se, conforme Bollnow, pelo menos dois fatores: “De um lado, o mundo da técnica moderna, mais realista, mais duro, com seu clima e a experiência do trabalho, revelou os limites de um desenvolvimento pleno e global das forças do homem [...] Do outro lado, a verificação e o conhecimento dos condicionamentos hereditários arrefeceram o entusiasmo pela educação, reduzindo seu ideal a proporções mais modestas” (BOLLNOW, 1971, p. 17). As modificações sugeridas não foram suficientes para responder aos dilemas e conflitos existenciais dos anos trinta. A relação entre vida e vivência, que até então, tinha sido o fundamento do movimento pedagógico de outrora, acabou se constituindo em algo sem sentido diante das perplexidades e ambiguidades da situação humana, dos anos que sucederam a década de 1945. Se antes, a necessidade era dar atenção ao núcleo interior do homem, em virtude de seu estado de prostração social, fruto do fracasso da sua relação com o mundo exterior, agora ficou a compreensão de que, diante da desilusão da antiga confiança nas boas energias humanas, o mais necessário era procurar colocar limites na “má natureza” do homem, através do resgate dos valores e das posturas educacionais do passado, “do assim chamado o ”bom velho” [...] que procurava libertá-lo dos entulhos” (1971, p. 13) e dos abismos da própria natureza humana. “Ao menos em princípio, como possibilidade, era, pois, necessário reconhecer no homem uma realidade fundamentalmente demoníaca e má. E uma vez que ela se desencadeara numa tão terrível proporção, fazia-se iminente a necessidade de primeiro pôr diques a essas energias nefastas, de contê-las de fora. Assim, o princípio ditado pela concepção das boas energias inatas no homem, que só deveriam ser canalizados, foi substituído pelo princípio da repressão externa” (1971, p. 18). Diante destas duras exigências, o que vimos foi o enfraquecimento do entusiasmo pedagógico, uma ausência de elã educativo que assinalou um grande déficit em ideias e impulsos educacionais. Observamos uma condição de cansaço e esgotamento teórico-educacional, face à visão problemática e problematizadora do homem. É a partir desta dura realidade que Bollnow chama a atenção para a necessidade de pensar sobre: o que é o homem? Será que a visão que temos do humano é suficiente para assimilar suas experiências pessoais e existenciais? Diante da cultura da barbárie, é possível conceber uma visão fechada e definida do homem? Para este teórico, ao lidar com estes questionamentos, o educador se vê confrontado por uma dupla tarefa: “A primeira, consiste em examinar as categorias pedagógicas tradicionais e fazer translúcida a sua implicação nas pressuposições antropológicas bem especiais. E a partir dessa elucidação, sem a intenção de rejeitar as categorias pedagógicas tradicionais, demarcar-lhes os limites de aplicação e validade. A isto se associa a tarefa seguinte, de buscar novas categorias pedagógicas que consigam assimilar novas e duras experiências do homem” (BOLLNOW, 1971, p. 19). Movido por estas inquietações, em torno da transformação da imagem do homem, Bollnow propõe analisar a contribuição da Filosofia da Existência para o pensar e o fazer educacional. Como cabe à educação a tarefa de contribuir para conduzir o homem a uma nova ordem, Bollnow, em sua análise sócio-educacional, compreende que a Pedagogia precisa contemplar novas abordagens sobre o humano e o modo de conceber sua formação. Deste modo, ele anuncia o pressuposto de que toda educação deve se pautar apenas num “atuar técnico”, que pretende “dar” ao educando uma certa estrutura permanente e estável de desenvolvimento, através da simples transmissão e comunicação de conhecimentos. Por não concordar com esta perspectiva educacional, Bollnow deseja mostrar que as temáticas discutidas, em torno dos processos estáveis e instáveis da vida humana, podem contribuir para a relação entre a Pedagogia e a Filosofia Existencial; e podem acenar, ainda, para um encontro necessário e possível, que pretende a superação da alienação e dicotomia que as separava. Em sua concepção, as causas dessa recíproca ruptura consistem basicamente em dois motivos: “Em parte, reside na própria pedagogia. Esta, em seu estado peculiar de esgotamento, se achava pouco disposta a receber impulsos completamente novos, principalmente em se tratando de estímulos que não se deixavam enquadrar dentro das concepções tradicionais [...] A Filosofia da Existência desenvolveu, a partir do seu próprio cerne, uma concepção do homem, que parecia, em si, incompatível com a ideia da educação” (1971, p. 21). Para Bollnow, a pressuposição pedagógica de que a formação humana fundamenta-se no princípio da constância e da continuidade é negada pela Filosofia Existencial. Com base no olhar existencial, quando afirma que a vida humana acontece dentro e/ou a partir de processos descontínuos e instáveis, este teórico fala da postura questionadora da Filosofia da Existência sobre o homem, focando sua imagem existencialista, na qual não há nenhuma estabilidade; e passa a questionar: “até onde a ideia dos processos descontínuos é também aplicável aos fenômenos pedagógicos?” (BOLLNOW, 1971, p. 28). No cerne de sua natureza antropológica, a Filosofia Existencial nega a ideia que há, no homem, uma essência que se forma artesanal, ou organicamente, através de uma progressão de contínua realização. Conforme Gadotti, “A pedagogia da existência toma o homem como ele é, não como deve ser, em função de uma essência imutável [...]. A pedagogia da existência é uma pedagogia biófila, uma pedagogia do sentido da vida, da esperança, do amor [...]” (2004, p. 22-23).

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

18

com o outro, é arrancado ao espaço anônimo e à massa, desvela-se, enquanto sujeito de

relação humana, de construção de sentido e condição inacabada.

A busca pela construção de uma abordagem pedagógica da Filosofia da Esperança

consiste em procurar apresentar outras categorias ou virtudes que consigam contribuir para

levar o Ser a encontrar um fundamento, que envolva outras possibilidades antropológicas que

possam conduzir o homem a sair do “aventureirismo existencial” (BOLLNOW, 1962, p. 38),

para a coerência de si, o desvelamento de sua vivência e a ressignificação do seu possível

processo formativo-educacional. Vislumbramos um olhar humano e educativo “[...] que não

se dirige a uma inteligência abstrata ou anônima, senão a seres individuais e concretos, nos

quais importa despertar uma certa vida profunda da reflexão, através de uma autêntica

anamnèse, no sentido socrático do termo” (MARCEL, 1951a, p. 9).

Muito mais do que cumprir uma exigência de caráter meramente acadêmico, a

pesquisa, em torno do Pensamento Filosófico de Gabriel Marcel, constitui uma resposta a um

imperativo espiritual, acadêmico e profissional, desencadeado pelas nossas vivências

pedagógicas, leituras, aulas e discussões sobre a relação que há entre o homem, a formação

humana e o desvelar do seu mistério e sentido ontológico. Consideramos um conjunto de

inquietações vivenciadas ao longo do Curso de Mestrado e aprofundadas no Curso do

Doutorado, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de

Pernambuco - UFPE, na cidade do Recife – PE, Brasil.

Contudo, para além da pretensão meramente formal, há três razões que me motivam à

busca pelo estudo do pensamento filosófico marceliano. Primeiro, por encontrar em Gabriel

Marcel os pressupostos filosóficos do Pensamento Pedagógico de Otto Friedrich Bollnow6.

Bollnow7 foi um pensador influente das Ciências Humanas, na Alemanha. Como físico,

6 A análise sobre as compreensões e contribuições acadêmico-pedagógicas de Otto Friedrich Bollnow encontra-

se na Dissertação de Mestrado citada acima. 7 Otto Friedrich Bollnow nasceu em 14 de março de 1903, em Stettin e faleceu em 07 de fevereiro de 1991 em

Tübingen, na Alemanha. Cursou o primário em Anklam e graduou-se em Matemática e Física na Universidade de Göttingen. Filho do professor Otto Bollnow (1877 - 1959), seguiu a mesma carreira do pai, começando a lecionar na Escola da Reforma Educacional de Oldenwaldschule, onde viria, tempos depois, a tomar a decisão de recorrer à Filosofia e à Pedagogia, na intenção de aprofundar sua prática. Em 1925, doutorou-se em Física, com uma tese sobre a Teoria da Estrutura dos Cristais. Durante os anos de 1927 a 1929, retomou seu trabalho sobre A Filosofia de F. H. Jacobis, vindo a receber, anos depois, em 1931, a habilitação para ensinar na Universidade de Göttingen, que ficava no sul do estado da Baixa Saxônia, onde permaneceu durante sete anos. Em virtude da tomada do poder, por parte do Partido Nazista e da consequente mudança da democracia para a ditadura (1933-1945), Bollnow teve que deixar, em 1935, a Universidade, só voltando a ensinar no ano de 1938, como professor adjunto de Psicologia e Educação na Universidade de Giessen onde foi nomeado, em 1939, Professor Catedrático. Após a Segunda Grande Guerra Mundial (1945), Bollnow ensinou, de 1946 a 1953, na Universidade de Johannes Gutenberg, na cidade de Mainz, capital e maior cidade da Alemanha, do estado de Renânia-Palatinado. A partir de 1953, ele assume o lugar de Eduard Spranger, passando a ocupar as cadeiras de Filosofia e Pedagogia, em Tübingen, onde lecionou até a sua aposentadoria, em 1970. Em 1954

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

19

pedagogo e filósofo, sua produção coloca-se como uma importante contribuição para os

campos da Arquitetura, da Fenomenologia, da Hermenêutica, da Ecologia, da Filosofia e da

Educação. Sua investigação filosófica caracteriza-se por uma abordagem hermenêutico-

fenomenológica que busca encontrar, na existência e nas potencialidades humanas, seu

principal objeto de análise, visando contribuir para a fundamentação de um pensamento

pedagógico voltado para o homem, em sua integralidade e concretude.

O diálogo, entre a noção de integralidade do Ser e de concretude da existência

humana, é o aspecto influenciador, mais marcante, de Marcel sobre a abordagem pedagógica

de Bollnow. A pressuposição de que a formação do Ser se dá através das formas contínuas e

descontínuas da vivência humana é, fundamentalmente, uma compreensão filosófica

marceliana. Assim, Bollnow expõe os aspectos constituintes da Filosofia da Esperança (1962;

MARCEL, 2003), com base nos conceitos de confiança, paciência, ânimo, gratidão, relação

amorosa - o Eu e o Tu - segurança e felicidade, que apontam para uma realidade que nasce de

uma relação mútua, que enriquece a todos e que acaba servindo como ponto de partida

essencial para o alargamento das contribuições da Filosofia da Existência (BOLLNOW, 1946,

1971; MARCEL, 1927, 1940). Esta abordagem que Bollnow desenvolve em torno da

Esperança e da Confiança no Ser é a mesma que vai trazer consequências fundamentais para a

relação entre o eu, o outro e a vida dentro e fora da escola.

Ao falar sobre a posição ética fundamental do Existencialismo e as perspectivas

ontológicas, de ampliação, da Filosofia da Esperança, Bollnow afirma que tem se apoiado

“[...] na convincente exposição [...]” (1962, p. 125) da abordagem fenomenológica de Gabriel

Marcel, “[...] cujas importantes investigações, vão, exatamente, em sua direção [...]” (1962, p.

28). Mais ainda, declara “que o ponto central de suas considerações está situado no conceito

de ‘esperança’. Ao dirigir-se, com esperança e confiança, acreditava ter encontrado, olhando

ganhou o Prêmio Nobel da Física por seu trabalho sobre Teoria Quântica e manteve, desde 1958, intenso intercâmbio científico e acadêmico com Japão, Coreia e a cultura oriental. No ano de 1975, recebeu o título de Doutor Honorário em Estrasburgo, além do Prêmio Lessing – uma homenagem cultural e literária – que lhe foi concedido pela Maçonaria Alemã. Bollnow foi um escritor fecundo. Ao longo de sua trajetória acadêmica, escreveu cerca de trinta oito (38) obras e mais de quatrocentos (400) artigos7 e resenhas sobre Educação e Filosofia. Entre suas principais produções estão: A Filosofia de F. H. Jacobis (1933), Dilthey: uma introdução a sua filosofia (1936), Filosofia Existencial (1946), A Compreensão: ensaios sobre a teoria das ciências humanas (1949), Nova Segurança: o problema da superação do existencialismo (1955), A objetividade das Ciências Humanas e da Essência da Verdade (1956), A Filosofia de Vida (1958), O Homem e o Espaço (1958), Natureza e Mudança das Virtudes (1958), Pedagogia e Filosofia da Existência (1958), Essência e os Caminhos das Virtudes (1959), Filosofia da Esperança (1962), O Ambiente Educacional (1964), O Existencialismo Francês (1965), Abordagem Antropológica em Pedagogia (1965), Linguagem e Educação (1966), Introdução à Filosofia do Conhecimento (1970), Estudos Sobre Hermenêutica I e II (1982-1983), Entre Filosofia e Educação: aulas teóricas e ensaios (1988), entre outros.

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

20

para o futuro, o fenômeno central e fundamental do homem, que dá base a toda vida humana”

(1962, p. 14).

Ao investigar o pensamento filosófico e pedagógico de Bollnow, deparamo-nos com

as vias e possibilidades de pesquisas, sobre Gabriel Marcel, que poderiam ser estudadas e

desenvolvidas. Estamos falando da necessidade de explicitar os pressupostos da Filosofia da

Esperança, enquanto caminho de contribuição para uma compreensão, mais profunda, das

forças espirituais construtoras do homem, em meio às exigências, dificuldades e desilusões

que lhe assediam. Deste modo, destacamos que a amplitude e a profundidade do pensamento

e da produção acadêmica deste importante filósofo francês acenam para uma gama de temas,

ideias, discussões e elaborações que poderão se mostrar fecundas e promissoras dentro dos

cenários acadêmico e educacional brasileiros.

Discutimos a ausência, entre nós, de um trabalho de doutoramento, sobre Gabriel

Marcel, uma das significativas referências da Filosofia Contemporânea e um dos poucos

influenciadores estudados, nas universidades brasileiras, do Pensamento Pedagógico de Paulo

Freire8. Numa análise das nossas produções, não encontramos, no Brasil, na perspectiva da

8 O interesse por compreender a construção do Pensamento Pedagógico de Paulo Freire assinala a necessidade de

destacar, além de outras, as influências do humanismo existencial em sua proposta pedagógica. Movido pelo desejo de construir uma pedagogia da e para a emancipação político-social dos homens, o educador brasileiro recorre às contribuições do Pensamento Personalista e Humanista-Existencial. Mais propriamente, além de outros, destacamos as contribuições de Emmanuel Mounier, que encontra, em Gabriel Marcel, uma de suas fontes de inspiração, e para quem “a liberdade humana deve ser intrépida” (MARCEL, 1962, p. 32); e de Jacques Maritain (1955), quando procura vincular a relação entre as concepções de consciência e de democracia. A partir desses olhares, vamos reconhecendo por que, para Freire, a educação precisa se ocupar de desenvolver uma ação transformadora das relações políticas e sociais, através de uma práxis que não assujeita e domestica o homem, mas, que o liberta cultural, educacional e existencialmente. Além destes, destacam-se as ideias de Soren Kierkegaard (1988, 1990, 2010), quando reflete sobre o sentido da existência humana, de Martin Heidegger (2008, 2009a) e Jean Paul Sartre (1987). Todavia, ao considerar os homens como seres de possibilidade e relação, Freire assume (1996, 1992, 2005, 2006), ao contrário da perspectiva angustiante de Heidegger e da niilista, de Sartre, uma posição otimista e esperançosa a respeito da existência humana. Neste sentido, o educador pernambucano acata a concepção existencial de que os seres humanos, por serem inacabados e históricos, estão sempre se fazendo indeterminadamente. No entanto, ao usar esta concepção do humano, Paulo Freire a redimensiona, à medida que procura destacar o processo de ressignificação da existência humana, a partir de um projeto político pedagógico, que pretende articular a relação homem-mundo à luz das condições social, política e educativa (FREIRE, 1974). Ao reconhecer que a situação do homem é de ser-no-mundo, Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 2005), lança mão das categorias da transcendência e da situação-limite, de Karl Jaspers (1965, 1971). Todavia, a compreensão freireana é de que estas implicam na existência, à medida que exigem, dos homens, as respostas através de sua ação histórica e política, de modo autêntico, crítico e participativo. Mais ainda, cabe ressaltar que a noção de situação-limite em Freire possui um sentido político-social, enquanto Jaspers a toma numa perspectiva da dimensão existencial e espiritual do Ser. Sobre a relação com o pensamento de Gabriel Marcel, podemos afirmar que é legítimo reconhecer que Paulo Freire não só conhece como cita e dialoga com muitas compreensões e categorias marcelianas. As referências ao filósofo francês, por parte do educador brasileiro, aparecem em algumas de suas obras: Uma Educação Para a Liberdade (FREIRE, 1974), Educação e Mudança (FREIRE, 1979) e Educação Como Prática da Liberdade (FREIRE, 1967). Contudo, a presença de Marcel não só se acentua nestas obras, como aparece ao longo da discussão e construção das noções freireanas de Afeto, Comunicação, Liberdade, Esperança, do Ser e do Ter, entre outras. Conforme Mendonça, “ao dizer que a vocação ontológica do ser humano é de sujeito e não de objeto, Freire aborda a questão do Ser e do Ter, categorias fundamentais em

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

21

Educação, nenhum trabalho específico deste importante pensador francês, mais

especificamente, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de

Pernambuco - UFPE, nos Núcleos de Teoria e História da Educação, Formação de Professores

e Educação e Espiritualidade.

Consideramos, ainda, relevante a abertura, no contexto do Núcleo de Educação e

Espiritualidade, de um espaço dedicado ao pensamento de um dos filósofos mais importantes

da Europa e da língua francesa; um pensador, por meio de quem é possível trazer ao leitor

Marcel e temas de grandes reflexões; e passa a considerar que os homens e as mulheres são seres essencialmente de compromisso histórico e, portanto, de intervenção. Porém, esse compromisso e essa possibilidade de intervenção somente se concretizam na medida em que esses sujeitos, sendo seres situados e temporalizados, reflitam criticamente suas próprias condições espaço-temporais” (2008, p. 28). Essas concepções freireanas são marcas significativas do neosocratismo existencial de Gabriel Marcel (1927, 1951a, 2003). Para Marcel, “o ter é tudo aquilo que é objetivável, é a coisificação do ser. O ser é anulado à medida que o ter acentua a si mesmo em detrimento do ser. Para que isso não ocorra, o ser deve orientar o ter, fazendo dele instrumento para o ser, pois o ser, para ele, é participação, é amor, é esperança. Desse modo, para Marcel, o plano do ter é ‘o plano da objetividade, da problematicidade, da técnica e, portanto, o plano da alienação, da angústia, do desespero [...]. Dessa forma, Freire caminha na mesma direção reflexiva da filosofia existencial, ao considerar a condição humana a partir da sua própria vivência no mundo. E, nesse sentido, concebe a educação como instrumento necessário à luta pela superação das condições existenciais desumanizantes” (FREIRE, 2008, p. 30). Segundo Adriana Puiggrós, constata-se a influência de Marcel nas reflexões de Freire sobre a Liberdade, à medida que suas origens filosóficas remetem “[...] a sua luta para sair do mundo no qual estava preso, [...] um desejo por ultrapassar o imediato visando alcançar um conjunto de valores, a compreensão que a pessoa é o não inventariável. O fator que transforma a educação num plus, que transcende a relação entre educador e educando e condição para a possibilidade de produzir uma nova cultura” (PUIGGRÓS, 1999, p. 95, 106). A compreensão freireana de que a consciência transitivo-ingênua pode evoluir para um estágio de consciência crítica encontra fundamento teórico-filosófico na ideia de consciência fanatizada, alienada e massificada de Gabriel Marcel (1951b). Mais ainda, conforme Mendonça, para Freire, “a consciência crítica se caracteriza exatamente pela superação da condição de ingenuidade em que se encontra e passa a ter uma capacidade de apreensão da realidade e dos problemas sociais de maneira profunda e argumentativa” (MENDONÇA, 2008, p. 100). Refletindo sobre a categoria da Comunicação, Ivanilde Apoluceno de Oliveira nos diz que “Freire retoma de Karl Jaspers, Mounier e Gabriel Marcel o diálogo, a comunicação como factor primordial da relação humana e a condição para o ser humano formar-se como pessoa. O diálogo para Freire é o momento em que os seres humanos se encontram para refletir sobre a realidade, sobre o que sabem e o que não sabem, como conscientes e seres comunicativos que são” (OLIVEIRA, 2003 apud ESCOLA, 2011b, p. 23). Conforme Escola, “Paulo Freire, na pegada de Gabriel Marcel (1927), Karl Jaspers, Emmanuel Mounier, Martin Buber, afirma o ser humano como ex-sistente concreto, ser situado (MARCEL, 1927, p. 136, 144-5; FREIRE, 1974, p. 8; 1979, p. 61), temporalizado, pugnando infatigavelmente pela afirmação da sua identidade sem cair no isolamento e solipsismo, característico da modernidade. Tanto em Marcel como em Freire, é no e pelo encontro que se dá a passagem do ele ao tu, lugar fundamental da construção da identidade de educadores e educandos, espaço privilegiado de afirmação da educação como processo contínuo de comunicação e libertação” (ESCOLA, 2011b, p. 203-204). Como podemos perceber, a concepção humanista da educação de Paulo Freire também encontra, nas interpelações filosóficas de Gabriel Marcel, seu fundamento, inspiração, presença e eco ressonante. Ao tratar da relação eu-tu e eu-isso, tanto o filósofo francês como o educador brasileiro, recusam-se a considerar o outro como uma coisa, um objeto, um isso, que deve ser manipulado e tratado de qualquer modo e/ou submetido a qualquer condição. Movidos pelo prisma da comunicação, tanto um como o outro, procuram acentuar o valor da subjetividade do Ser para a ressignificação das vivências individuais, das relações humanas e dos processos sócio-educativos. Esta é uma visão de educação que faz do diálogo autêntico, a marca de uma Filosofia da Esperança (MARCEL, 2003; BOLLNOW, 1962), que respondendo as exigências da Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 2005), pode contribuir para capacitar o Ser a transcender aos liames da opressão e da sua própria condição existencial. É uma experiência, de encontro e comunicação entre os homens (SILVA, 2008, 2012), que se coloca a favor da construção de uma Pedagogia da Esperança que, pretendendo salvaguardar a dignidade das vivências formativas, se anuncia como portadora da beleza, da dignidade e da honra de Ser humano.

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

22

brasileiro a possibilidade de articular os grandes temas da Filosofia Clássica com algumas

inquietações da sociedade contemporânea. Propomos uma leitura que possa relacionar as

compreensões Filosóficas e Dramatúrgicas de Gabriel Marcel com as áreas da Educação, da

Formação Humana e da Espiritualidade.

Neste sentido, a pesquisa procura, por um lado, colocar em confronto a relação entre o

Ser e o Ter, o Homem e a Técnica, o Mistério do Ser e a Exigência Ontológica e, por outro

lado, articular a vivência formativa do homem ao processo de ressignificação das relações

humanas e das experiências socioeducativas do Ser. Pretendemos não apenas tomar estas

categorias como princípios dialógicos e unidade da abordagem filosófica marceliana, mas,

equacioná-las como pressupostos possibilitadores de construção de uma ontologia existencial

da educação e da formação espiritual de educandos e educadores. Pensamos, ainda, em

oportunizar a construção de uma proposta de pesquisa em torno da Filosofia de Gabriel

Marcel, em suas significativas e não muito conhecidas contribuições para o Campo da

Educação9.

9 A experiência do estágio doutoral, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, na cidade de Vila Real,

Portugal, no período de fevereiro a agosto de 2013, trouxe inúmeras contribuições e/ou implicações para a produção, qualidade e visibilidade da pesquisa proposta. Sobretudo, no momento em que a pesquisa estava caminhando para o processo de qualificação e definição de seus principais rumos e objetivos. Em virtude da escassez e limitação de material do próprio Gabriel Marcel e sobre ele, tanto no Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE como no Brasil, em geral, consideramos que a imersão neste contexto e o contato com outros pesquisadores e agências que estudam e se debruçam sobre o pensamento filosófico marceliano constituiu-se como algo de fundamental importância para nosso desenvolvimento e imprescindível para nosso aprofundamento e qualidade epistêmico-filosófica desta pesquisa, sobretudo, por tratar-se de um espaço onde, ao longo dos anos, dezenas de trabalhos nos níveis de Graduação, Mestrado e Doutorado têm sido dedicados à busca pela compreensão e contribuição do Pensamento Filosófico de Gabriel Marcel para as áreas da Filosofia, Metafísica, Dramaturgia e Educação. Como aluno-pesquisador, pude perceber o grande potencial e as múltiplas possibilidades que o contato com este espaço acadêmico proporcionou aos estudos, reflexões e discussões que venho fazendo desde a elaboração do projeto de pesquisa proposto. O acesso, ainda que restrito, às obras raras deste importante pensador, impulsionou-me e impulsiona-me ao aprofundamento dos estudos e ao desejo de socializar suas ideias em meu país. Esta foi uma consolidação que se deu através da publicação de trabalhos científicos e participação em eventos; mais ainda, por meio do levantamento do estado da arte da pesquisa e do contato direto com as produções, anteriormente realizadas, em torno da filosofia marceliana. No nível de Graduação, as primeiras obras foram realizadas por TAVARES, Maria Salette (1948): Aproximação ao pensamento concreto de Gabriel Marcel (Trabalho de Licenciatura apresentado na Faculdade de Letras de Lisboa). Este foi um trabalho que recebeu do próprio Marcel uma carta-prefácio, onde ele expressa sua gratidão pelo interesse demonstrado em torno do estudo do seu pensamento. Encontramos, ainda: PORTO, Maria de Loudes Lopes (1956), que produziu O mistério do mal em Gabriel Marcel. (Trabalho de Licenciatura apresentado a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra); NAZARÉ, Maria Tereza da Paiva (1962), que escreveu o Ensaio sobre a antropologia de Gabriel Marcel (Trabalho de Licenciatura apresentado à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra). No nível da Pós-Graduação, realizaram-se as seguintes pesquisas: POMBO, Maria de Fátima (1992), Corporeidade e transcendência: ensaio sobre Maurice Merleau-Ponty e Gabriel Marcel (Dissertação de Mestrado apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra); ESCOLA, Joaquim José Jacinto (1993), A intersubjetividade em Gabriel Marcel (Dissertação de Mestrado de Coimbra); PINELA, António Alfredo Baptista (1995), A fundamentação metafísica da esperança em Gabriel Marcel (Dissertação de Mestrado apresentada na Universidade de Lisboa); PISSARRA, Mário do Espírito Santo (1988), Perspectivas antropológicas no pensamento de Gabriel Marcel (Dissertação de Mestrado apresentada na Faculdade de Letras na Universidade de Coimbra); AZEITEIRO, Fernando Manuel Domingues (1992), Gabriel Marcel: da

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

23

Gabriel Marcel traz, assim, significativas contribuições para a reflexão das relações

horizontais e verticais que estão presentes e atravessam o modo como o homem concebe a si

mesmo, sua educação e forma de ser no mundo. As análises deste autor são originais e

representativas de um tempo histórico que retratava uma dimensão de ciência; abordam a

condição do Ser e sua itinerância a partir dos aspectos científicos, epistemológicos,

filosóficos, dramatúrgicos, musicais, pedagógicos, sociais, políticos e humanos. Sua

perspectiva, a respeito do homem e sua formação, tem influenciado filósofos, estadistas,

profissionais, professores, religiosos e estudiosos de várias áreas10 e gerações11 no Ocidente e

angústia à esperança (Dissertação de Mestrado apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra); RAINHO, António Ângelo Leite (1955), L’existentialisme de Gabriel Marcel (Tese de Doutorado apresentada à Universidade de Toulouse); TRI, Lêthành (1959), L’Idée de participation chez Gabriel Marcel: superphénoménologia d’une intersubjectivité existentielle (Tese de Doutorado apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Friburgo); LE VAN, Ran (1976), Autrui dans la pensée de Gabriel Marcel (Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Friburgo); VICENTE, Jesus Rios (1992), Tiempo y consciencia em la filosofia contemporanea: análisis y compreensión em la filosofia de Gabriel Marcel (Tese de Doutorado apresentada na Universidade da Coruña); CARMONA, Feliciano Blázques (1998), La filosofia de Gabriel Marcel: de la dialética à la invocacion (Tese de Doutorado apresentada à Universidade Complutense de Madrid); ESCOLA, Joaquim José Jacinto (2011), Gabriel Marcel: comunicação e educação (Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto). Na análise e estudo destes trabalhos, é importante ressaltar que nenhuma das temáticas apresentadas acima põe em confronto o Pensamento Filosófico de Gabriel Marcel com as perspectivas interdimensionais da Educação, da Espiritualidade e da Formação Humana do Ser.

10 A amplitude das áreas de influência da abordagem filosófica de Gabriel Marcel pode ser percebida não só pela quantidade de pesquisas que, ainda hoje, são suscitas no contexto acadêmico europeu. Sua contribuição também alcançou outros continentes, o que se comprova, por exemplo, através da interface que seu pensamento mantém com os matizes filosóficos africanos. Sobre a relação entre “Philophophie marceliene et philosophie africaine” Pére Pontier Biajila Ifumba, directeur du Centre Spirituel Monseigneur Grison, afirma que: “Le néo-socratisme marcelien pourrait intéresser au plus haut la philosophie africaine. Une telle rencontre serait fructueuse pour la recherche philosophique en Afrique. Nous nous contentouns d’en quelques pistes. Dans une Afrique en profonde mutation, Marcel rapelle au philosophie africain sa veritable mission: il devra incarner l’instance critique de la vie sociale; il a le devoir de penser les demarches de l’Africain en quête du mieux-être; c’est lui qui éclair le quotidian par une réappropriation de la réflexion secunde. Ice, Marcel redone du tonus à la demarche philosophique” (IFUMBA, 2011, p. 111-112).

11 A obra “Revolução da Esperança: rearmamento moral em ação” (MARCEL, 1961) representa uma carta-resposta, enviada a Roger, filósofo francês, a Paul, pastor protestante e ao padre católico, Thierry. Nesta correspondência Gabriel Marcel procura explicitar as bases de sua compreensão sobre o homem e suas relações no e com o mundo. O livro-experiência demonstra por que, para Marcel, a Esperança e a Fé no humano podem transbordar, da existência individual e das relações entre os homens, para influenciar a esfera política e os rumos de suas determinações político-sociais. Ao discutir sobre a condição do homem moderno, Marcel procura, através do contato pessoal com um chefe de uma tribo africana, um portuário brasileiro, uma francesa socialista, um industrial canadense, um piloto japonês, um monge budista, um anarquista nigeriano e dois políticos do alto escalão do Japão e das Filipinas, mostrar de que modo os seres humanos, independente de suas culturas, crenças, posições e lugares onde vivem, podem se unir e contribuir para a construção de uma cultura de paz. O teórico procura mostrar, ainda, a maneira como cada homem e mulher deve engajar-se a favor da luta pela dignidade humana e contra toda forma de expropriação, alienação, opressão, segregação, discriminação, injustiça e desigualdades políticas, sociais, religiosas, educacionais e espirituais; e, também, a forma como a soma de todas as experiências e expressões de ‘esperanças’ pode colocar-se como caminho de uma cooperação possível e, verdadeiramente, pacífica entre as nações e os povos de todos os continentes.

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

24

no Oriente12.

Provocado por este senso da vivência itinerante do Ser, entre o não-ser e o vir-a-ser,

reconhecemos que as contribuições de Marcel são indeléveis, à medida que buscam a

tematização da dimensão do homem como ser-para-si, que se desvela enquanto ser-com-os-

outros, a partir de sua realidade e em conexão com o mundo, com suas nuanças, desafios,

possibilidades e transformações paradigmáticas.

É diante desta configuração histórico-contextual que pretendemos explicitar as bases

sobre as quais se assenta o Pensamento Filosófico de Gabriel Marcel. Nossa intenção é

demonstrar como sua análise hermenêutico-fenomenológica, a respeito do existir humano,

pode contribuir para o alastramento das concepções educacionais que pretendem a educação e

a formação humano-espiritual do Ser. Recorremos a estas reflexões, no âmbito de uma

sociedade marcada pelo primado do progresso tecnocientífico sobre o humano, do ter sobre o

ser, do político sobre a educação e da reprodução de saberes sobre o desvelamento do que é o

homem e suas possibilidades.

Assim, consideramos pertinente, de início, trazer um breve histórico da vida pessoal e

acadêmica deste pensador francês, num contexto de adversidades espirituais, políticas,

econômicas, sociais e educacionais, por compreendermos que o estudo não apenas servirá

para nos aproximar do seu pensamento, como poderá ampliar o diálogo, que implica na forma

como nos vemos e participamos das transformações que envolvem o humano, a educação, a

sociedade e sua forma de ser no e diante do mundo.

Gabriel Marcel nasceu em 7 de dezembro de 1889 e faleceu em 8 de outubro de 1973,

na cidade de Paris, na França. Como filho de Henry Marcel e Laura Meyer, Marcel provém de

uma família de tradição alemã e ascendência judia, por parte de sua mãe. Seu pai, “[...] é um

dos homens mais cultos de sua geração, como se diz, um herdeiro da melhor tradição [...]”

(PARAJÓN apud MARCEL, 2002a, p. XI). Foi um estadista, embaixador na Suécia e atuou

no serviço diplomático, tanto como Conselheiro de Estado, quanto na condição de

Embaixador da França, em Estocolmo. Autor de livros importantes, um deles sobre pintura

francesa no século XIX, destacou-se, principalmente, como Diretor da Escola de Belas-Artes,

12 Um estudo sobre a presença do pensamento de Gabriel Marcel no Oriente foi apresentado por Machico Wada,

com o título “Gabriel Marcel au Japon”, no Colloque organisé par la Bilbliothèque Nationale et l’Association Présence de Gabriel Marcel, em setembro de 1988, em Paris - França. O texto procura descrever as experiências vividas por Marcel nas duas visitas que fez ao Japão, em 1957 e 1966. Além disso, o artigo também apresenta o caráter das conferências que Marcel proferiu aos universitários de Tokyo e Kyoto, especificamente, sobre o modo como o Japão, enquanto um dos países mais industrializados do mundo, enfrenta os desafios provocados pelas incidências das técnicas sobre o humano, suas relações interpessoais e seus respectivos processos educacionais e formativos.

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

25

na Biblioteca Nacional e Administrador geral dos Museus Nacionais Franceses. Um homem,

que o filho recorda, “[...] como alguém que professava uma elevada moral [...]” (GIORDANI,

2009, p. 178) e que alcançou proeminência por ser “[...] sincero, trabalhador e estudioso

incansável” (PARAJÓN apud MARCEL, 2002a, p. XI).

Na infância, Gabriel Marcel conviveu com as ausências de seu pai, a experiência de

ser filho único e a perda de sua mãe, em 15 de novembro de 1893, quando lhe faltavam três

semanas para completar quatro anos. Criado numa atmosfera de ternura, tensão e solicitude,

desde muito cedo, conversa, por falta de companhia, com irmãos, personagens e amigos

imaginários. Vemos, então, um conjunto de vivências por onde já se esboça sua vocação

dramatúrgica; e o processo de cultivo da imaginação, que o leva, aos oito anos de idade, a

escrever suas primeiras obras teatrais13: Júlio e, depois, Camuse, em 1897. Isto explica, em

parte, porque Marcel fez das categorias da existência-concreta e da relação intersubjetiva o

mote central, tanto da sua crítica literária, como da sua produção teatral e pesquisa filosófica.

Olhando retrospectivamente para a primeira fase da vida de Gabriel Marcel,

compreendemos que outros dois fatos influenciaram decisivamente sua trajetória e

pensamento: a austeridade da sua madrasta e a experiência de um regime escolar inumano.

Sobre a convivência com sua tia materna, Margarida, com a qual seu pai se casou, Marcel

recebeu, desde a fase da adolescência, uma rígida educação. “Sob pretexto de lhe ‘formar’, ou

melhor, de lhe ‘endurecer’ o caráter” (HUISMAN, 2001, p. 80), sua tia-madrasta se viu

obrigada a vigiar e dominar, em todas as áreas e aspectos, a vida do menino.

Movida pela concepção antropológica protestante, quando afirma que é necessário

procurar colocar limites na ‘má natureza’14 do homem, Margarida enxergava, “[...] na mais

severa e rigorosa disciplina, o único meio seguro de controlar o desenfreio das paixões e

garantir uma convivência feliz entre os homens” (LENZ, 1955, p. 200). Sobre esta forma de

13 Marcel descreve a força e o caráter das influências que seu universo infantil exerceu sobre seu pensamento

filosófico e sua produção de dramatúrgico, dizendo: “Senti desde muito cedo uma espécie de embriaguez, não somente ao evocar seres diferentes de mim, mas ao identificar-me completamente com eles, servindo-lhes de intérprete [...] Sempre achei que os personagens de teatro, que eu gostava de fazer dialogar, me fizeram às vezes, no princípio, de irmãos e irmãs de que se sentia tanta falta. Outra circunstância contribuiu sem dúvida para o desenvolvimento de meu talento dramático. Sentia-me inclinado, desde a infância, a observar, entre os que compunham o meio familiar em que vivia, divergências de pontos de vista e de temperamento que me obrigaram a tomar prematuramente consciência dos insolubilia que, muitas vezes, as relações humanas aparentemente mais simples comportam” (TROISFONTAINES, 1966, p. 236).

14 O uso da expressão ‘má natureza’, neste contexto, faz referência à concepção Cristã-protestante dos Reformadores acerca da Educação (LUTERO, 2000), quando diz que a natureza humana é totalmente depravada por causa do pecado original e que o homem é incapaz de renovar-se por si só; observamos um esforço pela criação de uma educação moral que pudesse levar o homem à conversão aos princípios cristãos e à construção de uma sociedade equilibrada.

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

26

exigência e controle, é dito que ela instituiu um costume, na relação com Gabriel Marcel, que

logo o perturbaria muito:

Ela exigia que a cada noite Marcel se confessasse contando diante dela tudo o que havia feito durante o dia, e tudo que havia pensado! O menino não tinha direito nem a uma parcela mínima de intimidade, nem a nenhum tipo de privacidade para si mesmo, de nenhuma forma; a tia queria e dizia que deveria saber de tudo (PARAJÓN apud MARCEL, 2002a, p. XV).

Por ser filho único, Marcel foi excessivamente protegido e cercado por e com

exagerados cuidados. Um grupo de precauções infinitas, onde o menino não apenas tinha que

conviver com uma atmosfera de escrúpulos e discursos morais, como devia procurar seguir

um conjunto de regras e medidas de higiene profiláticas. “O horror aos micróbios e impurezas

permaneceram gravados nele, como repugnância a toda experiência externa, que lhe parecia,

assim, sumamente, suspeitosa e impura” (LENZ, 1955, p. 201).

Ao falar sobre sua educação e tempos de estudos, Marcel afirma que “[...] guarda

‘péssima recordação’ dos seus anos escolares. Que não suportava aqueles exercícios de

composição, com suas repetições e supostas rivalidades” (DAVY15, 1963, p. 22). O ensino

abstrato, impositivo, impessoal, desumano, objetivo, técnico e desconectado da realidade,

trouxe, segundo o nosso autor16, muitos prejuízos e malefícios tanto à sua saúde física como

ao seu desenvolvimento humano-espiritual (MARCEL, 1947, 2004).

Por organizar-se em torno de uma atmosfera de rivalidade, competitividade e

classificação, o sistema de ensino17 de sua época estava ancorado numa visão limitada acerca

15 A obra “Un Filósofo Itinerante: Gabriel Marcel (1963)” é fruto da convivência pessoal de M. M. Davy com

Gabriel Marcel. Como seu aluno e amigo, Davy teve a oportunidade de conviver com Marcel, ouvir suas palavras, testemunhos e experiências. Por isso pode retratar, desde a vida infantil até as mais profundas doutrinas, um Marcel extremamente próximo, íntimo, acessível e livre na forma de ser e pensar a existência, em toda sua trajetória e concretude.

16 Cf. RA, p. 301 “Notre absurde système scolaire, qui pour n’être pás entièrement nocif, devrait comporter comme contre-partie chez les parents une certaine dose d’indifférence et de scepticisme, exerça au contraire à plein dans mon cas ses effets maléfiques. Mes parents avaient été dês élèves extrêmement brillants; aussi attachaient-ils à mes notes, à mes places une importance démesurée. Dans ces conditions, chaque composition devenait um drame; je croyais sentir que c’était au fond chaque fois pour lês miens une occasion de me remettre em question – puisqu’on ne semblait guère distinguer entre moi et mon rendement scolaire. Certes, j’exprime cela aujourd’hui en un langage que je n’aurais pas eu alors à ma disposition; mais je suis tout à l’origine du souvenir détestable que j’ai gardé de mes années de lycée; et aussi du jugement que je porte encore à présent sur um régime scolaire qui péche par une méconnaissance radicale de la réalité et surtout du mode de croissance des êtres; aussi, bien que j’aie été ce qu’on appelle ‘un excelent élève’, que j’ aie abtenu à peu tous les prix de la cinquième à la philosophie, je n’hésite pas à penser que ces années ont correspondu pour moi à un véritable arrêt de développment sur le plan intellectuel, et que physiquement elles ont contribué à me faire la médiocre santé qui a été la mienne depuis cette époque”.

17 “El sistema de enseñanza se organizaba en torno de una rivalidad entre los condiscípulos que debían luchar semana tras semana por arrebatarle al compañero el puesto preferente que ocupaba. Gabriel tenía hambre de

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

27

da relação entre homem-mundo, educador-educando e ensino-aprendizagem; numa

inconciliação, que rechaçava o poder criador do Ser, condicionava a vocação ontológica dos

homens e aprisionava a construção do saber aos processos de memorização, repetição e

recepção passiva da informação. Neste sentido, o próprio Marcel afirma, na fase adulta, que o

sistema pedagógico18 da era moderna, não só na França como nos países que se creem mais

desenvolvidos, encontra-se numa profunda crise. Sobre o caráter da crise na educação na era

moderna, Marcel acrescenta:

[...] é dito muitas vezes que se comenta sobre a imprudência de perguntarmos sobre o que haverá de ser, de alguma maneira, dos espíritos dos meninos depois de passarem por um sistema de ensino tão penoso, isto é, o resultado positivo do esforço que lhe são exigidos, onde o sistema inteiro está caindo aos pedaços, pois é absolutamente certo que para a maior parte das matérias o resultado é nulo e sem sentido (MARCEL, 1951a, p. 45).

Importa destacar que, apesar da saúde frágil, das experiências de perda, solidão e dos

tempos de escola no l'Institut Carnot, em Paris, na França, Marcel fora beneficiado por um

ambiente familiar permeado por vasta cultura. Graças às inúmeras viagens que realizou com

seu pai, visitou as cidades de arte e frequentou os mais conceituados meios políticos e

literários de sua época. Aos 30 anos, casou-se com Jacqueline Boegner, que era musicista e de

família protestante. Esta experiência conjugal foi tão significativa que, tempos depois, Marcel

escreveu um ensaio sobre o ‘mistério familiar’ (MARCEL, 2005). Ao longo de toda vida,

manteve constantes contatos com importantes círculos de escritores, artistas, músicos e

teatrólogos. Em meio ao risco de fechar-se em si mesmo, ele toma, desde o período da

adolescência, a atitude existencial de abrir-se ao outro, ao mundo e às outras concepções e

realidades que o afetam e transcendem.

A experiência de vida de Gabriel Marcel foi sempre intensa. Além de viagens e

estudos, dedicou-se também à música. Sobre a importância da música em sua formação, nosso

autor chega a afirmar “[...] que esta tinha em sua vida um papel comparável ao da oração

sobre os místicos. Tratava-se de uma ‘comunhão’ que tem para ele um valor indubitavelmente

reflexionar sobre cuanta realidad se hallaba a su paso, pero le tenía horror al esfuerzo, a su juicio inútil, por vencer a outro en aquella competencia interminable. Y lo peor era que su padre y su tía compartían aquel criterio. La tía llegaba a verdaderos extremos de ansiedad el día de la semana en que se hacían públicos los resultados (PARAJÓN apud MARCEL, 2002a, p. XX, XXI).

18 No que concernem, inclusive, às escolas confessionais, Marcel, num artigo intitulado Le Viol de L’ intimidad, redigido, em 1964, para o Congresso dos Direitos Humanos, problematiza: “deixo aqui de lado a questão, tão delicada, de saber em que medida e em que condições podem as escolas confessionais proteger, todavia, as crianças, e, sobretudo, os adolescentes, frente ao acossar de tentações de que temos falado”.

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

28

sagrado” (TROISFONTAINES19, 1966, p. 235). Na compreensão de Marcel, a música é

caminho para se chegar ao mais profundo da condição do Ser. “É espírito de conciliação que,

como raio de luz vindo de outra parte, vem e repousa sobre nosso desencanto e nossa

angústia” (DAVY, 1963, p. 60). É ponto de acesso e encontro com o que há de mais elevado e

sublime no humano e suas relações20.

Desde a adolescência, Marcel adquiriu o hábito de improvisar melodias ao piano. Uma

experiência espiritual que o levou a confessar “[...] que se liberta quando realiza estes

exercícios, a ponto de experimentar uma felicidade incomparável, uma vez que se sente em

comunhão com todos os criadores do universo” (PARAJÓN apud MARCEL, 2002a, p. XVI).

Sua produção musical visou sempre “[...] colocar em evidência a significação humana e o

valor espiritual” (BOUILLARD, 1968, p. 116).

A música é, no entendimento marceliano, “[...] uma ciência fundamental [...]”

(DAVY, 1963, p. 59), um modo de busca e apreensão do real que o integra, envolve, provoca

e o ultrapassa. É um caminho de diálogo e conexão entre as dimensões física, emocional,

sensorial, mental e espiritual do Ser, por onde as manifestações abstratas da realidade se

expressam e se encarnam à medida que adquirem forma de ritmo, melodia e som. Conforme

Sciacca, no pensamento de Gabriel Marcel

[...] a música é luminoso comentário [...]. Pois o fato de sentir é a condição misteriosa de toda a sensação, o imediato inicial; sentir não é receber, senão participar imediatamente. A sensação é metafisicamente ininteligível e irredutível ao pensamento. É o sentir fundamental que torna possível a mesma sensação como captação, e é este o dado inobjetivável e infranquiável, a ‘situação’ em que o eu participa simpaticamente no universo. O fato de sentir é o fato de participar no universo que me cria. A sensação é, num certo sentido, ‘apreensão mística’ do real, fundamento de toda experiência e do mesmo pensamento (SCIACCA, 1947, p. 274).

19 Roger Troisfontaines é um dos mais genuínos intérpretes e comentadores do Pensamento Filosófico de Gabriel

Marcel. Escreveu a obra publicada em dois volumes: ‘De L’Existence à L’Étre; La Philosophie de Gabriel Marcel’ (1953a, 1953b). Como estudioso profundo e autor de uma das mais densas e extensas obras sobre a filosofia marceliana, recebeu, do próprio Marcel, a declaração, que consta na carta-prefácio do seu livro, de ter escrito um livro claro, acessível e perfeitamente fiel às elaborações do seu pensamento.

20 Cf. EC, p. 294-295 “J’ incline à croire que si la pensée d’un monde supra-sensible domina en un certain sens tout mon développement spirituel, j’ai toujours profondément répugné à me figurer ce monde comme un univers d’archétypes. Je dirais aujourd’hui que l’idée que j’ai de plus en plus tendu à m’em faire a toujours été aussi peu optique que possible. Il est infiniment probable que ma passion pour la musique a fortement contribué à m’empêcher d’imaginer le supra-sensible, si on admet qu’imaginer, c’est au moins à la limite projeter une forme de dans un espace. D’où le sentiment de vérité fondamentale que j’éprovai lorsque je pris contact avec la théorie schopenhauérienne de la musique”.

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

29

Assim como outros filósofos, alguns músicos exerceram grande influência sobre a

produção musical de Marcel: um grupo de compositores, desde os românticos alemães até os

russos e espanhóis, começando por Beethoven e Mozart, passando por Rameau e Fauré e até

Debussy. Na palestra intitulada ‘Le Théâtre et la Musique’, em junho de 1924, Marcel

comenta sobre Mozart que

[...] a extraordinária sedução que ele exerce sobre o olho sensível consiste em que sua arte se nos apresenta como um jardim perdido, irremediavelmente perdido. Mozart aparece longe e perto de nós, por estar tão longe de nós, de nossa existencial atual, é que ele aparece tão próximo dos nossos corações: como ocorre como nossa infância, na qual estamos tão ligados e ao mesmo tempo a sentimos definitivamente perdida [...]. Há uma eternidade em Mozart [...] (DAVY, 1963, p. 63).

Apesar da admiração de Gabriel Marcel por Mozart, nenhum outro compositor o

marcou mais do que J. S. Bach. Sobre Bach ele declarou: “[...] creio tê-lo sempre conhecido e

amado [...]. Lembro-me ter comprado, com a idade de dezesseis anos, sessenta ou oitenta

Cantadas que me pus a decifrar e a tocar” (MARCEL apud TROISFONTAINES, 1966, p.

238). Em Bach, nosso autor dizia haver “a perenidade de uma fé ou de uma substância

espiritual, senão perenidade de um canto jubiloso, de uma súbita iluminação” (DAVY, 1963,

p. 63), uma fonte a jorrar de grande inspiração, que o incitava a lutar contra tudo aquilo que

pretendia aviltar o homem e sua dignidade. Neste sentido, ao regressar de um admirável

concerto de Bach, disse Marcel: “[...] há dias, vinha eu pensando: eis o que nos restituiu um

sentimento considerado perdido; mais do que um sentimento, uma certeza: a honra de ser

homem” (MARCEL, 1951b, p. 225).

A música no pensamento marceliano representa um manancial de vívido esplendor e

profundo saber; um rio cujas margens do pensamento, à medida que jorra se renova e se

ressignifica em e para além de si mesmo. A produção musical é uma fonte potencial do Ser,

que se orienta em direção à liberação e/ou à desmaterialização do pensamento. “A música deu

ao meu pensamento a moldura mais autêntica” (MARCEL apud TROISFONTAINES, 1966,

p. 234). Na visão de Marcel, a música medeia a relação entre o Ser, o sentir, o pensar, o falar

e o fazer. Por ela, o homem poderá encontrar a força do sentimento, que o capacitará a sair do

fortuito para o primordial; e do relativo, para o Absoluto. Assim ele poderá encontrar seu

caminho; a coerência de si.

A música, em Gabriel Marcel, é uma voz tranquila, nada insinuante. Algo que não

pressupõe transmissão de receita, afirmação de chavões, nem orientação. É simplicidade

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

30

sublime, experiência e sabedoria, que aponta para um caminhar em busca do desvelar da

consciência de si e do mistério da existência. Através da música, Marcel indica que é possível

ao homem aprender e apreender, expressar-se e silenciar, ensinar e aplainar os caminhos da

própria vivência existencial. “A música nos eleva e nos alegra, ela nos transmite uma

mensagem de felicidade plena e contribui, por multiplicadas formas e vezes, para fazer-nos

homens” (PARAJÓN apud MARCEL, 2002a, p. XVI).

A estética musical21 de Gabriel Marcel está estreitamente ligada às experiências

contínuas e descontínuas de sua existência, ao seu teatro e à pesquisa filosófica. Sobre a

relação entre dramaturgia22, existência e filosofia, é dito, pelo próprio autor, que esta forma de

expressão do pensamento, não só trazia consolo à sua solidão, como contribuía para a

ampliação e construção do olhar itinerante de sua filosofia. Servia, sobretudo, para alargar

seus horizontes conceituais a respeito da condição humana e de suas interfaces

multidimensionais (MARCEL, 1958, 2002a). León Mirlas, ao fazer uma descrição

panorâmica do teatro moderno, refere-se à dramaturgia marceliana, declarando que

O teatro de Gabriel Marcel, como podia esperar-se do filósofo existencialista francês, é mais do que um nada intelectual. Poderíamos chamá-lo o teatro da consciência porque lhe interessam, sobretudo, os estados da consciência. Trata-se, por conseguinte, de dramas subjetivos, de dramas cuja ação se desenrola virtualmente dentro do espírito de seus personagens. A ação externa apenas é um eco ou resultante do verdadeiro conflito. Seja ao encarar problemas sociais, sejam os conflitos das gerações, Gabriel Marcel aborda o tema da mesma forma, subjetivamente. A preocupação ética é para ele o fundamento, e isto é, desde já, muito louvável; porque geralmente seu teatro, apesar de sua hierarquia literária, é de escassa teatralidade e se presta muito bem para ler. Em certo modo, poderia dizer-se que Gabriel Marcel é o sucessor no Teatro Francês de François de Curel, porque há que convir em que o autor de ‘Le Repas du Lion’ colocava mais humanidade em seus personagens e sabia injetar em cada um dos seus dramas um par de situações de segura eficácia cênica; era, em suma, o mais humano do teatro (MIRLAS, 1956, p. 115).

21 Cf. L’esthétique musicale de Gabriel Marcel. Cahier nº 2-3, Présence de Gabriel Marcel, Paris, Aubier, 1980. 22 Um conjunto de informações biográficas e pormenorizadas da produção teatral de Gabriel Marcel achar-se-á

na obra “Un Filósofo Itinerante: Gabriel Marcel (1963)”. Este texto é fruto da convivência pessoal de M. M. Davy com nosso autor. Um estudo que está dividido em três partes: na primeira, Davy nos convida a caminhar com Marcel por sua trajetória familiar e processos formativos. Na segunda, nos descreve a natureza do pensamento dramatúrgico marceliano. E, na terceira, propõe-se a analisar algumas de suas obras teatrais, concluindo com uma nota destinada a seus leitores e espectadores. Ao tomar como base o teatro marceliano, Davy nos coloca diante das grandes intuições do nosso dramaturgo, nos convida a caminhar rumo a uma luz pressentida, mais que simplesmente vista, que apesar das trevas, chama-nos ao consolo e à esperança nos dias de hoje.

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

31

A clarividência de Gabriel Marcel sobre o modo como o drama e a arte estão a serviço

do desvelamento dos processos e nuanças da existência humana, “[...] equivale a dizer que ele

não fez do teatro instrumento de uma ideologia” (BOUILLARD, 1968, p. 116). Sua produção

teatral pretende discutir o modo como as relações intersubjetivas, face à vivência da

itinerância humana, se exprimem para fora de uma atmosfera idealista e para além das

injustiças sociais do seu tempo (MARCEL, 1968). Ao falar sobre o papel político-social da

sua dramaturgia, ele acrescenta:

[...] todo meu teatro sem exceção está dirigido, essencialmente, contra todo dogmatismo político, moral e religioso [...]. Nunca admitirei que o teatro seja empregado como meio de propaganda em favor de uma ideia ou de uma instituição. A meu ver, a função essencial desta arte consiste em levar ao palco seres reais, se é necessário dizer, tão reais quanto possível, e cuja liberdade e originalidade sejam salvas a qualquer custo. Só que esses seres não podem ser invocados mais que em situações concretas, precisas, onde sejam dadas as possibilidades de manifestar o que são, e em muitos casos, mostrar sua realidade mais íntima. Porque o dramaturgo não pode agir com fidelidade sem que se ponha diante do caráter essencialmente misterioso, desta certa forma indecifrável dos atos dos homens (MARCEL, 1957, p. 7-8).

A dramaturgia marceliana não se dirige à realidade de um único tempo, mas a todos

aqueles e aquelas que, em toda parte, vivenciam o drama da busca existencial que, exigindo

ser concretizada, se oculta e se revela iluminada em nosso caminho humano. “Os conflitos

que apresenta, primeiro, existem, depois é que se elucidam” (BOUILLARD, 1968, p. 116).

Marcel acredita profundamente que “[...] é no drama e através do drama que o pensamento

metafísico se apreende a si mesmo e se define in concreto” (MARCEL, 1953, p. 277).

Como dramaturgo, Gabriel Marcel foi excepcional. Ao longo de sua trajetória teatral

escreveu cerca de vinte peças e diálogos ensaísticos. Entre suas principais produções estão: Le

Seuil Invisible (1914) - composta por outras duas peças: La Grace et Le Palais de Sable -, Le

Inconoclaste (1923), Le Quatuor En Fa Dièse (1925), Trois Pièces (1931) – composta por Le

Regard Neuf, Le Mort de Demain et Le Chapelle Ardente -, Le Coeur Des Autres (1921), Un

Homme de Dieu (1925), L’Horizon (1945), Le Monde Cassé (1933), Le Fanal (1936), Le

Chemin de Crête (1936), Le Dard (1938), Tréâtre Comique (1947) – composta por Colombyre

ou Le Brasier de La Paix, La Double Expertise, Les Points Sur Les I et Le Divertissement

Posthume -, La Soif (1938), Vers Un Autre Royaume (1949), L’Émissaire (1945-1948), Le

Signe De La Croix (1948), La Fin Des Temps (1950), Rome N’est Plus Dans Rome (1951),

Croissez Et Multiplies (1955), La Dimension Florestan (1958), Mon Temps N’est Pas Le

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

32

Vôtre (1955), Pércées Vers Un Ailleurs (1973). Além das obras críticas como: Tréâtre Et

Religion (1959), Regards Sur Le Téâtre de Claude (1964), L’Heure Tréâtrale: de Giraudoux a

Jean-Paul Sartre (1959), L’Existence Et La Liberté Humaine en Jean-Paul Sartre (1981), entre

outros.

A dramaturgia para Marcel representa um caminho ensaístico da relação intersubjetiva

entre o eu e o tu, o homem e a realidade23. Ao colocar em cena o confronto entre os temas da

solidão e do encontro, das objetivações do ter e subjetivações do Ser, da despersonalização

das relações e do amor, das angústias e da esperança, dos fracassos e da confiança no Ser,

Marcel nos convida a pensar sobre a interface que há entre o teatro e a reflexão filosófica,

diante dos desafios que envolvem a busca pela maturidade humana e a harmonia com a vida e

os outros seres (MARCEL, 1940, 1968).

No início, o teatro esteve em posição de vanguarda em relação ao seu pensamento

filosófico; depois, ambos se tecem e se cruzam, tornam-se partes complementares de uma

intenção de busca e interpelação pelo esclarecimento de sua própria condição humana. Ao

suspeitar de toda forma de sistema, o homem passa a manter contato direto com o concreto e

sua realidade. O homem descobre o novo imediato: a existência. Neste sentido, seria desejável

que o diálogo entre o teatro, a filosofia e a existência “[...] se acompanhasse de uma vontade

intransigente de sempre encarnar o espírito no contexto real do tempo presente” (RICOUER,

1947, p. 176).

Apesar da insistência de Gabriel Marcel sobre a autonomia do seu teatro com relação à

sua interpelação filosófica, é possível reconhecer o caráter complementar de ambas as formas

de representação, expressão e manifestação existencial. Entre a reflexão filosófica e a

produção dramática há um vínculo substancial. Apesar de cada um ter uma característica

independente, os dois estão, ao mesmo tempo, ligados entre si e situados no mesmo palco: o

chão da vida. A meditação filosófica em Gabriel Marcel sempre vem acompanhada do drama

e da interpelação sobre a existência e o Ser; do encontro entre a capacidade sensorial e a visão

especulativa do mundo e dos mesmos objetos. Sobre esta interconexão, escreve Marcel, em

1954:

23 De acordo com Roger Troisfontaines (1953a), Marcel opõe existência e realidade. Á medida que relaciona o

homem a sua consciência imediata o real passa a definir-se através do pensamento, o pensamento transcende. “Pensar, com efeito, é elevar-se à atividade espiritual, é sair do plano da existência, transcender os dois modos de consciência de mim-mesmo que se ligam ao sensível, e pôr a realidade dum conteúdo completamente inteligível” (MARCEL, 1927, p. 150).

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

33

Porque o que vejo mais claro, sobretudo hoje, é que o modo de pensar dramático, que consiste em tratar temas desnudos, quer dizer, na realidade de tais temas, ilustrava e justificava de antemão tudo quanto tenho podido escrever depois, em um tom puramente filosófico, com respeito ao um conhecimento que excede toda objetividade, ao invés de confinar-se na esfera da subjetividade imediata. Observo tão só que esta aproximação tem ocorrido em meu pensamento em uma época relativamente tardia, por volta de 1930. Porque estes dois modos de expressão, tão meus, são desenvolvidos assim, de maneira autônoma e como parte um do outro? Essa questão representa algo difícil em responder. Suponho, com tudo, que se entre os dois tenha se estabelecido uma comunicação prematura, tenha sido a custa que cada um deles tenha de mais vivo e autêntico. Não é por acaso que, de minhas obras dramáticas, as que hoje me parecem mais ricas em substância espiritual sejam precisamente aquelas que mais manifestamente carecem de toda premeditação filosófica (MARCEL apud DAVY, 1963, p. 79-80).

Entendemos que o Teatro e a Filosofia não devem estar alienados do existir humano,

mas sempre prontos a encantar e afetar as consciências, provocando-lhes interrogações,

inquietações, desinstalamentos, desapegos e profundos processos de ressignificação humana e

social24. No pensamento marceliano, tanto o teatro como a reflexão filosófica são depuradores

24 Sobre a interface entre filosofia e teatro, no pensamento marceliano, é possível sabermos um pouco mais,

através de uma carta-resposta, do próprio Gabriel Marcel, publicada por Roger Garaudy na obra Perspectivas do Homem: existencialismo, pensamento católico e marxismo (1965): “Acabo de tomar conhecimento das páginas que você me dedicou e devo render homenagem ao esforço sincero de compreensão que as anima. Como prosseguimento à nossa conversa, quero dar-lhe aqui alguns esclarecimentos sobre a relação entre filosofia e teatro em minha obra. Na realidade, se me qualificam de filósofo-dramaturgo, é preciso cuidar muito no traço de união, porque não se trata absolutamente de duas atividades justapostas. O teatro apresenta-se em primeiro lugar, em mim, como instrumento de prospecção, exercendo-se fora de todo pressuposto ideológico, mas intervém também como corretivo ao que toda síntese filosófica tem de inevitavelmente parcial. É sobretudo no primeiro ponto que é preciso insistir. Você reconheceu a importância da encarnação em minha obra: é por isso que ela se opõe a todo empreendimento idealista, embora só tenha tomado vulto graças a uma longa reflexão crítica sobre as doutrinas idealistas. Mas o que me importa é o homem concreto, é tal homem determinado, comprometido numa certa situação da qual poderia dizer-se legitimamente que é como um prolongamento mais ou menos instantâneo de seu corpo. Como, a partir daí, o instrumento de prospecção teatral pode exercer-se? Para mim, sempre se trata de coincidir o mais intimamente possível com personagens que se me impuseram do interior, com frequência, mas nem sempre, logo após um encontro que desempenhou a função de germe vivo. Personagens: este plural é aqui de suma importância. Trata-se, com efeito, de adotar simultaneamente perspectivas que logicamente parecem excluir-se. O que sempre me atraiu no teatro é a possibilidade de nele atingir uma justiça superior, enquanto que a vida vivida parece constranger-nos sempre a ver cada situação segundo um ângulo particular: o nosso. A respeito, as cenas finais de Chemin de Crète, de L’Émissaire, De Signe De La Croix, e muitas outras, incluem-se entre as páginas mais significativas que eu tenha escrito. Mas faço questão de assinalar o seguinte: aos meus olhos, a obra dramática só manifesta um verdadeiro alcance se for capaz de, uma vez caído o pano, viver intensamente no espectador, para agitá-lo e, de certo modo, para elevá-lo acima dele mesmo. Só que isso é possível apenas se esse mesmo espectador não tiver, nem por um segundo, o sentimento de que se procurou doutriná-lo: se uma lição se extrai da obra dramática, isso deve ocorrer independentemente de toda intenção deliberada do autor e pela força intrínseca do drama. Isto lhe diz bastante o quanto me oponho ao teatro dito filosófico, cujos personagens não são mais que marionetes, manipulados por um doutrinante. Gostaria agora de dizer uma palavra acerca do que denominei o valor retificador que, em certos casos, pode caber ao teatro em minha obra. Considero que todo pensamento filosófico arrisca-se a pecar por um excesso de abstração, por uma predeterminação de simplificar: relembre a famosa frase de Hamlet: ‘Há mais coisas no céu e na terra’, etc. É contra esse preconceito simplificador que o dramaturgo deve reagir em todas as ocasiões. Por isso pude dizer, numa conferência que fiz neste inverno na Suíça e na Alemanha, que muitas de minhas peças estão como que precedidas de um sim, mas... Trata-se antes de tudo de não falsear a complexidade e, ao mesmo tempo, encontrar meio de superá-la. Mas estas palavras

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

34

dos esquematismos que pretendem alienar as consciências, esvaziar as relações, enquadrar os

comportamentos e determinar as vontades. Assim como a reflexão filosófica, o teatro também

se presta ao protesto da existência diante e contra todas as formas de dogmatismo,

intolerância, segregação, discriminação, classificação, manipulação, rotulação, poder e

controle. Como a reflexão filosófica, o teatro deve estar a serviço da vida e a favor dos

homens e das mulheres, em todos os lugares, contextos e épocas.

O diálogo entre “o drama e a reflexão filosófica, para Marcel, são as duas vertentes de

uma mesma altura” (BOUILLARD, 1968, p. 116). Tanto a filosofia como o teatro serão, ao

longo da vida, para o autor, formas de expressão de uma personalidade que se afirma como

uma presença espiritual; de um Ser humano amante da sabedoria que, consciente da sua

condição itinerante, se vê sempre disposto a apreender e acolher o verdadeiro e o belo daquilo

que é próprio do homem e do seu existir. M. M. Davy desenha, com palavras, como alguém

que conviveu pessoalmente com o próprio Marcel, um retrato desta presença:

Este homem, em cuja palavra sempre justa e precisa, se revela a força primordial do pensamento, possui um encanto personalíssimo. Outros chamariam a atenção pelo tamanho insólito do corpo, mais ou menos. Em Marcel toda a atenção lhe atrai o rosto, de onde impera o olhar. A chama do seu pensamento se manifesta na troca rápida e na grande mobilidade das suas feições, que tão bem sabem expressar simpatia, reticência, angústia, compaixão ou desprezo. Os olhos, glaucos ou de um claro azul, segundo a luz que lhe atravessa, falam da vida interior. Esse olhar pode fixar-se no externo, deter-se em uma forma e acariciá-la, sem por isso desligar-se do íntimo, de onde tem suas raízes e sua terra prometida. Marcel, no momento que parece mais resplandecente de alegria, segue imerso na meditação. E sua atitude, inteiramente socrática, é séria e risonha ao mesmo tempo. A originalidade do rosto do nosso personagem reside num estar-se presente a si mesmo, por isso, pode estar presente nos demais. Presença que se afirma como uma constante meditação, como uma reflexão sempre em jogo, de

‘encontrar meio’ não são inteiramente exatas: existe aí algo que excede as faculdades conscientes do dramaturgo, seja qual for. Os próprios personagens é que devem, por assim dizer, dar à luz esta resolução, e é de propósito que emprego aqui o termo musical, muito mais exato que o termo lógico. Denunciaram com frequência o caráter burguês de meu teatro. Mas esta palavra é equívoca a mais não poder. É verdade, e o lastimo, que quase todos os personagens de meu teatro pertencem à burguesia, porque é o meio em que vivi, e porque eu teria achado tanto quanto possível desonesto retratar de memória personagens de que não tive experiências. Mas se se quer entender pela palavra burguês não sei que conforto, que acomodamento no convencionado e no estabelecido, então esse julgamento trai uma ignorância radical de minha obra, da qual direi que é, antes de tudo e em primeiro lugar, inquietante. E aí se acha, aliás, uma das razões pelas quais teve tanta dificuldade em impor-se, pelo menos aos diretores de teatros, sempre preocupados em satisfazer uma clientela, porquanto uma clientela é uma reunião, e não se reúnem consciências. Só que essas consciências existem um pouco em toda parte, e é provavelmente por isso que meu teatro deu lugar, sem dúvida, a mais estudos nos países estrangeiros que nenhuma obra dramática francesa contemporânea, salvo a de Claudel. Espero que estas poucas indicações lhe permitam melhor apreender a articulação entre teatro e filosofia em minha obra. Estaria quase tentado a dizer que uma filosofia existencial baseada na intersubjetividade, isto é, no nós, deve, num certo momento, converter-se em drama, pouco mais ou menos como a palavra, onde se realize um certo tono emocional, se torna canto” (MARCEL apud GARAUDY, 1965, p. 154-156).

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

35

atividade imperecível. Não é um resultado de sobre excitação ou tensão do espírito alerta, pois no fundo se revela em calma, banhado por uma serenidade conquistada passo a passo, mais que procede de uma temperança inicial [...] Sensível em seus gostos, apegado a vida harmoniosa e sem luxos, modesto como um bom sábio, sóbrio ao redor da mesa, inimigo do tabaco, assim se nos apresenta Gabriel Marcel (DAVY, 1963, p. 21, 27).

Longe de ser uma réplica de outros pensadores, Marcel se apresenta como um homem,

cujo traço mais marcante de sua personalidade é seu interesse pela existência e pelas

pessoas25. Como crítico literário, músico, dramaturgo e filósofo, “[...] sua benevolência

revela, num relance, os motivos, as preferências profundas e o mistério das personalidades

[...]” (TROISFONTAINES, 1966, p. 234). A arte dramática, o pensamento filosófico e a

experiência biográfica se encontram, se tecem, se enriquecem e se implicam na personalidade

e vivência de Marcel26. “Como a de Kierkegaard, a filosofia de Marcel é autobiográfica, e, por

isso, seu pensamento é predominantemente uma experiência pessoal, rica, porém nem sempre

íntima e espontânea, e, às vezes, friamente quente, mais de ato que de artista” (SCIACCA,

1947, p. 272).

O teatro, a música e a reflexão filosófica compõem o escopo do processo de

desenvolvimento e maturidade humana, vivenciado por Gabriel Marcel ao longo de toda sua

caminhada; compõem, ainda, um itinerário artístico, literário, cultural e filosófico, que são os

aspectos multidimensionais de uma única e singular formação. Como ávido leitor, sua busca

não se limita aos escritores franceses. Os anglo-saxões, sobretudo, os alemães, lhe são tão

familiares quanto os de sua própria língua materna.

Depois de seu bacharelado e sua licenciatura em Filosofia, Gabriel Marcel obteve o

diploma no Curso de Estudos Superiores, na Université Paris-Sorbonne – França, com um

estudo, nas próprias fontes, sobre ‘Les Idées Métaphysiques de Coleridge Dans Leurs

25 Como destaca Feliciano Blázquez Carmona: “Gabriel Marcel descobriu a dialética da situação ou o caráter

eminentemente dramático do existir. Agora importam mais os seres, os homens de carne e osso, que as ideias. Estas ideias, não são mais do que mediações pelas quais os personagens tomam consciência da sua condição dramática” (CARMONA, 1995, p. 31).

26 Ao comentar sobre o caráter singular do seu trabalho, Marcel fala do modo como encontrou dificuldade para sistematizar seu pensamento. Sobre o conjunto de suas produções, acrescenta: Cf. RI, 23; “Como chegar a integrar efetivamente num sistema inteligível a minha experiência enquanto minha, como os caracteres que ela afeta hic et nunc, com as suas singularidades e mesmo as suas deficiências as quais, por um lado, a fazem ser o que ela é. À medida que é a minha reflexão se concentrava sobre esse problema, parecia-me mais claramente que esta integração não podia ser nem realizada, nem mesmo seriamente tentada; e eu deveria ser conduzido a partir daí, por um lado, a abrir, no fundo de mim mesmo, um verdadeiro processo onde o valor não ideal, mas real, metafísico da ideia de sistema inteligível se encontrava posto em questão; por outro lado, e correlativamente, a interrogar-me cada vez mais ansiosamente sobre a estrutura íntima da experiência, de minha experiência, considerada não só no seu conteúdo, mas na sua qualidade, no seu ser de experiência. Desde então, toda a orientação da minha investigação filosófica se encontrou profundamente modificada”.

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

36

Rapports Avec La Philosophie de Schelling’27. “A escolha deste tema indica, desde o início, o

sentido de suas preocupações e seu gosto pelos autores metafísicos ingleses e alemães”

(DAVY, 1963, p. 23). Esta tese foi apresentada em 1909 e publicada em 1971. Movido pela

inquirição, passou a assistir, nesta mesma época, as aulas dos professores Charles Péguy,

Jacques Maritain y Henri Bergson28.

Após obter a agregação em Filosofia, Marcel passa a lecionar e exercer a atividade

pedagógica em vários centros de Ensino Secundário. Como professor, ensinou em Vendôme

(1911-1912), no Liceu Condorcet (1915-1918), em Sens (1919-1922), durante a segunda

guerra, em substituição a professores mobilizados e/ou prisioneiros, no Liceu Louis-le-Grand,

preparando os alunos da Escola Normal (1939-1940) e no l'Institut Montpellier (1941). Mais

ainda: foi professor visitante na Universidade de Aberdeen, na Escócia, em 1951 e 1952, e na

Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, em 1961 e 1962. Em 1952, foi eleito membro

da Académie des Sciences Politiques et Sociales de l'Institut de France, além de atuar, de

1957 a 1961, como presidente da Association Montessori de France29, tendo permanecido

como presidente honorário até o fim de sua vida.

Ao analisar, em Gabriel Marcel, a relação que há entre o filósofo e o educador, fica

suficientemente claro o quanto a educação, enquanto processo de formação humana, precisa

se constituir numa expressão da confiança no Ser, no humano, que, resistindo às seduções dos

modismos e das manipulações das técnicas de aviltamento, visa fornecer ao homem/educando

as condições necessárias para alcançar o fim autêntico de sua vida: a coerência de si

(MARCEL 1971b; BOLLNOW, 1962).

Gabriel Marcel é conhecido e reconhecido, principalmente, por sua obra filosófica; e

por ela ter exercido grande e significativa influência, dentro e fora dos círculos acadêmicos.

“Sua forma própria é o diário” (BOUILLARD, 1968, p. 117). “Em vão buscaremos em

Marcel obras estritamente sistemáticas. Suas publicações se reduzem, além de uma série de

27 “As Ideias Metafísicas de Coleridge Em Suas Relações Com a Filosofia de Schelling”. 28 Em palestra sobre “Kierkegaard Vivant”, proferida no Colóquio organizado pela UNESCO, em Paris, de 21 a

23 de abril de 1964, Gabriel Marcel comenta a respeito da “[...] mais profunda admiração que tem por Bergson, cujos cursos no Collège de France, teve o privilégio de seguir durante dois anos” (MARCEL, 1964, p. 54). Henri Bergson é o mestre a quem Marcel dedicou uma de suas principais obras: “Le Journal Métaphysique, publicada em 1927. Sobre as perspectivas de aproximação e ampliação dos pensamentos de Bergson e Marcel, Cf. “L’immédiat chez Henri Bergson et Gabriel Marcel” (TSUKADA, 1995).

29 A participação de Gabriel Marcel no processo de implantação da Pedagogia Montessori, na França, não pode ser vista apenas como a de um mero figurante. Numa carta, inédita, datada de 26 de junho de 1959, o filho de Maria Montessori escreve “Je vous suis bien reconnaissant de votre lettre et de votre intervention qui, encore une foi, démontre votre intérêt pour l’oeuvre de Mm. Montessori. Comme vous savez, mon plus grand souci est de la faire connaître et de la répandre. Je suis donc toujours plus qu’heureux quand je trouve une institution ou une personne qui m’aid à faire (Carta inédita, Bibliothèque Nationale de France, Paris, 1959 (Carton 97).

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

37

obras teatrais, a numerosos artigos de revista e a compilações de discursos e conferências”

(LENZ, 1955, p. 204).

A produção filosófica de Marcel é extensa e profunda30. “[...] o escrever foi uma das

tarefas a que mais se dedicou” (GIRARDI, 1978, p. 27). Gabriel Marcel foi um escritor

fecundo. Ao longo de sua trajetória acadêmica, escreveu dezenas de obras científicas,

resenhas e ensaios sobre Filosofia. Entre suas principais produções estão: Journal

Métaphysique (1927)31, Étre et Avoir (1935), De Refus à I’Invocation (1940), Homo Viator

(1944), La Métaphysique de Royce (1945), Position et Approches Concrètes Du Mystère

Ontologique (1949), Le Mystère de L’Être (1951a), Les Hommes Contre L’Humain (1951b),

Le Déclin de La Sagesse (1954), L’Homme Problematique (1955), Pour Une Sagesse

Tragique (1968), entre outros.

“Em seus primeiros tempos, Marcel estudou especialmente as correntes idealistas,

tanto do idealismo alemão como inglês” (MORA, 1994, p. 1860). A raiz do Idealismo32 “é,

pois o ‘objetivismo’ ou a oposição entre objeto e sujeito” (ACKER, 1981, p. 144). O

idealismo opõe o ser ao pensamento, à medida que confunde a realidade com o conceito;

torna o objeto um problema para o sujeito, nega a existência real e elimina toda “[...]

consideração existencial com base na inteligibilidade radical, sem oferecer, contudo, um lugar

30 Gabriel Marcel foi um pensador influente das Ciências Humanas. Entre as dintinções que recebeu como sinal

de reconhecimeto por seu trabalho e produção destacam-se: Prêmio de Literatura da Acadêmia da França, 1949; Eleito Membro da Acadêmia de Ciências Moraes, 1952; Prêmio Goethe da cidade de Hamburgo, 1956; Prêmio Nacional de Letras, 1958; Comendador da Ordem das Artes e das Letras, 1958; Comendador da Ordem das Palmas Acadêmicas, 1958; Prêmio Asiris; Grande Prêmio Internacional da Paz pelos Livreiros e Editores Alemães, 1964; Prêmio Erasmo, 1969; entre outros.

31 O ano em que esta obra foi lançada é o mesmo em que Martin Heidegger publica Sein und Zeit (O Ser e o Tempo). “O Journal Métaphysique divide-se em duas partes; a primeira, que vai de primeiro de janeiro de 1914 a oito de maio do mesmo ano; e a segunda parte, de quinze de setembro de 1915 a vinte quatro de maio de 1923” (CARMONA, 1995, p. 62). “É redigindo este Journal à maneira de Kierkegaard (Diário de um Sedutor) ou de Maine de Biran (Journal Intime) que ele vai tomar consciência de sua ‘existência’ no sentido mais ontológico do termo [...]” (HUISMAN, 2001, p. 83). É a produção desta obra que fará de Marcel uma das principais vozes da Filosofia da Existência e que o porá, imediatamente, na primeira fileira dos filósofos existencialistas.

32 Conforme Nicola Abbagnano “este termo foi introduzido na linguagem filosófica em meados do século XVII, inicialmente com referência à doutrina platônica das ideias. Leibniz diz: "O que há de bom nas hipóteses de Epicuro e de Platão, dos maiores materialistas e dos maiores idealistas, reúne-se aqui [na doutrina da harmonia preestabelecida]". Contudo, esse significado do termo, que por vezes é indicado como "I. metafísico", no sentido de ser uma hipótese acerca da natureza da realidade (que consiste em afirmar o caráter espiritual da própria realidade), não teve longa vida. Essa palavra foi usada principalmente nos dois significados seguintes: I. gnoseológico ou epistemológico, por várias correntes da filosofia moderna e contemporânea. II. romântico, que é uma corrente bem determinada da filosofia moderna e contemporânea. No sentido gnoseológico (ou epistemológico) esse termo foi empregado pela primeira vez por Wolff: "Denomina-se idealista quem admite que os corpos têm somente existência ideal em nosso espírito, negando assim a existência real dos próprios corpos e do mundo" (ABBAGNANO, 2007, p. 524).

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

38

para a contingência, a liberdade e a historicidade, que segue sendo as grandes questões

humanas” (CARMONA, 1995, p. 19).

A saída deste mundo “em que se achava prisioneiro” (MORA, 1994, p. 1860) custou a

Marcel grandes esforços. “Todo esforço marceliano está empenhado em superar o dualismo

sujeito-objeto, a oposição do objeto diante do sujeito cognoscente” (SCIACCA, 1947, p. 274).

Neste sentido, Gabriel Marcel insistiu na distinção que convém fazer entre problema e

mistério. Sobre esta distinção, ele diz:

Entre problema e mistério parece haver uma diferença essencial: um problema é qualquer coisa com que me deparo, que encontro por inteiro diante de mim, mas que por isso mesmo, posso circunscrever e reduzir – ao passo que um mistério é qualquer coisa em que eu mesmo estou comprometido e que, por conseqüência, não é susceptível de ser concebido senão numa esfera em que a distinção do em mim e do perante mim perde a sua significação e o seu valor inicial (MARCEL, 1933, p. 169).

“O pensamento não é senão a expressão da realidade ontológica” (JOLIVET, 1953, p.

364). Ao negar a dimensão pessoal do pensamento, “o homem corre o risco de perder o

sentido da subjetividade do Ser e de mutilar a experiência, quando afirma que só o dado é a

realidade concreta” (CARMONA, 1995 p. 20). A concepção de que a existência não se afirma

na objetividade do conceito, mas na experiência concreta do existir, “leva-nos a estabelecer o

primado do Ser sobre o conhecer e a fundar a ontologia na evidência de que o ser não é

afirmado, mas se afirma a si mesmo” (MARCEL, 1933, p. 267). A ambição de Gabriel

Marcel foi, portanto, conseguir estabelecer uma filosofia do existir, que não se resumisse,

como tantos outros sistemas, numa doutrina abstrata ou numa teoria sobre a existência. Sua

intenção era fundar uma filosofia da existência do homem concreto.

“A verdadeira filosofia só pode conceber-se no quadro de uma filosofia concreta”

(MARCEL, 1940, p. 93). No prefácio da obra Le Mystère de L’Être (1951), Marcel afirma

que seu desejo não é dirigir-se a uma inteligência abstrata, senão a seres individuais, a

consciências que, diante da própria realidade, não podem se colocar na posição de quem

simplesmente vê e descreve um quadro. O papel da pesquisa filosófica não é reduzir o homem

ao puro biográfico, nem separar o inteligível do espiritual. O sentido da pesquisa existencial

“consiste em restituir à experiência humana o seu peso ontológico” (MARCEL, 1933, p. 149).

Movidos pelas inquietações marcelianas sobre a exigência ontológica, compreendemos que

Não há dúvida de que a experiência de onde se parte, aquela que continuamente consultamos e invocamos, é uma experiência individual e

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

39

concreta – e não uma experiência já generalizada, esquematizada e banalizada, como a do anônimo ‘Se’, com a qual se satisfazem tantas filosofias; - uma experiência que denominaremos existencial para significar que ela se encontra inteiramente enquadrada no mais autêntico real e como que ainda quente da palpitação da vida. É desta experiência que procuramos descobrir o sentido, aquilo que nela depõe a favor dos fins, que lhe dão a sua estrutura e forma. É que há um ritmo imanente pelo qual afirmamos não tanto a nossa individualidade como os valores pelos quais se realiza a nossa pessoa. O próprio obstáculo, sobre o qual incide a nossa ação e que se opõe ao progresso espiritual a que espiramos, pode constituir uma abertura para o absoluto, revelando-nos os verdadeiros valores, os únicos que são capazes de corresponder às nossas mais profundas necessidades e às nossas aspirações morais (JOLIVET, 1953, p. 334-335).

“A existência é inquieta, não só porque está voltada para o porvir, senão porque se

encontra no mundo [...]” (WAHL, 1960, p. 37). Movido por este senso de concretude, Marcel

pôde evidenciar as nuanças do seu pensamento e desvelar a incompletude de sua própria

condição encarnada. “Foi ela que o conduziu a reconhecer, de uma parte, a realidade da

existência e, de outra, a do Ser, do Transcendente e, entre ambas, aparentada a uma e outra, a

realidade do tu” (BOUILLARD, 1968, p. 116), o valor das relações humanas e

intersubjetivas. À semelhança de um garimpeiro, que faz da busca pelo ouro o sentido da

vida, Marcel procura, no âmbito da própria vivência, o sentido do verdadeiro e do belo na

condição humana.

Ao enxergar que a existência não se determina no conceito, e que o pensamento é

apenas um dos veículos de sua significação, Marcel se pôs a dialogar com outros autores e

ideias. Entre outros, destacamos a descoberta tardia de Kierkegaard33, as coincidências

temáticas com Karl Jaspers34 e Martin Buber35, e suas eventuais discordâncias, com Martin

Heidegger36 e Jean-Paul Sartre37.

33 Kierkegaard nasceu em Copenhague no dia 5 de maio de 1813. Era filho caçula do comerciante Michel

Pedersen Kierkegaard, um pai já avançado em idade, depressivo, melancólico e angustiado pelo sentimento de culpa. No início de sua vida, sentiu-se privado de uma infância sadia, em virtude de uma educação profundamente religiosa, com base nos mais rígidos preceitos do cristianismo. Além desta dura realidade, outras três experiências marcaram intensamente sua vida e nortearam a natureza do seu pensamento: a morte de alguns de seus irmãos, o falecimento de seu genitor, pouco tempo depois de ter se reconciliado com ele e o término do noivado com a jovem Regina Olsen. Após estes infortúnios, formou-se em Teologia e recebeu o título de doutor em Filosofia, defendendo a tese sobre o “Conceito de Ironia” (1841). Escritor profícuo, dedicado e brilhante, abriu mão de ser pastor luterano e professor universitário, para se dedicar à vida intelectual e à produção literária. Sua descrição teológico-filosófica e experimental consiste numa “tautologia” de si mesmo, ou seja, na declaração que toda sua obra é uma expressão de sua própria vida (KIERKEGAARD, 1990).

34 Karl Jaspers (1883 – 1969), à semelhança de Martin Heidegger, é um dos principais pensadores do existencialismo alemão. Natural de Oldenburgo, norte da Alemanha, teve, desde a infância, o privilégio de receber uma formação que haveria de servir como base, e ao mesmo tempo, como ponto de partida, para a construção do seu pensamento filosófico. Formado em Medicina (1909), Psicologia (1913), e Filosofia, conheceu e assumiu, desde cedo, a natureza do pensar da tradição humanística. Como filósofo de profunda

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

40

Com Kierkegaard, Marcel compartilha da compreensão de “[...] que só através do

drama secreto da existência é que podemos discernir as raízes do pensamento” (MARCEL,

1964, p. 62). Sobre Karl Jaspers, mais do que de influência, Marcel fala de afinidades. Ele diz

que “foi surpreendido, ao comprovar deste então, que escrevia Étre et Avoir (MARCEL,

1935), que se servia de expressões que são exatamente as que usava Jaspers em seu sistema”

(MARCEL apud CARMONA, 1995, p. 17). Ambos concordam com a ideia de que a

existência escapa a toda conceptualização ou esquema predefinido. Compartilhando das ideias

de Martin Buber (2001), Gabriel Marcel também declara que a existência não se decide na

consciência solitária do homem, senão na vivência comunitária, na relação entre o eu e tu,

onde o outro Ser humano é considerado em sua intimidade e por meio de quem podemos nos

afirmar como pessoa e sujeito.

Com Heidegger, sua relação é distinta. Há ocasiões em que Marcel o elogia, quando

discute o caráter reverencial do Ser; e há outras, em que o critica, principalmente por sua

linguagem, e às vezes, pela obscuridade de suas ideias. Em duas conferências pronunciadas,

em alemão, em 05 de abril de 1957, em Oberhausen e depois, em 14 de maio, em Berlim,

sobre sua relação com Heidegger, Marcel conclui sua exposição dizendo:

Terminarei, pois, esta exposição, que não é e não pode ser mais que um esboço do qual reconheço a imperfeição, dizendo que me sinto obrigado a assinalar meu acordo e meu desacordo com o filósofo do Holzwege: penso,

sensibilidade político-social, exerceu com liberdade as carreiras de docente e de pesquisador científico. Como estudioso das Ciências Humanas, seu interesse foi sempre o de conhecer o “homem na sua realidade”, enquanto objeto de estudo e de autoconhecimento.

35 Martin Buber nasceu em 8 de fevereiro de 1878 em Viena e morreu em 13 de junho de 1965 em Jerusalém. Depois de frequentar o ginásio polonês, estudou Filosofia, Germanística, História da Arte, Psicologia e Psiquiatria em Viena, Leipzig, Zurique e Berlim, tendo sido aluno, entre outros, de Wilhelm Dilthey e Georg Simmel. A partir de dezembro de 1923, assumiu o cargo de professor de Ensino religioso-judaíco e Ética Judaica na Universidade de Frankfurt/Main, tendo se tornado professor honorário em 1930. “Depois da I Guerra Mundial, ele militou no movimento das escolas superiores e atuou na Escola Judaica Livre, Frankfurt/Main, fundada por Franz Rosenzweig. Uma nova fase de seu pensamento, assim como de seu trabalho como escritor, começou com o esclarecimento de sua visão dialógica em Eu e o Tu” (BUBER, 2001, p. 57 - 58).

36 Martin Heidegger nasceu em Messkirch, na Alemanha (1889-1976). Sua Filosofia emerge num contexto histórico marcado pelo desencanto, a dúvida e a destruição dos valores conceituais da civilização ocidental moderna, que foram abalados pela trágica experiência da Primeira Guerra Mundial. Foi um tempo marcado por uma profunda e angustiante inquietação, que desafiava e questionava a natureza do espírito do progresso humano, que permeara a compreensão cultural, política, pedagógica, espiritual e social. E uma época em que se buscou não apenas a reafirmação dos antigos valores, mas, também, a reconfiguração da compreensão do mundo, a partir da re-elaboração das questões fundamentais da reflexão filosófica.

37 “Jean-Paul Sartre nasceu aos 21 de junho de 1905, em Paris. Após a morte do pai, em 1907, foi criado pela mãe e os avós maternos [...] De 1931 a 1933 é professor de Filosofia no Liceu do Havre. Passa os anos 1933-1934 fazendo estágio no Instituto Francês de Berlim, onde estuda intensamente a fenomenologia de Husserl [...]. Em 1942, Sartre é professor no Liceu Condorcet, porém no mesmo ano abandona o magistério. Sartre faleceu em Paris em 15 de abril de 1980” (GILES, 1989, p. 273-274).

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

41

por uma parte, que Heidegger tem tido o grande mérito de reconhecer o enlace íntimo que une o ser ao sagrado; porém, por outra parte, temo que, por seu desconhecimento do próximo, enquanto pessoa e da intersubjetividade, se situa uma impossibilidade de acender a esfera de onde este parentesco, senão esta identidade, do Ser e do Sagrado, encontra sua plena e enriquecedora significação (MARCEL, 1989, p. 363).

Quanto a Jean-Paul Sartre, Marcel escreve dois importantes ensaios38: um, sobre O Ser

e o Nada; e o segundo, a respeito do conceito de liberdade sartreano. No entanto, a oposição

entre Sartre e Marcel pode ser exemplificada a respeito da compreensão que ambos possuem

sobre o “outro” enquanto um Ser diferente de “mim”. “Enquanto Sartre diz que o olhar do

outro nos rouba qualquer coisa, para Gabriel Marcel há olhares que nos revelam a nós

mesmos, que nos revelam também o outro e que nos revelam o mundo” (WAHL, 1954, p.

121).

À filosofia do desespero em Sartre, Marcel opõe sua metafísica da esperança

(GIORDANI, 2009, p. 197); uma esperança que não se confunde com otimismo, mas, que

reside e se fundamenta na experiência interna e espiritual da fé; na fé-confiança naquilo que o

homem é e poderá se tornar, no mais íntimo do seu Ser. Movido pela confiança no humano,

Marcel “cada vez destaca mais as condições e a estrutura interna da verdadeira fé, cujo ato é

possível, legítimo e necessário para quem queira alcançar a personalidade espiritual, o Ser”

(TROISFONTAINES, 1966, p. 240).

É com base na relação que existe, para Marcel, entre existência, concretude e fé na

condição humana, que sua obra se inscreve no conjunto das produções e dos autores da

Filosofia da Existência39. Por Filosofia da Existência compreendemos a busca do sentido da

própria existência, a partir de si mesma, “[...] compreender a vida humana em si mesma, na

sua imanência, com exclusão de todas as representações e juízos que a transcendem [...]”

(BOLLNOW, 1946, p. 2), visando tornar a vida humana possível e compreensivamente

realizável.

Em sua essência, a Filosofia da Existência caracteriza-se pela busca da verdade,

através da subjetivação humana e da recusa ao reducionismo do Ser à dimensão conceptual.

Seu eixo estrutural fundamenta-se na dialética existencial, cujo objetivo consiste no desvelar

38 O primeiro pode ser encontrado na obra Homo Viator (1944); e o segundo, no livro L’Existence et La Liberté

Humaine Chez Jean-Paul Sartre (1981). 39 Outras perspectivas de estudo das abordagens dialógico-filosóficas e biográficas de Gabriel Marcel podem ser

encontradas no universo de sua vasta correspondência. Entre outras produções, destacam-se: Gabriel Marcel – Max Picard: correspondance, 1947-1965 (MARCEL; PICARD, 2006); e Lettres de France & d’Allemagne: correspondance de Peter Wust avec ses amis français (WUST, 1985).

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

42

do próprio existir do homem, através da busca por integrar todas as suas dimensões a partir de

si mesmo e de seu modo autêntico de existir. Por ter como método de análise a

Fenomenologia de Edmund Husserl (2005), o Existencialismo, desde o início, apresenta-se

como uma forma de pensamento que pretende descobrir a essência fundamental da

autenticidade do Ser. Seu interesse é pelo esclarecimento da existência possível e de seu real

modo de realização, em sua radical temporalidade. Por considerar o homem como ser

inacabado e histórico, é que a Filosofia Existencial o toma como ponto de partida e conteúdo,

ou seja, como aquele que dá sentido ao mistério do existir, através da hermenêutica

antropológica da vivência humana, em seu desenvolvimento histórico.

Em sua origem, o Existencialismo está dividido em dois polos: o Alemão e o Francês.

Na Alemanha, o encontramos presente nas ideias de seus maiores expoentes: Friedrich

Nietzsche (1844 – 1900), Martin Heidegger (1889 – 1976) e Karl Jaspers (1883 -1969). Na

França, o existencialismo está representado nas contribuições das reflexões de Gabriel Marcel

(1889 – 1973) e Jean-Paul Sartre (1905 – 1980). Destaca-se, ainda, em outros países como:

Itália, com Nicola Abbagnano (1901 – 1990); Espanha, por meio de Ortega e na Rússia,

através da concepção da existência, expressa na obra literária de Fiódor Dostoiévski (1821 –

1881).

Em sua construção histórica e conceitual, há três formas de existencialismo. A

primeira, denominada de teísta e/ou cristã, que é representada por Sören Aabye Kierkegaard

(1813 – 1855) e Gabriel Marcel40; a segunda, que inclui os existencialistas ateus, entre os

quais se destacam Friedrich Nietzsche, Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre; e uma terceira,

representada por Karl Jaspers, cuja compreensão do ser transcendente não se limita aos

dogmas cristãos, nem se assemelha à negação da existência de um Outro absoluto. O

existencialismo, neste caso, manifesta-se entre o vivido da presença de “Deus” e o da

captação da transcendência do Ser em si mesma, por meio da liberdade e da consciência que o

homem tem de si, no mundo, em toda sua imanência. Em comum, os dois grupos concordam,

diferentemente da metafísica clássica e tradicional, que “[...] não é a existência que se define

pela essência, mas é a essência que é definida pela existência; e definida no sentido de que ela

40 “Gabriel Marcel é o iniciador do movimento Existencialista Francês. Conforme Roger Troisfontaines seu

artigo intitulado Existence et Objectivité reperesenta um verdadeiro manifesto da Filosofia da Existência. “I’ article intitulé Existence et Objectivité, Gabriel Marcel, donnait à la philosophie existentielle française as carte d’origine. Ni Kierkegaard, ni Jaspers, ni Heidegger ne jouissaint alors de la vogue qu’ils ont ensuite connue et Marcel partageait à leur endroit la total ignorance de presque tout sés compatriotes. Aussi prend-il rang parmi les initiateus du mouvement existentiel, dont nul ne contest qu’il représente aujourd’hui une tendence les plus originales” (1953b, p. 147). Nas palavras de Joaquim Adúriz: “[...] em 1925, Marcel já anunciava as teses fundamentais do existencialismo antes que fossem conhecidos na França Kierkegaard, Jaspers e Heidegger” (ADÚRIZ, 1949, p. 7).

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

43

é o manifestar-se histórico da própria existência e, portanto, coincidente com os momentos

transeuntes do seu devir” (SCIACCA, 1966b, p. 299).

Apesar de ter sido posta, sobre a Filosofia de Gabriel Marcel, a etiqueta de

existencialismo cristão, é preciso considerar que seu pensamento consiste numa produção

original e pessoal, dentro do pensamento filosófico contemporâneo. Classificar sua produção

filosófica de “cristã e/ou católica” é condicioná-la; é correr o risco de cair no equívoco de

reduzi-la aos ‘ismos’, contra os quais o pensamento de Marcel se expressa e se orienta

deliberadamente (MARCEL, 1951a).

A concepção de que o pensamento de Gabriel Marcel consiste num existencialismo

cristão41 foi feita, pela primeira vez, por Jean-Paul Sartre, numa conferência intitulada “O

Existencialismo é um Humanismo?” (SARTRE, 1987, p. 4). Cremos que esta caracterização à

obra de Marcel não só é questionável, como limitada, superficial, podendo se tornar,

teoricamente tendenciosa e preconceituosa; pois, o próprio Marcel se opõe, preferindo adotar

o termo de ‘neosocratismo’ (MARCEL, 1951a, p. 9), para se referir à natureza de seu

pensamento.

Em Entrevista a Paul Ricoeur, Marcel explica42 quando e de que modo a denominação

de “existencialismo cristão” passou a ser aplicada à sua filosofia.

Estava em um Congresso em Roma quando descobri que haviam aplicado este termo para caracterizar-me. Neste momento fui indiferente, porém só mais tarde cheguei a preocupar-me quando me perguntaram se aceitaria que se intitulasse existencialismo cristão um livro que devia sair sobre mim na coleção ‘Presença da Editora Plon’ (RICOEUR, 1968, p. 74).

Gabriel Marcel nunca se referiu ao seu pensamento nestes termos. Em conversa43 com

o amigo, Louis Lavelle, o autor questiona: “Conheces minha obra? Tenho grande confiança

41 Parte da tentativa de classificar o pensamento de Gabriel Marcel como uma filosofia cristã deve-se à sua

decisão de conversão ao Catolicismo e à experiência de batismo, em 1929, aos trinta e nove anos de idade. Conquanto ele não negue que professa a fé católica, procura deixar claro “que toda sua obra, sem exceção, está dirigida contra todo dogmatismo político, moral e religioso” (MARCEL, 1957, p. 7). Conforme Urbano Zilles, “sua conversão não rompeu com seu pensamento anterior. Antes, deu-lhe plenitude [...]” (ZILLES, 1988, p. 31). Mais ainda, “Si l’on pose la question: peut-on être chrétien et philosopher?” A resposta a esta pergunta pode ser encontrada e/ou ampliada no diálogo entre Gabriel Marcel e Emmanuel Mounier, na obra Séquences Philosophiques I: philosophie et christianisme (MOLARD, 2007, p. 145-162). Mais ainda, Cf. ‘La liberté philosophique et la religion chez Gabriel Marcel (TARNOWSKY, 1988, p. 143-148).

42 “C’est au Congrè de Rome en 1946 que j’ai découvert qu’on avait employé ce mot pour me caractériser. Sur le moment, cela m’a laissé assez indifférent, mais par la suíte j’ai été dans l’embarras le jour ou l’on est venu me demander si j’accepterais qu’on intitule existentialisme chrétien, le volume colletif que devait m’être consacré dans la Collection ‘Présence’ chez Plon” (RICOEUR, 1968, p. 74).

43 “J’avoue que je me montrai d’emblée três peu favorable à cette idée; néanmoins, je tins à consulter un homme en qui j’avais grande confiance, qui était Louis Lavelle. Je lui dis: Vous connaissez mon oeuvre, j’ai grande

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

44

em sua opinião; que achas dela? Lavelle responde que não concorda com o termo de

existencialismo cristão; e diz que é preciso pensar sobre a concessão feita ao editor da Editora

Plon” (RICOEUR, 1968, p. 74). Com base nesta opinião, o próprio Marcel passou a dizer, a

partir de 1949, em todas as partes e conferências em que tomou parte, que reprovava esta

denominação e as outras, de modo geral, e que tem cultivado uma grande aversão a todo tipo

de classificação e/ou rótulo.

Apesar de ter reprovado a classificação de existencialismo cristão sobre seu

pensamento, Marcel reconhece “a relação entre o ‘eu-creio’44 e o ‘eu-existo’, como partes

constitutivas de sua obra” (RICOEUR, 1968, p. 81)45. Neste sentido, nosso autor especifica

que se considera um ‘philosophe du seuil’ – filósofo de passagem (RICOEUR, 1968, p. 82),

alguém que medeia a relação entre os “[...] ‘crentes’ e os ‘não crentes’ [...], de tal maneira que

possa fazer-se compreender por eles e talvez ajudá-los” (RICOEUR, 1968, p. 82). Porém, nos

diz Gabriel Marcel, “[...] que, se é necessário resignar-se a buscar um rótulo, por razões

evidentes, ao final de contas adotaria o de neosocratismo ou socratismo cristão, que o autor

adotaria afinal de contas” (1951a, p. 9).

Ao adotar as expressões de ‘neosocratismo’ ou ‘socratismo cristão46’, Gabriel Marcel

deseja situar-nos na compreensão de que sua filosofia não começa na desconstrução do Ser,

confiance dans votre jugemente, qu’en pensez-vous? Il m’a répondu: ‘Je compreds três bien que vous n’aimiez pas ces mots: existentialisme chétien, je ne les aime pas non plus, mais il me semble que c’est tout de même une concession que vous pouvez faire à l’éditeur. Je m’inclinais donc. Mais três vite, quand j’eus l’occasion de constater toutes les sotties auxquelles donnait lieu, três particulièrrement chez les femmes du monde, ce mot d’existentialisme, je me repentis d’avoir été aussi accommodant, et à partir de 1949 j’ai dit en toute occasion que je refusais cette étiquette, que d’ailleurs d’une manière générale j’avais horreur des étiquettes et des ismes” (RICOEUR, 1968, p. 74).

44 Apesar de ‘a crença’ ser algo que se possui e de ser legítima a expressão ‘ter fé’, Marcel a compreende como expressão do Ser, num dado sobre o qual a reflexão poderá exercer-se. Sobre isto acrescenta: “Na realidade a crença entendida no que tem de especifico e de profundo não é nada que se possa deter, e não se deixa assimilar a um ter: antes, e para além disso, desde que se considere como uma posse, ela arrisca-se a me parecer-me suspeita, ainda que por causa de todos aqueles que a não têm. Por isso, nós seremos levados a pensar que a crença não incide somente sobre o ser – mas que ela é o ser, é o meu ser, que ela é verdadeiramente o fundo do que eu sou. E, segundo alguns, esta será uma interpretação muito mais aceitável, muito mais profunda do seu creio” (MARCEL, 1940, p. 223).

45 “Vous avez récusé le tittre d’existentialiste chrétien; mais si le lien entre ‘je crios’ et ‘j’existe’ est constitutif de votre philosophie, s’il recèle le principe de toute riposte au désespoir [...]” (RICOEUR, 1968, p. 81).

46 “É de reconhecer que tal título é ‘maravilhosamente’ apto a traduzir a maneira de filosofar de Gabriel Marcel: o livre e ágil espírito de Sócrates interior a uma filosofia de inspiração cristã” (TILLIETTE, 1996, p. 9). “É sobre o signo de Sócrates e de Platão que ele pretende colocar seu livro, quando menos, diz ele, para protestar contra as deploráveis confusões a que deu margem, em seu caso, a horrorosa palavra existencialismo. Embora lhe repugne deixar alinhar seu pensamento debaixo de uma etiqueta. Se lhe fosse necessário, a todo custo, procurar uma, seria de neosocratismo ou a de socratismo cristão (BOUILLARD, 1968, p. 129). “A missão dessa filosofia existencialista cristã, que Marcel prefere chamar de socrática, consiste em desnudar as imposturas, as solenes imposturas do mundo moderno, sobretudo a impostura do mecanicismo como fonte de felicidade [...] Mas consiste também e principalmente em afirmar a transcendência” (DOMINGUES, 1972, p. 63).

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

45

nem termina na sua sistematização. Mais ainda, realçando sua atividade e liberdade de

pensamento, podemos apreender que a construção do pensamento filosófico marceliano se

constitui numa reflexão sobre um conjunto de “[...] experiências ontológicas que se

transformam então na própria base a partir da qual uma experiência do Ser e uma

compreensão dele se tornam possíveis” (MORA, 1994, p. 1861).

O diálogo entre a situação concreta do homem, a experiência intersubjetiva e a

itinerância do Ser, apontam para Gabriel Marcel como um filósofo da metafísica da luz

(PRINI, 1953, p. 27). Como um dos principais representantes da Filosofia Existencial, Marcel

é considerado como “um filósofo da comunicação” (TROISFONTAINES, 1947, p. 203, 207),

“um filósofo do espírito” (ABBAGNANO, 1973, p. 364), “um filósofo itinerante” (COLIN

apud MARCEL, 1947, p. 15), “empirista místico” (WAHL, 1932, p. 226), “um filósofo da

presença” (GUSTAVE apud MURILLO, 1989, p. 144), “dialético da esperança”

(MESNARD, 1946, p. 134) e “místico da fé” (BLIN apud MURILLO, 1989, p. 118). Enfim,

Marcel é considerado um peregrino, em busca por construir um caminho, cujo ponto de

partida não é apenas a situação em que o homem se encontra, senão o pensamento do eu,

dirigindo seu olhar ao ponto inteligível que, numa prévia seleção, se anuncia adiante. O ponto

que Gabriel Marcel busca alcançar com o olhar é o Ser, que se encontra situado para além da

simples objetivação descritiva da experiência e da realidade.

Todo este reconhecimento dado a Gabriel Marcel é fruto de uma filosofia engajada; de

uma atitude de comprometimento com o homem e sua condição de Ser inacabado e histórico.

É expressão de uma compreensão que acredita que o homem não deve ser um espectador do

mundo, mas, um ser ativo e participante47 da construção de si e de sua própria realidade.

Como Ser engajado, Marcel foi um filósofo humano, extremamente preocupado com

as questões políticas e sociais (MARCEL, 1951b). Em entrevista a Paul Ricoeur, ele diz que

47 Cf. ME , I, p. 137-138 “J’ai insisté autreffois sur la necessite de distinguer entre l’homme spectateur et

l’homme participant, mais je dois dire que cette distinction a perdu pour moi une partie de as valeur; au tout du moins il est clair à mes yeux qu’elle este tout à fait insuffissante, et cela parce que l’idée du spectateur est en elle-même ambiguë. Le spectateur assiste, il est dominé par une certaine curiosité qui n’a rien d’angoissant, car il sait bien qu’il n’est pas implique dans ce qui se passe sur la scène; si sanglant qui soit le déroulement de la tragédie, il a l’assurance qui pourra tranquillement sortir du tréâtre , prende son autobus et rentrer chez lui boire son thé, non sans avoir secoué comme une poussière les émotions que le spectacle lui a faire éprouver. Il y a là d’ailleurs une attitude générale, qui n’est pas exclusivement celle du spectateur de théâtre. Pendant la guerre de 1914-1918, c’était là encore à peu de choses près celle de bien des gens dans les pays neutres: ces gens assistaient à la guerre comme à une match ou à une course de taureaux. En distinguant entre l’homo spectants et l’homo particeps, je voulais justement mettre l’accent sur le fait que dans un cas il y a engagement et dans l’autre non. Mais j’avais le tort de ne pas tenir compte de la contemplation qui est sûrement l’une essence toute différente, et au point où nous sommes parvenus, il peut-être necessaire de chercher en quoi cette différence consiste”.

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

46

seu comprometimento com o problema da injustiça e das desigualdades, se deu por dois

motivos:

Como menino fiquei muito impressionado com o caso Dreyfus, acredito poder afirmar que este acontecimento marcou em mim uma certa atitude. Por outra parte, a guerra de 1914 e as condições em que se desenvolveram têm tido sobre mim uma profunda influência; ademais é com grande angústia que vejo seguir a remilitarização da Alemanha, e com desolação constato a inércia com que se faz a festa dos aliados na presença desta remilitarização [...] O certo é que, a partir de um determinado momento, estas preocupações constantes começaram a tomar corpo filosoficamente acentuando-se no solo durante a segunda guerra mundial, senão também em tempos posteriores [...] Tenho constatado cada vez com maior clareza, que o problema da justiça é prioritário, que era necessário, num certo modo, falar da razão de Platão, isto é, um estado que não mantivesse a justiça em lugar mais alto, seria um estado degradado (MARCEL apud RICOUER, 1968b, p. 96,98, 102).

A existência, tal como a concebeu Marcel, é a participação no e com o mundo. É

engajamento que emerge e eleva-se contra e acima de tudo aquilo que ameaça o homem e

pretende degradar sua dignidade.

A participação na segunda guerra mundial imprimiu em Marcel um novo e aguçado

senso de orientação humano-filosófica. Em virtude de sua saúde precária, prestou serviço,

como voluntário, da Cruz Vermelha. Sua missão era encontrar, em meio aos horrores da

sombria realidade da guerra, os corpos dos mortos48 e desaparecidos no meio do combate. “Aí

48 É justamente na época em que serve como voluntário da Cruz Vermelha, na época da segunda guerra mundial,

que Gabriel Marcel passa a interessar-se, pela primeira vez, pelo estudo de fenômenos metapsíquicos. Dada a atração de Marcel pelas ciências paranormais, convém descrever alguns caminhos pelos quais passou. M.M.Davy dedica um capítulo inteiro ao estudo das experiências de Gabriel Marcel com as ciências paranormais. Assim, descreve: Sem dúvida, desde o fim da segunda guerra mundial, Marcel já se entrega a nenhuma destas experiências; no entanto, segue aberto a elas, bem se trate de fenômenos de telepatia, de vidência ou de escrita mediúnica. Antes da guerra de 1914, Marcel ignorava concretamente os aspectos da parapsicologia; com relação a eles, mantinha um certo estado de disponibilidade. Por volta de 1910 e 1911, conheceu, na Suíça, um inglês, o maior P. , que lhe contou sua estranha história. Ao morrer, sua mulher, que ele amava, o maior P. , falto de toda crença religiosa, esteve a ponto de suicidar-se. Intervieram alguns amigos, que lhe informaram sobre a realidade da supervivência e, vendo-o confuso, lhe incentivaram a colocar-se na relação com um médium. Depois de um período de dúvidas e de incredulidade, a respeito dos testemunhos recebidos, o maior P. , ficou convencido por completo; logo tornou-se médium e creu poder comunicar-se diretamente com sua mulher. Depois de contar este encontro, Marcel diz: esta história me produziu uma grande impressão e, desde já, não inquietou em mim menos o dramaturgo que o filósofo [...] Este drama revela a dualidade de sentimentos de Marcel a propósito de suas investigações metapsíquicas. Sente-se interiormente dividido, como se confirma na seguinte descrição: ‘Se agora me perguntar que posição me inclinarei a adotar frente a uma história como essa, a palavra que creio mais exata para caracterizar minha atitude seria a de open-mindedness – mente aberta, sem prejuízos -. [...] Na sua peça o ‘El Iconoclasta’, Marcel comenta: “Desta dualidade que há em mim, do El Iconoclasta é o mais certo testemunho... Acerca desta obra... direi... que termina com uma afirmação de certo mistério da supervivência, sobre o que não podemos chegar por procedimentos experimentais, precisamente porque é um mistério; quer dizer, algo que ultrapassa os limites do pensamento problemático, no qual só pode proceder discursivamente sobre um dado determinado. Em outra ocasião, muito difícil por certo, entrou Marcel em contato com as ciências paranormais e chegou a desenvolvê-las pessoalmente. Foi durante a guerra de 1914-1918, em que não pôde tomar parte, por causa do seu estado de saúde. Seu amigo Xavier Léon, ao ir a Paris com destino a Provenza, lhe pediu que lhe esperasse em frente a

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

47

viveu a guerra, na perspectiva de ‘clarear destinos’. Experimentou, de maneira concreta, o

drama da existência humana” (ZILLES, 1988, p. 30), em todas as dimensões e extremidades

das esferas políticas e sociais.

Politicamente o que mais se destaca em Marcel é sua vontade inconformista, sua capacidade de indignação contra injustiça ou falta de respeito à vida humana. Este espírito de justiça lhe leva a se colocar ao lado dos oprimidos, sejam quais forem. Por ter vivido a tragédia de 1914-1918 faz que sua voz se levante energicamente contra a guerra: prova disso é como respondeu ao chamado de Mauriac acerca da Argélia. Gabriel Marcel é um homem que tem deixado provada sua valentia de pensamento, espécie mais rara, bem menos chamativa, que a valentia física. Os que crêem que ele é ingênuo em questões políticas se enganam de plano. O que ocorre é que sua consciência é inseparável de uma grande honestidade, de uma absoluta falta de malícia, ou melhor, de má fé. O homem justo não se apercebe facilmente das baixezas, das hipocrisias, das maldades do próximo. Marcel não julga uma obra baseando-se nas crenças políticas ou religiosas do seu autor, nem se esconde em determinada filosofia para mudar de opinião a respeito dela (DAVY, 1963, p. 67-68).

Gabriel Marcel é um filósofo inquieto e inconformado. “No aspecto dinâmico, toda

sua obra é um combate obstinado e sem trégua contra o espírito de abstração” (MARCEL,

um serviço de informação, que funcionava em uma seção da Cruz Vermelha. Marcel foi especialmente encarregado das notícias dos desaparecidos. Este serviço punha a sua disposição um enorme arquivo de fichas sobre os soldados de diversos regimentos. Assim, Marcel esteve em relação constante com famílias que buscavam, com ansiedade, notícias dos maridos, dos filhos, dos irmãos que não davam sinal de vida. Era preciso fazer perguntas entre os feridos e os prisioneiros, antigos amigos dos desaparecidos. Marcel compartilhou as angústias das famílias. “Era – disse – uma chamada desesperadora, a qual eu tinha que responder”. Assim foi como, durante o inverno de 1916-1917, esperando entrar em relação com soldados mortos, cujo rastro buscava, cheguei a entregar-me às experiências metapsíquicas [...] Em princípio, os resultados foram medianos e confusos. Porém, a presença de uma jovem, cujo marido havia desaparecido, provocou, em seguida, um caminho rigorosamente positivo [...] Marcel seguiu por alguns meses com estas experiências, cujos resultados, se, às vezes, era negativo, eram, em outras, de uma precisão inexplicável; em verdade, pelos procedimentos lógicos de costume. Sobre estas experiências, tempos depois, comenta Marcel em seu Diário Metafísico, em 2 de abril de 1916 (antes dos fatos acima relatados): ‘Percebo hoje, neste claro e maravilhoso dia de primavera, que as noções da chamada ciência oculta, contra as quais a razão parece sublevar-se, estão na verdade na raiz de nossas maiores correntes e indiscutíveis experiências. A experiência sensível, a experiência volitiva, a experiência mnemotécnica (DAVY, 1963, p. 300-302). Mais ainda, nos diz Marcel, em Du Refus à I’invocation: “Tive sobretudo, a dolorosa experiência de ver como as frases abstratas favoreciam a obnubilação da verdade. Foi então, assim mesmo, quando o alcançou a convicção da realidade dos fenômenos metapsíquicos, isto é, fenômenos supranormais, cuja preterição por parte da ciência pude lamentar (MARCEL, 1940, p. 313). Evidentemente, o interesse de Marcel pelas ciências paranormais não tem nada de raro; é coisa normal que um filósofo dirija sua atenção a experiências da realidade inegável [...] Nos países, os anglo-saxões, na Holanda e na Alemanha, assim como em muitas Universidades, funcionam cátedras de parapsicologia. (DAVY, 1963, p. 305). Sobre o modo como Marcel passou a se relacionar, mesmo após a conversão ao catolicismo, com as experiências mediúnicas e paranormais, acrescenta Roger Troisfontaines: “[...] sem nada a abdicar da liberdade de espírito ou da linguagem franca, acolheu e procurou todas as manifestações da ação Divina ou da presença espiritual, especialmente entre os místicos e entre os membros dos grupos de Oxford” (TROISFONTAINES, 1947, p. 233). “Os mortos são para Marcel seres vivos. “A ausência se faz presença em uma nova luz que lhe acompanha em sua jornada” (DAVY, 1963, p. 25).

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

48

1951b, p. 5), contra tudo aquilo que pretende encarcerar e/ou assimilar o homem, ao nível da

coisa ou do objeto, à abstração da verdade de si, que, uma vez reduzida a fórmulas técnicas,

tornam-se destinadas a serem, depois, mecanicamente manipuladas.

Por fundar-se na condição existencial, o pensamento de Marcel revela-se como uma

Filosofia da experiência, transmutada em engajamento e ação, numa participação lúcida, onde

a realidade não se confunde e/ou se perde no conceito, porque pretende contribuir para a

construção de uma visão de mundo, em que apenas haja lugar para a liberdade, a historicidade

e as grandes questões humanas e aspirações existenciais.

Em virtude desta consciência engajada, Marcel é considerado por alguns “como o

mais existencialista dos existencialistas franceses” (SCIACCA, 1947, p. 272). “A capacidade

metafísica mais potente entre os pensadores da anterior geração” (WAHL apud LENZ, 1955,

p. 204); como um pensador que se situa em um novo realismo, que transcende as meras

“categorias espaço-tempo, à medida que se coloca em direção das realidades transubjetivas,

interpessoais e supra individuais da convivência, da liberdade, da fraternidade e do amor [...],

quando aludem a âmbitos inobjetivos da vida humana” (CARMONA, 1995, p. 21).

Gabriel Marcel, como filósofo do cuidado, nos chama “[...] a um retorno ao existente,

à vontade não de substituir, de consistir ou resistir – mas verdadeiramente de existir, no

sentido pleno do termo, como uma totalidade ontológica, e numa realidade muito tangível,

extremamente concreta” (HUISMAN, 2001, p. 90).

Como filósofo da vida e da existência, Marcel não dispõe somente de antenas bastante

delicadas para perceber as nuanças da realidade de que nos fala; tem bastante retidão e

grandeza de alma para esforçar-se por viver ao nível delas (TROISFONTAINES, 1947, p.

246). Gabriel Marcel é um homem, “[...] sobre quem me inclino a pensar que se trata de uma

presença espiritual, que, sempre desejoso de comunhão e de amor, se faz encarnar em sua

obra com todo seu ímpeto e sua profundidade” (DAVY, 1963, p. 20).

É com base nestes desdobramentos histórico-conceituais que apresentamos as

contribuições do Pensamento Filosófico de Gabriel Marcel para a Educação, numa

perspectiva da formação humana, respaldados na abordagem hermenêutico-fenomenológica

de investigação. Nossa intenção é, seguindo a trilha metodológica indicada por Marcel, buscar

“[...] o aprofundamento de uma certa situação metafísica fundamental, da qual não basta dizer

que é minha, porque nela é que eu consisto essencialmente” (MARCEL, 1933, p. 24).

Na expectativa de corresponder ao caráter da busca de Marcel, quando diz, no prefácio

da obra Le Mystère de L’être (1951a), que não deseja dirigir-se a uma inteligência abstrata e

anônima, mas a seres individuais, visando despertá-los para uma reflexão mais profunda, é

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

49

que pretendemos apresentar os pressupostos deste trabalho de pesquisa, através do esforço

que visa contribuir com o processo de superação das determinações do pensamento objetivo e

especulativo sobre o homem, em sua condição de Ser itinerante (BELAVAL, 1974).

Seguindo as pegadas do caminho proposto por Gabriel Marcel, compreendemos, na

perspectiva do seu método neosocrático, que, uma investigação nestes moldes não pode deter-

se na mera distinção de categorias e/ou no simples ato de seccionar o objeto. A tarefa da

pesquisa filosófica consiste em investigar em que condições e de que modo o sujeito se

articula com sua própria realidade; em analisar uma certa via profunda de investigação através

de uma ‘anamnesis’, por onde se pretende evocar e explorar as dimensões do Ser,

anteriormente, esquecidas. Nas palavras de Marcel:

Talvez possa dar suficiente ideia do que foi a minha constante e principal preocupação metafísica dizendo que o que eu pretendia era descobrir como o sujeito, precisamente na sua própria condição de sujeito, se articula com uma realidade que desaparece quando é encarada como susceptível de ser representada como objeto, sem deixar, por isso, de ser sempre exigida e, simultaneamente, reconhecida como realidade. Tais investigações, porém, só seriam viáveis ultrapassando aquele psicologismo que se limita a definir e a caracterizar atitudes sem tomar em consideração os seus desígnios, a sua interioridade concreta [...] Sempre procurei eliminar definitivamente a noção de um pensamento que, de qualquer modo, definisse objetivamente a estrutura do real e por isso, se viesse a julgar qualificado para se pronunciar sobre ele (MARCEL, 1947, p. 318).

Neste sentido, o papel do pesquisador não pode ser o de um mero espectador e/ou

curioso que, contemplando uma paisagem, não se sente parte constituinte dela. O sujeito que

pesquisa precisa assumir a atitude de um Ser dialético; de alguém que, resistindo à tentação de

se mover pelas respostas dadas, dispõe-se a formular as perguntas que ainda não foram feitas;

a procurar construir um pensamento que não se move de maneira linear, mas, que se abre na

perspectiva de espiral que, à medida que se move, anuncia outras formas e possibilidades.

Deste modo, é preciso que se “[...] admita, em princípio, que esta intenção só poderia

prosseguir no interior de uma realidade, perante a qual o filósofo não poderá colocar-se na

posição de quem contempla um quadro [...]” (MARCEL, 1947, p. 318 - 319).

Mais ainda, realçando esta atitude instigadora do pesquisador, podemos dizer que o

pensamento objetivo não pode se tornar o único par de lentes daquele que busca apreender a

realidade. “Pois a consciência humana não é, em primeiro lugar, consciência que conhece,

senão experiência de presença e abertura perante os outros” (CARMONA, 1995, p. 20). A

apreensão do Ser não pode limitar-se à objetivação do pensamento, porque “[...] o Ser é

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

50

aquele que resiste – ou seria aquele que resistiria – a uma análise exaustiva sobre os dados da

experiência e que tratará de reduzi-los progressivamente a elementos cada vez mais

desprovidos de valor intrínseco ou significativo” (MARCEL, 1987, p. 30-31).

Na busca por desvelar o Ser, cabe ao pesquisador procurar ascender, mediante o

esforço filosófico, do nível objetivo para o nível da presença, do subjetivo e do supra-

objetivo. Na intenção de aproximar-se do que é o homem, é preciso que se evite fazer da

pesquisa metafísica “[...] tanto uma especulação vazia, enquanto extravagante, como conduzir

a pesquisa com a mesma objetividade e desapego com as quais se leva a efeito a pesquisa

científica” (MONDIN, 1981-83, p. 204). “O Ser tende a ser possuído pelo pensamento”

(MARCEL, 1927, p. 279), todavia, a atitude de possuir não pode se confundir com o ato ou

desejo de controlar, dominar, determinar e concluir.

Segundo o olhar de Marcel, toda verdade sobre o Ser é mera aproximação49 e todo

conhecimento sobre o que é o homem, é provisório. “A filosofia compreendida desta maneira,

deverá constituir, portanto, em tomar reflexivamente consciência do que há de mais íntimo e

de mais profundo em mim, em pensar o ato que eu sou ao mesmo tempo em que o exerço e

que o vivo” (JOLIVET, 1953, p. 356). Ademais, acrescenta Gabriel Marcel,

[...] é preciso ter sempre em mente que a presença do Ser transcende a qualquer verificação concebível, porque se exerce no seio de um imediato que se situa para além de qualquer mediação pensável. Somos, portanto, obrigados a concluir que não se pode impor silencio à exigência ontológica senão por um ato arbitrário e gratuito, que mutila a vida espiritual na sua própria raiz (MARCEL, 1933, p. 261).

Mediante as palavras acima, compreendemos que Marcel convoca o pesquisador a sair

do campo da imediaticidade do problema, para dimensão do mistério que é o homem e sua

existência. “Enquanto um problema autêntico se justifica segundo certa técnica apropriada,

em função da qual se define, um mistério transcende por definição a toda técnica imaginável”

(MARCEL, 1935, p. 169). Nestes termos, cabe ao filósofo, mediante os pressupostos da

reflexão metafísica, procurar restaurar o elo nupcial entre o Ser e a existência, entre o homem

e sua realidade.

“Tratar o problema ontológico é interrogar-se pela totalidade do Ser e por mim mesmo

enquanto totalidade” (MARCEL, 1987, p. 34). “É fazer o homem passar do mundo empírico

em que vive, o da objetividade que empobrece as coisas e da função que desumaniza as 49 “Entendendo que a palavra ‘aproximação” está carregada de pleno sentido metodológico, pois o Ser não é um

mero conceito ou uma mera ideia. “É, pelo contrário, o mais concreto e o mais cheio de vida que existe” (MARCEL, 1987, p. 30).

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

51

relações, para o mundo transcendente do Ser e da intersubjetividade” (GARAUDY, 1965, p.

140). Falamos em procurar conceber o homem para além das dicotomias epistemológica

(objeto-ideia), antropológica (espírito-corpo), metodológica (lógica-transcendência) e

antropológica (Ser-matéria).

O caminho da investigação filosófica de Marcel50 “[...] consiste em o homem ir ao

encontro de si mesmo, sondando o que há nele de mais original e de mais pessoal, levando-o

em seguida a refletir sobre as descobertas, aprofundando os dados numa linha de

inesgotabilidade do ser humano” (GIRARDI, 1978, p. 38). O caminho metafísico essencial

consistirá, desde então, “em uma reflexão sobre esta reflexão à segunda potência pela qual o

pensamento se volta para uma recuperação de uma intuição que se perde ao contrário de

algum modo na medida em que ela se exerce” (MARCEL, 1933, p. 171). No fundo, o método

é sempre o mesmo: “[...] aprofundamento de uma certa situação metafísica fundamental, da

qual não basta dizer que é minha, porque nela é que consisto essencialmente” (MARCEL,

1933, p. 24).

É movido pelo senso da transcendência do Ser, que nos propomos, conforme os

pressupostos da pesquisa de Gabriel Marcel, a fazer uma análise do processo da formação

humana, através de suas formas contínuas e descontínuas, procurando estabelecer entre elas

um relacionamento mútuo, que tem na confiança no ser - educando/educador - a base de

sustentação de uma prática pedagógica, que pretende formar o ser humano em todas as suas

dimensões. Este é um processo de formação humana que, segundo Röhr,

[...] não se nega diante da verdade dolorosa – em que não podemos fechar os olhos, em que todas as fragilidades, falsidades, crueldades e desumanidades merecem toda a nossa atenção e desconfiança – mas que se abre diante da verdade esperançosa – que acredita num sentido fundante da nossa vida, que merece confiança (2008, p. 14).

Para descrever o percurso metodológico desta análise, buscamos o referendo de

Roberto Jarry Richardson, quando afirma que “a principal ferramenta de sobrevivência do

homem é sua mente”. Para ele “a mente humana está diretamente relacionada com a nossa

existência” (RICHARDSON, 2007, p. 20). Pensar a existência e sobrevivência do homem, a

50 Outras considerações sobre o método marceliano de pesquisa podem ser encontradas nas obras: Le Christ des

Philosophes (TILLIETTE, 1993); De l'Existence à l'Être: la philosophie de Gabriel Marcel. Tome I. (TROISFONTAINES, 1953a); Du Côte de Chez Gabriel Marcel (BOUËSSÉE, 2004); Gabriel Marcel un Veilleur et un Éveilleur (PARAIN-VIAL, 1989); L’aventure philosophique avec Gabriel Marcel (ARNALDEZ, 1988), entre outros.

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

52

partir da sua capacidade de indagação e interpretação é, acima de tudo, passar a vê-lo como

um sujeito cujo entendimento é o resultado da construção de sua realidade.

Quanto aos procedimentos metodológicos, faremos uma análise do pensamento

pedagógico deste teórico, com base no método hermenêutico-ontológico de reflexão, por

entendermos que o mesmo está voltado para o tratamento das informações e condições do seu

contexto, visando esclarecer as estruturas do desenvolvimento da existência humana e

estabelecer uma íntima relação entre o sujeito pesquisador e sua pesquisa.

Segundo Hans-Georg Gadamer,

[...] hermenêutica significa em primeiro lugar práxis relacionada a uma arte. A arte em questão aqui, é a arte da interpretação, que inclui naturalmente a arte da compreensão que lhe serve de base e que é sempre exigida quando o sentido de algo se acha obscuro e duvidoso (2007, p. 111-112).

Para Gadamer, este método consiste em considerar o homem como ser histórico e

dialético; alguém que se descobre, deste modo, como um “ser hermenêutico por natureza”

(LAWN, 2007, p. 63). Essa ideia é reforçada por Maria Cecília de Sousa Minayo, quando nos

mostra que uma pesquisa, de acordo com pressupostos hermenêuticos, implica, para o

pesquisador, em

[...] clarear para si mesmo o contexto dos documentos a serem analisados, levar a sério o ato social que está diante dele, considerar as razões que o autor teria para elaborá-lo, entender que no labor da interpretação não existe última palavra, ter a expectativa de que o autor poderia compartilhar da explicação elaborada se pudesse penetrar no mundo do pesquisador (MINAYO, 2000, p. 221-222).

Assim, procuramos assumir a postura de sujeito investigador, pretendendo analisar,

interpretar e explicar nosso objeto de estudo através dos procedimentos da abordagem

qualitativa, focando o desenvolvimento histórico, as implicações, os desafios e os

desdobramentos, que visam explicitar as análises do Pensamento Filosófico de Gabriel

Marcel. Temos a intenção de tratar sobre a continuidade e a descontinuidade da formação

humana, a partir de sua abordagem do Ser e do Ter, diante dos fenômenos humanos e

pedagógicos, buscando mostrar como as formas e os processos instáveis e contínuos da

itinerância humana podem contribuir para a formação do homem, em face de sua condição de

sujeito histórico, inacabado e possível.

Com esse intuito, elegemos como objetivo geral deste estudo analisar a abordagem

fenomenológica da metafísica do Ser e do ter no Pensamento Filosófico de Gabriel Marcel e

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

53

suas contribuições para a educação, numa perspectiva da formação humana. Mais

especificamente, pretendemos investigar como, no pensamento filosófico de Gabriel Marcel, a

dialética do ter sobre o ser contribui para a despersonalização das relações humanas e do

processo educativo. Queremos compreender a interligação que existe, para Marcel, entre

intersubjetividade e formação humana, à luz da abordagem fenomenológica da metafísica

antropológica da existência do Ser em sua situação concreta. Apresentaremos, ainda, as

implicações da abordagem fenomenológica da metafísica da dialética do Ser e do ter, numa

perspectiva da formação humana. Procuraremos destacar os aspectos da continuidade da vida

humana, indicados pela Filosofia da Esperança para uma visão integral do ser humano; e, por

fim, pretendemos apresentar os aspectos da continuidade da vida humana, apontados pela

Filosofia da Esperança, que são relevantes para o pensamento pedagógico na visão de Marcel.

Deste modo, na primeira parte desta investigação, apresentaremos a caracterização

antropológica e metafísica do pensamento filosófico de Gabriel Marcel, a partir dos

pressupostos da Filosofia da Existência e da Filosofia da Esperança. Em seguida,

procuraremos destacar a natureza do pensamento antropológico marceliano; a concepção do

homem, enquanto ser encarnado e o modo como a noção de eu-corpo ultrapassa as linhas do

movimento dialético do construto eu-objeto, para se transformar num eu-encarnado, que se

assume como presença existencial na própria concretude, realidade e forma de Ser do homem.

Faremos uma discussão sobre o lugar, o sentir, a mediação e o mistério da corporalidade,

como condição humana orientada para o absoluto; sobre a condição itinerante do homem, sua

situação, temporalização e seu itinerário entre a crítica do saber absoluto e a possibilidade da

inteligibilidade do Ser. Abordaremos a concepção de liberdade, em Marcel: o homem como

ser aberto e sua relação com a razão, a graça, a verdade, a heteronomia e o testemunho. Em

relação à problemática da intersubjetividade, focaremos o homem como ser de comunhão

fraterna, o lugar do outro na formação deste Ser e o papel da disponibilidade no processo de

constituição da condição humana, considerando a importância da comunicação existencial

para o desvelamento do mistério do Ser. Ainda discutindo a intersubjetividade, veremos o

homem como ser de comunhão fraterna, o lugar do outro na formação do ser, o papel da

disponibilidade no processo de constituição do ser e a importância da comunicação existencial

para o desvelamento do mistério do ser. No que se refere ao fenômeno da transcendência,

faremos uma reflexão sobre: o homem como ser voltado para o absoluto, a exigência

imanente da transcendência de si, situação histórica e transcendência; e a relação entre

existência e transcendência, envolvendo a reflexão primária e a reflexão segunda. Como

Marcel irá demonstrar, o homem não é senão um Ser a caminho, cuja existência encontra-se

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

54

aberta e se dirige, através das relações intersubjetivas, para o horizonte daquilo que não é,

ainda.

No segundo momento, a pesquisa analisa a descrição do pensamento ontológico de

Gabriel Marcel: entre o mistério e o desvelamento do ser, a descrição metafísica do mistério

do ser, o mistério, a exigência e a indeterminação do ser. Trataremos sobre a metafísica da

morte, da decisão existencial à eternização do ser, sobre o mistério e o fascínio da morte, a

possibilidade de transcender o desespero, o ter e a morte, o “ser-para-a-morte”, em Martin

Heidegger, da minha morte à tua morte. Falaremos sobre a morte como situação-limite, em

Karl Jaspers, a morte do ser amado, a condição itinerante do ser face à morte, a morte como

fim do ser-com, a morte como manutenção de uma recordação, a morte como afirmação da

presença do tu. Em relação à experiência metapsíquica, discutiremos a comunicação com o

além e a afirmação da presença. Ao trazer a abordagem sobre a metafísica da esperança,

buscaremos a relação entre confiança e fidelidade, comunhão e cuidado, o desespero e a

esperança. Veremos como a meditação sobre a morte dos seres que amamos abre,

definitivamente, a grande via que permite a compreensão deste mistério em Marcel, em sua

relação com a esperança, enquanto fulcro existencial e fundamento daquilo que o Ser é no

mais íntimo de sua condição humana.

Na terceira parte da pesquisa, apresentaremos o processo, segundo Gabriel Marcel, de

despersonalização das relações humanas na civilização técnico-industrial, considerando a

natureza do ambiente espiritual da sociedade técnico-industrial. Faremos uma discussão sobre

a incidência da civilização industrial e a funcionalização humana, com o olhar voltado para a

natureza e o valor positivo das técnicas, para a influência da técnica sobre o humano, a

abstração do ser e a desumanização do mundo, para o caráter abstrato do meio industrial,

encarando a crise de valores no mundo contemporâneo, o caráter das técnicas de aviltamento

e o envilecimento do humano na civilização industrial. Ao discutir a ideologização da história,

falaremos sobre a manipulação da propaganda; a desumanização do humano face ao espírito

de abstração, a influência do conhecimento técnico no processo de degradação do humano; a

construção utilitária da consciência técnico-funcional e a condição existencial da consciência

massificada, destacando a incidência abstrata da consciência fanatizada. No tocante à

despersonalização das relações humanas e aos limites da civilização industrial, faremos uma

confrontação entre a condição subvertida do homem da “barraca” e a situação agônica do

homem problemático. Nesta parte, Marcel descreve o homem enquanto alguém que se recusa

a ser considerado como uma simples unidade funcional, que não pretende se reduzir ao jogo

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

55

das aparências sucessivas e inconsistentes, dos processos e mecanismos que ameaçam

suprimir sua condição de ser encarnado.

Por último, a pesquisa pretende apresentar as contribuições do pensamento de Gabriel

Marcel para a educação, numa perspectiva da formação humana, acenando para os seus

desafios e possibilidades. A partir das exigências educativas da formação humana, na era da

técnica e tecnologia, pensamos em fazer uma reflexão sobre a formação integral do ser

humano, tentando atender às necessidades da era da técnica e da tecnologia, possibilitando a

redescoberta da noção de sabedoria. Ao discutir sobre as perspectivas ontológicas e

pedagógicas da relação entre educador e educando, focaremos aspectos da formação humana

à construção da consciência engajada, realçando a dimensão comunicativa e a comunhão entre

o eu e o tu. Abordaremos a dimensão da presença, através do compromisso e da participação;

a dimensão da paciência, através da serenidade e da confiança; e a dimensão da vivência,

através da diversidade e da tolerância. Além destes aspectos, também faremos, neste

momento, uma análise sobre os papéis do educador-filósofo, na era da técnica e da tecnologia.

Finalmente, lançaremos desafios das tarefas pedagógicas ao fazer concreto, olhando para as

exigências da formação humana, na perspectiva de desenvolver uma prática pedagógica

geradora de sentido humano e de cultivar/vivenciar uma prática pedagógica promotora da

dignidade humana, mobilizando-se em direção ao mistério e à transcendência do Ser.

A pesquisa inscreve-se nos discursos e debates sobre Filosofia, Teoria Educacional e

Formação Humana. Seu objetivo é analisar como o Pensamento Filosófico de Gabriel Marcel

articula-se entre os processos de descontinuidade e continuidade da condição humana.

Pretendemos, ainda, identificar as implicações do pensamento pedagógico deste teórico sobre

as configurações do processo educacional, que envolve a integralidade do ser inacabado, seus

questionamentos, descobertas, limites e possibilidades no contexto de uma cultura globalizada

e democrática.

Temos a intenção de, por fim, contribuir para o aprofundamento de seus principais

conceitos e pontos de vista, sobre o modo de se conceber o homem e os aspectos constituintes

de sua formação. Assim, tomamos como referência o Pensamento Filosófico de Gabriel

Marcel, por entendermos que o mesmo procura expor a natureza da contribuição da Filosofia

para a formação humana, à medida que expressa o núcleo vital do seu pensamento, que é a

Esperança.

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

56

CAPÍTULO 1 DESPERSONALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES HUMANAS NA

CIVILIZAÇÃO TÉCNICO-INDUSTRIAL

Em nós a pressa mora. Mas do tempo ao passar tal bagatela ignora, entre o que tem vagar!

Tudo que corre agora Em breve há de acabar: só o que custa a demora nos pode consagrar Jovem, procura e ousa - não a velocidade, o vôo tentador... não, pois tudo repousa no Eterno: claridade e sombra, livro e flor.

(Rainer Maria Rilke)51

Qual a relação que há e/ou pode haver entre a Ciência técnica e a Sabedoria

humanista? É possível haver diálogo entre a consciência existencial e a mentalidade técnica?

Quais os efeitos da técnica sobre a condição humana? A técnica está a serviço ou contra o

processo de qualificação das relações humanas? O dualismo homem-técnica tem suscitado o

antagonismo entre a consciência existencial e a mentalidade técnica. Diante da disjunção

homem e técnica, é possível encontrar aqueles que, em nome da consciência existencial,

desconsideram a importância da técnica, como aqueles que, em função da supervalorização da

técnica, se relegam à visão integral do Ser humano. Conforme Gabriel Marcel,

[...] onde a técnica é soberana – e refiro-me, antes de tudo àquela que tende a assegurar a ação do homem sobre a natureza – não se vê como a complicação possa ser evitada; é justo que ela seja a condição de um aperfeiçoamento que se deve tornar cada vez mais preciso [...] Mas o que é notável e do que bem poucas pessoas se apercebem, é que, a partir do momento em que estamos em presença do humano tudo muda [...] (1958, p. 7).

51 “Já no décimo-oitavo e no vigésimo-primeiro sonetos, como neste, refere-se o poeta à efervescência do mundo

moderno, a braços com a máquina, por vezes insubmissa: ‘Olha a máquina, como ela gira e se vinga, e nos mutila e enfraquece!’ E foi em pleno século da aviação que Rilke lançou o seu protesto e conselho aos jovens, para que, em vez do vôo sedutor, optassem pelas coisas eternas – claridade e sombra, livro e flor ...” (JORGE apud RILKE, 1924, p. 80).

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

57

O papel da técnica não é servilizar o homem, mas, proporcionar as condições

adequadas para que o ser humano possa se desenvolver subsistencial e socialmente. Gabriel

Marcel, ao refletir sobre a influência da técnica sobre o processo de formação humana e

espiritual do Ser, não se coloca contra ela como tal, mas, é contra a técnica que deixa de ser

meio, para se tornar um fim.

A problematização da relação entre o homem e a técnica nos coloca, a partir das

reflexões marcelianas, a pensar a respeito da tensão que há entre civilização industrial e

funcionalização humana, a desumanização do humano face ao espírito de abstração e suas

influências sobre o processo de despersonalização das relações humanas. Mais ainda, nos

convoca a refletir sobre os limites da civilização industrial, entre a condição subvertida do

‘homem da barraca’52 e a situação agônica do homem problemático.

Orientado pela compreensão que nada pode se colocar contra o valor e a “honra de ser

humano” (MARCEL, 1951b, p. 226), Gabriel Marcel nos põe a pensar sobre a necessidade de

distinguirmos, com muito cuidado, mesmo que este discernimento seja difícil de se fazer,

entre progresso técnico e desenvolvimento da maturidade humana. Sobretudo, diante da

exigência existencial que temos, de “[...] procurar deixar de pensar no homem como uma

máquina” (MARCEL, 1958, p. 8).

1.1 Ambiente espiritual da sociedade técnico-industrial

A condição do homem é de ser-em-situação. O interesse do homem por viver, por

estar-no-mundo, é inseparável de seu empenho de estar bem. Como Ser engajado, ele sempre

aspira por garantir as condições necessárias para o alcance dos fins essenciais da sua

existência e da vida humana em geral.

Enquanto os demais seres vivem de acordo com suas condições objetivas, o homem,

ao contrário, não coincide com o repertório de sua condição vital, porque é capaz de

desprender-se dela para ocupar-se em atividades, que, por si só, não pretendem,

simplesmente, a satisfação das suas necessidades orgânicas. Consoante Karl Jaspers, “o

52 O uso do termo ‘homem da barraca’ faz alusão à expressão que Gabriel Marcel usa na obra L’Homme

Problematique (1955), para se referir à condição do homem face aos desafios de desvelamento e formação de sua própria condição existencial. Esta expressão representa um modo, característico de Marcel, de se referir ao homem diante dos processos que pretendem sua redução às categorias de função, de coisa, de código e de objeto.

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

58

homem é o ser que não só existe, senão que sabe que existe. Consciente de si mesmo explora

o mundo, e, projetando, o transforma” (JASPERS, 1933, p. 11).

Através da interface do homo faber com o homo sapiens, o homem questiona a si

mesmo e ao mundo, justifica suas ações, aprimora suas habilidades, cria artifícios, inventa

estratégias, perpetua iniciativas, descobre novos processos, intervém na realidade e apropria-

se das coisas exteriores, para, a partir delas, compreender, construir, se servir e transmitir,

mediante a linguagem, o homo loques, os símbolos e as referências fundantes de sua própria

experiência sócio-existencial.

A relação entre o ser, o fazer e o ter nasce com a própria história da humanidade, a

partir do momento em que o homem descobre que é capaz de obter da natureza aquilo de que

ele precisa, não só para suprir suas necessidades, como para garantir o desenvolvimento de

sua própria subsistência e perpetuação. Movido pelo ideal de progresso, o homem passou a

criar seu mundo, a designar atividades de produção, a implementar processos de manipulação

e a desenvolver um conjunto de habilidades composto pela criação de objetos, métodos de

factura, execução, conservação e aprimoramentos53. O homem se viu como um ser capaz de

empregar um nexo de instrumentos e procedimentos, manual e industrial, que se tornaram

uma projeção de si e uma co-extensão dos seus próprios movimentos; ele cria a técnica54.

Aristóteles define a ‘techne’, na obra “Ética a Nicómaco” (ARISTÓTELES, 2004),

como uma das cinco virtudes vitais55 pelas quais o ser humano pode acessar a verdade e

53 Delgado de Carvalho sintetiza este desenvolvimento em três fases: “Na primeira, as invenções aumentam o

poder das mãos; é criada a ‘ferramenta’, simples projeção do órgão; na segunda, é visado um efeito defensivo sob o impulso da força humana, é aumentado o poder de nossos sentidos: é criado o ‘instrumento’; na terceira fase, há uma combinação de engenho humano, é facilitado o deslocamento no espaço, o efeito é ‘mecânico’: é criada a máquina. Nesta fase é que mais se desenvolve a utilização das forças naturais” (CARVALHO, 1931, p. 237).

54 Conforme a descrição de Nicola Abbagnano: “O sentido geral desse termo coincide com o sentido geral de arte: compreende qualquer conjunto de regras aptas a dirigir eficazmente uma atividade qualquer. Nesse sentido, técnica não se distingue de arte, de ciência, nem de qualquer processo ou operação capaz de produzir um efeito qualquer: seu campo estende-se tanto quanto o de todas as atividades humanas [...] Tanto em suas formas primitivas quanto nas requintadas e complexas, presentes na sociedade contemporânea, a técnica é um instrumento indispensável para a sobrevivência do homem. Seu processo de desenvolvimento parece irreversível porque só dele dependem as possibilidades e sobrevivência de um número cada vez maior de seres humanos e seu acesso a um padrão de vida mais elevado [...]” (ABBAGNANO, 2007, p. 939, 941).

55 “São cinco em número as operações envolvidas na descoberta da verdade: a técnica/pericia, o conhecimento científico, a sensatez, a sabedoria e o poder da compreensão [intuitiva] [...] Daquilo que pode ser de outra maneira distingue-se o que é produtível e o que é realizável pela ação. A produção é diferente da ação. Assim, a disposição prática conformada por um princípio racional é diferente da disposição produtora conformada por um princípio racional. Assim, nenhuma das duas é envolvida pela outra, porque nem a ação é produção nem a produção é ação. Uma vez a construção civil é uma certa perícia, pode dizer-se que é uma certa disposição produtora conformada por um princípio racional. Como não há nenhuma técnica que não seja também ela uma disposição produtora conformada por um princípio racional, nem há sequer nenhuma disposição deste gênero que não seja ela própria uma técnica, segue-se que uma técnica é o mesmo que uma disposição produtora segundo um princípio verdadeiro. Por outro lado, toda técnica tem em vista trazer algo à existência. Produzir

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

59

promover o seu desenvolvimento. A capacidade do “reto saber fazer” implica na ação que

habilita o homem a produzir uma realidade que antes não existia (ARISTÓTELES, 1996). A

técnica, afirma Oswald Spengler, “é a tática da vida” (SPENGLER, 1998a, p. 134), é a

característica humana que capacita o homem a buscar não só a satisfação das suas

necessidades, como a criar novas e ilimitadas possibilidades de abordar a natureza, responder

ao pensamento e intervir no real.

Imerso na grande cadeia do progresso técnico-industrial, o homem passou, cada vez

mais, a deixar-se guiar pelos princípios da racionalidade instrumental (AYALA, 1949). A era

técnico-industrial é, necessariamente, conduzida pelos construtos e ideais da objetividade do

rendimento pleno, do crescimento da capacidade produtiva, do acúmulo de bens, da

ampliação de mercados, diversidade de serviços e da busca pelo desenvolvimento de novas

técnicas e tecnologias.

Do ponto de vista sócio-político, o início do século XX é marcado por um sentimento

de otimismo, fruto dos avanços tecnológicos: no campo naval, com a criação de modernos

transatlânticos; na área automotiva; nos setores da aviação; na comunicação, com a criação do

rádio, do telefone, do telégrafo e da televisão; na produção de energia elétrica, petrolífera e

nuclear; na agricultura, com a introdução de novas técnicas e o aprofundamento dos

conhecimentos científicos, que ampliaram e viabilizaram o aumento da produtividade, além

do aprimoramento da Medicina e de outras Ciências.

Os avanços foram considerados como sinais que prenunciavam a garantia de uma vida

não apenas mais longa, mas, de uma existência melhor e mais tranquila. A expectativa e a

crença europeia eram de que o mundo haveria de progredir e de que a humanidade estava

caminhando, a passos largos, para a plenitude de seu desenvolvimento.

Ao contrário do que se esperava, com o sucesso da industrialização e do

aperfeiçoamento das ciências, criou-se uma ruptura no aspecto social; uma crise, que colocou

o homem, em seu âmago, em conflito com seu próprio processo criativo. Ele se viu, face ao

poder da técnica, diante da tensão entre a possibilidade de aceder ao novo e a ameaça de

submeter-se à técnica de maneira irrestrita, impensada e desumana. Neste sentido, a

civilização industrial surge, tanto com base no imperativo das necessidades, como de acordo

com as lógicas da dominação e da contradição56. Sobre a natureza desta inversão, Julia

com técnica significa ver como se pode produzir alguma das coisas que podem ser ou não ser. O seu princípio originador radica no elemento produtor e não na coisa que é produzida” (ARISTÓTELES, 2004, p. 136-137).

56 José Ortega y Gasset explica o processo de desenvolvimento da evolução histórica da técnica distinguindo-o em três estádios bem diferenciados. “Estádio 1: A técnica do acaso: chamada de acaso porque o próprio homem primitivo ignora sua própria técnica como tal técnica; não se apercebe que entre suas capacidades

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

60

Urabayen Pérez comentando, Gabriel Marcel, afirma que

A civilização industrial se apresenta como a civilização do domínio que acaba dominando não só a natureza como o próprio homem [...] A civilização industrial é, pois, a que se baseia em valores técnicos e produtivos, que os toma em universais, e acaba na contradição de dominar e escravizar o próprio homem, criador das técnicas (PÉREZ, 2001, p. 303).

A técnica foi considerada como a condição de um aprimoramento que se deve tornar

cada vez mais preciso e eficaz. Todavia, não podemos deixar de assinalar que, em si mesma, a

técnica se transformou, para o homem, no princípio não só condutor de todo seu fazer e viver

social, como num mecanismo complicador de sua própria vida, das relações e das formas de

se ver e ser no mundo. Nesta perspectiva, José Ortega y Gasset observa que

[...] a técnica, ao aparecer por um lado como capacidade, em princípio ilimitada, faz que ao homem, posto a viver de fé na técnica e somente nela, fique com sua vida vazia. Porque ser técnico e somente técnico é poder ser tudo e, conseqüentemente, não ser nada determinado. Com ser plenitude de possibilidades, a técnica é mera forma oca – como a lógica mais formalista; é incapaz de determinar o conteúdo da vida. Por isso estes anos em que vivemos, os mais intensamente técnicos que houve na história humana, são dos mais vazios (ORTEGA Y GASSET, 1963, p. 85).

O progresso técnico não resultou, necessária e consequentemente, em

desenvolvimento humano e social. A organização racional do trabalho não correspondeu à

distribuição equitativa de produtos e serviços que pudessem garantir o bem-estar de todos. O

“trabalho foi reduzido progressivamente a um mecanismo embrutecedor da inteligência [...], o

progresso social não avança a par do progresso tecnológico” (PROUDHON, 1923, p. 140,

189). Os avanços técnicos e industriais, que deveriam ser sinônimos de emancipação e

segurança, se transformaram em instrumentos de servidão, ruptura, manipulação e em

promotores do espírito de abstração e da indignidade humana.

[...] o mundo no qual domina a máquina é um mundo sem alma, nivelador, mortificador; é um mundo no qual a quantidade tomou o lugar da qualidade definitivamente e no qual o culto dos valores do espírito foi substituído pelo culto dos valores instrumentais e utilitários (VITA apud ORTEGA Y GASSET, 1963, p. 2).

existe uma especialíssima que lhe permite reformar a natureza no sentido dos seus desejos. Estádio 2: A técnica do artesão. É a técnica da velha Grécia, é a técnica da Roma pré-imperial e da Idade Média. [...] acarreta que o homem adquira então uma consciência da técnica como algo especial e a parte [...] Estádio 3: A técnica do técnico. Implica na separação básica entre o operário e o técnico. A técnica deixa de ser o que até então havia sido, manipulação, manobra e se converte em sensu stricto em fabricação” (ORTEGA Y GASSET, 1963, p. 79,85). A intervenção da máquina é o fator diferenciador e determinante das relações de poder e status entre o não-técnico, o artesão e o operário no Período Industrial entre os séculos XIX e XX.

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

61

Diante desta configuração sócio-industrial, encontramos também, neste período, os

reflexos sobre o modo como o homem concebia a si mesmo e o outro, no mundo. Em virtude

da influência do desenvolvimento da indústria, da ampliação dos instrumentos de

comunicação e do aparecimento dos novos e mais rápidos meios de locomoção e mobilidade

das pessoas, desenvolveu-se um processo de massificação social, que pretendia unificar as

falas, os ideais, as visões, os costumes e os comportamentos dos indivíduos (JASPERS, 1958;

MARCEL, 1955; 1951b).

Como efeito desse desenvolvimento as pessoas passaram a ser manipuladas, levadas

ao conformismo, à alienação e a serem persuadidas a aderir positiva e acriticamente à opinião

vigente do status quo (BOLLNOW, 1971). Esta junção entre desenvolvimento científico-

industrial e mobilização e agitação social levou as pessoas a perderem a noção de si, ao ponto

de evitar questionamentos desta natureza: “como a situação tem sido vista até agora? Como a

situação atual foi produzida? Em que aspectos se manifestam? Como podemos hoje responder

a pergunta sobre o ser do homem?” (JASPERS, 1933, p. 11). Será que estou me perdendo?

Como posso saber quem sou? (MARCEL, 1940; 1955a).

A situação espiritual desta época é fruto do processo de secularização consciente da

vida humana e da consciência de progresso geral, pautada nos pressupostos racionais da

Revolução Francesa e da Revolução Industrial do século XVIII. Esta situação é fruto, ainda,

de um conjunto de novos planos e realizações de ordem técnica, que acabaram por provocar

uma cisão entre a fé no amanhecer de um futuro glorioso e o espanto diante do abismo de uma

existência vazia, tanto da substância do Ser humano histórico, como da própria exigência

metafísica57.

A fonte que alimenta a cisão entre o Ser e sua consciência encontra-se no processo de

mecanização da vida. Diante da ‘realidade do nada’, da destruição do bem-estar e do

comprometimento da liberdade, a vida perde seu sentido. Tudo se desvanece e se transforma

em um mero pronunciamento, por onde se denuncia a própria “La Decadencia de Occidente”

57 Cf. HCH, p. 6: “Nunca a Revolução Francesa me inspirou a menor admiração ou sequer simpatia, porque

muito cedo avaliei os estragos imputáveis a certo fanatismo igualitário. É certo que, neste caso, outro sentimento interveio, e também muito cedo, na época em que, não sei porquê, meus pais me obrigavam a ler a árida História da Revolução Francesa, de Mignet: o horror inato da violência, da desordem, da crueldade. Os abusos evidentes, perpetuados até 1789, impressionavam-me muito menos do que os crimes do Terror. Mais tarde, como é de supor, cheguei a um juízo mais equitativo ou pelo menos mais dúctil; mas a indignação sentida ao pensar nos morticínios de Setembro, ou em outros crimes coletivos não difere afinal essencialmente da que em mim despertaram, em data recente, os horrores do nazismo ou do estalinismo ou as ignomínias de certa depuração. Como duvidar de que uma disposição tão profunda esteja na raiz de todo meu desenvolvimento filosófico. Perguntar-se-á se existe conexão compreensível entre o horror e abstração e o da violência coletiva?” Respondo que existe [...]”.

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

62

(SPENGLER, 1998b). Submerso numa profunda crise de consciência, o homem percebe, nos

diz Karl Jaspers, que

[...] há uma consciência difundida: tudo fala; nada há que não seja problemático; nada verdadeiro se acrisola; tudo é um torvelinho sem fim, que se mantém do mútuo e do próprio engano por meio de ideologias. A consciência desta época se desprende de todo ser e se ocupa de si mesma. Quem assim pensa, se sente a si mesmo, ao um mesmo tempo, como nada. Sua consciência do fim é ao mesmo tempo consciência da nulidade de sua própria essência. A consciência temporal desatada se inverteu (1933, p. 19).

A busca pela possessão durável de bens e utensílios e a produção e utilização de

técnicas e materiais não foram suficientes para dar ao homem a consciência de sua comum

pertença à humanidade (MARCEL, 1951a). Houve um processo de alienação de si, “[...] por

onde o homem parece ter se tornado, cada vez mais, estranho a si mesmo, a sua própria

natureza íntima, a ponto de por em dúvida essa interioridade, de recusar, portanto, toda sua

existência real” (MARCEL, 1956, p. 10).

O movimento expansivo de conquista encontrou seu limite à medida que o processo de

extensão se voltou, em refluxo, sobre si mesmo. A racionalidade técnica subordinou o espírito

humano, condicionou o pensamento, substituiu o elemento orgânico pelo mecânico-

organizacional, burocratizou os processos, funcionalizou a condição humana, fragmentou as

relações, assujeitou o comportamento, abstraiu o Ser e desencantou o mundo (FRIEDMAN,

2012).

Centrado apenas na dimensão técnica-cognitiva, o homem não só convive com as

realizações e descobertas do seu próprio saber e fazer, como, também, se depara com seu

estado de desencanto e profundo marasmo. Ele alcança, segundo Karl Jaspers, a consciência

do homem que, apesar de toda sua capacidade e talento, também fracassa; e se frustra.

[...] O novo, exteriormente evidente, que de agora em diante há de estabelecer os fundamentos de toda existência humana e com ele novas condições, é o desenvolvimento técnico. Pela primeira vez te se iniciado um verdadeiro domínio da natureza. Se quisermos imaginar nosso mundo em escombros e enterrado, nas escavações que se fizeram nenhuma luz permaneceria como antigamente, a pavimentação de suas ruas ainda nos deleita. Porque, comparado com tempos anteriores, apenas nas últimas décadas seria de tal quantidade de ferro e concreto, mesmo assim, podia ver como o planeta foi preso pelo homem na rede de seus dispositivos. Este passo, referente a épocas anteriores, supõe algo de magnitude comparável ao primeiro momento da fabricação de utensílios: pode prever-se a transformação do planeta em uma única fábrica para o aproveitamento de seus primeiros materiais e suas energias. O homem se abriu a natureza uma segunda vez, para erigir nela um trabalho, que a natureza mesma, como tal,

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

63

não só não tinha já criado, mas compete com ele na potência real. Não mais sobre a prova de sua matéria e aparato se faz visível esta obra, senão na realidade de sua função; nas escavações, para encontrar os restos de torres e antenas rádio telegráficas, não podia perceber-se a omnipresença de sucessos e notícias sobre a face da terra. De nenhuma maneira vamos captar que será o novo pelo qual nossos séculos e com sua consumação nosso presente se dissociam do passado, para referir a desdivinização do mundo e ao princípio da técnificação. Embora não se trate ainda de um saber claro, se faz cada vez mais intensa a consciência a sensação de encontrar-se num canto do mundo que não se admita comparação com nenhuma das épocas históricas particulares dos milênios passados. Vivemos em uma situação incomparavelmente grandiosa no espiritual, por ser rica em possibilidades e perigos; mas acabaria irremediavelmente, de não encontrar ninguém seu imperativo, por converter-se na mais infeliz das épocas: a do homem que se frustra (JASPERS, 1933, p. 23-24).

A situação, como fato consciente, nos diz Gabriel Marcel, “suscita a constatação de

que vivemos num mundo dilacerado” (1951a, p. 31). Esta é uma realidade desértica, onde a

condição humana mostra-se, precisamente, vazia e duvidosa. É a sensação descrita por

Christiane, protagonista da peça Le Monde Cassé, quando se expressa angustiada:

Tu não tens a impressão, às vezes, de que vivemos... Se isto pode chamar-se vida, em um mundo roto? Sim, roto como um relógio. A mola não funciona mais. Aparentemente nada mudou. Tudo está em seu lugar. Mas, se o tomas e o colocas no ouvido para ouvir, não ouves nada. Compreendes? O mundo, o que chamamos de mundo dos homens... Deveria á muito tempo ter um coração. Mas parece que parou de bater [...] Cada um em seu canto, seu pequeno negócio, seus pequenos interesses. De repente, ele encontrou, chocando-se com o som de lixo [...] Porque já não há mais centro, mais vida, em nenhuma parte [...] Um mundo roto [...] (MARCEL, 1956a, p. 14-15, 20).

Em que consiste, exatamente, a angústia que sente Christiane, personagem marcante

da dramaturgia marceliana? Seu sentimento é individual ou retrata a condição de uma época

que desafia a estrutura geral da sociedade? “Podemos fazer nossas essas palavras? Existe

alguma base para atribuir um caráter geral a essa experiência?” (MARCEL, 2002a, p. 31).

De acordo com Gabriel Marcel, o caminho para a elucidação destas questões passa,

num primeiro momento, pela percepção de que vivemos num mundo em conflito consigo

mesmo; num estado de guerra que ameaça o humano, não apenas, individualmente, mas,

também, social e coletivamente; e num risco que está ligado à existência de uma vontade de

poder que apresenta aspectos políticos e ideológicos que, em si, são inconciliáveis58.

58 Esta observação está ligada ao espírito de uma época na qual “o mundo angustiado e perplexo em que vivemos

está sendo solicitado, com urgência, a fazer uma escolha decisiva – ou libertar-se das deformações de ódio, do egoísmo, da impureza e da desonestidade – ou deixar-se escravizar, em curto prazo, pela ditadura comunista [...]. Desde o desencadeamento da última guerra mundial, o comunismo não tem cessado de ampliar o seu domínio sobre o mundo, quer pela ocupação militar de países vencidos, para incorporá-los ao seu ‘império’, ou

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

64

Outra possibilidade, que não pode ser silenciada, é a que aponta para a realidade de

um mundo, cada vez mais técnico e mecanizador da condição humana. Este é um modo de

dominação pelo qual a relação entre os homens é subvertida e reduzida aos ditames, explícitos

e velados, do controle antinatural de domínio entre o opressor e o oprimido, o ‘senhor’ e o

‘escravo’. Na base de uma sociedade tecnocrata há sempre o interesse por maquiar as relações

de poder e o modo como alguns homens se colocam sobre os outros, com a intenção de

exercer controle e hegemonia. Ademais, nos diz Marcel, “[...] há setores da vida humana na

atualidade em que a automatização se aplica não só a uma série de técnicas determinadas,

senão, ao que antes de chamava vida interior, e que, por outro lado, se converteu na vida mais

exterior possível” (1951a, p. 34).

Neste mundo, a liberdade compromete toda sua significação psicológica e converte-se

em uma entidade metafísica indistinta e abstrata. Falamos de uma realidade na qual a natureza

humana perde seu real dinamismo e interesse fundamental pela busca que anima o homem a

desvelar, inteligivelmente, aquilo que, em si, é realmente verdadeiro, face às imposições das

noções de uma compreensão totalitária.

Sempre será verdade que em um mundo despedaçado o espírito dificilmente poderá escapar a vertigem de um dinamismo absoluto, que poderia dizer autônomo, no sentido de que não tende para nada que o domine se não fora, essencialmente, uma fuga pura e indescritível (MARCEL, 1951a, p. 36).

Os processos de automatização e coletivização, como nos diz Friedrich Nietzsche

(2000), longe de excluírem-se, como poderia se pensar na perspectiva de uma lógica

superficial, caminham lado a lado; e não são, senão, aspectos essencialmente inseparáveis de

uma mesma realidade, marcada pelo signo da abstração da liberdade humana e da

desvitalização da vivência existencial. Reduzir o humano a um processo de automatização é,

em si, submetê-lo às condições de controle, classificação e estratificação. Concebê-lo por

estes prismas, representa inseri-lo numa espécie de violação de si mesmo, que o desgarra e o

empobrece existencialmente. Percebemos a redução a estas instâncias, pelo modo como o

homem tem sido tratado no ambiente sócio-laboral e pela perda progressiva do conteúdo e do

satelizá-los política e economicamente; quer pela preparação, provocação e sustentação militar de revoltas internas, em países vizinhos, para subverter os seus regimes de governo; quer finalmente, pela infiltração ideológica, realizada em todas as nações, e, sobretudo, naquelas ainda subdesenvolvidas da Ásia, da África e da América. A eficiência desta estratégia ideológica pode ser bem avaliada pela mais recente de suas conquistas – a socialização marxista de Cuba, à sombra mesma dos Estados Unidos da América” (TÁVORA apud MARCEL, 1961, p. VII).

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

65

valor autêntico de termos como: liberdade, pessoa, indivíduo e democracia (MARCEL,

2002a). Mais ainda, sobre o sentido desta perda, afirma Gabriel Marcel:

[...] são empregadas de forma brutal e se convertem em slogans em um mundo em que sempre tendem a perder sua significação autêntica. E é difícil resistir a impressão que produzem, como, justamente porque as realidades que essas palavras deveriam designar estão em transe de desaparecer, são objetos de uma inflação semelhante ao que se produz no plano econômico. Parece que entre os signos da linguagem e os signos monetários existe na realidade uma conexão, por outra parte mais fácil de perceber num conjunto do que de reparar em detalhes. Porque justamente aqui aparece com maior clareza e de modo mais irrecusável o deslocamento do mundo que trato de mostrar; a desvalorização das palavras e da moeda correspondem ao desaparecimento geral da confiança, do credito, no sentido mais amplo do termo (MARCEL, 1951a, p. 42).

A realidade do mundo, descrita por Gabriel Marcel, na obra “Decadencia de La

Sabiduría” (1955), se ancora num princípio de rejeição a toda forma de dominação, que

pretende reduzir a liberdade humana a um puro e simples automatismo. Sua construção sobre

“a situação espiritual desta época não pretende cair sob a forma de uma imagem conclusa do

imediato” (JASPERS, 1933, p. 29).

Através do conhecimento dos limites e dos perigos que envolvem os esquemas

produtores do espírito de abstração, Marcel resiste aos encantos dos discursos que exaltam a

técnica, como elemento fundante de uma atmosfera social realmente espiritual. Sob a tese de

que o progresso também tende a fortalecer a cultura anti-espiritual, este teórico denuncia ‘o

divórcio’ entre a fraternidade e a inteligência, chamando a necessária atenção para as

implicações provindas do grande impacto de suas ideológicas e perversas formas de

degradação (MARCEL, 1951b).

Sob o olhar das contribuições das análises de Gabriel Marcel, a respeito da situação

espiritual da sociedade técnico-industrial e dos períodos que antecedem, medeiam e sucedem

as Duas Grandes Guerras Mundiais, propomos descrever, em forma de contextualização do

seu pensamento, sua visão sobre a natureza positiva da técnica, a influência dos seus

pressupostos sobre o homem, o processo de abstração do Ser, a crise dos valores e o caráter

das técnicas de aviltamento. Nossa intenção é ressaltar o modo como estes aspectos

contribuem para a promoção da despersonalização do humano, a degradação de suas relações

e a desumanização do mundo.

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

66

1.1.1 Civilização industrial e funcionalização humana

Sou apegado, nos diz Gabriel Marcel, “também por natureza à ideia de que cada um

deve, tanto quanto possível, bastar-se e obter pelo seu próprio trabalho, tudo quanto necessita

para viver” (1958, p. 16). Mas será que não é preciso reconhecer, entretanto, que esta ideia de

autossuficiência, pode se colocar contra a própria condição existencial do Ser? A este

questionamento, Gabriel Marcel nos diz que é necessário responder que, numa sociedade

capitalista, o homem precisa operar criticamente, precisa questionar sobre até aonde a

civilização industrial pode levar a condição humana à sua funcionalização. Qual o valor

positivo das técnicas? Na relação do homem com a técnica, é preciso dar lugar às suspeitas

que nos levam a interrogar sobre as articulações da racionalidade objetivista, que pretendem

nos conduzir à realidade de uma superestrutura, que poderá nos levar ao condicionamento de

nossa própria humanidade.

1.1.1.1 A natureza e o valor positivo das técnicas

Compreendemos, a partir de Gabriel Marcel que uma “técnica é uma ‘habilidade’

especializada e racionalmente elaborada, sem dúvida que as técnicas as quais temos nos

ocupado aqui são todas as habilidades que contribuem em sua totalidade para a transformação

do mundo” (MARCEL, 1955, p. 24).

A técnica não possui uma substancialidade própria. Seu desenvolvimento se dá com o

homem, através do fluxo de suas exigências orgânicas, aptidões físicas e capacidade

cognitivo-organizativa. O homem é o inventor da técnica, o prodigioso articulador de seus

mecanismos e domínios, é alguém cuja habilidade e ação transcendem a mera reprodução, em

virtude da susceptibilidade criativa do seu próprio processo de desenvolvimento. Conforme

Ducassé,

É com o homem que as técnicas se desenvolvem completamente, pois o homem, pela forma de seu corpo e pela aptidão de seu cérebro, não é um simples repetidor de processos industriais da vida, mas um inovador, um prodigioso inventor de mecanismos novos, diferentes daqueles que a natureza, por instinto, associou à própria forma do corpo do animal ao seu ritmo (1948, p. 6).

As técnicas, diz Marcel, “não são más em si mesmas” (MARCEL, 1951b, p. 238); elas

representam a expressão da capacidade criativa e inventiva do ser humano. Em sua

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

67

concepção, elas possuem “um valor positivo à medida que se colocam para além da utilidade

pura e simples” (MARCEL, 1955, p. 27). Os atos técnicos são específicos ao homem; e seu

caráter valorativo lhe é atribuído por causa da contribuição que proporcionam a transformação

rápida do mundo e ao melhoramento das condições da vida humana. “O êxito técnico surge

cada vez mais como o sinal mais importante, senão único, da superioridade humana em um

mundo absurdo ou informe” (MARCEL, 1951b, p. 53-54).

A relação do homem com a técnica constitui-se, desde o início, num processo que, à

semelhança de uma moeda, é composto por duas faces. Por um lado, a técnica concedeu ao

homem a capacidade de dominar, intervir e transformar o mundo; e por outro, acabou, ela

mesma, tornando-se um instrumento de disciplina, redução, limitação e condicionamento do

próprio ser humano (MARCEL, 1968). De acordo com Gabriel Marcel, é justamente nesta

contradição que reside o drama da civilização industrial.

Por uma parte, é evidente que a dominação das forças da natureza por meio das técnicas cada vez mais elaboradas, constitui uma autêntica libertação e deve ser saudada como tal. Porque, por outra parte, não é menos certo que por razões que devemos ter consciência exata, esta libertação corre o risco de assumir um caráter escravizador (MARCEL, 1955, p. 23).

No cerne da discussão deste paradoxo encontram-se argumentos contra e a favor da

técnica. Há aqueles, como Oswald Spengler (1998a, 1998b), que a veem como uma ameaça à

sociedade em geral; e outros, como Max Scheler (1955), que a concebem como algo

indispensável ao progresso do próprio ‘processo civilizatório’. Na concepção de Gabriel

Marcel, e para além destas polarizações, não devemos agregar à técnica um peso negativo ou

juízo de valor. Antes, precisamos olhá-la de modo mais amplo, procurando não confundi-la

com as perspectivas ideológicas da tecnocracia (MARCEL, 1951a).

A técnica só se perde dentro dos liames da tecnocracia, quando o homem a usa contra

a própria dignidade humana (MARCEL; RICOEUR, 1968b). Tentar responsabilizar a técnica

pelo processo de abstração do Ser é cometer um equívoco. É não discernir que “diante do

trabalho mal feito existe certamente um culpado, esse culpado não é a máquina inerte, senão,

é o homem que resolveu fazer mal uso dela” (MARCEL, 1955, p. 24).

O valor positivo da técnica está ligado ao modo como nós a concebemos59, à maneira

como consideramos suas especificidades e características. Entre outras, Marcel apresenta as

59 Convém, sobretudo, compreender que a noção crítica de Gabriel Marcel sobre o valor positivo da técnica

evolui à medida que seu pensamento vai sendo exposto. Em palestra proferida na América do Sul, Marcel se cobra por ainda não ter acentuado, suficientemente, o valor positivo da técnica. A notoriedade do valor positivo

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

68

noções de Perfectibilidade e Transmissibilidade como caracteres racionais fundamentais da

técnica, sobre os quais nunca se insistirá o suficiente. A perfectibilidade é tomada numa

significação precisa e unívoca. Ela consiste no ato pelo qual um procedimento técnico “se

constitui num avanço em relação a outro, à medida que permite obter um maior rendimento,

ou desempenho idêntico, mais rapidamente e com menos esforço” (MARCEL, 1955, p. 25).

Neste processo, a técnica progride e nada que ela produz corre o risco de perder-se, como

aconteceu, noutras épocas, em culturas artesanais e manufatureiras.

A técnica, enquanto modo de elaboração, é transmissível. Ela comporta em si um

princípio de progresso que pode estar ligado não somente à dimensão do fazer do homem,

como pode estar implicado pelo seu próprio modo de ser-no-mundo. Quando aplicado ao

contexto das relações e das instituições e, mais especificamente, aos campos da moral, do

político e do estético, a ideia de progresso técnico se turva, em virtude da perda do caráter de

precisão que o define. Na concepção de Marcel (MARCEL, 1955, p. 26), “este

comprometimento acontece porque deriva do fato que a verdade fundamental desta

observação é negada”, à medida que o técnico procura deixar de lado as questões mais gerais.

Neste sentido, o técnico não poderá deixar de aplicar a virtude da exatidão. Ele não

poderá exercer sua prática, dissociada da sua consciência e do princípio da responsabilidade.

Nesta noção intermediária, é preciso que se considere a dimensão da ética, para que o domínio

técnico não seja prejudicado ou, inevitavelmente, perdido. A relação entre a técnica e a

responsabilidade não deve nunca deixar de existir no horizonte do campo da consciência

humana. Deste modo, exemplifica Marcel,

Penso, por exemplo, na técnica cirúrgica; é evidente que um cirurgião deve ter consciência de sua responsabilidade, porque é necessário que essa responsabilidade não pese sobre ele a ponto de obcecá-lo. Não é sobre essa responsabilidade que sua consciência deve apontar ou somente concentrar-se, senão, sobre a tarefa que deve realizar. A responsabilidade deve muito bem intervir como um espírito segundo o qual essa tarefa deve ser realizada ou, se preferir, como uma luz na qual deve banhar-se (MARCEL, 1955, p. 28).

A luz, da qual fala este teórico, não é outra coisa, senão, a do espírito de exatidão,

transparência, seriedade e rigor ético-profissional. Assim, o valor positivo da técnica consiste

em colocar aquilo que se está fazendo acima dos seus próprios interesses; em não pensar em

si mesmo como meio e fim do processo, mas, na obra que se vai realizar. Com base neste

que Marcel atribui a técnica se destaca em obras como Les Hommes contre l’humain (1951b) e Le Déclin de la Sagesse (1954).

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

69

princípio, caberá ao técnico não pensar, primeiro, naquilo que seu experimento e ação lhe

trarão de vantagens e benefícios pessoais. Suas ações não devem ser guiadas por um espírito

vaidoso e/ou ganancioso, pelo desejo de querer projetar-se, lograr êxito sobre os outros ou se

destacar como se estivesse numa posição de superioridade intelectual e laboral. “Em oposição

ao intelectual, e em alguns casos o artista, quando não é puro, não há no técnico lugar para a

lisonja, nem para o espírito de adulação” (MARCEL, 1955, p. 29).

Nesta perspectiva, encontramo-nos diante da necessidade de não absolutizarmos o

técnico, em detrimento das exigências do trato com o ser humano. O valor positivo da técnica

transcende a pura e simples noção de utilidade. “Seus meios ao serviço não podem tender a

serem apreciados em si mesmos, tornando-se foco de obsessão” (MARCEL, 1951b, p. 65). O

exercício de sua aplicação deve sempre representar para o técnico uma alegria funcionalmente

saudável e até mesmo nobre. Suas atitudes, sobre a dimensão humana, não podem seguir os

mesmos critérios de execução que se usa para o manejo das coisas e dos objetos. “E devemos

recordar que é impossível tratar de atuar sobre os homens, ou mais exatamente, tratar de

transpor nesse terreno os procedimentos aplicáveis as coisas, sem cometer um abuso cujas

conseqüências podem ser gravíssimas” (MARCEL, 1955, p. 29).

1.1.1.2 A influência da técnica sobre o humano

Os “atos técnicos são aqueles em que o homem procura satisfazer diretamente as

necessidades que a circunstância ou a natureza as faz sentir” (ORTEGA Y GASSET, 1963, p.

17). Por meio da técnica o homem esboça uma reação de controle e domínio sobre a sua

realidade. É no âmbito desta relação do homem com seu meio que o técnico se vê investido

do poder e da capacidade de triunfar sobre seus próprios limites.

É através da relação entre o poder e o domínio que o homem sente-se tentado a anular-

se e a reduzir-se a um mero potencial de trabalho. Nesta perspectiva, cabe-nos perguntar:

“Como podemos dar-nos conta desta situação, que parece ligada, de modo profundo, a nosso

modo de existência? O que das próprias técnicas parece induzir a tentação do espírito?”

(MARCEL, 1955, p. 30-31).

Mediante as problematizações acima, Gabriel Marcel pretende chamar nossa atenção

para os aspectos que envolvem o processo de influência da técnica sobre o humano. Nesta

reflexão, o autor nos diz, inicialmente, que não podemos falar das técnicas como se elas

tivessem vida própria, como se possuíssem um poder autônomo, capaz de induzir o homem a

atentar contra si mesmo e a vida em geral.

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

70

Neste sentido, o problema da tentação, em torno do mal uso das técnicas, não está

relacionado à manipulação de aparatos sofisticados e/ou da máquina em si; mas, ao poder que

advém do controle que estas técnicas passam a exercer sobre o homem, a natureza e a

sociedade em geral. No “Esboço de uma Fenomenologia do Ter”, Marcel, afirma que, neste

processo, o homem “tende a anular-se diante da coisa possuída inicialmente” (MARCEL,

2003, p. 152). Ele abandona a si mesmo e passa a existir numa total condição de vertigem

existencial. Ainda explica este teórico:

Estas coisas não me são simplesmente exteriores; é como se entre elas e eu houvesse uma comunicação por dentro. Mim alcançam, por assim dizer, subterraneamente, e na medida exata em que me apego a elas é evidente que exercem sobre mim um poder que este mesmo apego lhes confere e acrescenta [...] Enquanto tu tratas o instrumento como instrumento não terá sobre ti poder algum, você é que dispõe dele, sem reciprocidade nenhuma? Isto é a pura verdade, porque precisamente entre possuir uma coisa e dispor dela, ou utilizá-la, há uma diferença, um intervalo que o pensamento custa a avaliar; é nesta margem, neste intervalo é precisamente onde reside o perigo que nos ocupa [...] Tenho dito anteriormente que nossas possessões nos devoram; isto é tão mais certo, coisa, estranha, quanto mais inertes, nos tornamos frente aos objetos em si inertes, e tanto mais falso quanto mais vitalmente e mais ativamente ligados estamos a algo que seria como a matéria mesma, a matéria perpetuamente renovada de uma criação pessoal - seja um jardim que se cultiva, a laranja que se exporta, o piano ou o vinho do músico ou o laboratório do técnico e do cientista -. Em todos estes casos o ter tende, poderíamos dizer, e não a aniquilar, senão a sublimar-se, a transformar-se em ser (MARCEL, 2003, p. 152-153).

A gravidade do problema, neste caso, reside no fato do homem que controla a técnica

não se sentir obrigado a submeter-se a nenhum tipo de limite ou princípio de controle, por

pensar que isto corresponderia a uma forma de usurpação e/ou ação arbitrária sobre seu

próprio fazer e potencial. Neste caso, Marcel acrescenta:

A experiência parece ensinar que quanto mais o poder de primeiro grau é conquistado, senão de maneira súbita, ao menos em condições que não permitem de nenhum modo vê-lo o resultado de um crescimento vital, tanto mais apresenta habitualmente as características que distinguem o arrivista, ao homem que faz a si mesmo; porque este considera – sempre erroneamente, por outra parte não dever nada a ninguém, se sente inclinado a rejeitar sistematicamente todo controle que viria a pôr-lhe limites, como se esse controle correspondesse a uma usurpação, a uma intrusão arbitrária (MARCEL, 1955, p. 31).

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

71

O fato de alguém ter conseguido exercer controle sobre uma área específica de

conhecimento não lhe dá o direito de olhar, com desconfiança, tudo que é in/diferente ou

contra essa determinada descoberta.

De acordo com Marcel, o contraponto à perspectiva apresentada acima pode advir da

admissão de uma meta-técnica60. Por meta-técnica “compreende-se essencialmente a reflexão

enquanto o poder de segundo grau [...] a reflexão verdadeira, que não deve ser confundida

com um raciocínio qualquer” (MARCEL, 1955, p. 32). Ou seja, através de um modo de

reflexão que não se pauta na fragmentação da unidade do pensamento, mas que se apresenta,

essencialmente, como questionadora e recuperadora do sentido e da realidade. A forma de

interpelação que Marcel denomina de ‘reflexão segunda’, o modo de pensar que “aparece

cada vez mais como o instrumento por excelência do pensamento filosófico” (MARCEL,

1951a, p. 87). O papel da reflexão segunda, neste caso, é contrastar o saber técnico, é

problematizar seu progresso e apontar os limites do processo que pretende promovê-lo ao

status de pensar hegemônico e de saber absoluto (MARCEL, 2003).

A reflexão de segundo grau não se alimenta da mera especulação, nem da própria

constatação em si. Ela se nutre da intuição provinda do pensamento filosófico, quando busca

corresponder à recuperação e articulação do Ser, enquanto modo de participação no mundo e

na realidade (MARCEL, 1951a; JASPERS, 1958). Sua função não é invalidar a técnica, não é

desvalorizá-la ou reduzi-la a uma determinada categoria conceitual e/ou a um simples

conjunto de atos procedimentais.

O papel da reflexão segunda61 é resistir “ao perfeccionismo das técnicas que

pretendem criar, por si, um mundo tão pouco nutrido como é possível ser, e inapto, para

60 Meta-técnica é na obra de Gabriel Marcel uma categoria co-extensiva à dimensão do mistério que

encontramos, desde o princípio, em toda sua obra. Um conceito que se opõe e, ao mesmo tempo, lança luz na perspectiva do progresso neo-positivista da técnica e de suas implicações. Sobre isto ele diz: “Não se julgue, no entanto, a palavra mistério como simples letreiro à entrada de um caminho. As reflexões seguintes mostram, parece-me, que o mistério é co-extensivo do que julgo designar por meta-técnica. Que entender por isto se não a esfera infrangível, para sempre vedada aos técnicos? Na Grã-Bretanha, onde o neo-positivismo produz estragos inquietadores, fui levado à conclusão seguinte, na presença de estudantes: as máquinas de calcular são realmente admiráveis, e por mim ignoro até onde a sua perfeição poderá levar-se. Mas sabemos com certeza que nunca haverá máquina capaz de interrogar-se sobre as condições de possibilidade e os limites da sua eficácia. Aqui surge a conexão íntima entre reflexão e mistério, que está no princípio de toda minha obra. Ora, temos de reconhecer que quanto mais as técnicas progridem mais a reflexão recua – o fato não me parece fortuito. Não digo que a conexão seja verdadeiramente fatal; mas o que parece certo é que o progresso e especialmente a difusão externa das técnicas tendem a criar uma atmosfera espiritual, ou melhor, anti-espiritual, minimamente favorável ao exercício da reflexão [...]” (MARCEL, 1951b, p. 11-12).

61 Cf. MS, p. 95-96; “[...] o papel de lo que yo llamo ‘reflexión segunda’, es decir, la reflexión recuperadora [...] Evidentemente puede ejercerse sobre los datos de la reflexión primaria para restaurar una especie de unidad con los elementos separados[...] La reflexión se articula con algo vivido, y es muy importante conocer la naturaleza de esta articulación”.

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

72

favorecer o exercício dos poderes de segundo grau” (MARCEL, 1955, p. 33). É contribuir

para ressaltar a importância do pensamento, enquanto caminho, capaz de instigar a

problematização epistemológica, de despertar a curiosidade crítica, de desvelar possibilidades

ainda não exploradas, de aproximar os elementos sistematicamente separados a partir de suas

realidades distintas, de chamar a atenção para outras formas de abordagens, de proporcionar

diferentes olhares e perspectivas, de apontar novas categorias de análises e promover a

elevação e a ressignificação dos saberes já construídos62.

A reflexão de segundo grau cabe oxigenar o campo árido do saber técnico. Por ela,

afirma Gabriel Marcel em “Aproximación al Misterio del Ser: posición y aproximaciones

concretas al misterio ontologico”, “me pergunto como, a partir de que origem, foram

possíveis os passos de uma reflexão inicial que postulava o ontológico sem sabê-lo”

(MARCEL, 1987, p. 48). Através dos seus postulados, o profissional técnico poderá se

inserir, existencialmente, num movimento rítmico que o coloque para além dos processos

fixos da razão instrumental, quando são repassados de geração em geração, como elaborações

imutáveis e inquestionáveis.

O tecido do fazer profissional não pode consistir na rigidez do saber puramente

técnico-positivo. As questões do mundo precisam ser regadas pela vida, por aquilo que se

62 Cf. MS, p. 16-17; “Pensemos en un químico que haya descubierto y perfeccionado cierto producto para extraer

y obtener un cuerpo que antes sólo podía procurarse de una manera mucho más difícil y costosa. Es evidente que aquí el resultado de la invención presentará una existencia separada, o por lo menos tenemos derecho de considerarla así. Si necesito ese cuerpo – supongamos que se trate de un producto farmacéutico – ira a la farmacia a comprarlo, y no tengo, ninguna necesidad de saber que me lo puedo procurar tan fácilmente gracias al invento del químico en cuestión. En la esfera puramente práctica, que es la mía en tanto comprador y consumidor, quizá no tendré nunca ocasión de conocer este invento, salvo que, por una razón outra, por ejemplo la destrucción de la fábrica, este procedimiento no puede aplicarse. El farmacéutico me dirá entonces que falta el producto, o que no tiene la calidad o el precio habituales. Pero reconozcamos que en circunstancias normales el procedimiento permanece ignorado, excepto para los especialistas o para aquellos que estudian como si fuera a convertirse en especialista. Encontramos aquí un ejemplo particularmente sencillo de lo que puede ser un resultado susceptible de separarse de los medios por los cuales ha sido obtenido. Se podría mencionar muchos otros: no es necesario que el resultado presente un aspecto estrictamente material. Pensemos, por ejemplo, en una previsión astronómica que recogemos, que hacemos nuestra, sin preocuparnos mucho de los cálculos extremadamente complicados que la fundan; sabemos, por otra parte, que nuestros conocimientos matemáticos serían insuficientes para permitirnos rehacerlos mentalmente. Puede agregarse que, vista la extrema complicación técnica del mundo en que vivimos, estamos condenados a aceptar por acuerdo mutuo un número cada vez mayor de resultados adquiridos por una serie de largas investigaciones o de cálculos minuciosos cuyo detalle se nos escapa. Podemos afirmar en principio que en una investigación como la nuestra no caben resultados de este género. Además, entre la búsqueda misma y su acabamiento existe un lazo que no puede romperse sin que el acabamiento pierda toda realidad. Y desde luego será necesario, por otra parte, preguntarse qué sentido tendrá aquí este término. Se puede llegar a las mismas conclusiones por otravía, es decir, elucidando la noción misma de búsqueda filosófica. Así como el técnico en general posee una noción, o una prenoción, de lo que busca, lo característico de la investigación filosófica es que quien la persigue no puede tener el equivalente de esa prenoción. Quizá no sería inexacto decir que parte a la ventura; o olvido que esto a veces también ha ocurrido a los hombres de ciencia, pero finalizada la investigación científica aparece retrospectivamente como tendiendo hacia un fin estrictamente especificable. Vemos cada vez con mayor claridad que no puede ocurrir así en la investigación filosófica”.

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

73

mostra, mais amplamente, através das lentes da sabedoria63 e da própria vivência humana.

Mas, questiona ainda Marcel: contra o quê, a sabedoria, enquanto tal, está chamada a voltar-

se?

Contra a ‘hybris’, contra o orgulho. Ali onde o contrapeso falta, as técnicas, abandonando-se de alguma maneira seu próprio peso se entorpeceram com uma carga de orgulho que não forma de nenhuma maneira parte de sua essência. Só que não devemos duvidar, uma vez mais, que as técnicas não têm realidade intrínseca. Não se deixa dissociar mais que por uma abstração, em realidade viciosa, do ser que as exerce, que se satisfaz com elas corre finalmente o risco de converter-se em seu prisioneiro (MARCEL, 1955, p. 34).

Uma relação potencialmente construída é aquela onde a animosidade recíproca é

superada pelo princípio da sabedoria. A verdadeira sabedoria64 é contra o orgulho65 da

racionalidade técnico-industrial. Em si, “ela implica sempre o espírito de seriedade”,

(MARCEL, 1951b, p. 60), porque sempre está a favor do ser humano e da vida em geral.

No encontro entre o homem e o mundo, as técnicas não podem ser vistas como

detentoras e possuidoras de realidades intrínsecas. Entregues a si mesmas, as técnicas não

podem converter-se nas diretrizes dinâmicas do mundo abstrato, porque a inteligência não se

deixa dissociar do contato vivido no ambiente concreto. Somente mediante a abertura, o

diálogo e a reflexão, o homem poderá enfatizar que, assim como acontece no crescimento

63 Cf. MS, p. 194-195; “Esprobable que la Filosofía no tenga otros limites que los de su propia insatisfacción.

Cuando desaparece dando lugar a una especie de sentimiento de seguridad, de cómoda instalación, como es el caso de cualquier positivismo, la Filosofía misma deja de existir. Se objetará que también el hombre de ciencia debe estar enguardia contra la tentación de ‘instalarse’? Pero hay que distinguir: es verdad para el hombre de ciencia que se erige en filosofo, no para el científico en cuanto tal, por la sencilla razón de que el científico debe ser absolutamente realista: se dirige a una verdad que debe tratar como radicalmente distinta y exterior a él. La extraña grandeza de esta tarea, de esta misión, consiste en que verdaderamente sale de si, y la palabra éxtasis podría emplearse si, por un lamentable abuso, no estuviéramos habituados a ver en ella una especie de transporte lírico que es todavía un acto del yo. En el hombre de ciencia desaparece el yo tanto como podamos imaginarnos. Intenta poner orden en un mundo que casi no es para el su mundo, que es verdaderamente el mundo, y desde su punto de vista seguramente no tiene que preguntarse si es una ficción. Cuando se establece el orden en las cosas, el hombre de ciencia debe declararse satisfecho, pero ese orden solo puede ser un orden parcial. Si interviene la teoría lo hace como hipótesis para sostener en cierto modo los resultados fragmentarios y verificables a los que se llega, si no experimentalmente, al menos referidos a una experiencia de las cosas, de los datos objetivos. Pero el filósofo se encuentra en una situación totalmente diferente, y está en su esencia el reflexionar sobre esta situación, el tomar conciencia cada vez más amplia de ella”.

64 Cf. MS, p. 272; “[...] la humildad se opone radicalmente ala hybris, que es, podemos decirlo, esencialmente sacrílega [...] Una serie de consideraciones anexas podrían desarrollarse aquí, especialmente en lo que concierne a la incompatibilidad entre la humildad y la técnica, en tanto que la técnica pretende ejercerse en todos los dominios de la actividad humana. En otros términos, en tanto tiende a convertirse en tecnocracia o técnomanía”.

65 Cf. AMS, p. 59; “Basta ver la definición que Spinoza da de la super biaen la Ética (III, de. XXVIII) para comprobar hasta qué punto desconocían el problema: ‘el orgullo’, dice, es una opinión demasiado buena que el amor proprio nos da de nos mismos’. En realidad esta es una definición de la vanidad. El orgullo consiste en encontrar la fuerza solo en si mismo; separa a aquel que o experimenta de una cierta comunión con los seres, y al mismo tiempo, tiende a destruirla; actúa como un principio de destrucción”.

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

74

orgânico, caberá ao técnico “se deixar mover pelo princípio da vida que aponta para um

sentimento, a crença, no devir da imaginação em todas as suas formas” (MARCEL, 1955, p.

35). Esta crença o capacita a resistir aos ditames do olhar vicioso da realidade impedindo o

homem de se tornar prisioneiro de sua própria criação.

1.1.2 Abstração do ser e a desumanização do mundo

No mundo entregue aos técnicos e habilidosos, a palavra humanidade, em si, perde

toda significação. O fato é que há técnicos que deixam de se comportar como simples

técnicos; proclamam, ao contrário, a supremacia da técnica sobre os processos geradores de

sentido da vivência humana. Gabriel Marcel nos diz que “a relação homem-técnica, deve ser

apreciada segundo uma perspectiva inteiramente nova” (MARCEL, 1958, p. 19).

É preciso, sobretudo, diante do processo de abstração do Ser e da desumanização do

mundo, contrapor a crise de valores no mundo contemporâneo com o olhar fenomenológico

da herança espiritual. Afirmar que “[...] não carreguemos sobre nós mesmos, ipso facto, uma

verdadeira condenação, porque no nosso caso, o que está em debate, é, na realidade um

respeito ao humano” (MARCEL, 1958, p. 19), enquanto Ser de possibilidades.

1.1.2.1 O caráter abstrato do meio industrial

No aspecto dinâmico, toda obra filosófica de Gabriel Marcel “é um combate obstinado

e sem tréguas contra o espírito de abstração” (MARCEL, 1951b, p. 5). Sua obra consiste num

ato investigativo, pelo qual se nota que não se trata de uma discussão meramente conceitual,

mas que se revela como uma atitude de colocar-se itinerante e concretamente diante da

própria existência histórica.

Por abstração entendemos, basicamente, a “atitude pela qual se isola a coisa pré-

escolhida das demais com que está relacionada” (ABBAGNANO, 1970, p. 4). Na concepção

de Marcel, para apreendermos o sentido do conceito de abstração, no âmbito da sociedade

industrial, é preciso que distingamos as diferenças entre as noções de abstrair, espírito de

abstração e abstrato. “A abstração em si própria é uma operação mental indispensável para

chegar a um fim determinado. Abstrair é, em suma, proceder a uma terraplanagem, que pode

ter caráter verdadeiramente racional” (MARCEL, 1951b, p. 137). É uma atitude através da

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

75

qual o homem procura conservar uma consciência precisa e seleta para alcançar o fim

desejado.

Neste sentido, o espírito de abstração envolve um ato arbitrário, pelo qual se

distinguem as omissões metódicas, das condições prévias do processo de separação entre uma

concepção e outra. “Desde que concedemos arbitrariamente preeminência a uma categoria

separada de todas as outras, somos vítimas do espírito de abstração” (MARCEL, 1951b, p.

138). Influenciado por este espírito, o homem é separado de si mesmo. Isolado de sua própria

compreensão, ele perde a noção de si e passa a existir num estado de “massa” e

condicionamento social, quando o Ser é conduzido à abstração.

A massa pode definir-se, como fator psicológico, aquém do ponto onde os indivíduos se constituem em grupos. Um indivíduo faz parte da massa quando não só o valor que dá a si próprio – bom ou mau – não assenta em estimativa especial, mas quando, sentindo-se como toda a gente, não sente angústia alguma e pelo contrário se sente à vontade achando-se idêntico aos outros [...] A massa faz tábua rasa de tudo que não é como ela, de tudo que é excelente, individual, qualificado e escolhido [...] Parece-me que essa permeabilidade se deve ao fato de que o indivíduo, para pertencer à massa deve ter-se previamente e inconscientemente esvaziado da realidade substancial ligada à sua inicial singularidade ou ainda ao fato de pertencer a um pequeno grupo concreto (MARCEL, 1951b, p. 124-125).

Com base nestes pressupostos, podemos dizer que o caráter abstrato do meio industrial

consiste, essencialmente, na tentativa de converter-se num modelo pelo qual se pretende

reduzir, segundo suas próprias categorias e leis, o homem e a realidade a uma concepção

puramente abstrato-objetiva. Influenciado pela cultura industrial, o homem “confunde seu ser

com sua vida, seu ser com seu ter” (FERNÁNDEZ apud MARCEL, 1987, p. 11).

A objetivação representa um processo de planificação das subjetividades. No mundo

industrializado, à medida que a realidade se desnaturaliza, o homem perde toda qualidade

espiritual. Ele se confunde entre as noções do ser e do ter e passa a existir mais na perspectiva

do ‘isso’, do que na perspectiva do sujeito e do indivíduo. O homem se coisifica, converte-se

num objeto, reduz sua existência à condição instrumental e encerra-se na dimensão do dado e

do determinado. “Pode dizer-se que hoje um ser perde tanto mais consciência da sua realidade

íntima e profunda quanto mais depende de todas as mecânicas que lhe asseguram pelo seu

funcionamento uma vida material tolerável” (MARCEL, 1951b, p. 51-52).

Segundo Marcel, na base do caráter abstrato do meio industrial, existe um processo de

obliteração, uma lógica da violência, que atenta contra aquilo que é próprio da “natureza

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

76

humana”: seu desenvolvimento. Tomando como base sua experiência na América Latina e,

mais propriamente, sua visita ao Brasil, este teórico ilustra sua ideia, dizendo:

Não duvidarei jamais da impressão que senti ao tomar ao ter contato com um país como á Venezuela, onde se sente que aquilo que era uma paisagem está se convertendo em uma obra em construção. Se, assiste ali uma espécie de dissecação sistemática e me atreveria a dizer sacrílega. Essa impressão de sacrilégio eu senti também, e no mesmo intenso grau, no Rio de Janeiro, quando me inteirei que se preparavam para nivelar as colinas, sem consideração alguma pela realidade original do lugar. Há aqui um fato absolutamente significativo: ao invés de, como no tempo passado, uma cidade seja modelada de alguma maneira sobre uma estrutura ou uma pré-estrutura natural, completando-a, em certo modo, é verdade que vejamos cada vez mais construir-se enormes aglomerações que prescindam de uma pré-formação natural qualquer. Não se vacilará em violentar a natureza para realizar um determinado plano abstrato (MARCEL, 1955, p. 36-37).

O espírito de abstração, afirma Gabriel Marcel, “é o fator da guerra” (MARCEL,

1951b, p. 136). Na abstração, o sujeito se degrada e se submete, cada vez mais, às exigências

do mundo industrializado, do abstrato e do planificado. Abstraído de si, o homem aliena-se, se

autodegrada, esvazia-se e se autodestrói. No espírito de abstração, toda concepção do humano

é depreciativa. Na constatação da redução depreciativa, o Ser reconhece que a guerra e a

violência estão ligadas a uma dupla mentira: sobre si mesmo e sobre outrem.

Seduzido pelas máximas corruptoras da abstração, o homem corre o risco de

endurecer-se, secar-se e esterilizar-se. Na abstração não há espaço para o outro e para a

fraternidade (MARCEL, 1927). Alienado da dimensão concreta, o Ser tem dificuldades de

transferir-se para os domínios dos outros seres e da vivência intersubjetiva. Imerso numa falsa

imagem de si, o homem passa a dar lugar, portanto, à desigualdade, à indiferença, à

intolerância e ao desamor. Influenciado pela abstração, ele trata os outros seres como se

fossem triângulos ou quadriláteros, que possuem as mesmas medidas, tamanhos e

características. Ele perverte o direito do outro ser o que é. Evita reconhecer-se como alguém

que tem deveres a cumprir e passa a conceber o primado do mais vil sobre o mais nobre.

Ao advogar sobre a supremacia do caráter abstrato do meio industrial, quando afirma a

padronização dos seres às mesmas condições e formas de vida, precisamos levar em conta as

monstruosas aberrações de que somos testemunhas. Precisamos, como diz Marcel,

compreender que

[...] o resultado é a guerra mais em formas tais que não é reconhecida, porque de fato é o esmagamento sistemático de milhões de seres reduzidos á impotência total. Não esquecer nunca que um mundo onde milhões, dezenas

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

77

de milhões de seres estão reduzidos à escravidão, não pode ser um mundo em paz; por outro lado, apesar de quanto se tenha dito, tal estado de iniqüidade difere radicalmente de tudo que existiu em épocas em que os princípios fundamentais do direito não tinham sido proclamados nem sequer recebidos (1951b, p. 143-144).

Submetido às técnicas de modelagem e da produção em série, o homem parece

reduzir-se, progressivamente, a uma coisa/peça psíquica, passível das teorias elaboradas por

uma psicologia materialista. “Não é no ponto de partida, mas também de chegada, digo, em

função desta produção em série e seus resultados em todos os domínios da economia que estas

massas tendem a definir-se” (MARCEL, 1955, p. 37-38). É justamente mediante os

pressupostos desta consciência que

Devemos reconhecer que um pensamento materialista se mostra capaz, por meio das técnicas que monta e aperfeiçoa, de criar um mundo onde os seus postulados se verifiquem cada vez mais [...] Mas essa proposição é evidentemente ambígua; não pode de modo algum significar que essa psicologia materialista, por mais poderoso que seja o seu poder de transformação redutora, nos revela a realidade. Só nos mostra o fato, nada surpreendente para uma filosofia do ser circunstancial, de que o homem depende em larga parte da ideia que tem de si próprio, e esta ideia não pode ser degradada sem ser degradante (MARCEL, 1951b, p. 20-21).

No processo de degradação do homem a sociedade industrial não apenas determina a

funcionalização do Ser, como cria os subterfúgios de sua própria abstração e fragmentação. A

grande indústria não só fabrica coisas; ela, também, cria carências e necessidades, que

pretende logo satisfazer (MARCEL, 1955). Para a mentalidade da cultura industrial, não basta

apenas preocupar-se em abastecer o mercado; é preciso criar um conjunto de novas exigências

que sejam capazes de mantê-la viva e crescendo. Nesta tendência, ela procura substituir o

ético pelo estético, transformar o desejo em necessidade, o supérfluo em algo essencial, o

poder de compra num mecanismo de autoafirmação, a etiqueta em sinônimo de status e o ter

numa visão abstrata do ser. “Ela cria uma espécie de gama de matizes, uma degradação entre

o sentimento que tenho e o sentimento que sou” (MARCEL, 2003, p. 144).

A mentalidade industrial do ter e da posse é a genitora da cultura do consumo e do

autoconsumo humanos66. Nela, tudo se transforma em mercadoria e em produto; nada é

66 Ortega y Gasset defende que a técnica tem inscrito, em sua essência, uma relação entre o homem, a produção

do supérfluo e a sensação de bem-estar, sobre o que, acrescenta: “El hombre no tiene empeño alguno por estar en el mundo. En lo que tiene es en estar bien. Sólo esto le parece necesario y todo lo demás es necesidad solo en la medida en que haga posible el bienestar. Por tanto, para el hombre solo es necesario lo objetivamente o superfluo. Esto se juzgará paradójico, pro es la pura verdad. Las necesidades biológicamente objetivas no son, por si, necessidades para él. Cuando se encuentra atenido a ellas se niega a satisfacerlas y prefiere sucumbir. Sólo se convierten en necesidades cuando aparecen como condiciones del ‘estar en el mundo’, que, a su vez,

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

78

permanente, pois, as coisas já trazem em si as marcas da ambivalência e da liquidez

(BAUMAN, 2001, 2007)67. A abstração do meio industrial se move no âmbito do viés

utilitarista. A mentalidade técnico-industrial articula-se num movimento pragmático onde

tudo se pulveriza, se dilui e se desfaz num tempo e velocidade inimagináveis e inapreensíveis;

tudo é híbrido, efêmero e transitório.

Como podemos ver, “estamos na presença de um imenso sistema que tende, cada vez

mais, a sua própria consolidação” (MARCEL, 1955, p. 38). Esta é uma estrutura que, em

virtude de seu caráter de abstração, suspeita de tudo que, em si, traz um princípio de vida

própria, porque só abre espaço para os planos preestabelecidos e para a fabricação. Diante

desta dura realidade, o desafio não é o de rejeitar os aspectos que constituem o meio

industrial, ou tentar assumir uma postura anti-técnica. Antes, nossa atitude deve ser a de

procurar introduzir outros elementos ou categorias que possam assimilar e oxigenar estas

novas e duras realidades e/ou experiências humanas, numa busca antropológica, cuja ação se

exerce “em condições de contestar a violação sistemática dos direitos mais elementares”

(MARCEL, 1951b, p. 144).

1.1.2.2 A crise de valores no mundo contemporâneo

O cenário de crise da sociedade ocidental nos anos pós-guerra é, marcadamente,

composto por uma profunda mudança no seu horizonte espiritual (MARCEL, 1951b). As

tensões político-sociais, os horrores dos massacres ocorridos nos campos de concentração e os

extermínios em Auschwitz foram, de algum modo, o resultado da produção de uma espécie de

trans-valoração maciça dos postulados notáveis dos conhecimentos, nos quais se assentam as

bases do crescimento e desenvolvimento integral do homem.

As relações entre epistemologia e vivência, liberdade e coerência, carisma e caráter

foram destituídas dos princípios que caracterizam a verdadeira face de um grande espírito. A

produção do conhecimento científico não foi seguida por um real aprimoramento do ser

solo es necesario en forma subjetiva; a saber, porque hace posible el ‘bienestar en el mundo’ y la superfuidad. De donde resulta que hasta lo que es objetivamente necesario solo es para el hombre cuando es referido a la superfluidad. No tiene duda: el hombre es un animal para el cual solo es para el superfluo es nenesario [...] La técnica es la producción de lo supérfluo: hoy y en la época paleolítica. Es, ciertamente, el médio para satisfacer lãs necesidades humana [...] Desde el punto de vista del simple existir el hombre es hombre porque para él existir significa desde luego y siempre bienestar; por eso es a nativitate técnico, creador de lo superfluo. Hombre, técnica e bienestar son, en última instancia, sinônimos” (ORTEGA Y GASSET, 1997, p. 34-35).

67 Trazemos as contribuições de Zygmunt Bauman sobre a noção de ‘vida liquida’ (2007, 2008) por compreendermos que elas se aproximam da ideia de ‘existência híbrida’, discutida por Gabriel Marcel na obra “L’Homme Problematique” (1955).

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

79

humano. A técnica se esvaziou da ética, o amor cedeu lugar à ambição, a confiança no Ser se

degenerou em arrogância e a fraternidade se perdeu no âmbito de uma realidade movida pelo

orgulho, egoísmo, cobiça e pela intolerância (MARCEL, 1955; PARAIN-VIAL, 1989). Os

altos níveis de formação técnico-acadêmicos não coincidiram com os pressupostos do

verdadeiro e maduro processo de crescimento humano-espiritual. Esta foi uma fragilidade

percebida não somente por aqueles que tomaram parte nas conquistas científicas, como pela

experiência de outros, que resolveram lançar mão destas conquistas, visando seus próprios

fins e interesses.

Mas será um grande sábio necessariamente um grande espírito? Certo que não; assim como um grande espírito pode não ser um grande caráter [...] Acrescentarei que mesmo admitindo no grande sábio – como investigador ou criador – a realização freqüente desta ligação, isso apenas seria válido para o sábio, não para os inúmeros indivíduos, que em formas, aliás, vulgarizadas e degradadas, beneficiam do trabalho efetuado por esse sábio. O erro mais grave ou a pior deficiência do cientificismo constitui porventura em nunca averiguar em que se torna ou como degenera, não a ciência, mas uma verdade científica, quando inculcada a seres que de modo nenhum tomam parte na ascese ou na conquista científica. Ninguém quis notar a degradação sofrida pela verdade assim transmitida, e principalmente a temível pretensão que ela gera, precisamos onde é menos viva, onde está totalmente privada de raiz, onde não é de forma alguma o fruto de um sacrifício verdadeiramente heróico (MARCEL, 1951b, p. 173-174).

As mudanças ocorridas nestes espaços e épocas não podem ser consideradas,

separadamente, de certo estado de espírito sobre o qual devemos concentrar nossa atenção.

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o mundo entrou num estado de convulsão social,

através da perda da fé na existência e no Ser. Este fato originou o surgimento de um clima de

insegurança, desconfiança e destronamento de todos os valores e ideais que, até então, tinham

servido de base e de referência para a existência humana, em todos os seus aspectos e

dimensões. Diante da cultura do caos, passamos a indagar: “que deve entender-se por crise

dos valores?68 O que implica a redução do valor do indivíduo ao rendimento que ele pode

68 Tratando sobre a ideia do ‘valor’, Gabriel Marcel afirma que a mesma “foi irremediavelmente perdida, ou pelo

menos comprometida, desde seu aparecimento na Filosofia” (MARCEL, 1951b, p. 150). Na verdade, o que houve foi uma transposição para o domínio das essências ou do Ser, sem que antes tivesse havido uma investigação técnica sobre a natureza dos valores. A simples transposição de categorias como produção, distribuição e consumo, para o campo da Filosofia, acabou incidindo no erro de empregar conceitos de medida e escolha como o índice de valoração fundamental da realidade. Diante do risco de cair em certa confusão ele diz: “Sou levado a esta afirmação, decerto paradoxal, de que a instauração da ideia de valor em filosofia, ideia quase desconhecida dos grandes metafísicos do passado, é como o índice de uma desvaloração fundamental da realidade. Como frequente, ideia e palavra apareceriam aqui como sinais de certa perda interna, situada na realidade mesma que a palavra mesma pretende designar [...] Digamos mais precisamente que uma filosofia dos valores erra ao empregar um termo que irresistivelmente evoca ideias de medida, portanto, de escolha, para

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

80

dar?” (MARCEL, 1951b, p. 146, 157) “Qual a relação que há entre herança espiritual e os

valores propriamente ditos?” (MARCEL, 1955, p. 67).

De acordo com Marcel, não podemos separar a noção de valor69 da ideia do Ser, pois,

“o valor é senão o Ser [...]. Separar um do outro é correr o risco de cairmos em discussões

generalizadas, do que chamamos na linguagem filosófica defeituosa, valores morais ou

valores estéticos” (MARCEL, 1951b, p. 154). O cuidado, neste sentido, consiste em não nos

perdermos em discursos abstratos sobre as características intrínsecas do Ser, como se este

fosse um objeto susceptível de substancialização, que pudesse opor-se a outras coisas que não

são ele. “Discorrer sobre o Ser e os seus caracteres equivaleria a uma abstração e uma

antecedente objetivação” (GIRARDI, 1978, p. 79). Para não confundi-lo com concepções

aparentes ou meras manifestações, é preciso compreender, inicialmente, que

[...] não é possível discorrer sobre o Ser, mas apenas sobre o que não é ele, e assim indiretamente humildemente também, referenciar ou marcar as pistas que lá conduzem, com a condição de saber retroceder, porque é igualmente verdadeiro dizer que essas pistas afastam ou desviam dele (MARCEL, 1951b, p. 154).

A abstração do Ser implica na crise dos valores e no terrível mal-estar da humanidade.

A tentativa de reduzir o homem às categorias de função e rendimento resultou no processo de

degradação aludido. Identificar o valor de um ser humano com o rendimento que ele pode

produzir significa, inevitavelmente, cair na perspectiva idealista, quando separa o Ser de sua

existência (MARCEL, 1968). Assim como não é possível desligar a existência do Ser,

também não se deve separar a existência dos valores. Fora desta ordem, nos diz Marcel, “o

pensamento trai a si mesmo e desconhece suas próprias exigências ao pretender substituir a

ordem do valor pela ordem do ser, e se condena por ele mesmo a permanecer na ambigüidade

mais suspeita na presença do dado” (2003, p. 30).

designar uma coisa de ordem inteiramente diversa” (MARCEL, 1951b, p. 151, 153). A dificuldade revelada por Marcel no trato da temática da categoria do ‘valor’ se dá em virtude do mesmo termo estar sendo utilizado da mesma forma em campos distintos, o que irremediavelmente poderá conduzir a equívocos de ambas as partes. “De mais a mais, só se fala em valor quando há uma desvalorização prévia e se o utiliza quando se perdeu uma realidade substancial” (GIRARDI, 1978, p. 73).

69 De acordo com o ‘Vocabulaire Philosophique de Gabriel Marcel, “en France, les principaux représentants de la philosophie des valeurs ont été les néokantiens et certains penseurs, comme Le Senne. Au début de l’article Existence et Objectivité paru en 1925 (voir JM. 309-329), Gabriel Marcel remarque: ‘Quand on observe l’évolution des doctrines métaphysiques depuis un siècle environ, on est frappé de constater combien les philosophies idéalistes s’accordent, en general, à réduire au minimum le role de l’existence, de l’indice existentiel dans l’économie générale de la connaissance, et cela au profit des déterminations rationnelles de tous ordres – certains diront des valeurs – qui confèrent à la pensée un contenu intelligible (JM. 309) (PLOURDE et al., 1985, p. 541).

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

81

“O valor não é nada se não for encarnado” (MARCEL, 2005, p. 215). O sentido do

valor, portanto, encontra-se na encarnação do Ser, através do modo como este se torna

transparente para si mesmo. “O valor não é senão a condição de se encarnar por um ser que,

de qualquer forma que isto dê, considera esta encarnação como sua própria encarnação”

(MARCEL, 1947, p. 169). É por meio da experiência vital do Ser, que o valor assume seu

papel com relação à vida. Onde quer que o Ser seja preservado, os valores também serão. “Os

valores não podem ser efetivamente salvaguardados a não ser onde o Ser é efetivamente

salvaguardado, não como podia ser na antiga Filosofia do objeto, mas como um mistério em

que existo” (MARCEL, 1947, p. 169).

“Perguntamos agora diretamente o que implica a redução do valor do indivíduo ao

rendimento que ele pode dar?” (MARCEL, 1951b, p. 157). Implica em mantê-lo cativo das

imediações do rendimento e da função, em tratar o homem em vias de desaparecer, deixar de

existir para si, enquanto indivíduo e pessoa que é. Resulta em privá-lo de sua própria

dignidade, em ceder à tentação de objetivá-lo, de considerá-lo como uma coisa, um isso ou

aquilo. Com relação a este tipo de perversão, Gabriel Marcel afirma:

Diz-se vulgarmente nos Estados Unidos que um homem vale tantos dólares. Maurice Sanchs conta no Sabbat que numa conferência em San Diego, na fronteira mexicana, o presidente exprimiu-se pouco mais ou menos nestes termos: Minhas senhoras e meus senhores, honro-me de ter-vos dado a conhecer os maiores conferencistas atuais, quando ainda não tinham valor alto. Tivemos M. Sinclair Lewis, que vale hoje mil dólares, quando só custava cem! Depois, M. Dreiser... Hoje tenho a honra de apresentar M. Sachs, que vale somente cem dólares, mas em breve, esperamo-lo por ele, valerá mil; digo porque não seremos nessa altura bastante ricos para tê-lo aqui – Não estava em público, mas ao balcão (MARCEL, 1951b, p. 156).

Na sociedade industrial o homem é avaliado na perspectiva utilitarista da máquina. Na

pretensiosa civilização moderna, o indivíduo é reconhecido e tratado de acordo com a função

que passa a exercer, a habilidade que desenvolve, o cargo que ocupa, o papel que

desempenha, o valor dos bens que possui, o retorno que dá à cadeia produtiva e a importância

que representa para o mercado de consumo. Quando falamos sobre esta realidade desconexa,

é importante destacar que

[...] o êxito técnico surge cada vez mais como o sinal mais importante, senão único, da superioridade humana em um mundo absurdo ou informe. É certo que poderia haver nisto uma reivindicação prometeica não destituída da grandeza em si própria; mas degrada-se e perverte-se ao nível do consumidor (MARCEL, 1951b, p. 54).

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

82

Historicamente, este tipo de mentalidade não é apenas expressão de um olhar limitado

e, em outros momentos, parasita do Ser; como representou, em termos do terror histórico,

produzido nas duas Grandes Guerras, o único critério de valor e sobrevivência nos países

ocupados pelas investidas nazistas. Ao que alguns chamam de progresso, Marcel classifica

como um possível caminho para a total degradação e destruição do humano. Neste sentido,

parece-nos importante lembrar de que

[...] vimos, aliás, durante a ocupação alemã a que ponto o processo pode levar-se. Cada indivíduo é redutível a uma ficha escolhida pelo organismo central com elementos determinantes da sorte que lhe caberá. Ficheiro sanitário, ficheiro judiciário, ficheiro fiscal, completado amanhã talvez por indicações grafológicas ou até antropométricas; tudo isto em sociedade tida por organizada decidirá do destino individual sem se terem em conta laços familiares, ligações profundas, gostos espontâneos, vocações (1951b, p. 161).

Mais ainda: descreve o importante “Relatório de Buchenwald”70:

O significado das diferentes categorias de prisioneiros nos campos de concentração deve ser brevemente descrito. Entre os prisioneiros políticos e os criminosos [...] provinham, sobretudo artesãos especializados, atendentes hospitalares e criados domésticos [...] O campo teve de criar uma série de serviços destinados a satisfazer as exigências de luxo da administração. Entre outros serviços criados, mencionamos: Estúdio de escultura; para ele eram designados arquitetos, escultores, que trabalhavam com madeira e pedra, entalhadores, canteiros, ourives e prateiros, pintores, oleiros e artistas gráficos [...] Pesquisa genealógica: formado por ex-funcionários tchecos que tinham a incumbência de criar listas e árvores de ancestrais [...] Departamento de fotografia: servia para produção e reprodução de fotografias de arte, bem como para a confecção de esplêndidos álbuns de fotografia para membros da SS, seus parentes, amigos e conhecidos [...] Encadernação de livros: onde eram produzidos cartões de luxo, além de todo tipo de cartão de saudação, exemplares especiais de livros de presente, o jornal ilustrado De Pelikan para as noitadas de confraternização, placas com máximas e caligrafia [...] Empreendimentos agrícolas: entre estes estavam o chiqueiro, a cavalariça, abrigando cavalos de corrida; o aprisco, a criação de aves; um viveiro de coelhos angorá; a turma da jardinagem; e amplas plantações na vizinhança imediata dos campos. A mão-de-obra era feita em geral por meios que podiam ser fatais. Os operários especializados recebiam ordem de se pôr à parte. Em seguida os prisioneiros restantes eram surrados e destinados á turmas de trabalho mais pesado, como a extração de pedras ou a escavação de túneis, sem que a força física, a adequação ou a experiência

70 Gabriel Marcel considera este processo de classificação como um método de abatimento que procura

desmontar o adversário através da autocapitulação de si. “Para executar o adversário, para pô-lo knock-out, basta pôr-lhe uma etiqueta e atirar-lhe à cara, como um frasco de vitríolo, uma acusação maciça a que lhe é impossível responder; desmontando o adversário, declarar-se-á que ele confessa e capitula. Assim, em certos meios, é impossível proferir um juízo gradativo de personagens contemporâneos e suas intenções iniciais sem ser automaticamente classificado entre os partidários dos métodos de Buchenwald e Auschwitz” (MARCEL, 1951b, p. 66-67).

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

83

prévia fossem minimamente consideradas. De todo modo, ser um operário especializado era o mesmo que possuir uma apólice de seguro de vida (HACKETT, 1998, p. 70, 84-85, 97).

Se tudo isto parece horroroso e absurdo é porque, de algum modo, evitou-se

reconhecer as implicações da condição do homem reduzida às dimensões da classificação,

burocratização, funcionalização e da produtividade. Neste sentido, os termos de valor e

herança desvalorizam-se cada vez mais. Como disse algures, “quebrou-se certo elo nupcial

entre o homem e a vida” (MARCEL, 2005, p. 173). Diante de uma situação tão árdua, cabe-

nos indagar: é possível investigar a relação entre valores e herança espiritual? “Podemos dizer

razoavelmente que os valores também se herdam?” (MARCEL, 1955, p. 67).

1.1.2.3 Olhar fenomenológico da herança espiritual: entre o Ser e o ter

Todo processo de abstração e degradação do humano não pode ser considerado

divorciado de certo estado de espírito. Apesar da densidade das fraturas humanas, dos

escombros e das ruínas de um mundo que perdera seu encanto, Marcel nos diz que é preciso

trazer à memória os aspectos constituintes de uma herança espiritual. Quando se trata de

herança, não estamos pensando basicamente em coisas, mas no papel que o espírito humano

exerce “em procurar voltar aos signos de uma realidade significativa, que deve ser sempre

descoberta, porque em si é refratária a toda possível transmissão” (MARCEL, 1955, p. 52).

A herança espiritual só se manifesta numa atmosfera permeada de gratidão e

enriquecida pela admiração (MARCEL, 1971; BOLLNOW, 1962), num âmbito existencial,

onde se considera possível o surgimento de um mundo novo e de uma humanidade renovada.

No contexto da técnica não há espaço para a gratidão, porque todas as relações são pautadas

pelos signos do ter, da posse e da dominação (MARCEL, 1955, 2003).

Onde quer que a dimensão do ter exerça proeminência, a gratidão e a admiração se

desvanecem. Nas esferas do ter e da técnica, não há espaço para estas categorias, porque elas

centram o homem no domínio da posse. Como agente criador, o técnico só pensa em si

mesmo, no seu experimento e/ou na sua realidade imediata. Na pretensão de si, o homem da

técnica tem dificuldades de demonstrar reconhecimento pelo outro e por outras questões que

fogem ao seu domínio. Nada que escapa à sua realidade imediata lhe interessa, a ponto de

levá-lo a reconhecer seu real significado e importância. Na ótica de Marcel71,

71 Um estudo-síntese sobre o Conceito de Herança Espiritual de Gabriel Marcel pode ser encontrado na obra ‘O

Dilema da Sociedade Tecnológica’ (1971). Um conjunto de quinze ensaios que compõem um quadro ontológico das perspectivas de filósofos como Karl Jaspers, Eric Fromm, David Riesman, Robert Merton,

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

84

[...] seu centro de gravidade e como sua base de equilíbrio passam a serem-lhe exteriores; que ele se situa progressivamente nas coisas, nos aparelhos de que depende para existir. Não seria excessivo dizer que quanto mais o homem em geral consegue o domínio da natureza, mais o homem em particular se torna escravo dessa mesma conquista (MARCEL, 1951b, p. 52).

Devido à cultura do desapego, na sociedade industrial, o ancião é visto, cada vez mais,

como aquele que não serve para nada e os monumentos históricos são demolidos, como se,

em si, não fossem depositários de nenhum tipo de memória e/ou real valor humano-cultural

(MARCEL, 1951a, 1955). Este é um tratamento pelo qual se confirma a dura realidade de um

mundo, cada vez mais, desumano, insensível, árido e ingrato. Um mundo ausente de afeto,

desprovido de memória e lento nos atos do reconhecimento, da admiração e gratidão ao

humano.

“A gratidão, que nos interessa aqui, especialmente, implica antes de tudo para o sujeito

numa consciência intensa de sua própria receptividade, está assim inteiramente referida ao

outro, considerado como fonte bem feitora” (MARCEL, 1955, p. 56). A gratidão é um ‘laço’

que nos une aos outros. Aquilo que me liga ao tu. É a ponte que promove o verdadeiro

encontro, a união que transcende à mera relação, o vínculo capaz de resistir à tentação de

querer reduzir o outro às dimensões de objeto e da instrumentalização. Através da gratidão, o

homem descobre que “interessar-se por um ser é ter com esse ser elos vitais” (MARCEL,

1951b, p. 58).

A gratidão é mais que uma sensação ou hábito; ela representa um modo de

disponibilidade, pelo qual o outro ser é acolhido por e em mim, através de uma ‘misteriosa

restituição’ do espírito. Enquanto atitude de recebimento, a gratidão é mais que resposta, ela

representa o reconhecimento, não somente pelo que o outro fez em meu favor, mas envolve o

testemunho daquilo que ele é como presença e forma de ser no mundo; consiste no

reconhecimento da sua subjetividade.

O reconhecimento provido de uma atitude de gratidão não se expira num único

momento, não possui prazos de validade e vencimento. Não dura um só instante porque o

outro se torna para mim uma memória. “A memória não é uma simples conservação, senão

Gabriel Marcel, entre outros. Apesar das divergências e multiplicidades de olhares, entre estes estudiosos, é possível perceber que todos eles preocupam-se com um ponto em comum: a preservação da dignidade do homem diante da realidade social de um mundo, cada vez mais complexo, tecnológico e dominado por crises. Mais ainda, pode-se consultar a análise deste termo, ‘valor’, no quadro geral das produções que discutem a filosofia marceliana nas obras: ‘Vocabulaire Philosophique de Gabriel Marcel’ (PLOURDE et al., 1985, p. 541-550) e ‘O Ser do Valor; perspectivas de Gabriel Marcel (GIRARDI, 1978).

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

85

que teremos que vê-la melhor como uma vigília; uma vigília da alma, alerta para não deixar

perder o que para ela se reveste de valor permanente” (MARCEL, 1955, p. 57).

Guiado pela gratidão, o homem não se deixa distrair ou dispersar-se da vida fraterna,

porque se sente movido a comprometer-se com ela. No encontro, entre a gratidão e a

memória, o Ser se compromete. Foge da inércia da solidão egoísta e procura ser coerente e

fiel a si mesmo, à medida que reconhece a especificidade e o valor da singularidade do outro

ser e a maneira subjetiva como o tu se torna presença viva e fiel para o eu.

A fidelidade, neste caso, não se trata de um simples compromisso formal, porque se

releva criadora do Ser e autenticadora de sua própria forma de existir. Neste sentido, “a

fidelidade se refere sempre a uma presença ou a algo que pode e deve manter-se em nós e

diante de nós como uma presença” (MARCEL, 1987, p. 64). Sobre a fidelidade72, acrescenta,

ainda, Marcel:

Porque a fidelidade é criadora, transcendem infinitamente, como a liberdade mesma, os limites do prescritível. Criadora, quando é autêntica, e é no fundo de toda maneira, pois possui o misterioso poder de renovar não só a quem pratica, como inclui seu objeto, por indigno que tenha sido dela a princípio, como se ela tivesse a oportunidade – não há nada de fatal aqui seguramente – de convertê-la, finalmente, em permeável ao sopro que anima a alma interior consagrada. É assim como a fidelidade revela sua verdadeira natureza, que é ser um testemunho, um certificado; assim também é como uma ética, que a toma como centro, se vê irresistivelmente conduzida a apegar-se a algo mais humano, a uma vontade de incondicionalidade que é em nós a exigência e a marca mesma do absoluto (2005, p. 145).

A fidelidade encontra seu sentido na dimensão do cuidado e se expressa através da

participação e do engajamento. Através da vivência destas exigências ontológicas, o Ser

transcende a dimensão imanente. Na base desta experiência a herança espiritual se nos

apresenta como uma mediação, ou seja,

Significa que herança da qual falamos não é apenas uma intermediação entre nós e o espírito, seja qual for a definição metafísica que teremos que dar-lhe, senão que esta mesma herança não pode ser reconhecida mais que a luz desta ideia, a única que pode conferir-lhe valor e dignidade (MARCEL, 1955, p. 64).

72 “La fidélité joue un ‘rôle axial’ dans la pensée de Gabriel Marcel” (MARCEL; RICOUER, 1968b, p. 46). Cf.

Vocabulaire Philosophique de Gabriel Marcel (PLOURDE et al., 1985, p. 248-270), sobre a relação que há entre fidelidade, herança espiritual e intersubjetividade no pensamento marceliano.

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

86

O propósito da herança espiritual é tentar recuperar o elemento ontológico que foi

perdido, em favor da técnica e da funcionalização do homem, ao procurar substituir o ponto

de vista da produção pelos aspectos metafísicos da encarnação, da criação e da exigência

ontológica (MARCEL, 2003, 2005).

A herança espiritual se manifesta como um chamado à consciência exclamativa, que

pretende conduzir o homem para além dos processos que podem levá-lo aos redutos da auto-

objetivação. No íntimo, esta herança não se constitui como uma natureza dada, porque se

revela como uma aspiração criadora, que me coloca na direção do outro ser e em busca do

desvelar da minha própria humanidade. Contudo, nos mostra Gabriel Marcel:

Ser homem não quer dizer simplesmente apresentar as características biológicas de certa espécie determinada; quer dizer viver humanamente, e essas palavras, pese as aparências, revestem um sentido extremamente preciso, ao menos para uma filosofia do espírito; significa viver em condições materiais tais que o ser não seja aturdido diante da pressão da inquietação que a consciência pode desenvolver ao mesmo tempo, tanto a consciência de si e do outro – e de uma realidade que transcenda esta mesma oposição (MARCEL, 1955, p. 72).

Corresponder a tais condições exige a necessidade não só da busca pelo alcance dos

aspectos fundamentais da existência vital do homem. “Isto implica em saber até que ponto os

herdeiros estão em condições de transformar o mundo dos deserdados de maneira que este

participe por sua vez na herança espiritual” (MARCEL, 1955, p. 72). Na herança espiritual, o

Ser se reveste da natureza da solidariedade. Interpelado por ela, o homem evita cair nas teias

da exploração73 da capacidade, do talento, da energia, dos recursos, da fé e das esperanças dos

outros seres humanos.

A base da análise da essência do valor não se esgota na perspectiva do dado e do

aparente. Seu fulcro encontra-se no âmago de uma Filosofia do luminoso “que se lança assim,

como um movimento irresistível, ao encontro de uma luz que presente e da qual experimenta

no fundo de si mesma como um secreto estímulo e um ardente presságio” (MARCEL, 1987,

p. 82). Esta é uma manifestação que faz da reflexão uma força iluminada e iluminante, como

73 Cf. DS, p. 73: “Decir, por ejemplo, que en un cierto punto de miseria y de explotación la religión corre el

riesgo de ser utilizada por los explotadores como un medio suplementario de manumisión, es reconocer un hecho del cual desgraciadamente no faltan ejemplos; pero, en cambio, es radicalmente ilegítimo extraer de semejantes hechos una conclusión que se vuelva contra la esencia misma de la religión. Un Cristiano deberá simplemente declarar que por culpa de los hombres y de su debilidad, la perversión de esa esencia sigue siendo posible, pero sin que ella perjudique realmente el contenido de la fe. Hay que agregar, sin embargo, que desgraciadamente en el plano existencial tal confusión amenaza siempre producirse y que en tal sentido, el mal sacerdote es en la letra un falso testigo que traiciona a Cristo y contribuye con su ejemplo a difundir la desconfianza y el odio, en lugar del amor y la fe”.

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

87

indicação, não de um caminho dado e determinado, mas como uma possível trilha, que uma

vez seguida, poderá contribuir para levar o homem a ultrapassar as linhas da oposição entre

sujeito e objeto, a levá-lo à verdadeira transcendência de si, no âmbito da realidade humana.

Dizemos de um caminhar onde se entende que, de acordo com Marcel,

[...] a noção de herança espiritual deve seguir sob a dependência de um pensamento aberto e que o pensamento criado permanece aberto só pode ser fornecido como estimulado pela preocupação com os menos favorecidos e a recusa de considerar esta situação de indigência radical como uma fatalidade permanente, quando não pode ser, não digamos somente para um cristão, senão para qualquer ciência espiritual, outras coisas que um chamado do espírito à boa vontade de cada um (MARCEL, 1955, p. 75-76).

A noção de herança espiritual nos coloca frente à exigência do chamado à

generosidade e ao serviço; frente à busca pelo reacender das dimensões e dos aspectos que

foram colocados de lado e frente à margem do processo de desenvolvimento dos seres

humanos pela sociedade industrial. Estamos falando de uma interpelação existencial que

aponta para uma forma de vida aberta, “por onde deve haver mediações, de modo que venham

a ser como grãos de uma espiga, não elementos de simples agregado, por onde se reconhece

que é preciso recriar o tecido vivo” (MARCEL, 1951b, p. 171).

1.1.3 Técnicas de Aviltamento

O debate entre o valor da técnica e a consciência existencial nos orienta para a reflexão

sobre o modo como os procedimentos técnicos podem se colocar a serviço da opressão e

contra a experiência emancipatória das pessoas e os processos promotores da condição

humana dos seres. É no incurso desta constatação que a Filosofia de Gabriel Marcel se

debruça sobre o modo como as técnicas de aviltamento contribuem para o envilecimento das

consciências humanas, através da manipulação da propaganda, ao promoverem uma noção

ideológica da história. É mediante o risco de perder-se e a possibilidade de achar-se, humana e

existencialmente, que julgamos importante considerar “[...] que não há pior ilusão do que

supor determinada organização social ou institucional bastante para desvanecer uma

inquietação que emerge do mais profundo Ser” (MARCEL, 1951b, p. 35).

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

88

1.1.3.1 O envilecimento do humano na civilização industrial

“A crise do homem ocidental é uma crise metafísica” (MARCEL, 1951b, p. 35). É

uma inquietação que, emergindo do mais profundo do Ser, precede a toda forma de estimativa

e transcende ao controle das organizações sociais e institucionais (FRIEDMAN, 2012).

No balanço humano, os terríveis acontecimentos, provocados pelas duas Grandes

Guerras Mundiais, tendem à neutralização do Ser através de uma ação conjugada, que

desencadeia um processo de insularização temporal do homem contemporâneo (MARCEL,

1961, 2003, 2005). Este configura-se como o estado pelo qual o sujeito é tentado a envilecer-

se, a perder o contato real com o fato e a reduzi-lo a uma simples noção abstrata.

A pretensão do envilecimento humano é a promoção da consciência abstrata.

Envilecer consiste no ato de tornar vil74, de tentar depreciar o humano da sua dignidade, sem

que este, necessariamente, tenha consciência disso. Envilecer é agir intencionalmente contra a

noção que o outro tem de si próprio. É procurar demover o homem de seu fulcro existencial; é

levá-lo à condição de ambivalência sobre seu próprio valor; é pretender aviltá-lo.

No ato de aviltar, o homem é tratado como objeto insignificante, um ser desprezível,

cuja honra deve ser transformada em vergonha e ignomínia. A vilania degenera a natureza

humana, reduzindo-a ao estado de desprezo, desvalorização e vazio. Quando atrelado à noção

da técnica, o ato de aviltar o outro representa agir, com base numa série de métodos, na

intenção de desconectar no homem os laços entre a visão poética da vivência e a criação

filosófica de sua própria existência, levando-o ao desencanto da vida e de si mesmo. Nas

palavras de Gabriel Marcel:

Entendo por técnicas de aviltamento processos intencionais para atacar e destruir em indivíduos de categoria determinada o respeito de si mesmos, transformando-os pouco a pouco em resíduo que se considera tal e só pode desesperar não só intelectualmente, mas até vitalmente, de si próprio (MARCEL, 1951b, p. 39).

A vontade de humilhar é a força motriz do aviltador. Expor seu semelhante ao vexame

e à nulidade representa garantir a própria supremacia; significa mostra-se superior, altivo,

elevado e melhor. A estas disposições específicas se ligam o uso das técnicas de aviltamento

(MARCEL, 1955, 1961, 1987) e um corolário de meios e aparatos criados, única e

74 Conforme Marcel, “vil é o que não tem preço, e aviltar é contribuir para baixar o preço, o valor de uma

mercadoria, lançando para o mercado, por exemplo, grande quantidade desta” (MARCEL, 1981, p. 84).

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

89

exclusivamente, com o fim de convencer o outro que não passa de um simples refugo da

espécie humana.

“É evidente que ao falar de técnicas de aviltamento acode imediatamente o seu

emprego maciço e sistemático pelos nazistas, especialmente nos campos de concentração”

(MARCEL, 1961, p. 39). Decerto, pode se articular a estas pretensões um corpo de

instrumentos e métodos de envilecimentos que foram usados, pelos alemães, no período da

Segunda Guerra Mundial.

De acordo com “O Relatório de Buchenwald” (HACKETT, 1998)75, encontramos,

entre outras técnicas de aviltar, os atos de violências ignóbeis que se mostram através da

repetição exaustiva de cânticos e melodias, o uso de estrelas e disposições anexas, modos de

vestirem-se, fardamentos, ferramentas, aplicação classificatória de cores, departamentalização

de funções, estratificação de grupos, linguagem verbal depreciativa, tratamento indevido do

corpo, monitoramento da rotina, deflagração da intimidade, nulidade da memória dos que se

foram, uso de crachás, fichas de presença, realização de chamadas, avaliação de desempenho,

aplicação de sanções e castigos físicos.

Mais ainda: o uso de seres humanos como cobaias, exploração de talentos, habilidades

e mão de obra, divisão do trabalho, discriminação étnico-racial, intolerância religiosa,

processos laboral-escravistas, uniformização dos modos de ser, viver e pensar, condições

precárias de vida e higiene, negação dos direitos de ir e vir, cerceamento da liberdade de

expressão, discriminação de gênero e exposições a vexames, humilhações e toda sorte de

constrangimentos e abusos físicos, mentais e emocionais.

Desde o surgimento das técnicas de aviltamento, seu uso passou a generalizar-se e a

tomar corpo e espaço no âmbito das relações profissionais, institucionais e sociais. As noções,

relativamente simples, das técnicas de aviltamento tornaram-se a marca e o fundamento, tanto

da ordem material como da aquisição intelectual da civilização industrial. Elas aparecem

explícitas e/ou veladamente, através dos pressupostos, das formas de tratamento, critérios e

exigências da própria ideia de progresso e desenvolvimento técnico-científico da sociedade

contemporânea.

Em si, as técnicas de aviltamento se expressam através da própria noção de

inacabamento do Ser e da vida. Neste sentido, surge a ação aviltante da técnica, quando

75 Gabriel Marcel cita como exemplo dois ou três testemunhos diretos e reveladores dos sobreviventes, contidos

no “Relatório de Buchenwald” (HACKETT, 1998), que foram colhidos e registrados em abril de 1945, como expressões do dia a dia em um dos campos de extermínio na Alemanha, durante o período da Segunda Grande Guerra Mundial.

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

90

considera a ideia do inacabamento humano como um estado de imperfeição; a condição

deficiente, que requer da Ciência uma intervenção direta, que envolve a construção de regras

de desenvolvimento, leis de comportamento e enquadramento das disposições volitivas. Para

o homem da técnica, vida e ciência confundem-se e anulam-se mutuamente. Em um mundo

onde se afirma o controle absoluto dos aparatos técnicos sobre as incidências do humano,

questiona-se: “como não arrogar-se então o direito de intervir até no curso da vida como quem

constrói comportas em um rio?” (MARCEL, 1951b, p. 56).

As descobertas científicas e o progresso técnico concedem ao homem a capacidade de

exercer, cada vez mais, domínio e controle sobre as diversas regiões do mundo e dimensões

da vida (SPENGLER, 1998b). Nesta condição, o técnico se vê, irresistível e irrestritamente,

tentado a subverter o sentido dos seus achados, para além da ordem do serviço e da atividade

espiritual, que estejam voltadas para fins superiores e benefícios humanos. A verdade, diz

Marcel,

[...] é que os progressos da técnica expõem cada vez mais o homem à tentação de atribuir aos seus êxitos um valor intrínseco que não podem ter de modo algum. Poderia dizer-se simplesmente que o progresso da técnica expõe o homem ao perigo da idolatria (MARCEL, 1951b, p. 57-58).

A idolatria se transforma em egolatria à medida que o homem se afirma como alguém

que tem o poder de negar a proposição recíproca da relação entre a criatura e o criador. Este é

o ato pelo qual o homem exalta-se e autodeprecia-se desmedidamente76. Um movimento que

“[...] não impede – e ou ele o não viu ou erradamente julgou poder pô-lo de parte – que no

nível da experiência o para além se volva um para aquém [...]” (MARCEL, 1951b, p. 61); é,

ainda, o ato pelo qual a valoração da ciência se degenera numa transvaloração da dignidade e

capacidade do fazer e modo de ser do humano. A partir desta reflexão

76 Neste sentido, Gabriel Marcel (1981) inclui ao conjunto das técnicas de aviltamento o humanismo de Jean

Paul-Sartre, quando não tem intenção de ressaltar sua visão do ateísmo nega totalmente a possibilidade de reconhecer o homem como uma criatura, um ser criado à imagem e semelhança de Deus. Sobre o que ele diz: “Em linguagem diferente, mas homóloga, podemos dizer que essas técnicas abomináveis só podem exercer-se quando deliberadamente nos recusamos a olhar o homem como criado à imagem de Deus; talvez pudesse até dizer-se simplesmente como um ser criado. Nem vale a pena insistir em coisa tão clara. Mas a proposição recíproca parece-me, pelo contrário, de importância considerável, e digna de toda meditação no nosso momento histórico. Desde que o homem se nega como ser criado, espreita-o um perigo duplo: por um lado – é exatamente o que se vê no existencialismo de Sartre – será conduzido a atribuir a si próprio uma aseidade caricatural, isto é, a considerar-se um ser que se faz a si mesmo e não é senão o que se faz; porque ninguém pode favorecê-lo nem sequer há dom que possa fazer-se-lhe; é radicalmente inapto a receber” (MARCEL, 1951b, p. 62). Na concepção de Joaquim Escola, “este humanismo, gerado na ambiguidade, não deixa de indicar um caminho que desembocará, necessariamente, num humanismo degradado e aviltante” (ESCOLA, 2011a, p. 98-99).

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

91

É fácil ver que o recurso a técnicas só é possível em um mundo onde os valores universais são calcados aos pés; e não pensemos aqui demasiado no bem em si, no verdadeiro em si – não gosto muito deste platonismo; mas antes nesses mesmos valores no seu âmbito referencial, isto é, enquanto conferem à existência humana – a toda existência humana – a sua dignidade própria (MARCEL, 1951b, p. 61).

Num mundo onde a reciprocidade entre o homem e a técnica se desvaloriza, é comum

encontrarmos discursos em torno do seu aspecto negativo. Conquanto o potencial técnico

tenha culminado na invenção dos mais formidáveis meios de destruição, há que se reconhecer

seu caráter positivo e suas múltiplas contribuições aos desenvolvimentos das civilizações e

dos homens. Com esta discussão, cabe ressaltar que o problema não apenas se refere aos

malefícios da técnica ou da defesa por sua total emancipação. Como fala Marcel,

Ainda uma vez, não se trata de incriminar as técnicas em si; pois que quando elas preenchem exatamente a sua função, elas não são em si; o caso é inteiramente diverso se elas reivindicam um como primado relativamente a um pensamento concentrado sobre o ser e não sobre o fazer (MARCEL, 1951b, p. 61).

Numa realidade cada vez mais entregue às técnicas, faz-se necessário discutir sobre a

noção de envilecimento, seus pressupostos e as categorias trágicas e aviltantes, da tentativa e

do risco. A crença no desenvolvimento técnico-industrial, enquanto impulso, está associada às

perspectivas da tentativa e do risco. No entanto, não se limita a eles, enquanto mecanismo

provocador de um espírito aventureiro. A tentativa sempre se refere a algo comum da vida,

pela qual o homem busca empregar determinados meios para atingir um fim, que é incerto e

duvidoso. Ao tentar, o homem prova, experimenta, repete procedimentos e realiza múltiplas

experiências (BOLLNOW, 1971). Já, no risco, sua postura é passiva e dependente; no risco, o

homem se expõe sem poder prever nem exercer qualquer influência sobre o resultado que

espera alcançar. No ato de arriscar, o sujeito pode agir cautelosa ou irresponsavelmente. Ao

arriscar-se, o homem degrada sua própria vida e a reduz, tratando-a como se fosse uma coisa

ou um objeto qualquer.

De modo geral, entregar-se a estas posturas aviltantes é subestimar a possibilidade de

vivenciar uma degradação total. Diante do perigo do alastramento e de suas novas formas de

insurgências, cabe-nos ressaltar a necessidade de se problematizar não só seus efeitos como os

aspectos constituintes e bases do processo de aviltamento da própria discussão em si. Conviria

aqui proceder com rigor sintético e mostrar, em especial, como este tipo de postura se

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

92

desenvolve quase invariavelmente em um mundo entregue aos domínios da técnica e da

função. Dizemos que

[...] o homem da técnica, tendo perdido no sentido mais profundo a consciência de si, isto é, antes de tudo, das regulações transcendentes que lhe permitem referenciar o seu proceder ou intenções, está cada vez mais desarmado perante as forças destruidoras desencadeadas em torno e perante as cumplicidades que elas encontram no fundo de si mesmo (MARCEL, 1951b, p. 67-68).

Na relação entre o homem e os perigos que envolvem as tentativas de envilecimento,

deve-se considerar que a técnica não possui um fim em si mesma e que, isolada dos

postulados humanos, poderá se converter num processo de dessacralização da vida, na perda

do sentido da existência, da dignidade e da sua própria liberdade. Este é um procedimento

aviltante, onde se tenta tornar o nobre vil por meio da atitude degradante de reduzir o valor

humano ao nível e ao preço de uma simples mercadoria ou objeto qualquer (MARCEL,

1981).

É mediante os incursos das análises e discussões em torno do processo de

envilecimento do humano na civilização industrial que Gabriel Marcel se propõe a refletir

acerca das técnicas de aviltamento em seus mais variados aspectos. O teórico procura, num

primeiro momento, avaliar o modo como o processo de degradação se coloca a serviço da

ideologização da história e, no segundo momento, avalia como seu fluxo se manifesta através

dos meios de comunicação de massa e, mais propriamente, por meio da propaganda.

1.1.3.2 A ideologização da história

No aspecto dinâmico, a reflexão filosófico-fenomenológica de Gabriel Marcel, a

respeito das insurgências das técnicas de aviltamento sobre o humano, situa-se no âmbito de

uma realidade político-social ideologicamente construída. A relação entre técnica, espírito de

abstração e sistema político coloca-nos diante dos abismos de uma compreensão dogmático-

filosófico da história. Este é um corte conceptual, capaz de comprometer a visão que o

homem possui do concreto, quando pretende desarticulá-lo do seu contexto imediato e

impedi-lo de perceber suas reais exigências existenciais e metafísicas.

Na peça teatral “Roma ya no está en Roma” (1957), Marcel chama a atenção para as

ameaças que pesam sobre o Ocidente. A inseparável relação entre a ambiguidade política e o

espírito de abstração aparece como o aspecto central das palavras e sentimentos expressos por

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

93

Pascal Laumière, principal protagonista da saga. Através da articulação entre os aspectos

religiosos e políticos, o teórico destaca o modo como Pascal, um homem honrado, reluta para

não se deixar enganar a respeito do sentimento que tem e da verdade do que é e faz. Falamos

de uma produção cujo contexto remonta a um período em que a França atravessa uma aguda e

profunda crise política e social e de uma tensão democrática, onde se questiona o caráter da

própria Revolução Francesa, como a viabilidade aplicativa dos postulados da liberdade, da

igualdade e da fraternidade77.

Através desta produção dramatúrgica, Marcel procura retratar o desejo de Pascal em

procurar manter-se coerente, apesar das controvérsias políticas de uma determinada época.

Este é um momento onde o monopólio do conformismo ameaça comprometer o caráter

consistente do Ser e da própria noção de democracia. O papel de Pascal aparece, neste

cenário, como a expressão de uma consciência lúcida, não só da dimensão interior do homem,

como da própria necessidade de se denunciar todas as expressões do dogmatismo histórico-

ideológico que se anunciam como dominadores dos homens e absolutizadores de todas as

formas de entendimento e visões de mundo. A consciência desta ambiguidade alcança seus

paroxismos nas cenas finais e, especificamente, nas palavras postas na boca de Pascal

Laumière, por Marcel, quando diz

[...] Se diría que has sido puesta en mi camino para señalar con barreras de odio la separación entre lo que soy y lo que aspiro ser. Se lo repito, Esther, René e es mi desgracia. Es el ser que no ha cesado de arrastrarme hacia abajo mostrándome la imagen más desalentadora de mi mismo. [...] Amigos de Francia, se me ha pedido dirigirme a ustedes una vez cada quince días para decirles como nosotros, los emigrados, nosotros, los desertores, vemos a Francia... [...] En una tragedia de Corneille, bastante olvidada, hay unos versos famosos y demás admirables. Sertorio, general rebelde en España, proclama que es él quien encarna la verdadera Roma.

Ya no me refiero a Roma como un cerco de murallas Que sus proscriptos colman de funerales. Esos muros, donde el destino antaño fue tan bello

77 Conforme está dito em nota de rodapé já citada, a peça “Roma ya no está en Roma” (MARCEL, 1957) retrata

a visão construída por Gabriel Marcel a partir de sua própria vivência, leitura e visão de mundo. Este sentimento se expressa quando diz que “Nunca a Revolução Francesa me inspirou a menos admiração ou sequer simpatia, porque muito cedo avaliei os estragos imputáveis a certo fanatismo igualitário. É certo que, neste caso, outro sentimento interveio, e também muito cedo, na época em que, não sei por que, meus pais me obrigavam a ler a árida História da Revolução Francesa, de Mignet: o horror inato da violência, perpetuados até 1789, impressionavam-me muito menos do que os crimes do Terror. Mas tarde, como é de supor, cheguei a um juízo mais equitativo ou pelo menos mais dúctil; mas a indignação sentida ao pensar nos morticínios de Setembro, ou em outros crimes coletivos não difere afinal essencialmente da que em mim despertaram, em data recente, os horrores do nazismo ou do estalinismo ou as ignomínias de certa depuração” (MARCEL, 1951b, p. 6).

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

94

No son sino la cárcel o tal vez el sepulcro: Pero para revivir afuera su primitiva fuerza De los falsos romanos ella se ha divorciado Y como a mi alrededor está todo el apoyo

Roma ya no está en Roma, sino aquí junto a mí. Amigos, ese pensamiento es falso; y es estoy o quiero gritarles hoy. No debimos irnos: hay que quedarse, es necesario luchar sobre el lugar. La ilusión de que podemos llevar la patria con nosotros, no puede nacer más que del orgullo y de la más loca presunción. Ustedes que quizás dudan delante de la amenaza del mañana, quedarse, les conjuro, y si no se siente con valor..., si ustedes no tienen el valor... (MARCEL, 1957, p. 73, 75, 77).

A desconfiança de Marcel com relação às pseudo-democracias do seu tempo é fruto de

uma série de abusos que se perpetuaram em alguns países da Europa e da América

(MARCEL, 1951b). O horror inato da violência, da desordem e da crueldade, que foram

desencadeados nos idos da Revolução Francesa, levaram nosso autor “[...] a uma profunda

suspeita em relação ao privilégio que se atribuía no seio das democracias à ideia de massa,

onde os seres concretos se diluem completamente” (ESCOLA, 2011a, p. 95).

Na base deste desagrado, encontra-se a consciência de que todos estes estragos foram

resultados de um certo fanatismo igualitário, onde se percebeu uma profunda conexão entre as

tendências políticas totalitárias, o espírito de abstração e a violência coletiva78. A explícita

crítica de Marcel contra os intensos abusos ideológicos resulta da compreensão de que “[...] o

espírito de abstração é de essência passional” (MARCEL, 1951b, p. 7).

A abstração é fruto da paixão e da passionalidade; é resultado da atitude precipitada de

julgar erradamente zonas distintas de compreensão, a partir de um determinado corte ou ponto

de vista específico e/ou pessoal. Na perda de uma visão ampla descarta-se a consciência das

condições prévias do que, em si, é apenas um processo. Um expediente onde se vê que

O espírito de abstração é inseparável deste erro, ou antes este erro o constitui. Não poderia dizer-se que o espírito de abstração pode em certos aspectos considerar-se a transposição do imperialismo para o mundo mental? [...] Desde que concedemos arbitrariamente preeminência a uma categoria separada de todas as outras, somos vítimas do espírito de abstração (MARCEL, 1951b, p. 138).

78 Não nos esqueçamos que depois da Primeira Guerra Mundial e diante das implicações sociais que ela trouxe

para o cenário europeu, a Alemanha viveu um período de alteração e novos contornos políticos. No período “Entre Guerras” (1918 – 1939), instaurou-se a República de Weimar, que tinha como sistema de governo o modelo parlamentarista democrático. O Partido Nazista surge no cenário sócio-político-econômico alemão para a burguesia, composta principalmente pelos banqueiros e industriais, como a solução para a crise do sistema financeiro do Estado. Após assumir o cargo de chanceler e líder maior da Nação, em 1933, Hitler buscou fortalecer o poder alcançado, através do uso da violência, repressão, opressão e, principalmente, dos discursos e da propaganda maciça junto às massas populares, além da adesão de grupos e setores importantes da sociedade.

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

95

Deve-se acrescentar que todo reducionismo traz, em si mesmo, um princípio de

obliteração e a atitude aviltante, onde se leva a crédito de uns, o que inscreve a débito de

outros. “Neste domínio devemos reaprender a usar a linguagem categórica e a evitar o

malefício de um relativismo fundamente egocêntrico, como é fácil mostrar” (MARCEL,

1951b, p. 9).

No corpo destas reflexões inscrevem-se os discursos e debates sobre as tendências

dogmatizadoras da história. Na base do espírito de abstração há sempre uma leitura ideológica

dos fatos históricos, há sempre a tendência desastrosa de reduzir a realidade a fórmulas

herméticas de interpretação, que se apresentam como portadoras de um caráter metanarrativo

(MARCEL, 1987). Este é um ato pelo qual não se interroga sobre a dimensão do mistério,

nem a respeito das condições, possibilidades e limites de sua própria eficácia e exatidão

interpretativa.

“A ninguém aproveita a ignorância do sentido da história” (MARCEL, 1951b, p. 9).

Onde a história é aviltada, a inteligência se degrada. Na ideologia, a história se desvanece,

perde seu fulcro e cai na inércia do plano social. A história deixa de habitar os domínios

humanos para ascender ao status de saber técnico-dogmático. Ela deixa de ser a expressão da

vivência de um povo, numa determinada época, para se tornar patrimônio de uma classe-elite

que pretende seu esvaziamento, manipulação e uso indevido. A história deixa de circular nos

âmbitos dos acontecimentos e passa ao largo destes; perde o contato com o homem e sua

própria realidade contexto-vivencial. Nestes termos

A história consiste essencialmente em passar ao lado do acontecimento [...] A história é como um general brilhantemente condecorado, levemente impotente, a passar revista às tropas do quartel de uma cidade, em grande uniforme de serviço no campo de manobras. Isto significa que em sentido profundo a história é uma maneira de esquecer, ou se prefere, de perder o contato com o real, com acontecimento, que assim fica reduzido à simples menção abstrata (MARCEL, 1951b, p. 36).

O poder regulador da história não se encontra nos axiomas de sua própria produção

historiográfica. A história, em si, não pode ser tratada como uma entidade; sua descrição não

deve constar como se fosse um simulacro do pensamento. A intenção de submeter o Ser ao

sentido ideológico do fato coloca “o homem contra a história” (MARCEL, 1951b, p. 206).

Pretender que a história seja apenas uma abstração é subestimar a liberdade fundamental do

Ser encarnado. É deixar-se mover pela intimidação dos marcos regulatórios dos construtos

técnico-positivistas que difundem a ideia linear de progresso (ARANHA, 2006).

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

96

A abstração da história supõe a desvalorização do Ser e de sua existência. O homem é

um Ser histórico e supra-histórico; sua dimensão pessoal transcende a todas as formas que

pretendem a regulação de si mesmo e da própria história. Negar a transcendência do homem é

atentar contra sua liberdade; é deixar-se conduzir pela impostura aviltante que ameaça destruí-

lo. Representa reproduzir “a noção de um sentido da história como discriminante dos seres

que devem ser preservados e até exaltados, e dos que devem ser afastados, se não

aniquilados” (MARCEL, 1951b, p. 221).

Diante do poder degradante da manipulação da ideologia histórica, “percebe-se que a

expressão mesma de ‘sentido da história’ corresponde a uma noção extremamente vaga”

(MARCEL, 1951b, p. 212). O espírito de abstração e a ideologização da história só podem ser

problematizados a partir da própria noção de indivíduo. O valor do indivíduo é que afere

sentido à história. Sua utilização não pode estar submissa aos sofismas de uma ideia

genericamente universalizada, pela qual o homem é visto como um elemento insignificante e

efêmero.

Ao lado do dogma técnico-abstrato e ideológico da história, são necessárias a

laicização e a secularização dos princípios fundantes, que advogam a favor de uma narrativa

absoluta do fato79. Como contraponto aos construtos venais da meta-técnica, Gabriel Marcel

(1987) propõe a reflexão do humano a partir de si mesmo e de sua concretude. Marcel propõe,

ainda, a articulação que consiste em fazer o indivíduo ter contato consigo mesmo e o ato de

pô-lo, literalmente, em direção a si, em reconhecer que a compreensão da história, assim

como a apreensão da “[...] memória, consiste essencialmente, por estar dentro do

acontecimento, em não sair dele, em permanecer nele e reconstituí-lo por dentro...”

(MARCEL, 1951b, p. 36).

79 É diante da possibilidade de cada indivíduo tratar suas opiniões como se delas fossem detentores, e da

necessidade que todo homem tem de discernir os âmbitos da sua realidade, que Marcel nos chama a atenção para a diferença que há entre o ideólogo e o pensador. “Aqui está, no meu modo de ver, a diferença entre o ideólogo, por um lado, e o pensador e artista por outro. O ideólogo é um dos tipos humanos mais temíveis, porque se converte a si mesmo inconscientemente escravo de uma parte mortificada de si mesmo; e esta escravidão tende inevitavelmente a converter-se em tirania exterior. Há aí, mais a mais, uma conexão que por si só não dispensa um sério exame. O pensador, ao contrário, está perpetuamente em guarda contra esta alienação, esta petrificação possível do seu pensamento, permanece em perpétuo estado de criatividade, todo o seu pensar se encontra sempre e em todo o momento submetido a um exame” (MARCEL, 1933, p. 208).

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

97

1.1.3.3 A manipulação da propaganda

Após dedicar atenção especial à descrição das técnicas de aviltamento, num primeiro

sentido, Gabriel Marcel volta sua reflexão para a análise do papel e influência da propaganda

no período “Entre Guerras” (1918 – 1939). Na luta contra e a favor da verdade, a propaganda

exerceu função estratégica. Conquanto se afirme que a propaganda não representa uma

técnica de abstração, há que se reconhecer seu poder de manipulação sobre as consciências

daqueles a quem se dirige e sobre quem se exerce domínio e controle.

Como instrumento de sedução, a propaganda compõe o conjunto de aparatos e meios

de persuasão empregados para chamar atenção a uma determinada marca e/ou serviço,

divulgar a importância de novos produtos, atrair parceiros para o envolvimento e realização

de projetos, explicitar o surgimento e a afirmação de novas tendências, conquistar aderentes a

uma empresa e despertar o interesse das pessoas por legendas e/ou propostas políticas.

Em certo sentido, “toda propaganda implica em suma a pretensão de manipular

consciências” (MARCEL, 1951b, p. 63). Embora a propaganda não deva ser classificada,

especificamente, como uma técnica de aviltamento, há que se chamar a atenção para seu

possível parentesco. A pressuposição de Gabriel Marcel de que a propaganda está ligada às

estratégias de envilecimento consiste numa compreensão distinta, que nasce como reflexo de

um determinado período e circunstância histórica. A época na qual se diz que

[...] muitos de nós conheceram um tempo em que a propaganda tinha uma existência simultaneamente relativa e subordinada. Era uma propaganda pró, não no sentido absoluto do termo; nem sequer nos ocorreria que pudesse vir a tê-lo. Pode dizer-se que a propaganda se reduzia aos meios de persuasão empregados para conquistar aderentes a uma empresa ou partido determinado. É certo que, mesmo vista deste ângulo, a propaganda é essencialmente corruptível (e também corruptora); isto é tanto mais verdadeiro quanto ela tende a volver-se meio de sedução. Enquanto apenas desenvolvo as razões intrínsecas por que a obra de que me ocupo é útil e boa, não pode falar-se de sedução, portanto nem de corrupção. Outro é o caso, se por meios sinuosos tendo a acentuar as vantagens adventícias de quem vier colocar-se sob a minha bandeira. É difícil, decerto, separar aqui precisamente o lícito do ilícito; mas não há dúvida de que quanto mais vasto for o papel representado pelo dinheiro, mais suspeita será a propaganda (MARCEL, 1951b, p. 46-47).

A perspectiva marceliana, onde se supõe um possível parentesco entre a propaganda e

as técnicas de aviltamento, remonta a um período de surgimento das ditaduras políticas

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

98

modernas, mais precisamente, à época em que a propaganda havia se tornado estatal e estava

a serviço dos ideais totalitários de determinados partidos políticos e legendas ideológicas.

A relação entre a propaganda, partidos políticos e as técnicas de aviltamento é íntima,

intimista e difusa80. A história contemporânea mostra que onde há uma fusão o fim é sempre

envilecer aqueles sobre quem esta se exerce; é sempre levar os homens à perda parcial e/ou

total de sua capacidade de análise e reação individual. Por pretender a abstração da noção de

indivíduo, a propaganda é vista como um mecanismo de manipulação de massa; como um

instrumento corrupto e corruptor das consciências e das subjetividades; como o meio pelo

qual é possível seduzir a visão, confundir os interesses, desenraizar as histórias, comprometer

os ideais, manipular as vontades e determinar os modos de Ser e viver no mundo, de homens

e mulheres, em todas as faixas etárias.

A pressuposição de que “o espírito de abstração é o fator da Guerra” (MARCEL,

1951b, p. 136) remete à ideia de que a opinião pública foi facilmente manipulada pelos

nazistas. De modo geral, o sentido da ‘verdade’ foi obliterado através dos meios de

comunicação de massa e, mais especificamente, por meio da propaganda. Por pretender a

instalação de um regime totalitário, foi que a propaganda nazista mascarou a realidade e

subverteu o caráter das informações. Na intenção de exercer um maior controle sobre a

população, foi que se construiu uma determinada visão de mundo e se divulgou uma

concepção intimista do sujeito81 e subversiva da realidade.

A propaganda, neste caso, foi o mecanismo usado pelos nazistas para a criação da

imagem do Führer, para levar as pessoas à crença nos ideais arianos82 e à instalação da tão

80 Cf. Fins politiques – Institutions et Fraternité. In: PARAIN-VIAL, Jeanne. Gabriel Marcel: un veilleur et un

éveilleur. Lausanne: L’Age d’Homme, 1989. p. 187-225. 81 Sérgio Pereira Couto comenta, na obra “Dossiê Hitler”,que através dos comícios e dos jogos olímpicos “a

Alemanha sob o comando de Hitler tinha apenas uma única preocupação: ganhar constantemente apoio para as ações dos nazistas. Assim, era comum que circulassem na época cartazes e filmes, feitos para as telas dos cinemas, que mostrassem como o poder das tropas da suástica conseguiria a derrota iminente dos inimigos ou a garantia da segurança, tão rara para os alemães daquele tempo desde o começo da I Guerra Mundial [...] Leni Riefenstahl era a cineasta oficial do partido nazista, mas nunca se filiou. Ela se destacou como atriz nos anos 1920 e era bailarina, atriz e diretora, além de saber editar, produzir e escrever roteiros. Trabalhava especificamente em filmes sobre a natureza, um gênero extremamente popular no período, onde se glorificavam o vigor físico na prática do montanhismo e a beleza do corpo e da natureza, símbolos intensamente apropriados pelo ideário nazista, na promoção do nacionalismo [...] Satisfeito com o resultado, Hitler ainda a convocaria para registrar os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim [...] Aqueles jogos teriam uma importância especial para Hitler, que queria mostrar, na prática, a superioridade ariana [...] Hitler gastou o equivalente a 30 milhões de dólares para preparar os Jogos,que tiveram uma cobertura ampla” (COUTO, 2007, p. 68-69).

82 A ideia de uma raça superior encontra em Krieck seu fundamento e em Hitler, seu principal difusor (GIESECKE, 1999). A crença de que o povo alemão descendia de uma raça superior – os arianos - acabou se constituindo num mecanismo de preconceito e segregação racial aos povos judeus, eslavos e tantos outros que foram considerados pelos nazistas como inferiores e que, por isso, deveriam ser expulsos da Alemanha e até

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

99

sonhada nação germânica. “A maior parte das campanhas publicitárias estava sob o controle

do Ministério da Conscientização Pública e Propaganda” (COUTO, 2007, p. 73). Sob o

comando do Dr. Joseph Goebbels83, o Partido Nacional Socialista passou a exercer total

controle sobre os meios de comunicação de massa.

Os principais canais para a divulgação da propaganda nazista foram: a imprensa e o

rádio84. O progresso da técnica favoreceu a manipulação da nação alemã. Na época em que o

nazismo ascendeu ao poder, não havia rádios comerciais em operação. Através do papel

prodigioso do rádio “um Hitler ou um Mussolini podiam ao microfone julgar-se como

investido do privilégio divino de ubiquidade” (MARCEL, 1951b, p. 50). Conforme Roger

Manvell e Heinrich Fraenkel, “O Correio também controlava a Campanha Nacional de

Radiodifusão, que tinha a maioria das ações das companhias regionais, e controlava e operava

os transmissores nacionais responsáveis por colocar no ar os programas das companhias”

(MANVELL; FRAENKEL, 2012, p. 145).

O controle sobre os meios de comunicação era intenso. De modo geral, a divulgação

da propaganda através do rádio “[...] contribuiu para minar através de incansáveis esforços a

dignidade e a espiritualidade humana” (MARCEL, 2005, p. 86). Para os nazistas, a

propaganda era imprescindível para atingir seus objetivos e lançar as bases de preparação para

a Guerra85 e a dominação da Europa e do mundo.

aniquilados, nos campos de concentração. Para Krieck (1941), a educação é mais do que uma ação de instrução ou transmissão de conhecimentos; ela se constitui como algo vital, por estar ligada, não só à vida do sujeito, mas ao próprio destino do homem. A educação possui uma dimensão social à medida que o homem compreende que é um “simples produto do Estado”; sua constituição só se dá quando o sujeito absorve uma visão de mundo construída pelo líder da Nação - o Führer - e lhe foi dada como algo que deve fazer parte da formação de sua própria personalidade (HENZ, 1970).

83 Roger Manvell e Heinrich Fraenkel na obra “Doutor Goebbels: vida e morte” (2012) revelam o caráter do homem por trás da máquina de propaganda nazista. Um trabalho pelo qual podemos ter acesso aos traços marcantes da personalidade do homem que comandou o processo de criação e divulgação dos ideias nazistas; sua infância, formação acadêmica, ascensão no governo, amizade com Hitler, sua atuação como Ministro da Propaganda e do Esclarecimento Público, sua influência na guerra e seus últimos momentos de vida e morte. Como uma obra de referência da história da Segunda Guerra Mundial, este trabalho fornece detalhes importantes sobre o processo de manipulação da propaganda e de suas influências sobre a Nação Alemã e as vidas das pessoas em geral, em muitos países da Europa.

84 “O teatro foi mantido vivo em tempos de guerra na Alemanha; foi afirmado na temporada de 1940-1941 que 355 teatros públicos, 175 teatros independentes e 142 teatros ao ar livre estavam operando – um número incrivelmente alto até mesmo para o país que apoiava o maior número de cinemas na Europa. Muitas peças de caráter nacionalista ou nacional-socialista foram escritas [...]. Depois do rádio, no entanto, foi com os filmes que Goebbles contou como sua propaganda mais eficaz. Não que ele esperasse que todos os filmes alemães contivessem propaganda, longe disso. Mas percebeu o quão importante era desenvolver um noticiário forte, documetários e serviço de filme instrucional [...]” (MANVELL; FRAENKEL, 2012, p. 213).

85 Por pretender a formação, especificamente do soldado político, a comunicação de massa alemã pautou-se na ênfase em torno da crença dos aspectos físico, anímico e espiritual do povo alemão; seu objetivo era fazer de cada cidadão um soldado fiel aos interesses hitleristas. O Nacionalismo alemão corresponde a um processo de subordinação da comunidade à Nação; sua base teórica também encontrou respaldo na obra “Mein Kampf”

Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

100

Os postulados da propaganda, enquanto meio de manipulação, assentam-se nos

pressupostos da opinião ideológica. Em geral, o homem-massa não percebe, através da

difusão mecânica, as intenções que, inevitavelmente, pretendem degradá-lo por meio do que

se irradia, escreve e divulga (MARCEL, 2005; JASPERS, 1933). A degradação é inerente à

falta de discernimento. Na usurpação da consciência o homem fica impedido de transcender,

de ir além de suas limitações e condições existenciais.

A falta de equilíbrio entre progresso técnico, a conquista interior do Ser e o uso dos

meios de comunicação contribuíram para levar o homem à perda da noção íntima e profunda

de si e da sua própria realidade. Na base do envilecimento do Ser espiritual, encontra-se o

processo mecanizador do corpo e da sua própria vida interior (MARCEL, 2003). Movido

pelos ideais da propaganda o homem se volta, cada vez mais, para as questões externas e se

situa, progressivamente, no âmbito da lógica das coisas e do eu-isso, nas condições técnicas e

funcionais de que depende para existir e viver (BUBER, 1969).

Neste sentido, toda propaganda, com fins político-ideológicos, consiste num ato de

aviltamento da verdade e do Ser. “A propaganda é o desconhecimento cínico daquela

ordenação das consciências para a verdade [...]” (MARCEL, 1951b, p. 63). Ela resulta num

processo pelo qual se reivindica o primado do ter sobre o ser, numa atitude redutora e

funcionalizante, que degrada o homem ao nível da massa e do objeto86. Nestes termos, a

iminência da guerra e a sorte da técnica estão, indissoluvelmente, ligadas pelo uso indevido da

propaganda e da manipulação da informação e pelo processo de modelagem das consciências,

dos atos e das relações.

Num mundo onde a técnica lança seus tentáculos, faz-se necessária a busca por uma

filosofia mediadora (MARCEL, 1987; BOLLNOW, 1962). Uma filosofia que instaure e/ou

introduza no Ser a compreensão de que num mundo desapreciado e deserdado, as paixões

ideológicas e a propaganda exercem uma relação de recíproca solidariedade. Uma filosofia

que leve à compreensão de que optar, tanto por uma como por outra, implicará na entrega à

impostura de um círculo vicioso, que poderá não só comprometer o sentido mais profundo da

(1939) – Minha Luta – escrita pelo próprio Hitler, “uma produção que se tornou popular para o povo alemão e que chegou, na década de 1940, a atingir a marca de seis milhões de exemplares vendidos” (COTRIM, 1997, p. 367). Este foi um livro que, atrelado à cultura de massa, instituída na Alemanha, serviu como princípio para a implantação de uma cultura que pretendia a dominação da vida individual de todos os cidadãos alemães, “pois amar, dignificar e engrandecer a Pátria deve ser um dos objetivos fundamentais de toda verdadeira formação social e moral do homem” (SANTOS, 1951, p. 396).

86 Cf. MS, p. 100: “La tragedia de todo tener consiste en el esforzó desesperado por identificarse con alguna cosa que sin embargo no es, y no puede ser, idéntica al ser que la posee”.

Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

101

consciência de si, como se proliferar numa vegetação parasita da comunhão com o outro e da

presença no mundo (MARCEL, 1951b, 2005).

Na relação concreta entre a técnica e o ser humano há que se estabelecer um princípio

de concretude que se articule à consciência de uma transformação verdadeiramente

metafísica. Importa refletir sobre a necessária articulação entre a condição da industrialização,

o progresso técnico e a noção de comunicação (ESCOLA, 2011a); sobre a comunicação,

como caminho esperançoso para a superação das tendências uniformizadoras dos homens e de

suas vidas. Importa, ainda, refletir sobre a relação entre comunicação e informação, como

meios promissores para o desvelamento e alcance da verdade do Ser e, não, como processos

envilecedores de sua própria consciência e modo de existir no mundo.

1.2 Desumanização do humano face ao espírito de abstração

A sociedade ocidental passa, atualmente, “[...] por uma das crises mais trágicas que já

atravessou no curso da história, tal como nós a conhecemos. Os peritos se revelam

absolutamente incapazes não somente de resolver o problema, como de restabelecer uma paz

digna deste nome” (MARCEL, 1958, p. 18). A perda do elo nupcial entre o homem e a

existência tem se constatado pelo modo como as diversas forças, contidas e produzidas pelo

próprio homem, se colocam a serviço das pretensões que tendem para a sua degradação. É

mediante o reconhecimento da perda de sentido humano, provocado pela construção de um

saber, que se dá cada vez mais, em vias de tecnocratização, que precisamos pensar sobre a

influência do conhecimento técnico, no processo de degradação do humano e abstração de sua

consciência.

1.2.1 Influência do conhecimento técnico no processo de degradação do humano

O progresso das técnicas desumanizantes não pode nos alienar dos aspectos que

compõem sua própria estrutura. Na base do processo de degradação do ser humano, encontra-

se a construção utilitária da consciência técnico-funcional, a condição existencial de uma

consciência massificada e a incidência abstrata da consciência fanatizada. É diante da

realidade de uma cultura, cada vez mais tecnicista, que Gabriel Marcel propõe a reflexão

sobre os limites da civilização industrial, entre a condição subvertida do homem da “barraca”

e a situação agônica do homem problemático.

Page 104: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

102

A discussão proposta por Marcel não pretende servir de uma linha de pensamento

objetivo, sobre o modo como devemos analisar a relação entre a condição humana e o saber

técnico. Antes, propõe o resgate de uma presença, “uma presença que é um dom, uma luz, e

que se exerce como que à revelia daquele que dela é dotado” (MARCEL, 1958, p. 9), a

presença do Ser humano.

1.2.1.1 Construção utilitária da consciência técnico-funcional

O mundo técnico-industrial coloca o homem numa condição de dependência de toda

relação instrumental. A instrumentalidade reduz a existência do Ser ao campo árido das

concepções de função e funcionalização. Nestes termos, o homem fica condicionado, pela

noção relativa, ao ciclo empírico da produção, distribuição e consumo.

Exposto aos critérios da burocracia, o homem cede à tentação de se auto-objetivar, de

definir-se através do que faz e não pelo que é e representa enquanto Ser histórico. “A

burocracia tende a aparecer cada vez mais como parasita, como vermina de uma sociedade em

decomposição” (MARCEL, 1951b, p. 160). Na intenção de responder ao apelo empírico da

produção, o homem se coisifica, compromete sua identidade pessoal e perde-se no âmbito das

noções de função e produtividade. “Ele se confunde com sua própria função” (MARCEL,

1951a, p. 39) à medida que oblitera o caráter e o conteúdo de sua própria presença e condição

existencial.

A proliferação da burocracia tende a alterar o âmbito da relação do Ser consigo

mesmo. A imposição da burocracia subverte a ordem entre o Ser e o ter (MARCEL, 2003).

Nesta subversão, a condição existencial adoece, perde o vigor da seiva espiritual e a energia

promotora do processo de desenvolvimento humano e de construção de sentido. O homem se

avilta e passa a depender, cada vez mais, da imponência da representação social do papel que

exerce, para determinar a sorte que lhe caberá no futuro imediato.

Onde as técnicas de aviltamento são soberanas, o princípio da dignidade humana é

substituído pelo critério da ocupação e da empregabilidade. Conquanto estes aspectos

pareçam social e mercadologicamente aceitáveis, devemos reconhecer que os mesmos foram

usados para decidir a sobrevivência de milhares de pessoas nos campos de concentração

nazistas. Nesta perspectiva de pensamento, Gabriel Marcel nos ajuda a recordar:

Basta lembrar o número de folhas que temos de preencher anualmente para o fisco, os seguros, caixas de compensação, etc., para reconhecer que estamos

Page 105: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

103

literalmente alistados como burocratas auxiliares. Fato singularmente significativo. Pensando bem, é talvez a única forma em que se realiza o que espíritos quiméricos consideram progresso na unidade. Vimos, aliás, durante a ocupação alemã a que ponto o processo pode levar-se. Cada indivíduo é redutível a uma ficha escolhida pelo organismo central com elementos determinantes da sorte que lhes caberá. Ficheiro, sanitário, ficheiro judiciário, ficheiro fiscal, completado amanhã talvez por indicações grafológicas ou até antropométricas; tudo isto em sociedade tida por organizada decidirá do destino individual sem se terem em conta laços familiares, ligações profundas, gostos espontâneos, vocações [...] Parece-me muito importante notar que os processos dos nossos inimigos perante os habitantes dos países ocupados devem olhar-se desta perspectiva e não como simplesmente se imagina, vendo neles a expressão por assim dizer teratológica de uma vontade demoníaca; antes parecem expressões prematuras mais rigorosamente lógicas, de uma mentalidade que se generaliza à nossa vista [...] (MARCEL, 1951b, p. 161-162).

Na sociedade industrial o homem é concebido segundo a perspectiva da máquina. “A

partir da máquina e tomando-a por modelo é que o homem é cada vez mais pensado”

(MARCEL, 1951b, p. 160), treinado, educado, controlado, avaliado, utilizado, classificado,

recompensado, determinado, pretendido, descartado e substituído. As ideias da máquina e do

mecanismo se impõem à generalização desta tendência e de sua funcionalização e são

constatadas por meio do abandono, cada vez maior, das atividades criadoras87, em favor das

tarefas burocrático-abstratas e despersonalizadoras da condição existencial do Ser.

No mundo industrializado, o Ser autenticamente criador, que vive no plano da

qualidade, se vê, cada vez mais, desfavorecido, desvalorizado e até desacreditado. Na lógica

deste sistema, encontra-se a ênfase em torno do princípio da racionalidade utilitário-

produtivista e em torno do processo pelo qual se considera o rendimento como o único

critério de avaliação de desempenho, garantia de permanência do sujeito no mercado de

trabalho e meio de afirmação nos ciclos de convivência e espaços sociais.

Se pensarmos o homem como maquina, é normal e acorde com os princípios da boa economia, quando o rendimento for inferior às despesas de conservação e ele já não ‘valer’ a reparação (isto é, o hospital) muito onerosa para o resultado possível, suprimi-lo, como se leva para sucata um aparelho ou um carro fora de uso; quando muito podem recuperar-se certos elementos capazes de servir (como se fez, se não me engano, no II Reich, na guerra, com a gordura dos cadáveres) (MARCEL, 1951b, p. 162).

87 Cf. HCH, p. 160, 164: “Mas o mal é ainda maior e mais profundo. O produtor, mineiro ou metalurgista traz

afinal uma contribuição positiva ao mundo humano. O caso é diferente – pelo menos no limite – para o empregado, para o burocrata, em virtude das condições doentias e, de certo modo, cancerosas de proliferação da burocracia [...] O atrativo das cidades e dos cargos de funcionários sobre os camponeses explica-se, infelizmente, em parte, pelo caráter quase totalmente automático desses cargos, dessas existências”.

Page 106: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

104

No ritmo da cultura do automatismo o homem se cansa, adoece e se degrada física e

existencialmente. Submetidos a condições, na maioria das vezes, desumanas de trabalho,

homens e mulheres se expõem às situações de opressão, exploração, manipulação,

humilhação e ignomínia (MARCEL, 1955). Reduzir a vida ao imediatamente vivido é

tencionar a existência; é abrir uma lacuna entre o que está implicado na sua condição secular e

os hábitos que estão em vias de se contrair; é condicionar o homem mental, volitiva e

comportamentalmente.

A condição de um operário e/ou de um empregado na sociedade técnico-industrial

consiste, numa pseudo-incidência, sobre a possível mudança na maneira de viver e no modo

de conceber as relações consigo e com a vida. Para a maioria da mentalidade proletária “viver

pode não ser mais que vegetar na expectativa [...] um modo de existência em que as palavras

felicidade e virtude vão perdendo toda significação” (MARCEL, 1951b, p. 166-167).

Na mentalidade industrial, a ideia de serviço88 está ligada às acepções do

aparelhamento e funcionamento das repartições públicas e departamentos e privados. Num

sentido funcional, servir significa estar empregado. Em tese, por trás das noções de cuidado,

dedicação, organização, atenção, habilidade e competência, encontra-se a pressuposição de

que tudo se move no plano da funcionalidade89 pura.

O servidor ou o bom servidor distingue-se por certa dedicação, e é justamente esse conceito que deveria aprofundar-se. O que importa reconhecer é que o empregado, no sentido preciso e restritivo da palavra, que julga ser pago para um trabalho especificado, em tempo absolutamente fixo, e não dever coisa alguma além desse trabalho, mostra-se alheio em princípio a essa dedicação, que por definição exclui esta contabilidade estrita. Dá-nos exemplo característico os membros do pessoal hospitalar, quando, findo o serviço do dia, não hesitam em retirar-se, deixando em aberto os cuidados necessários a qualquer doente. Nada devem além do que deram. Quanto ao mais, se não é com o doente resolver a dificuldade, o que não tem sentido,

88 Gabriel Marcel compreende o sentido do verbo servir como algo “[...] que pode significar apenas ser utilizado,

como, ao falar de um aparelho ou de uma máquina, dizemos: já me serve, ou já não me sirvo dela. No limite oposto, o verbo carrega-se de harmônicos alheios à ideia de pura utilidade ou pura utilização, por exemplo, quando se diz: o fato de servir é honroso ou nobre. Aplicados a uma máquina, ou a um homem considerado máquina, ou seja, um escravo, estes termos não teriam sentido [...] Assim como dois pontos permitem definir uma reta, também estes dois limites permitem determinar um domínio onde a análise reflexiva poderá exercer-se. A ideia de serviço poderia originar observações que embora não simétricas das anteriores, lhes aumentam e precisam a importância. O serviço pode ser e é essencialmente o ato de servir no segundo sentido que defini; mas por outro lado vemos que a palavra tende a aplicar-se cada vez menos ao ato, e cada vez mais a órgãos de funções sociais determinadas; os serviços são cada vez mais as repartições (MARCEL, 1951b, p. 173-174).

89 Na sociedade técnico-industrial, a compreensão de uma funcionalidade pura é que tem levado velhos e crianças a serem considerados como material de descarte ou de pouca utilidade. Como estudioso atento às questões do seu tempo, Gabriel Marcel denuncia esta injustiça dizendo que “O velho para nada serve, por isso é vulnerável. A criança também não pode servir ou pelo menos a sua utilização, como se praticou, por exemplo, no começo da era industrial [...]” (MARCEL, 1951b, p. 178).

Page 107: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

105

pelo menos é a administração que cumpre dar providências; eles daí lavam as mãos. Este fato é dos mais significativos de uma mentalidade. Por um lado, o enfermeiro ou enfermeira considera-se como máquina, que deve fornecer um rendimento preciso durante certo tempo. Por outro – e é um paradoxo digno de toda a reflexão – esta assimilação de aparência degradante tem por contrapartida uma certa pretensão, uma certa ideia pretensiosa de base contratual: só devo o trabalho que me pagam; desde que me conformo com as cláusulas do meu contrato, estou livre e ninguém pode reclamar coisa alguma (MARCEL, 1951b, p. 175-176).

O problema das concepções de serviço e função não é de ordem técnica; é de origem

metafísica. Sua base assenta-se num mundo onde o sentimento das relações pessoais foi

envilecido progressivamente. A influência maléfica deste desenvolvimento acabou por

instaurar uma espécie de sublimação existencial que não ultrapassa o nível infra-pessoal e um

tratamento, onde o elemento pessoal não desempenha nenhum papel demasiado importante.

O grande desafio para o homem, numa sociedade técnico-industrial, é o de procurar

orientar-se em função de um pretendido sentido que possa colocá-lo para além das tendências

mecânicas e obliteradoras de sua existência. Outro desafio é procurar compreender “que

qualquer atividade funcionalizada se apresenta como o limite de degradação possível de uma

atividade criadora” (MARCEL, 1951a, p. 237). Ademais, é preciso reconhecer que Servir, em

todos os sentidos, é estar disponível à verdade do Ser; à verdade de uma presença ativa que se

exerce como que à revelia daquele que dela é dotado. É preciso, ainda, considerar a postura

onde se reconhece que “é evidentemente necessário pensar que essa verdade é espírito, de

certo modo em vias de encarnação, ou mais exatamente, que está ao mesmo tempo no exterior

e no interior do que nós somos” (MARCEL, 1951b, p. 189).

1.2.1.2 Condição existencial da consciência massificada: diálogo entre Gabriel Marcel e Karl

Jaspers90

A revolução industrial institui uma nova consciência sobre a vida humana e seu

processo de desenvolvimento. Instaura um sentimento de descobrimentos de novos horizontes

90 O motivo que nos levou a elaborar, neste tópico do trabalho de pesquisa, um diálogo entre Gabriel Marcel e

Karl Jaspers, sobre a condição existencial da consciência massificada, foi oferecer ao leitor uma visão de correspondência entre estes dois expoentes da posição existencialista. A justificativa deste modo de produção encontra-se, na aproximação dos olhares, a respeito de uma determinada época e situação espiritual de um determinado tempo, de dois dos mais destacados expoentes da atitude existencial. Vê-se, então, que é em virtude da co-substancial significação do pensar destes dois filósofos, que procuramos apresentar suas contribuições. Com efeito, há que referir o valor das considerações feitas em torno de questões tão decisivas, para o modo como o homem apreende sua realidade e o caráter peculiar da concepção, que constrói a respeito de si mesmo e de sua própria existência.

Page 108: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

106

nos campos da ciência, da racionalização da administração pública, da técnica e dos meios de

produção. Com a crença no progresso geral da humanidade pensou-se que

[...] se havia estabelecido as condições previas de que pode ser realidade o pensamento de que em virtude da razão humana a vida do homem não necessitava ser aceita como havia sido recebida, tal como era, senão que, obedecendo a um plano, poderia ser organizada como devia ser (JASPERS, 1933, p. 12-13).

Com o domínio técnico do espaço, da matéria e do tempo o homem alcançou a

consciência de que tudo lhe é acessível; alcançou, ainda, a compreensão de que o processo

histórico da humanidade não está determinado na sua totalidade, mas que o indivíduo é capaz

de alterá-lo teórica e substancialmente. Esta evolução está vinculada ao desenvolvimento da

racionalidade da técnica.

Através dos processos de mecanização da existência e da influência das técnicas de

aviltamento, o homem se desprende de todo Ser e deixa de conceber-se como alguém que é

portador da possibilidade de transcender-se. Na intenção de fazer-se, o homem converteu-se

numa consciência impessoal e abstrata, reduziu-se e passou a existir na condição de massa.

Conforme o entendimento de Gabriel Marcel,

Um indivíduo faz parte da massa quando não só o valor que dá a si próprio – bom ou mau – não assenta em estimativa especial, mas quando, sentindo-se como toda gente, não sente angústia alguma e pelo contrário se sente à vontade achando-se idêntico aos outros (MARCEL, 1951b, p. 124).

Cercado por invenções técnicas, o homem conclui que pode alcançar o limite de sua

evolução e desenvolvimento. Submisso ao poder de sua influência desapareceu no âmbito do

esvaziamento de sua própria existência. A técnica que lhe proporciona a sensação da

permanência é a mesma que lhe afere o signo da transitoriedade. Na opinião de Karl Jaspers;

A massa como público é um produto histórico típico: os seres humanos, em delimitação e gradação indeterminadas, acordes para a receptividade de expressão e de opinião. Porque a massa como a totalidade dos seres humanos articulados no aparato do regime existencial de tal maneira que lhe dão a tônica, à vontade e o caráter da maioria de modo necessário, é a força de nosso mundo realizando-se continuamente e que o público e a massa como cúmulo humano, só transitoriamente se veste de aparência (JASPERS, 1933, p. 36).

Page 109: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

107

Sob a condição do aparato ideológico da técnica, a massa encontra-se exposta às

tensões entre vitalidade e vacuidade, afirmação e negação, identidade e efemeralidade91. Na

dimensão do grupo o indivíduo se perde, compromete sua subjetividade e torna-se, consciente

ou inconsciente, mais um, no meio do grande grupo e/ou multidão. Desse modo, “[...] a massa

pode definir-se, como fator psicológico, aquém do ponto onde os indivíduos se constituem em

grupo” (MARCEL, 1951b, p. 124). Sob esta condição, as decisões são tomadas segundo a

inclinação da maioria; a informação confunde-se com o conhecimento, o fazer laboral

funcionaliza-se, as possibilidades cedem lugar às determinações, a criatividade se transforma

em ação mimética e repetitiva, as relações se esvaziam e a existência torna-se mecânica e

volátil.

Na busca pela produção e aquisição das coisas e dos objetos o homem deixa de fazer-

se, reinventar-se e ressignificar a si mesmo. Por viver exposto e de acordo com as influências

dos meios de comunicação de massa, “o homem desaparece na ideia da mera pluralidade de

sua existência” (JASPERS, 1933, p. 35). Na busca pela unidade social, o homem compromete

a identidade de seu enraizamento92 espacial, histórico, social e existencial. Ele sai da esfera da

consciência de si para o âmbito da consciência em geral. Na intenção de se autoafirmar o Ser

se delimita, degrada-se e passa a existir no vácuo da própria objetivação de si mesmo e da

realidade na qual está inserido. A respeito dos efeitos que os meios de comunicação de massa

exercem sobre a noção que o sujeito tem de si, Marcel comenta que

91 Para uma visão mais ampla sobre a relação entre sociedade de massa e técno-cultura, consultar a obra ‘A

Indústria Cultural’ (MACDONALD, 1971). A polêmica sobre a sociedade de massa e a cultura industrializada encontra neste conjunto de ensaios uma leitura excitante e qualificada sobre os aspectos explícitos e/ou implícitos, dos elementos básicos de sua possível contestação.

92 Falando sobre o predomínio do aparato técnico sobre o processo de desenraizamento Karl Jaspers acrescenta: “Al convertir en función el aparato gigante la solicitud existencial del individuo, la desprende de las raíces sustantivas que antes circundaban al hombre como tradición. Se ha dicho: los hombres serán esparcidos en confusión como arena. El edificio es el aparato donde son colocados a placer, tan pronto aquí allá, no es una sustancia histórica que ellos cumplen con su ser-mismo. Cada vez son más los hombres que llevan esta existencia desarraigada. Arrojados de un lado para otro, sin trabajo luego, solo con la existencia desnuda, carecen de verdadero sitio en la magnitud del conjunto. La profunda verdad de que debe cumplir su misión cada uno en su lugar de la creación, se convierte en engañoso juego de palabras para aplacar al hombre que siente el horror siniestro del abandono. Lo que puede hacer el hombre se sitúa a corto plazo. Se le brindan tareas, pero no una continuidad de su existencia. Su labor es realizada prácticamente y liquidada después. Durante un espacio de tiempo es idénticamente repetida, mas no puede ser reiterada de manera profunda, de modo que llegue a trocarse en algo propio para quien la realiza; en ello no se experimenta acumulación en el si-mismo. Lo sido carece de validez, solo la tiene precisamente lo actual. El olvido es el rasgo fundamental de esta existencia cuyas perspectivas de pasado y futuro se pliegan casi en mero presente. Se llega a un fluir de la vida sin recuerdo y sin previsión, si se exceptúa la fuerza de la práctica mirada abstractiva en la función productora del aparato. Desaparece el amor a las cosas y a los hombres. Es como si lo hecho y terminado desapareciera y solo quedara la maquinaria en que ha de hacerse lo nuevo. Habitualmente vinculado a los fines próximos, no queda espacio al hombre para una visión vital de conjunto. Donde la medida del hombre es la capacidad media de producción, el individuo, como tal, es indiferente. Nadie es insustituible” (JASPERS, 1933, p. 47-48).

Page 110: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

108

A função incrivelmente nefasta da imprensa, do rádio, do cinema, terá consistido precisamente em passar um cilindro compressor sobre essa realidade original, para substituí-la por um conjunto de ideias e imagens justapostas, desprovidas de raízes reais no próprio ser do sujeito (MARCEL, 1951b, p. 125).

“Não pode haver qualidades da massa para a indeterminada vacuidade essencial da

mera quantidade” (JASPERS, 1933, p. 36). O que é notável, e do que bem poucas pessoas se

apercebem, é que, a partir do momento em que o homem se insere na massa, passa a se mover

conforme a impulsividade, a sugestabilidade, a intolerância e a mutabilidade, que envolve o

processo de aglomeração. O homem se massifica e passa a compreender, erroneamente, que

“quem não é e não pensa como toda a gente corre o risco de ser eliminado” (MARCEL,

1951b, p. 124). O homem que compõe a massa é passivo de se tornar fanático.

O processo de massificação não é estável e único para todas as gentes. O

comportamento da massa é diverso, plural e híbrido. Sua natureza e substância variam de

fenômeno e historicamente. A voz da massa não é a expressão do Ser; sua opinião não tem

nome, não possui rosto, semblante e/ou face. É a opinião pública, anônima, onde todos falam

e, ao mesmo tempo, não se ouve a voz de ninguém. “O caráter da massa como público é o

fantasma de ser um grande número que opina sem estar presente em nenhum indivíduo”

(JASPERS, 1933, p. 36).

Isto não quer dizer que o homem-massa, da era técnica, seja um ser desprovido da

capacidade de raciocínio e da aptidão de formular ideias. “Pelo contrário, o homem-massa do

nosso tempo é mais lúcido que o de qualquer outra época, tem muito maior capacidade

intelectual, mas as suas aptidões de nada lhe servem...” (MARCEL, 1951b, p. 125). Apesar da

possível lucidez intelectual que possui, o ser da massa não consegue discernir entre o aparato

sócio-participativo e sua própria individualidade, entre o todo e o uno, o nada e o Ser.

Imerso na cultura da massa, o homem acaba se perdendo no corpo dos movimentos

sindicais, do proletariado, das associações dos professores, das juntas médicas, do

funcionalismo público e dos micros e macros movimentos de aglomeração. Na intenção de

ressaltar o número, o homem compromete sua subjetividade e se torna mais um, no meio da

grande multidão. O Ser sai da dimensão do indivíduo e passa a ocupar um lugar nas ruas

escuras, apertadas e intransitáveis do código, da placa, da legenda e da rotulação numérico-

quantitativa.

“O homem, quando existe na massa, não existe, no entanto, na massa, mas nele

próprio” (JASPERS, 1933, p. 36). Ao mesmo tempo em que o homem deseja ser ele mesmo,

também assume o papel daquilo que não é realmente. “Por outra parte a massa isola o

Page 111: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

109

indivíduo do átomo, abandonando a sua avidez vital; tem a ficção da validade da igualdade

para todos” (JASPERS, 1933, p. 38). No afã da igualdade, o homem emerge no oceano da

generalização e da abstração. Na ânsia de ter mais, passa a ser menos. Ao comparar-se aos

outros, compromete o fulcro de sua vivência mais profunda; e o que não lhe é acessível,

tornar-se vitalmente estranho. Este modo de ser da consciência massificada demonstra que “a

característica do nosso mundo é que a alma medíocre, sentindo-se medíocre, tem a audácia de

afirmar os direitos da mediocridade e impõe-se em toda parte” (MARCEL, 1951b, p. 124).

No predomínio da massa a dimensão humana do Ser é depreciada93. Abstraído na

massa o homem se torna, cada vez mais, inumano. Ele vive em volta de uma falsa noção de si,

onde aspectos como reflexão, condução, decisão, participação e liberdade são apenas

categorias representativas de um Ser que resolveu abrir mão da verdade de si, para viver de

acordo com o regime da técnica e influência de seus aparatos. Na busca pela conservação do

sentido da existência, o homem-massa abre mão do espaço inviolável da própria subjetividade

e dignidade humana.

Arrancado de seus fundamentos, sem história consciente, sem continuidade em existência, não pode o homem seguir sendo homem. O regime existencial universal anula a existência do homem verdadeiro, que é ele mesmo em seu mundo, reduzindo-o à mera ficção (JASPERS, 1933, p. 40).

Munido de todo aparato técnico, a massa evita a reflexão sobre a escassez, a

insegurança, o risco, a ameaça, a incompletude e o inacabamento do Ser e suas relações. A

partir da objetivação da realidade, evita-se a reflexão dos seus modos de produção. Não se

pensa sobre o sentido das coisas, não se questiona sobre a consistência dos sentimentos, não

se discutem os postulados dos processos inventivos, não se problematiza a força da ação

factível, nem o modo de ser dos processos reguladores da conduta humano-quotidiana. “A

massa faz tábua rasa de tudo que não é como ela, de tudo que é excelente, individual,

qualificado e escolhido” (MARCEL, 1951b, p. 124).

“O predomínio da organização das massas é de uma invisibilidade fantasmal”

(JASPERS, 1933, p. 53). Ancorada pelo poder da técnica, a massa não só ensaia a elaboração

de um mundo fictício, como cria novos problemas e, com eles, novos desafios e exigências e a

falsa sensação de que compõe uma militância relevante. As massas só existem e se

93 Cf. HCH, p. 105: “[...] a massa faz tábua rasa de tudo o que não é como ela, de tudo o que é excelente,

individual, qualificado, escolhido. Quem não é e não pensa como toda a gente já não é toda a gente. Normalmente era a unidade completa da massa e das minorias dissidentes especializadas. Hoje, toda gente é só a massa”.

Page 112: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

110

desenvolvem nos planos da abstração e no estado de aviltamento e/ou alienação. Na massa o

indivíduo não se educa, assujeita-se, domestica-se e adestra-se. “Porque as massas são

humano degradado; são um estado degradado do humano” (MARCEL, 1951b, p. 12-13).

Certamente a condição existencial da consciência massificada representa, para Gabriel

Marcel, a expressão de um processo aviltante que nega a concepção de que o indivíduo é uma

encarnação viva, um Ser existente, que não pode sucumbir diante dos processos, mudanças e

fraturas sociais, de um tempo que tenta demovê-lo de sua condição de Ser humano. A massa,

em nenhum sentido determinado, pode ser a base de referência do mistério, que é o homem;

porque todo ser humano, como possível existência, é, “como indivíduo, mas que membro da

massa somente, experimenta em si mesmo requerimentos intransferíveis, que não deve

perder-se na massa porque com ele perderia sua humanidade” (JASPERS, 1933, p. 71).

1.2.1.3 Incidência abstrata da consciência fanatizada

Por incidência abstrata da consciência fanatizada94 compreende-se uma maneira

própria de ser da existência, um modo de existir da consciência que não pode separar-se de

uma abstração viciosa da realidade, uma postura intencional que se mostra e se afirma a partir

de uma determinada visão de mundo. Neste sentido, a consciência fanatizada comporta um

processo de infiltração ideológica, que pode ter tanto um caráter religioso como político e/ou

social. Diante desta questão, cabe-nos questionar: “Quais as condições necessárias para

podermos dizer de um homem que é fanático? Mais precisamente: em que consiste o poder

fanatizador e qual a sua sede?” (MARCEL, 1951b, p. 120).

A incidência abstrata possui um caráter objetivo; sua força consiste na maneira como a

consciência reage a tudo aquilo que a contrapõe. Na base, diz respeito ao modo como a forma

de pensar, de uma determinada pessoa, se comporta frente a algo diferente de si mesma. Para

a mentalidade fanática as ideias e as crenças são vistas como patrimônios intocáveis e

invioláveis95. “O fanatismo é a opinião levada ao paroxismo, com toda cega ignorância de si

mesma” (MARCEL, 1951b, p. 132). Por não permitir mover-se pelos princípios da abertura e

da dúvida, o fanático procura tratar suas convicções como algo que lhe pertence, como uma

94 Cf. HCH, p. 118: “Por que <a consciência fanatizada> e não o <fanatismos>? porque os nomes em ismo

correspondem na maior parte dos casos a uma tentativa ilícita do pensamento e devem evitar-se quanto possível”.

95 Aqui cabe ressaltar a observação de Gabriel Marcel quando diz: “Seríamos tentados a dizer que é a ideia que fanatiza; não é inteiramente inexato, mas também não é verdadeiro pura e simplesmente. Em primeiro lugar nem toda ideia é fanatizante; nem sequer basta para isso que tenha um caráter, um predomínio obsessivo” (MARCEL, 1951b, p. 121).

Page 113: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

111

posse que não pode ser negociada nem exposta aos perigos das influências das opiniões

adversas ou a qualquer outro tipo de ameaça e/ou violação conceptual.

O fanático é alguém que se autoaliena, à medida que considera suas convicções como

o único princípio fundante de toda a realidade. Nesta atitude o ser sublima-se no ter, deixa-se

devorar por suas convicções e torna-se inerte diante do objeto de sua própria paixão e/ou

crença. Na concepção de Gabriel Marcel,

Quanto mais trato minhas próprias ideias ou até mesmo minhas próprias convicções como algo que me pertence – e do que pelo mesmo fato me orgulho, inconscientemente talvez, como se orgulha o dono de uma estufa ou estábulo -, quanto mais estas opiniões e estas ideias tendem, por sua mesma inércia (o, que é igual, por minha inércia frente a elas) a exercer sobre mim um ascendente tirânico; aqui está o princípio do fanatismo em todas as suas formas. O que aqui se verifica é uma espécie de alienação injustificável do sujeito frente à coisa, seja ela qual for (MARCEL, 1968, p. 207).

A consciência fanática encerra o homem em si mesmo. Conquanto ele viva entre

outros, não tem nenhum interesse de criar e construir algum tipo de identidade coletiva mais

ampla. A relação do fanático com outro ser é sempre movida por interesses prosélitos. Toda

ação fanática implica, em suma, a pretensão de manipular consciências e determinar

comportamentos.

Desta maneira, o fanático vive sua experiência entre o binômio: desaparição-

presença. Como alguém que possui uma ideia fixa em si mesmo, o fanático compreende que

não pode viver isolado; ele reconhece que precisa ascender-se perpetuamente ao contato do

fanatismo de outrem. Desta maneira, o fanático desaparece e se abstrai quando evita abrir-se à

opinião de terceiros e se afirma, marca presença, quando pretende conduzir os outros à sua

mesma visão, opinião e fé.

No âmago desta postura, encontra-se um profundo conflito de sentimentos, uma guerra

entre a paixão e o medo. O desenvolvimento febril da mentalidade fanática tende a sobrepor a

vida a uma superestrutura fictícia, a uma visão que se torna, para os homens fanáticos, o meio

que eles parecem não poder dispensar. Assim, tende a criar-se uma situação monstruosamente

desumana, “implica um sentimento de insegurança que não se reconhece e se extravasa senão

em agressividade [...], pois quem não é e não pensa como toda a gente corre o risco de ser

eliminado” (MARCEL, 1951b, p. 124, 126).

Toda postura sectária traz, em si, uma recusa contundente à necessidade de pôr em

discussão as condições sobre as quais se assentam a legitimidade do seu pensamento. Na

Page 114: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

112

compreensão de Gabriel Marcel, esta atitude tanto pode se referir à experiência religiosa,

como à defesa de ideias políticas e ideais sociais. Neste sentido, o teórico afirma:

A ideia fundamental a reter é muito simples e é facílimo ilustrá-la com exemplos contemporâneos: o Marx do Capital, visto pelos comunistas fanáticos de hoje ou o Hitler de Mein Kampf. Essa assimilação, escandalosa para alguns, impõe-se-nos. Em um e outro caso um livro é tratado como livro santo, apesar de ser obra de uma criatura humana e nada nos permite proclamar-lhe a infalibilidade. A decisão de não repor em discussão é essencialmente fanática e está na raiz de todas as calamidades inseparáveis do fanatismo. No dia em que um marxista, por exemplo, reconhecesse de boa fé que a obra de Marx é função de um contexto histórico profundamente modificado desde então, em vez de considerá-la de certo modo intemporal, estaria liquidado o fanatismo comunista (MARCEL, 1951b, p. 127).

Todo espírito anti-fanatismo recusa-se a tornar as próprias ideias o único parâmetro

para a vida do outro e para sua relação com o mundo. Observemos, ainda, que o poder

fanatizante só exerce determinado nível de controle sobre aqueles onde o espírito crítico

declinou. O fanático nunca se reconhece como tal. Dominada por suas convicções “a

consciência fanatizada se mostra insensível a tudo que não gravite no seu campo de atração”

(MARCEL, 1951b, p. 129). Deste modo, o fanático não discerne a natureza de suas

pretensões; recusa-se a pesar as implicações dos seus atos, sempre considera justa sua causa e

nunca avalia as consequências das suas atitudes para as vidas das pessoas em geral. Assim,

Marcel nos diz:

Quando falais a um estalineano dos milhões de desgraçados deportados para as costas do Oceano Glacial ou outras regiões, onde estão condenados a morrer de fome ou frio em maior ou menor prazo, se o vosso interlocutor não negar pura e simplesmente o fato, declarará que é uma dura necessidade ligada a um período transitório. O horrível provérbio <não se faz omeletes sem quebrar ovos> é a expressão trivial deste argumento. A insensibilidade é aqui inseparável de uma prodigiosa deficiência de imaginação; ou melhor, são duas faces do mesmo fenômeno, que bem pode chamarem-se patológico, porque é da mesma ordem daquele que o clinico observa quando o doente não reage a certas excitações. Como a linguagem tudo permite, dir-se-á que não se trata de fenômeno patológico, mas pelo contrário de índice de uma magnífica e prometedora fatalidade. Com igual razão poderia afirmar-se que o estado febril de certos tuberculosos é índice de um desabrochar de vida. Isto mostra que o nosso mundo é pressa duma confusão talvez sem paralelo desde que os tempos bárbaros e que abrange não só as categorias do bem e do mal, mas ainda mais profundamente o que deve chamar-se vida e o que deve chamar-se morte (MARCEL, 1951b, p. 129-130).

Na compreensão do autor, o problema deste tipo de mentalidade resulta da mudança

de foco, fruto de uma fadiga cognitiva, que impede as pessoas de refletirem sobre a situação

Page 115: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

113

do mundo de maneira mais ampla e comprometida. Ademais, há que se considerar que a

incidência da consciência fanatizada, seja de caráter político ou de natureza religiosa, também

se dá em virtude da influência das técnicas de aviltamento. Por causa das exigências técnicas

do mundo industrial, do processo de locomoção cada vez maior, das pessoas e da rapidez com

que as ideias e as concepções são transmitidas, através dos meios de comunicação de massa e

das novas tecnologias, é que o quadro social das vidas das pessoas também se modifica,

intensifica-se, perde o foco e confunde-se entre a informação, o entendimento, a imaginação e

as referências. “E temos que acrescentar que todo fanatismo, mesmo mais estritamente

religioso, parece formar-se em torno de um centro semelhante, seja Roma ou Meca”

(MARCEL, 1951b, p. 131).

Na perda do foco, o homem passa a ter uma imagem materializante e/ou degradante do

Ser. Desfocado pela abstração, o fanático conclui que aquele que não se deixa catequizar e

que se opõe à sua própria visão de mundo deve ser eliminado96. Deixa de ser visto como um

Ser humano e passa a considerá-lo como uma coisa, uma barreira e/ou obstáculo, que precisa

ser vencido e tirado do seu caminho. Deste modo, é “perfeitamente compreensível que

desqualifique previamente por todos os meios os que quer exterminar. Reencontramos aqui as

técnicas de aviltamento” (MARCEL, 1951b, p. 133).

Por negar a dignidade do Ser, o fanatismo se torna incompatível com a verdade. “E

como a verdade é inseparável desse cuidado, pode afirmar-se sem hesitar que o fanático é

inimigo da verdade, quando não fosse senão por querer confiscá-la em proveito seu”

(MARCEL, 1951b, p. 134). Em outros termos, a infiltração ideológica do fanatismo não pode

prevalecer sem atentar contra a grandeza da pessoa humana, sem o trucidamento de uma

classe por outra, sem a imposição unilateral e sanguinária das posturas totalitaristas dos

aparatos políticos e/ou religiosos (MARCEL, 2005). Respeitar a verdade do Ser implica “em

manter-se aberto todos os caminhos, por vezes em extremo tênues, por onde podemos esperar,

não digo alcançá-la, mas ao menos aproximar-nos dela” (MARCEL, 1951b, p. 134). Ao

mesmo tempo, este teórico acrescenta:

96 Cf. HCH, p. 133: “Deve dizer-se e repetir-se constantemente: nenhuma diferença há entre os processos

materiais dos nazis nos campos, para degradar as vítimas aos seus próprios olhos, para reduzi-las a lama – e os dos propagandistas soviéticos para desacreditar os adversários; e é dizer bem pouco, pois se trata, por processos físicos ou psicológicos, desconhecidos ainda em pormenor, de fomentar no adversário um cúmplice que prepara e assegura a sua própria perda. O que me parece essencial em tudo isto é ver a temerosa lógica de morte de todas estas manifestações, tidas muitas vezes por simplesmente monstruosas e aberrantes. Na realidade só há corolários do fanatismo e não qualquer fenômeno estranho que viesse juntar-se-lhes”.

Page 116: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

114

O fanatismo deve ser combater-se em nome da verdade e das condições estruturais que a tornam possível, e não em nome de qualquer flácido relativismo, para o qual as opiniões se equivalem e ficam por igual aquém de uma realidade inacessível (MARCEL, 1951b, p. 134).

Por manter-se aberto à verdade que transcende as posturas intolerantes da consciência

fanatizada, Gabriel Marcel propõe como possíveis caminhos: a busca pelo “Rearmamento

Moral”97 (1958) e a atitude pelo qual o Ser confronta sua própria vida e busca comprometer-

se com os princípios da honestidade, da pureza, do altruísmo e do amor. Esta busca e esta

atitude configuram-se como um conjunto de valores que se constituem num fulcro espiritual,

que se eleva acima dos axiomas das legendas políticas e das posturas aviltantes das

intolerâncias étnico-religiosas.

1.3 Despersonalização das relações humanas

O homem do mundo técnico-industrial move-se no plano da função e da

funcionalidade pura. À luz do esforço da mentalidade tecnocrata, vê-se que o progresso e as

exigências da técnica acentuam uma redução profunda da diversidade humana e um

nivelamento progressivo do modo como o homem vive e constrói suas relações. No ato de

reduzir o Ser à dimensão contratual excluem-se, precisamente, as condições metafísicas e

humanas do seu desenvolvimento. As relações do ser-a-ser e do ser-com se perdem numa

espécie de anonimato, “num mundo onde o sentimento das relações pessoais ou

intersubjetivas se obnubila progressivamente” (MARCEL, 1951b, p. 179).

97 Marcel descreve sua experiência com este movimento, numa carta-depoimento (resposta) endereçada a três

grandes amigos: o filósofo Roger; Paul, que era de tradição protestante e Thierry, um padre que estava começando sua vida provinciana. O primeiro contato de Marcel com o movimento do rearmamento moral se deu em 1933. Assim, ele mesmo diz: [...] No curso destes últimos anos, recebi frequentemente a visita de uma certa pessoa, diretamente empenhada na atividade do Rearmamento Moral, que me vinha informar do que se passava em diferentes países. Creio, porém, poder dizer que o encontro foi decisivo para mim, foi o que tive em Tóquio, novembro último, com personalidades americanas e japonesas, que desempenharam papéis de primeiro volume. Os relatos que me foram feitos em Tóquio trouxeram-me a prova irrefutável de um fato capital: que o Movimento exercia, agora, uma influência direta sobre a vida política de um certo número de países do Extremo Oriente e de homens de Estado, como o Presidente das Filipinas, o Primeiro Ministro do Japão, etc. [...] Será preciso responder que os homens e as mulheres do Rearmamento Moral, posto que façam abstração da religião confessional à qual aderem por outro lado, não se julgarão, sem dúvida, obrigados a responder a esta pergunta, porque estão envolvidos numa experiência toda nova, numa aventura que dispensa completamente, a necessidade de doutrinação [...] Trata-se de participar, autenticamente, da experiência de uma fraternidade vivida. Estamos aqui, infinitamente além do que chamamos de hábito, a tolerância [...] Não deixem de observar, por outro lado, que o caráter absoluto dos quatro padrões - honestidade, pureza, altruísmo e amor – é precisamente função de valor da sobrelevação ou de transcendência que é aqui essencial, e considerem, também, que reencontramos depois de tudo, sob uma outra forma, esta simplicidade da qual falei no início [...] Para concluir, direi, como aliás declarei publicamente em Caux, que o que me sensibiliza, antes de tudo, é que aí se encontre realizada uma surpreendente conjunção do mundial e do íntimo [...] (MARCEL, 1958, p. 4-21).

Page 117: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

115

Condicionado à dimensão do serviço, o homem se perde na sua própria determinação;

autocentra-se, isola-se, enclausura-se, vive como se fosse o centro do universo e passa a

considerar “os outros como se fossem obstáculos que deve superar ou evitar” (MARCEL,

2005, p. 31). Como centro ao redor do qual tudo gira, ele não só perde a noção de si, como

tenta reduzir o outro a uma mera síntese imaginativa. O outro ser torna-se um dado, uma sigla,

um número e um código, “cuja natureza humana se perde á medida que se transforma num

instrumento técnico e impessoal” (MARCEL, 1968, p. 70). O homem degrada e

despersonaliza suas relações.

“A despersonalização das relações humanas corresponde a um progresso, a uma

espécie de sublimação” (MARCEL, 1951b, p. 181), onde a dimensão ontológica do Ser se

confunde com as noções de utilização e funcionalização. A relação pessoal sai do âmbito da

comunicação intersubjetiva para habitar o campo desértico da mercantilização; do encontro

entre o eu e o tu, para o lugar onde o outro só é contemplado pelo viés da função e do papel

que exerce no contexto sócio-profissional.

A despersonalização das relações humanas é resultado da degradação do próprio

sujeito. Cativo do adestramento mental da lógica técnica, o sujeito se desnaturaliza. “O Ser se

confunde com uma vaidade que não é mais que sua degradação” (MARCEL, 2005, p. 89). O

homem perde a noção de si e confunde o sentimento que tem sobre si mesmo, com seus

predicados, atributos, conquistas e descobertas. Ele se submete à concepção idealista da

unidade de pensamento e se transforma num objeto, “que já não pode pensar-se a si mesmo

(como pensante) sem converter este eu pensado em algo que não é nada e que é, portanto,

contradição pura” (MARCEL, 1968, p. 38).

Reduzido ao mundo da coisa, o homem encarcera o outro ser quando o assimila aos

princípios da organização e do rendimento. Impelido pelo funcionalismo, o Ser se generaliza,

se abstrai e deixa-se modelar pelas técnicas de aviltamento. Na ausência de equilíbrio interior,

entre progresso técnico e desenvolvimento humano, “pode-se dizer que hoje um ser perde

tanto mais consciência da sua realidade íntima e profunda quanto mais depende de todas as

mecânicas que lhe asseguram pelo seu funcionamento uma vida material tolerável”

(MARCEL, 1951b, p. 51-52).

Pelo fato do homem pretender, a qualquer custo, o alcance dos ideais puramente

técnicos, o centro da sua vida passa a ser externo, afirma-se na dimensão do ter, na condição

que lhe situa progressivamente, na esfera da coisa e no âmbito das técnicas e das tecnologias

que depende para existir. “Não seria excessivo dizer que quanto mais o homem em geral

consegue o domínio da natureza, mais o homem em particular se torna escravo dessa mesma

Page 118: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

116

conquista” (MARCEL, 1951b, p. 52). Na crise de autenticidade o homem se coisifica e perde

a noção real do sentido de sua existência (MARCEL, 1940, 2003).

De acordo com Gabriel Marcel, “a crise do homem ocidental é uma crise metafísica”

(1951b, p. 34), é uma crise cujo vazio se acentua numa agonia existencial. “Neste

encadeamento surge em plena luz a ação aviltante da técnica. É a noção mesma da vida que se

avilta, e o resto vem por acréscimo” (1951b, p. 55-56), de tal maneira que o homem fica

“preocupado e melancolicamente descontente consigo mesmo; ademais este

descontentamento está condenado a converter-se em irritação contra o outro e em degenerar

em uma espécie de acrimônia metafísica” (MARCEL, 2005, p. 121). Na desvitalização, o

homem preocupa-se apenas consigo mesmo, encerra-se, reduz-se, desqualifica-se e esvai-se

em mero verbalismo.

Na inquietação do homem, a reciprocidade se desvaloriza, perde sua importância e

vitalidade. O Ser compromete a capacidade de ligar-se humanamente ao outro, de viver e

existir em comunidade, disponível e fraternalmente. O homem não libera o Ser de si mesmo,

mas, o prende e o condiciona aos seus próprios vínculos e concepções. Instigado por paixões

conceptuais e partidário-religiosas, o homem trata seu próximo como objeto, com uma

apreensão simbólica desprovida de sentido espacial e temporal. “Mas filosoficamente falando,

implica certa posição de mim mesmo frente ao outro e, eu diria, uma espécie de ausência

radical ou de ruptura entre os dois” (MARCEL, 1968, p. 209). O Ser torna-se refém do

abstrato e alvo do caos e da tirania. Num mundo onde os indivíduos são reduzidos a

elementos abstratos, percebe-se a perda, como nos diz Gabriel Marcel,

[...] no sentido mais profundo da consciência de si, isto é, antes de tudo, das regulações transcendentes que lhe permitem referenciar o seu proceder ou intenções, está cada vez mais desarmado perante as forças destruidoras desencadeadas em torno e perante as cumplicidades que elas encontram no fundo de si mesmo (MARCEL, 1951b, p. 67-68).

Na intenção de superar a si mesmo através do desenvolvimento técnico “o homem não

transcende, regride, retrocede e fica aquém de si mesmo” (MARCEL, 2005, p. 38).

Conduzido pelos pressupostos da técnica, o homem não discerne entre sua condição terrestre

e seu enraizamento existencial, que supõe uma inserção no local e uma individualização nos

hábitos; algo que é negado pelo progresso técnico. Neste sentido,

O desenvolvimento ou invasão da técnica fatalmente oblitera e apaga no homem o mundo de mistério, que é simultaneamente o da presença e o da

Page 119: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

117

esperança; não basta efetivamente dizer que neste registro desejo e medo ultrapassam todo limite, mas que a natureza humana tende a tornar-se cada vez mais incapaz de elevar-se acima de um e outro, e de atingir pela prece ou pela contemplação uma esfera transcendente às vicissitudes terrestre. O aperfeiçoamento da técnica contribui para tornar o homem cada vez mais terrestre; pode observar-se correlativamente que quanto mais o homem está jungindo a terra, mais será conduzido necessariamente a multiplicar e aperfeiçoar as técnicas que lhe permitem consolidar as suas conquistas e assegurar a sua posição (MARCEL, 1951b, p. 83).

Ao colocar o primado da técnica sobre o humano, o homem da era técnico-industrial

despersonaliza sua relação consigo mesmo, o outro e sua dimensão transcendente. Ele se

desenraiza espiritual, existencial, social e comunitariamente. Sua vida passa a ser comparada a

um material qualquer, “onde o desinteresse pela realidade viva é cada vez menos entendida

como dom que se transmite e cada vez mais assimilada a uma como fatalidade

incompreensível a que conviria pôr um dique” (MARCEL, 1951b, p. 84).

A despersonalização das relações humanas transforma-se, de acordo com Gabriel

Marcel, em um problema de importância metafísica, em uma inquietude na qual se postula a

urgente carência de uma tomada de posição, onde “cada um de nós deve multiplicar à sua

volta as relações de ser a ser, e lutar tanto quanto puder contra a redução do homem a

qualquer espécie de anonimato” (MARCEL, 1951b, p. 185). É necessário ressaltar “que só a

transcendência autêntica pode deixar subsistir a liberdade humana” (MARCEL, 1951b, p.

219).

É preciso assumir uma atitude de resistência, por onde seja possível substituir a cultura

da comparação e da concorrência, pelo espírito da fraternidade e do acolhimento ao outro. É

preciso assumir um modo de convivência intersubjetiva em que o eu gira em volta do outro

Ser; onde a ideia do ser próximo não se limita à dimensão geográfica nem à perspectiva

reducionista de um eu igual a mim. Falamos do encontro no qual a igualdade não se confunde

com a fraternidade, da vivência da comunicação interpessoal, onde “o sentimento de

superioridade acompanhado de alegria, é da categoria da admiração, isto é, um impulso, um

jato, uma criação” (MARCEL, 1951b, p. 187).

A intensificação da exigência ontológica exige uma reflexão sobre a ordem da relação

que o homem mantém com sua própria vida. “Pois é a ele que cabe pôr-se à disposição da

vida, e não pôr a vida a sua disposição” (MARCEL, 2005, p. 125). Podemos dizer que, num

mundo dominado pelos critérios da técnica, cabe ao homem voltar a encontrar as fontes

perdidas de seu próprio fulcro existencial; buscar diretamente desnudar a condição humana e

suas implicações e reconhecer que, ao lado da regência cósmica das suas faculdades

Page 120: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

118

intelectuais, se faz necessário um olhar mais digno do humano, “que lhe permitirá aperfeiçoar

em tal grau a sua ciência e a sua técnica” (MARCEL, 1951b, p. 88).

1.4 Os limites da civilização industrial: entre a condição subvertida do ‘homem da

barraca’ e a situação agônica do homem problemático

A concepção de civilização industrial refere-se, basicamente, a um período

determinado de grandes e singulares feitos e realizações; a uma época de avanço, cujo

potencial possui um caráter imprevisível. Por conceber-se a partir de um plano de trabalho

tecnicamente definido, dentro do qual o ato de descobrir se impõe metodicamente, é que,

nesta fase, a consciência europeia distingue-se pelo modo como concebe a relação entre as

concepções de intervenção e realidade, sensação e ruptura, controle e desenvolvimento,

produção e consumo, evolução e condicionamento.

Mediante o uso indevido que o homem faz da técnica e, através das características

contraditórias que a civilização industrial apresenta, podemos reconhecer que, neste momento,

as coisas deixam de ser firmes; tudo é problematizado e nada fica fora dos processos de

intervenção, mutação e controle técnico. Conquanto os mecanismos de aperfeiçoamentos

técnicos tenham conferido à cultura ocidental novas e promissoras possibilidades, há que se

reconhecer suas confluências, limites e implicações humano-sociais.

De acordo com Gabriel Marcel, a noção de civilização industrial comporta em si

mesma, uma natureza marcadamente ambígua. Por civilização, por exemplo, entendeu-se, por

certo tempo, “a condição do homem civilizado por oposição a certo estado primitivo,

selvagem ou bárbaro” (MARCEL, 1955, p. 13). Quiçá esta ideia tenha repercutido desde o

período da cultura grega. Observamos que, a partir do século XVIII, a concepção de

civilização passou a ser confrontada com uma espécie de naturismo, que se destaca por trazer

o que ela comporta de inevitável corrupção.

Por um lado, no século XIX, fascinado pela concepção positivista de progresso, o

homem ocidental pensou que a humanidade chegaria, com o desenvolvimento da razão, a um

estado de aperfeiçoamento e plenitude de toda sua capacidade. Neste sentido, o conceito

positivista de civilização passa a relacionar-se ao triunfo da luz cognitiva sobre as trevas da

ignorância, do caos e da desordem epistêmico-social. De acordo com Marcel, esta era,

Para os otimistas do século XIX haveria de ser inclusive concebida como uma dominação pacificadora, que implicava a situação progressiva do direito

Page 121: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

119

pela força e que se traduziria não só em um crescimento geral do bem-estar, senão também em um harmonioso desenvolvimento das ciências e das artes, que seria, em certo modo, seu corolário (MARCEL, 1955, p. 14).

A compreensão otimista, de que toda humanidade estava marchando para o pleno

desenvolvimento, através dos processos dominadores da natureza e da expansão do direito e

da razão, não se confirmou. Através dos estudos etnológicos, sociológicos e das ciências

históricas, comprovou-se que a noção de civilização não comporta um sentido único-

totalitário, que possa se aplicar à humanidade em geral; e que, por outro lado, a ideia unitária

de civilização deve abrir espaço para as concepções plurais dos diversos modos de existências

presentes no mundo (ELIAS98, 1993, 1995, 2000). Ou seja, há a necessidade de substituir a

categoria difusa de processo civilizatório pela irredutibilidade de uma compreensão mais

ampla, onde se diz que estamos diante de muitas civilizações99 e, não, de uma única e patronal

forma de ser, viver e abordar a realidade.

Resulta cada vez mais evidente, especialmente a luz dos descobrimentos etnológicos, que aqueles a quem nós qualificávamos presunçosamente de selvagens, possuem já certa civilização que mostrava uma estrutura e uma coesão perfeitamente definidas [...] O que se adverte as claras é que cada uma dessas civilizações tende a constituir-se ao redor de certo modo de existência, porque, sobre tudo, que esse modo de existência não é separável de determinado meio (MARCEL, 1955, p. 15-16).

De qualquer modo, o que se expressa é que a civilização industrial “[...] seja qual for à

maneira como se pretende defini-la, se opõe, por exemplo, de uma maneira muito precisa, a

uma civilização de tipo rural” (MARCEL, 1955, p. 16). Na relação entre o homem e o

trabalho, a técnica aparece como uma dimensão coextensiva dos movimentos humanos. De

acordo com a eficácia da técnica, o homem se impõe e interpõe-se entre o meio natural, a

produção e a concretização de seus planos e objetivos (SPENGLER, 1998a). Este é um

98 A referência à análise sociológica de Norbert Elias, neste contexto da discussão, se dá em virtude dos pontos

de convergência entre seu pensamento e as compreensões de Gabriel Marcel sobre a realidade social do seu tempo. Sobretudo, quando ambos ponderam a respeito do modo como pensam o conceito de ‘civilização’, enquanto modelo importado do processo de assimilação, imitação e negação da própria subjetividade do Ser humano e seu modo de autocompreensão.

99 Cf. DS, p. 15,16: “Nos sentiríamos tentados de decir, en tales condiciones, que una especie de disociación tiende a efectuarse entre la idea de civilización y la idea de valor que en la concepción unitaria parecían inseparables. Creo, a decir verdad, que esa disociación no puede ser nunca absoluta. Sería más exacto decir que el desarrollo de una concepción pluralista e historicista de las civilizaciones va unida con cierta relativización de los valores – lamento tener que recurrir a este término un tanto bárbaro. De cualquier manera que se defina una civilización, es de una evidencia innegable que ella implica creencias, esto es, valores. Pero sería peligroso afirmar a priori que tales valores coinciden necesariamente con los que el pensamiento racionalista europeo, a partir de los griegos, tratara de definir en su universalidad”.

Page 122: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

120

âmbito natural, onde se conjugam os aspectos de presença e simpatia, riqueza e difusão,

enquanto o meio técnico caracteriza-se por sua artificialidade, materialidade, produção e

domínio artesã-industrial.

O mundo técnico comporta um movimento de aproximação e distanciamento do que é

o homem. Ao mesmo tempo em que a técnica nasce e se desenvolve com o homem, também o

desumaniza, à medida que exige dele a criação e o aprimoramento de melhores condições de

trabalho, maior segurança e qualidade de vida (MARCEL, 1955; FRIEDMAN, 2012). No

âmbito do trato da e com a matéria, encontra-se a submissão do homem ao meio, a fragilidade

e o desgaste do vigor físico-mental, a despersonalização das relações interpessoais, o risco da

perda de si na e pela abstração, a funcionalização da existência, a emergência da articulação,

cada vez mais forte, entre as emergências política e as técnicas de aviltamento; encontra-se

enfim, o “risco de congelar-se ou, em outras palavras, de transformar-se em outro condutor

puro de outras correntes, inumanas, influenciado por fins de pura dominação” (MARCEL,

1955, p. 19).

De acordo com Oswald Spengler (1998a), as condições de criação e dominação

surgem e se entrecruzam na condição existente do homem, podendo promover avanços e

provocar retrocessos no seu próprio processo de humanização. A partir do influxo de uma

postura inumana, o homem poderá reduzir-se ao nível mais baixo de sua dimensão existencial.

Poderá ser levado à condição de um Ser que é senhor e escravo, dominador e dominado de e

em sua própria natureza. Sobre as incidências dessas possibilidades, este autor comenta100:

Com a invenção da máquina a vapor, a natureza havia prestado alguns serviços; agora está submetida ao jugo como um escravo e seu trabalho é medido, como ironicamente, através de cavalos de força. Da força muscular dos negros, organizadas em fazendas, se passou as reservas orgânicas da crosta terrestre, onde a força vital de milhões é armazenada em forma de carvão, e a atenção se fixa hoje na natureza inorgânica, cujas forças hidráulicas servem agora para auxiliar o carvão. Com os milhões e milhões de cavalos de força os números da população chegam a um tal ponto que jamais outra cultura havia acreditado poder alcançar. Este crescimento é um produto da máquina, que quer ser servida e dirigida, para centuplicar em compensação as forças do indivíduo. Para a máquina a vida humana se faz valiosa. O trabalho se converte na grande palavra da reflexão ética. Essa palavra perde a partir do século XVIII, em todos os idiomas, seu sentido depreciativo. A máquina trabalha e obriga os homens a colaborar. Toda

100 Resgatamos a fala literal, neste contexto do trabalho, de Oswald Spengler, não só porque a encontramos nas

elaborações de Gabriel Marcel sobre os limites da civilização industrial (1955), mas, por entendermos que a mesma pode contribuir para ajudar o leitor a ampliar e aclarar suas compreensões, acerca da incidência da técnica sobre o humano e suas relações, no âmbito da sociedade técnico-industrial.

Page 123: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

121

cultura está centrada na atividade do trabalho, que faz tremer a terra. O que se desenvolve agora, no curso de apenas um século, é um espetáculo de tal magnitude, que o homem vindo de outra cultura, com outra alma e outras paixões, se perguntará se a natureza inteira não terá sido transformada. Em outras ocasiões, também a política excedeu os limites das cidades e os povos e a economia humana intervieram profundamente nos destinos do mundo animal e do vegetal; mas não era mais do que a vida e foi eclipsado por sua vez. Esta técnica, pelo contrario, deixa pegadas de sua existência quando todo resto foi extinto e já tenha sido enterrado. Esta paixão fáustica tem caminhado pela face da superfície da terra. Este sentimento da vida cujo impulso em direção a distancia e as alturas o aparenta profundamente com o sentimento gótico, é o que expressam, na infância da máquina a vapor, os monólogos do Fausto de Goethe: a alma ébria quer sobrevoar o espaço e o tempo. Uma indizível nostalgia a leva a um horizonte sem limites. Queria libertar-se da terra, dissolve-se no infinito, corta as ligaduras do corpo e circula o espaço cósmico, entre as estrelas. O que em princípio buscara o fervor ascendente de São Bernardo, o que Grünewald e Rembrandt imaginaram no fundo e Beethoven vislumbrara nos sonetos etéreos de seus últimos quartetos é o que reaparece agora na espiritual embriaguez dessa densa série de descobrimentos. Por esses meios de comunicação fantasmagóricos que permitem dar a volta ao mundo em poucos dias, atravessar oceanos em cidades flutuantes, ultrapassar cadeias de montanhas, navegar os labirintos subterrâneos. É por isso que a palavra falada é enviada instantaneamente além dos mares; por ele assistimos a esta ambição de recordes e dimensões, hangares grandes para aparatos gigantescos, barcos e pontes monstruosas, construções de arranha céus; forças fabulosas que obedecem, com um só aperto de um botão, na mão de um menino, fábricas de aço e cristal que vibram e tremem nas quais o menos homúnculo circular, senhor absoluto, sente a natureza rendida aos seus pés. E a forma das máquinas se faz cada vez mais inumanas, ascéticas, místicas, esotéricas. Rodeiam a terra com um tecido infinito de forças sutis, de correntes e tensões. Seu corpo se faz cada dia espiritual, mais dissimulado. Essas rodas, esses cilindros e alavancas, são emudecidos. Tudo o que é importante na máquina se dissimula em seu interior. Nós cheirávamos o diabo na máquina e não nos equivocamos. Ela significa, para os crentes o Deus destronado. Oferece ao homem a casualidade venerável e é posta em marcha silenciosamente, irresistivelmente, como uma espécie de omnisciência profética (SPENGLER, 1998b, p. 772-774).

A expressão ‘paixão fáustica’, citada por Spengler, surpreende e justifica seu emprego,

quando o próprio Fausto101 declara: “[...] isto é ainda bastante grande para grandes ações

capazes de iluminar o mundo com seu êxito. Sinto em mim uma força pronta a empregar-se

corajosamente [...]”. E mais à frente, acrescenta o Imperador de Espíritos: “[...] a quem

devemos nós que a natureza, por nosso bem solicita, acumule, os mais raros prodígios?”

(GOETHE, 2002, p. 403-404, 419).

101 A figura do Dr. Fausto, que vendeu sua própria alma ao ‘Espírito que aparece na chama’ em troca de poder e

prestígio, deu origem a uma lenda emblemática na arte Ocidental. E, é com base nesta lenda, que Goethe (2002), procurou, desde a sua juventude, tratar, no poema dramático de ‘Fausto’, acerca da pretensão conflituosa, tão presente na história da humanidade, do homem que quer elevar-se, a partir das conquistas de bens e realizações materiais.

Page 124: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

122

Para Gabriel Marcel, “é legítimo conservar a expressão spengleriana e dizer que a

civilização industrial está regida por valores fáusticos” (MARCEL, 1955, p. 22). Esta é uma

civilização ávida por dominar a natureza e exercer controle sobre a matéria, o tempo e o

espaço; é uma civilização tecnicista atravessada, não só pelo signo da produção e do

progresso, como também, pelos vieses da escravidão e da sujeição do próprio homem a todo

processo técnico-inventivo.

No paradoxo fundamental da civilização industrial, sobre a condição do homem, faz-

se necessário não só discernir suas implicações, como procurar apontar a natureza das reais

problemáticas que envolvem a própria existência humana. Convém ressaltar que, na

civilização industrial, à medida que o conhecimento da técnica triunfa, o homem se

desumaniza e subverte sua própria condição e modo de existir.

A subversão da qual fala Gabriel Marcel refere-se a um conjunto “de modalidades

existenciais que se situam por debaixo do nível da consciência cotidiana” (MARCEL, 1940,

p. 11). Trata-se de um processo de alienação através do qual o homem torna-se, cada vez

mais, estranho a si mesmo. É como o Ser que, olhando num espelho ofuscado sua própria

imagem, não se inquieta externa e interiormente diante daquilo que seus próprios olhos

contemplam; é como o homem que, diante das perguntas; “quem sou eu? Porque existo? E

qual o sentido tem tudo isto?” (1940, p. 12), por certo, não espera receber nenhuma resposta.

É como o Ser, a quem nosso autor, contemplando-o na contemporaneidade, o chama de “O

Homem da Barraca”102.

A consciência do ‘homem da barraca’ é a de alguém que se perdeu no âmbito das suas

relações. Ele é o Ser que não existe para si mesmo, não é presença na vida do outro, vive

alheio à dimensão transcendente e nem demonstra interesse pelas questões sociais, ecológicas

e planetárias. Na relação com o Estado, este homem aparece perdido nos conceitos abstratos

de emprego, reforma agrária, burocratização, aposentadoria e sindicato. Para a sociedade em

geral, ele não representa nenhuma realidade viva, não é considerado como um indivíduo,

102 Cf. HP, p. 11,12: “Ese hombre tiene alrededor de 45 años. Los cabellos grises. Podría tomarse por una sonrisa

irónica cierta mueca de su rostro, pero poco a poco se descubre que esa mueca debe tener otro significado pues es permanente: más bien debe pensarse en una especie de congelación de los rasgos. Ese hombre poseyó un hogar, una casa con muebles, tierras, una granja, animales. Tenía padres, una mujer, hijos, seres próximos habitaban su contorno. Pero ya no posee más que lo que lleva encima. Trabaja ocho horas por día, quizá en la reparación de un camino; tiene qué comer, y aun esa comida es buena. Cuando no está demasiado cansado puede conseguir en la aldea pequeños trabajos que lo ayudan, que le valdrán un suplemento en su alimentación, o un poco de tabaco. No puede decirse que la colectividad no se haya preocupado por él, y aun él no lo diría. Habla poco, lento, circunspecto. Habla de lo que poseyó en otros tiempos, de los suyos, de su grandeza y entonces se convierte en un ser humano en el presente, mientras que antes lo era en el pasado; muy pronto recae en su mutismo. Pero ya había planteado un interrogante, siempre el mismo, y por cierto no espera obtener respuesta: quién soy? Por qué vivo? Qué sentido tiene todo esto?”.

Page 125: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

123

porque foi absorvido pelas categorias despersonalizadoras dos processos da funcionalização,

quando o tratam como: número, ficha, rótulo, dado estatístico, índice, senha, código e todo

tipo de reducionismos que encerram estes termos e suas respectivas imagens. Para Marcel,

isto significa

[...] inevitavelmente funcionalizá-lo de maneira absoluta ou mesmo reduzi-lo a um simples comportamento. A ideia que aqui se impõe naturalmente ao espírito é a das prisões dos campos de concentração, onde o indivíduo é designado por um número de ordem. Também é possível evocar-se, com um sentido menos trágico, dos hotéis, onde o viajante é confundido com sua própria habitação: é o ocupante de tal cama. Em tais casos a atenção se aparta sistematicamente do sujeito como sujeito para dirigir-se exclusivamente a uma tarefa que terá de terminar, um rendimento que produzirá ou rendimento que terá de pagar. Na vida corrente nada me impede de comportar-me com os outros de uma forma que corresponde a esta maneira totalmente pragmática de considerá-los [...] Podem ser também selecionados e numerados; é teoricamente possível proceder a um inventário dos seres humanos existentes no planeta como se precederia ao inventar os objetos que figuram numa coleção. Por que, como não ver que esses seres, quando são tratados dessa maneira, quer dizer, submetidos a um verdadeiro senso, já não são encarados como seres, senão como se fossem coisas? (MARCEL, 1951a, p. 245, 246, 247).

Submisso ao processo de abstração de si, ‘o homem da barraca’ “não consegue tomar

consciência do caráter precário e contingente das condições que constituem o marco mesmo

de sua existência” (MARCEL, 1940, p. 16). Na substituição do concreto pelo abstrato, o

homem torna impossível sua condição existencial. Conduzido pelas tendências industriais,

fica impedido de avaliar as consequências da técnica sobre o modo como concebe a si mesmo

e ao mundo ao qual pertence. Impedido de imaginar concretamente o que poderá vir a ser, o

homem fica exposto a todo tipo de interpretação103 sobre si, sobre a vida, a realidade, seu

futuro e suas possibilidades.

103 Cf. HP, p. 22-25: “Pero ciertamente se puede notar que se produjo en el siglo XIX una conjunción del

nacionalismo por una parte, de la revolución industrial por otra, cuyos efectos fueron muy nefastos en el plano de lo humano. Pues ni siquiera puede decirse que el nacionalismo haya contribuido a hacer más soportable el yugo de la industria o de la máquina; muy al contrario. Pero en realidad no habría que detenerse aquí. Sería necesario investigar por una parte cómo el nacionalismo y el industrialismo se han desarrollado conjuntamente, y por otra qué consecuencias tuvieron para la imagen que el hombre se há hecho de si mismo y del mundo en el cual arraiga. Es difícil discutir, en particular, que el nacionalismo bajo su forma moderna y pos revolucionaria sea el producto de una ideología que se desarrolló en el siglo XVIII y se combinó, en condiciones muy difíciles de precisar, con un pre-romanticismo cuyos Orígenes parecen situarse en Rousseau. Abandonada a su pendiente natural, esta ideología llevaba más bien a un cosmopolitismo de la razón. El nacionalismo surgido de la Revolución Francesa se ha construido en gran medida sobre la ruina de las comunidades de base que habían persistido hasta el final del Antiguo Régimen, pero que el individualismo de la Filosofía de las luces contribuía inevitablemente a disolver. Por otra parte no se puede negar que haya una conexión estrecha entre este hecho general y la desvitalización de la religión que se produjo en la misma época. Pero la Revolución Industrial, al menos durante la primera mitad del siglo XIX, debió contribuir a agravar

Page 126: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

124

Na relação entre desumanização e conhecimento técnico há sempre uma concepção de

sujeito que lhe atravessa, uma concepção que trata a aptidão humana como uma habilidade

condicionante de toda sua existência. Nesta perspectiva, o desenvolvimento do homem fica

reduzido à dimensão sensório-motora; a um tratamento que pretende levá-lo ao

aprimoramento de certas funções totalmente precisas; à adequação às atividades rotineiras e

produções em série.

A base deste processo consiste na aplicação de testes e experimentos, que consistem

num conjunto de procedimentos pelos quais o Ser é conduzido ao processo de adequação, à

condição de adaptação funcional, controle volitivo e modelagem comportamental. Para esta

tendência comportamentalista, “o indivíduo é considerado como uma certa unidade sobre a

qual se pode e deve proceder como todas as demais unidades da mesma categoria”

(MARCEL, 1955, p. 40).

A pragmatização geral do homem constitui-se num atentado contra a sua condição

fundamental de ser existente. “Em tais condições, o sujeito será tratado cada vez menos como

sujeito, e em conseqüência, cada vez menos respeitado” (MARCEL, 1955, p. 42). No ato de

violação da dignidade do homem, as técnicas condicionantes exercem total predomínio sobre

sua liberdade. A possibilidade do fazer-se humano é posta em dúvida e sua historicidade fica

reduzida a certos aspectos, nada mais que um simples corolário. “Com isto quero dizer que o

que em certos casos é tratado como ser pode também qualificar-se como não ser” (MARCEL,

1951a, p. 249).

De acordo com Marcel (1955), o desenvolvimento da técnica não só serve para afirmar

as conquistas do homem sobre sua realidade, como pode ajudar a comprometer a identidade

que há entre o sujeito que conhece e seu objeto de conhecimento. Estas possibilidades

implicam numa contradição sobre a substituição da cidade pela aglomeração e do

enraizamento de si pela abstração do real; numa perda dos laços vitais do homem com seu

habitat mais imediato, o ato de desarraigamento de si, do âmbito do seu próprio mundo. Além

disso, podem infligir no Ser um sentimento de adestramento, capaz de promover, no seu

considerablemente esta tendencia, por otra parte debida sobre todo a la influencia de un liberalismo que en el plano económico, como bien sabemos, debía engendrar las consecuencias más inhumanas, al reducir al individuo a una condición cada vez más parcelaria, bajo la máscara de un optimismo que hoy nos parece el como de la hipocresía. Pero es de notar que el propio marxismo a pesar de la diferencia y aun la oposición de los postulados, ha contribuido a prolongar el error liberal, es decir que no hizo casi nada para instaurar el advenimiento de la persona. Como el liberalismo, permanece a fin de cuentas tributario del espíritu de abstracción [...] Todo esto no son más que algunas referencias, por otra parte, indispensable [...] En general, puede decir que el hombre, si consideramos la evolución histórica y sociológica tal como se ha desarrollado desde hace dos siglos, ha perdido su referencia divina: deja de confrontarse con un Dios cuya criatura y la imagen sería”.

Page 127: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

125

interior, uma ruptura consciente ou inconsciente, dos seus vínculos mais profundos. Pela

atomização, o homem é capaz de substituir sua identidade pessoal pelo sentimento da

funcionalidade técnica. Passa a ser visto e se vê pelo prisma do que faz e não pela certeza do

que é, real e existencialmente.

Desde o momento que o laço vital que unia os seres a seu mundo se torna roto, já não são considerados ali senão como unidades de rendimento, isto é, como máquinas cujas necessidades se faz sentir em tal e qual ponto por razões ligadas a uma economia geral, sem ter em conta o que esses seres máquinas podem sentir. O ideal não consistiria, pois, mais que em um adestramento para transformá-los de maneira tal que esses sentimentos ou exigências se atrofiam e desaparecem finalmente. Recordo o que me dizia alguém que se ocupava do terrível problema das pessoas deslocadas: tal país solicita pessoas capazes de fabricar sapatos! Vemos em conseqüência, como realidade concreta: Fulano, casado, com tal pessoa, pai de tal filho... Pode ser substituída pela identidade: ser-capaz-de-fabricar-sapatos (MARCEL, 1955, p. 43).

Desta forma, temos que reconhecer que o objetivo do processo de funcionalização é

condicionar o homem a um sistema de aparências tão consistente que se converte

verdadeiramente no sentido da sua realidade. Este é um ato pelo qual o homem é tratado como

massa, ou simples agregado, cujas características podem substituir uns aos outros, segundo as

vicissitudes temporais e circunstanciais do processo produtivo. O homem se transforma numa

peça de troca dentro de um grande sistema coletivo-operacional. Implica dizer, segundo

Marcel, que

[...] trata-se de um pecado contra a vida, a vida entendida em seu sentido mais profundo. Ela não se concebe aqui, se é que é permitido por assim dizer, mais biosociológicamente, quer dizer, como um funcionamento do qual se pretende determinar com uma rigorosa objetividade as condições físico-químicas, funcionamento subordinado a realização de determinada tarefa requerida pela coletividade (1955, p. 43).

Por limitar o Ser à condição infrafuncional, é que, neste sistema, o homem é colocado

em “condições a tal ponto desumanizantes que sua própria humanidade lhe parece que

estivera separada dele, flutuando como um sonho em que já não se crer e que sem dúvida

desperta em sua alma uma invencível nostalgia” (MARCEL, 1955, p. 53). Podemos dizer que

na sociedade industrial “há setores em que o automatismo se aplica não somente a certas

técnicas determinadas, como ao que se chamava, anteriormente, de vida interior, e que agora

se converte na vida mais exteriorizada possível” (MARCEL, 1951a, p. 32).

Page 128: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

126

Investido deste poder de autoconsolidação, a técnica impõe, sobre a realidade do

mundo, a reivindicação de fins precisos que tendem, inevitavelmente, a produzir um estado de

automatização, no qual o homem se reduz a uma expressão fechada de si mesmo e com a qual

se pretende confundi-lo. O homem se torna problemático.

O homem problemático é, para Marcel, “[...] um ser cuja originalidade mais profunda

consiste talvez não só em perguntar pela natureza das coisas, senão em interrogar-se sobre sua

própria essência” (1940, p. 68). É o Ser que nunca pode conceber-se e afirmar-se fora e/ou

para além da sua própria liberdade. É o homem que reluta em não perder sua significação

autêntica, em não deixar-se persuadir pelas técnicas de aviltamento e abstração. É alguém que

procura interpelar a natureza do processo de automatização de sua existência e transcender os

domínios do dado e da aparência de sua própria realidade.

A problematização se estende a todas as áreas da vida humana. Por inserir-se no

âmbito daquilo que o homem é, no seu mais íntimo Ser, a problematização não se deixa

traduzir em linguagem de causalidade. Como atitude interrogativa, ela progride em direção à

liberdade, que se expressa naquilo que é e poderá vir a ser o homem. Nas palavras de Marcel:

Mas o que chamei de problematização do homem por si mesmo apresenta um caráter singular de não desembocar para uma possível indicação: ou talvez é preferível dizer que esta problematização se estende há mesmo tempo a toda direção as origens, a essência e o destino do homem (1940, p. 68).

A problematização se assenta numa dimensão metafísica; na exigência ontologia que

nasce do fulcro portador de uma certa mensagem, que se traduz numa verdade transcendente.

“Queremos dizer que o valor de que trata não pode ser reconhecido ou saudado senão por um

olhar que não se orienta por um eixo puramente temporal, segundo uma linha que una

simplesmente o antes e o depois” (MARCEL, 1940, p. 38). Por ser a problematização pura

aproximação é que seu avanço autenticamente espiritual não pode ser assimilado ao nível de

um processo linear, orgânico e diretivista. A dimensão transcendente do Ser se dá na relação

entre a vida e a confiança, entre o achado e a procura, o fazer-se e a recusa de um

inacabamento, que não se esgota nas dimensões da máquina e da funcionalização. Uma recusa

encantada pelo ato de existir, descrita por Raine Maria Rilke nos Sonetos a Orfeu;

A máquina ameaça todo o conseguido, quando se atreve a ser no espírito e não no obedecer. Pra que a hesitação mais bela da mão magnífica não resplandeça, corta ela mais rígida a pedra para o edifício mais resoluto.

Page 129: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

127

Em nada fica atrás, para que uma vez lhe escapemos e ela, luzente de óleo, se pertença na fábrica silenciosa. Ela é a vida – supõe saber mais que ninguém, Ela ordena e cria e destrói c΄a mesma decisão. Mas para nós o existir é ainda encantado; em cem lugares é ainda origem. Um jogo de puras forças que ninguém toca que não ajoelhe e admire [...] (RILKE, 2003, p. 220).

“Sem dúvida, esse homem não é um número, é um ser vivo, um indivíduo”

(MARCEL, 1940, p. 13). Um Ser cujo sentido existencial não se esvai no vazio do abismo do

nada, nem se consome na rotina da produção ou do fazer em série das fábricas e das

indústrias; alguém, como disse Rilke (2003), capaz de encantar-se pelo existir. Este Ser, este

alguém é o homem que se recusa a ser considerado como uma simples unidade funcional, que

não pretende se reduzir ao jogo das aparências sucessivas e inconsistentes dos processos e

mecanismos que ameaçam suprimir sua condição de Ser encarnado.

Se o homem é essencialmente um Ser itinerante (MARCEL, 2005), então

consideremos a inquietude do homem problemático, não como uma demonstração de

limitação, mas, como uma “primavera interna do seu desenvolvimento e falem o que

quiserem, aqueles que em nome de um ideal tecnocrático pretendem proscrevê-lo, pois o

homem não pode perder esta inquietação sem imobilizar-se e morrer” (MARCEL, 1940, p.

177).

Page 130: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

128

CAPÍTULO 2 CARACTERIZAÇÃO ANTROPOLÓGICA E METAFÍSICA DO

PENSAMENTO FILOSÓFICO DE GABRIEL MARCEL

Silente amigo104, dos longes tão vários, sente como ao teu sopro o espaço cresce! Deixa-te, na armação dos campanários sombrios, soar. Isso que te enfraquece será uma força, com tal alimento: seja a metamorfose o teu caminho! Qual o teu mais pungente experimento? Se te amarga o beber, torna-te em vinho.

Nesta noite de excesso, se a magia na encruzada dos sentidos; se tu o sentido que a tal encontro os levou. E se o terreno te esquecer, à fria e imóvel terra apenas dize: eu fluo! E à múrmura água inquieta, dize: eu sou!

(Rainer Maria Rilke)

A originalidade do Pensamento Filosófico de Gabriel Marcel manifesta-se na

tematização dos aspectos existenciais e concretos da experiência humana. Quer se trate da

existência individual da qual participo, quer se volte para os modos pelos quais a exigência

ontológica pode ser acessada, Marcel nos convida à analise das especificidades do seu

pensamento antropológico e metafísico. A proposição de que o homem está situado numa

realidade concreta nos conduz à reflexão sobre a condição de Ser encarnado: o homem como

Ser de presença; a condição de Ser itinerante: o homem como ser a caminho; a condição de

Ser livre: o homem como ser aberto; a condição de Ser intersubjetivo: o homem como ser de

comunhão fraterna, e a condição de Ser e transcendência: o homem como ser voltado para o

Absoluto. Através das múltiplas vias de acesso ao mistério do Ser, pretendemos refletir sobre

as possíveis contribuições da abordagem filosófica de Marcel para a construção de uma

antropologia que, pretendendo se afirmar como existencial, se anuncia como portadora da

confiança e esperança que devemos ter na vida e no Ser humano.

104 “E não seria esse amigo o próprio Rilke? [...] O mesmo ainda capaz de sublimar-se nas graves metamorfoses

órficas? O mesmo em cujo coração não se ergue nenhum templo a Apolo, e que, todavia, sente a necessidade de promover o encontro dos sentidos nas encruzilhadas interiores? O mesmo, afinal, para quem o canto da existência (Gesang ist Dasein), e que, divorciado da vida mundana, ousaria dizer à terra imóvel – Eu fluo! E as águas cascateantes – Eu sou!” (JORGE apud RILKE, 1924, p. 83).

Page 131: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

129

2.1 Pensamento antropológico

No pensamento filosófico de Gabriel Marcel, a temática acerca do homem ocupa um

lugar especial. Através das obras “Journal Métaphysique” (1927), “Homo Viator” (2005),

“Etre et Avoir” (1935), “Los Hombres contra lo Humano” (1951b) e o “L’homme

Problématique” (1955), ele expõe as linhas descritivas de sua investigação antropológica105.

A inquietação em torno das perguntas “quem sou eu?” ou “que é o ser?” constitui-se como o

centro de sua abordagem metafísica106, e ao mesmo tempo, como o aspecto que afere sentido

à busca do desvelamento do mistério que nos interpela a respeito do Ser e do modo como este

existe, para si mesmo, no mundo.

105 A Investigação Antropológica representa, no pensamento filosófico de Gabriel Marcel, o ato de tomar o Ser

em sua existência pessoal, concreta e irredutível. Consiste numa atitude filosófica, em que o pesquisador, tomando consciência de verdades que, de alguma maneira, vão sendo reveladas, não considera a existência como um predicado do Ser. Trata-se, antes, do que Marcel denomina de Filosofia Existencial da verdade subjetiva. “Uma análise da experiência que não interponha, entre ela e o sujeito, a tela da objetividade, como fundamento da inteligibilidade [...]” (MORA, 1994, p. 1860). Marcel, recusando-se a “explicar o homem como uma coisa, procura denunciar as condutas (científicas e tecnocratas) que tentam reduzi-lo à dimensão da coisa e utilizá-lo como um objeto” (DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 310). Neste sentido, a pesquisa antropológica, na perspectiva marceliana, pretende introduzir o Ser no domínio do mistério, que não é o mesmo que incognoscível, “em algo que me encontro comprometido e cuja essência é, por conseguinte, algo que não está inteiramente diante de mim” (MARCEL, 1935, p. 145). Com isso, o pensar filosófico transforma-se num ‘compromisso’, numa ação, em que o próprio sujeito é um elemento (pesquisador e pesquisa) de uma investigação maior e mais plena. Na pesquisa antropológica, segundo o olhar de Marcel (1940), o homem não é visto como um centro de especulação vazia, mas, como o portador de uma verdadeira experiência antropológica, onde os achados da pesquisa “[...] deixam de ser vistos como uma adequação da coisa, ao pensamento, para elevar-se a valor vital; mais do que algo enunciado, a verdade torna-se algo vivido, experiência pessoal” (MONDIN, 1981-83, p. 204-205). É com base nos pressupostos da pesquisa antropológica, que Gabriel Marcel diferencia a pesquisa científica da pesquisa filosófica, em termos de problema e mistério. Mais ainda, acrescenta; “[...] parece de fato que entre um problema e um mistério existe uma diferença essencial: um problema é algo que encontro todo inteiro diante de mim e que posso analisar e reduzir; o mistério é algo em que eu mesmo estou empenhado e que, por isso, só pode ser pensado como uma esfera na qual a distinção do ‘em mim’ e do ‘diante de mim’ perde seu significado e valor inicial. Enquanto um problema autêntico se justifica segundo certa técnica apropriada, em função da qual se define, um mistério transcende por definição toda técnica imaginável” (MARCEL, 1935, p. 169).

106 A abordagem metafísica compreende o reconhecimento de que a existência do homem não tem uma significação generalizante; de que as bases de desvelamento e investigação do Ser encontram-se no próprio homem e em sua condição de Ser encarnado. “A encarnação é o dado central da metafísica” (MARCEL, 1935, p. 11). Implica no reconhecimento de que “[...] o Ser esconde uma presença; que há nele qualquer coisa que aparece como uma subjetividade (JOLIVET, 1953, p. 369). Uma presença que, segundo Marcel (1927), não se define objetivamente, porque não se ancora num saber concluído, unívoco, metódico e universal. A abordagem metafísica considera que o homem só poderá desvelar-se a partir de sua realidade vital. Na busca do fundamento metafísico da condição humana, o pesquisador precisa reconhecer que a existência é indivisa; que o homem, enquanto ser encarnado, é portador de significados e sentidos que transcendem os esquemas lógicos do saber puro e imediato. Na abordagem metafísica, o homem se sente impelido a conhecer-se, seja por outro, ou por ele mesmo. No processo de desvelamento de sua condição de Ser encarnado, o homem se descobre histórico e aberto ao universo dos paradoxos; coloca-se a caminho dos outros seres humanos e transcende as esferas dos saberes, que pretendem reduzir a si mesmo e sua realidade, a meras formas e/ou modelos de representação.

Page 132: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

130

Por ser o homem o tema fundamental de sua filosofia e o conteúdo de todas as suas

criações e representações filosóficas, musicais e dramatúrgicas, é que Marcel o toma num

sentido existencial, buscando também concebê-lo em sua dimensão metafísica. Num sentido

metafísico, a experiência do ser-em-situação é pensada, no início do livro “El Mistério del

Ser” (MARCEL, 1951a), à luz das circunstâncias que colocam o mundo numa condição de

profunda e aguda crise. Um mundo em conflito consigo mesmo, um mundo quebrado, cujo

coração deixou de bater, à semelhança de um relógio que parou de funcionar, e que, por isso,

coloca a existência de todos sob a ameaça de uma possível destruição (MARCEL, 1956).

É a partir da relação entre homem, mundo e existência que Gabriel Marcel aparece,

dentro do cenário das reflexões “filosófico-existenciais”, como um pensador cuja filosofia

caracteriza-se como uma fenomenologia do concreto (MARCEL, 1968). Na base da evolução

do seu pensamento, encontra-se a perspectiva de que o homem é um Ser de compreensão e

mudança, de que sua reflexão deve estar fundada na realidade da experiência vivida e de que

sua pretensão é sempre ir além do imediatamente dado.

A perspectiva de análise da Filosofia marceliana revela-se numa antropologia

metafísica, à medida que toma o homem como ponto inicial de investigação, à luz da

realidade fenomenológica da existência pessoal do Ser. Essa perspectiva revela-se, também,

com a compreensão de que o sujeito não pode ser objetivado, nem reduzido às categorias do

“isto” ou de “natureza”; e com um ato de problematização que toma como referência a

“estrutura do homem” e sua própria “condição de ser-no-mundo”107.

Com base nestas compreensões inicias, destacamos que a abordagem filosófica de

Gabriel Marcel pode ser caracterizada como uma antropologia que investiga o humano, a

partir de si mesmo e da relação com os outros e o Absoluto. Num diálogo com Paul Ricoeur

(1968), Marcel diz que seu interesse é buscar o entendimento do homem no humano108. Sua

intenção não é fazer uma análise psicológica ou interior do homem; sua busca consiste em

questionar os aspectos da realidade do Ser, a partir de sua concretude, enquanto ser-em-

situação.

Outro aspecto importante do percurso antropológico de Marcel é sua rejeição à

perspectiva essencialista do humano. Por essência, entende-se o modo como as coisas são em

107 Cf. RI, p. 42: Marcel diz, na obra De Refus a L’invocation; “Je pense qu’un philosophe qui voudrait

aujourd’hui renouveler la tentative de Hume devrait intituler son ouvrage non point de la Nature Humaine, mais de la Condition Humaine”.

108 Cf. DM, p. 95, 96: “Ne pourrait-on pas dire, soit que c’est une philosophie de la vie intérieure et donc à la limite une pensée qui s’évade, ou bien qu’elle ne rencontre le cour du monde [...] ce que vous appelez volontiers l’humain dans l’homme”.

Page 133: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

131

si, a partir de suas respectivas determinações, conteúdos e substâncias. No Essencialismo109, a

natureza é anterior ao Ser; a definição do ser precede a sua existência. A existência, ao

contrário, aponta para algo que “existe”, que “é” e que se mostra através de suas propriedades,

ou seja, a existência é que determina a essência. Significa dizer que “o modo de ser do

homem, isto é, a existência, não se pode esclarecer nem compreender, senão a partir do fato

de que o homem é-aqui (existe): isto é, existe no mundo e entre os outros entes”

(ABBAGNANO, 1970, p. 344). No existencialismo, o homem, primeiro existe, e só depois se

define.

Para Marcel, a forma essencialista de compreender o Ser se dá em virtude do caráter

objetivista com que o ser humano é tratado por esta doutrina. Afirmar que a essência é que dá

sentido à existência é o mesmo que considerar o homem como um sujeito determinado,

programado, pronto, acabado e concluído110. No conceito de existência, o Ser se apresenta

como é. Todas as suas determinações de conteúdo cedem lugar à sua realidade possível,

apontando deste modo para aquilo que o Ser “é” no sentido de “estar-aí”. É o Dasein111

heideggeriano, que descreve a presença do ser-no-mundo,

[...] que mostra que o existir humano e seu fundamento essencial nunca é apenas um objeto simplesmente presente num lugar qualquer, e certamente não é um objeto encerrado em si mesmo. Ao contrário, este existir consiste em “meras” possibilidades de apreensão, que apontam ao que lhe fala e o encontra e não podem ser apreendidas pela visão ou pelo tato [...] O que o existir, enquanto Dasein, significa é um manter aberto de um âmbito de poder-apreender as significações daquilo que aparece e que se lhe fala a partir de sua clareira. O Dasein humano como âmbito de poder-apreender nunca é um objeto simplesmente presente. Ao contrário, ele não é de forma

109 Conforme Dicionário Oxford de Filosofia, “o essencialismo é uma doutrina segundo a qual se pode distinguir

entre aquelas propriedades de uma coisa, ou tipo de coisa, que lhe são essenciais, e as que lhe são meramente acidentais. As propriedades essenciais são as que uma coisa não pode perder sem deixar de existir. Assim, uma pessoa que usa um chapéu pode tirá-lo; ou poderia não ter usado chapéu, mas, essa mesma pessoa não pode deixar de ocupar espaço, e não podemos postular uma situação possível na qual esta pessoa não esteja ocupando um espaço” (BLACKBURN, 1997, p. 126). Quando aplicado à noção de Ser, a ideia de essência é tomada em termos de predição e determinação do sujeito humano. No sentido metafísico, a concepção de essência tem sido aplicada como sendo um fator de determinação do que é o homem e seu existir. Na qualidade de caráter fundamental do Ser, conforme a doutrina essencialista, a existência deve corresponder à essência e àquilo que o homem traz enunciado em si mesmo, aquilo pelo qual e no qual a coisa/homem tem que ser. Todavia, aqui suscita-se o problema da relação entre a essência e a existência, tão abundantemente tratada pelos filósofos do pensamento existencial.

110 Cf. RI, p. 31,32: “On pourrait à la rigueur et sous une certaine réserve parler d’une anthropologie existentielle par opposition à une anthropologie qui serait comme un discours sur l’essence de l’homme ou sur la nature humaine”.

111 A experiência do Dasein aponta para a realidade de um ser livre, cujo projeto ontológico caracteriza-se pelo sentimento de “estar-arremessado-aí”; uma presença responsável diante de si mesmo, que pretende ir além de todas as determinações e escolhas do ser.

Page 134: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

132

alguma e, em nenhuma circunstância, algo passível de objetivação (HEIDEGGER, 2009a, p. 33).

Assim, o conceito de “existência” sofre uma dupla mudança: primeiro, com relação à

sua aplicabilidade – na perspectiva existencialista ele se aplica apenas à existência humana.

Segundo, no que diz respeito ao seu conteúdo, ou seja, passa a significar apenas o existir e o

modo como ele se revela através do Ser do homem no mundo: sua vivência existencial. Em

virtude desse caráter existencial do Ser, Marcel vai resistir designadamente a todas as formas

de sistematização e rotulação doutrinário-filosófica112 acerca do seu pensamento.

O caráter inobjetivável da sua inquietação antropológica nos coloca, num terceiro

momento, diante da dimensão inapreensível e inesgotável da abordagem antropológica

existencial. “Inapreensível” não significa o mesmo que “incognoscível”. A inapreensibilidade

do Ser não pode comparar-se à estrutura de um círculo fechado, cujo conteúdo, forma e fim

encontram-se limitados em si mesmos; mas, de um espiral, que aponta para o infinito à

medida que se abre, desvela, que se faz e ressignifica-se.

A antropologia de Gabriel Marcel é, antes, uma ontologia113 do inesgotável e do

irredutível114. Sua perspectiva se dirige à visão de um homem aberto, e não fechado ou

voltado para si mesmo. De acordo com nosso filósofo, afirmar a exatidão do Ser implica cair

nos reducionismos existencial, ontológico, epistemológico e antropológico. A abordagem

antropológica de Marcel não se reduz às afirmações e limitações da razão humana. Sua

reflexão se opõe à máxima cartesiana do cogito, “eu penso”. Sobre essa máxima, ele diz:

112 Cf. MS, p. 9: “Es absolutamente claro que el pensamiento que aquí se expresa se orienta deliberadamente

contra todos os ‘ismos’. Pero, en fin, si es necesario resignarse a buscar un rótulo, el autor, por razones evidentes, a fin de cuentas adoptaría el de neosocratismo o socratismo cristiano”.

113 Ontologia é a parte da Filosofia que se ocupa do estudo das propriedades do real, enquanto tal, e dos conceitos com os quais as caracterizamos. “A ontologia é a ciência do ser enquanto ser e dos caracteres que pertencem ao ser como tal” (JOLIVET, 1976, p. 263). Quando aplicado à filosofia de Gabriel Marcel, a ontologia consiste em considerar o primado do Ser sobre o conhecer e suas respectivas formas de objetivação. Para Marcel, “quanto melhor pudermos reconhecer o ser individual como tal, tanto melhor estaremos orientados e como que encaminhados para uma apreensão do ser, enquanto ser” (1940, p. 193). Todavia, é preciso que, desejando desvelar o mistério do Ser, compreendamos que o indivíduo é inefável, inexaurível e inesgotável. Apesar de conceber o homem com um ser inesgotável, Marcel também reconhece que há, em cada indivíduo, “[...] um permanente que dura e em relação ao qual nós duramos, um permanente que implica ou exige uma história, em oposição à permanência inerte ou formal de uma lei ou da pura validade” (1933, p. 148). Um caminho de apreensão ontológica que, uma vez vivenciado, pode nos aproximar do mistério, que é o homem e sua condição existencial. Entre outras possibilidades de investigação e desvelamento do que é o Ser, destacam-se: a fidelidade, a esperança, o amor, que, no quadro do pensamento marceliano, se apresentam como expressões de um movimento dialético que, à medida que anuncia o que é homem, também nos indica outras possibilidades do seu próprio modo de Ser e existir.

114 No entendimento de Pérez o sentido da inesgotabilidade da antropologia marceliana encontra-se na abertura do Ser ao próprio existir humano; “El hombre es un ser espiritual y, como tal un ser abierto y ese carácter de apertura debe quedar plasmado en la antropología” (PÉREZ, 2001, p. 28).

Page 135: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

133

o cartesianismo implica uma dissociação talvez ruinosa em si mesma do intelectual e do vital, de que resulta uma depreciação e uma exaltação de um e do outro igualmente arbitrárias; há aqui um ritmo fatal que conhecemos muito bem e cuja explicação estamos obrigados a pensar. Certamente não há porque negar que seja legítimo operar distinções de nível e dentro da unidade de um ser vivo que pensa e se esforça por pensar-se; porque o problema ontológico se trata além destas distinções, para que este seja tomado em sua unidade e impulso (MARCEL, 1968, p. 212- 213).

A pretensão antropológica de Marcel não é outra, senão, recuperar o caráter existencial

do ser-em-situação. É chamar a atenção do homem para sua incompletude e indeterminação

metafísica. Ao afirmar esta pretensão, o autor quer destacar que o inteligível do humano não

pode ficar ou ser reduzido ao biológico, nem ao aparente de sua condição existencial. Sua

intenção é “averiguar a proporção do valor ontológico” (MARCEL, 2003, p. 125-126),

buscando outras categorias de abordagens que possam corresponder às nossas mais profundas

necessidades e aspirações humanas.

Ancorados por estas perspectivas e possibilidades de discussão antropológica,

propomo-nos a descrever as categorias da Encarnação, da Itinerância, da Liberdade, da

Intersubjetividade e da Transcendência. Nosso interesse não é estabelecer uma

sistematização, nem uma classificação de ordem ou juízo de valor sobre estas expressões de

análises. Nosso desejo é buscar ressaltar o modo como cada uma delas pode contribuir para a

iluminação do pensar antropológico de Gabriel Marcel, enquanto pontos de referência para o

estudo do Ser e de sua condição metafísico-fenomenológica.

2.1.1 Encarnação: o homem como ser de presença

A existência, para Gabriel Marcel, está sempre partilhada entre o lugar que se atribui

ao corpo e o modo como eu me comunico com o mundo e os outros homens. Ao instituir o

primado da existência sobre os processos mecanicistas, que pretendem o condicionamento da

vida humana, Marcel nos convida a pensar sobre a temática do homem como Ser

encarnado115.

115 Cf. Roger Troisfontaines, De l'Existence à l'Être: la philosophie de Gabriel Marcel. Tome I. Paris: Éditions J.

Vrin, 1953a, p. 165-184. Como um dos principais estudiosos e sistematizadores do pensamento de Gabriel Marcel, Troisfontaines destaca, na discussão sobre a encanação, que Marcel é um dos filósofos responsáveis pelo resgate da dimensão corpórea do Ser ao campo da Filosofia, na era contemporânea. Acrescenta ainda, “[...] que a existência, tal como a entende Marcel, é participação com o mundo, com os outros, com Deus, com meu próprio corpo, etc., na qual me encontro comprometido, imerso, sem tê-lo desejado e antes mesmo de ter consciência disto” (TROISFONTAINES, 1966, p. 244).

Page 136: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

134

Na necessidade de adjetivação sobre a condição do Ser encarnado, propomos a análise

sobre o lugar, o sentir, a mediação e o mistério da corporalidade, diante do confronto entre o

paradigma instrumental do dualismo corpo-objeto e o resgate da dignidade ontológica da

dimensão corpórea do Ser.

A discussão sobre o valor que se deve atribuir ao corpo encontra, em Marcel, muito

mais do que nos outros filósofos da existência, uma grande importância. Sua filosofia emerge

como fator inaugural, na França116, de uma Filosofia do corpo, que pretendendo compreender

a existência humana “[...] tratou de analisar a presença carnal e sensível do mundo a nós e de

nós ao mundo” (MERLEAU-PONTY117, 1966, p. 312).

2.1.1.1 O lugar da corporalidade no pensamento filosófico marceliano

“Eu existo”. Esta é a primeira e mais significativa experiência que o homem pode ter,

de si mesmo, no mundo, nos diz Gabriel Marcel (1968). Uma consciência existencial que se

afirma incondicionalmente enquanto compreensão de um eu que está ligado a um corpo. A

relação onde a noção de eu-corpo ultrapassa as linhas do movimento dialético do construto

eu-objeto, para se transformar num eu-encarnado, que se assume enquanto presença

existencial na própria concretude, realidade e forma de Ser do homem.

A encarnação é o ponto central da filosofia marceliana118. Ela é o fundamento, a esfera

e a atmosfera de construção de todo seu pensamento filosófico existencial. Na compreensão

de Marcel (1968), o homem existe porque está ligado a um corpo; e sua existência se

presentifica à medida que o Ser toma consciência de si, como corporalidade, entendendo que

ele não é um objeto, uma coisa ou simples matéria existente no mundo.

Na concepção marceliana a encarnação é o princípio de vinculação entre o Ser e seu

corpo, o homem e o universo. Essa é uma relação de mistério e realidade que se desvela

através da existencialidade do Ser e esse é o modo pelo qual o homem se vê personificado,

enquanto existente no mundo. Como o próprio Marcel declara:

116 “A encarnação, quer dizer, a relação ontológica de inerência que é, antes de mais, relação de encarnação

vivida a nível perceptível, foram colocadas em França por Gabriel Marcel. Tratava-se de analisar a presença carnal e sensível do mundo a nós e de nós ao mundo” (MERLEAU-PONTY, 1966, p. 312).

117 Um valioso estudo sobre ‘Le mystère de L’incarnation’ entre Gabriel Marcel e Merleau-Ponty pode ser encontrado na obra: “Le Scénario Cartésien: recherches sur la formation et la cohérence de l’intention philosophique de Merleau-Ponty” (AUBERT, 2005).

118 Cf. ST, p. 13; “La encarnación – dato central de la metafísica”.

Page 137: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

135

Em certo sentido eu sou meu corpo. Esta afirmação poderá talvez induzir alguém a pensar, que defendo uma teoria materialista. Eu só posso dizer que sou meu corpo desde que não me refira a essa coisa visível, manejável, operável que é o meu corpo para outrem. Este corpo que eu, recorrendo à imaginação, posso afastar de mim ao pensar que é um corpo entre tantos outros possuindo determinadas particularidades especificáveis, pressupõe aquilo que talvez tenhamos de nos resolver chamar corpo-sujeito um corpo que é minha própria maneira de existir sem dela poder me separar a não ser por abstração ou de modo completamente ilusório. Dizer que sou meu corpo e dizer que sou essa maneira de existir. Poder-se-ia dizer ainda que meu corpo é minha maneira de estar no mundo ou, então, de pertencer ao mundo (MARCEL, 1940, p. 30).

O corpo não é uma “coisa”, que contemplo diante de mim, não é uma extensão ou

objeto do qual possa fazer uso e descartá-lo a qualquer momento. No corpo, a dimensão do eu

está presente119, numa vinculação misteriosa e íntima, que não pode ser dissociada ou

reduzida à noção do aparente e do efêmero. A oposição entre sujeito e objeto corporal é

ultrapassada à medida que o Ser se revela transcendente – uma vinculação metafísico-

espiritual. De acordo com Marcel120, o Ser é “a encarnação do corpo e toda sua existência se

define e se situa em relação a ele” (2003, p. 12).

A oposição entre sujeito e objeto é transcendida. Mas, ao contrário, se parto desta oposição tratada como fundamental, não haverá mais malabarismos lógicos para unir esta experiência; inevitavelmente terá passado ou foi recusada, o que vem a ser a mesma coisa. Não se deve objetar que esta experiência apresenta um caráter contingente; na verdade, na realidade toda investigação metafísica exige um ponto de partida deste tipo de gênero. Não pode partir senão de uma situação que reflete sobre si mesma seu poder compreender-se (MARCEL, 2003, p. 14).

Não se deve pensar o Ser como um ente desencarnado. O homem não pode pensar-se

separado do seu corpo, como se fosse uma realidade abstrata ou exterior a si mesmo. A

relação eu-corpo é indivisa e insubstituível. Na prática, não posso distanciar-me do meu

corpo, porque ele está identificado e ligado a tudo aquilo que representa meu modo próprio de

ser; o existente que Sou.

119 Cf. DM, p. 15: “La encarnación, dato central de la metafísica. La encarnación, situación de un ser que se

presenta como ligado a un cuerpo”. 120 Cf. ST, p. 12: “Esto viene a significar que realmente no se puede disociar: existencia; consciencia de sí como

existente; consciencia de si como ligado a un cuerpo, como encarnado. En primer lugar, el punto de vista existencial sobre la realidad no parece poder ser otro que el de una personalidad encarnada; en la medida en que podemos imaginar un entendimiento puro, no hay para este posibilidad ninguna de considerar las cosas como existentes o no existentes”.

Page 138: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

136

A consciência existencial encontra-se ligada ao Ser encarnado. Minha relação com

meu corpo é que possibilita minha presença no mundo. Um modo de ser-presença, que situa o

homem numa dimensão físico-corpórea e lhe assegura um lugar no tempo e no espaço: o ser-

em-situação. Tratar o corpo apenas numa perspectiva objetiva é exilá-lo, aprisioná-lo e

subestimá-lo histórica, temporal e existencialmente. É reduzi-lo à condição de objeto pensado,

é tomá-lo abstratamente, como se, a rigor, não pudesse se tornar unidade vital, realidade viva

e experiencial.

Examinar se a encarnação é um fato, não me parece possível. É um dado a partir do qual um fato é possível (coisa que não é verdade com base no cogito). É uma situação fundamental, que em rigor, não pode ser denominada, rotulada, analisada. É precisamente esta impossibilidade que eu afirmo quando declaro, confusamente, que eu sou meu corpo, quer dizer: eu não posso tratar-me como um termo distinto do meu corpo, que estaria como em uma situação determinada. Como já havia dito, em outras ocasiões, desde o momento em que meu corpo é tratado como objeto da ciência, ao mesmo tempo me exílio e afasto do infinito (MARCEL, 2003, p. 14).

Em sua obra Être et Avoir (1933), Marcel faz grandes críticas ao objetivismo. Para ele,

o conhecimento objetivo é impessoal e despersonalizador do eu-corpóreo e suas relações à

medida que tenta limitar o Ser às dimensões cognitiva, metódica e conceitual. A relação entre

eu e meu corpo precede a todo tipo de saber e conhecimento que posso ter a respeito da minha

existencialidade121. A compreensão eu-corpo não deve ser reduzida à dimensão do abstrato,

do permanente e objetivamente definível.

A consciência individual não pode ser isolada dentro de si mesma. O existente,

enquanto ser encarnado, só pode afirmar a existência de si, dos outros e do mundo na medida

em que estes mantenham relação com ele, ainda que de modo indireto. A consciência

existencial implica num ato de pertença122, um estar-no-mundo, como ser corpóreo, que

121 Sobre a experiência desta relação nos diz Urbano Zilles: “O pensamento objetivo encontra seu limite refletido

sobre meu corpo. A unidade entre o eu e meu corpo é anterior ao meu conhecimento. Por isso não se pode expressar a existência por meio da abstração, nem por meio de conceitos. Todo conceito delimita, define um aspecto da realidade. Mas a existência não é uma parte, não é uma entre muitas possibilidades do homem, mas é indivisa. O existente sou eu, espírito encarnado, unidade vital. A rigor não posso distanciar-me do meu corpo enquanto meu, construindo uma separação. Não há algo como um olimpo para onde meu espírito se pudesse refugiar para fora do meu corpo. Meu corpo condiciona meu ser-no-mundo. Eu sou o existente encarnado num corpo aberto ao mundo” (ZILLES, 1988, p. 44).

122 Cf. GM II, p. 23: “Yo existo: esto quiere decir que poseo algo para darme a conocer o reconocer, ya sea por otra persona, ya sea por mí mismo en tanto que asigno para mí una alteridad ficticia; y todo esto no es separable del hecho de que “existe mi cuerpo” Por el momento, voy a expresarme de una forma que deseo que sea deliberadamente distendida, tal como lo hago cuando manifiesto “existe mi cuerpo”. De igual modo hablaré de una cierta presencia de mi cuerpo en mi mismo mediante la cual el hecho para mi de existir asume una consistencia de la que el, sin ella, estaría exento”.

Page 139: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

137

coloca o existente em condição de total abertura, liberdade, relação e participação na

realidade.

A existência não é um determinado modo do Ser, uma realidade que se mostra

caracterizável e definida objetivamente (MARCEL, 1940). Como descreve Josef Lenz, “o ser

como concreto inesgotável não pode chegar à função de um dado; não pode ser comprovado,

computado, denominado, senão reconhecido, ou melhor dizendo, ‘saudado’” (1955, p. 223).

Este é um tipo de vivência onde a busca pelos acessos concretos ao mistério ontológico do ser

torna-se limitada.

A dimensão do Ser só é acessível através da iluminação de certas realidades que não

podem ser objetiváveis, porque são individuais e/ou espirituais123 e pessoais; de uma realidade

ontológica que só pode ser acessada através de experiências privilegiadas que, por terem

formas mais nítidas e claras, nos aproximam dela. Sobre o acesso a estas dimensões, Régis

Jolivet nos diz que

A elucidação dos dados propriamente espirituais, como a fidelidade, a esperança e o amor, nos quais o homem experimenta simultaneamente e no mais alto grau o conflito interior que o dilacera e as exigências absolutas que de dentro o solicitam, essa elucidação permitir-nos-á reconhecer, não teoricamente e no registro do pensamento abstrato, cuja objetivação pode ser “um certo permanente ontológico”, um permanente que dura e em relação ao qual nós duramos, um permanente que implica ou exige uma historia, em oposição à permanência inerte ou formal de uma lei ou da pura validade (JOLIVET, 1953, p. 364).

O teórico nos fala de um ato de busca, que implica o reconhecimento de que a

existência se constitui num modo próprio do Ser, que não pode estar superposto à imposição

de determinados predicados e formas de enquadramentos e reducionismos. Como diz o

próprio Marcel, “a existência não é um predicado do Ser” (1956, p. 33), ou uma realidade que

deve existir fora ou para além do homem124. O Ser é sua própria existência encarnada. Existir

é Ser, pois a existência significa presença absoluta.

123 Cf. ST, p. 111: “[...] debiese buscar más bien en la iluminación de ciertas realidades estrictamente

espirituales, como la fidelidad, la esperanza y el amor [...]”. 124 Cf. DM, p. 31-33: Gabriel Marcel descreve os pressupostos da sua compreensão dizendo que: “Yo creo que

basta ahondar un poco para ver que, aun presentadas así, as cosas son todavía demasiado simples y esquemáticas y el dualismo de lo que he denominado conciencia inmediata, por una parte, y pensamiento propiamente dicho, por otra, no es verdaderamente tal como lo he definido. Y es que, en efecto, a partir del momento en que el pensamiento se ha construido, la conciencia inmediata revela ser solamente una abstracción contradictoria en si [...] Creo que así eludimos el dilema que hace de la existencia un predicado o bien una especie de cualidad ontológica que desde fuera se añada a lo existente. En consecuencia, es solo la intervención del pensamiento lo que sustituye la posición irreductible de un dado como existente con la noción de un juicio de existencia que versa sobre un objeto. Pero es preciso comprender que es consciencia inmediata en que

Page 140: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

138

Em tese, para Gabriel Marcel, o Ser não pode perder-se no horizonte abstrato da ideia.

Enquanto sujeito de ‘carne e osso’, sua existência se afirma na dimensão concreta da

experiência humana; num senso de pertença e presença no mundo; num indubitável

existencial, que não é passivo de ser alcançado, em sua totalidade, por qualquer inferência ou

demonstração objetiva, mas, que se afirma enquanto estatuto metafísico irredutível do

mistério, que é o homem.

As análises de Gabriel Marcel, em torno da temática da encarnação propõem uma

articulação entre ontologia e antropologia125. A atenção e valorização dadas à dimensão

corpórea do Ser são frutos de uma percepção onde se compreende que “[...] o problema da

realidade do corpo revela-se, pois o problema central, da solução do qual tudo depende”

(MARCEL, 1927, p. 125).

De acordo com o autor, não se pode separar existência, consciência, e a relação do

Ser com seu próprio corpo e mundo (MARCEL, 2003). O interesse de Marcel está voltado

para saber quem é o homem e em que consiste a vivência humana. Esta é uma investigação

metafísica, que se sente exigida pela natureza ontológica do Ser e que passa pelos

desdobramentos antropológicos de sua existência. É um olhar que pretende se revelar numa

concretude anunciadora e portadora dos aspectos constituintes da própria condição humana126.

E é uma busca de sentido e desvelamento, que atravessa as dimensões do sentir da

corporalidade, sua mediação e mistério encarnados.

todavía no hay dualismo entre lo dado y una forma (?) de la existencia, no puede ponerse sino mediante un acto en virtud del cual el pensamiento reflexivo adquiera conciencia de lo que venia de el mismo en el acto precedente y mediante el cual procura hacer abstracción de eso. En lo sucesivo denominaré experiencia-límite esa posición como existente (en que la existencia no se define como predicado), y diré que la experiencia-límite no puede pensarse más que por un acto de reflexión que verse sobre el dualismo entre el juicio de existencia y aquello sobre que versa este juicio. Esta experiencia-límite, en tanto que el sujeto reflexivo pretende desprender su contenido objetivo, se reduce a un contacto entre el cuerpo ligado a la conciencia perceptora y un dado exterior. El pensamiento reflexionante pone, pues, el juicio de existencia como siendo la transposición de la experiencia-límite al orden intelectual (donde hay objetos y juicios que versan sobre esos objetos), y esto es válido para cualquier juicio de existencia. Desde este punto de vista se comprende que de nada pueda decirse que existe salvo de lo que pueda entrar en relaciones de contacto, en relaciones espaciales, con mi cuerpo. Será, si se quiere, una definición”.

125 Conforme Maurice Merleau-Ponty, “Marcel é o pioneiro quanto à introdução da temática do corpo próprio, convertendo-o num dado central do seu pensamento” (1966, p. 12).

126 Cf. HV, p. 65,66: “El término “condición” es de los que conviene definir con gran cuidado. Quizá hay que ver la condición humana un cierto régimen vital y espiritual que no podemos infringir sin exponernos a perder no solo nuestro equilibrio, sino incluso nuestra integridad [...] Quizá la condición humana se caracteriza no solo por los riesgos que comporta y que están ligados, después de todo, a la vida misma considerada hasta en sus más humildes manifestaciones, sino también – y más profundamente todavía – por la necesidad de aceptar estos riesgos, y de prohibirse creer que sería posible, y en última instancia ventajoso, llegar a suprimirlos. La experiencia nos enseña además que el riesgo solo puede ser rechazado aparentemente, o más bien que puede que a fin de cuentas uno se condene así a perder lo mejor de aquello que, por esta inhibición, se creía salvaguardar”.

Page 141: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

139

2.1.1.2 O sentir da corporalidade: o homem como ser encarnado

Desde as primeiras reflexões de Gabriel Marcel, no “Journal Metaphysique” (1927),

vê-se que seu pensamento gravita entre as categorias do Ser e do sentir, do ter e do existir

humano. Em sua análise “[...] el sentir é planteado como modo de la participación”

(MARCEL, 1951a, p. 104) e presença do Ser no mundo. Na base da pergunta “quem sou eu?”

encontra-se implícita a inquirição em torno da relação que há entre meu Ser, como modo de

existência, e a dimensão corpórea, enquanto o estar do homem no mundo, a encarnação.

Na obra “El Mistério del Ser” (1951a), a existência humana é tomada como primado

da relação entre o “Ser e o objeto, o corpo e o isso”. Quando vista pelo prisma da

instrumentalidade, a relação entre o homem e seu corpo corre o risco de cair num vazio que a

despersonaliza e a contradiz. A encarnação, enquanto presença, não pode limitar-se ao espaço

físico nem à dimensão do ter e da posse. Assim como o Ser não pode estar reduzido à

categoria do “isso”, o corpo não deve restringir-se às noções de função, objeto e/ou coisa.

O homem não pode ser concebido como uma entidade incorpórea. Sua corporalidade

não é algo impessoal, nem uma mera substância ou extensão de sua existencialidade. Por não

estar condicionado ao tratamento de um objeto é que Marcel compreende o corpo “enquanto

um tipo de realidade essencialmente misteriosa, que não se deixa reduzir as determinações

que pretendem apresentá-lo como objeto, por mais completas que sejam” (1951a, p. 104).

A relação eu-corpo precisa acontecer pelo primado da compreensão dialética corpo-

sujeito e, não, pelas fórmulas objetivistas corpo-objeto e eu-isso. Consideramos importante

uma consciência que nos coloque diante da necessidade de refletirmos acerca da sensação e

do modo como ela orienta a condição do homem no mundo e suas variadas formas de

entreveramento.

A relação entre corpo e sensação é uma das mais difíceis de ser distinguida.

Geralmente, nossa pretensão do sentir tropeça na dificuldade de nos desligarmos da ideia de

que o corpo é um mero aparato de nossa própria condição de vida. Em virtude desta falta de

percepção, acabamos por reduzir nossa dimensão corpórea às categorias de função e

instrumentalização.

A noção cartesiana do cogito (DESCARTES, 1982), do “penso, logo existo”

instaurou, na mentalidade moderna, um divórcio entre o homem e as sensações do seu próprio

corpo. Esta posição de objetividade contribuiu para transportar “o homem das luzes” para a

escuridão das ruas estreitas de sua própria percepção corporal. O “eu penso” passou a ser a

regra e o senhor de todo critério de validação epistêmico-transcendental. Um “cogito guardião

Page 142: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

140

do limiar do válido” (RICOEUR, 1996, p. 51), que acabou por conduzir o homem pela porta

entreaberta de um processo de suspeita, anulação e negação de sua sensitividade e

transcendência127. Um conflito entre o “penso, logo existo” e o “eu-sinto, apreendo, sou e me

constituo”.

O homem, na filosofia cartesiana128, é apresentado como um ser desencarnado, alguém

que aparece a nós, sem corpo e desprovido de todo e qualquer tipo de sensação físico-

sensitivo e emocional; como um Ser, para quem a dúvida toma o status de certeza, enquanto

guia e mentora da leitura de si e de sua própria realidade.

O homem não se esgota na dimensão cognitiva. O Ser se desvela através de um

indubitável existencial129. Movido por estas compreensões, Gabriel Marcel opõe-se ao cogito

cartesiano, quando afirma: “el “yo pienso” no es uma fuente, es um obturador” (MARCEL,

2003, p. 28) do Ser e da existência humana. O problema ontológico não deve ser tratado,

senão, para além das distinções e polaridades do conhecimento racionalista. Em Existence et

objectivité, ele diz:

O ‘eu existo’ assim entendido e separado de toda acepção privativa, tende a confundir-se com uma afirmação como ‘o universo existe’, sendo o universo, também ele, a negação de ‘algo particular’, sem por isso reduzir-se necessariamente a uma generalidade abstrata (MARCEL, 1927, p. 313).

Compreendemos, assim, que nenhum pensamento deve refugiar-se em si mesmo. A

unidade entre o existente e a existência só pode ser recuperada a partir do próprio homem e da

relação consigo, com o outro e com o mundo à sua volta. Por não ser um fim em si mesmo é

que o homem precisa colocar-se para além da inconsistência da relação sujeito e objeto; com

127 Cf. ST, p. 157: “El cartesianismo implica una disociación tal vez ruinosa en si misma de lo intelectual y de lo

vital, de la que resulta una depreciación de uno y una exaltación de otro igualmente arbitrarias”. 128 Conforme George Gusdorf; “Après Descartes c’est Kant qui a acheminé la philosophie vers la pensée

impersonnelle. L’homme n’est rien d’autre qu’un objet de pensée. Tout la pensée kantienne se préoccupe des problèmes de la connaissance, tandis que as critique vise a instaurer les pré-conditions nécessaires à un savoir, objectif et vérifiable. L’esprit incarné demeure dans la pénombre, alors que le monde lui-même n’est plus qu’un être de raison. L’épistémologie rationaliste postule des le départ la validité exclusive de as méthode: elle fait de l’univers un être de la raison d’où la présence humaine se trouve évadée, en correspondance avec le sujet rationnel, un autre être de la raison, déserte par la plus part des pensées propres à l’homme concret” (GUSDORF, 1956, p. 295).

129 O indubitável é a própria existência encarnada. Uma terminação na qual, segundo Paul Ricoeur, “Encontramos pelo menos três formulações sobre esse primado da existência: tomada do lado do objeto, dir-se-á que ela marca a indistinção entre a existência e o isto, sob pena de fazer da existência um predicado, a caracterização de algo qualquer captado separadamente do seu existir. Tomada do lado do sujeito, dir-se-á que a existência é o há indiviso, que é igualmente universo, corpo, eu” (RICOEUR, 1996, p. 52).

Page 143: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

141

uma abertura de si, que se move na direção do infinito;130 e se mostra a partir da relação que o

humano tem com sua própria dimensão corpórea.

A vinculação homem-corpo é íntima, indistinguível, misteriosa e indivisa131. Com base

nesta noção de vínculo e no entendimento de que meu corpo não é um mero objeto, Marcel

afirma que “eu sou meu corpo” (MARCEL, 1951a, p. 104). Do construto que antes era de

imposição, o eu-objeto, se transforma numa relação de inter-posição; um encontro de

descobertas que pretende habilitar o homem a se afirmar, cada vez mais, como ser concreto.

O propósito do estudo marceliano, sobre a sensação, é contribuir para levar o homem à

percepção desveladora de sua condição de Ser encarnado. Neste sentido, o sentir deixa de ser

um tipo de conhecimento exógeno, que se dá de fora para dentro e se torna uma compreensão

endógena e ativa do Ser. Segundo o olhar da concepção empirista132, no sentir, o homem

apenas assume a função de catalogador de suas próprias sensações. Ele é um ser passivo e

receptor de determinados dados e sentimentos. Na compreensão marceliana, o Ser é agente

ativo133 de todo processo. Por estar ligado ao seu corpo, o homem não apenas recebe, mas

também, participa dos processos construtivos e compreensivos de suas próprias sensações e

descobertas.

No Racionalismo,134 a busca de critérios de qualificação objetivos leva o homem à

abstração de si, do seu corpo e de sua visão de mundo. As sensações, para Marcel (1956),

apresentam uma profunda conexão com a própria existência do Ser. Por se ver unido ao

130 Cf. MS, p. 104: Gabriel Marcel nos diz que o contrário desta abertura também pode acontecer, pois, “[...]

cuando se trata de imaginar una relación exterior entre mi cuerpo y yo, invariablemente se llega a una contradicción que se traduce por la regresión al infinito”.

131 Cf. RI, p. 31; “[...] être incarné, c’est s’apparaître comme corps, comme ce corps-ci sans pouvoir s’identifier à lui, sans pouvoir non plus s’en distinguer – identification et distinction étant les opérations corrélatives l’une de l’autre, mais qui ne peuvent s’exercer que dans la sphère des objets”.

132 “Diretriz filosófica que faz apelo à experiência como critério ou norma da verdade e que, por isso, assume apalavra ‘experiência’ no significado. Em geral se caracteriza pelos seguintes traços; 1. Nega o caráter absoluto da verdade, ou menos, da verdade que é acessível ao homem. 2. Reconhece que toda verdade pode e deve ser posta a prova, logo, eventualmente modificada, corrigida ou abandonada. O empirismo não se opõe a razão ou não a nega senão nos limites em que a própria razão pretende estabelecer verdades necessárias, isto é, tais que valham absolutamente de forma que seja inútil ou contraditório submetê-las a controle” (ABBAGNANO, 1970, p. 308-309).

133 “Para Marcel hay que entender la sensación como un acto: el acto de acoger o hacer participar en la propia realidad lo otro. Esta descripción de la sensación pone de relieve que es ‘un inmediato puro’, es decir por su esencia no mediatizable, y es necesario entender por esto un dato [...] Este inmediato no es especificable mediante un conocimiento objetivo; no es posible decir que es tal o cual cosa porque, dada su inmediatez, es anterior a las divisiones y a las mediaciones” (PÉREZ, 2001, p. 61).

134 “Em geral, a atitude de quem confia nos procedimentos da razão para a determinação de crenças ou técnicas em determinado campo [...] Na sua significação genérica, pode ser usado para indicar qualquer orientação filosófica que apele para a razão” [...] (ABBAGNANO, 1970, p. 789-790).

Page 144: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

142

corpo, o Ser deve sentir-se imbricado e exigido a agir como participante e construtor de sua

própria realidade, condição e existencialidade físico-histórica.

O sentir é o elo de conexão entre o homem e sua existência, sua encarnação e

participação no mundo. É um dinamismo das experiências-núcleos, que tiram o homem de um

ciclo fechado (MARCEL, 1951a) para colocá-lo na direção do infinito de sua própria vivência

e condição de Ser encarnado. É um espiral aberto entre a sensação, a existência e a

corporalidade, que aponta para aquilo que o Ser é, em toda sua potencialidade, presença e

possibilidade, o Ser-mais.

A concepção de homem em Marcel compreende a unidade eu-corpo. Implica numa

atitude de recusa à dimensão reducionista do Ser, que visa recolocá-lo diante do primado de

sua própria corporalidade. Caracteriza-se como um conhecimento imediato e pré-objetivo,

que se anuncia como princípio portador de um olhar antropológico. Marcel concebe, ainda, o

modo de compreensão pelo qual o homem considera a relação corpo-sensação como fulcro de

uma mediação que pretende colocá-lo em direção ao mistério de sua condição de Ser-

encarnado.

2.1.1.3 A mediação da corporalidade: o homem como ser concreto

A prioridade que o homem concede ao corpo, na experiência encarnada, leva,

portanto, o Ser a buscar a unificação entre o sentimento que se tem e a compreensão do que se

é. Esta é uma maneira própria de existir, estar e pertencer ao mundo. Sob este ponto de vista,

o corpo apresenta-se como fulcro portador imediato da mediatez entre o eu, as coisas e os

demais seres.

Através da consciência perceptiva, o homem se dá conta de que o vínculo eu-corpo

pode se transformar numa relação corpo-objeto. Por estar a vinculação eu-corpo situada no

mundo da prática, Marcel (1927) nos adverte sobre o risco de concebermos a experiência da

“mediação” corporal como uma mera “instrumentalização” da nossa dimensão física.

Gabriel Marcel (2002a) entende que o homem contemporâneo atravessa uma profunda

crise de sentido humano e existencial; e passa por um processo de degradação humana e

esvaziamento da noção do que é o Ser. Este teórico discute a realidade de um mundo em crise,

que se mostra através dos conflitos humanos, pessoais, governamentais, institucionais,

sociais, educacionais e relacionais; de “Um mundo em guerra consigo mesmo” (MARCEL,

1951a, p. 32), onde os “Homens se vêem Contra o Humano” e a favor do espírito de abstração

(MARCEL, 1951b).

Page 145: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

143

O espírito de abstração e ambiguidade existencial,135 desta época, é reflexo da crença

exacerbada do homem nas descobertas científicas e aparatos tecnológico-industriais. É

reflexo, ainda, da noção de que, através do aperfeiçoamento dos processos produtivos, se

garantiria a sobrevivência, a subsistência e o desenvolvimento pleno da raça humana. Ao

contrário do esperado, o que se viu foi o homem condicionado por processos técnicos,

automatizantes, despersonalisadores, reprodutivistas, burocráticos, alienadores e

comprometedores da dignidade e condição humana136 do Ser.

As reflexões de Marcel (1955) sobre a corporalidade nascem neste contexto. Ao falar

sobre a condição metafísica do homem moderno, o autor denuncia que a “teoria da sensação”

foi substituída pela ditadura da instrumentalização. O homem perdera a visão de si, da vida e

do corpo. Este parece ser um deslocamento conceitual e situacional que traz as marcas do

vazio e da perda relacional entre o homem, seu corpo, o outro e o mundo à sua volta.

A relação eu-corpo foi substituída pela máxima de corpo-instrumento. O eu-corpóreo

cedeu lugar ao eu-objeto, um uso possessivo do corpo que o degrada e o reduz às dimensões

de função e instrumento. A partir destas compreensões, Marcel apresenta as linhas descritivas

do “Esbozo de Una Fenomenología Del Tener” (MARCEL, 2003). De acordo com o filósofo,

a noção de corporalidade precisa ser pensada a partir da relação entre o Ser e o Ter.

A investigação de Marcel a respeito da dimensão corpórea do homem trata sobre a

maneira como a técnica137 passou a exercer controle sobre seu criador138 e a determinar os

aspectos constituintes de sua condição no mundo. A inversão relacional do ser e ter tornou-se

uma correlação indistinta do construto corpo-objeto. Este é um movimento de

descaracterização que, não só despersonaliza a ideia do Ser, como contribui para a

supervalorização da noção do ter; o que anuncia o conflito entre o ter-possessão e o ter-

implicação.

135 Cf. GM, p. 33: “[...] en un mundo mecanizado, desapasionado, en el que quizá hasta dejara de sentir cualquier

cosa, y donde los mismos amos llegaran a ser completamente insensibles, es decir, codicia ni ambición, que son todavía hoy las causas de toda conquista, cualquier que ésta sea [...] Hay sectores de la vida humana en la actualidad en los que la automatización se aplica no solo a una serie de técnicas determinadas, sino a lo que antes se habría llamado vida interior y que, en cambio, se ha convertido en la vida más exterior posible”.

136 N. Berdiaev “O coração suporta mal o contato gelado do metal [...] O mundo se desumaniza, e a máquina não é senão uma projeção desse processo” (BERDIAEV, 1933, p. 36, 50).

137 De acordo com Ortega y Gasset, “A tecnização destrói a beleza da antiga cultura, a individualização, a originalidade; tudo se torna uniformemente coletivo, todas as coisas são fabricadas sob um mesmo estilo, perdendo assim a marca da personalidade” (ORTEGA Y GASSET, 1963, p. 6).

138 Sobre esta inversão nos diz Spengler: “A criatura se está erguendo contra seu criador. Assim como dantes o Homem do microcosmo se alçava contra a Natureza, agora a Máquina do microcosmo se revolta contra o Homem Nórdico. O senhor do Mundo se está forçando – forçando a todos nós, quer percebamos isto, quer não – a seguir o seu curso. Os cavalos arrastam para a morte o vitorioso cujo corpo se despedaça” (1945, p. 349).

Page 146: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

144

No ter-possessão, o corpo é tratado como um simples objeto; como uma extensão

instrumental pela qual o homem manipula as coisas do mundo e realiza suas ações. No ter-

possessão o Ser não se vê encarnado, presentificado e situado no mundo. Sua intenção é

dominar e, não, apreender o sentido dos aspectos que estão presentes na sua realidade. No ter,

tudo se coisifica, perde seu conteúdo, valor, encanto e significado. As coisas e os homens são

esvaziados à medida que passam a ser vistos como mecanismos transmissores e reprodutores

da visão mecanicista e objetiva do mundo.

Movida pelo ter, toda apropriação humana se transforma numa relação de poder e

dominação; numa hierarquização que condiciona o outro à perspectiva do “isso” e da

instrumentalidade. O outro, que devia estar relacionado a mim, passa a viver em função de um

eu, que o vê apenas como um mero objeto de prazer, satisfação e manipulação. A relação do

ter-possessão com o Ser é de obliteração139 e alienação140 daquilo que o homem é no mais

profundo do seu ser.

Ao contrário da noção do ter-possessão, no ter-implicação o Ser se situa no mundo, se

volta para a dimensão interior. Por sentir-se implicado, ele pretende construir uma vivência

que lhe permita encontrar a unificação de sua alma e a coerência de seus atos. Nesta

perspectiva, o Ser se compromete a buscar, através da experiência eu-corpo, o âmbito

espiritual da relação amorosa consigo mesmo, com o outro e com o universo. Nesta relação

nada se coisifica, pois tudo tende a presentificar-se e a valorizar-se humana e

existencialmente.

No ter-implicação, Marcel nos diz que tudo acontece de modo contrário ao que se dá

na perspectiva do ter-possessão. “Aqui parece que todos os caracteres que acabo de ilustrar

desaparecem. Transportando-nos do extremo dessa espécie de escala até o abstrato e o

concreto” (MARCEL, 2003, p. 151). No pensamento marceliano, o ter tem seu valor, todavia,

não exerce controle ou supremacia sobre o modo como o homem decide sua condição

metafísica. No fundo, o Ser passa a compreender que no ter-implicação se anuncia o

reconhecimento do indubitável existencial. Compreende, ainda, o estruturante de uma

vivência que rejeita toda forma de reducionismo dualista, que pretende degradá-lo ou

condicioná-lo físico e humanamente. 139 Cf. ST, p. 159; “Toda técnica supone un conjunto de abstracciones previas que la condicionan, pero se revela

impotente allí donde se trata del ser un su totalidad. Esto podría prolongarse en muchas direcciones. En la raíz del tener, como del problema o de la técnica, hay cierta especialización o especificación de si, unida por otra parte a la alienación parcial de que hablamos hace un momento”.

140 Cf. ST, p. 152; “[...] o tener como tal parece tender a anularse en la cosa poseída inicialmente, pero que ahora absorbe a aquel mismo que creía en un principio disponer de ella. Parece ser proprio de la esencia de mi cuerpo o de mis instrumentos tratados como posesión el tender a suprimirme a mi que los poseo”.

Page 147: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

145

Ao ressituar a temática da encarnação, através da defesa da indissociabilidade do eu e

do corpo, Marcel assinala que a reflexão acerca do eu-corpo passa, necessariamente, pelo

âmbito da mediação141. Ao invés de tentar elucidar as dimensões da corporalidade, ele propõe

o estudo sobre o papel que a mediação exerce sobre a constituição do ser concreto, sem

querer, contudo, reduzi-lo ou esgotá-lo142. Sua abordagem sobre a temática da mediação não

se apresenta como um pensamento afirmativo e dogmático. Sua construção anuncia-se como

uma dialética entre a interioridade e a exterioridade; e pretende contribuir para levar o homem

a sair dos becos estreitos do construto corpo-objeto para as ruas espaçosas e iluminadoras da

relação eu-corpo. Este é um movimento em direção ao desvelar da própria condição de ser

encarnado; é o mistério ontológico.

2.1.1.4 O mistério da corporalidade: o homem como ser orientado para o absoluto

“A encarnação é a situação fundamental de meu ser-no-mundo” (ZILLES, 1988, p.

47). Por compreender-se como situado na realidade o homem confronta-se com uma visão

diádica, que gravita entre o risco de manter-se preso à concepção reducionista de si e à

possibilidade de acessar os aspectos constituintes da dimensão mais profunda do Ser.

Para Gabriel Marcel, o mistério da encarnação desfaz todo simulacro entre a existência

e a objetividade. “Existir já não quer dizer sinceramente estar aqui ou estar em outra parte,

provavelmente quer dizer transcender em forma essencial a oposição entre o aqui e a outra

parte” (MARCEL, 1951a, p. 222). Neste sentido, a corporeidade passa a ser vista como a

expressão de uma presença que ultrapassa os limites das noções de espaço, tempo e matéria.

Mistério do Ser e presença são aspectos de uma mesma realidade. O existir não é uma

presença que me comporta, determina e totaliza. Existir é uma presença criadora que me

141 Ángel Vassallo no “Itinerario de la Realidad en el Diario Metafisico de Gabriel Marcel” comenta: “Tomada

en si misma, absolutamente, la sensación es una afección, no una noticia sobre algo, o traducción de otra cosa. Sentir no es recibir un mensaje, ni traducción ni interpretación de un objeto. Visto desde dentro, sentir no es recibir un mensaje sino participar inmediatamente. Hay en la sensación un ser parte en lo sentido, un asimilar el objeto, segundo la fórmula escolástica: es decir, un venir a ser lo mismo que, asimilarse a aquello que se siente: un venir a ser la misma cosa que o sentido [...] Resumamos esto: Para que la sensación se haga de algún modo inteligible, es necesario que el espíritu logre instalarse de golpe en un mundo que no es un mundo de ideas. Si es posible mostrar – como lo hemos intentado – que la sensación no es susceptible de ser concebida como un mensaje, como una comunicación entre dos estaciones telegráficas distintas, es necesario que ella sea una participación inmediata de lo que usualmente llamamos el sujeto, en un ambiente o clima (à un ambiente, dice Marcel) del que ninguna verdadera frontera lo separa” (VASSALLO, 1945, p. 112).

142 Cf. ST, p. 145; “Se impone, pues, un análisis. Pero debo adelantar que es análisis no será una reducción. Nos mostrará, por el contrario, que nos hallamos en presencia de un dato opaco, que tal vez no podemos siquiera cercar totalmente. Pero el reconocimiento de un irreductible constituye ya en el plano filosófico un paso extremadamente importante y que puede incluso transformar en algún modo la conciencia que lo efectúa”.

Page 148: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

146

envolve, afeta e desvela-me através da mediaticidade das experiências de encontro e

comunhão. Separar as categorias do corpo, presença e mistério é deixar-se conduzir pelas

teorias que advogam a favor dos dualismos eu-isso, corpo-coisa e corpo-instrumento.

A interface eu-corpo reconhece a dimensão do mistério como parte integrante da

metafísica do Ser. No pensamento metafísico marceliano, o mistério situa-se na relação entre

o eu-corpo e sua transcendência (MARCEL, 1940). Na experiência eu-corpo, o Ser não se

deixa comprimir pela totalidade. Na dimensão do mistério da encarnação, reúne os aspectos

do íntimo e do externo, do visível e do sentido, do quotidiano e da vida, do imanente e do

transcendente. Esta é uma experiência que Rilke retrata na sua poesia, quando, nas Elegias de

Duíno, se expressa:

Tão esforçados contra a noite forte lançam suas vozes para o riso que arde mal. Ó mundo rebelado cheio de negação. E ele respira o espaço em que andam as estrelas. Olha, isto não era preciso e podia, estranhamente entregue à distância, no desmedido dos longes, longe de nós, mover-se. E agora digna-se oferecer-se à nossa face como o erguer de olhos da amada; abre-se em frente de nós e dissipa talvez em nós o seu ser. E nós não o valemos. Talvez roube aos anjos qualquer força, que o céu estrelado ceda ao nosso encontro e penda pra dentro do nosso fado turbo. [...] Quem é que não negou isto? Quem é que não arrastou pra dentro deste elemento inato noites falseadas, más, noites imitadas, e nelas se não deleitou? Têm ser e nada mais que ser, excesso de ser, mas não tem cheiro, nem gesto (RILKE, 2003, p. 284-285).

Enquanto forma de ser-no-mundo, o homem subtrai-se de toda representação

intelectual que pretende mantê-lo no campo da “coisa”; de uma posição que evoca as

dimensões do existir, sentir e ser como dados integrantes da vivência, que comporta o sensível

e o inteligível, como aspectos indissolúveis do pensamento existencial. Marcel nos diz:

[...] considero meu corpo não só como corpo, mas como coisa corporal, senão enquanto meu, ou como presença sólida e globalmente experimentada, que em conseqüência não só se deixa reduzir – ao revés dos objetos enquanto puros objetos de saber – a um simples aspecto, ou a um conjunto de aspectos ligados entre si; por conseguinte isto pode expressar-se dizendo que meu corpo está dotado de um conteúdo vivido, e enquanto as outras coisas são evocadas por mim como existentes lhes confiro por analogia uma espessura dessa ordem. Porque a complicação surge desta espécie de irredutível dualidade em virtude da qual o existente é de uma vez uma coisa e algo mais que uma coisa [...] Todo ser, na medida em que está

Page 149: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

147

dotado de memória, participa da atividade transformadora pela qual passa o visível ao invisível (1951a, p. 223-224).

A dimensão do existir não se esgota no dado e no aparente. “A existência é a

especificação de um ato fundamental que seria o ato de Ser” (MARCEL, 1951a, p. 225). O

verbo existir significa emergir, surgir e transcender. O Ser não se concebe na perspectiva da

especificação ou da sinopse de um quadro conceitual. A existência do Ser só é apreendida

concretamente. Seu corpo é o lugar de acesso; e sua vivência, o testemunho do chamado que o

impulsiona à busca de sua revelação mais imediata, profunda e verdadeira.

No mistério da encarnação, Ser e sentir, presença e distância, real e existencial,

mediação e imediatez, imanência e transcendência, são aspectos de uma realidade vivencial

que não podem ser caracterizados. “Uma espécie de contradição efetiva que permite definir

minha relação com meu ser” (MARCEL, 1951a, p. 226). A descoberta do meu corpo é,

decerto, uma revelação do meu Ser; é um achado que abre, ao homem, a possibilidade de

apreender-se como um existente verdadeiramente situado no mundo. “É, portanto, nas

experiências existências que nós apreendemos o Ser na sua imediata realidade concreta e que,

ao mesmo tempo, tomamos consciência da sua afirmação” (JOLIVET, 1953, p. 364).

A reflexão marceliana, em torno do mistério da corporeidade, nos chama a atenção

para a construção de uma ontologia “onde o ser não é afirmado, mas se afirma a si mesmo”

(MARCEL, 1933, p. 267) através da encarnação. Este configura-se como um modo de

apreensão, onde a relação eu-corpo transcende os domínios da razão à medida que resiste a

quaisquer tentativas de redução, enquadramento ou esvaziamento.

Movido por um olhar aberto, Marcel (1987) nos convida a pensar a relação entre o

homem, seu corpo e o mundo pelo prisma inexaurível, de um Ser que só é acessível por meio

da autêntica experiência ontológica; por uma vivência que não se limita ao conjunto do

imediatamente dado, porque está situada entre as dimensões do Ser, que a cada dia se anuncia

como presença e mistério.

Neste sentido, Gabriel Marcel figura como “o filósofo francês que se impôs a tarefa de

repor o corpo no lugar de honra que lhe compete a meditação filosófica” (GUSDORF, 1956,

p. 258). Sua contribuição não pretende ser reconhecida como a última palavra sobre o assunto.

Sua abordagem se anuncia de modo totalmente original, quando devolve à dimensão corpórea

do Ser sua dignidade ontológica, face aos construtos143 dualistas e objetivistas que a

143 Trata-se, especificamente, dos construtos do Idealismo e do Cartesianismo. Contra o Idealismo, Gabriel

Marcel advogou sobre a necessidade de distinguir entre a existência e a objetividade. Por considerar que a existência não pode funcionar como o termo do pensar, é que Marcel compreende que a existência não pode

Page 150: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

148

despersonalizam.

Sua crítica à redução do corpo como instrumento, seguida da ênfase em torno da

encarnação, pretende nos situar na realidade de um homem que não se esgota no registro do

pensamento lógico-abstrato; de um Ser que se desvela como mistério integrador,

potencializador e itinerante da própria existência; de uma ontologia, onde se atesta, que “sem

o mistério, a vida seria irrespirável” (MARCEL, 1940, p. 198).

2.1.2 Itinerância: o homem como ser a caminho

“O Ser é um concreto inesgotável que não pode ser verificado, mas tão somente

reconhecido, como se reconhece uma pessoa, e mesmo até menos reconhecido, apenas

saudado” (MARCEL, 1935, p. 13-14). Na intenção de promover esta ‘saudação’ ao Ser é que

reconhecemos a vivência da itinerância como uma fonte inesgotável de possibilidades de

autodesvelamento do homem face à sua condição de Ser a caminho. Ao tratar da dimensão

itinerante da existência humana, propomos o estudo a respeito da condição itinerante do ser

em situação; a problematização da temporalização da itinerância humana diante das diferentes

formas de viver o tempo, à luz do cuidado permanente do processo de apreensão da realidade

do eu, que se dá entre a crítica do saber absoluto e a inteligibilidade do Ser.

2.1.2.1 A condição itinerante do ser em situação

A formação existencial do Ser se faz a caminho. Ela é fruto de uma consciência aguda

de seu próprio inacabamento e incompletude. A existência humana, enquanto experiência

itinerante, é descrita, por Gabriel Marcel, como a “condição fundamental de um Ser viajante”

(MARCEL, 2005, p. 17).

A viagem, da qual nos fala Marcel, não se limita à simples noção de uma evolução.

Por mover-se no âmbito da amplitude, ela comporta a busca do homem por uma consciência

cair em abstrações gerais, como se não passasse de um predicado do sujeito. Sobre o Cartesianismo, Marcel afirma que a compreensão sobre o que é o homem e sua existência não pode se esgotar nas conclusões do seu próprio pensamento. “A existência, ou seja, a consciência que eu tenho de mim como existente, impõe-se-me irresistivelmente, como consciência de mim, ligado a um corpo. O Cogito cartesiano, segundo o qual a primeira evidência se reduz à da minha existência, como pensamento (eu penso, portanto existo; eu sou pensante; eu sou um pensamento) é tudo o que há de mais contrário à experiência. De fato, o existente sou eu enquanto encarnado; além disso, eu só poderei afirmar a existência de qualquer coisa, na medida em que essa coisa se encontra relacionada com o meu corpo e é susceptível de ser posta em contato com ele, mesmo que seja indiretamente (MARCEL, 1933, p. 9). Em tese, acrescenta Marcel: “no fundo, admito que o pensamento se encontra ordenado para o ser da mesma forma que o sentido da vista se encontra ordenado para a luz” (1947, p. 319).

Page 151: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

149

que o ilumine e o guie, para além de suas próprias determinações. Na compreensão deste

autor, entende-se que conformar-se a padrões e regulamentos abstratos significa um

retrocesso e, não, um avanço. A existência humana não se afirma no cumprimento de

obrigações contraídas em estágios de vidas anteriores144. Sua confirmação acontece por

princípios e critérios transcendentes que exigem o fazer e a coerência de todos os aspectos da

existência.

O homem que se realiza na existência é, em si, expressão do mistério ontológico.

Mesmo como ser-em-situação, ele não está condicionado às noções de espaço, tempo ou

circunstância. Enquanto Ser viajante, o homem não caminha neste mundo em direção a outro

universo; sua intenção não é herdar ou alcançar uma pátria ou reino encantado. Sua pretensão

é fazer-se, constituir-se, desvelar-se e ressignificar-se, enquanto humano, em suas

potencialidades e possibilidades.

Por reconhecer que há no homem um inesgotável concreto, Marcel afirma que “ser em

situação e ser em marcha constituem os modos inseparáveis, os aspectos complementares da

nossa condição” (MARCEL, 1951a, p. 128). Em outros termos, temos que reconhecer que a

itinerância está dominada por uma realidade imanente, um modo de existência que comporta

os limites de sua condição e os aspectos constituintes de sua própria ambiguidade.

No entanto, é preciso que reconheçamos que o homem, para Marcel (1927), não está

reduzido à síntese de determinações intelectuais. O Ser traz em si um chamamento, uma

exigência ontológica, que se articula entre a realidade que o cerca e a possibilidade do alcance

144 Cf. HV, p. 17-19; “Nada podría parecer, de entrada, más irracional que ligar la existencia de un orden

terrestre estable a la conciencia de una posición calificada de itinerante, es decir, a la situación fundamental del viajero. De qué viaje puede tratarse aquí? Manifiestamente, si no se quiere caer en la peor de las confusiones, hay que comenzar por desechar del debate todo lo que se relaciona de cerca o de lejos con la noción de evolución. No tiene nada que ver aquí; y está permitido preguntarse si no tiende a introducirse en los asuntos humanos propiamente dichos un elemento de desorden, un principio de desmesura y de desarmonía. Esta noción no se precisa, en efecto, más que a partir de una cierta representación del orden infrahumana [...] En efecto, no hay que atarse particularmente a la hipótesis emitida por Proust de una existencia anterior en el curso de la cual el alma habría contraído las obligaciones que tiene que cumplir aquí, se bien esta hipótesis depende de presupuestos teológicos que el filósofo, en cuanto tal, no tiene por qué hacer suyos. Lo que es afirmado aquí con fuerza, pelo contrario, y es lo que debe ser conservado, es la transcendencia, en el sentido preciso y secular de esta palabra, de las normas a las que tanto el hombre de bien como el artista se reconocen obligados a conformar su vida; pero es también el rechazo, al menos implícito, a contentarse con recurrir a una regulación puramente abstracta; por consiguiente, es la rehabilitación de lo que hay que llamar, en última instancia, el más allá [...] La idea de viaje, que no se considera habitualmente como dotada de un valor o alcance específicamente filosófico, presenta sin duda la inestimable ventaja de recoger en si determinaciones que pertenecen a la vez al tiempo y al espacio; y valdría la pena investigar cómo se opera en ella semejante síntesis. Sin duda, se nos objetará que existe un cierto abuso al extrapolar, es decir, al prolongar más allá de dominio en el que se puede ejercer la observación, una curva que se interrumpe allí donde quizá un aparato determinado deja de funcionar”.

Page 152: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

150

de sua plenitude145. O homem, assim como “o pensamento se cria pensando-se; não se

encontra, se constitui” (MARCEL, 1957, p. 39). O Ser do homem é muito; é mais do que ele

pensa que é; sua existência se constitui, para ele, num mistério, cujo devir vai além das

categorias objetivas e sistemáticas dos pensamentos e esquematismos que pretendem

condicioná-lo e reduzi-lo.

Itinerância e condição são aspectos fundamentais do existir humano. Uma apreensão

ontológica da experiência que denominamos como existencial, que se encontra inteiramente

presente no mais autêntico real e contingente da situação metafísica dos seres encarnados. A

interface entre itinerância e condição dá sentido à obra “O Homo Viator” (MARCEL, 2005).

Esta obra compreende um conjunto de ensaios, no qual Marcel procura descrever o caminho

do homem itinerante. Nela, o teórico fala de um percurso que passa pelas trilhas da relação

entre o eu e tu, a fidelidade, a participação, a herança e a preservação dos valores, a morte, o

ser, o nada, a formação espiritual e a esperança. Fala, ainda, de uma caminhada que pretende

mostrar o modo como a existência nos envolve e nos cerca, a partir de todas as manifestações

vitais. Este é um testemunho autêntico, porque a verdade do Ser surge à medida que este ser

se põe ousadamente a caminhar, como demonstra Marcel, no primeiro ato da peça,

L’Emissaire (1957, p. 207):

[...] Beltrán - Recuerde, Sylvia, que era usted quien imaginaba las más extrañas complicaciones. Sylvia (con fuerza). - Jamás me ha comprendido. Yo no busco causas, sino un sentido... y ese sentido se escapa más que nunca, no sé lo que qua ha significado su retorno. Beltrán – Por qué un acontecimiento debe tener un sentido determinado? Sylvia – Me parece que no somos seres humanos sino con la condición de buscarlo. No debemos consentir al azar... al sin-sentido [...].

Toda existência traz em si um peso ontológico (MARCEL, 1927), a necessidade de

abrir-se a um saber com dimensões globais, sem pretender, contudo, torná-lo totalitário. Na

realidade, a existência humana não nasce pronta, vai se fazendo no caminhar da nossa própria

vivência e existencialidade; num tear de fios e/ou experiências que se encontram e se

desencontram, na intenção de promover o fortalecimento, o desvelamento e a amplitude do

todo da imagem potencialmente anunciada. A peregrinação se converte, assim, num modo de

vida, uma maneira de afrontar os problemas vitais, sem, contudo, querer esgotá-los na

145 Cf. DM, p. 39; “A existencia es de un modo general aquello de o cual puede partir todo pensamiento, en el

sentido de que el pensamiento no puede definirse sino mediante el movimiento por el cual transciende a lo dado inmediato”.

Page 153: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

151

dimensão do imanentemente dado, do vivido e do percebido, a concepção de que Ser é estar a

caminho146.

A metáfora do caminho, usada por Marcel (2005), ilustra o modo como a existência é

apreendida por cada homem, a partir de sua própria experiência vivencial. A noção de

itinerância se converte na tomada de consciência de uma posição fundamental do Ser viajante,

quando almeja sempre ir mais além de si mesmo e de sua própria realidade. A ideia de viagem

comporta, em si, um sentido de peregrinação147, de passagem de um lugar a outro, visando um

fim e/ou busca desejada.

De acordo com Marcel, “es el alma, precisamente, la que es uma viajera” (2005, p.

12). É por ela, pela alma, que o homem estabelece um vínculo sagrado com a própria vida. O

caminho que a alma percorre não só passa pelas dimensões externas e/ou vitais do Ser. Sua

extensão envolve o interior do seu próprio existir. É através dos diálogos e das perguntas que

o Ser faz sobre si, que sua “alma” passa a mover-se de um caminho a outro, na intenção de

encontrar-se148 autêntica, no âmbito mais profundo de sua existência149.

No ato de deslocamento existencial, o homem se depara com trilhas compostas por

luzes e sombras, dúvidas e certezas, planícies e montanhas, medos e esperanças, partidas e

chegadas, desencontros e encontros. Como Ser viajante, o homem nunca se vê como um dado

pronto e acabado. Seu olhar sobre si é sempre o de alguém que ensaia “um pro-jecto, algo que

pode chegar a ser, e como apátrida, romper, através da interrogação os caminhos do

pensamento” (ESCOLA, 2011a, p. 153).

Toda elaboração ontológica, que tem em si sua própria consistência, conteúdo e

aplicação, fica à margem do caminho; é pueril e desértica. A problematicidade da itinerância

não possui um fim em si mesmo. Sua esfera de manifestação sempre aponta para um outro

que a medeia e o transcende. Através do sentir a presença do totalmente Outro, o Ser encontra

146 Cf. HV, p. 12; “[...] estamos en camino hacia un objetivo que juntos vemos y no vemos; y cuando este

objetivo aparece o desaparece, es señal de que estamos caminando”. 147 Olhando para os traços da biografia, personalidade, reflexão filosófica e estilo de vida de Gabriel Marcel,

encontramos a encarnação do sentido da peregrinação. Ele se considerava sempre um peregrino. Todo processo do seu pensamento foi por, ele mesmo, comparado mais de uma vez com a trajetória de um homem itinerante que não havia completado e concluído seu próprio caminho. O modo de construção do seu pensamento personifica a metáfora da marcha e reflete o verdadeiro sentido do que significa estar a caminho.

148 Conforme descreve Joaquim Escola, “[...] o sentido do neo-socratismo de Gabriel Marcel, ao contrário de um cepticismo, é uma busca, procura, um caminho, investigação tacteante, que não implica que o autor se feche à luz após a sua contemplação. Esta luz mostra-se e esconde-se e na sua desocultação, não dissipa completamente o manto de sombra, pelo que se recomeça incessantemente o caminho à espera do sol do meio dia” (2011, p. 171).

149 Segundo as palavras de Marie-Madeleine David, “le voyage l’âme s’accomplit vers la lumière” (DAVID, 1959, p. 29).

Page 154: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

152

o fulcro existencial de sua orientação. Neste sentido, o pensamento que poderia colocar-se

como muro e/ou barreira de contenção e impedimento, acaba construindo pontes, capazes de

possibilitar ao homem acessos às vias construtoras de verdade, liberdade e sentido. Sobre este

trânsito, nos diz Marcel:

O pensamento não é de forma alguma relação consigo mesmo; é, pelo contrário, auto-transcendência por essência, de tal modo que a possibilidade de definição de verdade está implicada na própria natureza do pensamento. O pensamento está voltado para o Outro, é desejo do Outro (1927, p. 35).

Em Gabriel Marcel, a caminhada itinerante do Ser busca responder às exigências de

uma vida que se pensa para além das ilusões. Através da metáfora da marcha ele consegue

demonstrar que o “Homo Viator”, apesar de suas limitações e fragilidades, poderá, não só

resistir, mas, prosseguir seu caminho em direção ao alcance da luz que aspira. Uma aspiração

que é mais que desejo e simples anelo; uma aspiração-esperança que “se situa como marco e

prova a que não só corresponde, senão que é uma verdadeira resposta do ser” (MARCEL,

2005, p. 42).

Itinerância e esperança são marcos fundadores da metafísica marceliana. Aspectos

dialéticos que pretendem fazer brotar, no homem, a consciência fundamental de um Ser livre,

concreto, insatisfeito e inconcluso. Esta condição vivencial recusa-se em aceitar a

sistematização de tudo que pretende imobilizar a consciência conceitual e existencialmente

através de um senso de reconhecimento de que a existência não se traduz num cativeiro

(MARCEL, 1987). A vivência humana acontece, no horizonte da abertura do tempo e da

inteligibilidade de um Ser, que se afirma na e através da história.

2.1.2.2 A temporalização da itinerância: diferentes formas de viver o tempo

A temporalidade é um dos frutos da consciência de que o Ser de fato existe. A

existência do Ser não acontece apenas através do tempo. O tempo está presente em sua

própria existência como algo que lhe é oferecido, como parte constituinte de sua condição de

ser-no-mundo. Na Filosofia Existencialista, a ideia de “tempo” é pensada num sentido

subjetivo - vivencialmente experimentado - e não apenas objetivo - condicionalmente medido

pelo relógio, pois, ao invés de tomar o tempo como exterior ao ente, ele “é”, por esta

Filosofia, agora encarado do ponto de vista de sua real existência.

Page 155: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

153

O tempo, segundo a análise da vivência existencial, não é tratado a partir do olhar

linear da história, com base nas dimensões do passado, do presente e do futuro. O passado não

é visto como se estivesse aquém do presente, assim como o próprio futuro, não é apenas

pensado como algo que está para além deste mesmo presente. Esta compreensão faz com que

o Ser conceba o tempo, não como uma transição abstrata, mas como uma realidade concreta,

que se efetua e se materializa a partir de uma vivência efetiva. Esta forma de entender a

relação do ser “com” e “no” tempo é o que a diferencia da perspectiva estrutural agostiniana,

a respeito da consciência do homem sobre sua temporalidade. Santo Agostinho entendia que

É próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras (AGOSTINHO, 1999, p. 328).

Para o Bispo de Hipona, a estrutura do tempo divide-se nestes três aspectos apontados

por ele, acima. Esta é uma forma objetiva e cronológica de concebê-lo, que confere ao Ser a

ideia de uma existência contínua, que se projeta através de uma aspiração da eternidade. O

tempo pode ser compreendido como um anelo da alma do homem, onde ele procura “esquecer

o passado, sem a preocupação das coisas futuras que passarão podendo viver o presente

inteiramente voltado para o que é eterno” (AGOSTINHO, 1984, p. 356).

Ao contrário de Agostinho, que fundamenta a noção de temporalidade na consciência

do homem, a partir de uma subtração metafísica, Heidegger a entende como estrutura

fundante do próprio Ser, em virtude das dimensões temporais do porvir, da presença e da

finitude. Sobre estes aspectos ele comenta:

O porvir é o fenômeno primário da temporalidade originária e própria [...] Nesse ser-para-o-fim, a presença existe, total e propriamente, como o ente que pode ser “lançado na morte”. Ela não possui um fim em que ela simplesmente cessaria. Ela existe finitamente. [...] Finitude não diz primeiramente término. Finitude é um caráter da própria temporalização (HEIDEGGER, 2009a, p. 414).

O “foi” e o “será” não estão distantes do que o Ser de fato “é”. O tempo não

representa, para ele, uma realidade que só se efetua significativamente diante daquilo que é

eterno. O tempo, na “Filosofia Existencialista é uma pura expressão da natureza finita do

homem” (BOLLNOW, 1946, p. 166). A temporalidade, para o Ser, representa “poder-ser”, a

possibilidade de “deixar-se-vir-a-si” por meio de um futuro que, segundo Heidegger, “não

Page 156: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

154

significa aqui um agora que ainda não se realizou e se há de realizar, mas um certo momento

no qual a existência toda se concentra sobre si mesma na radicalidade de um poder-ser ou de

uma mera possibilidade” (HEIDEGGER, 2009a, p. 410).

Diante deste futuro, que é pura possibilidade, o homem precisa escolher entre as

atitudes de abrir mão ou comprometer-se resoluta e decididamente com o sentido da sua

existência. Diante destas opções, o homem toma para si a “decisão”, segundo Martin

Heidegger (2009a), de assumir, perante as situações-limite, a responsabilidade de fazer a si

mesmo. Sobre esta atitude responsável, acrescenta Bollnow:

A decisão, de que falamos, serve assim também para designar a própria constituição íntima da existência humana autêntica, em que a atividade e o querer deixam de extrair o seu sentido de qualquer fim a atingir, para o ficarem tendo em si mesmos, como coisa própria, ao abrigo de todos os perigos que possam ameaçá-los. Trata-se dum esforço de tensão máxima de que é susceptível a existência humana, através do qual esta se liberta, enfim, dum estado crepuscular de morna indiferença, para se autodinamizar com todas as suas energias num esforço ativo. O homem como que lança aqui mãos à obra da sua própria existência, até aí perdida entre as inúmeras possibilidades que se lhe davam, para a dirigir numa determinada direção e para um determinado “que-fazer”, cujo sentido está não no êxito que porventura alcançará, mas exclusivamente no próprio impulso de que parte (1946, p. 169-170).

Conforme este teórico, é aqui, diante da necessidade que o homem tem de conferir

sentido ao seu momento existencial, que o conceito de “momento” precisa ser ressignificado.

Em sua natureza e aplicação, a ideia de momento não pode ser confundida com

instantaneidade ou efemeralidade. Antes, este momento é considerado, por Gabriel Marcel

(1927), como algo cujo significado identifica-se com o encontro do homem com seu

“Absoluto”; um momento onde o Ser, independente da força condicionante do tempo, opta

por sua decisão existencial, liberta-se de seu vazio, alcança sua autenticidade e caminha rumo

ao seu ser infinito.

O absoluto não é um modo de ser, é uma decisão que se clarifica pela reflexão, a partir de uma profundidade insondável e pela qual me torno idêntico a mim mesmo [...] O absoluto é oculto, só nos casos-limite orienta o caminho da vida em silenciosa decisão; nunca é demonstrável e, contudo, é de fato o suporte da vida na existência e clarifica-a em direção ao infinito. [...] Só quando o homem cumpre a superação de si próprio e percorre o caminho até onde a decisão absoluta é indubitável, só então ele desponta [...] O homem só desperta quando distingue o bem e o mal. Só se encontra a si próprio quando, pelos seus atos, decidiu para onde quer ir. Todos nós temos

Page 157: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

155

de nos conquistar constantemente, vencendo a indecisão (JASPERS, 1998, p. 59-63).

O momento existencial não é, na transitoriedade do tempo e da vida, aquilo cujo

sentido e valor têm um peso eterno. Entendemos que ele representa para o Ser uma

experiência na qual a temporalidade e a eternidade se encontram nele mesmo, a partir de sua

forma coerente de existir ao longo de sua própria “historicidade”. O momento existencial

configura-se como um instante em que o homem supera a visão da vida, enquanto fatos

sucessivos, e consegue alcançar a unidade entre vida e autenticidade, numa plenitude que o

eterniza e o coloca para além de sua própria finitude150.

Sobre as diferentes maneiras de viver o tempo, Marcel (1951a) diz que há duas

possibilidades: o Tempo Fechado e o Tempo Aberto. O tempo fechado é aquele em que o

cumprimento da espera se mostra como uma tranca que “fecha” e aprisiona o Ser, ao longo do

transcorrer da espera. Isto significa, conforme Bollnow, que

[...] ainda quando falta o acontecimento que se encerra temporariamente, está já dado com precisão no presente o que poderá acontecer no futuro. Os sentidos estão dirigidos exclusivamente para esta finalização pendente e tudo mais se encontra como ofuscado, não existe. E isto significa de uma vez: que o futuro, enquanto tempo de espera, está dado na espera, está pré-definido (1962, p. 94-95).

No tempo fechado, o futuro já está determinado. Os horizontes das possibilidades, que

deveriam caracterizá-lo, são substituídos por previsões herméticas que transformam a

perspectiva do novo em expectativa por aquilo que antes já foi simplesmente decidido, através

de um conjunto de acontecimentos que trazem em si um princípio e um fim151.

O tempo aberto não é mecânico, nem se traduz como uma vivência impotente e

passiva do Ser, diante dos fatos e ocorrências históricas de seu próprio viver. No tempo

aberto, o homem se vê como alguém capaz de atuar, de optar e de fazer de sua vida um

150 Cf. PI, p. 37; “Mais réintégrer effectivement ma vie, c’est l’éprouver à nouveau comme plénitude:

négativement, cela veut dire que je cesse de l’assimiler à une succession d’épisodes plus ou moins négligeables; si j’évoque maintenant tel ou tel de ces épisodes, Il prendra une valeur, une épaisseur en fonction de cette plénitude retrouvée. Cela veut dire encore que je cesse de comparer ma vie à telle autre vie plus favorisée, plus remplie. La plénitude, c’est l’incomparable”.

151 Cf. MS, p. 336: “Por otra parte, podría mostrarse que ese tiempo cerrado no es necesariamente el de la desesperación, que no ve nada ante sí y que no espera nada de nadie, sino, también el del hombre encerrado en el de sus tareas diarias, de lo que podría llamarse una rutina cegadora”.

Page 158: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

156

processo de crescimento, que não pretende outra coisa, senão, o alcance de sua plenitude

humana.

No tempo aberto, “o futuro é por princípio sempre imprevisível e indeterminado”

(MARCEL, 1951a, p. 336). Nele, o homem não se encontra enclausurado, porque sua

existência é vista pelo prisma da liberdade e das possibilidades. As possibilidades do Ser lhe

trazem esperança de um futuro autêntico do seu próprio existir. Um futuro que não é visto,

por ele, como ameaça, que pretende comprometer sua forma de ser no mundo; mas, como

algo que se anuncia através da confiança que o homem passa a ter em si e em sua própria

vivência histórica. Um futuro que, no olhar de Bollnow,

[...] se mostra como a base portadora que se oferece ao homem como ajuda que o impede de precipitar-se no vazio. A esperança aqui é a expressão de uma confiança no existir e vem acompanhada de um sentimento de agradecimento por estar-aberto [...] A esperança é aquela que possibilita ao homem seguir vivendo, sem se entender por “seguir vivendo” instalar-se para o amanhã, confiando que não lhe sucederá nenhuma desgraça que não possa ser eliminada (1962, p. 96-97).

Na atitude do estar-esperançoso o homem não aguarda o futuro (MARCEL, 2005); ele

se estende ao futuro, enquanto abertura existencial. Sua amplitude temporal não aceita a ideia

de um futuro comprimido, cujo fim já está dado ou determinado, como se fosse algo concluso

e predestinado.

Movido pela Esperança, a atitude resoluta do Ser, de agente construtor de si mesmo,

mostra-se num sentido antropológico, à medida que ela, a esperança, passa a ser apreendida e

compreendida, como a última condição da vida humana, capaz de possibilitar o encontro entre

o contingente e o existencial, o vital e o espiritual, o nada e a eternidade152.

A diferença entre tempo fechado e tempo aberto para Marcel representa o mote que

distingue a situação vegetativa do homem, da condição existencial do Ser. Representa, ainda,

o paradoxo entre a representação objetiva do homem e a unidade de sua vida e plenitude. Esta

diferença mostra uma forma de superar a temporalidade e a ascendência do Ser, que implica

na superação de um certo ciclo, para se pôr na direção de um renovado recomeço de

criatividade, criação e reinvenção. O tempo é incapaz de imobilizar ou destruir o homem,

152 Para Marcel há um contraste entre o modo como o homem na relação com o tempo aberto ou fechado capta o

futuro do que virá ao Ser. Cf. HV, 65: “Todo nos prepara, pues, a reconocer que la desesperación es un cierto sentido la conciencia del tiempo cerrado, o más exactamente aún, del tiempo como prisión – mientras que la esperanza se presenta como captada a través del tiempo; todo ocurre como si el tiempo, en lugar de encerrarse en la conciencia, deseara pasar algo a través de él - . Desde este punto de vista es desde donde antes pude destacar el carácter profético de la esperanza. Sin duda, no se puede decir que la esperanza vea lo que será; pero ella lo afirma como si lo viera [...]”.

Page 159: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

157

porque este sempre traz em si, “a semelhança do mito da fênix, uma promessa de

ressurreição” (MARCEL, 1951a, p. 338).

2.1.2.3 Itinerário da realidade do eu: entre a crítica do saber absoluto e a inteligibilidade do ser

“Pode tratar-se o ser como elemento de uma simples estrutura, como determinação

pertencente ou não a tal tipo de estrutura?” pergunta Gabriel Marcel na obra “Ser y Tener”

(2003, p. 35). Na base deste questionamento encontra-se o cuidado permanente de um retorno

ao existente; com a convicção de que não se deve reduzir o Ser a enfoques fragmentários e

objetivamente mensuráveis.

A crítica marceliana concentra-se, basicamente, na recusa em admitir a máxima

cartesiana de um ‘cogito’ desencarnado. A pretensão de querer tratar o homem como um

simples objeto epistêmico ou órgão de um conhecimento objetivo constitui-se na tentativa de

querer apresentá-lo como bloco definido, compacto e impermeável de reformulações.

Consideramos uma relação sujeito-objeto que fragmenta, não apenas a visão que o Ser tem de

si, como a própria relação que ele passa a exercer com o outro e o mundo à sua volta.

O homem como ser-em-situação existe. “O prefixo ‘ex’ significa poder-me conhecer e

fazer-me conhecer pelos outros” (MARCEL, 1951a, p. 94). Esta é uma acepção centrífuga do

existir humano, que denota um sentido de ‘mover-se para fora’; “a compreensão de que o

existente como indubitável se apresenta unido a uma consciência exclamativa de si”

(MARCEL, 1951a, p. 94).

Segundo Gabriel Marcel, não devemos tomar o homem como unidade de

decomposição ou departamentalização. Não se pode, face à existencialidade do Ser, correr o

risco de negar a vida, ora em nome de um Idealismo, nem esvaziá-la do pensamento,

reduzindo-a, em outros momentos, a um puro biologismo153 (MARCEL, 1940).

Existência, realidade e consciência exclamativa são aspectos inseparáveis. A

experiência humana não se limita ao conjunto redutível dos termos intelectuais e aparatos

cognitivos. A posição do ser encarnado sempre comporta uma interrogação entre o plano do

objeto e o sentido do próprio existir. Comporta, ainda, o reconhecimento de que o próprio

conhecimento está envolto pelo mistério, que é o homem. Para Marcel, a possibilidade do Ser

153 “Doutrina que busca a interpretação do mundo físico ou do mundo humano por analogia com o organismo”

(ABBAGNANO, 1970, p. 105).

Page 160: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

158

pressupõe a indeterminação do conhecimento, uma relação onde ambos se encontram e

transcendem mutuamente.

Desde este ponto de vista, contrariamente ao que a teoria do conhecimento se esforça em vão por estabelecer, há na realidade um sublime mistério do conhecer; o conhecimento se suspende em um modo de participação do qual nenhuma epistemologia pode esperar dar conta porque ela mesma o supõe (MARCEL, 1987, p. 37).

O sentido do ‘verbo ser’ não suprime a relação sujeito-objeto. O que sua aplicação não

aceita é a redução do sujeito à dimensão de ‘coisa’ ou às meras categorias de instrumento e

função. Assimilar o homem à dimensão de objeto é cair no vácuo das abstrações; é perder

inevitavelmente de vista os aspectos transcendentes que a própria encarnação comporta,

experiencia e desvela (MARCEL, 1927).

Neste sentido, toda compreensão que o Ser tem de si é pura aproximação e ensaio; é

um ato de desnudez existencial, pelo qual o homem se identifica sem tampouco poder separar-

se dele154. Separar o sujeito do seu sentido vital representa afastá-lo das dimensões pessoal,

interpessoal e planetária; é pensá-lo de maneira unívoca, metódica e universal. O

distanciamento do homem da sua consciência exclamativa “tende a converter a existência no

seu próprio cadáver” (MARCEL, 1951a, p. 94).

Em “Aproximacion al Misterio del Ser: posición y aproximaciones concretas al

misterio ontológico”, Marcel afirma: “O ser é o que resiste – ou seria o que resistiria – a uma

análise exaustiva sobre os dados da experiência e que tentaria progressivamente reduzi-los a

elementos cada vez mais desprovidos de valor intrínseco ou significativo” (1987, p. 30). O

desejo de afirmação precisa ceder lugar ao espírito de interpelação investigativa. O

reconhecimento de que o Ser transcende a si mesmo consiste na forte percepção, diz o autor,

mais à frente, “de que sou mais do que a profiro: e que proferindo-a, eu a anulo, eu a

fragmento e me disponho a traí-la” (1987, p. 36).

Podemos compreender, portanto, que a reflexão antropológica se desenvolve à medida

que o Ser aparece cada vez mais. Esta é a comprovação de que, ao lado de todo dado, há

154 Cf. MAS, p. 36; “El hombre puede unirse a lo real a través de diferentes experiencias de participación.

Resumiendo mucho su postura, podemos distinguir en su obra hasta tres niveles distintos de participación. En un primer momento el hombre se vincula a lo real a través de los sentidos: es el nivel de <la encarnación> (el hombre es espíritu encarnado) concreta en la experiencia de mi cuerpo. Otra manera, superior a la encarnación, de unirse el hombre ala realidad sería lo que El llama <la comunión> con os demás seres <la intersubjetividade>. Pero todavía puede o hombre, en un tercer nivel, acercarse más a la realidad, y es a través de la experiencia de la trascendencia. Es, en definitiva, la participación en el nivel del ser. Es la experiencia metafísica, grado sumo de ensamblaje con lo real. Aquí desaparece la división dualista cartesiana de alma y cuerpo, para confundirse en una única sustancia: el ser personal”.

Page 161: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

159

sempre a constatação do inacabado, do indeterminado e do inalcançado. É, também, uma

contradição que não se constitui na negação do processo, à medida que se afirma enquanto

parte de um todo, que se mostra, a cada passo, mais abrangente, profundo, iluminante e

misterioso.

O entendimento de que o itinerário do Eu não se dá na afirmação do saber absoluto,

mas, na busca da inteligibilidade do Ser, leva Gabriel Marcel a resistir a toda forma de

acepção privativa, que tenta confundir a encarnação com uma afirmação dualista ou

generalizada. Este é um pensamento “que se expressa e se orienta deliberadamente contra

todos os ‘ismos’” (MARCEL, 1951a, p. 9); uma construção que pretende fazer da reflexão

ontológica “um pensamento afirmativo; mas não dogmático; sensível ao mistério, mas rebelde

ao hermetismo; hostil ao espírito de abstração e de sistema, mas preocupado com a precisão”

(RICOEUR, 1996, p. 49).

A reflexão de Gabriel Marcel (1968) representa a busca que compreende o mistério

humano como algo que pode ser desvelado e apreendido; todavia, nunca concluído e acabado,

dada a condição livre e subjetiva do próprio Ser-em-situação e o reconhecimento de que há,

no homem, um livre e inesgotável concreto.

2.1.3 Liberdade: o homem como ser aberto

“Nunca é demais afirmar fortemente que a mentira, venha de onde vier, vai sempre

favorecer a servidão” (MARCEL, 1951b, p. 32). Conforme Gabriel Marcel, a conexão entre o

falseamento da verdade e a condição de alienação do homem de si mesmo não só contribui

para reduzir a realidade aos mecanismos de objetivação, como poderá levar o homem a se

dissociar da sua condição de Ser chamado à transcendência. Por compreendermos que “um

homem não pode ser ou permanecer livre senão na medida da sua ligação com a

transcendência, seja qual for à forma dessa ligação” (MARCEL, 1951b, p. 23) é que

propomos analisar o modo como a liberdade humana, enquanto condição do homem, como

Ser aberto, se dá na relação com a razão, a graça, a verdade, a heteronomia e seu próprio

testemunho.

Ao fundamentar a noção de liberdade, na relação com a situação fundamental do Ser e

sua transcendência, estamos pressupondo, a partir da visão de Marcel, que um homem livre é

um sujeito engajado, que sua liberdade não é um atributo, mas, uma contínua conquista de si

mesmo, que deve se dar no âmbito das situações concretas do seu existir. “Não se trata, pois

Page 162: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

160

de averiguar o que é um homem livre em si, por essência, o que talvez nem tenha significado;

mas como na situação histórica em que nos achamos e que temos de afrontar, hic et nunc,

pode conceber-se e afirmar-se essa liberdade” (MARCEL, 1951b, p. 15).

2.1.3.1 Liberdade e razão

O que é o homem livre? Questiona Gabriel Marcel, na abertura do livro “Os Homens

Contra o Homem” (1951b). Esta inquietação é parte de uma série de reflexões que nascem de

um determinado contexto histórico; da época em que o signo dos desenvolvimentos

tecnológicos e industriais ameaça degradar a dignidade da pessoa humana, através da redução

do Ser às esferas da sistematização dos processos produtivos e da funcionalização do seu

modo de vida. Conforme Marcel, sua pretensão

Não se trata, pois, de averiguar o que é um homem ‘livre em si’, por essência, o que talvez nem tenha significado; mas como, na situação histórica em que nos achamos e que temos de afrontar, hic et nunc, pode conceber-se e afirmar-se essa liberdade (1951b, p. 15).

O momento da história humana, problematizado por Marcel, é aquele onde o real está

submetido ao racional, onde o esvaziamento da noção de Ser encheu-se progressivamente da

ideia de um ‘nada’, onde o conhecimento parecia caminhar sempre em direção ao

desenvolvimento do ser humano, onde a noção de verdade foi universalizada e o mistério,

banido da realidade. Foi um período onde tudo parecia ter se tornado autômato e,

previsivelmente, determinado e/ou construído. É a partir dos pressupostos acima que

interrogamos: estará a liberdade basicamente resumida à esquemas objetivos? Quais os reais

fundamentos da liberdade? A liberdade é um predicado ou uma condição existencial? Será a

liberdade uma posse ou processo de formação e construção do Ser?

De acordo com Gabriel Marcel (1987), a discussão em torno da temática da liberdade

não se dá apenas na dimensão do abstrato. Sua análise deve situar-se naquilo que é próprio do

humano e de sua situação concreta; numa prioridade de ordem, em que o pensamento não

pode ser considerado a partir das coisas e da imposição do instrumental sobre o pessoal. Ao

invés de nos submetermos ao império da objetivação, precisamos, de acordo com Marcel,

[...] proclamar que não pertencemos ao mundo de coisas a que querem assimilar-nos e onde querem encarcerar-nos. Muito concretamente temos de proclamar que a vida, tecnicamente transformável na horrível e contorcida paródia de tudo quanto veneramos, pode não ser na realidade senão um

Page 163: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

161

sector insignificante de um desenvolvimento prolongado para além do visível (MARCEL, 1951b, p. 23).

Liberdade e consciência de si são aspectos da própria condição do Ser. Na relação

entre Ser e conhecer, o humano exerce a primazia. Antes de compreender-se o homem é. O

pensamento é um dos modos de expressão do Ser. Sua situação fundamental só é realmente

apreendida quando ele se assume e se aceita livre e conscientemente. A liberdade não é serva

da razão, em sua especificidade; ela sempre se recusa a entregar o homem aos clichês, rótulos,

normas, regras, dogmas e metodologias de manipulação, ordenação, classificação e exclusão

social e humana.

O saber técnico-objetivo, por si só, é insuficiente para trazer luz total sobre a

existência humana. A razão que ilumina é aquela que se torna una com a existência; ela não

se encontra à parte, nem diluída na própria vivência do ser (MARCEL, 1927, 1940). A

existência autêntica não aceita sua volatilização, nem sua substancialização em relação às

questões do mundo externo. Ela não se materializa num objeto, mas, transcende a todos eles à

medida que ultrapassa o mundo da experiência e projeta-se para além da realidade. Karl

Jaspers, seguindo a mesma perspectiva de Gabriel Marcel, ressalta:

Afirmamos que o homem não pode ser compreendido a partir da natureza, nem a partir da história, nem a partir de si mesmo. Exilado em seu existente, o homem quer ultrapassar-se. Não se satisfaz com o ser, numa quietude fechada em si mesma, o perpétuo retorno do existente. Não mais se reconheceria autenticamente como homem, se contentasse com o homem que hoje é. Para transcender-se, não basta ao homem a sensação ou gozo de imagens mitológicas, nem o sonho, nem o uso de palavras sublimes, como se nelas a realidade estivesse inclusa. Só na ação sobre si mesmo e sobre o mundo, em suas realizações é que ele adquire consciência de ser ele próprio, é que ele domina a vida e se ultrapassa. Isso ocorre de duas maneiras: por ilimitado progresso no mundo e pelo infinito que se faz presente a ele em sua relação com o transcendente (JASPERS, 1965, p. 50).

A partir das considerações do teórico, podemos afirmar que a prática da transmissão

do conhecimento também se constitui num modo de transmissão dos fatos e conteúdos da

realidade; num tipo de leitura de mundo que condiciona a existência aos dados do aparente e

do visível. A problematização da minha presença na realidade surge quando me torno

consciente do meu eu autêntico e de toda sua potencialidade. A compreensão a respeito da

existência humana não pode estar reduzida aos fatos e às teorias isoladas. Esta compreensão

surge do limite de suas interpretações e da falta de objetivos que sejam geradores da verdade e

sentido existencial.

Page 164: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

162

Na relação entre “Ser e pensar”, o homem é o ponto central. Conhecer “a nós

mesmos” é o primeiro passo para desvelarmos o mundo. Esvaziar o mundo da presença do

homem é torná-lo nada diante de ninguém. É reafirmar que, por haver essência, não existe

possibilidade e que, por vivermos na ditadura da opacidade das relações, não devemos

ressaltar o valor das singularidades, especificidades e subjetividades dos seres. O Ser do

homem é irredutível e irrepetível (MARCEL, 1933, 1968). Sua espontaneidade não se esgota

na sistematização do saber construído, “pois o espírito conhecente é um espírito existente, e

que o é, não em virtude de uma qualquer lógica imanente, mas de uma decisão pessoal e

criadora. O existente não pergunta em vão” (MOUNIER, 1963, p. 23).

Por encontrar-se enraizada no mistério do Ser, a liberdade pode até ser acessada pela

reflexão; no entanto, só será possível afirmá-la através da participação e do engajamento de si.

Engajar-se é mais do que aderir, associar-se e ligar-se. No ato do engajamento o homem

revela estar comprometido consigo mesmo e com sua autodescoberta. Engajado, ele assume

um compromisso fundamental de ser o que é e tornar-se o que ainda não foi: ser-mais; de

assumir uma vivência, que se traduz numa experiência, onde se busca a unificação155 da alma

(BUBER, 2011) e a plenitude de sua vida interior (MARCEL, 1951a): a verdade de si.

“A liberdade não é um predicado do Ser” (MARCEL, 2002a, p. 289). A liberdade se

constitui na própria condição metafísica do homem. Não é algo que o homem herda, ou toma

posse, como se fosse uma coisa que existisse fora dele. O alcance da liberdade consiste num

processo que envolve a reflexão de si, a decisão existencial, a determinação do agir e a

coerência de suas atitudes156. A busca pela unificação da alma humana.

155 Sobre a relação entre engajamento e unificação da alma nos acrescenta Martin Buber na obra O Caminho do

Homem Segundo o Ensinamento Chassídico: “O homem com a alma dividida, complicada e contraditória não é relegado: o que é mais interior dessa alma, a força divina em sua profundeza, pode exercer um efeito sobe ela, pode modificá-la, amarrar as forças uma às outras, pode fundir os elementos que se desapegam, pode unificá-la. Tal unificação deve acontecer antes de o homem iniciar uma obra excepcional. Apenas com uma alma unificada ele estará apto a agir de maneira a realizar não um trabalho mal feito, mas um trabalho coerente [...] Sem dúvida, é preciso manter algo em mente: nenhuma unificação da alma é definitiva. Assim como a alma de nascença mais harmônica é assaltada por dificuldades internas de tempos em tempos, mesmo aquela que luta da maneira mais feroz pela unificação nunca poderá alcançá-la totalmente. Mas cada obra que realizo com a alma unificada tem um efeito retroativo em minha alma, agindo na direção de uma nova e mais alta unificação, o que me leva – ainda que passando por certos desvios – a uma unificação mais constante que a anterior. Assim, finalmente chegamos onde podemos confiar em nossa alma, porque sua medida de unificação é tão grande que supera a contradição como que brincando [...] Quer dizer que a tarefa que fazemos deve ser feita com todos os membros, isto é, todo o ser do homem deve estar envolvido, nada dele pode ficar de fora. O trabalho de um homem que se torna, desse modo, uma unidade de corpo e alma é um trabalho coerente” (BUBER, 2011, p. 25, 28).

156 Tomando como exemplo a posição de Sócrates, em se manter fiel aos seus pensamentos/filosofia até a morte, perguntamos: foi ele totalmente livre? Ou foi parcialmente livre, já que sofreu as determinações sociais para assumir a posição que assumiu? Ou ele pode ter agido apenas por “capricho” ou ideia fixa? Para Sócrates a liberdade consistia em ter plena consciência do que somos e em sermos coerentes com nós mesmos. Deixar de ensinar para ele representava negar a si mesmo, levando-o a preferir a morte a deixar de pensar/viver assim.

Page 165: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

163

[...] de fato há que se dizer que minha liberdade não é, nem pode ser, algo que constato, senão algo que decido, e que decido sem apelação possível. Não está em poder de nada recusar o decreto pelo qual afirmo minha liberdade, e, em última instancia, esta afirmação está ligada a consciência que tenho de mim mesmo (MARCEL, 2002a, p. 288).

A liberdade implica a participação no Ser (MARCEL, 1981), a conquista diária de si.

Ela exige a criação de seus próprios postulados, à medida que se recusa em aceitar toda e

qualquer forma de abstração, que pretende levar o Ser a negar-se ou a reduzir-se

progressivamente à dimensão da ‘coisa’, do número, do código, do rótulo, do registro, da

etiqueta ou de qualquer tendência materialista. A liberdade encontra-se personificada no Ser.

O homem não pode ser ou permanecer livre senão na medida do compromisso que tem

consigo mesmo, face ao conhecimento da situação que o envolve157. Neste sentido, podemos

dizer que, para Gabriel Marcel (1951b), ser livre não representa negar a realidade em que

estou situado. A liberdade consiste “no reconhecimento da realidade do mistério, no qual nós

mesmos estamos engajados” (ZILLES, 1988, p. 94).

A liberdade existencial revela-se numa atitude de engajamento espiritual e existencial.

Ela comporta uma indomável coragem de decidir-se intimamente sobre aquilo que se é e se

deseja fazer de si histórica, social, educacional, política, filosófica, ética e existencialmente158;

“[...] a crença numa soberania interior inalienável, sem um autodomínio absoluto”

(MARCEL, 1951b, p. 19). Através da liberdade, o Ser se corporifica, torna-se ‘carne’, revela

sua grandeza, beleza e profundidade, por meio da vivência e do modo como se compreende e

autoafirma. A liberdade do Ser se desvela no brilho da sua face, cheia de graça e em verdade.

Sócrates assumiu a tarefa de educar na totalidade de sua existência, sendo, até sua morte, coerente com si mesmo. Com base na experiência de Sócrates, ressaltamos que o desafio seria o de deixar de lado o aspecto negativo da liberdade (livrar-se das determinações: é preciso me livrar disto, daquilo, desta pessoa, objeto ou situação) e incorporarmos o lado positivo da liberdade, “nos comprometendo com algo, livre e incondicionalmente”, tal como fez o filósofo ateniense.

157 Cf. OS I, p. 288, 289; “Tomamos conciencia de nuestra libertad – escribe Jaspers enfáticamente en su Introducción a la Filosofía – cuando reconocemos lo que los demás esperan de nosotros. Depende de nosotros cumplir o eludir estas obligaciones; no podemos menos que constatar seriamente nosotros mismos, de manera que somos responsables. Además, el que trate de negarse a si mismo esta responsabilidad se encontrará, ipso facto, imposibilitado para exigir nada al resto de los hombres”.

158 Sobre a possível atitude de negação e afirmação do Ser diante das estruturas de poder Marcel exemplifica. Cf. HCH, p. 18,19: “Aqui nos achamos obrigados, segundo creio, a notar um fato de excepcional importância: o de que o estoicismo não como doutrina, mas, como atitude espiritual, se encontra não digo refutado, mas verdadeiramente desenraizado. Esta atitude venerável implicava a distinção com tanto rigor formulada por um Epicteto, um Sêneca, um Marco Aurélio, entre as coisas dependentes de nós. O pensamento estóico, não só formulado abstratamente sob regimes de opressão, implicava a crença em um foro íntimo, refúgio inviolado e inviolável do indivíduo contra todas as instruções do poder”.

Page 166: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

164

“Em última instância afirmar ‘eu sou livre’ significa dizer ‘eu sou eu’” (MARCEL, 2002a, p.

289).

2.1.3.2 Liberdade e graça

A liberdade do Ser não é apenas caracterizada pelas concepções que o homem

defende, senão também, pela maneira como ele assume e incorpora estas ideias através dos

seus atos e modo de vida. Ser e fazer são aspectos inseparáveis de uma única ação humana.

Neste sentido, “a liberdade é de alguma maneira a suprema aspiração do homem”

(GEVAERT, 1987, p. 205); uma moeda de duas faces, onde, por um lado, este homem

expressa o desejo de não viver submisso aos processos de escravidão, subordinação,

exploração e alienação, e por outro, aspira ser plenamente ele mesmo.

A liberdade, em sua articulação fundamental, não se materializa de fora para dentro.

Ela possui uma estrutura íntima, metafísica e humana, à medida que se anuncia como um

processo pelo qual o homem conquista a si mesmo. No entendimento de Gabriel Marcel

(2003), a liberdade é “uma graça”, que não pode ser deduzida e/ou confirmada por meio de

nenhum substrato conceitual e/ou material. Em sua imanência, ela sempre se revela, enquanto

consciência do mistério que envolve o homem, afetando-o e comprometendo-o situacional,

temporal e historicamente.

A liberdade, enquanto graça, como fala Marcel (1951b), não se manifesta como algo

que recebo de outro. Seu sentido não é teológico-cristão159. Esta graça é Dom de si, não é

transferência de alguma coisa que se passa para as mãos de outrem. O dom representa o ato

pelo qual o Ser se expande incondicionalmente. A atitude pela qual ele dá de si, seu fim é

determinado e sua intenção nunca é de seduzir ou impressionar aquele que dele recebe o dom.

A conexão entre liberdade, graça e dom é, em si, fonte geradora de sentido humano

das atitudes do Ser. Um sentido que se articula entre as noções de generosidade, palavra-

revelação e realidade. Sobre a generosidade, Marcel nos diz que ela é a alma do dom; é a

virtude que preserva o homem de se vangloriar, de sentir-se como fulcro nutriente de si

mesmo. A generosidade é uma ‘luz’, a irradiação que emana do próprio Ser através dos seus

atos, exemplos e obras. Neste sentido, a relação entre dom e generosidade é dupla.

159 Cf, OS I, p. 292: “Nos permite todo esto discernir mejor la articulación entre libertad y gracia? Antes que

nada debemos considerar lo que es un don. En efecto, es en tanto que don como nos puede interesar la gracia, sin, que de momento tengamos que enredarnos en las dificultades de orden teológico que puede suscitar esta noción cuando está referida a cierto concepto dogmático dado”.

Page 167: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

165

[...] de um lado, a generosidade é aquilo que torna possível o dom; não é causa ou, mais exatamente, não é diríamos nada preciso ou afirmativo se dissermos que ela é causa. Sem dúvida seria mais exato dizer que é sua alma. A generosidade mesma, sem dúvida, aparece como um dom, o que antes de tudo e negativamente quer dizer que não é algo que possa obter-se de si nem de outro, pois não se obtêm algo sem a força de insistência e tenacidade. O que se consegue é sempre resultado de esforço, ao mesmo tempo, que, o dom não resulta, senão que brota [...] De igual forma a luz não se deixa reconhecer mais do que por mediação daquele que ilumina – posto que é em si mesma cegadora e não posso olhá-la de frente -, a generosidade só pode discernir-se através dos dons que exercemos [...] (MARCEL, 2002a, p. 294).

A luz que a generosidade irradia não é de natureza física; é de ordem metafísica. É

uma luz que ilumina, não só o Ser que a transmite, como o outro que por ela é atraído a nós. É

uma luz que, vindo de nós ao mundo, ilumina a todo homem vivente. Num sentido empírico,

esta luz não só agracia o agente que a emite como favorece seu beneficiário; o sujeito que a

recebe. No entanto, para que ela resplandeça entre os dois, é necessário que ambos

compreendam que existir é mais que viver, e que Ser constitui-se, numa maneira própria de

estar-no-mundo, com todas as suas implicações concretas, dentro da imensa aventura humana.

Somente quando trato a vida desta maneira é que posso reconhecê-la como dom. Desta

forma, a presentificação do Ser se mostra como uma revelação de si. “Só então quando

reconheço e saúdo de alguma maneira esta revelação é que posso chegar a apreender a vida e

minha própria vida como um dom” (MARCEL, 2002a, p. 295). Nesses termos, o homem

revela-se como a personificação de sua própria palavra - o Verbo - capaz de criar e recriar,

através da ação, as condições possíveis para a efetivação da própria verdade e da liberdade

participante da realidade.

É mediante a liberdade participadora que o homem se dá conta do senso de pertença

ao/no mundo; ele se vê diante da realidade de si. Este sentimento de presença não pode

confundir-se com determinação. A coerência do Ser não implica num atuar mecânico; pois,

seu agir resoluto se interpõe entre o eu e o tu, num encontro de seres indeterminados que

nunca sabem exata e antecipadamente o que serão ou farão de suas próprias existências.

[...] o artista antes de criar sua obra, não pode saber exatamente qual será sua obra. Pode ocorrer que o tome, em certa forma, por surpresa. O mesmo sucede às vezes com o ato livre, quer dizer, com o ato que depois teremos que reconhecer como algo que tem contribuído para fazer-me o que sou [...] (MARCEL, 2002a, p. 291- 292).

Page 168: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

166

A liberdade como expressão de graça é sempre multiforme. Ela nunca chega a mim

como se revela a outro. Sua especificidade é que torna cada ato livre, em algo essencialmente

significativo. Ademais, poderemos dizer que na liberdade o homem se escolhe e se faz através

de suas atitudes concretas. Positivamente considera-se livre o homem que se possui a si

mesmo. Esta é uma posse que é sempre aproximada e, nunca, definitiva, porque se revela

entre os processos contínuos e descontínuos de sua própria realidade existencial (MARCEL,

1951b).

Nem todo ato é, em si mesmo, expressão de liberdade. Por fazer-se no real, é que

precisamos distinguir entre o ato contingente e o ato livre160. No ato contingente o homem

age sob pressão, seja de si, do outro, do contexto ou da própria situação que está enfrentando.

Sua exigência é sempre circunstancial; seus critérios são externos e seu objetivo é procurar

corresponder às impressões e convenções alheias. No ato livre, o critério de escolha é o Ser,

seu padrão é o humano e seu fim é fazer, a si mesmo, incondicionalmente.

O ato contingente pode ser feito por qualquer pessoa, ele é vazio e não contribui para

levar o homem ao desvelamento de si. O ato contingente sempre degenera numa satisfação

complacente. No ato livre o homem se depara com a própria realização de si. No ato

contingente eu corro o risco de mostrar-me inconsistente e indeciso. No ato livre eu me revelo

coerente e resolvido. O ato livre é significante porque consiste numa ação que leva o homem a

contribuir com sua formação e desenvolvimento. É um ato que se mostra humanamente

pedagógico à medida que visa provocar, no Ser, a consciência fundante de sua própria

verdade.

A liberdade é um ato da graça de Ser. Uma graça que emana do Ser para si. Uma

escolha pela qual o homem procura responder às suas mais profundas exigências e aspirações.

A liberdade é o farol capaz de guiar o homem até seu porto seguro, apesar do mar revolto e

das ameaças do impacto das ondas e do risco influenciador dos fortes e/ventos. A liberdade é

a encarnação da graça na verdade. A verdade que nunca pode apreender-se totalmente, porque

sempre se anuncia como sinal de uma luz que é, em si, início de uma compreensão

aproximada. “Liberdade e verdade não podem separar-se arbitrariamente sem perder seu

caráter; e direi que se deixam reconhecer como valores senão por quem se encontra, por assim

dizer, diante desta luz inteligível” (MARCEL, 2002a, p. 297).

160 Cf. OS I, p. 291; “Sin duda, podría decirse que lo propio del acto libre consiste en que contribuye a hacerme

lo que soy, como si me esculpiera, mientras que el acto contingente o insignificante, el acto que podría haber sido realizado por cualquiera, no contribuye en absoluto a esta especie de creación de mí mismo por mí mismo”.

Page 169: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

167

2.1.3.3 Liberdade e verdade

A liberdade existencial é simultaneamente afirmação da presença e preocupação de

inserção, temor de imobilização por pensamentos construídos e fidelidades indeléveis,

itinerância e encontro, apreensão e aproximação. A liberdade não se afirma no campo do

abstrato, no refúgio dos sistemas ou na sedutora evidência, que insiste em tomar o visível

como expressão espontânea e critério de validação do imediatamente dado.

Verdade e liberdade são aspectos de densidade da existência humana (MARCEL,

1927). São instâncias pelas quais o homem resiste ao imobilismo da certeza universal, à

mecânica do conhecimento objetivo, à superficialidade da vida interior e à condicionalidade

do seu modo de viver e ser-no-mundo. Através da relação entre verdade e liberdade o homem

demonstra que existir é sua principal preocupação e que a existência à sua volta constitui-se

no seu supremo interesse. Afirmar a liberdade do Ser implica em reconhecer que há, no

homem, uma fundamental capacidade de gerir sua vida e de tomar em suas mãos o processo

de desvelar e ressignificar de sua existência. Neste sentido, cabe-nos compreender que a

consciência deste estar-livre passa, necessariamente, pelo modo como ele concebe e afirma a

ideia que tem de si mesmo.

Na concepção de Gabriel Marcel (1951b), a visão que o homem tem de si degradou-se,

em virtude da opressão totalizante exercida pelos antigos sistemas de interpretação e espaços

geradores de sentido (BERGER; LUCKMANN, 2004). A crítica de Marcel impõe-se,

basicamente, contra o modo como a noção de democracia e a visão religiosa haviam se

transformado em instrumentos de manipulação e expressões de negação da dignidade do Ser;

contra a constatação de que a relação entre liberdade, política, fé, verdade e existência, na sua

época, transformava-se num processo de traição, alienação e abstração do espírito humano.

Do ponto de vista político161, o que houve foi uma separação entre inteligência e

dignidade. Houve, ainda, uma tendência em querer reduzir o homem a fórmulas genéricas de

comunicação, educação, gerenciamento, funcionalização e padronização de ideias,

comportamentos, ideais e interesses. Para Marcel, todas as vezes que o individual se

massifica, as liberdades são perdidas (MARCEL, 2002a,). Por isso,

[...] não há nem pode haver fraternidade na abstração. Nada a este respeito mais enganoso e mentiroso do que as fórmulas que satisfizeram os homens

161 Outras perspectivas de análise a respeito da incidência do controle das instituições políticas sobre a vivência

da fraternidade podem ser encontradas na obra: ‘Gabriel Marcel: un veilleur et un éveilleur’, de Jeanne Parain – Vial (1989).

Page 170: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

168

da Revolução Francesa. Ingenuamente, por se inspirarem em uma filosofia absolutamente rudimentar, acreditaram que a liberdade, a igualdade e a fraternidade podiam situar-se no mesmo plano. Justamente eu penso que nada é menos exato. Saibamos reconhecer que a igualdade se situa no abstrato; não são os homens que são iguais, porque os homens não são triângulos nem quadriláteros. O que é igual e deve ser posto assim não são os seres, mas os direitos e deveres que esses seres têm de reconhecer uns aos outros, sem o que é o caos, a tirania com todas as suas terríveis conseqüências – o primado do mais vil sobre o mais nobre (MARCEL, 1951b, p. 143).

Liberdade, igualdade e fraternidade só fazem sentido se o fim não for mascarar os

sistemas opressores e burocráticos que as sustentam162. A democracia social não se afirma no

solo da opressão individual; a igualdade não se justifica pela burocratização dos regimes163,

assim como a fraternidade não pode se constituir num processo de diluição dos valores164

asseguradores da supremacia da dignidade humana.

Ora, é a partir dessa crise de consciência de si que se anuncia o clima das liberdades

perdidas e a atmosfera de uma realidade sócio-histórica que se desenvolve pelo poder do

imperialismo da burocratização do mundo e da consequente abstração do Ser. Este é um

período onde se vê que este sentimento cresce, “à proporção em que se multiplicam as

atividades puramente parasitárias e funcionais não só incapazes de criar, mas até destinadas a

entravar, e paralisar toda criação possível” (MARCEL, 1951b, p. 28). De modo geral, o

balanço humano desta situação aponta para o fato que “a liberdade não pode viver mais que 162 Cf. OS I, p. 274; “[...] las pretendidas democracias populares están todas fundadas en una mentira [...]

Desgraciadamente, esto nos lleva a constatar que el mundo do llamado libre no puede soportar, el tampoco, la opresión de fuerzas totalitarias bajo pena de provocar una conflagración mundial [...] Aquí como allá, son la hipocresía y la mentira las que triunfan”.

163 Cf. HCH, p. 26-31; “Impõe-se aqui notar que intervêm neste domínio duas ordens de considerações não só distintas, mas de compatibilidade não provada. Por um lado, a consideração de igualdade: as liberdades ilícitas de que entendem privar-nos são consideradas privilégios intoleráveis que se trata de reduzir e finalmente suprimir, até que a situação de cada um seja tão semelhante quanto possível à do vizinho. Por outro lado, a consideração da organização: tais liberdades são consideradas menos em si mesmas do que nos efeitos, que podem vir a ser anárquicos e portanto prejudiciais a uma organização racional que pretenda se instaurar [...] é claro que com pouco tempo prevalecerá fatalmente a consideração da organização ou a do rendimento, ainda quando seja necessária uma crise sangrenta [...] Esta igualdade, se não tem por fim, tem pelo menos como resultado mascarar aos beneficiários o regime de opressão burocrática a que os condenam [...] Para o burocrata é cada vez menos possível interessar-se pelo que faz, por um trabalho tão abstrato, tão despersonalizado, onde o homem não pode pensar em imprimir a sigla própria. [...] Na insegurança radical generalizada ao mundo inteiro, a preocupação dominante é ter algumas garantias, sejam quais forem, e o movimento geral que impele os franceses para o funcionalismo só se explica por ser o Estado o único dispensador de seguranças que dantes se pediam à religião ou trabalho pessoal, quando ele se realizava em condições sãs, no tempo longínquo do artesanato possível. Ninguém pode contestar que tal movimento é uma corrida para a servidão, embora no período transitório em que vivemos, esta servidão tenda fatalmente para iludir-se a respeito de si própria”.

164 Cf. HCH, p. 34; “Mas deve proscrever-se sem piedade a ilusão de um sentido possível da palavra liberdade onde tiver desaparecido o sentimento dos valores; e deve entender-se por esta expressão o sentimento da sua transcendência”.

Page 171: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

169

num clima de verdade” (MARCEL, 2002a, p. 374). De outra forma, a busca da verdade não se

faz descontextualizada da sua situação fundamental, pois “a ninguém aproveita a ignorância

do sentido da história” (MARCEL, 1951b, p. 9).

Em caráter de conexão, Marcel também diz que, no aspecto religioso, a noção de

indivíduo está reduzida à dimensão da coisa e do objeto. Sua crença é de que o homem estava

sendo assimilado e encarcerado numa concepção técnica, que o transformou na horrível e

contorcida paródia de tudo aquilo que ele mesmo venera. A abstração do Ser transformou-se

numa autolatria, numa supervalorização das próprias ideias, em detrimento da visão de

mundo dos outros e dos demais; numa mentalidade fanática.

“O fanatismo é a opinião levada ao paroxismo, com toda a cega ignorância de si

mesma” (MARCEL, 1951b, p. 132). Neste sentido, percebemos que até as maiores e mais

tradicionais religiões do mundo correm o risco de se perder. Elas podem se degradar,

degenerar-se em autolatrias, se a ambição de coibir e controlar o homem tornar-se o fim de

suas próprias práticas e esforços. “A consciência fanatizada165 é insensível a tudo que não

gravite no seu campo de abstração [...]” (MARCEL, 1951b, p. 129). Para a mentalidade

fanática, quem não é ou pensa de acordo com o que diz, corre o risco de ser eliminado166. O

outro é visto como obstáculo, um inimigo a ser vencido e superado. Um existente que deixa

de ser encarado como um ser humanamente pensante ou, como alguém capaz de chegar às

suas próprias conclusões sobre a vida e as coisas que a cercam e a transcendem167. Toda

forma de intolerância religiosa é incompatível com a noção de verdade; e toda manifestação

fanática é, em si, usurpação da liberdade e desejo egoísta. Marcel define este corolário do

fanatismo comentando:

165 Para termos uma visão mais ampla deste conceito é recomendável a leitura e consulta do Relatório de

Buchenwald (HACKETT, 1998). Um dos mais importantes e fidedignos registros das atrocidades cometidas pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Baseia-se em depoimentos dos prisioneiros sobreviventes de um campo de concentração na Alemanha, depoimentos estes que foram colhidos em abril de 1945, logo depois da libertação, quando as brutalidades sofridas e presenciadas ainda estavam vivas em suas memórias.

166 O Relatório Buchenwald traz, entre outros, o relato do martírio do Pastor Schneider pertencente à Igreja Confessional. Um grupo de protestantes alemães liderados por Martin Niemöller que rompeu com a Igreja do Estado e rejeitou as teorias raciais como antitéticas à doutrina cristã. “Testemunhas contam que quando ele deixou de tirar o boné na chamada parada da bandeira, o hasteamento diário da bandeira nazista, recebeu 25 vergastadas nas nádegas e foi levado para a cadeia. Ali o pastor Schneider passou mais de dezoito meses, até que foi finalmente assassinado após intenso sofrimento” (HACKETT, 1998, p. 293).

167 De acordo com o Relatório de Buchenwald (HACKETT , 1998) os homossexuais foram tratados como classe inferior, doentes e criminosos. Eles foram expostos a todo tipo de maus tratos, sofrimentos e humilhações. Além disso, tornaram-se alvos de uma profunda perseguição que acabou culminando no assassinato e suicídio de milhares que ousaram afirmar o que eram e o modo como se viam e enxergavam a vida enquanto seres humanos.

Page 172: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

170

Tudo resulta que o fanatismo é por definição incompatível com o menor cuidado da verdade; e como a verdade é inseparável desse cuidado, pode afirmar-se sem hesitar que o fanático é inimigo da verdade, quando não fosse senão por querer confiscá-la em proveito seu. Isto é verdadeiro em todos os graus (MARCEL, 1951b, p. 134).

A atmosfera do fanatismo sempre é criada em espaços onde há, de forma explícita ou

velada, discriminação de gênero168 e segregações social, religiosa169, cultural, política e

étnica; onde há uma má fé, uma intransigência venal, que pretende fazer do outro um refém de

si e de sua própria visão de mundo. “O fanatismo deve ser combatido em nome da verdade e

das condições estruturais que a tornam possível” (MARCEL, 1951b, p. 134). Não se

compreenda por estas condições a crença ou ênfase em torno de um certo relativismo, para

quem as opiniões têm um mesmo valor e a verdade nunca é possível. “Observemos que de

modo geral o próprio sentido da verdade não pode deixar de obliterar-se em quem se atribui a

função de manipular a opinião” (MARCEL, 1951b, p. 48). A opinião pessoal não pode

colocar-se acima do compromisso com a liberdade e a verdade do Ser.

Para Gabriel Marcel, o combate a estas formas de abstrações, seja política ou religiosa,

é algo urgente e necessário170. Pois, este espírito de abstração, enquanto criador de uma certa

concepção do humano, também foi um dos mecanismos produtores dos campos de

concentração, fundamentador das câmaras de gás e justificador de eventos como de

Auschwitz. Colocar-se contra estas posturas de abstração é inserir-se a favor do humano. É

compreender que o Ser do homem não pode reduzir-se a modos de preces, rituais e

homologações canônicas171 e que a mentira, venha de onde vier, vai sempre favorecer à

servidão e incentivar a cultura da barbárie e da destruição.

168 Walter Strasz, sobrevivente de um dos campos de concentração nazista, narra o martírio das mulheres em

Altenburg no Documentário de Buchenwald (HACKETT, 1998, p. 283), e conta que “[...] a comida era pouca para o trabalho pesado. As condições de trabalho eram duríssimas e as sanitárias inadequadas. Elas eram supervisionadas por inspetoras do SS do sexo feminino e os homens pelo oficial da turma de trabalho. As mulheres eram espancadas com chicotes ou vara nas cabeças e nas costas. Elas tinham as cabeças raspadas pela menor transgressão; falar com homens era, é claro, estritamente proibido e as surras eram freqüentes [...]”.

169 A recusa das Testemunhas de Jeová em prestar juramento ao Estado ou fazer o serviço militar os transformou em alvos da perseguição nazista. Os sofrimentos vividos, as prisões, punições, humilhações e mortes são testemunhas históricas do perigo que representam o fanatismo, a discriminação e a intolerância religiosa (HACKETT, 1998).

170 Os depoimentos apresentados acima, com base no Relatório de Buchenwald (HACKETT, 1998), pretendem não só lembrar um dos capítulos sombrios da história da civilização moderna, mas, servir de alerta ao perigo que representa todo tipo de discriminação e intolerância social, étnico-racial e religiosa.

171 Cf. HCH, p. 126, 127; “Sobre a relação com outras concepções religiosas, Marcel compreendia que; “O Deus transcendente e infinito dos Cristãos é o mesmo Deus transcendente e infinito dos Judeus e do Islame”. Apesar de se declarar católico confesso ele nunca se colocou como um fiel intolerante, radical e prosélito. Sua postura foi sempre de buscar outras visões de mundo que pudessem iluminar seu pensar e visão acerca do transcendente.

Page 173: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

171

A verdade do Ser é algo maior e mais significativo do que as afirmações e os

imperativos políticos e histórico-religiosos172. Ela é uma certeza, num sentido existencial, que

se encontra totalmente desprovida de falsidade, arrogância, egoísmo e pretensão ideológica.

Assim como a existência é única, singular e inconfundível, a verdade também o é; ela é

consciência da realidade que sou e não uma mera representação das coisas externas. A

verdade tem a capacidade de elevar a existência acima de tudo aquilo que lhe é prejudicial e

paralisante. Sua natureza resulta na preservação e realização do homem diante da realidade e

das contingências do meio em que ele vive. Nela, o ser identifica-se interiormente,

conformando-se a si mesmo, na sua totalidade, que é sentido e é presença. A liberdade não

existe em si, mas evidencia-se através da existência como parte constituinte do ser integral.

O homem não pode ser ou permanecer livre, senão na medida da ligação consigo

mesmo. É direito de todo homem reconhecer-se livre. Poder ir, vir, pensar, existir e Ser são

condições fundamentais para o desenvolvimento do ser humano. A liberdade e a verdade não

se afirmam na rede das aparências, dos simulacros, dos funcionalismos ou da servidão

(MARCEL, 1940). Um Ser livre nunca perde a consciência de que é através da abertura e

acolhimento à verdade do outro, que a sua própria liberdade é assegurada. Um ser livre

valoriza o encontro, onde ele sai do isolamento da autonomia pessoal, para habitar o universo

da heteronomia existencial.

2.1.3.4 Liberdade e heteronomia

O existente é um inesgotável concreto (MARCEL, 1927). O reconhecimento de que há

no Ser um irredutível constitui-se no ponto fundamental da condição metafísica do homem.

Pretender determinar sua caracterização é ousar mantê-lo no campo da posse e no reduto do

domínio. A noção do ter instaura uma degradação entre o existente pensante e o Ser que

conhece; entre a abstração sobre o modo como o homem concebe a si mesmo e os outros173 no

172 Apesar de declarar-se católico, Gabriel Marcel (2003) recusa-se a assumir uma postura fanática, excludente e

dogmática da fé. Conforme Pierre Colin (2009), Marcel ao explorar o mistério da encarnação, enquanto expressão da vocação pessoal do Ser, procura estabelecer o diálogo entre Filosofia, Religião e Cristianismo, chamando nossa atenção para a recíproca interrogação que deve constituir as relações humanas. “Mais sensível do que nunca ao valor infinito das pessoas mostra-se ansioso por humanizar os homens, por preveni-los contra os perigos da tecnocracia e as tentações do desespero. Visa dilatar os horizontes e os corações. Sobretudo, recusa qualquer confessionalismo no sentido estrito da palavra, e faz-se apóstolo de um universalismo da caridade [...]” (TROISFONTAINES, 1966, p. 245-246).

173 Cf. ‘Éthique, Espérance et Subjectvité (BALEKE, 2010). Nesta obra, o autor procura assinalar a possível e necessária relação que pode haver entre as noções da ética, do sujeito existente e da esperança. O modo como Gabriel Marcel, ao pensar sobre a relação intersubjetiva, destaca a liberdade do Ser como princípio orientador e qualificador das relações humanas. A forma como, para Marcel, a compreensão que o homem constrói de si, na relação com o outro, pode se constituir numa hermenêutica do sujeito, que transcendendo os ditames da

Page 174: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

172

mundo; entre a distinção sobre o sentimento que tenho e o sentimento que sou. Sobre esta

obliteração, Marcel comenta:

Em princípio, o que se tem são coisas, e principalmente na medida em que esta assimilação é possível. Não pode ter, em um sentido estrito da palavra, mais que algo que possua uma existência até certo ponto independente de mim. Em outros termos, o que tenho se liga a mim; mas mesmo assim, o fato de ser possuída por mim se liga a outras propriedades, qualidades e etc., pertencentes à coisa que tenho. Não tenho aquilo de que posso em certo modo e em certos limites dispor; ou seja, dito de outro modo, o quanto pode ser considerado como uma potencia, como um ser dotado de poderes. Não há transmissão possível senão daquilo que se possui (MARCEL, 2003, p. 144).

A inesgotabilidade do Ser não se limita à dimensão da posse. No ter, o homem se

aproxima de uma possível compreensão exterior, a respeito de si mesmo; de um

conhecimento que é sempre aproximado, mas nunca absoluto e total. A reciprocidade é o

princípio fundante da relação entre o ser e o ter. O homem não se faz em função das coisas;

sua formação se dá em direção ao Ser. Na dialética entre o ser e o ter o homem não se vê

como um fim em si mesmo, pois a condição humana é oposta a tudo que está fechado e

encerrado em si próprio (HEIDEGGER, 2009b). Na itinerância, o Ser não se afirma isolado

ou encapsulado. Seu movimento não é de autossuficiência; é de abertura. Sua postura não é de

independência; é de disponibilidade.

Na indisponibilidade, o homem se encerra na posse. Na independência, ele se fecha a

outras possibilidades, não reconhece a subjetividade do outro nem assume sua liberdade. Seus

relacionamentos são sempre movidos pelo interesse de legislar, controlar, governar e gerir.

Possuir representa exercer controle, fazer prevalecer sua própria lei, mostrar-se autônomo e

centrado em si mesmo. Em virtude deste caráter reducionista da existência, Marcel faz uma

aguda crítica à ideia de autonomia,174 enquanto um princípio de posse e governo de si.

De acordo com Gabriel Marcel (1968), o homem autônomo não é um ser livre, é um

escravo de si mesmo. Alguém que se comporta como um gerente, um administrador abstrato e

ostensivo. Manifesta-se um comportamento no qual o homem não se afirma, se anula, não se

desenvolve, mas, atrofia-se existencialmente. “A ideia de autonomia está ligada a uma sorte

de redução ou particularização do sujeito [...] ela vincula a existência a uma zona de

técnica, do racionalismo e do dogmatismo, se revela como um ensaio de uma verdadeira fenomenologia da esperança.

174 “Termo introduzido por Kant para designar a independência da vontade em relação a qualquer desejo ou objeto de desejo e à sua capacidade de determinar-se em conformidade com uma lei própria, que é a da razão” (ABBAGNANO, 2007, p. 97).

Page 175: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

173

atividades rigorosamente circunscrita” (MARCEL, 2003, p. 121). O homem mais centrado em

si é o sujeito menos livre.

Tomar a autonomia como um princípio circunscrito e redutor da existência é colocar o

homem contra si mesmo, é declarar seu próprio encarceramento. É transformar a ética

kantiana num monstruoso contrassenso. Conforme Kant, toda ação humana deve guiar-se pela

máxima: “Age de tal maneira que o motivo que te levou a agir possa ser convertido em lei

universal” (KANT, 1999, p. 15). A observância deste imperativo constitui-se tanto num

mecanismo equalizador das ações, como num fator de equilíbrio para o exercício do dever.

Segundo Wilhelm Dilthey, o “imperativo categórico kantiano” propõe uma articulação entre

a dimensão moral, o aspecto legal e a própria humanidade do sujeito. A descrição desta

relação se caracteriza pelas seguintes premissas:

Age de acordo com as máximas que tu quererias que fossem as leis universais, ou como se tais princípios orientadores das tuas ações se convertessem, por tua vontade, numa lei natural universal; Age de modo humano, tanto em relação a ti como em relação a qualquer um, sempre como fim e nunca como meio; Age segundo a ideia da vontade de todo o ser racional, como vontade legisladora universal (DILTHEY, 1961, p. 210).

Somente através da vivência existencial, dos aspectos e implicações destes princípios,

é que se pode viver e conhecer a liberdade mais plenamente, pois, de acordo com Kant, a

liberdade não é determinada por nenhuma causa externa ao Ser, não é fruto do mundo da

experiência, nem expressão causal da relação espaço-tempo. A liberdade fundamenta-se na

razão, seu objetivo é promover a formação do Ser e torná-lo, cada vez mais, comprometido

consigo e com os outros que vivem à sua volta.

A liberdade do Ser não se afirma num autocentrismo. Na apreensão da liberdade, o

homem sai da dimensão autônoma para a experiência heterônima. Na autonomia o homem se

enclausura, isola-se, impermeabiliza-se e não participa. Na vivência heterônima o Ser se abre,

doa-se, disponibiliza-se, compromete-se e se engaja. A heteronomia175 é solidária e criadora

de vínculos humanos profundos e autênticos. Por ela, o homem se cria e reinventa seu próprio

175 “À heteronomia, é o princípio em que a vontade é determinada pelos objetos da faculdade de desejar. Os

ideais morais de felicidade ou perfeição supõem a heteronomia da vontade porque supõem que ela seja determinada pelo desejo de alcançá-los e não por uma lei sua. A independência da vontade em relação a qualquer objeto desejado é a liberdade no sentido negativo, ao passo que a sua legislação própria é a liberdade no sentido positivo” (ABBAGNANO, 2007, p. 97).

Page 176: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

174

mundo. Na heteronomia, a igualdade se transforma em fraternidade e a liberdade, em

experiências concretas.

A heteronomia transcende a autonomia. Por ela, o Ser se faz humana e

existencialmente. A liberdade do Ser não se confunde na autonomia, mas traduz-se em

abertura heterônima e dialética, numa abertura possibilitadora do acesso de si e da verdade do

outro. A liberdade não se arraiga no condicionamento do ter-autonomia, porque esta, o

escraviza e o distancia. A liberdade não é autônoma, mas, heterônima e iluminadora da

compreensão do Ser, das suas atividades e das relações humanas.

Desde que estamos no ser, estamos para além da autonomia. Esta é a razão por que o recolhimento, enquanto é a retomada do contato com o ser, me transporta para uma zona na qual desaparece a autonomia. E isto também vale da inspiração e de todo ato que engajou globalmente meu ser. Quanto mais sou, quanto mais me afirmo como sendo, tanto menos me coloco como autônomo (MARCEL, 2003, p. 123).

Na heteronomia, a liberdade exige e invoca uma constante busca pela relação interior e

pela exterioridade, um chamado a uma ascese de purificação da redução e particularização do

sujeito. A heteronomia é caminho para apreensão de novas possibilidades e responsabilidades

existenciais. Através dela, “o ser mais autônomo torna-se, em certo sentido, o mais

comprometido” (MARCEL, 2003, p. 160).

Movido pela heteronomia, o Ser não tem medo de perder-se, porque sabe que, através

dela, pode se encontrar e/ou se achar. Através da heteronomia o homem pode sair da inércia

da autonomia para o engajamento promotor de outras liberdades e realidades existenciais. O

conjunto de ações que “[...] encontram sua compensação nas atividades centrais pelas quais o

homem se situa frente ao mistério que o funda e fora do qual não é senão puro nada”

(MARCEL, 2003, p. 161); este é um testemunho da liberdade176.

2.1.3.5 Liberdade e testemunho

Em que consiste a misteriosa relação entre o homem, a liberdade e sua situação

concreta? É possível falar de testemunho, numa época onde reina a suspeita, impera a

desconfiança e as pessoas e suas relações se tornam, cada vez mais, técnicas, funcionais e

176 Cf. DH, p. 198, “L’essence de notre être se revele dans ce pouvoir que nous avons de nous convertir, ou

plutôt dans ce pouvoir que nous sommes, puisque la liberte n’est pas un choix nous faison, mais un choix que nous sommes”.

Page 177: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

175

utilitárias? É no âmbito destas tensões que as perspectivas da fé no humano, da liberdade e do

testemunho do Ser, se articulam no pensamento filosófico de Gabriel Marcel.

De acordo com Marcel (1968), o testemunho é a única via de acesso à verdade do Ser.

Por ele, nos acercamos da realidade do mistério, cuja presença, apenas pré-sentimos, mas,

nunca esgotamos cognitiva e plenamente. O testemunho, enquanto manifestação do Ser,

apresenta-se numa dimensão meta-empírica, quando pretende orientar e afirmar o homem

para além dos processos racionais e objetivos de sua própria existência. Assim, o testemunho

é algo que só o ser humano é capaz de fazer.

Em um plano empírico, esta noção não suscita nenhuma dificuldade apreciável; dizer que tem sido testemunha de certa cena é dizer que assistiu a ela, e isto significa que tenho, ao menos até certo ponto, consciência, do que ocorreu. Dalí provém uma possibilidade ativa de declarar um dia, se é necessário, que efetivamente presente quando o fato se produziu, e dá algumas indicações do que foi para mim seus aspectos claros. Poderia agregar que se cria certa conexão entre esse fato e minha própria existência, o que me permitiria dizer, si se trata o caso, ao declarar ante um tribunal: tão certo como diante de vocês, ocorreu isso em minha presença, não podeis recusar minha afirmação, como não podeis negar minha existência hic et nunc (MARCEL, 1951a, p. 309).

A conexão entre fato, palavra e testemunho é indispensável para que o mesmo seja

aceito como algo digno e verdadeiro. O testemunho só faz sentido quando a encarnação do

Ser se desvela em coerência e revelação dos seus atributos; quando o homem passa a agir

incondicionalmente e de acordo com as qualidades e virtudes contra as quais não pode pecar.

Esta conexão só minha palavra pode estabelecer, porque esta palavra responde de si mesma e não os reconhece o direito de pô-la em dúvida. Aqui intervêm o juramento implícito no ato de testemunhar, e que é a palavra consagrando-se a si mesma. Em um mundo em que tem desaparecido o sentido do sagrado, o juramento se torna impossível, não tem sentido, e por acaso havia que considerar nesta perspectiva a perversão das instituições judiciais da que realmente somos testemunhas. Há que ter em conta que o testemunho se refere sem dúvida a algum caso histórico. Nem o matemático, nem o físico, enquanto tais podem ser testemunhas, e isto depende antes de tudo do fato de que aparecem em certo sentido como o lugar em que uma verdade se revela que, por outra parte, tende a suprimir, ou ao menos relegar a pura contingência esta espécie de meio ou de veículo que necessito em um momento dado. Porque quando o testemunho intervém e continua sendo necessário como testemunho, é o ser que fundamenta o testemunho. É um ser vivo que se intercala em determinado momento da história; se sobrevive a si mesmo sem deixar de ser ele mesmo [...] (MARCEL, 1951a, p. 310).

Page 178: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

176

Notemos que nestes termos, o mundo do testemunho é o mundo da liberdade. A

atmosfera na qual o Ser não pode converter-se num sujeito falso, em alguém que se insurge,

contraria e nega sua própria verdade. No testemunho, o homem anuncia a condição prévia de

uma espiritualidade concreta177. A articulação entre Ser e testemunhar não é analítica, fictícia,

cênica; é encarnação e conversão do Ser a si mesmo. É uma graça pela qual “o homem é

chamado a converter-se no próprio testemunho; um testemunho vivo” (MARCEL, 1951a, p.

313) da verdade de si; um testemunho que se torna fiador do Ser.

A fé no humano178 é o fundamento do testemunho. “A fé não é por si mesma um

movimento da alma, um transporte, um arrombamento; é antes de tudo um testemunho

perpétuo” (MARCEL, 2003, p. 199), uma expressão de generosidade do Ser, que toma corpo

e se presentifica incondicionalmente, através do encontro e do diálogo. Por situar-se na

dimensão espiritual do Ser, podemos apenas acessá-lo, mas nunca captá-lo integralmente.

Afirmar que não é possível defini-lo totalmente não significa que devamos ignorá-lo. Em

virtude do seu caráter inapreensível, podemos “dizer que esse não identificável deve ser visto

como uma luz a qual saudamos como uma presença” (MARCEL, 1951a, p. 307).

Assim como a fé, o testemunho também exige suas garantias (MARCEL, 1938). O

penhor do testemunho não se encontra apenas na razão; pois, a tendência da nossa dimensão

cognitiva é sempre reduzir a experiência à superfície do nosso conhecimento. Ora, a memória

para Marcel não é o algoz do testemunho; pelo contrário, ele a vê como um aspecto essencial

da afirmação ontológica (MARCEL, 1927). Pela memória, o testemunho do Ser reverbera

dentro e para além de si mesmo. A memória, que é capaz de aproximá-lo do sentido, é a

mesma que anuncia e confirma sua própria dimensão transcendente.

O testemunho é uma declaração que invoca uma realidade, que confirme a verdade do

que foi apresentado; a constatação do fato em si. É uma realidade que comporta as dimensões

exterior e interior do Ser. O aspecto exterior tem seu valor e lugar de confirmação. No

177 “Não se confunde essa dimensão com a religiosa, que, em parte, pode incluir a espiritual, mas que contém

algumas características, como as da revelação com intervenção direta de Deus e de um tipo de organização social que, dessa forma, são estranhas ou não necessárias à dimensão espiritual [...] A dimensão espiritual transcende a realidade empiricamente verificável e, nem por isso, deixa de ser realidade para quem se volta para ela e se compromete com ela [...] Entro na dimensão espiritual no momento em que me identifico com algo; e eu sinto que isto se torna apelo incondicional para mim” (RÖHR, 2010, p. 15). Esta dimensão representa o conjunto de valores éticos e conhecimentos filosóficos com os quais me identifico e me comprometo existencialmente.

178 “Não se trata, todavia, de uma confiança neste ou naquele homem determinado, senão de uma confiança no mundo e na vida, em geral, que jaz mais profundamente e que só possibilita cada confiança determinada [...] Uma confiança na vida, entendendo vida e o mundo num sentido geral, que envolve juntamente homem e mundo [...] Uma confiança no ser como precondição necessária para toda vida humana” (BOLLNOW, 1962, p. 23-24).

Page 179: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

177

entanto, o testemunho encontra, na dimensão interior, que brota das profundezas do ser, seu

fulcro inspirador e fonte de toda expressão; a conexão entre a experiência – testemunho

exterior – e a consciência de si – testemunho interior. Por situar-se como expressão do Ser é

que o testemunho sai da perspectiva do fato, para se tornar um ‘modus vivendi’, uma conexão

entre o que se diz e o que sou integral e existencialmente.

Na concepção de Gabriel Marcel, este modo de vida se funda, por base, através de um

duplo modo de conhecimento

[...] por um lado, ele se funda numa base de sustentação pela qual procura resistir aos assaltos da reflexão, que assim se converte em um meio, um estímulo, que torna possível sua purificação, e por outro, exige que esta mesma reflexão reconheça a legitimidade da fé, apreendida em seu ponto de partida, em sua essência mais abstrata (MARCEL, 1951a, p. 308).

Desta maneira, a investigação sobre o Ser não poderá fazer oposição à filosofia da

liberdade. Pelo contrário, evitará termos, cada vez mais, abstratos e forçosamente híbridos,

para se pensar concretamente o que é o Ser, buscando distinguir sua pseudo-assimilação.

Neste sentido, “purificar-me é, em última instância, fazer-me cada vez mais permeável a luz,

porque não é suficiente: é tornar-me cada vez mais capaz de irradiar a minha vez” (MARCEL,

1951a, p. 309).

O testemunho é o acontecimento no qual o Ser se manifesta autenticamente. O

acontecimento não se compreende de uma vez e totalmente; antes, significa um ponto de

partida, um movimento que se deve seguir sem trégua e com determinação. O testemunho não

se concretiza de modo linear, acontece entre os processos contínuos e descontínuos da

experiência existencial. Na imaturidade, às vezes, o homem acaba considerando seus

momentos de tribulação como uma negação do processo, quando na verdade, deveria encará-

los como algo pertencente à sua própria condição de ser-em-situação. Marcel considera esta

forma de avaliação um equívoco, e sobre isto, comenta:

O erro mais grave de que pode fazer-se culpável um converso consiste em crer-se estabelecido e instalado de uma vez por todas em certo lugar de privilégio, desde onde poderia considerar com atenção condescendente as tribulações de quem, todavia, não tem conseguido esta espécie de ‘domicílio’ (MARCEL, 1951b, p. 313).

Page 180: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

178

O homem que busca a unificação da alma deve convencer-se de que, neste plano, nada

pode ser construído de uma vez por todas e num único momento179 (BUBER, 2011). Na

linguagem do ter o homem só detecta uma única opção: ganhar ou perder. Na perspectiva do

Ser, o homem não considera que a vida acontece num único instante e de uma única forma.

Por estar ligado à dimensão concreta, ele se depara com o universo de suas múltiplas

possibilidades, com a condição de fazer-se, mediante as noções do tempo e do cuidado de si.

Sobre esta necessária atenção, Marcel pontua que

Seria oportuno mostrar a extrema importância de certa delicadeza ligada a esse respeito concreto. De bom grado compararia esta delicadeza com os cuidados que deve tomar um horticultor para assegurar o crescimento de uma planta muito frágil. Porque neste caso, muito paradoxalmente, o horticultor deve reconhecer-se a si mesmo como uma planta exposta a machucar-se pelo tempo e pelo hábito. Por uma espécie de tratamento admirável, deve seguir a escola do novicio, enquanto a condição mesma deste último o imuniza por um tempo contra esse mesmo machucado. Assim se realiza uma interação totalmente espiritual, que arraiga no amor mesmo enquanto caminho e não uma simples disposição (1951b, p. 314).

Assim como as plantas e as frutas, tanto a fé como o testemunho possuem um caráter

de vulnerabilidade180. Todavia, a possibilidade de intervalo entre o sentimento que tenho e o

sentimento que sou não é uma negação da presença do Ser no mundo, mas, uma prova da

condição existencial de sua própria encarnação e itinerância.

A vivência caminhante do viajante implica numa relação interdependente entre a

disposição e a participação. Na disposição, o homem se desprende em busca da

inteligibilidade de sua concretude; na participação, o Ser se engaja e participa integralmente.

Através do comprometimento, o homem pretende afirmar que a fé que tem em si transcende a

toda e qualquer suposição possível, pois, “[...] não há que vacilar em dizer que minha fé será

tanto mais autêntica quanto mais incondicional ela for” (MARCEL, 1951b, p. 315).

179 Martin Buber ilustra este processo gradual dizendo; “Num dos dias da Festa das Luzes, o rabi Nachum, filho

do rabi de Rizin, chegou inesperadamente na escola e encontrou os alunos jogando damas, como era costume nesses dias. Ao verem o zaddik entrar, eles ficaram confusos e pararam. Ele, entretanto, cumprimentou-os amistosamente e perguntou: Vocês conhecem as regras do jogo de damas? Como os alunos não conseguiam sequer abrir a boca, de vergonha, ele mesmo deu a resposta: Quero lhes contar as regras do jogo das damas. A primeira é que não se pode andar duas casas de uma vez. A segunda, só se pode andar pra frente, nunca pra trás. E a terceira é que, quando chegamos ao topo, é possível andar para onde se quer” (BUBER, 2011, p. 28).

180 Cf. MS, p. 307; “En ciertos momentos mi propia fe puede parecerme extraña; un intervalo se produce así entre el yo creyente u orante y el yo que reflexiona. La posibilidad de este intervalo entre yo y yo mismo está como implicada en lo que soy, y debo considerarla de frente. Pero justamente en tanto la considero, la afronto, dejo atrás esta oposición, es como si surgiese una unidad de tipo nuevo entre esos dos aspectos de mi yo que en un principio parecían antagónicos”.

Page 181: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

179

O homem, verdadeiramente tomado pela fé, encontrará, no testemunho, a assistência e

o suporte para manter-se coerente181. Neste aspecto, para que seja reconhecido como válido, o

testemunho exige uma liberdade que o acolha e o afirme; uma liberdade que aponte para um

modo de existência possível; para uma condição de agir de acordo com os aspectos

constituintes de sua própria existência. Movido pela liberdade, o Ser deverá fazer escolhas

que sejam coerentes com suas situações implícitas e que estejam em harmonia com aquilo que

o constitui em sua dimensão mais íntima: a consciência de si. Esta é uma vivência que implica

em dizer que

[...] perante a escolha nunca se oferecem alternativas diferentes que nunca é um comparar, um separar, um selecionar, mas sempre e unicamente o reconhecimento e a aceitação daquela única possibilidade implícita na situação de fato que constitui o meu eu [...] Admitir que podemos pertencer a outro povo, se aquele ao qual pertencemos de fato nos aparece como estranho; que podemos desconhecer os nossos próprios pais porque não temos culpa daquilo que eles são; que podemos amar outra mulher; e que, em geral, podemos recorrer àquelas possibilidades sempre novas de que a vida está repleta, significa, trairmo-nos a nós mesmos (ABBAGNANO, 1976, p. 71).

A liberdade do Ser o coloca diante da fidelidade criadora; diante do testemunho

criador de si mesmo, da atitude que torna possível o acesso à luz, que nos faz perceber o que

verdadeiramente temos sido, à medida que revela o sentido oculto dos acontecimentos que

nos cercam. Esta luz não só insere o homem na claridade, mas o coloca também na penumbra.

Este é um movimento de aproximação e distância, que pretende nos ajudar a penetrar, mais

profundamente, na realidade que está, sem dúvida, mais além da nossa vida. Na luminosidade

do nosso próprio testemunho, nos desprendemos de nós mesmos e nos sentimos exigidos a

decidir entre o Ser e o Ter.

Em última instância, Gabriel Marcel destaca que o pensamento especulativo tem

fracionado a relação do homem consigo mesmo, com os outros e o mundo. A redução do

homem a unidades objetivas tem contribuído para abstrair a noção do Ser, levando-o à perda

de si e à desconfiança com relação aos outros e ao futuro da própria humanidade (MARCEL,

1951b).

181 Diante das pressões do Partido Nazista alemão Karl Jaspers se recusou a entregar sua esposa Gertrud Mayer,

que era de descendência judia, para os campos de concentração, por entender que agir deste modo consistia em negar a consciência que tinha de si e suas próprias convicções. Segundo Jeanne Hersch, “ela era uma companheira para cada dia e de cada pensamento. Alguém, em que ele descobriu ‘a presença de uma alma clara’, capaz de ‘o preservar de todo o conforto moral’. A ‘seriedade inexorável’ com que levaram a vida em comum, foi para a sua pesquisa filosófica uma fonte inesgotável de coragem e serenidade” (HERSCH, 1978, p. 8).

Page 182: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

180

Na relação entre liberdade e testemunho, o teórico chama atenção sobre os riscos de

cairmos em simplificações arbitrárias e conteudistas. Ele fala do cuidado permanente de

buscar sempre enxergar o Ser na perspectiva do horizonte. A necessidade de “voltarmos a

encontrar mais uma vez o nó inextricável da liberdade, do testemunho e da graça que está no

coração de todas as meditações” (MARCEL, 1951a, p. 321), uma forma de compreensão da

vivência humana que não se esgota em si mesma, nem se limita ao conjunto de suas funções,

mas, que se abre diante de si e para o outro, intersubjetivamente, em direção ao encontro do

seu absoluto, da transcendência.

2.1.4 Intersubjetividade: o homem como ser de comunhão fraterna

A intersubjetividade é parte fundante da ontologia de Gabriel Marcel. Ao fundar-se na

relação entre o eu e o tu, a meditação marceliana opõe-se aos processos objetivistas das

relações humanas, quando pretendem, não só a abstração da experiência individual do Ser,

como o esvaziamento das relações humanas e sociais. “O tu, diz Marcel, é para a invocação o

que o sujeito é para o juiz” (WAHL, 1962, p. 111).

Por compreender que a relação interpessoal é fundamental para a apreensão da

verdade do homem182 é que nos lançamos ao estudo sobre o lugar do outro na formação do

Ser, sobre o papel da disponibilidade no processo de constituição do ser e a importância da

comunicação existencial, para o desvelamento do mistério do ser. Nossa pretensão é mostrar

de que maneira, para Marcel, a relação intersubjetiva pode contribuir para a construção dos

laços fraternais que, pretendendo ser humanos, se afirmam como expressão da própria

capacidade de os homens se fazerem entre si.

2.1.4.1 O lugar do outro na formação do ser

O homem do século XX é, caracteristicamente, um Ser de ambivalências (BAUMAN,

2007). Alguém que convive com um conjunto de fatos e acontecimentos que lhe inseriram

numa realidade, marcadamente, paradoxal. Uma época de grandes elaborações científicas e

pouca preocupação com o humano, um período de forte desenvolvimento armamentista e

limitada segurança pessoal. Um momento de magníficas descobertas e intensas posturas

ideológicas, uma fase de muitos discursos e agudas intolerâncias, um tempo de muitas 182 “C’est la philosophie de l’intersubjectivité qui a conduit Gabriel Marcel au Verbe incarné” (HATEN, 2004, p.

9).

Page 183: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

181

mudanças e escassas esperanças (SENNETT, 2009). Um período de importantes avanços e

profundas fraturas sociais, políticas, éticas, religiosas, educacionais, ecológicas e etc. Uma

época de muitas utopias, intensas agonias e desencantos, uma condição existencial em que o

Ser se enxerga como “El Hombre Problemático” (MARCEL, 1956b).

O mundo desta época é um lugar onde o homem tem que conviver, simultaneamente,

com o crescimento das grandes cidades e os distanciamentos das relações, o encurtamento das

distâncias e o alargamento das in/diferenças, o desenvolvimento tecnológico e a concentração

de recursos, o fortalecimento da imprensa e a omissão das informações, a criação dos meios

de comunicação de massa e o isolamento das convivências (MARCEL, 1951b). O homem do

mundo técnico-urbano é, necessariamente, um sujeito que dá muita importância à organização

sócio-industrial, mas, pouca ênfase à natureza da relação que deveria unir a existência de um

Ser a um outro Ser existente.

É no âmbito da realidade de um mundo roto, do vácuo social e dos reducionismos

objetivistas das relações pessoal e interpessoal que Gabriel Marcel discute o problema do

anonimato do tu com relação ao eu e o lugar do outro na formação humana e existencial do

Ser. Neste sentido, cabe-nos perguntar: acaso não há uma condição normal do eu que não

deveria ser confundida com suas deformações e perversões? Poderá o ser humano superar o

espírito de abstração e criar novas vias construtoras de sentido? “Devemos dizer por isso, que

a essa egolatria, a esta idolatria do eu, há que colocar-se uma doutrina racionalista do

impessoal?” (MARCEL, 2005, p. 32). Em que condições é possível tomar consciência de

mim como eu mesmo?

Gabriel Marcel, ao descrever as tensões e mudanças que envolvem a natureza do

espírito de abstração, procura chamar atenção para as causas que têm contribuído para levar o

homem à perda da noção de si. Na base das fraturas humanas, encontra-se o espírito do

individualismo. No individualismo o ‘eu’ torna-se o eixo motriz, aquele por meio e ao redor

de quem tudo gravita. A visão que o individualista possui de si é cosmográfica, a crença que é

o centro em torno do qual todo o resto gira e funciona.

Com efeito, é igual às noções cosmográficas que podemos possuir não nos impedem de manter a impressão imediata de que o sol e as estrelas giram ao redor da terra, do mesmo modo não nos é possível escapar completamente aqui abaixo ao prejuízo pelo qual cada um de nós tende a estabelecer como centro ao redor do que gravita todo o resto, sem ter mais que gravitar (MARCEL, 2005, p. 31).

Page 184: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

182

O espírito do individualismo183 é a competitividade. Uma máxima do mundo

contemporâneo que se reflete sobre as relações sociais, interpessoais, profissionais e

educacionais. Sobre a realidade da educação, Marcel (2005) diz que a máxima individualista

se apresenta de maneira deformante nos sistemas asfixiantes de exames, provas e concursos,

nos quais se debate nossa juventude, um regime que tem contribuído para debilitar, ao estágio

anêmico, o sentido autenticamente da vivência comunitária. Esta dilaceração sócio-educativa

se dá à medida que reduzimos o aluno a uma nota, número, conceito ou classificação. Neste

processo, este outro é coisificado, abstraído da consciência de si e despersonalizado perante o

mundo.

Movido pelo egoísmo, o individualista não encontra motivação para acolher e receber

o outro subjetivamente. Por viver autocentrado, ele se considera investido de privilégios e

direitos que fazem-no pensar184 que os demais representam um obstáculo ou uma caixa de

reverberação de sua autoimagem narcísica185 e ególatra186.

No culto ao ‘eu’, o outro é reduzido à dimensão de servo subalterno, alguém que está

ali para admirar, prestar reverência, reconhecimento, copiar e seguir187. Pela autolatria, o

homem se vê como alguém superior e melhor que os outros, à medida que se reconhece como

um guardião da originalidade e centro das atenções.

183 O valor atribuído por Gabriel Marcel ao lugar do outro no processo de formação do Ser, não se coaduna com

a máxima individualista nem com as perspectivas de envolvimento do coletivismo. Para este teórico, tanto uma como a outra abstrai o homem de si e mutila sua autocompreensão. Martin Buber, próximo da compreensão de Marcel, afirma que “Se o individualismo não abarca mais do que uma parte do homem, assim ocorre também com o coletivismo; nenhum dos dois se encaminha para a integridade do homem, para o homem como um todo. O individualismo não vê no homem mais do que na sua relação consigo mesmo, contudo o coletivismo não vê o homem, não vê mais do que a sociedade. Num caso o rosto humano encontra-se desfigurado, no outro oculto” (BUBER, 1976, p. 142).

184 Cf. HV, p. 30; “[...] un régimen tal, que exacerba la conciencia del yo, o si se quiere el amor propio, es al mismo tiempo el más despersonalizante que puede existir; pues lo que realmente tiene valor en nosotros es aquello que no es comparable, aquello que no tiene proporción con otra cosa”.

185 “Segundo Plotino, o mito de Narciso representa a situação do homem que, não sabendo que a beleza está dentro dele, procura-a nas coisas externas, nas quais tenta em vão abraçá-la. Essa interpretação ganha destaque sobre o pano de fundo da preocupação fundamental de Plotino, que é a da busca interior, ou da inferioridade de consciência. Algumas vezes, o significado desse mito foi invertido por autores modernos: o narcisismo não representaria a inutilidade da tentativa de buscar no exterior o que é interior, mas o autêntico destino do homem, que é projetar-se para fora de si e amar como tal o que está dentro dele” (ABBAGNANO, 2007, p. 698).

186 Cf. HV, p. 31-32; “No es menos cierto que este prejuicio, sean cuales sean las apariencias ventajosas con las que se adorna en los grandes egoístas, solo es, en última instancia, la transcripción de una exigencia puramente biológica, puramente animal; y las filosofías nefastas que principalmente en el siglo XIX han intentado emprender la justificación de esta posición no solo han significado una regresión con relación a la sabiduría secular de la humanidad civilizada: no se poner en duda ni un instante que han contribuido directamente a precipitar a los hombres en el caos en el que se debaten hoy”.

187 Cf. HV, p. 36; “[...] entonces todo ocurre como si yo no fuera realmente más que un instrumento, un simple engranaje, en resumen, como si el poder humano por excelencia, que consiste en actuar, me hubiera sido negado”.

Page 185: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

183

No autocentrismo, o autólatra sente-se movido a reduzir o humano à dimensão da

coisa e do objeto. A cultura autocentrista incita, com efeito, cada um a comparar-se com o

outro, a dar-lhe um conceito, a procurar construir critérios de aceitação puramente exteriores

e, geralmente, de acordo com os padrões de avaliação que tomam como base os aspectos

econômico, estético, físico e/ou sócio-cultural.

Ao centrar-se sobre e acima dos outros, o ególatra reduz a dimensão humana ao nível

do ‘isso’. Seus artifícios são sempre de objetivar as pessoas pela indiferença; tratando-as com

distração e desvio do olhar; pelo sentimento de posse; considerando-as como objeto e/ou pelo

trato despersonalizador, quando as toma como se fossem coisas; desprezando-as como

indivíduos singulares e distintos. Neste estado, o Ser se aliena na ilusão da própria imagem e

passa a exercer uma relação de poder e controle, mediada pelo clima de subordinação,

rejeição ou aceitação de uns em detrimento de outros.

Recorrendo a fatos banais e elementares da vida quotidiana, Marcel (2005), à medida

que ilustra, esclarece as implicações antropológicas do espírito de abstração sobre a relação

entre o eu e o tu; a partir de dois exemplos. No primeiro caso, e de modo instrutivo, ele

recorda a experiência do menino, que ao levar para sua mãe umas flores que acaba de recolher

no campo, afirma: “Olha – disse -, sou eu quem as recolhi” (MARCEL, 2005, p. 25).

Na cena, descreve Gabriel Marcel, a criança se coloca como protagonista e chama a

atenção para si. Ela é a autora e executora do ato. Sou eu, disse ela e, ninguém mais.

Esta exclusão é capital: parece que a criança quisera atrair sobre si quase materialmente a atenção, louva extasiada, que se perderia de maneira mais fastidiosa do mundo se fosse dirigida a outra pessoa, e neste caso totalmente carente de mérito. A criança se distingue, se oferece a outro para receber dele um certo tributo (MARCEL, 2005, p. 25).

Na afirmação, ‘sou eu, ninguém mais’, a criança exclama que seu desejo é que as

atenções estejam voltadas apenas para ela. Nestas palavras há, não só, um anelo pela

afirmação de si, como a intenção de excluir o outro. O ‘tu’ que aparece não é o da inserção e

do acolhimento, é o ‘outro’, como mera testemunha da particularidade deste ‘eu’. Na

descrição da falta de modéstia, algo típico do universo infantil, Marcel denuncia a hipocrisia

social do mundo adulto, a complacente pretensão hegemônica.

Este primeiro episódio é ilustrado pelo segundo - o do cantor amador -, que ao

terminar de cantar uma melodia desconhecida, escuta, ao final, alguém exclamar: mas de

quem será isto? Neste caso, o ‘eu’ só aparece e é reconhecido como um componente

Page 186: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

184

promotor das conveniências sociais. Um simples dado perante o outro, que em si, só simula o

respeito ao tributo esperado.

O ponto comum entre estes dois momentos é que o ‘tu’ não aparece encarnado e

personificado subjetivamente. Em ambos os casos, constatamos que este ‘tu’, aqui presente, é

visto como um mecanismo188 da afirmação de um ‘eu’, que espera ser glorificado pelas

atitudes realizadas; entregar os ramos de flores ou compor e cantar uma nova música. Para

Marcel, tanto no primeiro, como no segundo caso, “o ‘eu’ implica apenas uma referência ao

outro, porque o outro é tratado como caixa de ressonância ou amplificador, do que se pode

chamar minha complacência para comigo mesmo” (2005, p. 26).

A exigência da definição do ‘eu’, como Ser pré-existente, implica na necessidade de

captarmos o outro a partir de si mesmo, de não recebê-lo como uma mera representação

sócio-convencional, de concebê-lo, como uma presença, buscando compreender que “não

posso alcançar o outro, se o colocar e o tratar como objeto diante de um eu-sujeito, mas

apenas a partir da presença do outro, alcançada como fator primitivo da minha experiência

existencial” (MOUNIER, 1963, p. 151).

De acordo com Marcel, “por presença entende-se algo mais e algo diferente ao simples

fato de estar aí; em rigor, não se pode dizer de um objeto que está presente” (2005, p. 27). A

presença se anuncia na experiência, que, em si, é irredutível e irrepetível. Um modo autêntico

de ser, que se apresenta como testemunho de um sentimento de profunda e verdadeira

pertença; a certeza de sentir que Ser é estar-no-mundo. A consciência de um modo próprio de

existir, como parte integrante de mim mesmo e fator incontestável da minha condição de ser-

encarnado. A presença e a pertença do Ser a si são sua própria resposta à doutrina racionalista,

reducionista e impessoal do ter.

A noção do ‘eu’, enquanto ‘tu’, não se afirma através de elementos ou dados

estatísticos. A captação do ‘tu’ não se dá separadamente da dimensão pessoal do Ser. Neste

sentido, Marcel diz que “eu me afirmo como pessoa na medida em que assumo a

responsabilidade do que faço e do que digo” (2005, p. 33). A relação entre o que sou e o que

faço representa, caracteristicamente, a marca própria do Ser pessoal.

Digamos ademais, que o eu tende a afirmar-se como pessoa na medida em que, assumindo a responsabilidade de meus atos, me comporto como um ser

188 Cf. HV, p. 29; “Pero aquí se impone una advertencia capital. Por el hecho mismo de que el otro no es tratado

por mí más que como una caja de resonancia o un amplificador, tiende a convertirse para mí en una especie de aparato que puede o creo poder manipular, o del que puede disponer; me formo una idea de él y, cosa extraña, esta idea puede disponer convertirse en un simulacro, en un sustituto del otro, al cual me veré llevado a referir mis actos, mis palabras”.

Page 187: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

185

real, participando em certa sociedade real [...] Podemos dizer ademais, e desde o mesmo ponto de vista, que eu me afirmo como pessoa na medida em que creio realmente na existência dos outros e na medida em que esta crença passa a dar forma minha conduta (MARCEL, 2005, p. 34).

O homem não é outra coisa senão aquilo que ele faz. Na coerência entre ser e fazer, a

liberdade e a responsabilidade se fundem e se tornam os aspectos estruturantes do

engajamento incondicional do Ser no mundo.

O entreveramento entre as noções de pessoa, compromisso, comunidade e realidade

representam a base de afirmação da presença do Ser no mundo. A unidade do Ser não se

desvela no isolamento e fechamento de si perante o outro. Encerrado no ‘eu’, o Ser torna-se

prisioneiro em e de si mesmo, um modo de vida difuso que o despersonaliza e o distancia dos

atributos da sua própria condição de ser interpessoal.

A pessoa do Ser não se faz na indiferença. O Ser se faz na abertura e no acolhimento

do outro. A partir do momento que decido acolher o outro em sua liberdade, deixo o reduto do

ser-para-si para transitar no universo do ser-com-outrem. O ‘eu’ descobre na relação com o

‘tu’ o caminho ascendente de sua própria elevação, uma emersão que se dá através do nexo

intersubjetivo. “O tu é aquele em quem nós nos descobrimos e pelo qual nós nos elevamos;

surge no seio da imanência como no seio da transcendência” (MOUNIER, 1963, p. 162).

Neste encontro, o ‘eu’ se liberta do domínio do ter e o ‘tu’ ultrapassa as linhas divisórias da

dimensão do ‘isso’ e da coisa.

Quando trato o outro como ele, reduzo-o a uma natureza: um objeto animado que funciona desta e não daquela maneira. Ao contrário, tratando o outro como tu, trato-o e concebo-o como liberdade; apreendo-o como liberdade, porque também é liberdade e não apenas natureza. Ainda mais: ajudo-o de algum modo a ser libertado, colaboro para sua liberdade – formula que parece extremamente paradoxal e contraditória, mas que o amor não deixa de verificar (MARCEL, 2003, p. 148).

Toda relação que anula a transcendência ou a subjetividade do outro demonstra por ela

mesma que tende a degradar-se em idolatria. Na generalização o Ser não transcende, regride;

na universalidade o homem não prescreve-se, se anula, e nas relações de poder, ele não se

concretiza, se autodeprecia.

Intersubjetividade e transcendência são aspectos constatadores e mobilizadores da

constituição do Ser. No âmbito da relação interpessoal o homem encontra a saída do

isolamento estéril, da vontade e do poder, e no seio da transcendência ele cria um universo de

experiência que não tinha realidade fora deste encontro. Ele compreende que “só a

Page 188: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

186

transcendência autêntica pode deixar subsistir a liberdade humana” (MARCEL, 1951b, p.

219), a crença que a verdade do Ser não está ou encontra-se no ‘eu’, mas no ‘tu’, e no

encontro com o outro, um encontro de subjetividades afirmativas da singularidade e modo de

Ser de cada um, uma interface que Fernando Namora descreve na sua poesia como um ‘Pacto’

entre subjetividades;

Não me estendas a mão como quem devolve o que dado não foi. Quando a deres a mão já não será tua mesmo antes de dada ser. É assim que aceito entrares em mim sem de ti saíres. É assim que nos saberemos tu e eu sendo um sem deixarmos de ser dois (NAMORA, 1984, p. 121).

Através da relação intersubjetiva eu me afirmo como pessoa à medida que creio na

existência do outro. O conhecimento de um Ser individual não se sobrepuja à dimensão do eu-

social. A existência do Ser não se realiza apenas através das repercussões a respeito de si

mesmo, sua constituição não implica no despojamento e na degradação efetiva do outro. No

encontro, o homem se afirma como presença livre, alguém que busca reconhecer na vivência

com e do outro a autenticidade da própria liberdade, a característica essencial do ser pessoa, a

saber, a disponibilidade.

2.1.4.2 O papel da disponibilidade189 no processo de constituição do ser

A situação espiritual dos anos que sucederam as duas grandes Guerras Mundiais foi

caracterizada por um clima de transformação brusca e desastre social. Diante do

desmoronamento de todos os valores e ideais desta época, tornou-se comum questionar-se

sobre a “situação” e a “decisão” que o homem deveria tomar frente aos desafios existenciais

deste catastrófico tempo (MARCEL, 1956).

Um tempo essencialmente confuso e pouco luminoso, que exige do homem a coragem

de decidir-se, mediante a condição indefinida e obscura de um ser que almeja, à semelhança

de um marinheiro após atravessar uma grande tempestade, encontrar um porto seguro. A

189 Citamos nesta parte a análise sobre a produção de Otto Friedrich Bollnow, por compreendermos que a mesma

está fundamentada nas elaborações de Gabriel Marcel. Ao tomar o homem em sua situação concreta, Bollnow reconhece o estado de abatimento e angústia que se encontra o homem face ao vazio das suas próprias relações. Situado no quadro da Filosofia da Existência, dos anos pós-guerra, ele diz que considera como ponto central de suas considerações o conceito de esperança, apresentado por Gabriel Marcel. Tomando as incursões filosóficas de Marcel como referência, Bollnow acrescenta: “creio que a contribuição da filosofia consiste na tarefa de fomentar a compreensão mais profunda das forças construtoras do homem, diante das inclinações mais difundidas que querem depreciá-las como se fossem ilusões” (BOLLNOW, 1962, p. 15). É a partir destas perspectivas, que propomos a excussão do pensamento de Marcel sobre a disponibilidade, com base nas compreensões e leituras do olhar filosófico-existencial de Bollnow.

Page 189: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

187

inquietação, segundo a Filosofia da Existência, por uma posição clara do Ser perante seu

próprio existir, possui um valor moral quando, diante do estado/situação de indecisão, o

homem resolve arriscar-se e/ou posicionar-se incondicionalmente para encontrar o sentido

mais profundo de sua vida humana. Sobre Posição e Situação, Bollnow explica:

Posição é o conceito mais geral. Designamos com o termo posição, num sentido muito amplo, o contorno vital do homem, a totalidade das circunstâncias que atuam sobre ele, fazendo prosperar o retardamento, daquelas com as quais o homem se comporta de alguma maneira determinada em cada instante da vida. Toda vida – não somente a humana como também a animal se encontra em cada instante em certa posição. A posição mesma pode ser muito diferente: pode significar uma pressão e instar as forças do homem a uma mudança das condições de sua vida; pode ser também uma posição tranqüila na qual o homem se sente tão bem que não pensa em trocá-la. Situação é, em compensação, somente uma posição especial, a saber, a que põe o homem frente à necessidade de uma decisão. A situação supõe, portanto, uma posição em que o homem tem que eleger entre diferentes possibilidades que se apresentam e acomodam sua vida de acordo com esta escolha [...] A situação não é, nem os instantes excepcionais, algo meramente dado, senão que se molda em forma determinada só enquanto o homem se vê em frente à escolha de uma decisão que tem que tomar desta forma ou de modo contrário (BOLLNOW, 1962, p. 41-42).

De acordo com Otto Friedrich Bollnow, a diferença entre estas duas condições indica

que o homem sempre se encontra em uma posição determinada, mas nem sempre em uma

determinada situação. A posição só é exigida em momentos específicos; enquanto a situação,

por incluir em si a noção de crise, só se revela à existência, em sua profundidade, à medida

que o Ser decide-se e alcança sua existência verdadeira.

Entre a decisão e a situação há sempre uma exigência ansiosa, um desejo de alcançar a

qualquer preço o resultado da escolha feita ou da opção preterida. Uma tensão que coloca a

vida humana em confronto e/ou crise com o inequívoco de suas próprias predileções e

posicionamentos. Desinstalado pela impaciência o Ser, sente-se entregue a um estado de

perdição e desesperança, uma condição de ameaça que obscurece e dificulta a leitura e o

discernimento do homem sobre o caminho que deve seguir ou não em sua existência.

As crises exercem um papel importante na existência humana; no entanto, seu

reconhecimento não deve significar que esta é a única forma essencial pela qual a vida pode

ser compreendida. Afirmar a crise, enquanto estado permanente da existência do Ser, e por

isso, necessariamente ela é quem conduz o homem para a tomada de decisão, é um erro fatal

que denuncia, tanto um desconhecimento da crise, como aponta para uma limitada

compreensão da própria vida humana. Sobre este argumento, comenta Bollnow:

Page 190: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

188

As crises não são, de acordo com sua própria essência, estados perenes senão situações excepcionais. São interrupções – por certo muito significativas – no fluxo normal da vida e cumprem sua verdadeira função quando levam para além delas mesmas a uma situação libertadora. Entre aquelas crises transcorre a vida por longo tempo em continuidade tranqüila sem que seja necessária uma decisão em sentido conciso e sem que por isso a vida tenha que ser inautêntica no sentido existencial-filosófico, quer dizer menos verdadeira ou menos essencial (1962, p. 43).

O teórico nos mostra que a vida acontece para além das crises. Seu desenvolvimento

se dá a partir e dentro de determinados marcos portadores de sentido, que chegam ao Ser,

tanto por meio do transcurso normal da vida, como através da vivência do homem com o meio

onde vive, ao longo de seu percurso histórico. A expressão da autenticidade do Ser não

aparece apenas quando este passa por períodos de crise. Sua evidência também pode se

manifestar durante o processo natural da vida, que transcorre independente de uma situação

específica de desarmonia entre o homem e o mundo que o rodeia.

Na concepção de Bollnow, não há nenhuma dúvida sobre a importante função que a

decisão, diante dos períodos de crise, exerce sobre a formação do sujeito. Logo, atrelada a

esta, para que o homem decida-se conscientemente, torna-se necessário agir, sereno e

equilibradamente. A serenidade não se confunde com uma entrega passiva, mas se constitui

numa paz de espírito que denota um alto grau de virtude moral. Ela representa, para o homem,

a capacidade de poder agir livre, lúcida e confiantemente diante dos momentos de conflitos e

indecisões existenciais.

Movido pela serenidade, o homem passa a estabelecer vínculos profundos entre a

confiança e sua situação atual. Na relação com a paciência-confiança e seu estado, o Ser evita

decidir despótica e precipitadamente a respeito do seu futuro, e passa a viver numa condição

de solicitude, o homem sai da insegurança impaciente que o impele a deliberar

impensadamente sobre sua vida e se lança humilde e modestamente à busca do sentido do seu

modo de ser e existir no mundo. Uma atitude anímica do Ser, que o conduz ao cultivo da

virtude da disponibilidade e abertura ao outro e ao possível de sua existência.

Para Gabriel Marcel, a disponibilidade “não significa de modo algum vacuidade, como

quando se fala de local disponível, senão, que designa uma atitude para dar-se ao que se

apresenta e vincular-se mediante o dom” (2005, p. 35). Conforme Bollnow, estar disponível

representa uma atitude pela qual o homem “mantém-se aberto para as novas possibilidades do

futuro que nunca podem ser previstas de antemão” (BOLLNOW, 1962, p. 46).

Page 191: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

189

A disponibilidade se define como uma posição oposta àquela que tem na decisão o

ponto fundamental e definitivo de enfrentamento do que o ser e a vida não são ainda. Ora, é

diante da rigidez existencial que a disponibilidade se apresenta como uma atitude de abertura

às exigências da própria existência do Ser. Uma atitude que pretende levá-lo a um

aprendizado e/ou vivência existencial capaz de impeli-lo a enfrentar as dificuldades da vida,

sem perder a humildade e a modéstia de um ser, que se reconhece dentro do processo

permanente e inacabado de sua formação.

Em contraposição ao “exílio” do Ser, na Filosofia da Existência, Bollnow afirma que,

na disponibilidade, o homem “se abre a tudo que vem do mundo externo, se abre, sobretudo,

às exigências justificadas dos outros homens” (1962, p. 48). Neste sentido, ele se aproxima da

perspectiva de Gabriel Marcel quando descreve a disponibilidade enquanto

[...] abertura de uma alma tão profundamente comprometida com uma experiência de comunicação como para levar adiante o ato que transcende a oposição entre o querer e o conhecer, mediante o qual ela afirma a perenidade vivente, a qual esta experiência lhe oferece, mais uma vez, o penhor e as primícias (MARCEL, 2005, p. 20).

Diante dos traços do real, Gabriel Marcel (1956) diz que o homem tem sido tratado

como se fosse uma simples peça de uma grande máquina; como alguém, cujo valor e sentido

limitam-se ao desempenho de uma determinada função social-tecnocrata, que o desumaniza e

o esvazia de seu conteúdo autêntico. Este é um tratamento que o leva à abstração tanto do

sentido de si como do outro, uma ordem moderna que subverte a relação entre o ser e o ter.

Em sua obra “Os Homens contra o Homem” (1951b) Gabriel Marcel comenta que a

noção do Ser foi reduzida à categoria de objeto e de coisa e a uma condição existencial que

assujeita o homem e o condiciona à ideia de função e de serviço. Essa concepção compromete

seu desenvolvimento e despersonaliza suas relações interpessoais, despojando-o de sua

liberdade e convertendo-o em meras cifras estatísticas que o conduzem “[...] a um orgulho

cego que desumaniza e degrada sua própria natureza humana” (PÉREZ, 2001, p. 310).

Na abordagem Fenomenológica do Ter, Gabriel Marcel afirma que há, no homem

moderno, uma “degradação insensível entre o sentimento que se tem e o sentimento que se é”

(MARCEL, 2003, p. 144), uma situação de alheamento da consciência de si e da presença do

outro, que suprime e dissolve a profunda e necessária unidade que deve haver entre a “minha

existência e o existente que sou”.

Diante da dialética do Ser e do Ter, o homem não apenas corre o risco de perder-se,

como pode, também, ver-se diante da possibilidade de apropriar-se do seu próprio Ser, a partir

Page 192: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

190

do momento em que se dispõe a cultivar uma postura de abertura com relação ao outro, em

plena comunicação. Bollnow comenta esta atitude de disponibilidade, em Marcel,

descrevendo-a como uma virtude, que comparada a uma semente, precisa ser cuidada, para

que possa frutificar. Sobre esta atitude, o teórico afirma:

Não estar disponível quer dizer estar ocupado de si mesmo. Disponibilidade não significa de modo nenhum um vazio, quando como se fala de um espaço disponível, senão que designa muito bem a capacidade de entregar-se ao que se nos apresenta e a ligar-se por esta entrega, à capacidade de transformar meras circunstâncias em ocasiões e em situações favoráveis; é dizer trabalhar seu próprio destino impondo-lhe o próprio signo do reconhecimento. É claro que a disponibilidade, neste sentido, não é essencialmente uma constituição anímica existente (ou não existente) senão uma virtude adquirida penosamente e na qual o homem supera seu auto-aprisionamento natural (BOLLNOW, 1962, p. 48).

De acordo com Marcel (2003) abrir-se ao outro é, antes, abrir-se ao Ser e para si

mesmo. Esta abertura configura-se como uma relação antropológica e intersubjetiva, em que o

homem procura desvelar sua existência autêntica, consciente de que esta passa pelo que o

outro é e pelo modo como ‘eu me comprometo com ele, enquanto presença e participação’.

Uma busca pela consciência de si, que, através da relação com o outro e o mundo, se define e

se constitui. Uma experiência não só da teoria filosófica, mas também, de uma prática

existencial que pretende corresponder às nossas mais profundas faltas e exigências

ontológicas.

Pensar o processo de constituição do Ser sob o prisma da categoria da disponibilidade

é passar a ver e a considerar a humanização do homem, como algo que é possível - que deve

acontecer ao longo de sua história, independente de suas experiências contínuas e

descontínuas - de modo criativo e aberto a outras formas de abordagens e perspectivas. Uma

formação que seja capaz de transcender ao diretivismo de uma vivência funcional, técnica,

hermética e centralizadora, e que aponta para uma formação que não se limita a uma ação

unilateral, entre o eu e o tu, mas que se apresenta como caminho aberto, para a construção de

uma vivência existencial que encontra na reciprocidade humana um princípio de

ressignificação de saberes e formas de “ser no mundo” (MARCEL, 1968).

A disponibilidade, enquanto processo de humanização, pode também contribuir para a

superação da cultura do saber técnico-hegemônico, à medida que valoriza o diálogo

igualitário, descentra o autoritarismo e as hierarquias no contexto da vida quotidiana e passa a

valorizar o significado plural e enriquecedor de todas as dimensões da interação da realidade e

da própria vida humana. Estar disponível, num sentido humano, é pensar a relação

Page 193: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

191

intersubjetiva como forma de ser e não apenas de fazer e ter as coisas do e no mundo; é ousar

fazer, reinventar, é abrir os olhos para a vida e a vida, para novas experiências, saberes,

reflexões e possibilidades.

2.1.4.3 A importância da comunicação existencial para o desvelamento do mistério do Ser

“A disponibilidade se constitui numa qualidade característica do ser pessoa” (LENZ,

1955, p. 228). Um ser disponível é alguém capaz de abrir-se ao outro, de formar comigo uma

espécie de vínculo aproximativo, cuja ligação não apenas me coloca na direção de suas ideias,

mas, na perspectiva daquilo que ele é livre e subjetivamente. A disponibilidade não exige do

Ser apenas atenção ou simples escuta, enquanto caminho de acesso, ela implica em acolher o

outro, a partir de seu próprio mundo, verdade e interioridade.

Ser “indisponível significa estar completamente cheio de si mesmo” (MARCEL, 1968,

p. 91). Movido pela indisponibilidade o homem reduz à dimensão do eu todas as atividades e

relações que comportam sua existência. Na adesão incondicional a si mesmo, o indisponível

não só se isola do outro, como degrada radicalmente a noção de amor próprio, um processo de

auto-obliteração. Quanto mais indisponível o homem se torna menos lugar há nele para a

confiança, o amor, o cuidado, a gratidão, a fidelidade, a solidariedade, o engajamento e a

esperança. Ocupado em si, o Ser cai na opacidade e petrificação da vida interior (MARCEL,

1957). Ele se fecha, se enclausura e se imobiliza vivencial e relacionalmente.

Isolado na indisponibilidade, o homem não se deixa afetar. Ele se aliena e se converte

numa espécie de ilha, de reduto mental e espacial. Na indisponibilidade o sujeito se

despersonaliza, nega-se e anula-se. Na alienação em e de si, o Ser é inserido num conjunto de

zonas concêntricas de adesões e interesses descrentes. Situado no próprio eu, o homem não

transita, interage e se desenvolve. Fixado em si, o ser indisponível não se vê como uma

presença, mas, como uma preocupação, um prisioneiro de seu próprio sentir. Por estar

ocupado consigo, o outro é sempre visto como um obstáculo, um impedimento e barreira ao

alcance dos seus interesses e emergência dos seus atos.

“Quando estou com um ser indisponível, tenho consciência de estar com alguém para

quem não existo” (MARCEL, 1968, p. 90). Diante do Ser disponível, o outro não se confunde

com uma presença ausente, uma coisa, um objeto, um número ou código. O outro representa

um existente; uma pessoa; alguém que se presentifica, o Ser encarnado, um tu, que não se

deixa reduzir a nenhum modo de determinação ou classificação objetiva, porque é, também,

liberdade e não só natureza.

Page 194: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

192

A pessoa é vocação, chamado, interpelação e resposta. Separado do outro, ele

cristaliza-se e se torna incomunicável para si e os demais. Na incomunicabilidade, o Ser se

atrofia, perde sua mobilidade e itinerância. Por ela, eu não só deixo de existir para o outro,

mas passo a morrer para mim, deixo de compreender que, de fato, existo. Uma morte

existencial, que segundo Marcel é, em si, negação da nossa própria dimensão pessoal.

Tem-se dito às vezes em nossos dias ‘a pessoa é vocação’; é verdade si se restitui ao termo vocação seu valor próprio, que significa um chamado, ou mais precisamente uma resposta a uma chamada [...] e neste sentido, por mais singular que seja, podemos dizer que decorre de mim e de outros lugares, ou melhor, captarmos a mais íntima conexão entre o que é meu e o que é do outro, nutre uma conexão construtiva que não pode afrouxa-se sem que eu não sofra de anemia e caminhe para a morte (MARCEL, 2005, p. 35).

O Ser não se faz na relação eu-isso; o homem só se humaniza no encontro entre o eu e

o tu. O eu só se afirma à medida que se abre ao outro. Este é um ato pelo qual não apenas

comunica o que se sabe, mas, aquilo que é, enquanto humano, cheio de possibilidades. A

comunicação é uma característica própria do ser-pessoa. Por ela, o Ser não apenas tem acesso

à verdade do outro existente, como se põe a caminho do desvelar autêntico de sua liberdade.

A comunicação “está ligada a um sentimento de inesgotável, de inexaustão, de ‘ainda’. Opõe

o tu e o eu, de um lado, ao ele, do outro. O ele é a esfera do juízo; o eu e o tu é a esfera do

apelo da invocação” (WAHL, 1962, p. 110). Nesta invocação há uma capacidade criadora,

porque cria aquilo em que crê; crer em um ‘tu’, num outro que nos aparece como único e

irrepetível modo de Ser.

A verdade do existente desvela-se na comunicação190. Ao contrário dos animais, para

quem a existência está dada e a sua relação está determinada biológica e instintivamente, a

existência autêntica só encontra sua legitimação na relação com o outro existente. Isolado,

meu eu desconhece o sentido do seu existir; a minha verdade só se torna compreendida por

mim, através da experiência dialógica (MARCEL, 1968). Nela, o meu ser encontra-se com o

outro em sua verdade, um encontro que possibilita o conhecimento do que sou, para mim,

através da apreensão de outra vivência existencial. Na compreensão de Karl Jaspers

190 A categoria da comunicação, discutida por Gabriel Marcel, encontra em Karl Jaspers e Martin Buber

proximidades de diálogo e pontos de correspondência. Algo que o próprio Marcel reconhece, e que foi comentado na introdução deste trabalho de pesquisa, quando falamos de suas influências e relação com os outros teóricos da Filosofia da Existência. Neste sentido, propomos apresentar as contribuições de Jaspers sobre a comunicação existencial, visando ampliar as noções marcelianas sobre o lugar e importância que a comunicação exerce no processo de formação humana e desvelamento do mistério do Ser.

Page 195: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

193

A certeza do ser autêntico reside unicamente na comunicação pela qual uma liberdade enfrenta outra, em total e mútuo confronto, sendo todos os preliminares apenas um degrau e tudo o que é decisivo reciprocamente pressuposto no que está em questão. Na comunicação se consuma toda a outra verdade, só nela sou eu próprio, não só vivendo, mas cumprindo a vida (JASPERS, 1998, p. 31).

Compreendemos assim que, para o homem, o eu pessoal precisa inserir-se na vida

social, imerso na sociabilidade o Ser se vê diante daquilo que é e poderá se tornar, enquanto

sujeito histórico. O diálogo é o fator que medeia a relação no nível empírico, no entanto, seu

objetivo não é a troca de informação, de entendimento para entendimento; sua natureza não é

objetiva, mas subjetiva e, por isso, existencial.

A comunicação existencial implica o envolvimento de todos os modos do

englobante191 podendo, desta maneira, contribuir para a criação recíproca da liberdade de

escolha. Neste processo de ação-reflexão-decisão, o eu passa a observar que só sou eu próprio

quando consciente, se lança à procura de sua própria autenticidade. A comunicação

existencial não aceita a privação do ser diante do objetivismo das relações sociais. Sua

essência encontra-se na natureza dialogante do ser, que não deseja, dela, jamais estar

separado.

Segundo Jeanne Hersch, no pensamento jasperiano existem, entre outras, duas

espécies de comunicação que se contrapõem:

A primeira é a que permite aos homens coordenar a sua ação no mundo, onde se desenrola a sua comum experiência, onde se alimentam e lutam pela sobrevivência, ao nível prático da realidade quotidiana. A segunda se realiza também a um nível impessoal, mas o terreno comum é diferente: é o da consciência em geral (HERSCH, 1978, p. 23).

Para Jaspers (1998), tanto em uma como na outra espécie de comunicação, o indivíduo

encontra-se totalmente envolvido. O problema deste tipo de comunicação é que o sujeito não

comunica aquilo que de fato é, em sua verdade existencial, apenas assume o papel de mero

transmissor de informações. A verdadeira comunicação não se dá apenas nos níveis pessoal e

191 “O englobante é, pois, aquilo que apenas se anuncia no que é pensado. É aquilo que não surge, mas onde tudo

o mais surge [...] Filosofar acerca do englobante equivale a penetrar no próprio ser [...] O englobante articula-se: primeiro, no entendimento, como consciência em geral pelo qual todos são idênticos; segundo, na existência viva pela qual cada um de nós é uma individualidade particular; terceiro; na existência pela qual somos autenticamente nós próprios na nossa historicidade” (JASPERS, 1998, p. 36-38). O englobante supera tanto o objetivismo como o subjetivismo das teorias que colocam o homem no centro, como se ele fosse o fim e o todo de si mesmo. A existência pressupõe abertura do ser, que é infinito e potencialmente livre. Uma certificação existencial, que está acima do que é pensado e que impele o homem a mergulhar, cada vez mais, no oceano do seu próprio ser.

Page 196: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

194

impessoal, mas no nível existencial. Ela acontece onde o Ser se encontra incondicionalmente

comprometido com o absoluto, que se expressa através da consciência que este possui de si.

Neste tipo de comunicação não há o interesse pelo convencimento ou conversão do

outro. Seu alvo não é tornar a minha verdade a verdade do outro, ou vice-versa, mas, procurar

existir por aquilo que me faz viver através da razão filosófica. A comunicação existencial é

fraternal e amorosa, sem reservas, condições ou restrições; ela é, antes, “clarividente em

relação a todas as coisas” (JASPERS, 1965, p. 121). Seu papel é orientar e revelar aquilo que

cada um tem de mais singular e valioso, levando educandos e educadores a serem realmente

eles mesmos.

A comunicação existencial é caminho promissor e esperançoso para a humanização do

Ser. Mediada, por ela, a comunidade humana procura seu esclarecimento, torna-se tolerante e

aberta ao reconhecimento das verdades plurais dos outros. Uma verdade que já não existe para

ser transmitida, mas permanece ligada a uma visão original do mundo, que busca colocar-se

sempre dentro do ponto de vista da liberdade e deve envolver toda relação interpessoal. A

existência autêntica encontra, no diálogo, o sentido para a receptividade do outro, uma atitude

de abertura onde, segundo Hirschberger,

O homem existencial deve estar sempre a caminho, não pode petrificar-se em nenhuma verdade, conceito, sistema dogmático, mas deve estar sempre aberto e pronto para aprender; deve levar em consideração todos os pontos de vista, sempre consciente de que não há, para o homem peregrinante, nenhuma verdade definitiva; que, antes, tudo deve ser examinado e, assim, uma tolerância absoluta é a autentica meta humana (1963, p. 207).

A afirmação nos leva a perceber que o fundamento das relações humanas portadoras

de sentido encontra-se na confiança que o homem passa a ter na comunicação entre os seres, o

encontro onde os homens se veem e se aproximam e, juntos desvelam e transcendem a si

mesmos e às realidades nas quais estão inseridos. Ancorados pela comunicação ambos

constroem uma nova visão de mundo e se formam humana, política e espiritualmente

(MARCEL, 2003; BUBER, 2011).

A irredutibilidade do Ser, defendida por Gabriel Marcel (1927), encontra na

comunicação seu aporte metafísico. A natureza não iluminada pela comunicação não pode

aparecer-nos senão como lugar de uma espécie de contabilidade imensa e inflexível. Através

da comunicação o homem preserva sua liberdade, por ela, o indivíduo sai da experiência

estética para a dimensão da ética. Ele se conscientiza que deve integrar-se socialmente no

domínio do tu, o domínio das relações entre as pessoas.

Page 197: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

195

A comunicação, enquanto caminho de desvelamento do mistério do Ser, representa o

despertar existencial. Através dela, o homem descobre as máscaras sedutoras das evidências

pelas quais se impõe as afirmações do dado e do acabado. Interpelado pela comunicação o

homem acorda na sua intensidade e nas suas responsabilidades. “A experiência na qual os

seres mais livres se mostram os mais comprometidos” (MARCEL, 2003, p. 160). Um agir

sólido onde já não há oposição e concorrência entre o compromisso existencial e a

disponibilidade do existente.

Neste sentido, o homem se dá conta da ausência de interioridade e compreende que,

tão importante quanto a captação da verdade, é a atitude daquele que a conhece, o modo como

cada um se coloca perante a construção das suas compreensões e respectivas realidades. O

homem reconhece que, assim como o ato do pensamento, ele é um mistério, um inesgotável

concreto, que não pode ser medido, porque é imanência e transcendência em si mesmo.

Porque o ser transcende a todo inventário é que podemos, por meio da comunicação,

reconhecer a “necessidade de restituir a experiência humana seu peso ontológico” (MARCEL,

1968, p. 128).

2.1.5 Transcendência: o homem como ser voltado para o absoluto

O homem é, existencialmente, possibilidade antropológica. Por ser pura possibilidade

é que ele pode recuar ou avançar, perder-se ou achar-se, negar-se ou afirmar-se, anular-se ou

ultrapassar-se. A transcendência é um chamado ontológico que convida o Ser a responder às

suas mais profundas carências e expectativas, humanas e espirituais. A tríade - ser, existência

e transcendência – representa, para Gabriel Marcel (1927), o caminho pelo qual o homem

poderá ascender a uma dimensão superior e/ou alcançar o núcleo mais profundo do seu

próprio Ser. Como caminho de acesso às vias mais profundas do Ser, propomos a análise da

relação que há, para Marcel, entre a exigência imanente, a situação histórica do sujeito e os

respectivos modos de apreensão da sua própria existência.

2.1.5.1 A exigência imanente da transcendência de si

A irredutibilidade do Ser, aos termos intelectuais, é a questão-problema da Filosofia de

Gabriel Marcel192. É a partir da noção do inobjetivável que ele discute as antíteses entre o eu e

192 Cf. HCH, p. 5; “No aspecto dinâmico, toda minha obra filosófica é um combate obstinado e sem tréguas

contra o espírito de abstração”.

Page 198: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

196

tu, técnica e subjetividade, problema e mistério, ser e ter, ciência e indeterminação,

disponibilidade e indisponibilidade, presença e existência. É na base destas análises que ele

situa a problemática da exigência imanente da transcendência do Ser.

De acordo com Marcel, a exigência da transcendência não se situa numa dimensão

espacial, porque todas as determinações de alto e baixo aparecem, de algum modo, ligadas ao

nosso modo de existência, enquanto seres encarnados. A exigência compreende o

reconhecimento que existem categorias do vivido que nenhuma especulação ou descoberta

científica pode determinar de modo absoluto. Neste sentido, “penso que devemos tentar, antes

de tudo, situá-la em relação com a vida tal como é vivida, e não defini-la como se estivesse

enraizada no pensamento puro” (MARCEL, 1951a, p. 49).

A exigência da transcendência é expressão da consciência exclamativa do Ser. O

reconhecimento de um estado de insatisfação existencial que o impele à busca daquilo que ele

ainda não é. À condição de insatisfação consigo mesmo, que o implica na direção do

transcendente. Este sentimento de insatisfação não está ligado à condição social do homem,

não tem nada a ver com a imagem de um determinado número de bens ou com algum tipo de

propriedade privada. “A insatisfação significa, portanto, a ausência de algo que é exterior a

mim, que posso assimilar e por conseqüência fazê-lo meu” (MARCEL, 1951a, p. 51). ‘Por

exterior a mim’, não se entende a busca por algo que desejo apropriar-me, como se fosse uma

coisa ou simples objeto. Mas, um chamado à transcendência, que surge e se orienta para

dentro de mim; a aspiração pela concretização do que não sou ainda.

A problemática da exigência da transcendência possui um caráter metafísico. Sua

resolução não se limita ao campo do saber epistêmico, porque a liberdade humana não pode

ser concebida dentro de um conjunto de ordens hierárquicas de satisfações e definições, a

ordem dos objetos (MARCEL, 2005). Sua resposta não se limita à referência do abstratamente

pensado, senão, na dimensão do intimamente vivido e do concretamente experienciado.

A experiência não é um objeto ou coisa que está colocada diante ou atrás de mim. Na

relação entre vida e experiência o Ser transcende, ele excede aos domínios dos sentidos

externos e passa a traduzir-se através de suas atitudes. Assim, como se dá na construção do

conhecimento, ele ultrapassa certos domínios objetivos e toma corpo por meio dos seus atos

(MARCEL, 1968). Ele se torna uma alteridade, um Ser encarnado, que não aceita nenhum

processo que pretenda reduzi-lo ao status de coisa ou instrumento.

A exigência da transcendência consiste num modo de experiência cada vez mais

profundo; mais próxima daquilo que o homem é realmente, a aspiração por aquilo que ele é

no mais íntimo do seu Ser (MARCEL, 2003); a construção de uma existência do possível e

Page 199: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

197

não do imediatamente dado, da possibilidade e não da determinação; uma vivência que não

pode ser dita no sentido que as certezas conceptuais são afirmadas; a exigência ontológica,

que não o condiciona a dimensão do imanente, mas que o impele à busca do desvelar da sua

verdade e transcendência (MARCEL, 1956b).

De acordo com Marcel (1927), a transcendência não é apenas resultado do

relacionamento do Ser com alguém que esteja fora ou além de si, ela é, também, fruto da

relação do homem consigo mesmo. A existência não possui um conteúdo determinado nem,

muito menos, uma substância que a determine. A essência não determina a existência de

modo que, para os filósofos existencialistas, a primeira é que deve estar “aprisionada” à

segunda. Isto possibilita, conforme o olhar de Bollnow (1946), duas formas possíveis de

abordagens: uma que abre mão de toda apreensão conceitual sobre o que é “existência”, para

investigar os pressupostos da vivência existencial em si (a trilha seguida por Jaspers); e outra

que, através de uma nova conceituação categorial, tenta elucidar os aspectos da existência até

então desconhecidos (a proposta de Heidegger).

Na concepção de Karl Jaspers, o homem jamais poderá definir a si mesmo, como

quem tenta descrever ou apresentar as qualidades de um determinado objeto. Para este

filósofo, “o homem é fundamentalmente mais do que o que pode saber acerca de si próprio”

(JASPERS, 1998, p. 65). Enquanto ser vivente, o homem é objeto de conhecimento; no

entanto, essa acessibilidade do Ser com relação a si mesmo, jamais poderá ser completa e

total. Toda tentativa de conceituação acabará redundando na perda daquilo que o homem é em

sua autenticidade. Por isso que, para Jaspers, “o homem é acessível a si próprio numa dupla

modalidade: enquanto objeto de investigação e enquanto existência de uma liberdade

inacessível a qualquer estudo” (JASPERS, 1998, p. 65). Como ser livre, o homem não pode

estar preso a nenhum conceito sobre si mesmo e, por viver diante da realidade de uma

inevitável possibilidade, ele não deve se conformar com qualquer imagem ou caricatura que

se queira fazer dele.

Em busca da compreensão de seu próprio existir, Heidegger faz um percurso diferente

daquele seguido anteriormente por Jaspers. A questão fundamental de sua filosofia é

desvendar “o que é o Ser”. Na filosofia heideggeriana a essência do Ser não consiste numa

substancialização daquilo que ele é em sua existência. A essência não se junta à existência do

Ser, na intenção de lhe conferir um sentido ou uma realidade concreta. A essência está em sua

existência, o “ser-algo” (essência) deste ser só poderá captar-se a partir de sua existência; ou

seja, da forma de se compreender em seu Ser o que se “é” através do modo como se “está

sendo”.

Page 200: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

198

Chamamos existência ao próprio ser com o qual a presença pode relacionar-se dessa ou daquela maneira e com a qual ela sempre se relaciona de alguma maneira. Como a determinação essencial desse ente não pode ser efetuada mediante a indicação de um conteúdo qüididativo, já que sua essência reside, ao contrário, em sempre ter de possuir o próprio ser como seu, escolheu-se o termo presença para designá-lo enquanto pura expressão do ser (HEIDEGGER, 2009a, p. 48).

O entendimento do “Ser” não pode ser alcançado mediante uma forma de pensar

objetiva. Em sua apreensão constitutiva, ele não deve se auto-reduzir às categorias “daquilo”

ou do “isto”, mas do “como”, em sua forma de ser e entender, de modo mais direto: “a

substância do homem é a sua existência” (HEIDEGGER, 2009a, p. 173).

O ponto fundamental da filosofia de Heidegger é o estudo do sentido do Ser na sua

totalidade. A natureza do seu pensamento pretende tratar de modo concreto da problemática

do “ente” em face do Ser como princípio de renovação do existente humano, ou seja, procurar

esclarecer a essência do “estar no mundo”, investigar as estruturas do existente em função do

tempo e de sua capacidade de possuir consciência de si mesmo.

Para este filósofo, a Filosofia Tradicional havia, ao longo da história, perdido a

questão do “Ser” de vista, reduzindo-o a um estado de total generalização e relativização

conceitual, onde ontologia e antropologia passaram a significar as mesmas coisas. Em

Heidegger, a ontologia não é o sinônimo de antropologia; para ele, sua existência é que

caracteriza sua essência. O homem não é considerado como algo determinado, mas como um

projeto antropológico inacabado e prospectivo, que avança, aprofunda, amadurece, cresce e se

projeta para um futuro que ainda não foi dado. Nas palavras de Bollnow, “a existência não

significa no homem a realidade de alguma coisa que lhe seja exterior, ou que lhe venha

ajuntar de fora, mas significa a própria essência do homem” (1946, p. 37).

A ideia de “existência” do homem implica em que suas determinações precisam ser

encaradas não como um fato em si, mas como um modo de ser que é superior à descrição dos

adjetivos que tentam situá-lo a partir de uma determinada maneira ou modo de existir.

A existência pressupõe “um modo de comportar-se para consigo mesmo”. Neste

sentido, a ideia de um “si mesmo” varia a partir da concepção de “transcendência” de cada

autor existencialista. Kierkegaard, por exemplo, concebe a relação do homem consigo mesmo

a partir de um ideal de transcendência, que aponta para a experiência do ser com um “Outro”

fora de si, a quem ele chama de Deus, e considera como seu criador e o principal objeto de

sua fé.

Page 201: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

199

O eu é uma relação que não se estabelece com qualquer coisa alheia a si, mas consigo próprio. Mas e melhor do que na relação propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa relação para a própria interioridade. O eu não é a relação em si, mas sim seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si próprio depois de estabelecida. O homem é síntese de finito e de infinito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é, em suma, uma síntese. Uma síntese é a relação de dois termos. Sob este ponto de vista o eu não existe ainda. Numa relação de dois termos, a própria relação entre o homem com um terceiro, como unidade negativa, e cada um deles daqueles termos se relaciona, tendo cada um, existência separada no seu relacionar-se com a relação; assim acontece com respeito à alma, sendo a ligação da alma e do corpo uma simples relação. Se, pelo contrário, a relação se conhece a si própria, esta última relação que se estabelece é um terceiro termo positivo, e temos então o eu [...] Eis a fórmula que desenvolve o estado do eu, quando deste se extirpa completamente o desespero: orientando-se para si próprio, querendo ser ele próprio, o eu mergulha, através da sua própria transparência, até ao poder que o criou (KIERKEGAARD, 1988, p. 195-196).

Na filosofia kierkegaardiana, a relação do Ser consigo mesmo ganha sentido à medida

que seu comportar-se, diante do seu próprio existir, aponta para uma realidade que está acima

de si mesma e de sua vivência existencial. Uma ideia de transcendência, que se traduz em

“um perante Deus”, que se explicita por meio da relação, e ao mesmo tempo, da diferença

qualitativa entre fé e vida, finito e infinito, tempo e eternidade, medo e segurança. Um modo

de vivência existencial que tem na “crise humana que o conduz ao desespero e à angústia”, o

caminho para a descoberta de si e de seu real fundamento através da busca “daquela

verdade” pela qual o homem deve viver e/ou morrer; “um devir cristão”.

Na concepção de Karl Jaspers, a existência e a transcendência se fundem e, ao mesmo

tempo, se estendem para algo que, à medida que se desvela, também se eleva acima da sua

própria vivência existencial. Ao contrário de Kierkegaard, ele não concebe a transcendência

enquanto um ideal que se define na pessoa de Deus; mas como algo indeterminado, que se

revela mediante a apreensão do Ser com relação a si mesmo, através de sua liberdade.

[...] a transcendência acha-se presente no filosofar como realidade. Mas o que a transcendência parece dizer é sempre ambíguo. Devo arriscar-me à base de uma responsabilidade que não é anulada por qualquer revelação direta vinda de Deus. A transcendência é o poder através do qual eu sou eu mesmo: onde eu for verdadeiramente livre, é precisamente por causa da transcendência. Sua linguagem mais decisiva é aquela que fala através da liberdade (JASPERS, 1973, p. 93).

A concepção de transcendência jasperiana é de que somente através da liberdade o

homem se depara com aquilo que, de fato, ele é no seu mais profundo Ser. A liberdade aponta

para um modo de existência possível, uma impossibilidade do ser agir diferente da

Page 202: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

200

possibilidade de sua própria existência, ou seja, de fazer uma escolha incoerente com as

situações implícitas, daquilo que o constitui em sua dimensão mais íntima, a consciência de

si. Significa que

[...] perante a escolha nunca se oferecem alternativas diferentes que ela nunca é um comparar, um separar, um selecionar, mas sempre e unicamente o reconhecimento e a aceitação daquela única possibilidade implícita na situação de fato que constitui o meu eu [...] Admitir que podemos pertencer a outro povo, se aquele ao qual pertencemos de fato nos aparece como estranho; que podemos desconhecer os nossos próprios pais porque não temos culpa daquilo que eles são; que podemos amar outra mulher; e que, em geral, podemos recorrer àquelas possibilidades sempre novas de que a vida está repleta, significa, trairmo-nos a nós mesmos (ABBAGNANO, 1976, p. 71).

Para Jaspers (1998), transcendência e imanência co-existem. O imanente, enquanto

existência do eu pessoal, se traduz na tomada de consciência que conduz à decisão que

determina minha existência. Esta decisão é fruto da exigência absoluta, que envolve os

valores incondicionais193 e inegociáveis que caracterizam a liberdade do Ser em relação ao

mundo.

Por compreender que a noção de transcendência ultrapassa todas as qualificações é

que, para Marcel (1927), a condição do Ser perante seu existir é a de alguém que enxerga sua

existência por trás de uma cortina, um mistério, que ele mesmo e apenas ele, poderá

descortinar diante de si. Ao contrário das árvores, para quem a existência já está determinada,

ele precisa encontrar o solo seguro de sua própria vivência. O Ser na compreensão de Marcel

“é antes de tudo o irredutível, é aquilo a que não se pode chegar é aquilo donde se deve

necessariamente partir” (WAHL, 1962, p. 53).

A verdade de um Ser, nunca é dada, e, por isso, será sempre para si um “Homo Viator”

(MARCEL, 2005). Sobre esta relação de inacabamento itinerante entre exigência e

transcendência, acrescenta Bollnow:

Se a experiência existencial era o fato fundamental que permitia ao homem distanciar-se de todas as determinações materiais do seu ser, para acabar por se despojar delas por um processo negativo, assim, correspondentemente, a inautenticidade, de que falamos, será agora o fato, ou estado, através do qual precisamente o homem acabará também por se perder, caindo em poder das

193 A transcendência não é algo objetivo no sentido que possa ser provado ou achado em determinado lugar. Ela

só se manifesta em meio às situações-limite, nos momentos em que o Ser depara-se com a obscuridade de sua condição humana, seus desafios, problemas, fraquezas, desilusões, morte, sofrimento e tudo o mais que o atinge na dimensão imanente. A experiência da transcendência surge em forma de convicção interior, em que o pensamento sobre si mesmo impede o homem de se despojar de sua liberdade, passando a agir incoerentemente com sua consciência.

Page 203: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

201

determinações matérias do chamado mundo, ou seja, como que vendendo a sua alma ao demônio. Mas isto deixa já pressupor, por sua vez, que, se é possível definir em cada caso os conteúdos matérias da chamada vida ou existência inautêntica, já ao mesmo se não pode dar com a existência autentica, a qual, por definição, não tem conteúdo material e, portanto, só se deixa determinar formalmente na base daquela expressa renúncia à primeira, de que já falamos. A existência inautêntica pode assim, portanto, dar-se como estado duradouro, enquanto que a existência autêntica não é mesmo um estado, mas fato ocorrente. Não tem permanência e, pelo contrário, tem de ser, a cada passo, conquistada de novo, para logo a seguir, desaparecer outra vez (BOLLNOW, 1946, p. 73-74).

O sentido do Ser precisa dispor de sua experiência, na certeza de si mesmo e em sua

escolha existencial. Ele necessita se encontrar em uma condição de entendimento e de

abertura ao seu próprio modo de existir. O homem deve buscar, através da sua relação com o

Outro no e com o mundo, o chão firme de sua existência e o fundamento de seu modo singular

de ser em face de um todo circunstancial; procurar corresponder à exigência da

transcendência.

A tônica de Gabriel Marcel é que “ao homem cabe corresponder e não superar a

experiência” (1951b, p. 54-55). Na correspondência o homem não se anula, mas se afirma e

passa a assumir uma nova postura e/ou modos de experiências que são de importância

incondicional194, a atitude do Ser considerada na sua totalidade e que se demonstra através de

seus atos, o modo autêntico de construção de uma alteridade livremente encarnada.

A transcendência da condição humana não se dá apenas ao nível do conhecimento.

Como existência indeterminada sua vivência não pode estar alienada de sua exigência

ontológica. Sua experiência precisa articular-se à dimensão transcendente, o olhar que se

orienta para além de toda determinação e verificação empírica.

O sentido da existência do Ser não se esgota na sua imediatidade. Como um ser

portador da exigência transcendente seu desvelamento passa, necessariamente, pelos

caminhos e descaminhos da sua experiência concreta, um caminhar que lhe coloca na trilha

que poderá conduzi-lo à busca e ao encontro do seu Absoluto (MARCEL, 1927). O encontro

194 Sobre esta nova postura, Marcel nos dá um exemplo que pretende nos ajudar a iluminar nosso nível de

compreensão. Cf. MS, p. 55; “Pensemos – si os parece bien – en la transformación interior que puede producirse en el seno de una relación personal. Por ejemplo un marido que comenzó por considerar a su mujer en relación a si mismo, a los goces sensuales que podía darle, o simplemente a los servicios que le pretaba como criada sin sueldo. Supongamos que llegue a descubrir que esta mujer tiene una realidad y valor propios, y que insensiblemente comience a tratarla como existente en si: llegará a ser capaz de sacrificar por ella un gusto o un proyecto que antes parecía tener una importancia incondicional. Estamos ante un cambio en el modo de experiencia que ilustra directamente mi pensamiento”.

Page 204: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

202

de uma existência histórica que se manifesta entre o mistério e a eternidade e se anuncia como

possibilidade de acesso ao Ser.

2.1.5.2 Situação Histórica e Transcendência

“Investigar sobre a essência da realidade espiritual do homem” (MARCEL, 1951a, p.

13) é a principal preocupação de Gabriel Marcel. Sua reflexão sobre o humano não se dá fora

do contexto e da realidade de um determinado tempo e época histórica. Situado no âmbito de

um mundo em crise, o teórico concentra sua atenção ao problema da irredutibilidade do Ser

pretendendo superar os binômios verdade-coisa e sujeito-objeto à luz dos substratos social,

político e filosófico em seu respectivo momento.

Consciente que a verdade do Ser não se desvela dissociada de seu contexto imediato,

Marcel nos diz que “sua pretensão não é averiguar o que é o homem livre em si [...] mas,

como na situação histórica em que nos achamos e que temos de afrontar, pode conceber-se e

afirmar-se essa liberdade” (MARCEL, 1951b, p. 15). Um caminho no qual se pretende

ressaltar que liberdade e alienação são termos incompatíveis, porque que não se pode pensar a

transcendência do homem fora ou para além da sua realidade histórica. A realidade de um ser-

no-mundo-e-em-situação.

“A ninguém aproveita a ignorância do sentido da história” (MARCEL, 1951b, p. 9).

Na base desta afirmação encontra-se a compreensão que história e historicidade, no âmbito do

pensamento filosófico de Gabriel Marcel, não se confundem, pois, enquanto o conceito de

história está necessariamente ligado ao caráter objetivo do que acontece no tempo, a

historicidade preocupa-se com a maneira como o homem se relaciona com o mundo a partir

de sua subjetividade (BOLLNOW, 1946). Em tese, diz Heidegger: “toda existência é

histórica” (HEIDEGGER, 2009a, p. 474), ou seja, a objetividade da história se subjetiva

através da historicidade do próprio homem.

A situação histórica do Ser é que caracteriza a singularidade da experiência autêntica

de cada indivíduo. Em sua condição de “ser-aí”, o homem terá de escolher sua vivência

existencial em comunhão com outros entes, que o cercam a partir de uma dada realidade

comum. Por ser uma presença no mundo é que o Ser se vê conduzido a optar entre: aceitar a

história como uma “herança”, ou se “apropriar” dela como algo que é existencialmente parte

de sua vida e caminho para desvelar sua existência autêntica (MARCEL, 1983). Na

Page 205: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

203

concepção de Jaspers, a vida, num ambiente comum, que pode levar o Ser à perda de sua

autenticidade, é a mesma que poderá conduzi-lo à sua descoberta.

Quando a História nos atinge, não nos permite repouso. Gostaríamos de encontrar fora da História, uma posição a partir da qual nos fosse possível viver nela. Há, em primeiro lugar, a reação de todo homem sobre si mesmo, sobre a própria existência (Existenz) com seus companheiros de fado, no ambiente comum. Enquanto existentes, os homens são, sem dúvida, inteiramente dependentes, mas, dentro da esfera que lhes é concedida, são espontâneos e únicos. E eis o ponto a assinalar. Na medida em que nos encontramos a nós mesmos e apreendemos o fundo das coisas, a História deixa de ser uma prisão. É o lugar inevitável em que, através de nossas experiências e ações, atingimos o que é autêntico (JASPERS, 1965, p. 34).

Discernir entre a concepção da história, enquanto processo evolutivo criador, e

processo de apreensão subjetivo e interior, é, para Gabriel Marcel (1951b), a principal missão

do homem-filósofo ao longo de toda sua vida. O modo como lidamos com os fatos históricos

contribuem para elucidar ou clarificar a presença do “eu” no mundo. Nesta relação, o homem

não se encontra preso ao seu passado nem condicionado ao seu presente, pois, enquanto “ser”

que é essencialmente “porvir”, ele não aceita outra condição, senão aquela que o projeta para

suas posteriores possibilidades.

Esta posterior possibilidade não condiz com uma situação exterior ao ser. Ela está no

pensamento existencial, descrita como um “eterno retorno”, que, neste caso, não se limita à

compreensão nietzschiana, quando fala de uma repetição circular de tudo que já houve e que

tem o poder de trazer à tona toda realidade. Gabriel Marcel compreende a possibilidade como

um ato ou ação por parte do Ser que é capaz de conferir um novo e verdadeiro sentido à sua

realidade. Não é uma negação a respeito do que já houve, mas um “situar renovado” de cada

coisa, na existência do ser, em seu momento presente (MARCEL, 1957)195. Sobre esta

renovação, comenta Bollnow:

A renovação não consente, por conseguinte, uma vida com os olhos postos no passado, com o fim de reconduzir até a esse passado um presente feito de outra maneira, mas leva-nos a viver plenamente o nosso presente, e isto de uma maneira, tal que, em face desse presente, o rodar e as transformações do tempo perdem para nós todo o seu sentido. Enquanto houver pura “existência” toda a soberania do tempo estará como que suspensa, ou será quebrada, dando-se apenas um momento de verdadeira intemporalidade. Poderia também dizer-se que aquilo que na obra de renovação ou repetição

195 Gabriel Marcel fundamenta a necessidade deste olhar renovado na descrição da intenção do seu Diário

Metafísico. Sobre o que ele diz: “Desearía que se viera en este Diario el esfuerzo conjugado de ciertas potencias del espíritu en apariencia distintas, primero para desorientar nuestro mirada interior, y luego para acomodarla a nuevos campos de experiencia e meditación donde tal vez un día sea posible recoger los elementos de una mística y quién sabe si de una sabiduría...” (MARCEL, 1957, p. 9).

Page 206: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

204

há a realizar de novo nunca é um verdadeiro passado no tempo, mas simplesmente uma eterna possibilidade dum humano existir (BOLLNOW, 1946, p. 186).

Na filosofia marceliana tanto o Ser como a história ganham um sentido subjetivo,

ativo e dinâmico diante da vida. A produção do que é autêntico adquire um sentido cheio de

possibilidades em relação à angústia, à necessidade e à esperança, frente às injustiças do seu

tempo (MARCEL, 1983), à possibilidade de “ser-mais”.

Entre a possibilidade de “ser” e “não-ser”, encontrar-se e perder-se, reduzir-se e

desvelar-se, o homem depara-se, como um viajante, ao longo das representações

dramatúrgicas e interpelações filosófico-dialógicas de Gabriel Marcel, diante das trilhas,

bifurcações, encruzilhadas, retas, declives e aclives da sua própria existência, com um ato de

filosofar, que pretende a procura do ser à luz de todo o desenrolar da sua vivência histórica e

de todas as vicissitudes da vida. Uma busca da certeza de si em meio às suas próprias

dimensões, visões de mundo e interpretações da realidade, que se traduzem na e através do

seu pensamento e abordagem do real, num constante apelo à descoberta do significado da

nossa autêntica existência, a partir do modo próprio do existir de cada ser: a busca do sentido

do ser a partir de si mesmo.

Esta busca pelo sentido do ser compreende uma íntima e necessária articulação entre

história e transcendência, fato e verdade, retrospectiva, atualidade e prospecção. Ela implica

na tomada de consciência de si e na apreensão do contato íntimo a partir de sua realidade

concreta. O ato de colocar-se ousada e criticamente contra todas as formas de domínio e

ideologias que pretende modelar ou reduzir o homem, progressivamente, a teorias elaboradas

por perspectivas abstratas ou abordagens materialistas.

Para Marcel, a situação histórica que pode condicionar o homem é a mesma que o

incita à busca de sua própria transcendência. Através da consciência exclamativa, o Ser

poderá sentir-se motivado a destituir a noção de verdade do seu altar técnico-racional.

Interpelado por si cabe ao homem, no seu próprio tempo, restituir à existência a prioridade

metafísica que as tendências objetivistas têm pretendido desposá-la. Deixar-se mover pela

crença que “a existência, falando em prioridade, não pode ser posta, nem concebida, nem se

quer talvez conhecida, senão somente reconhecida na forma de um território que se explora”

(MARCEL, 1957, p. 9) ou como algo que não é susceptível de ser em si transcendido e

ultrapassado.

Instigado por sua situação histórica o Ser deverá sentir-se motivado a ir além de si

mesmo e de sua própria condição, buscando compreender que o homem não é uma obra feita

Page 207: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

205

e acabada, mas um projeto, cujo significado não se encerra na perspectiva do problema-

imanente, mas como alguém que desvela-se, através da dimensão metafísico-transcendente

em sua situação fundamental196.

2.1.5.3 Existência e Transcendência: entre a reflexão primeira e a reflexão segunda

O existente é alguém que vê defrontarem-se nele tendências e possibilidades de ação

que pretendem se afirmar como fulcros existenciais de sua própria liberdade. O modo de ser

do homem não pode conformar-se aos laços que muitas vezes o prendem ou tentam limitá-lo e

reduzi-lo às categorias do útil e do tecnicamente realizado. O sentido do Ser precisa dispor de

sua experiência, na certeza de si mesmo e em sua escolha existencial.

É mediante os desafios destas exigências que Gabriel Marcel (1957) chama atenção

para a necessidade de não limitarmos a relação entre conhecimento e vida a partir de um fluxo

linear de autoabastecimento. Segundo este teórico, a esta confluência diádica se faz necessário

acrescentar a dimensão da exigência ontológica. A interface entre conhecimento e vida precisa

desembocar numa tríade que acolhe e reconhece o valor e o lugar da transcendência. Através

do uso de expressões como esclarecer, aprofundar, vivenciar, engajamento, presença e

participação, ele anuncia que a reflexão é ponto fundamental para o movimento de

alimentação e retroalimentação, que deve haver entre a tríade que envolve o homem e seu

modo de ser no mundo.

A vivência do Ser pode se dar numa condição de clarividência ou num estado de

sombras. De acordo com Marcel, “a maior parte dos seres humanos tateiam durante toda vida

entre os dados de sua própria existência como se buscassem um caminho numa habitação

escura” (MARCEL, 1951a, p. 67). Vivem num estado de desenvolvimento que se desenrola

numa espécie de penumbra. A penumbra representa um tipo de coberta protetora em cujo

interior a vida prossegue sem muito significado. A atenção destas pessoas não se concentra

nos dados da existência, mas, nas coisas que a envolvem e a cercam superficialmente. Um

modo de vida onde há pouca luminosidade e visão e, não necessariamente, inautenticidade.

196 Para Gabriel Marcel as questões filosóficas correspondentes à transcendência do ser só têm sentido se forem

analisadas a partir da situação fundamental do próprio homem. Um estudo sempre aproximativo e nunca total e conclusivo. Sobre o que ele diz: Cf, OS II. p. 231; “Si concentramos nuestra reflexión sobre una determinada cuestión filosófica fundamental, como pudiera ser, por ejemplo: Qué es el ser? Por qué existe determinada cosa? Más aún, qué soy yo? Qué quiero en realidad? Tendremos que señalar que todas estas preguntas se plantean a partir de una cierta situación fundamental y que la tarea del filósofo consistirá ante todo en intentar analizarla en la medida do posible. Se impone esta restricción porque no tardaremos en percibir que un análisis exhaustivo de esta situación es precisamente imposible”.

Page 208: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

206

O ascender da vida ao pensamento é caminho para torná-la iluminada e/ou esclarecida.

Através do conhecimento, que articula vida e experiência, o homem alcança sua dimensão

mais profunda e transcende. A reflexão se articula com, no e para além do vivido. Neste

sentido, ela possui um caráter pessoal, que não se confunde com individual, porque se dá em

comunhão intersubjetiva (MARCEL, 2005). A confluência entre vida e reflexão é o fator que

liberta e/ou priva o homem da espontaneidade, o compromete e o coloca em direção do seu

absoluto.

Na espontaneidade o homem vive reduzido ao conjunto de suas funções, futilidades e

frivolidades. Uma predisposição que reduz a vida a uma aparência caricaturesca de si mesma.

Na caricatura imaginativa de um quadro confuso, onde o homem ordena sua vida de modo

pouco luminoso, como lamparinas que estão prestes a se apagarem por falta de azeite. A visão

do homem que a reflexão superficial produz sobre si e a vida é descrita na poesia de Fernando

Namora como a imagem refletida por “Um Espelho Ofuscado;

Que poeiras velam o meu retrato? Do rigor das linhas do vibrar das cores resta uma mordida lembrança de que já não desperto. Como o dia é longo quando nem sequer amanhece! Como se esfria o canto quando nem sequer se arriscou! Nos desperdícios opacos embaciam os olhos que temem o abismo. Nas manhãs insones rebentam bolores quando nos deitamos ao pensar no fim (NAMORA, 1984, p. 33).

A reflexão é, para a vida, aquilo que o fogo representa para a lareira; ela é, para o

homem, fonte geradora de calor, energia e sentido. Ela se coloca como uma ponte pela qual o

homem poderá ultrapassar e chegar a outros lugares, estágios e dimensões. Todavia, não

devemos confundir a reflexão com qualquer tipo de pensamento.

A reflexão que conduz à transcendência é aquela que move o Ser a relacionar o

pensado com o vivido. A reflexão possibilita o modo de apreensão de si, que é portador de

sentido e gerador de novas possibilidades humanas e existenciais; a vivência, que une

realidade e experiência, na dimensão concreta do Ser. Para Marcel, reflexão significativa é

aquela que, depois de mostrar-se, não apenas clareia a vida humana, mas interpela e ilumina a

si mesma, à medida que se expande e se intensifica.

[...] nada é mais necessário que refletir: porque a reflexão não é um procedimento como os outros; na realidade não é um procedimento posto que permite considerar qualquer procedimento. Convém, pois, colocarmos as claras sobre a natureza mesma da reflexão, dito mais exatamente: será necessário que a reflexão seja transparente a si mesma. Sem dúvida, pode ocorrer que este processo de esclarecimento não possa chegar aos limites; é

Page 209: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

207

possível que a reflexão, ao interrogar-se por sua própria essência, chegue a reconhecer que se apóia inevitavelmente em algo que não é ela mesma, e que disso é que provém sua força (MARCEL, 1951a, p. 46).

Por significar um dos marcos fundante da apreensão do Ser é que a reflexão precisa

ser compreendida com base na tonalidade dos seus diversos níveis. Entre estes níveis, Marcel

destaca, pelo menos, dois e os distingue, enquanto reflexão primária e reflexão segunda. “A

reflexão primária se dissolve na unidade que ela mesma apresenta, enquanto a reflexão

segunda é essencialmente recuperadora, é a que conquista” (MARCEL, 1951a, p. 87).

A reflexão primária é inconsistente em si mesma, porque é desprovida de sentido

humano e existencial. A marca deste tipo de construção do pensar é a burocracia e a

formulação de jogos políticos e relacionamentos sociais vazios e conversações estéreis. A

reflexão segunda, ao contrário, é portadora de energia e significado ontológico. Por ela, o

homem sai do pensamento tecnocrata para o modo de pensar filosófico-existencial

(MARCEL, 1940). Esta é uma maneira de pensar a vida e o mundo, que não se encerra no

trato analítico e redutor da própria realidade. Conforme Girardi,

[...] a reflexão segunda, consiste em o homem ir ao encontro de si mesmo, sondando o que há nele de mais original e de mais pessoal, levando-o em seguida a refletir sobre as descobertas, aprofundado os dados numa linha de inesgotabilidade do ser. Tudo isso com a finalidade de apanhar nestas descobertas o valor e o sentido (1978, p. 38).

Na reflexão primeira o homem se aliena, foge de si e se perde em seus próprios dados.

Por meio da reflexão segunda, o Ser eleva-se, se descobre, se fortalece e aprofunda os

domínios da própria inesgotabilidade do ser humano. A reflexão primeira se baseia nas

deduções e nas suposições do meramente aparente. Um modo de pensar que desagrega o

homem do vivido e o desarticula da realidade concreta. Em contrapartida, o fundamento da

reflexão segunda é metafísico, seu fulcro encontra-se não apenas no pensado, mas no

existente pensante. Por pretender recuperar seu próprio sentido interior é que, em sua

natureza, ela se mostra sinergética. Sua simetria não se conforma com a objetivação, porque,

em tese, exercê-la “não é efetivamente nada além de me avaliar e me apoiar sobre mim

mesmo para me julgar” (MARCEL, 1933, p. 24).

A reflexão segunda nos coloca na direção do existente indubitável. Ela nos impede de

tratarmos o eu como isso ou compará-lo com qualquer coisa que seja. Neste tipo de trato, o

Ser não se decompõe, desfaz e se esvazia. O eu se desnuda, se mostra, se manifesta como

alteridade (MARCEL, 1951a). Neste sentido é que a reflexão segunda se revela

Page 210: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

208

recuperadora197, pois enquanto a reflexão primeira tende a desinteressar-se pelas propriedades

do Ser, a reflexão segunda dissipa a ilusão e rompe com o conformismo de uma existência

ingênua e desprovida do senso do mistério.

Na abordagem da reflexão segunda, “o pensamento sobre o eu não se reduz jamais ao

eu da possessão ou a um eu desmaterializado” (MARCEL, 1951a, p. 99). Seu núcleo

fundamental não é outra coisa senão a experiência. Por estar centrada na existência, ela

envolve o Ser encarnado numa dinâmica interrogativa, que não se limita ao plano do objeto e

da instrumentação. Por mover-se pelo viés da interpelação é que ela supera a dualidade

sujeito-objeto, que caracteriza a reflexão primeira e chama o Ser ao diálogo consigo. A

reflexão segunda “[...] com efeito, põe aqui de manifesto a existência de uma espécie de

dialética da interioridade” (MARCEL, 2003, p. 148). Ela ultrapassa as linhas da oposição

interno-externo, dentro-fora e instaura no homem um senso de pertença e aproximação

interior, um acolhimento de si, pelo qual se opera a recomposição e a ressignificação do Ser.

A articulação entre existência e transcendência encontra nos pressupostos da reflexão

segunda um possível caminho para o trato do problema ontológico, quando envolve a relação

entre o homem, o Ser, a experiência, o conhecimento e os modos de apreensão de si e do

mundo. Sua análise nos conduz ao reconhecimento e à necessidade, sobretudo, de uma

filosofia do concreto; ao chamado do homem, para o alcance ontológico de sua capacidade de

interpretação e assimilação da liberdade que se é e do mistério que o transcende.

197 Francisco Peccorini Letona explica o sentido desta recuperação dizendo que: “Ya se deja adivinar que la

reflexión segunda marceliana tendrá necesariamente que apoyarse en el principio de razón suficiente, puesto que su labor consistirá en ‘explicar cómo es posible’ un hecho tan sorprendente. Pero, no insistimos, por hora, en ese punto, sino en otro que se desprende igualmente de ese programa de acción, a saber, que la reflexión recuperadora no podrá contentarse con pensar abstractamente lo existente – sirviéndose de ello como de trampolín para remontarse en seguida a la universalización -; sino que deberá conocerlo concretamente – no olvidándose de lo primitivo e irreductible que en él se encuentra” (LETONA, 1959, p. 292-293).

Page 211: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

209

CAPÍTULO 3 PENSAMENTO ONTOLÓGICO DE GABRIEL MARCEL: ENTRE O

MISTÉRIO E O DESVELAMENTO DO SER

Iniciação

Quem quer que sejas: deixa tua alcova, da qual já sabes tudo que desejas;

teu lar na tarde, longe, se renova, quem quer que sejas. Com teus olhos exaustos, que ainda a custo

entre os galhos umbrais logram passar, ergues inteira a sombra de um arbusto posto ante o céu – esguio, singular.

E tens já pronto o mundo: estranho assim como palavras que amadurece no silêncio, e que teu olhar esquece

quando lhe captas o sentido, enfim... (Rainer Maria Rilke).

3.1 Descrição metafísica do mistério do Ser

“A verdadeira relação filosófica [...] é uma chama que desperta outra chama [...] Esta

experiência se apresenta como uma espécie de estremecimento diante das grandes realidades

misteriosas que conferem a toda vida humana seu marco concreto” (MARCEL, 1971, p. 13).

É através do contato com as multidimensionalidades da realidade em que o homem está

inserido, que se desenvolve uma experiência articulada entre a necessidade e o desejo de se

autoconstituir.

É mediante a possibilidade do homem desvelar-se que vamos examinar as dimensões

do mistério, da exigência e da indeterminação do Ser, à luz da relação metafísica entre a

morte e a esperança. “Uma esperança que se situa no marco da prova que não só corresponde,

senão que aparece como uma verdadeira resposta do Ser” (MARCEL, 2005, p. 42), às

situações-limite de sua própria existência.

3.1.1 O mistério do Ser

A existência é, necessariamente, a expressão da condição encarnada do Ser no mundo.

É um estado de vivência que compreende a historicidade, a pertença, a presença e a

participação do homem em sua realidade concreta. Na obra o “Diário Metafísico” (1957),

Page 212: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

210

Gabriel Marcel afirma que a existência não pode ser vista como algo que é reduzido a termos

e categorias puramente intelectuais. No seu pensamento, a existência é sempre tomada nas

perspectivas do irredutível, do indubitável e do inesgotável, num modo de apreensão que a

articula entre as noções de imanência e da transcendência (RICOUER, 1996).

A ontologia marceliana se ancora no pressuposto de que não há sistema de conjunto no

mundo, que seja capaz de reduzir o Ser às dimensões do dado e do objetivável. No “Journal

Métaphysique” (1927), Marcel nos diz que o homem não pode estar submisso aos critérios de

definição da ciência, porque o Ser pertence ao domínio do não-qualificável. O homem está

para além das noções do falso e do verdadeiro, do isto e/ou daquilo, porque sua condição de

ser-em-situação ultrapassa qualquer tentativa de representação e classificação técnico-

racional.

Neste sentido, por mistério ontológico, compreendemos a atitude pela qual o “ser é

tomado como princípio de inexaustabilidade” (MARCEL, 1968, p. 126). Entendemos que a

ascenção do Ser pode acontecer por aproximações concretas, onde se reconhece a

possibilidade de compreensão do mistério que é o homem, mas nunca de esgotá-lo

cognoscitivamente. Mas, contrariamente aos pressupostos do idealismo e de acordo com os

fundamentos da Filosofia da Existência, para Marcel (1987), a captação do que o humano só é

possível ao pensamento pensante e nunca ao pensamento pensado.

A tríade “existência, ser e transcendência” se constitui no reduto fundante da

metafísica (MARCEL, 1940), na forma de pensar, que ultrapassa as oposições conceptuais

entre sujeito e objeto, entre pensamento e ser. Na abordagem ontológica, o Ser é tratado do

ponto de vista da inesgotabilidade e da maneira pela qual ele se descobre, através dos aspectos

concretos da existência, que se mostram por meio da experiência intersubjetiva. E ainda,

através de seu itinerário pessoal, do horizonte possível, da consciência exclamativa, que o

coloca para além do objetivo problemático, que tenta reduzi-lo ao domínio da posse, pondo-o

em oposição à realidade da transcendência e do mistério.

Para Gabriel Marcel, o tratamento e o entendimento do mistério ontológico passam,

inconfundivelmente, pela distinção dos seus aspectos concretos; a diferença entre o problema

do ser e o mistério do ser.

[...] o problema é algo que se encontra, que obstaculiza o caminho. Se apresenta inteiro perante mim. Em contra partida o mistério é algo em que me acho comprometido, a cuja essência pertence, por conseguinte, o não estar inteiramente ante mim. É como se uma zona de distinção entre o em mim e o ante mim perdesse seu significado (MARCEL, 1968, p. 124).

Page 213: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

211

Mistério não é o mesmo que problema, pois o Ser não está para o homem como algo

que se encontra fora dele, mas como alguém que reside numa realidade onde se vê totalmente

inserido. “Um mistério é um problema que invade os seus próprios dados, apoderando-se

deles e, por isso mesmo, se ultrapassa como simples problema” (MARCEL, 2003, p. 158). O

mistério é aquilo que não pode ser dissecado e/ou detalhado categoricamente.

Em contrapartida, o problema é, geralmente, tratado de modo objetivo, um algo que

está sempre diante de mim. O mistério é considerado em sua dimensão subjetiva; não é um

objeto com o qual nos encontramos; é parte da realidade em que estamos e nos sentimos

totalmente envolvidos; é a vivência de “um em mim”, que não está inteiro perante os meus

olhos, que me implica e compromete por meio da busca de uma apreensão de si; é um modo

de apreensão que não se conforma, nem se reduz, a uma dimensão puramente externa,

funcional e racional.

Na perspectiva do problema, toda abordagem sobre o Ser redunda em sistematização.

Por colocar-se de modo generalizante, o problema isola o ‘eu’ e o apresenta sob a condição de

algo externo à sua própria existência. Sua problematicidade sempre busca, por antecipação,

soluções programadas e elaborações de processos que garantam a apreensão do fato, entre o

dogmatismo e o cepticismo; e que garantam, ainda, uma chave de interpretação que possa

servir de base para análise do humano e seu mundo, através de uma inteligibilidade que

pretende se mostrar segura e absoluta. Na esfera do problema, o Ser não só fica aquém dos

seus achados, como se perde na sua própria busca.

Tomo a palavra problema no sentido etimológico: problema. Há problema de tudo o que está perante mim; e por outro lado, o eu que entra em atividade para resolver o problema, fica de fora ou aquém, como se quiser, dos dados que tem de tratar e manipular para obter resolução. Dir-se-á que este eu calculador, ou investigador dá origem a problemas, isto é, tem possibilidade e obrigação de colocar-se frente a si mesmo? Será apenas recuar a dificuldade. De qualquer modo, haverá que manter um sujeito que não pode pôr problemas senão mantendo-se ele mesmo em esfera não problemática (MARCEL, 1951b, p. 80).

Na dimensão do mistério, não há fratura entre o sujeito inteligível e a realidade

cognoscível (MARCEL, 2003). No mistério, o ser se engaja vital e existencialmente, torna-se

parte, integra-se, participa e supera a dicotomia entre o ‘perante mim’ e o ‘em mim’. O

problema degenera o mistério em objetividade, enquanto o mistério o revitaliza, porque se

estende para além da mera captação do pensamento. O problema sempre se esgota em si

mesmo, enquanto o mistério se estende acima das próprias fronteiras, porque sempre deixa

Page 214: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

212

reconstituir-se a cada nova interpelação. Na dimensão do mistério, a realidade é trans-

compreensível e, ao mesmo tempo, fonte catalisadora de si e do Ser.

Que é, pois o mistério? Por oposição ao mundo do problemático que, como disse, está diante de mim, o mistério é alguma coisa a que estou ligado, não parcialmente por algum aspecto determinado e especializado, mas inteiramente, enquanto realizo uma unidade que por definição nunca pode apreender-se a si própria e só pode ser objeto de criação e de fé. O mistério faz desaparecer a fronteira entre o em-mim e o perante mim, que há pouco podia ser recuado, mas, sem deixar de reconstituir-se cada momento da reflexão (MARCEL, 1951b, p. 81).

No mistério, o Ser se une à existência, sai da postura de mero espectador para assumir

a atitude de ator e protagonista do próprio existir. Estimulado pelo mistério, ele supera o

alheamento da dúvida, à medida que se coloca como sujeito aprendente e passa a se

comprometer consigo e com o desvelar do mundo que o cerca.

“No mistério o Ser está vinculado ao sentimento de inesgotabilidade” (MARCEL,

1968, p. 126). Atraído pelo mistério, o homem procura centrar sua existência na consciência

que tem de si, afirma-se como alteridade e suscita a si mesmo como um outro, portanto, como

existente. No “mistério o homem não se opõe como no problema, como alguém que está

distante, porque a distinção entre dentro e fora desaparece quando este o afeta e o envolve”

(MARCEL, 2003, p. 139). Condicionado pela noção de problema, o Ser se autodegrada,

encerra-se e isola-se. Instigado pelo mistério, ele resiste à dissolução crítico-racional e se

coloca como princípio indeterminável.

Com base na ideia de que o mistério do Ser se desvela a partir da experiência do

homem concreto, Marcel procura colocar em evidência a significação humana. Por meio de

uma “epistemologia personalista” (DELHOMME, 1947, p. 139), ele pretende contribuir para

recuperar a noção da unidade perdida do Ser, que já não mais se separa daquilo que de fato ele

é. Este é um ato de compreensão, pelo qual é possível ressaltar que “a essência do homem é a

de ser em situação” (MARCEL, 1940, p. 113).

Neste sentido, “nossa existência inscreve-se simultaneamente no problema e no

mistério” (HUISMAN, 2001, p. 89). Consideramos uma vivência onde o conhecimento não é

tratado como uma epistemologia do absoluto, mas como modo de aproximação e apreensão;

como o momento em que o saber passa a ser visto como fulcro imanente de possibilidades,

capaz de conceder ao Ser a condição de evitar cair nos esquemas redutores que procuram

disciplinar e assujeitar sua existência; e, ainda, como um processo de busca onde o

conhecimento é colocado a serviço do humano.

Page 215: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

213

A abordagem de Marcel sobre o mistério ontológico não deve se confundir com um

modo de exploração, que despreza os saberes técnicos e científicos. Sua ênfase não pretende

advogar contra o que se pode verificar na dimensão imanente-racional ou a favor do que deve

se investigar no domínio do irreal, do absurdo e/ou transcendente. Sua análise procura

destacar, a partir da dimensão do mistério, aspectos humanos que nos ultrapassam e nos quais

estamos simultânea e existencialmente compreendidos198. Este é um modo de reflexão, onde a

pretensão é ressaltar que, através da investigação do mistério ontológico, é possível

reconhecer o lugar do Ser enquanto presença e participação, numa busca pela existência, que

não se confunde e/ou se perde nos domínios do in/cognoscível, mas que se qualifica “como

uma metodologia do inverificável199” (PRINI, 1953, p. 63).

3.1.2 A exigência concreta do Ser

A relação entre existência e Ser é irredutível. O mundo da existência é o universo do

Ser; é uma relação-vínculo que o impede de colocar-se para além da sua própria experiência.

O domínio da existência é o do possível e do vivido. Por situar-se no âmbito da vivência do

Ser é que a existência não pode reduzir-se a nenhum meio ou conjunto de métodos que

pretendam sua dominação (MARCEL, 1957). Significa dizer que não devemos conceber o Ser

separado de sua existência e que qualquer tentativa de fazê-lo acabará transformando seus

aspectos numa representação deficiente dos construtos de causa-efeito e meio-fim. Há uma

tendência, segundo Marcel, de imaginarmos que é possível tal procedimento.

[...] temos a injustificável tendência de imaginar a experiência como uma espécie de elemento dado, mais ou menos informe, algo assim como o mar cujas costas estariam ocultas por uma espessa nuvem, e como se o transcendente fosse uma nuvem a perder-se ali; porque basta refletir sobre o que é a experiência para compreender que esta forma de imaginá-la é torpe e inadequada (MARCEL, 1951a, p. 53).

198 Cf. ST, p. 111; “[...] las aproximaciones concretas del misterio ontológico deberán ser buscadas no ya en el

registro del pensamiento lógico cuya objetivación plantea un problema previo, sino más bien en la elucidación de ciertos datos propiamente espirituales, tales con la fidelidad, la esperanza, el amor, en los que el hombre se nos muestra enfrentado [...]”.

199 O próprio Marcel comenta esta classificação do seu pensamento no prefácio da obra “Gabriel Marcel et La méthodologie de l΄invérifiable” do Pietro Prini dizendo; “C’est avec une véritable émotion que j’ai pris connaissance de votre étude. C’est à n’en pas douter une des plus pénétrantes a qui aient été consacrées à ma pensée, une de celles auxquelles les commentateurs de l’avenir devront en tous les cas référer. L’expression même de méthodologie de l’invérifiable me paraît particulièrement heureuse” (PRINI, 1953, p. 7).

Page 216: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

214

O Ser do homem é um existente, alguém que não se afirma historicamente, senão, em

uma vivência humana. Separado da sua existência, o homem se despersonaliza, se abstrai e se

objetiva. Pensar ao contrário, diz Marcel, “é trair a exigência de ser” (1951a, p. 230), é negar

sua capacidade de apreender-se existencial e conscientemente e passar a tomá-lo em função

das categorias da lógica tradicional, quando fazem uma distinção secular entre sujeito e

predicado.

A exigência ontológica consiste na necessidade humana de se afirmar acima e para

além da ideia de função (MARCEL, 1927). Este é um princípio existencial, que pretende

ajudar o Ser a resistir a todas as formas de abstração e generalização, que tendem a alterar não

só sua autocompreensão, como também, a qualidade da relação com o outro e o mundo ao seu

redor.

A exigência ontológica se “dá no âmbito de uma tensão continuamente renovada e

propriamente criadora entre o ‘eu’ e as profundezas do Ser no qual e pelo qual somos”

(MARCEL, 1940, p. 112). A verdade do Ser é ontológica e o alcance da sua reflexão situa-se

na dimensão metafísica. A apreensão de si pretende levá-lo à captação do eu encarnado. Sua

função é desobstruir seus fulcros existenciais para ajudá-lo a superar todos os artifícios,

ilusões e preconceitos que pretendem condicioná-lo a um jogo de aparências e imagens

inconsistentes a respeito do seu existir.

Na inquietude metafísica, o Ser se recusa a limitar-se ao puro e simples automatismo.

Imerso na própria experiência, ele aspira por transcendê-la interior e exteriormente, lança-se

para fora de si e supera toda fixidez que tenta abafar sua própria existência. O homem não

aceita ser tratado como um dado, porque a exigência não é uma vaga aspiração. Em tese, esta

inquietação “se trata de um impulso que surge nas profundezas da existência que pode

interpretá-lo como um chamado” (MARCEL, 1951a, p. 230); um chamado pelo encontro da

presença, que ultrapassa, infinitamente, toda verificação concebível e a inquietude expressa

nas palavras de Gabriel Marcel, que foram postas na boca de Christiane, protagonista da peça

“Le Monde Cassé”

[...] na realidade há em mim um ser que eu não conheço [...] e que não é seguramente um de vocês [...] um ser que se busca e que se encontra, em momentos bem diferentes do resto, em um mundo desconhecido ao qual se diria que vocês não pertencem (MARCEL, 1956a, p. 37).

Impulsionado para fora de si, o homem recusa-se a ser visto como uma peça da mega-

engrenagem que é o mundo (MARCEL, 1968). Ele compreende que não pode pulverizar-se

existencialmente, porque isto implicaria num processo de autorredução; numa descida e num

Page 217: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

215

mergulho ao nível mais baixo da sua condição vivencial, que se demonstra através da

desvalorização da sua dignidade e perdas de seu real valor e interesse. Enquanto presença, o

Ser não pode dissociar-se da chamada e da interpelação pessoal. Nesse dinamismo, ele

transcende a antítese sujeito-objeto e integra-se a si mesmo e às experiências possibilitadoras

de construção das relações verdadeiramente humanas.

A exigência ontológica consiste num diálogo misterioso e silencioso, porque é algo a

que me sinto vinculado, implicado e arraigado, desde o fundo inesgotável da minha

interioridade. Sua percepção e apreensão só podem ser reconhecidas por um existente

concreto e livre (MARCEL, 1927); pelo homem, que não aceita o veredicto de que deve

fechar-se em si mesmo; como um alguém que se reconhece, enquanto ser inconcluso, que está

a caminho da plenitude e não que alcançou sua totalidade. Enquanto, na totalidade, o homem

se quantifica e se objetiva, na plenitude,200 ele se projeta e assume um lugar no mundo. O Ser

se subjetiva.

Na subjetividade, o homem se contrapõe à ideia de que é simplesmente um número,

mais um, na grande cadeia produtiva e de consumo. No encontro entre subjetividades, uma

liberdade não se nega para afirmar a outra. Seu objetivo não é fundir uma existência à outra

existência. Na intersubjetividade as liberdades se preservam e se aprofundam, à medida que as

relações se horizontalizam, tornando os seres mais humanos e receptivos às singularidades

dos outros. A ênfase em torno da exigência ontológica só faz sentido, no mundo humano, no

universo imanente das relações interpessoais (MARCEL, 1968).

A subjetividade do homem encontra, na exigência ontológica, a condição de superar a

dicotomia que há entre o dado e a aspiração, o que sou e o meu possível. Na exigência

ontológica “o ser é a espera satisfeita, a experiência do ser é a do cumprimento” (MARCEL,

1951a, p. 236). Por cumprimento, não se entende perfeição201, senão, um modo de

participação e engajamento na realização do projeto, que é o humano. A realidade humana se

manifesta na e através da participação. A relação entre exigência ontológica e participação

200 Na realidade Gabriel Marcel compreende que a vida se identifica com a consciência desta plenitude, de modo

que uma não pode estar separada da outra, pois sua relação é de complementaridade. Cf. ST, p. 86; “Cuando esta plenitud y esta expansión no pueden realizarse, la vida pierde su justificación inmanente”.

201 Cf. MS, p. 239; “Pero conviene preguntarse si la palabra ‘perfección’ en el fondo no implica siempre una referencia, explícita o no, a un actividad de esencia plástica. Lo perfecto es ante todo, esencialmente, una obra que ha tomado su forma definitiva, una obra acabada y, conviene agregar, una obra que se presenta como tal a quien la considera. A este respecto, sin duda se puede hablar más fácilmente de la perfección de una estatua o de un edificio que de la de una sinfonía, por ejemplo; pero aun en este caso hay que reconocer, sin embargo, que es posible cierta transposición abstracta; el juicio de perfección se refiere entonces a la conformidad con cierto Canon que puede concebirse pero no representarse, y así será posible alabar la perfección de una fuga”.

Page 218: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

216

encontra seu exemplo na ilustração de Gabriel Marcel no trato do campesino com sua própria

terra, quando diz:

É evidente que a terra que atrai apaixonadamente o campesino não é algo no qual na verdade se possa falar. Podemos dizer que está mais além do que se vê que está ligada ao seu ser, não só a sua ação, senão, também as suas fadigas. A oposição é radical entre a terra aqui experimentada como presença e a paisagem para o viajante que a contempla e que extrai de seu repertorio alguns adjetivos para caracterizá-la. Pelo contrário, podemos falar de outra forma de participação com respeito ao artista, especialmente o pintor, na medida em que é um criador autêntico [...] Creio que é importante tomar nota que a participação está mais além da oposição tradicional entre atividade e passividade, quer dizer que podemos considerá-la ativa ou passiva segundo o ponto de vista que nos coloquemos (MARCEL, 1951a, p. 115).

Por meio da participação o Ser cria a si mesmo e faz a história dos homens e do

mundo. Através dela, o homem se sente movido, desde a profundidade de si, a experimentar e

corresponder ao impulso da sua própria fonte criadora: a exigência ontológica.

A exigência ontológica encontra-se para além da linha estática e hermética do juízo e

da norma. Ela pertence à ordem do vivido e do concebido. Através dela, o Ser não só

transcende a si mesmo, como passa a ter acesso à ordem do mistério que o comporta e o

envolve. Reconhecimento, exigência ontológica e mistério são co-relativos, à medida que se

encontram, fundam a realidade do sujeito e se ultrapassam simultânea e consequentemente. É

com base nestes princípios de renovação, aprofundamento, confluência e ressignificação, que

a exigência ontológica, à semelhança do Ser, “ao tentar compreender-se a si mesma, descobre

que não é assimilável a busca de uma solução” (MARCEL, 1968, p. 141), porque se

reconhece inacabada e inesgotável diante do indeterminado, que é o ser humano.

3.1.3 A indeterminação do Ser

O homem é um fato e sua existência é aquilo em que se torna (MARCEL, 1927). O ser

humano é um poder-ser que se autodetermina. Ele não “é o que o decreto eterno e inamovível

de uma essência lhe impôs que fosse, é o que resolveu ser” (MOUNIER, 1963, p. 61). O Ser é

puro projeto, alguém que não enxerga a vida como pronta, mas como algo que renasce,

reinventa-se e está sempre por fazer-se. Enquanto ser-projeto, a existência humana não se

assenta sob o signo da busca pela totalidade. Porque “o homem é fundamentalmente mais do

que o que pode saber acerca de si próprio” (JASPERS, 1998, p. 64). Como homem-problema,

seu pensamento gravita em torno de uma compreensão da existência, que se recusa em aceitar

os limites e os parâmetros da sistematização como únicos critérios determinantes da verdade

Page 219: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

217

de si e do mundo. Como Ser itinerante, considera que sua apreensão só pode se dar mais

próximo do vivido e do possivelmente pensável.

O Ser não deve tornar-se objeto de captação e projeção inventiva. O existir pressupõe

uma aproximação concreta, seu valor não pode suprimir-se ou alienar-se do seu caráter

específico. A relação entre ser e existência, vida e experiência não se afirma num sentimento

dual, que pretende coisificar o sujeito pensante. O sujeito da experiência concreta não é uma

entidade abstrata, é um Ser que vive no mundo, de acordo com sua natureza misteriosa e

problemática. Conforme Fritz Heinemann, a experiência do Ser, no pensamento marceliano, é

exercida e se reencontra a partir de três aspectos:

Primeiro, nossa experiência não é a de objetos, senão de sujeitos, uma experiência de pessoas dentro da esfera das pessoas, com suas tensões e seus conflitos dramáticos, às vezes irresolúveis [...] Segundo, é uma experiência de estados, situações, e, em terceiro, é uma experiência do transcendente (HEINEMANN, 1954, p. 159).

A existência acontece no âmbito da possibilidade de ser e transcender, conviver e

vivenciar; pois, a experiência encontra no sujeito o centro que a funda, a apreende e a desvela

(MARCEL, 1927). Neste sentido, para Gabriel Marcel (1968), a indeterminação do Ser se

desenvolve num paradoxo entre o mistério e a existência. Fixado no mistério ontológico, o

homem compreende que não pode ser captado apenas por elucubrações e palavras. Como

inefável, só pode apreender-se numa dimensão metafísica.

Imerso na existência, o homem não se deixa analisar como se estivesse distante de si.

Enquanto Ser que está a caminho, ele não aceita se converter em um problema que possa se

resolver racional e intelectualmente. Esta é uma atitude pela qual se entende que “o

pensamento não pode separar-se da existência, só pode fazer abstração dela em certa medida e

é sumamente importante que a existência não seja vítima de tal ato de abstração” (MARCEL,

2003, p. 28).

Na ontologia marceliana “saber, reconhecimento e mistério são correlativos”

(MARCEL, 1968, p. 140) e, não, unidades distintas de apreensão da realidade do mundo e do

humano. No reconhecimento da indeterminação do Ser é que se acolhe o mistério; é que se

assume a abertura da hospitalidade ontológica; é que acontece a fecundidade inesgotável, que

nos leva a constatar que o sujeito do conhecimento se desvela entre o dado da interioridade,

da permeabilidade dialógica e da existência concreta.

Page 220: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

218

No pensamento marceliano o homem é um ser aberto, alguém que não aceita ser

conduzido à categoria do objetivo. Como Ser indefinível, sua existência só é concebível no

movimento itinerante do ‘ir sendo’, “do para além das oposições do sujeito e do objeto, do

pensamento e do ser, da alma e do corpo, para qualquer coisa que não pode ser dita no sentido

em que as verdades conceptuais são ditas” (WAHL, 1962, p. 48). Nesta abertura, a nossa

reflexão sobre a vida, nos diz Karl Jaspers, em consonância com o pensamento de Gabriel

Marcel,

[...] não se pode formular como se de um estado se tratasse susceptível de ser atingido e então perfeito. Os estados que alcançamos são apenas a manifestação dos esforços constantes da nossa existência ou dos seus malogros. Estar-a-caminho é a nossa essência (JASPERS, 1998, p. 128).

Para Marcel, a transcendência é o domínio do Ser, a instância em que ele ultrapassa

todas as qualificações que dele podemos construir. Assim, “o problema da possibilidade do

reconhecimento de suas condições metafísicas [...] comporta uma busca ansiosa pelas relações

que existem entre eu e minha vida” (MARCEL, 1951a, p. 127), ou seja, a certeza que existe

uma conexão aproximada e, ao mesmo tempo, distinta entre interioridade e contingência

circunstancial.

Sem dúvida, o existencial refere-se, necessariamente, ao Ser encarnado. Todavia, o

fato de estar-no-mundo não pode se confundir com uma apreensão objetiva de sua própria

consciência. Para que a participação do homem no mundo não se desnaturalize, é preciso que

a existência seja tomada enquanto situação fundamental, ou seja, de acordo com o modo

como o homem se encontra. Para que não se confunda situação fundamental com

contingência, Marcel adverte:

[...] justamente por ser fundamental, não posso na verdade observá-la como contingente, em qualquer grau que seja, com relação a uma certa entidade compreensível em si, na qual ‘ocuparia’ esta situação, porque bem pudera ocupar outra [...] é o que desajeitadamente é chamado de não-contingência do dado empírico (MARCEL, 2002b, p. 28).

Neste sentido, a minha liberdade e a transcendência estão implicadas no

reconhecimento da nossa participação no mundo, numa existência concreta que se configura,

ao redor de um dado que, sujeito à reflexão, se transforma numa compreensão distinta, num

mistério que abre espaço, não só para o pensamento discursivo, como também, para a

problematização inobjetivável da própria participação do Ser no mundo.

Page 221: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

219

A participação do Ser no mundo se define, metafisicamente, como uma lógica da

liberdade, capaz de transcender a oposição objetiva entre o dinâmico e o estático. A

participação, enquanto contato verdadeiramente humano, só se abre e se aprofunda no plano e

sob a condição de descobrir-se o outro. O homem só transcende a si mesmo à medida que se

comunica com outro Ser. Sua indeterminação só pode realizar-se “mediante um movimento

de abertura interna que lhe permita por fim a essa espécie de crise com que me contorço sobre

mim mesmo e cada vez me deformo” (MARCEL, 2002b, p. 41). Através da distinção entre o

‘eu’ e o ‘tu’, a indeterminação mostra-se à plena luz. Mediante o acolhimento da sua

liberdade, em lugar de defender-se dele, o Ser abre-se e deixa-se afetar por sua presença.

Marcel está em consonância com Karl Jaspers, quando este afirma:

A certeza do ser autêntico reside unicamente na comunicação pela qual uma liberdade enfrenta outra, em total e mútuo confronto, sendo todos os preliminares apenas um degrau e tudo o que é decisivo reciprocamente pressuposto no que está em questão (JASPERS, 1998, p. 31).

Desprendido de si mesmo, o homem coloca-se ao alcance de sua plenitude202 e passa a

criar uma relação capaz de transformar o diretivismo da objetividade particular em um

diálogo pelo qual se personifica toda a outra verdade; a verdade, na qual, só nela sou eu

próprio, não só vivendo, mas, cumprindo a vida.

Todas as vezes em que o homem é dado como objeto, suprime-se a possibilidade de se

estabelecer numa relação concreta. Somente quando ele escapa a toda captação objetiva é que

se pode reconhecê-lo como presença. A indeterminação do Ser exige que nós o reconheçamos

como uma pessoa e, não, que o tratemos como um isso e/ou aquilo. Para que a determinação

do Ser, pelo conhecimento, seja transcendida é preciso que “aquilo que parece uma

deficiência infinita se mostre como uma plenitude infinita, é necessário que a consciência,

realizando um movimento de conversão decisiva se coloque ante Aquele que pode invocar

como um Tu Absoluto” (MARCEL, 2002b, p. 44).

A reflexão sobre a indeterminação do Ser não pode reduzir-se ao campo das

verificações do racionalismo, que pretende degradá-lo, esgotando-o à dimensão descritiva ou

limitando-o à explicação do fato. Isto porque, “o ser é o que resiste – ou seria o que resistiria –

202 O homem só se coloca em direção da plenitude do Ser quando se encontra verdadeiramente aberto ao Outro

com quem se relaciona e as experiências que verdadeiramente lhe afetam. Para Marcel, só “se puede experimentar un amago de plenitud en el encuentro de dos seres que se aman, en la oración, en las relaciones de familia, en el contacto con una obra de arte, en la vida del espíritu, en la fe y la esperanza, en la fidelidad creadora, en el recogimiento, en el gozo de la sabiduría” (MARCEL, 2002b, p. 6).

Page 222: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

220

a uma análise exaustiva sobre os dados da experiência e que tentaria progressivamente reduzi-

los a elementos cada vez mais desprovidos de valor intrínseco ou significativo” (MARCEL,

1987, p. 30).

A indeterminação do Ser é, então, uma experiência ontológica, que o transporta a um

nível elevado de transcendência, em que desaparecem os dualismos sujeito-objeto, alma-

corpo, eu-isso e se vislumbra a plenitude da presença. No trato da indeterminação “o Ser é

visto como princípio de inexaustabilidade [...] porque transcende a todo inventário”

(MARCEL, 1968, p. 126).

3.2 Metafísica da Morte203: da decisão existencial à eternização do Ser

A “morte” é, na Filosofia Existencial, o problema para o qual toda análise da vida o

remete. Ela está no âmbito desta Filosofia como uma das dimensões do Ser que aponta para a

possibilidade do homem encontrar em si, através da sua relação com a morte, o real

significado de sua existência. Em sua forma de abordagem, o Existencialismo não limita o

tratamento do tema da “morte” a uma perspectiva puramente teórica. Seu interesse é

explicitar os aspectos que a constituem, a partir do conteúdo e caráter existencial. “Trata-se

exclusivamente da relação pessoal em que cada homem se acha para com a sua própria morte,

ou seja, do significado que a morte tem para a sua vida como termo dessa mesma vida”

(BOLLNOW, 1946, p. 112).

No pensamento existencialista a morte não é considerada como um simples fato ou

como uma determinação da qual o homem não pode fugir. Ela é tratada em sua dimensão

existencial-pedagógica, ou seja, como busca daquilo que ela pode produzir, ensinar ou tornar

significativo para a existência do ser. A morte, neste caso, não é vista como algo que está fora

da vida, mas como uma parte que se encontra dentro dela, e que por isso, pode levá-lo a

encontrar seu sentido existencial mais profundo.

203 A descrição sobre a Metafisica da Morte é fruto de um trabalho em parceria com o Professor Dr. Joaquim

José Jacinto Escola, co-orientador deste trabalho de pesquisa. Uma interface entre as construções encontradas na sua tese de doutoramento; Gabriel Marcel: comunicação e Educação (2011), e as nossas elaborações apresentadas no I Congresso Internacional: Animação Sociocultural, Gerontologia e Geriatria; a intervenção Social, Cultural e Educativa na Terceira Idade, na cidade de Boticas, Espanha, sob o tema: A Dimensão Pedagógica da Morte em Gabriel Marcel e Karl Jaspers; eternização e decisão existencial (SILVA; ESCOLA, 2013). Nossa intenção é estabelecer um diálogo entre a meditação de Gabriel Marcel acerca da morte e as abordagens de alguns dos principais representantes Existencialistas, sobre o modo como o homem pode compreender-se e desvelar-se perante as exigências das situações-limite da sua própria existência. Uma forma de discussão em que procuramos ressaltar que “a morte não é um mero sobreviver ao outro ou a manutenção de uma recordação, ela é a radical afirmação da esperança, da fidelidade, do amor e da comunhão com o tu, a afirmação da presença” (ESCOLA, 2011a, p. 532).

Page 223: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

221

Na intenção de se alcançar o sentido existencial da morte é possível que se cometam

alguns equívocos. Há alguns que a concebem como meio para chegar à imortalidade. Outros

consideram que ela representa um escape dos problemas mais difíceis da vida ou, até, um

caminho para se receber alguma espécie de recompensa ou, quem sabe, a plenitude de sua

realização, por meio da eliminação de todos os sofrimentos que são próprios do existir

humano. A respeito deste anseio pela bonança, após a tormenta da morte, Novalis nos fala em

um de seus versos:

Agora em doce anelo nos arrasta o mesmo que nos deu tão grande mágoa. A Morte a Vida eterna anunciou a morte és Tu e Tu quem nos salvou

(NOVALIS, 1988, p. 45).

O ponto comum destas visões encontra-se reduzido à ideia de uma relação entre vida e

morte como condições totalmente opostas e, ao mesmo tempo, referindo-se a algo que diz

respeito ao outro e nunca a mim, num sentido mais direto e objetivo. Diante destas atitudes

românticas, Otto Friedrich Bollnow afirma que o existencialismo problematiza, indagando:

que significa, para nossa vida, a ameaça constante da morte? Como poderemos extrair duma

“negação”, um sentimento positivo e construtivo para a própria vida? Mais ainda:

Pode-se perguntar-se, com efeito, se não serão certamente os homens fortes e amantes da vida aqueles que, por estarem absorvidos por esta e pelos seus fins, não têm nem podem ter tempo a perder com uma tão aguda preocupação. Não é acaso, precisamente, essa excessiva preocupação com a morte um índice de uma vitalidade já enfraquecida, própria da vida em decadência, e isto não só quando o homem se deixa aterrar e pôr em debandada perante essa preocupação cruciante, como ainda e, sobretudo quando ele passa a ver a morte a própria libertação? (BOLLNOW, 1946, p. 118).

O entendimento filosófico-existencial da morte pode levar o homem a refletir não

somente sobre qual é o seu real sentido, mas também, poderá movê-lo a pensar sobre a

maneira como encara e define sua própria vida e modo de existir. Seu ideal não é o de suscitar

desejo nem pavor pela morte, seu objetivo é afirmá-la perante o medo e o próprio

desconhecimento que se tem dela. O ponto crucial da análise existencialista debruça-se sobre

a possibilidade do homem atingir sua existência autêntica, ou seja, considerá-la não como um

simples ou fatal acontecimento, mas como um fenômeno, que é em si mesmo, parte

constitutiva da vida.

Page 224: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

222

Tomando como ilustração desta apreensão da morte na vida, Bollnow descreve a

experiência de Rainer Maria Rilke, que, em diálogo com a morte, através de sua produção

poética, chegou a estágio elevado de maturidade na sua vivência existencial a respeito da

realidade deste iminente acontecimento que é comum a todos nós. Ora, é a partir da relação da

morte do outro com a minha que Rilke fala a respeito da diferença entre a “pequena morte e a

grande morte”. A pequena morte é aquela que acontece todos os dias sob os signos do

coletivo e do geral. É a morte dos campos de concentração, dos hospitais, dos guetos e das

grandes metrópoles. Ela é chamada de pequena porque já não é a morte de um “eu”, mas de

uma massa impessoal, sem nome e sem “história”.

Ali vivem homens, pálida florada que morre pasma do mundo e sua agrura; ninguém enxerga a careta indisfarçada que o sorriso de uma raça delicada ao fim de noites sem nome desfigura. Vão por aí degradados pela lida de servir, apáticos, a desrazão; as suas roupas estão sempre puídas e logo se enrugam suas belas mãos. A multidão os empurra sem notar seu andar incerto e seu ar de doentes – apenas cachorros tímidos, sem lar, os seguem por algum tempo mudamente. A mil atormentadores os atiram, cada hora que bate é um brutal chamado, em torno dos hospitais ei-los que giram à espera de internar-se, angustiados. Lá está a morte. Não a que, esplendor, os tocou na infância, quando os saudou, mas a pequena morte (como a entendem lá) que ora dentro deles, verde, sem dulçor, é fruto que não amadurece mais (RILKE, 1993, p. 59).

É este traço da poesia rilkeana que se aproxima da Filosofia da Existência. Entre o ser

e o não-ser, o pessoal e o impessoal, o indivíduo e a cultura da massificação, somos

confrontados com um chamado à existência autêntica. Uma morte em que o Ser não sucumbe

diante de si mesmo, e que nos é dada como aquela nossa morte de cada dia em que se pode

expressar:

Dá a cada um a sua própria morte, Senhor. O morrer que lhe vem daquela vida onde teve seu sentido e onde conheceu amor e dor (RILKE, 1993, p. 61).

A grande morte não vem de fora do Ser e instala-se como se fosse a dominadora da

vida. Antes, ela é cultivada em sua existência com o mesmo cuidado com que o lavrador

cuida de sua plantação, a fim de livrá-la das ameaças externas e do extermínio precoce,

podendo, no futuro, contemplá-la em toda a força, esplendor e maturidade.

A ideia da morte como algo orgânico foi, pelo próprio Rilke, superada, através da

concepção de que, não é pela morte que o homem alcança o entendimento de sua verdadeira

Page 225: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

223

existência, mas, por meio da própria vida e da superação de si mesmo. Entendemos que ela

não deve ser tomada num sentido orgânico, mas, existencial e ontológico, digo, na dimensão

que o Ser assume, como temporal, passageiro, natural e, por isso, possível.

É no âmbito da discussão sobre a maneira como o homem compreende a vida e lida

com questão da morte que pretendemos ressaltar o modo como o pensamento metafísico-

filosófico de Gabriel Marcel se relaciona e se apresenta como possível caminho para o

aprofundamento sobre a reflexão da morte, no contexto da formação itinerante do Ser e a luz

de sua própria existência e vivência espiritual.

3.2.1 O mistério da morte

O mistério da morte ocupa um topos privilegiado em toda a filosofia de Gabriel

Marcel, sendo um dos temas mais recorrentes na sua produção filosófica e teatral. É o próprio

autor que, em Du Réfus à l'invocation, chama a atenção para a importância da temática,

condenando todas as concepções filosóficas que não lhe concedem um lugar nuclear, o que

significaria, recorrendo a uma imagem retirada do alpinismo, perder o seu ponto de

sustentação.

Alguns poderão estar surpreendidos com o lugar que têm a morte, o suicídio, a traição, em todos os meus escritos; eu penso que este lugar não será jamais demasiado considerado e que toda a filosofia que procura iludi-los ou escamoteá-los torna-se ela própria culpada da pior traição; ela é aí inevitavelmente punida, no sentido em que lhe falta um sítio onde se possa agarrar, para falar como um alpinista. Esta comparação poderá, por outro lado, ser levada muito longe, mas seria necessário também fazer sobressair uma diferença essencial. Enquanto que para um alpinista a vertigem constitui um impedimento dirimente, não me afastaria demasiado ao dizer que a vertigem é uma condição positiva de todo o pensamento metafísico digno desse nome. Com efeito, uma certa consciência, uma certa atração pelo vazio é talvez necessária para que a afirmação do ser na sua plenitude possa produzir-se com toda a veemência (MARCEL, 1940, p. 100).

A preocupação com a morte impõe-se muito cedo ao autor e, em vários momentos,

chamou a atenção para a sua gênese. A pergunta pelo sentido da vida e da morte encontra um

horizonte fundamental de desvelamento em situações existenciais ligadas à infância do

próprio filósofo. A primeira grande experiência foi a morte da mãe, quando Gabriel Marcel

não tinha ainda quatro anos, para, num segundo momento, com sete anos, interrogar a tia,

segunda esposa do pai, acerca do sentido e destino dos seres que amamos. Com a morte da

Page 226: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

224

esposa, dá-se o terceiro grande confronto existencial com o soberano mistério da existência.

São estes confrontos pessoais, particularmente os dois primeiros, que constituirão o germe de

uma meditação profunda sobre a morte, que encontrará no terceiro momento o seu

coroamento e que, sinteticamente, se encontra substanciado no título da obra do filósofo

Présence et Immortalité, obra marcada pelo falecimento da esposa. Refira-se que a

preocupação com a morte atravessa continuamente a existência, o pensamento e a obra do

autor. No seu teatro a temática irrompe de forma ainda mais inequívoca, a tal ponto que A.

Belay, na sua tese de doutoramento, a transforma no núcleo aglutinador e interpretativo da

produção dramática de Marcel.204

No que concerne à primeira grande experiência Marcel sublinhou de forma categórica

o papel que esta viria a desempenhar ao longo do curso da sua existência.205 Nos encontros

realizados no Centre Cultural e International de Cerisy-La-Salle, em torno do pensamento de

Marcel, o autor, no debate que se seguiu à sua comunicação, afirmava:

Eu penso que na realidade — diz-se a mesma coisa em relação a certas circunstâncias da vida de Kierkegaard — para mim, tudo foi comandado pela morte da minha mãe. Houve aí uma traumatização fundamental que fez de mim — é bastante surpreendente em certas fotografias dessa idade, com 5 ou 6 anos — um ser um pouco perdido. E então — é uma coisa que disse freqüentemente e que terei de repetir, ela tem um caráter extremamente íntimo e ao dizê-lo de novo dá-me uma impressão de aplainamento que é penoso — o que aconteceu nesse dia no parque Monceau, num caminho de que me recordo e que posso identificar, onde nós falamos da morte com a minha tia e onde eu lhe disse: «Mas enfim, podemos nós saber em que é que se tornam aqueles que nós perdemos?»; a minha tia respondeu-me como agnóstica muito sincera que era: «Eu não posso responder-te, nós não sabemos, nós encontramo-nos numa ignorância completa.» E eu disse-lhe então, com uma espécie de afirmação: «Muito bem, eu mais tarde procurarei saber!»206.

204 A. Belay, La Mort dans le théâtre de Gabriel Marcel, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1980, 240 p. ;

Na mesma linha de A. Belay René Davignon, a propósito do papel da morte no teatro marceliano, escrevia: "C'est effectivement autour de la mort de l'être aimé et de ses implications qui gravitent son théâtre et sa philosophie. En 1942, Marcel précise même qu'il n'aura accompli sa «mission sur la terre que lorsqu'il sera parvenu à éclairer ce mystère presque insaisissable. Il écrit : «Le mythe d'Orphée et d'Eurydice, est en ce sens au coeur même de mon existence. Si le problème essentiel a toujours été et est encore pour moi de savoir comment on peut retrouver» les êtres aimés disparus." Gabriel Marcel, Le Mal chez Gabriel Marcel. Comment affronter la souffrance et la mort ?, Paris-Montréal, Cerf, (BELAY, 1989, p. 124).

205 Cf. PI, p. 132: "Je ne suis seulement en quête d'une certitude hic et nunc en ce moment précis où j'écris; ceci a toujours été vrai depuis que j'ai accédé à un certain plan de conscience. Il m'est d'ailleurs difficile de dire exactement comment cette accession a eu lieu. Je me rappelle cependant la façon la plus précise le rôle qu'a joué dans cet éveil, non l'idée de ma mort à moi, mais le fait de la mort d'un être infiniment proche, car ce fait en un certain sens a commandé ma vie jusqu'à son tréfonds."

206 EAGM, p. 24; Cf. RI, p. 182: " Il est bien possible en ce qui me concerne que ces images ne détiennent pour moi cette valeur proprement désespérante que parce qu'elles affectent en ma personne un être traumatisé dès l'enfance par la mort d'autrui, par la disparition de ma mère survenue lorsque j'allais avoir quatre ans."; Cf. DH, p. 43: "Il est certes incontestable que la mort soudaine de ma mère survenue quand j'allais avoir quatre ans me

Page 227: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

225

Premonitoriamente esta inquietante questão metafísica, que na aparente simplicidade e

natural curiosidade infantil se poderia esgotar na sua enunciação, acabaria por perseguir o

filósofo ao longo da sua vida, visando-a insistentemente, num infatigável esforço de

inquirição e reformulação, tornou-se como que o seu destino. Nada, no entanto, permite

afirmar que Marcel só se preocupava com a morte, como aliás chegou a ser acusado.207 Na

intrincada trama do seu pensamento, como numa complexa rede fluvial, a fidelidade, a

esperança, o amor, o ter, o ser, a comunicação, a comunhão, acabaram por bordejar no seu

curso, num momento ou em outro, o mistério da morte.

As análises anteriores, quer da fidelidade, quer da esperança são propedêuticas à

reflexão sobre a morte. A problemática do tempo, da forma como o homem o pode vivenciar,

ajudam a compreensão do mistério da morte. Assim como na fidelidade o homem pode

desobrigar-se o compromisso, entregando-se ao momento fugaz, deixando-se arrastar pela

turbulência do devir que convida a não prometer, aceitando o contrassenso da fidelidade ao

devir e não ao ser, ou como na esperança, em que se reconhece na experiência de catividade a

condição ontológica da existência humana, a possibilidade do desespero ou da traição

insinuam-se na vivência da temporalidade e da própria morte.

3.2.2 O fascínio da morte

Refletir sobre o poder que a ideia da nossa morte exerce sobre nós conduz-nos a

pensar na ligação entre o seu fascínio e o desespero que tende a apossar-se de cada um

confrontado com o mundo onde vive e donde emerge, pela sua própria estrutura, a

causa un ébranlement durable et qu'elle éveilla en moi une interrogation anxieuse. Je ne pouvais me satisfaire de l'incertitude dans laquelle je constatais que les miens étaient en quelque sorte installés. J'ai gardé le souvenir précis d'une promenade — je devais avoir sept ou huit ans, — au cours de laquelle ma tante m'ayant dit qu'on ne pouvait savoir si les mortes étaient anéantis ou survivaient en quelque manière, je m'écriai: plus tard, moi, je chercherai à savoir. Et je crois qu'on aurait tort de minimiser la signification de cette parole d'enfant: d'une certaine façon, elle fixait mon destin."

207 Cf. Marcel Belay, op. cit, p. 153: "En 1964, la principale Gazette littéraire soviétique accusait Gabriel Marcel de ne s'intéresser qu'à la morte, «de n'être tourné que vers la mort, comme il est naturel… pour un représentant d'une civilisation bourgeoise agonisante." O que poderemos verificar é exatamente o contrário. Em Marcel encontramos, como em poucos, um poderoso amor pela vida, lutando obstinadamente contra todas as forças que no nosso século tenderam a rasurar o caráter sagrado da vida, o pacto nupcial entre o homem e a vida. Evidentemente que no quadro do pensamento marxista a morte não ocupa nenhum lugar. Como defende Marcel Belay "La mort est quelque chose sur quoi la praxis révolutionnaire n'a aucune prise. Le tragique irréductible de la condition humaine ne peut guère être reconnue par une philosophie qui prétend assurer le bonheur de l'homme par la simple suppression de toutes les aliénations dont il est victime dans ses rapports avec la nature et avec les autres hommes, en raison du système économique auquel il est soumis. Or, un telle philosophie, quelle qu'ait pu être l'invention première de son auteur, ne pêche-t-elle pas par sa méconnaissance de l'humain en tant que tel?" Marcel Belay, op. cit., p. 153.

Page 228: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

226

possibilidade do desespero, enquanto se descobre, por seu intermédio, a significação da

morte. No Être et Avoir o autor é peremptório ao defender que

A estrutura do nosso mundo (seria necessário, por outro lado, interrogar-se sobre o sentido da palavra mundo) é tal que nele o desespero é possível, e é por ele que se descobre a significação crucial da morte. Esta apresenta-se, à primeira vista, como um convite permanente ao desespero e, diria eu, à traição sob todas as suas formas. Isto, pelo menos enquanto seja considerada sob a perspectiva da minha vida e da afirmação pela qual me declaro idêntico à minha vida (MARCEL, 1933, p. 137, 148-149).

De uma forma ainda mais categórica Gabriel Marcel, na obra Du Refus à l'invocation,

considera que o desespero e traição se apresentam como um manto que envolve o indivíduo,

encaminhando-o para um estado de pessimismo tal, que acabará por recusar a tudo o valor e o

ser.

O desespero e a traição estão aí, vigiando-nos em todos os momentos, como um convite permanente à defecção absoluta, como uma incitação a proclamar que nada é que nada vale208.

Reconhecendo o parentesco com Paul Claudel, Marcel recorda, uma vez mais, o texto

retirado da peça de teatro La Ville:

O mal da morte, o conhecimento da morte. Foi quando eu trabalhava, pondo em ordem as cifras sobre o papel, Que este pensamento pela primeira vez me inundou como um clarão sombrio: Agora faço isto, e daqui a pouco farei outra coisa; Daqui a bocado, estarei alegre, ou estarei triste; serei bom, mau, avaro, pródigo, paciente, irritável; E estou vivo, até que não seja mais. Mas como cada um destes adjetivos assenta numa palavra permanente, em que é que eu próprio sou contínuo? Um torpor me invade, a dissolução separa os meus dedos da caneta. O desejo com a razão de ser do trabalho desaparecem, e eu continuo imóvel. Subsisto, penso. Oh ! pudesse eu não pensar ! » E um pouco mais adiante:

208 RI, p. 224; Cf. EA, I, p. 148: "Le fait que le suicide est possible est, en ce sens, un point d'amorçage essentiel

de tout pensée métaphysique authentique. Non pas seulement le suicide: le désespoir sous tous ses formes, la trahison sous tous ses aspects, pour autant qu'ils se présentent comme des négations effectives de l'être, que l'âme qui désespère se clôt elle-même à l'assurance mystérieuse et centrale où nous avons cru trouver le principe de toute positivité.

Il ne suffit pas dire que nous vivons dans un monde où la trahison est possible en tout instant, à tous les degrés, sous toutes les formes; il semble que la structure même de notre monde nous la recommande, s'elle ne nous l'impose. Le spectacle de mort que ce monde nous propose peut d'un certain point de vue être regardé comme une incitation perpétuelle au reniement, à la défection absolue."

Page 229: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

227

Nada existe. Vi e toquei. O horror da inutilidade, juntando as provas das minhas mãos ao que não existe. Não falta ao nada o proclamar-se por uma boca que possa dizer: «Existo». Eis a minha presa e tal é a descoberta que fiz209.

O autor, para além de reconhecer que o pensamento da nossa morte se nos impõe

como o único acontecimento futuro intransponível, inultrapassável, detecta aí o perigo de este

exercer sobre cada indivíduo um tão avassalador fascínio que esmagasse por completo todo o

nosso campo de experiência impedindo a alegria de viver, empedernindo a criatividade e

obstaculizando todas as iniciativas. Neste contexto o suicídio não só é possível, anuncia-se

como a tentação - tipo, a traição - tipo, onde todas as outras se convertem.210

A afirmação de que enquanto existentes nos encontramos submetidos ao poder da

morte não é suficiente, há que ultrapassar este truísmo, e Marcel fá-lo ao acentuar

dramaticamente o fato de que o eu se encontra exposto a sentir-se como que sugado pelo

poder de atração da morte, ao mesmo tempo em que converte o mundo num "palácio de

ilusão", outorgando-lhe a derradeira palavra.211

O autor não aceita a posição de um certo espiritualismo que procura despojar a morte

da seriedade, de um valor trágico, sem o qual toda a existência humana se converteria num

patético espetáculo de marionetes.212 Do mesmo modo recusa um erro simétrico, ainda que

mais grave pelas consequências que desencadeia, que consistiria em atribuir à morte, de forma

dogmática, um caráter último.213 A reflexão sobre a morte deveria desbravar um caminho por

entre estas duas falsas vias, que apesar de serem inversas, patenteiam uma extraordinária

ligação.214

209 PST, p. 109, 314-315; Cf. RI, p. 224. 210 Cf. RI, p. 224-225: "La pensée de notre mort, c'est-à-dire du seul événement a venir que nous puissions

comme certain, peut exercer sur nous une fascination telle qu'elle envahisse en quelque sorte notre champ d'expérience tout entier, éteigne toutes nos joies, paralyse toutes nos initiatives; il convient, je pense, de marquer avec la plus grande force que cette méta problématique de la mort et du non-être est possible, que le suicide est possible — et qu'il est en quelque manière la tentation-type, la trahison-type, et que toutes les autres tentations, toutes les autres trahisons s'y laissent peut-être réduire."

211 Cf. RI, p. 225. 212 Cf. ME, II, p. 147. 213 Cf. ME,II, p. 146-147. 214 Cf. ME, II, p. 148: "Entre ces erreurs inverses il existe d'ailleurs plus qu'une complémentarité: une connexion

directe; d'une part celui à qui ont été offertes les consolations trop faciles d'un spiritisme pseudo-religieux, est exposé à retomber par la suite dans un désespoir sans recours; mais réciproquement ce désespoir est si intolérable qu'en deçà d'une religion digne de ce nom il risque d'inciter l'être humain à chercher n'importe quel refuse, et cela dans des pratiques souvent grossières."

Page 230: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

228

Em 22 de Março de 1931, no Être et Avoir Marcel escrevia:

O tempo como abertura à morte — à minha perdição. O tempo - abismo; vertigem em presença deste tempo, no fundo do qual está a minha morte que me aspira (1951c, p. 100).

Esta concepção do tempo é marcada pelo signo do pessimismo e do desespero. A

novidade, a criatividade, a esperança ou a fidelidade não encontram lugar no sitiante fascínio

pelo passado e na afirmação de um tempo de que se espera tão somente a repetição do

mesmo, o eterno retorno do pior. Assim, o homem não pode senão deixar-se aspirar pela

atração petrificante da sua própria morte / perdição, ver-se arrastar pelo seu poderoso campo

gravítico. Esta concepção não se consegue desvincular da consciência da inevitabilidade da

morte e da vida, perspectivada como uma espécie de sorteio, no qual foram concedidos ao

sujeito alguns números, que este guarda ciosamente, velando a saída dos que faltam. Sobre

esta questão Marcel escreveu:

É-me permitido a cada momento desprender-me o bastante da minha vida para a encarar como uma sucessão de sorteios. Um certo número desses sorteios já teve lugar, alguns outros números deverão ainda sair. Mas o que tenho de reconhecer é que desde o instante em que fui admitido a participar nesta lotaria, foi-me entregue um bilhete, no qual figurava uma sentença de morte. O lugar, a data, o como da execução é que estão em branco215.

Refira-se, no entanto, que os prêmios já recebidos não poderão ser considerados como

elementos justapostos, pois encontram-se numa relação de mútua influência, pelo que o valor

dos prêmios está sujeito à variação dos sorteios a ter lugar. Diante de tudo isto há a garantia

absoluta da minha morte, a qual pode revestir-se de um caráter obsidiante.216

Mas no meio de tantas nuvens escuras que se acumulam e descem, de algum modo, do futuro desconhecido em direção às profundezas de um passado, que cada vez menos se deixa reconhecer como dádiva, uma garantia permanece invariável: morrerei. Só a morte não é problemática em tudo o que me espera. Isto é o bastante para que ela se me imponha como um astro fixo na cintilação universal dos possíveis. Mas esta morte, não posso ultrapassá-la em pensamento e imaginá-la como resolvida, a não ser na condição de me pôr no lugar de um outro que me sobreviverá e para quem o que chamo a minha morte será a sua morte. O fato de que isto assim suceda pode conferir à minha morte em relação a mim uma espécie de poder obsidiante e de algum modo petrificante. E desde então, nada haverá na minha existência atual que não possa ser como que dissecado por esta presença da minha morte sobre mim próprio. Pode acontecer que, tomado de

215 RI, p. 183, Cf. PST, p. 244. 216 Cf. RI, p. 183-184.

Page 231: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

229

vertigem, ceda à tentação de pôr termo a esta espera, a este miserável prazo cuja duração ignoro, pois encontro-me numa situação perfeitamente comparável à de um condenado à morte que pode, de um dia para o outro, de um minuto para o outro, ver-se transportado ao lugar de execução217.

Poder-se-ia ser tentado a pensar que esta situação criada pela meta-problemática do

deixar de ser,218 que é simultaneamente uma sistemática do desespero, seria passível de

ultrapassagem, bastando para tal o recurso a uma dialética eficaz, funcionando como um

mecanismo. Marcel não aceita semelhante perspectiva, pois,

[...] o desespero absoluto ao qual me convida de alguma forma a minha condição mortal permanecerá para mim, de modo permanente de que não é senão concedido à liberdade triunfar sobre ele — a uma liberdade que se manifesta na verdade, mesmo no suicídio, até na absoluta negação de si. As nossas possibilidades radicais de destruição de nós mesmos não serão como que a medida invertida de uma potência positiva que deixa de se reconhecer como tal a partir do momento em que se rompem as suas ligações com o ser e o contesta ou problematiza? (MARCEL, 1940, p. 186).

3.2.3 A possibilidade de transcender o desespero

Apesar de vivermos num mundo onde a traição e o desespero são possíveis e que pelo

seu fascínio interpelam constantemente o homem a entregar-se ao seu poder, o autor

reconhece a possibilidade de transcender esta situação, pois quer a traição, o desespero ou

mesmo a morte têm inscritas, na sua essência, o poder de recusa ou negação. Nas notas

preparatórias para a conferência a realizar na Sociedade de Estudos Filosóficos de Marseille, a

ter lugar em 21 de Janeiro de 1933, e da qual sairia um dos textos mais sistemáticos do autor,

Position et approches concrètes du mystère ontologique, Marcel afirmava:

217 RI, p. 184-185; Cf. RI, p. 245-246. 218 Cf. RI, p. 186-187: "Par là se constitue pour moi une méta-problématique du n'être plus, qui est en même

temps une systématique du désespoir, et qui ne se supprime qu'en s'accomplissant dans le suicide. Cette méta-problématique peut bien m'apparaître comme la suprême sagesse, comme l’expression moins pensée que vécue d'une vérité ultime dont l'homme ordinaire détourne lâchement ses regards. Etreindre cette vérité, ce peut être du même coup dénoncer tous les engagements qui me lient à mes compagnons de captivité, ce peut être me retrancher d'une certaine communauté quelle qu'elle soit. Mon suicide, que je puis préfigurer par ma façon même de vivre, est cette rupture, cette dénonciation même. Il pourra se faire à la vérité que, même hypnotisé par la mort imminente, je me conforme encore à certaines obligations contractées avant ce sombre éveil; mais si ce n'est pas là un simple fruit de la coutume, un comportement mécaniquement prolongé, et peut-être au surplus même dans ce cas, c'est donc que s'affirme en moi la résistance plus ou moins reconnue par ma conscience d'un certain positif à l'investissement par le désespoir. Ce positif encore presque informulable, c'est l'affirmation qu'il reste quelque chose qui n'a pas à tenir compte de ma mort imminente, et que même elle ne concerne point. Affirmation, si l'on peut dire, nucléaire, à laquelle je puis m'attacher ou m'adosser pour considérer ma mort, qui dès lors cesse de m'aspirer à elle; et tout se passe comme si j'étais à mon tour parvenu à me fixer."

Page 232: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

230

O espetáculo de morte que este mundo nos propõe pode ser considerado, a partir de um determinado ponto de vista, como uma incitação permanente à negação, à defecção absoluta. Poder-se-ia dizer, para além disso, que o espaço e o tempo, como modos conjugados de ausência, ao abandonar-nos a nós mesmos tendem a precipitar-nos na indigente instantaneidade do gozar. Mas ao mesmo tempo e correlativamente, parece pertencer à essência do desespero, da traição, da própria morte, o poderem ser recusadas, renegadas: se a palavra transcendência tem um sentido, é precisamente esta negação o que designa; mais exatamente, esta superação (Überwindung, melhor que Aufhebung). Pois a essência do mundo é talvez a traição ou, mais exatamente, não há no mundo uma só coisa da qual possamos estar seguros, que o seu prestígio resista aos assaltos de uma crítica intrépida (1951c, p. 148-149).

Ainda que o desespero patenteie um caráter obsessivo219 e quando confrontado com as

múltiplas situações de provação, sofra a subjugação do determinismo interior, a liberdade

humana encontra também aí um campo aberto de possibilidades de afirmação. No Congresso

Internacional de Filosofia, realizado em Paris em 1937, Marcel reconhecia que pelo fato de

cada um se saber votado à morte se sente exposto e poderá ceder à tentação de se hipnotizar

em face da fatalidade da sua inevitável morte, obcecado por esta ideia fixa que tudo avassala,

não deixando espaço para mais nada, esvaziando tudo o resto de valor. Para Marcel é

inadequada a posição dos moralistas que defendem o caráter repreensível de tal atitude,

admoestando-o, ou declarando-lhe que o seu comportamento é antissocial, sendo muito mais

aconselhável, na sua opinião, refletir como médico ou como clínico.220

Só oferecendo-lhe um testemunho vivo de amor é que talvez se conseguisse libertar

desta obsessão, dito de outra forma, levar a que esta alma, em risco de asfixia, possa respirar

de novo. É então possível a um ser aprisionado nos tentáculos do pessimismo e desespero,

titanicamente resistir ao fascínio da ideia da sua própria morte, desde que a liberdade não se

traia a si mesma, rendendo-se ao poder de fascinação petrificante da morte.221 Como defende

Marcel em La Dignité humaine et ses assises existentielles:

No plano filosófico, caberia à reflexão, como tentei mostrar em 1937, denunciar a ilusão que consistiria em crer que a nossa situação de ser votado à morte nos arrasta para uma fatalidade interior, enquanto que, na realidade, se a obsessão se apossa de nós, é com a cumplicidade da nossa liberdade, mas de uma liberdade que abdica diante do inelutável (1964b, p. 187).

219 Cf. DH, p. 187. 220 Cf. DH, p. 188. 221 Cf. RI, p. 186-187.

Page 233: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

231

Ou ainda como declarava em Du Réfus à l'Invocation: “a minha morte nada pode

contra mim senão pelo conluio de uma liberdade que se trai a si mesma, para lhe conferir a

esta realidade, ou a esta aparência de realidade, de que constatei antes o poder de fascinação

petrificante”222.

Nesta passagem o autor não só recusa o fatalismo pessimista em que pode cair o

desesperado, deixando entrever a estreita relação entre a liberdade e a esperança, como

transparece nas entrelinhas a crítica às filosofias da existência comandadas pela angústia. A

tese de Jean Paul Sartre de que o homem está condenado a ser livre, afirmando a liberdade

não como uma conquista, mas antes como uma falta radical, permite que se ceda à tentação de

pôr a liberdade no coração do desespero.223 Constatamos em Marcel uma manifesta

desconfiança em relação a todas estas filosofias da existência que encontram na angústia o seu

fundamento. Esta surge como um mal, na medida em que fechada sobre si própria, corre

permanentemente o risco de desembocar numa espécie de prazer sádico, como diriam alguns

psicanalistas, "na manifestação da necessidade de autopunição". 224

Estas filosofias da existência estão condenadas a debaterem-se num impasse, que só

poderão ultrapassar pelo recurso a uma meditação não só sobre a esperança, mas também

sobre a alegria, segundo Marcel, não assimilável à satisfação, que permanece ainda presa da

categoria do ter. Refira-se que, apesar de tudo, a alegria não exclui a inquietude, no sentido

agostiniano, definida como "aspiração de um menos-ser a um mais-ser", 225 a qual não

encontra o seu termo para além dos limites estreitos entre os quais decorre a nossa existência

aparente, mas antes numa contemplação amante, que não é senão participação.

Se o homem é essencialmente um viajante, é porque está a caminho, como diz uma das minhas personagens em L’Emissaire «em direção a um fim de que se pode dizer ao mesmo tempo e, contraditoriamente, que vê e que não vê» (MARCEL, 1956b, p. 186).

Enquanto homo viator prossegue o seu caminho, mesmo entrevendo apenas o fim para

que se dirige, afasta todos os escolhos que lhe barram o caminho. A conjugação entre a 222 RI, p. 186-187. 223 Cf. DH, p. 189: "Ce qui m'a guidé, je crois, c'est le fait que nous avons vu, en particulier dans une certaine

ligne existentialiste, se préciser une relation absolument inverse : à partir du moment où un philosophe tel que Sartre ose écrire que l'homme est condamné à être libre, où la liberté est traitée non plus du tout comme une conquête, mais bien plutôt comme un manque radical, la tentation est grande de placer la liberté au cœur du désespoir, quitte a inventer quelque expédient marxiste pour sortir de la situation ainsi crée. Dans cette perspective existentialiste on inclinera donc à définir l'homme sans racine, se sachant et se voulant tel."

224 HP, p. 186. 225 HP, p. 186.

Page 234: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

232

indisponibilidade e o ter são obstáculos cravados no coração da sua existência finita, que

poderão metamorfosear o sentido mais autêntico da morte.

3.2.4 O ter e a morte

No Être et Avoir, em 30 de Março, refletindo sobre a relação entre a indisponibilidade

e o ter, o autor considerava que o segundo era marcado por um índice de indisponibilidade

possível. Neste sentido, o morto poderia ser perspectivado como aquele que não possui mais

nada, e ao mesmo tempo, ceder à tentação de pensar que "não ter mais nada é não ser mais

nada; e de fato a tendência da vida natural é inclinar-se a identificar-se com o que se tem,

tendendo, deste modo, a categoria ontológica a aniquilar-se” (MARCEL, 1951c, p. 104-105).

Pela marcada tendência de se identificar o que se é com o que se tem, encaminha-se o

homem para um estado de indisponibilidade radical, na medida em que não consegue pôr

cobro à angústia de poder deixar de ter e consequentemente deixar de ser. A partir daqui,

toda a sua energia se consumiria no combate obstinado pela conservação, submetido aos

ditames do império da posse. Pelo sacrifício, abre-se uma via, segundo Marcel, que possibilita

a um ser afirmar-se como transcendente ao ter. Nessa medida o martírio, como testemunho,

conquista uma significação mais profunda.226 No sacrifício há uma conjugação entre a fé e a

intersubjetividade. Um pai que se sacrifica pelo seu filho é impelido por uma fé que incide

sobre uma unidade supra-pessoal constituída entre ambos, pelo que só numa ontologia

fundada sobre a intersubjetividade o sacrifício encontra justificação.227

Quanto maior for a nossa tendência para nos imobilizarmos no passado, maior será a

probabilidade do futuro se apresentar como estando, por antecipação, terminado. Todo o

fatalismo é marcado, no seu âmago, por uma contaminação do futuro pelo passado. Viver, no

sentido mais profundo do termo, significa negar a todo o instante a emergência do fatalismo.

226 Cf. EA, I, p. 105. Marcel estabelece uma identidade entre o caminho que conduz à santidade e o caminho que

leva o metafísico à afirmação do ser, e que deverá ser reconhecido por uma filosofia concreta. Aqui ganham significado e alcance ontológico as situações de provação humana, quer se trate da doença ou da morte. Esta provação tem inscrita na sua essência, o poder de ser recusada, pois enquanto apelo coincide com a própria liberdade.

227 Cf. ME, II, p. 151: "Pour prendre un exemple très simple, l'homme qui se sacrifie à son enfant est en réalité possédé par une foi dont il n'a pas eu principe à élucider le contenu, cette foi porte sur une certaine unité supra-personnelle entre son enfant et lui-même. En clair, je dirais qu'il est assuré, même sans le savoir — et peut-être essentiellement sans le savoir — de ne pas disparaître mais au contraire de survivre en cet enfant, et ces mots devraient être pris dans un sens à la foi très mystérieux et très précis; Car cela doit vouloir dire participer, selon les modes d'existence que nous n'avons pas à imaginer en détails, à cette réalité à laquelle il s'est immolé. Le sacrifice ne peut-être justifié, ou même simplement pensé, que du point de vue d'une ontologie fondée sur l'intersubjectivité: autrement il est une leurre, une duperie."

Page 235: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

233

A psicopatologia mostra-nos, através do exemplo do comportamento do obsidiado, como a

vida pode ser literalmente estancada, paralisada pela representação imobilizante do passado e

do futuro. Ora a inércia interior está na raiz da indisponibilidade, pelo que o autor defende a

conexão entre a criatividade e a disponibilidade. Tomando como exemplo o criador, o artista,

poder-se-ia ser tentado a considerar que este se encontra indisponível, demasiado ocupado

para poder dar aos outros a sua simpatia. Isto só seria verdade se não se tivesse em conta a

distinção entre a obra realizada e a obra a fazer. Se o artista se centra sobre a primeira, ela

torna-se o eixo do mundo, e é em relação a ela que procede à comparação com as obras dos

outros artistas, transformando-as num ter, sobre o qual o seu pensamento se fixa

ansiosamente, colocando-se num estado de absoluta indisponibilidade. O mesmo não se

poderá afirmar do estado de gestação do criador, que apesar de se encontrar concentrado sobre

a obra a realizar, e à qual se entrega totalmente, não sofre de uma indisponibilidade estéril,

pois ao buscar cumprir a sua vocação, através da obra a realizar, visa os outros e o mundo,228

sinal de um heterocentrismo.

Da mesma forma que se distingue entre a obra a realizar e a já realizada, uma oposição

análoga se pode estabelecer entre o eu como conjunto de qualidades dadas e o eu como

criação contínua. A concentração do pensamento sobre o que devemos ou queremos ser pode

não só tornar-se estéril, como destruidora, se não for mediada por uma relação com Deus ou

com o próximo, sob a forma de um serviço ou de uma obra.

Eu serei conduzido, parece-me, a propor a seguinte fórmula: tendo a tornar-me indisponível na justa medida em que trato a minha vida ou o meu ser como um ter, de algum modo quantificável e que, por isso mesmo, é susceptível de ser delapidado, esgotado ou mesmo volatilizado. Em relação a este ter, com efeito, encontro-me num estado de ansiedade crônica do homem debruçado sobre o nada, que não possui senão uma pequena soma de dinheiro, que procura fazer durar o maior tempo possível porque, logo que seja gasta, não haverá mais nada. Esta ansiedade é o cuidado como algo torturante, como elemento paralisante, que vem estancar todos os elos, todas as iniciativas generosas. O que é necessário ver bem é que a ansiedade ou o cuidado podem converter-se num estado de inércia interior, no seio do qual o mundo é vivido como estagnação, como putrescência. A palavra forjada por Thomas Hardy, num dos seus poemas, unhope e que Charles Du Bos traduziu pelo neologismo inespoir, reflete admiravelmente este estado de alma apreendido no que se poderia chamar a sua negatividade positiva. Este inespoir opõe-se à esperança como o temor se opõe ao desejo, é verdadeiramente a morte na vida, a morte antecipada. Não há problema mais grave e mais difícil que o de saber como poderemos nós triunfar sobre ele [inespoir] — pois parece realizar-se para lá de toda a luta possível, numa zona de desolação pálida e sem brilho. Ele [inespoir] abre-se, em

228 Cf. RI, p. 75.

Page 236: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

234

determinadas horas, como um turbilhão, e em seguida nós enleamo-nos aí como num pântano frente ao qual não temos a mais pobre, a mais elementar coragem de desejar sair (MARCEL, 1940, p. 76-77).

Desta forma, o homem pode acomodar-se a este fatalismo, condenando-se a

permanecer cativo desta disposição, até ao momento em que algo de exterior o liberte. Esta

questão coloca-nos, uma vez mais, em presença de um mistério central do nosso ser: a

liberdade, "esta liberdade que é de alguma forma, a alma da nossa alma, que não poderá ser

considerada, ao contrário de Sartre, como um atributo” (MARCEL, 1940, p. 78).

3.3 Da minha morte à tua morte

A meditação sobre a morte dos seres que amamos abre decisivamente a grande via que

permite a compreensão deste mistério em Marcel. Dois autores merecem um lugar destacado

na sua reflexão: Martin Heidegger e Karl Jaspers. Poder-se-iam dividir em dois grupos estes

filósofos, tomando como critério o lugar outorgado por cada um à sua própria morte ou à

morte do outro na economia global do seu pensamento. Assim, de um lado teríamos Martin

Heidegger e do outro Karl Jaspers e o próprio Gabriel Marcel. Nos dois primeiros o núcleo

central é a minha morte, no que respeita aos segundos, e particularmente em Marcel, o centro

é a morte do outro, a morte daqueles que amamos.

3.3.1 O ser-para-a-morte em Martin Heidegger

A morte ocupa um lugar nuclear na filosofia de Heidegger. No entanto, Marcel

criticava o pensamento heideggeriano sobre a morte pela excessiva centração na morte

própria e o esquecimento do papel fundamental que a morte do ser amado pode ter aí. Num

texto redigido em 1957,229 intitulado «Ma relation avec Heidegger», e que serviu de base para

229 Este texto foi escrito após a peça La Dimension Florestan, [Paris, Plon, 1958, 212 p. Peça escrita em 1952,

seguida do ensaio «Le crépuscule du sens commun», (1954)], considerada uma sátira em relação à influência exercida por Heidegger sobre os seus discípulos, particularmente no que concerne à linguagem obscura utilizada pelo autor. Marcel, no diálogo mantido com Pierre Boutang reconhece que se inspirou em alguns traços de Heidegger, como o gosto pela montanha ou pela linguagem. ["Ici, encore, on est tout à fait près d'un certain nombre d'expressions, et surtout la chose qui m'amuse personnellement, lorsque une admiratrice vient lui dire: «J'ai été tellement bouleversée, quand je vous ai entendu hier, dans cette merveilleuse conférence, déclarer: «la pomme pomme… la poire poire». Eh bien! Ceci, pour un français ignorant peut paraître dénué de sens, ça ne l'est pas, quand ont sait que Heidegger a écrit «Das Ding dingt» ce qui se traduit littéralement par «la chose chose» et je prétends qu'il n'y a pas différence entre la chose chose et la pomme pomme…" GMIPB, p. 48]. Marcel gostaria que Heidegger não tivesse tomado conhecimento da peça, tanto mais, que nutria uma profunda admiração por aquele, pois dos encontros que tiveram conservou a impressão de um pensador difícil, mas original, indiscutivelmente o mais profundo do seu tempo. Na obra L'Homme Problématique afirmava: "Et

Page 237: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

235

as conferências que Marcel proferiu no mesmo ano em Oberhausen (5 de Abril) e em Berlim

(14 de Maio), o autor não esconde a sua decepção em relação ao filósofo alemão por este não

ter posto em primeiro plano a morte do outro,230 pior ainda, por ter minimizado radicalmente

a morte do ser amado.231

A realização de uma ontologia fundamental exigia que o Dasein fosse dado na sua

totalidade. Este ente não nos pode ser acessível na sua globalidade por causa do próprio ser do

Dasein, o cuidado. O Dasein encontra-se sempre na expectativa de uma possibilidade não

realizada, pois na sua constituição há um constante inacabamento, um excedente de poder-ser.

Assim, enquanto ek-siste, o Dasein não constitui uma totalidade. Ele será tudo o que pode ser, quando não houver mais excedente. Então, extenuado, esvaziado de si próprio, ele deixará de ek-sistir. Nada mais dele sairá. Assim, totalidade significa vacuidade, o todo é igual ao nada.232

O Dasein morto deixou de ek-sistir, já não está aí para nos falar do já não ser. Epicuro

negava a morte com o pretexto de que por impossibilidade da sua experiência não se poderia

ceci contribue à renforcer le sentiment de profonde ambiguïté qui on éprouve en lisant ce philosophe difficile, le plus profond sans doute de notre temps, mais le moins capable de rien formuler qui rassemble à des directives claires, à orienter la façon effective la jeunesse qui se tourne vers lui comme vers un guide." HP, p. 147. Apesar de Marcel ter recebido informação que dava conta de uma recepção simpática da leitura teatral da peça em Oberhausen por parte de Heidegger a qual inclusive o teria feito rir, o que Simone de Beauvoir narra do encontro com Sartre, está em completa discordância. Escreve Marcel: "Plus tard, Simone de Beauvoir, dans un de ses volumes de Mémoires, a raconté que Sartre avait rendu visite a Heidegger et que ce dernier pendant une demi heure, s'était lamenté au sujet de cette pièce. Je n'ai jamais rien su de plus, mais je pense que, finalement il a pris la pièce très mal. A mon avis, son sens de l'humeur est très faible et peut-être même inexistant, et j'aurais mieux aimé qu'il n'eût pas connu la pièce. Maintenant, c'était évidement impossible. J'ajoute, du reste, que à la suite de cette présentation de La Dimension Florestan à Oberhausen, j'ai tenu à faire le lendemain une conférence intitulée «Heidegger et moi-même» dans laquelle j'ai dit qu'il serait absurde de croire que cette pièce épuise mon appréciation sur Heidegger. Je considère que Heidegger est un penseur considérable et je l'admire." GMIPB, p. 49-50.

230 Cf. «Ma relation avec Heidegger», in Présence de Gabriel Marcel, Cahier 1, Gabriel Marcel et la pensée allemand (Nietzsche, Heidegger, Ernst Bloch), Paris, Éditions Aubier Montaigne, 1979, p. 38; "Mais, de mon point de vue, ce qui est remarquable et, à certains égards bien décevant, c'est le fait qu'Heidegger ne se préoccupe au fond que de la mort propre (des eigenen Todes); la question de la mort de l'être aimé, autant que je puisse m'en rendre compte, ne l'a jamais retenu, au lieu que dans ma propre pensée, elle est au premier plan, et ceci se relie directement au fait que je mentionnais précisément, l'absence chez lui d'une véritable ouverture à autrui. Je serais presque tenté de dire que si, doctrinalement, il a sans doute dépassé l'idéalisme, il en reste existentiellement tributaire."

231 Cf. PST, p. 399-400. 232 Hervé Pasqua, Introdução à Leitura de Ser e Tempo de Martin Heidegger, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p.

119 tradução de Joana Chaves do original francês Introduction à la lecture de l'Être et Temps de Martin Heidegger, Paris, Éditions L'Âge de l'Homme, 1993.

Page 238: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

236

falar dela. Defendia que "o mal mais terrível, a morte, não nos toca. Com efeito, enquanto nós

existimos, a morte não está; quando a morte está, nós não existimos mais".233

Heidegger, ao contrário deste, não só não negava a morte, como fazia desta a essência

da vida. Se a experiência da morte impede o Dasein de falar dela pode, no entanto,

experimentar a morte dos outros. Morrer significa deixar de ser no mundo, pelo que o Dasein

de outrem morto é também um já-não-ser, um ser subsistente. Ao invés do que se poderia

pensar, o cadáver não é passível de ser reduzido a uma simples coisa corpórea, é o que perdeu

a vida. A prova de que o cadáver não é uma coisa radica no fato de que este, ainda que possa

ser convertido em objeto de estudos para o patologista, que procura compreendê-lo, é

estudado sempre à luz da própria vida.234

A pessoa morta, diferente do corpo morto, foi como que arrancada aos que lhe

sobreviveram, sendo para estes objeto de cuidado, manifestado com tudo o que envolve o

funeral, o enterro ou a campa. Para Heidegger tudo acontece assim porque a sua forma de ser

não é assimilável a um instrumento.235 Escreve Alphonse du Waelhens:

Eu não posso, pois experimentar a morte de outrem, nem enquanto morrer, nem enquanto passagem do Dasein à reificação, nem enquanto desaparecimento da pessoa que morre. Pois o morto não desaparece verdadeiramente para os seus próximos, a existência comum com ele não é desfeita. Todas as cerimônias funerárias onde se honra o morto são para nós objeto de preocupação e um modo de solicitude pelo qual nós permanecemos com ele.236

No entanto, a análise empreendida por Heidegger sobre a relação entre os que

sobrevivem e o morto, como defende Alphonse du Waelhens,237 permanece aquém da

reflexão marceliana no que concerne à morte dos entes queridos, para quem o

desaparecimento material do amigo ou do ente querido se apresenta como condição da sua

233 O texto de Epicuro encontra-se em Diógenes de Laércio, Vitae philosophorum X, 125, Ed. S. Long, Oxford,

1964, 553 apud Juan Alfaro, De la question del Hombre à la question de Dios, Salamanca, Ediciones Siguème, 1989, p. 243

234 Cf. Heidegger, El Ser y el Tiempo, 6ª edição, Madrid, Fondo de Cultura Económica, 1987, p. 260: "Hasta el cadáver 'ante los ojos' sigue siendo, teoréticamente considerado, una posible objeto de la anatomía patológica, la cual tiende a comprender orientándose aún por la idea de la vida. Lo 'no más que ante los ojos' es más que una cosa material sin vida. En ello hace frente algo no viviente por haber perdido la vida. "

235 Cf. Heidegger, El Ser y el Tiempo, p. 260-261. 236 Alphonse de Waelhens, La Philosophie de Martin Heidegger, 4ª edição, Louvain, Publications Universitaires

de Louvain, 1955, p. 136-137. 237 Cf. Alphonse du Waelhens, op. cit., p. 137.

Page 239: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

237

própria presença. Ser com o defunto, que já não é faticamente aí e ser com este no mundo que

deixou, não lhe sendo no entanto, possível permanecer junto a ele senão a partir desse mundo.

Martin Heidegger não aceita, através de uma análise fenomenológica da morte, que

nós possamos experimentar o ser chegado ao fim do defunto. Porque o morrer de outrem não

nos é acessível, o seu sentido ontológico escapa-nos. Assim, aliás, qualquer tentativa para

tomar como tema a morte experimentada nos outros, com o objetivo de proceder a uma

análise do fim do Dasein, circunscrevendo a sua totalidade, está condenada ao fracasso. A

questão do sentido ontológico do morrer daquele que morre como uma possibilidade do seu

ser e não do modo do ser aí com. Ninguém pode substituir outro no seu morrer. Ainda que

alguém possa morrer por outro, sacrificar-se por ele, o morrer por não significa que tenha

tomado do outro a mínima parcela da sua morte. Escreve Heidegger: “o morrer é algo que

cada 'ser-aí' tem que tomar no seu caso sobre si mesmo. A morte é, na medida em que 'é',

essencialmente, em cada caso, a minha". 238

No § 48 Heidegger reflete sobre as noções de excedente, fim e totalidade. Para este, é

apenas ao findar que o Dasein se torna num ser qualquer, desta forma, numa presença sem

vida. Como defende Hervé Páscua

[...] o ser do Dasein distingue-se, com efeito, do ser de um ente qualquer subsistente no sentido em que ele está em perfeita atividade. Ele ek-siste, enquanto este último subsiste e é de forma inativa como o cadáver reduzido ao estado de coisa inerte.239

O ser do Dasein é um ser não acabado, um ser a findar, totalidade em vias de

acabamento. A incompletude ou inacabamento do Dasein não se confunde com a imperfeição

do nosso conhecimento. Ainda que o senso comum imagine que a lua cresce, quando na

realidade se trata de um ser acabado, as variações presentes estão somente ligadas aos limites

da percepção humana. Sendo Dasein um ainda não que será, há uma expectativa e um

excedente que ainda esperam realização. Uma dívida, por exemplo, só deixará de o ser quando

for uma totalidade saldada, quando as diversas partes estiverem reunidas no conjunto de que

faz parte. Heidegger não defende que o Dasein seja uma soma de elementos adicionados entre

si exteriormente. O ainda não faz parte do ser do Dasein.

238 Heidegger, Ser y Tiempo, p. 262. 239 Hervé Pascua, op. cit., p. 122.

Page 240: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

238

O 'ser-aí' tem que 'chegar a ser' ele próprio no que ainda não é. Para poder ser, segundo este, definir por comparação o ser do 'ainda não' do 'ser-aí', temos que tomar em consideração entes cuja forma de ser seja inerente ao 'chegar a ser'.240

Este chegar a ser, tornar-se do Dasein é comparado à maturação de um fruto, pois aí, a

não maturidade faz parte deste. Ele é uma não maturidade em amadurecimento. Da mesma

forma o Dasein é o seu ainda não existindo, que a morte conduz à conclusão. Nesta

perspectiva, a morte não é algo que chega do exterior e atinge o Dasein, ela faz parte do

Dasein. Se, no entanto, para o fruto a maturidade significa a perfeição, no caso do Dasein a

morte não tem o sentido da perfeição, parece de algum modo "indiferente à perfeição."241 O

Dasein não se constitui como ser-no-fim, mas antes como ser-rumo-ao-fim, a partir do

cuidado.

A morte, interpretada a partir do cuidado, surge assim, como o que ainda não está/é aí adiante, é o ainda-não-aí-adiante mais afastado, mas ela é igualmente o mais eminente, no sentido em que pode acontecer de imediato. A iminência da morte não é comparável a uma tempestade que ameaça no horizonte ou à edificação duma casa quase terminada, no sentido ôntico. A morte diz respeito ao ser do Dasein, ela é ontológica.242

Esta apresenta-se ao Dasein como uma possibilidade de ser que este tem que assumir

ele próprio em cada momento. É com a sua própria morte que o Dasein se encontra consigo

mesmo no seu poder-ser mais próprio, mais autêntico,243 ao mesmo tempo que é a

possibilidade de já não ser Dasein. Ser Dasein significa ter inscrita a possibilidade de morrer.

Como escreve Heidegger; "enquanto 'poder ser' não pode o 'ser aí' recusar a possibilidade da

morte. A morte é a possibilidade da absoluta impossibilidade do 'ser-aí'."244

240 Heidegger, Ser y Tiempo, p. 266. 241 Alphonse du Waelhens, op. cit., p. 140. 242 Hervé Pasqua, op. cit., p. 125-126. 243 Cf. Joseph Gevaert, El Problema del Hombre. Introducción a la Antropología Filosofica, 7ª ed., Salamanca,

Ediciones Siguème, 1987, p. 301: "La autenticidad se realiza únicamente cuando el hombre se enfrenta fría y realísticamente con la irreversible necesidad de la muerte, esto es, de la propia muerte. En este enfrentamiento, en el que ningún otro ser humano puede participar de verdad, es en donde el individuo se convierte en hombre libre y auténtico. Nadie puede morir en lugar de otro. Se muere por cuenta propia, en medio de una perfecta y completa soledad. Ver esto claramente y enfrentarse explícitamente y cotidianamente con esta posibilidad es el único camino de la autenticidad que le ha dado al hombre."

244 Heidegger, Ser y Tiempo, p. 274. Comentando esta passagem de Heidegger Hervé Pasqua afirmava: "Ser, para o Dasein, já o vimos, é poder-ser. Ele é pura projeção das suas próprias possibilidades. Ek-sistindo, ele está lançado no mundo. Ora, entre as suas possibilidades, há uma, a morte, que é a sua possibilidade mais íntima, porque atinge o seu ser. Esta possibilidade anula todas as outras, porque ela é a possibilidade duma impossibilidade pura e simples de todo o Dasein. Perante esta saída fatal, o reflexo do Dasein é fugir, não se enfrentar mais a si próprio, para evitar ver-se tal como é na sua ipseidade." Hervé Pasqua, op. cit., p. 127.

Page 241: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

239

Mais adiante, questionando a relação entre a morte do Dasein e a de outrem,245

defende que esta é um momento estrutural do cuidado que encontra no ser-para-a-morte a sua

mais original concretização. Ao ek-sistir o Dasein, encontra-se lançado na possibilidade da

morte. A condição de ser-para-a-morte revela-se-lhe na angústia, que não é perspectivada

como fuga diante da morte, mas antes como o enfrentar da possibilidade da nossa

impossibilidade. No entanto, o Dasein pode abrigar-se no Man, no on, no anónimo, no

impessoal, no modo de ser quotidiano para a morte que mais não faz do que mascarar o

verdadeiro sentido da morte.246 O discurso quotidiano aborda a morte como um fato

desagradável, ocasional, mas comum a todos os humanos. Ouve-se falar da morte de alguém

que se conhecia, ou de quem se disse simplesmente algo. Tem-se conhecimento de

falecimentos diariamente. Em suma, morre-se. Assim, a morte impõe-se como um

acontecimento exterior, que não nos atinge, pois, em todas estas formas, a morte é visada

como uma realidade, como um fato, e não como uma possibilidade própria, constante,

inelutável, inscrita no próprio seio do ser do Dasein.

A noção de angústia ganha aqui um verdadeiro sentido, na medida em que a angústia

sentida diante do ser-no-mundo é a angústia em face do que se vê como pessoal, irredutível e

inultrapassavelmente bloqueado pela morte. Ao contrário de uma declaração de fragilidade, a

angústia é o sentimento da nossa situação original que nos revela lançados no mundo para aí

morrer. Sem ela, o nosso destino e a trágica verdade do que somos permaneceriam escondidos

e mascarados pelo Man, empenhado em mostrar a morte como um acidente infeliz. Sendo a

morte uma possibilidade que se afirma como anulação de todas as outras, então

Ek-sistir é avançar em direção ao nada, saindo do ser. Avançar para a morte consiste em aproximar-se do ponto para onde convergem o possível e o impossível, o ser e o nada, e onde tudo estará no todo no Dasein. Porque tudo não pode ser senão esse ponto onde coincidem todos os contrários,

245 Cf. Alphonse du Waelhens, op. cit., p. 143: "Elle est donc aussi, pour peu que nous la voulions dans sa pureté,

la possibilité la plus authentique, s'il est confirmé que l'authenticité se manifeste par là irréductiblement personnel. La possibilité de mourir m'est propre à un point tel qu'elle me coupe de toutes relations avec tout autre Dasein. La mort isole; elle est, selon le mot de Jean-Paul Sartre, «le mur». Mourir, enfin, est encore notre possibilité la plus extrême, puisqu' elle met en jeu de la manière la plus radical notre être-dans-le-monde lui-même. La possibilité de ma mort me révèle ma possible impossibilité, et même la possible impossibilité de toute existence humaine en général."

246 Cf. Alphonse du Waelhens, op. cit., p. 142: "Ainsi il masque les éventuelles modalités authentiques de l'être-pour-la-mort. C'est pourquoi le bon sens considère comme un devir d'humanité élémentaire de nier ou de cacher l'imminence de la mort au malade condamné. Toute l'attitude de l'existence journalière vis-à-vis de la mort se résume, du reste, en une volonté d'apaisement qui minimise. Forcé d'admettre le fait, le Man met tous ses efforts à l'exorciser. On considère comme un signe de faiblesse la pensée fréquente de la mort, jugée indigne d'un vir. […] En favorisant sur ce sujet capital la conspiration d'un silence, le Man ne fait que rendre impossible l'éclosion du courage authentique, qui consiste non à étouffer l'angoisse de la mort mais à la supporter."

Page 242: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

240

como na ponta de um pião girando sobre si e cujo movimento acelerado se confunde com a imobilidade. Encarando, assim, a morte de frente como a possibilidade que torna impossível, o Dasein compreende-se a si próprio como nada. Ele entende que irá em breve deixar de ser todas as possibilidades e isolar-se para não ser mais do que ele próprio.247

3.3.2 A morte como situação-limite em Karl Jaspers

No quadro da reflexão sobre as situações-limite Karl Jaspers empreende uma profunda

reflexão sobre a morte. Se em relação a Jean-Paul Sartre e Martin Heidegger encontramos

uma manifesta demarcação por parte de Gabriel Marcel, no que concerne à meditação sobre a

morte em Jaspers, apesar de algumas divergências essenciais, encontramos um elemento

fundamental de aproximação entre ambos: o lugar que a morte do ser amado ocupa na

filosofia quer de Marcel, quer de Jaspers.248

Partindo da condição do homem como ser situado afirmava Jaspers:

Certifiquemo-nos da nossa situação humana. Estamos sempre em determinadas situações. Estas modificam-se, surgem novas oportunidades; se as desperdiçarmos, não tornam a oferecer-se. Por mim posso agir para alterar a situação. Há, porém, situações que se mantêm essencialmente idênticas, mesmo quando na sua aparência momentânea se modifica e oculta a sua força avassaladora: tenho que morrer, tenho que sofrer, tenho que lutar, estou sujeito ao acaso e incorro inelutavelmente em culpa. A essas situações fundamentais da nossa existência damos o nome de «situações-limite». Quer isto dizer que são situações que não podemos transpor nem alterar. A tomada de consciência dessas situações-limite é, após o espanto e a dúvida, a origem mais profunda da filosofia. Na existência comum esquivamo-nos a elas muitas vezes, fechando os olhos e vivendo como se não existissem. Esquecemos que temos de morrer, esquecemos a nossa culpabilidade e a nossa sujeição ao acaso. Defrontamo-nos assim apenas com situações concretas que resolvemos em nosso benefício e às quais reagimos por planos e atos instigados pelos interesses da nossa existência no mundo. Às situações-limite, porém a nossa reação é diferente: ou as ignoramos ou, se realmente as apreendemos, desesperamos e readquirimo-nos a nós próprios por uma metamorfose da nossa consciência de ser.249

Jaspers ao meditar sobre a morte recusa-lhe o caráter de situação-limite sempre que

esta é tomada como um mero fato objetivo da existência empírica. Se o homem conduz todos

247 Hervé Pasqua, op. cit., p. 130. 248 Gabriel Marcel dedicou uma grande atenção à filosofia de Karl Jaspers no estudo intitulado «Situation

fondamentale et situations limites chez Karl Jaspers» integrado no livro Du Réfus à l'invocation, Paris, Éditions Gallimard, 1940, p. 284-326.

249 Karl Jaspers, Iniciação Filosófica, 6ª edição, Lisboa, Guimarães & C.ª Editores, 1978, p. 21-22, tradução de Manuela Pinto dos Santos do original alemão Einfuhrung in die Philosophie.

Page 243: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

241

os seus esforços para a evitar, também aqui a morte não se reveste do caráter de uma

situação-limite. É assim concedido ao homem poder comportar-se frente à morte de duas

formas radicalmente distintas: como indivíduo vivente ou como existente. No primeiro caso

persigo finalidades, pretendo a duração e consistência de tudo o que para mim tem valor. Aflige-me a aniquilação do bem realizado, o desaparecimento dos seres queridos; tenho que experimentar o fim, mas vivo olvidando a sua inevitabilidade e o fim de tudo.250

No segundo caso, ao contrário da consciência objetiva, o fato do desaparecimento é

inerente à existência, pois que a ausência de desaparecimento do eu, como ser, transformar-

se-ia numa duração sem termo, e portanto não existiria. Perdemos a existência sempre que

consideramos a existência empírica como absoluta, como se o eu fosse ser em si, submersos

nela de tal modo que só se aceitasse a alternativa do esquecimento ou da angústia. Para

Jaspers

Não há morte como conceito geral na situação-limite, pois que só é geral como fato objetivo. A morte torna-se histórica na situação-limite; ele é sempre uma morte determinada, a morte do próximo ou a minha própria morte. Não se pode superar mediante um conhecimento geral, mediante um consolo objetivo, que apoie o meu esquecimento da morte com razões aparentes, mas tão só na manifestação de um «existir» que se torna consciente de si mesmo.251

Na reflexão sobre a morte do próximo, ao contrário de Sartre ou de Heidegger, Jaspers

patenteia uma proximidade em relação a Marcel, como defende Paul Ricoeur,252 pois em

ambos ela tem um papel fundamental na compreensão do mistério da morte. Da morte do

próximo escreve Jaspers:

A morte do próximo, do mais querido, com o qual estou em comunicação, é o corte mais profundo na vida empírica. Eu permaneci só, quando, no último momento, o deixei só, sem poder segui-lo. Não se pode já revogar nada; é o fim para todo o tempo. O que morre não se deixa já interrogar; cada um morre só; a solidão diante da morte parece absoluta, para o que morre, como

250 Karl Jaspers, Filosofia, vol II, Madrid, Revista do Occidente, 1958, p. 91. Tradução de Fernando Vela do

original alemão Philosophie, (3 volumes), Berlin - Heidelberg, Springer — Verlag, 1932. 251 Id., op. cit, p. 92. 252 Ricoeur sublinha esta semelhança quando escreve: "Il est remarquable que Jaspers soit amené, comme G.

Marcel, à placer la mort du prochain au premier rang des expériences qui conduisent à une saisie authentique du mourir." Paul Ricoeur, Gabriel Marcel et Karl Jaspers, Philosophie du mystère et philosophie du paradoxe, Paris, Les Éditions du Temps Présent, (RICOEUR, 1948, p. 135).

Page 244: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

242

para o que permanece. Para o fenômeno do estar juntos, enquanto é consciência, esta dor da separação é a última desconsolada expressão da comunicação.253

No entanto, esta comunicação pode ter as suas raízes mais fundas, num fundamento

tão profundo, que a própria morte se converta na sua manifestação, e a comunicação perpetue

o seu ser como realidade eterna.

O mero ser empírico pode esquecer-se, consolar-se, mas este salto é como o nascimento de uma nova vida; a morte é acolhida na vida. A vida evidencia a verdade da comunicação que sobrevive à morte enquanto que se realiza tal como se faz em virtude da comunicação e tem que ser agora. A própria morte deixou de ser somente o abismo vazio. É como se nela, não abandonado já, me vinculasse à «existência» que estava comigo em comunicação mais íntima.254

Não se poderá confundir uma solidão absoluta marcada pela ausência de comunicação

e a solidão desencadeada pela morte do próximo. Enquanto, no primeiro caso estamos diante

de uma falta muda, no sentido de uma consciência que não se sabe a si mesma, no segundo

caso, naqueles em que se realizou, num determinado momento uma comunicação autêntica, a

possibilidade de solidão absoluta encontra-se excluída. Como escrevia Jaspers:

Quem foi verdadeiramente amado continua a ser uma presença existencial. A nostalgia aniquiladora do que permaneceu só, a impotência física de suportar a separação estão vinculadas a uma segurança, enquanto que o desespero do que está originariamente só, ainda que não possa lamentar nenhuma perda, ao contrário, está inseguro na aspiração em relação ao ser desconhecido. A perda real do que existiu, se bem que não permita nenhum consolo para o homem vivo e sensível que sou, converte-se, para a minha possível fidelidade, na realidade do ser.255

Na medida em que a morte do outro é uma comoção existencial, a existência

permanece alojada na transcendência, pois o que se encontra exposto à destruição pela morte

é a manifestação ou a aparência, de modo nenhum o ser. A morte do outro transformou-se

numa verdadeira situação-limite, quando o outro, o próximo, tem para nós um caráter total,

apresenta-se-nos como único e irrepetível. A minha morte é, apesar de tudo, a situação-limite

decisiva, pois sendo eu que morro, enquanto minha ela reveste-se de um caráter único, não

253 Karl Jaspers, Filosofia, Vol II, p. 92. 254 Id., op. cit., p. 93. 255 Id., op. cit., p. 93-94.

Page 245: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

243

objetivo, não conhecida de um modo geral. Não nos é dado experimentar a nossa morte sendo

possível, no entanto, fazer uma experiência da relação com ela.

Eu posso sentir dores corporais, a angústia da morte, a situação da morte aparentemente inevitável e vencer o perigo, mas a impossibilidade de experimentar a morte não se pode anular; ao morrer sofro a morte, mas nunca a experimento. Eu vou ao encontro da morte na minha dependência dela como ser vivo ou ainda sofro os graus prévios de um processo que pode ou tem que conduzir à morte.256

Ao morrer o eu é atingido por um sofrimento ligado ao não saber absoluto e na

ausência de qualquer retorno. Impossibilitado de me recuperar a mim mesmo a partir do nada,

encontramo-nos impotentes diante da morte. Como dizia Shakespeare «o resto é silêncio».

Silêncio que é pergunta, interrogação que, mau grado a impossibilidade de facultar-nos uma

resposta sobre a vida e a morte, faz irromper a exigência de cada um se conduzir e conduzir a

sua vida sempre em relação à sua própria morte.

A presença da morte introduz uma dualidade, aliás como qualquer experiência da

existência empírica em ação: o que em relação à morte permanece essencial é realizado

existencialmente, o que se revela caduco é a própria existência empírica. No segundo caso

encontramo-nos frente à morte como se tudo o resto a tivesse esvaziado da sua importância,

entregues a um desespero niilista. Só que a morte perde o caráter de situação-limite a partir do

momento em que a considera como a "desdita absoluta da aniquilação objetiva".257 Assim, a

morte já não serve para despertar a existência para a sua possível profundidade, mas antes

para cunhar tudo como o selo do absurdo e do sem sentido.

Na opinião de Jaspers também é condenável a atitude daquele que adere ao particular

como se tratasse de algo absoluto, algo que existe sem termo; ou o que se entrega à angústia e

ao cuidado em relação a finalidades finitas em vez de as considerar meios da existência

empírica, a partir dos quais o eu se eleva; ou ainda quando se deixa enlear nas malhas de uma

existência empírica, comandada pelo desejo de prestígio, por orgulho, sem capacidade de

retorno a si. Para Jaspers, a morte tem que ser assumida na existência não como especulação

filosófica ou conhecimento transmissível, mas antes como relativização do que não

transcende a existência empírica.

256 Id., op. cit., p. 93-94. 257 Id., op. cit., p. 94.

Page 246: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

244

Para o que «existe» na situação-limite, a morte não é nem próxima nem estranha, nem amiga nem inimiga. É ambas as coisas no movimento mesmo das suas formas contraditórias. A morte não é confirmação da substância da «existência» quando esta cobre nela uma atividade unívoca e retilínea; nem o é na rigorosa ataraxia, que se subtrai à situação-limite mediante a rigidez de um ser-si-mesmo puntiforme que já não pode ser afetado; nem tão pouco numa negação do mundo que se engana e consola com o fantasma de outra vida ultramundana.258

Numa perspectiva positivista que toma como absoluta a perduração como critério do

ser, a vontade ilimitada de viver no confronto com a inevitabilidade da morte vê nesta uma

causa de desespero sem remédio. Ao esquecê-lo não a resolve, consegue simplesmente

contornar a questão, transformando o sentido da morte como limite. Diante da angústia frente

à morte a vontade ilimitada de viver procura persuadir-se de que essa angústia não passa de

um erro passível de ser suprimido pelo pensar correto, tal como nos propõe Epicuro.

Assente sobre a ideia de um ser doloroso depois da morte que não há, sobre a angústia diante do processo da morte, que como tal, não se pode em absoluto sentir, na medida em que toda a dor é própria do ser vivo e não há nenhuma dor do que não lhe tenha sido possível retornar à vida. Trata-se de se dar claramente conta de que quando eu não sou, a minha morte não é e, quando a minha morte é, eu já não sou; portanto, a minha morte não me diz respeito em absoluto.259

Ainda que possam ser penosamente corretos não suprimem a perturbação diante do

pensamento do não ser, pois se deixam a sensação de encarar a morte mais não fazem do que

buscar um esquecimento mais profundo e essencial. A ideia de uma imortalidade temporal,

sensível, inúmeras vezes buscada num conjunto de provas deficientes e desesperadas,

constitui ainda, para Karl Jaspers, uma forma de transformação do verdadeiro sentido da

morte recorrendo ao esquecimento. É necessário, segundo o autor, assumir a morte com

valentia crítica,260 a qual postula a improbabilidade da imortalidade, aceitando a morte como

possibilidade indeterminada do ser-si-mesmo. A valentia em Jaspers significa morrer sem se

258 Id., op. cit., p. 95. 259 Id., op. cit., p. 95. 260 Cf. Id., op. cit., p. 97: "Es muy improbable que haya una inmortalidad, si se entiende por tal una perduración

temporal bajo cualquier forma sensible de existencia empírica, en continuidad de recuerdo con nuestra vida presente.[…] La valentía en presencia de la muerte como final de todo lo que para mi es visible y recordable, queda reducida a un mínimo cuando la muerte como limite es suprimida por la idea de una ultra vida sensible y convertida en un simples transito entre las formas de la existencia empírica. De ese modo la muerte ha perdido el horror de no ser. Queda suprimido el verdadero morir. "

Page 247: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

245

entregar a ilusões enganadoras.261 Gabriel Marcel critica esta posição do pensador alemão, na

medida em que este último, apesar das críticas desferidas ao positivismo, acabaria por se

deixar intimidar pelo positivismo na sua forma mais extrema, o cientificismo.262 Aqui reside

um dos pontos de ruptura mais significativos entre ambos. A imortalidade é fundamental na

meditação marceliana sobre a morte. A garantia da imortalidade do ser amado não se reveste

de uma fuga ou esquecimento, pelo contrário, impõe-se como garantia profética de que o tu

amado continue presente, e não se afunde no abismo da morte.

Esta questão conduz ao temor e à angústia que Jaspers distingue em dois tipos: um

primeiro que incide sobre o não-ser e é inerente ao querer viver, e ao próprio Dasein. A outra

designada por angústia existencial é a que se ressente ao tomarmos consciência de não termos

vivido, de não termos conquistado a existência por nós mesmos. Quanto maior for a

consciência de cada um se ter realizado maior será a sua capacidade para aceitar morrer263. No

entanto, se diante da ameaça da morte mais não faz que exaltar no eu o desejo de fruir o mais

possível, antes que seja demasiado tarde, o eu deixa-se cair no círculo da existência empírica e

da repetição,264 que não é, de modo nenhum, plenitude realizada. A morte não atinge a

profundidade de ser senão para aquele que se põe não como repouso, mas como realização,

como atividade, pois na própria vida o que é atingido ou consumado encontra-se, por isso

mesmo, morto. O já acabado não pode viver e, nessa medida, tender para o cumprimento é

tender para a morte.265 De algum modo a reflexão de Karl Jaspers prepara a de Gabriel Marcel

sobre o ser amado.

261 Cf. Id., op. cit., p. 97: "La dulzura dela existencia empírica, cuya desaparición es tan terrible para la voluntad

natural de vivir, vuelve a ser visible en otra figura, y la esperanza, merced a garantías dogmáticas, se convierte casi en un saber. La muerte queda superada a costa de la pérdida de la situación límite. Por el contrario, la valentía consiste verdaderamente en morir sin ilusiones engañosas."

262 Cf. RI, p. 312: "Et Jaspers juge avec la même sévérité l'effort pour se représenter une immortalité sensible et temporelle, une autre vie par delà la mort. Toute hypothèse de cet ordre lui paraît hautement improbable et même en contradiction avec les données de l'expérience. Il est curieux de noter ici à quel point ce critique du positivisme se laisse malgré tout intimider par les négations du positivisme scientiste. Il lui semble d'ailleurs que le courage en présence de la mort n'est vraiment du courage que là où toute la représentation d'un au-delà est bannie; et a ses yeux le croyant qui fonde ses espérances supraterrestres sur des garanties ou des pseudo-garanties dogmatiques perd la situation-limite et les privilèges existentiels qui y sont en quel sorte afférents."

263 “La mort, tremplin d’une esperance absolue ...” (BESPALOFF, 2004, p. 106). 264 Cf. Karl Jaspers, Filosofia, p. 99-100: "Pero si la amenaza de no-ser, en lugar de llevar al cumplimiento de la

«existencia» en la existencia empírica, invita, por el contrario, a gozar todavía lo más posible, entonces recaigo en la mera existencia empírica conforme al dicho: comamos y bebamos porque mañana estaremos muertos. Esta actitud se queda sin solución en la sinfinitude del goce de la existencia empírica que no hace más que agotarse y repetirse. No se trata de que la existencia empírica se arrastre largamente sin esperanza y no haga más que repetirse como tal existencia empírica, sino de que se realice plenamente mediante la decisión sólo en la forma de fidelidad es no sinfinitude, sin cumplimiento."

265 Cf. Id., op. cit., p. 100.

Page 248: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

246

3.4 A Morte do ser amado

O mistério da morte no pensamento marceliano opõe-se, como poderemos constatar,

ao de Martin Heidegger e Jean Paul Sartre. No fundo, a tese heideggeriana de que o homem é

um ser para a morte, transpondo filosoficamente um tema tratado por Rilke nos Cahiers de

Malte Laurid Brigge, mantém o autor centrado na questão da morte do eu, da sua própria

morte, não transcendendo o que Marcel designou por solipsismo existencial..266 Em Gabriel

Marcel, num irrecusável parentesco com o pensamento de Paul-Louis Landsberg,267 "a

266 Cf. PI, p. 58: "Les notes qu'on va lire maintenant se rapportent à une question centrale qui n'a jamais cessé de

me hanter, et dont il est peut-être utile de préciser d'abord les termes. Des phénoménologues tels que Heidegger et Jean-Paul Sartre, un grand poète tel que Rainer Maria Rilke se sont préoccupés de saisir le rapport intime qui me lie à ma propre mort; Heidegger en particulier, transposant sur le plan philosophique un thème admirablement traité dans les Cahiers de Malte Laurid Brigge, a cru pouvoir définir comme invariant de l'humaine condition ce qu'il appelle l'être-pour-la-mort, c'est-à-dire en quelque façon la pré ordination qui lie chacun de nous à sa propre mort. Jean-Paul Sartre a présenté dans L'Être et le Néant une critique de cette conception qui paraît pertinente. Mais aucun de ces deux philosophes ne me semble s'être sérieusement soucié de rechercher comment la mort de l'être aimé peut affecter métaphysiquement celui que cette mort dévaste. C'est qu'au fond, on peut se demander si ces deux penseurs, malgré leurs professions de foi réalistes, ont suffisamment porté leur attention sur la nature du lien qui unit l'aimant à l'aimé, et si en fait ils en restent pas prisonniers d'un idéalisme destructeur, qu'ils ont théoriquement surmonté. C'est autour de ce problème de la mort de l'être aimé et de ses implications que gravitent les réflexions dont on va prendre connaissance."; Cf. "Sur La Chapelle Ardente", p. 3; Cf. «Muerte e Inmortalidad», p. 90-91. [Conferência proferida em alemão, não foi editada em francês. Esta teve lugar em Friburg em 4 de Junho de 1962, vindo a ser incluída na obra alemã Auf der Suchnach und Gereshtigkeit, de 1964. Três anos depois foi traduzida para catalão por Juan Godo Costa] in En Busca de la verdad y de la Justicia, Barcelona, Editorial Herder, 1967]; Cf. PST, p. 399-400; Cf. «Ma relation avec Heidegger», in Présence de Gabriel Marcel, Cahier 1, Gabriel Marcel et La Pensée allemande (Nietzsche, Heidegger, Ernst Bloch), Paris, Aubier Montaigne, 1979, p. 38.

267 Filósofo alemão, fugiu da Alemanha por causa da sua ascendência judia três dias antes de Hitler ascender ao poder. Primeiro refugiou-se em Espanha, onde ensinou nas Universidades de Barcelona e Santander. Com o início da guerra civil espanhola, foge de novo, desta vez para França. Torna-se colaborador assíduo da Revista Esprit, onde publica com regularidade, desempenhando aí uma profunda influência no movimento personalista. [Paul Ricoeur, «L'Essais sur l'expérience de la mort de P. -L. Landsberg», in Lectures, volume 2, Paris, Éditions du Seuil, 1992, p. 191] Com a ocupação nazi vê-se forçado a abandonar Paris, refugiando-se na «zona livre». Reconhecido, foi denunciado e preso na primavera de 1943, vindo a falecer no campo de concentração de Oraniamburg em 2 de Abril de 1944. Na sua obra Ensaio sobre a Experiência da Morte, a tônica é posta não na nossa morte mas, recorrendo à meditação de Santo Agostinho no Quarto livro das Confissões, onde nos narra a morte do amigo, durante o período de professorado em Tagaste põe a tônica na morte daqueles que amamos, a morte do próximo. Landsberg assume explicitamente uma posição crítica em relação à concepção do ser-para-a-morte em Heidegger,: "As investigações de Heidegger quase que ultrapassam imediatamente a experiência da morte do outrem, e têm um objetivo muito diferente do nosso." [Nota de rodapé da obra Ensaio sobre a experiência da morte, Lisboa, Editora Hiena, 1994, p. 26, tradução do francês de Alberto Nunes Sampaio, de L'Essais sur l'expérience de la mort, Paris, Éditions du Seuil, Gallimard, 1937.] A tese de Landsberg não oferece qualquer dúvida: "Escolhemos como ponto de partida a experiência da morte do outro porque desta forma esperamos ter em vista a pessoa como tal e a relação específica que ela pode ter com a morte. À medida que nos vamos individualizando, vamos reparando na singularidade dos outros. No amor pessoal captamos esta singularidade, não só no que ela tem de inefável mas na diferença essencial que mostra em relação a nós próprios. A morte de um homem que amamos com este amor pessoal deve dizer-nos algo definitivo e ultrapassar a zona de fato biológico. Em geral, a morte do próximo representa infinitamente mais do que a morte de outrem. Se a pessoa estiver em causa, podemos chegar ao problema ontológico da sua relação com a morte." Id., op. cit, p. 25-26.

Page 249: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

247

consideração da morte do ser amado excede infinitamente a da própria morte." 268 Nos

Entretiens autour de Gabriel Marcel o filósofo afirmava. “É verdade que a morte não me

afeta profundamente senão na medida em que toca o ser que amo. Eu posso morrer daqui a

algumas semanas e este não é de todo um pensamento, que por si mesmo me afete

terrivelmente".269

O topos da morte põe-se efetivamente e com acuidade, segundo Marcel, a partir do

momento em que a consciência do eu se debate dramaticamente com a morte de alguém

amado. A famosa controvérsia com León Brunschvicg demonstra sobejamente o ponto de

ruptura com todas as concepções filosóficas que gravitam em torno da ideia da própria morte.

Sobre o confronto com o velho mestre escrevia Marcel:

Limito-me a evocar a breve mas fundamental controvérsia que tivemos, Léon Brunschvicg e eu, nesse mesmo congresso. Quando ele declarou que a morte de Gabriel Marcel parecia preocupar muito mais Gabriel Marcel do que a morte de Léon Brunschvicg preocupava Léon Brunschvicg, respondi-lhe que a questão estava muito mal posta e que a única coisa que era digna de preocupar cada um de nós era a morte do ser que amávamos. A este propósito, posso dizer que o meu pensamento não evoluiu absolutamente nada de 1937 para cá e que a experiência veio, pelo contrário, confirmá-lo de forma mais dolorosa e irrecusável.270

Preso nas malhas do solipsismo, o sujeito pode criar um deserto em torno de si, e ao

fazê-lo, poderá deixar-se arrastar pela morte, preparando-se para ela como para um sono

indefinido. Com o surgimento do tu, quebra-se o círculo de solidão e vazio onde o eu se

encontrava encarcerado, dando azo a uma transformação radical do sentido do mistério da

morte. Uma experiência de comunhão como a fidelidade tem na morte do outro o supremo

desafio, mas simultaneamente a experiência mais plena, exatamente como o triunfo sobre a

268 Cf. PST, p. 255: "É esse, aliás, o ponto em que me oponho não apenas da forma mais radical a Heidegger e a

Sartre, mas à posição da maior parte dos filósofos anteriores. Uma excepção notável deveria ser assinalada — e como é tão freqüente, é de Schelling que se trata, o autor dessa extraordinária e profunda obra, Clara que viu a luz do dia depois da morte de sua mulher."

269 EAGM, p. 180-181. 270 PST, p. 255; Cf. HV, p. 205; Cf. RI, p. 198; Cf. ECVQE, p. 159-160; Cf. GMIPB, p. 77-79; Na Conferência

inédita, datada de 1950 e que o autor intitulou " Sur La Chapelle Ardente", de que anteriormente falamos, sobre esta polêmica com Brunschvicg, escrevia: "On pourrait placer ici, en exergue la courte discussion qui s'engagea au Congrès de Philosophie de 1937, entre Léon Brunschvicg et moi et qui, je l'ai constaté a maintes reprises devait laisser une impression profonde aux assistants, cette discussion suivit la lecture de ma communication sur le métaproblématique, communication qui a été recueilli dans le volume intitulé "Du Refus à l'invocation". Léon Brunschvicg crut devoir constater que je m'intéressait beaucoup plus à ma propre mort que lui-même ne s'intéressait à la sienne, je lui fit alors remarquer que ce qui était en question n'était nullement ma relation à ma propre morte, mais bien le fait central de la mort de l'être aimé, et que, de mon point de vue, c'était en fonction de ce fait que tout le problème devait être considéré." "Sur La Chapelle Ardente", p. 2.

Page 250: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

248

ausência, de modo particular a que se oferece, ainda que falaciosamente, como ausência

absoluta, ou seja, a morte.271 Nesta medida, a morte apresenta-se como uma verdadeira

provação, é a épreuve de la présence.272 Apesar de em termos biológicos se poder proceder a

estudos objetivos, o acesso à sua autêntica significação encontra-se somente reservado para

aquele que transcende o nível da objetividade e se coloca no nível espiritual mais elevado273.

Pela atitude interior adotada por aquele que sobrevive a um ente querido é que se franqueia a

possibilidade de acedermos à questão metafísica da sobrevivência real dos desaparecidos.

Impõe-se aqui dilucidar o que o autor entende por sobreviver. Gabriel Marcel constata

que Karl Jaspers, apesar de não ser cristão e se ter pronunciado sempre contra a afirmação do

além, nem por isso deixou de reconhecer que um mistério se oculta na palavra sobreviver,274 e

que Marcel perspectiva de duas formas diametralmente opostas: numa primeira acepção,

poder-se-ia considerar que sobreviver a alguém seria assimilável ao fato de viver mais tempo

do que a pessoa em causa. Numa segunda acepção, poderia referenciar o ato que implica da

parte do eu uma tomada de posição condicionada pelo falecimento de outrem. Este ato só se

reveste de sentido se a morte do outro nos afeta verdadeiramente, se o laço intersubjetivo

criado entre eu e tu, entre nós, for tão poderoso que o desaparecimento do tu se apresente

como uma ferida real, uma dolorosa chaga aberta,275 a tal ponto que este se sinta instado a

afirmar, como Valentine na peça La Mort de Demain, "A sua morte é a minha morte."276 O

mesmo se poderia dizer da afirmação de Antoine Sorgues, na peça L'Emissaire, que coloca a

tônica, de forma muito clara, na relação entre a sobrevivência e o amor.

Há uma coisa que descobri depois da morte dos meus pais, é que o que chamamos sobreviver, em verdade é sub-viver, e aqueles que não deixamos

271 Cf. RI, p. 198-199. 272 "L'absence, la mort — dans L'Être et Avoir comme dans le Mystère ontologique — sont traitées comme des

épreuves. La notion d'épreuve a ici une importance essentielle — et c'est sa signification que je voudrais ici préciser — d'autant qu'une certaine prédication religieuse a peut-être tendu a oblitérer involontairement." RI, p. 100.

273 “Gabriel Marcel envisage donc l’amour authentique, non pas comme un simple sentiment, mais comme un aspect de l’Esprit absolu” (SANSEN, 2009, p. 31).

274 Cf. "Sur La Chapelle Ardente", p. 3; Cf. «Muerte e inmortalidad», p. 90. 275 Da afirmação de Valentine conclui Marcel: "Este grito es una chispa que brota del dolor absoluto. Aquí

tenemos la tragedia de la supervivencia; el ser que ha sido pisoteado, por la muerte parece seguir viviendo, lleva en sí esta contradicción, él es esta contradicción. Pero el que vive esta situación atestigua existencialmente la falsedad de la afirmación spinozista; atestigua que esta afirmación se descubre en la dimensión intersubjetiva de la cual Spinoza no tuvo idea alguna." «Muerte e inmortalidad», p. 90-91.

276 L'Horizon, p. 176; Cf. "Sur La Chapelle Ardente", p. 6: "Quand Valentine à la fin de ma pièce L'Horizon, s'écrie à propos de la mort de Bernard: sa mort c'est la mienne!, elle se place au cœur même de l'espace sacré qui est celui de l'intersubjectivité proprement dite."

Page 251: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

249

de amar com o melhor de nós mesmos, eis que se tornam como que uma abóbada palpitante, invisível, mas pressentida e mesmo tocada ao de leve sob a qual avançamos cada vez mais curvados, mais arrancados a nós próprios em direção ao instante em que tudo será submerso no amor.277

3.4.1 A condição itinerante do Ser face à morte

Num desejo de aproximação à noção de sobreviver a…, poderíamos explicitar ainda

mais algumas possibilidades de sentido. Fiel ao seu método de aproximações concretas, o

autor procura através dos usos mais frequentes da linguagem encontrar um sentido para a

compreensão das grandes experiências humanas.

Na obra En Chemin vers quel éveil?, ao perguntar pelo sentido da expressão

sobreviver a…, o autor faz uma aproximação a partir da representação de um percurso. A vida

do eu e do tu seria semelhante a um caminho palmilhado conjuntamente por ambos durante

uma certa duração temporal para posteriormente um deles prosseguir sozinho, pois o outro

não o acompanhou para além desse ponto em que ficara imobilizado. O próprio passado,

concebido sob o signo do percurso, oferece-se ao eu como uma estrada que este percorre com

o olhar e onde vai assinalando, um após outro, todos aqueles a quem sobreviveu e que

ultrapassou, para um dia também ele ser ultrapassado.278

Esta imobilização dos seres que amamos, num ponto específico do percurso, é feita

por nós, por intermédio da ação da nossa imaginação, subjugada ao fascínio das derradeiras

imagens que esses seres nos doaram de si mesmos, completamente diferentes de todas as

outras ou dos diálogos que as precederam, estas sim, alimentadas pelo movimento, pela

chama da vida. Para Marcel, as últimas imagens manifestam um verdadeiro poder de

estancamento.279

É possível a assimilação da vida a um percurso se considerarmos que o amigo,

enquanto corpo, ocupa sempre um lugar no espaço. No entanto, quanto maior for o amor que

sentimos por esse ser, maior deverá ser a nossa resistência ao poder petrificante das últimas

imagens, dos lugares ocupados no percurso, pois

[...] o que mede de alguma maneira a minha amizade, a minha ternura, é a profundidade de um passado que deverá obliterar estas derradeiras imagens, pois se estiver de boa fé ou com sangue frio, eu descobrirei nestas muito

277 Vers un Autre Royaume, p. 109. 278 Cf. PI, p. 59. 279 Cf. PI, p. 59.

Page 252: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

250

mais um testemunho de um apagamento do que de uma presença. De onde um paradoxo que a imagem em torno da qual se crispa a minha aflição. Como se ela detivesse parcelas mais preciosas do ser desaparecido, é no fundo, sou constrangido a dizê-lo, aquele onde ele menos se reconhecia, a mais estranha ao que ele foi (MARCEL, 1959a, p. 60-61).

Na conferência inédita intitulada "Sur la Chapelle Ardente", Marcel prossegue o

trabalho cuidadoso de depuração do sentido da expressão sobreviver a…Neste texto, o autor

disponibiliza vários sentidos, hierarquizados a partir de um sentido muito pobre, a morte de

alguém, para nós um nome sem rosto, à máxima intimidade oferecida pela morte de um ser

amado. Observando num jornal a necrologia constamos que o Sr. Henri Dupont faleceu com a

idade de 66 anos. Pelo nosso completo desconhecimento deste indivíduo a nossa imaginação

não desencadeia nenhum tipo de ação frente à nota impressa sobre o mesmo, pelo que, se é

correto considerar que este já não pertence ao mundo de onde se retirou, seria absurdo afirmar

que aquele que leu a notícia sobreviveu a Henri Dupont. No fundo só se pode sobreviver

àquele com quem se viveu.

Seria algo diferente se viéssemos a tomar conhecimento da morte de uma

personalidade, que conhecemos por ser uma figura relativamente conhecida e a quem nos

propúnhamos dirigir uma missiva a fim de obter uma informação. A notícia da sua morte

poderá provocar em nós algum incômodo ou mesmo um certo constrangimento pelo fato de

que essa pessoa, como uma ficha anteriormente disponível no ficheiro, deixa a partir de então

de estar ao nosso alcance. Neste segundo caso o outro jamais se apresentou como um ser para

nós, foi antes convertido num meio de que nos servimos. Marcel, dando-nos o seu próprio

exemplo, referia que 99% das chamadas telefônicas ou cartas recebidas diariamente eram

essencialmente deste tipo, evidenciando um caráter decepcionante e unilateral.

Tratam-me como alguém a quem se pode fazer apelo para… No dia em que tiver desaparecido será necessário encontrar um outro botão para carregar. Mas mesmo aqui a palavra sobreviver não tem senão uma significação objetiva e, em última análise, não é aplicável.280

Tudo se transforma radicalmente se nos encontrarmos em presença de um nós, de uma

relação ou comunicação entre um eu e um tu, onde necessariamente ambos estão muito para

além do anônimo, ou do que pode ser dado pelo conhecimento objetivo. Só a morte neste tipo

de relação, onde irradia a amizade, a ternura ou o amor, se apresenta como a única que

verdadeiramente é digna de ser meditada quer filosófica quer dramaticamente. Só neste caso a 280 "Sur La Chapelle Ardente", p. 5.

Page 253: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

251

expressão sobreviver a… se reveste de um sentido autêntico. “Tem-se o direito de dizer que

um ser sobrevive a outro ser se entre ambos existiu uma unidade intersubjetiva tal que o

desaparecimento do outro implique para aquele que permanece uma verdadeira lesão."281

Roger Troisfontaines, nos Entretiens de Dijon, meditando sobre a morte, e na linha do

que fizera na sua magistral obra de doutoramento, De l'existence à l'être,282 considera que em

Marcel sobreviver a… apresenta-se num triplo sentido, acentuando modos diferenciados de

visar o ser daquele a quem o eu sobrevive. Na noção o eu poderá afirmar o corte radical de

todo e qualquer vínculo intersubjetivo, ao proceder a uma dupla assimilação: por um lado

identificar o corpo e a alma, por outro identificar o outro à categoria dos objetos, das coisas

que se possuem e que, enquanto coisas possuídas, estão expostas ao perigo da perda ou

aniquilação.

Num segundo sentido, sobreviver a… apresentar-se-ia como conservação ou

perpetuação da memória do defunto. Desenganado quanto ao futuro deste, nada esperando

para além do silêncio sepulcral que o envolve, organiza todas as recordações, votando-lhe, por

vezes, uma pseudo fidelidade, marcada não pela criação, mas pela mumificação ou

cristalização do morto erigido em ídolo ou esfinge.

Num terceiro sentido, a morte impõe-se como afirmação da presença, marca

indefectível de uma comunicação e comunhão perpetuada, vinculada a uma fidelidade não

destruidora, mas criadora e de uma esperança aberta no tempo à plenitude da eternidade,

numa manifesta exigência de perenidade real, alicerçada no amor.283

3.4.2 A morte como fim do ser-com

Aceitar a identificação materialista entre corpo e alma constitui uma perigosa traição

da experiência de presença que ao longo dos anos o eu e o tu mantiveram e que, pela sua

sobrevivência o eu poderia manter. Se na linguagem quotidiana se designa a morte como uma

perda, esta expressão não possui qualquer sentido ao nível do ser, mas tão somente ao nível

do ter. Só enquanto o eu crê possuir o outro é que poderá nutrir o sentimento da sua perda.

Se a tônica for colocada entre o eu e o ente querido morto, posto como tu e não como

ele ou isso, então é possível evitar a tentação de o objetivar ou reduzir a uma coisa. Assim,

281 "Sur La Chapelle Ardente", p. 6. 282 Cf. Roger Troisfontaines, De l'Existence à l'Être, vol.II, 1953b, p. 141-171. 283 Cf. Id., «Le mystère de la mort» in Revue de Métaphysique et Morale, Juillet-Septembre, (1974), p. 328-337.

Page 254: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

252

"quanto mais o ser desaparecido for pensado como ser […] menos ele será apreendido como

posse, e menos, conseqüentemente, o seu desaparecimento será ressentido como perda."284

Há efetivamente uma diferença significativa entre a imagem da coisa e uma visão interior do ser posto na sua misteriosa permanência. 285 Nesta medida, só como coisa ou objeto é que seria legítimo falar do morto como alguém que se perdeu. Marcel lembrando o que havia escrito a alguém, por ocasião do aniversário da morte da esposa, sublinhava a carência de sentido da palavra perdido, sobretudo enquanto o morto é experimentado como uma presença mantida.286 Paul Ricœur, no congresso dedicado ao pensamento de Marcel, e que teve lugar em Cerisy-La-Salle, visando a questão da morte do ser amado como perda afirmava: "Se eu choro aqueles que amei, é porque, de certa forma, eu os perdi e seria um milagre reencontrá-los." Ao que Marcel respondeu: "Porque é que o milagre não existiria? Eu penso numa das minhas personagens que diz: «Le miracle est partout»; é a palavra de um verdadeiro crente (MARCEL, 1959a, p. 176).

O filósofo não escamoteia o perigo real daquele que sobrevive se hipnotizar, se deixar

cristalizar pela imagem, pela obsessão. Ora será exatamente pela relação ao outro, pela

permuta, pela comunicação viva287 que se poderá triunfar sobre esta obsessão. Assim, ao

conceber a relação como comunicação viva, a representação materializante da recordação será

excluída, apesar da irresistível tendência de assimilar as recordações que conservamos de

outrem a fotografias guardadas que, a qualquer momento, podem ser revisitadas. Como

escreve o autor,

Ora existe em cada um de nós uma tendência quase invencível para assimilar as recordações que guardo do outro a fotografias que conservarei diante de mim e que poderei folhear. «Eu penso em» significaria: eu peguei numa

284 Cf. PI, p. 69. 285 Cf. PI, p. 63. 286 Cf. PI, p. 63: " En écrivant récemment à P. H…, à propos de l'anniversaire de la mort de sa femme: «Je

comprends de plus en plus clairement que le mot perdu n'a pas de sens», je me référais précisément à cette expérience d'une présence maintenue." Algumas páginas adiante, acentuando a diferença entre objeto e presença, escrevia: "L'objet que je possède, je puis en toute vérité le perdre. Cette montre que je palpais, que je sentais mienne, elle n'est plus là; elle est tombée, ou quelqu'un l'a prise, je l'ai perdu. D'où peut-être cette conclusion (bien hâtive, mais qu'il faut noter): c'est dans mesure où j'ai cru posséder l'autre que je peux vraiment avoir conscience de l'avoir perdu ; et c'est en cela qu'il est souvent si vrai de dire qu'on a perdu son enfant. Mais tout de suite une difficulté, une complication : il peut me sembler que ce que je ne possède pas m'est par définition étranger, et je ne puis effectivement perdre ce qui n'a jamais été à moi. Il faudrait donc arriver à explorer cette région médiane qui est celle de l'avec [et qu'un Sartre a si étrangement méconnue]. Ce que je vois pour le moment, c'est que ce que j'ai écrit sur la hantise est sûrement lié à la possession. En me laissant hanter par le dernière état ou la dernière image, je convertis l'être que j'aime en une chose qui en effet s'avère perdu. Avec cette chose, je ne pouvais former une véritable nous; et s'il y a une indestructibilité c'est seulement à partir du nous que je peux réussir à la penser." PI, p. 69.

287 Cf. PI, p. 63.

Page 255: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

253

dessas fotografias: A partir deste ponto de vista a ideia de uma relação viva a… perde todo o significado (MARCEL, 1959a, p. 63).

Para Marcel, a grande questão concerne ao fato de se saber se seria pensável, nas

múltiplas possibilidades de atitudes em relação ao desaparecido, um comunicar com.

Estas investigações não ganhariam um sentido, nem se tornariam possíveis senão com uma condição prévia: a de reconhecer que o outro não é aqui de forma nenhuma redutível a uma imagem, a uma esfinge que teria na minha posse, que manusearia a meu bel-prazer, mas que, bem entendido, seria inteiramente passiva entre as minhas mãos; se isso fosse assim, é muito claro que a ideia de uma comunicação viva deveria ser considerada como despojada de sentido (MARCEL, 1959a, p. 63-64).

A nossa atitude interior em relação aos mortos reveste-se de uma particular

importância, na medida em que exerce uma influência sobre ele pois existe uma relação entre

ambos. Esta relação tem um caráter constitutivo se o outro esteve verdadeiramente comigo.

Nessa medida não se poderia defender que é indiferente se nos deixamos ou não hipnotizar

por ele, assimilado a uma coisa perdida. Nesta atitude encontramo-nos de novo com a noção

de fidelidade, ou melhor, com a sua negação, a traição. Por amarmos autenticamente o outro

sentimos a exigência de nos libertarmos desta obsessão, pois se somos com este ente, devemos

não só não o imobilizar, como tudo fazer para não o negar como ser e como vida.288

De outra forma estaríamos diante de uma falsificação do outro, ao confundir o ser com

as recordações que dele possuímos, tratado como ídolo, relíquia a que se presta culto.289

Quanto mais um ser for concebido como tal, menor é a probabilidade dele ser confundido

com as perspectivas que deles podemos ter, reconhecendo-lhe assim o seu valor. Trata-se, no

fundo, de resistir à tentação de o objetivar, de o coisificar.

Encontramo-nos no âmago da vida de uma relação, que tem como centro de interesse

saber qual foi a relação entre nós, qual a natureza desse laço, desse vínculo que nos uniu tão

poderosamente. Situamo-nos aqui aonde confluem as três grandes experiências de comunhão:

a fidelidade, a esperança e o amor. A dor provocada pelo desaparecimento constituiu um

momento necessário na relação, ao mesmo tempo que é a partir de si que se triunfará sobre a

tentação do desespero. Enquanto seres carnais sofremos dolorosamente a morte, o falecimento

288 Cf. PI, p. 70. 289 Cf. PI, p. 70: "Ce que je vois encore, c'est plus généralement que je fausse tout en confondant l'être avec ses

souvenirs que j'ai de lui, et en venant à traiter ceux-ci comme idole ou si l'on veut comme reliques, en reportant par exemple sur ces souvenirs eux-mêmes le culte que j'ai pour cet être. Ici comme toujours, il y a une transcendance à préserver."

Page 256: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

254

de outrem, e não podemos buscar paliativos que nos imunizem desta, pois aí reside o único,

ao mesmo tempo, fundamento autêntico de uma relação entre o vivo e o morto. Há como que

uma dívida para com o morto, o imperativo de não se deixar arrastar pela obsessão. O triunfo

do eu só é possível pelo amor votado ao outro. Como defende Marcel, "o outro está presente

no ato pelo qual me liberto não dele, mas do ídolo com que eu o substituí, imobilizando-o."290

Esta presença tem, em Marcel, o caráter de uma verdadeira comunhão, que encontra

nas noções de ser com, ou comunicar com, a melhor explicitação. Verifica-se, no entanto,

algum cepticismo no que concerne à possibilidade de comunicação, pelo fato de esta ser

pensada não como comunhão, mas muito mais como transmissão material de uma mensagem

entre dois postes, numa clara redução da comunicação à dimensão física tomando por

paradigma o telégrafo.291

A noção de ser com é verdadeiramente incompatível com esta concepção de posse,

pois o amigo não é algo que tenho em mim, mas antes um tu que é comigo. Assim, pelo amor

consagrado a alguém recusamos uma ruptura definitiva da nossa intimidade, e

simultaneamente a sua coisificação. Como sustenta Roger Troisfontaines se tratamos o tu

como uma coisa então pela morte esta coisa estaria em vias de desintegração

[...] mas, enquanto «coisa», ela não é o tu que amei e que me amou. Ao contrário, enquanto o outro é um tu, ele escapa à natureza das coisas. «Ser tu», a expressão indica bem que para Marcel a indestrutibilidade do ser amado não é reivindicada de um qualquer ponto de vista numenal, compatível com a solidão; ela é a imortalidade de um laço, de uma comunhão, não a de um objeto.292

Na comunhão intersubjetiva, no ser com, na fé, encontra-se a única possibilidade de

permanecer unido ao ser amado. Apesar de se encontrar privado da experiência do futuro, o

amigo, pela morte, não se mantém na superfície do tempo, mergulha nas suas profundezas, na

eternidade.

290 PI, p. 71. 291 Cf. PI, p. 71-72: " Mais nous retrouvons ici encore le problème de l'ipséité. Qu'est-ce que je veux dire — et

comme puis-je être sûr d'être dans mon droit — quand j'affirme que «c'est bien lui», que c'est lui-même qui est présent dans cette acte? Il faudrait montrer ici que nous restons malgré tout obsédés par l'idée d'une communication d'ordre physique, de fil reliant deux postes. La question: «Est-il là en personne?» se présente a nous sous la forme: «Est-ce que c'est lui qui est au bout du fil?» ou bien: «Est-ce qu'en dernière analyse, il n'y a personne, les choses se passant comme s'il y avait quelqu'un?» je note ici en passant une pensée qui m'est souvent venue: nos inventions paraissent appelées à nous fournir les métaphores de plus en plus précises qui sont destinées à nous servir d'auxiliaires, lorsque nous cherchons à concevoir ce qui est en réalité au-delà de toute métaphore et de toute technique concevable."

292 Roger Troisfontaines, «Le mystère de la mort», p. 330.

Page 257: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

255

3.4.3 A morte como manutenção de uma recordação

Concebe-se, algumas vezes, o sobreviver enquanto preservação da memória do

defunto. Ao partir da certeza de que tudo está terminado, o eu pode fechar-se sobre si,

recolhendo, como um paciente colecionador, todas as memórias do defunto, cristalizando-as

na sua própria vida. Na peça La Chapelle Ardente o que está em causa é a atitude espiritual

que os que sobrevivem adotam em face do morto. No fundo emerge aí a questão complexa da

fidelidade, isto é, se esta é criadora ou destruidora. Ainda que no momento em que compôs a

peça o autor não fizesse uso do conceito de fidelidade criadora, toda ela é atravessada por

esta ideia nuclear, ou como afirma Marcel, "La Chapelle Ardente é o drama da fidelidade não

criadora ou mesmo da fidelidade destruidora." 293 O núcleo central desta peça 294 atesta a

293 "Sur La Chapelle Ardente", p. 6. Numa folha solta que aparece no espólio do autor, e que tudo leva a crer que

seria o texto que anuncia a conferência, uma pequena síntese da mesma, aliás procedimento frequente em outras ocasiões, o filósofo escrevia: " La Chapelle Ardente, c'est au fond la tragédie de la douleur destructrice: un être, parce qu'il souffre trop, et surtout, parce qu'il met en quelque sorte sont point d'honneur à s'enfermer dans sa douleur et à entraîner avec lui un être plus faible sur lequel s'exerce sont action fascinatrice dans ce cercle maudit, devient ainsi infiniment malfaisant, et cela sans aucune préméditation, sans aucune perfide. S'il est une leçon, qui se dégage de cette pièce comme de la Soif, de L'Emissaire ou le Chemin de Crête, c'est que une femme telle que mon héroïne échappe aux prises du jugement humain et relève de Dieu seul. La pièce est contemporaine d'un Homme de Dieu, mais n'a rien perdu, pour moi de son actualité et de sa signification."

294 A peça La Chapelle Ardente, assim como Le Regard neuf e Le Mort de demain, publicadas em conjunto em 1931 pela Editora parisiense Plon, foram compostas nos anos subsequentes à primeira guerra, entre 1919 e 1921. Cf. Marie Madeleine Davy, Un Philosophe itinérant. Gabriel Marcel, Paris, Flammarion, 1959, p. 100. Foi representada pela primeira vez pelo Théâtre des Jeunes Auteurs, no Vieux-Colombier, em Paris, no ano de 1925, e mais tarde no Théâtre de Rochefort. No manuscrito o autor começou por intitular a peça por Les Champs Dévastés, aparecendo a lápis o título definitivo. Cf. Gabriel Marcel, Les Champs Dévastés, (peça em três actos), Bibliothèque National de France, Paris, [carton 39]. Encontramos no primeiro acto, numa afirmação de Mireille que de algum modo justificaria a primeira escolha: "N'achève pas, je devine, mais ce n'est pas seulement inutile, c'est… enfin, tu te rappelles bien ce que je t'ai dit quand nous avons été là-bas, quand on nous a montré ces champs dévastés, ces pentes où rien ne poussera plus jamais…(Sourdement.) Moi, c'est la même chose." La Chapelle Ardente, p. 47-48. Na conferência inédita intitulada "Sur La Chapelle Ardente", Gabriel Marcel ao procurar integrá-la no conjunto da sua obra manifesta uma especial predileção por esta peça, considerada uma das mais rigorosas que escreveu. [ "j'ai souvent fait observer qu'il n'est aucune dans mon théâtre qui paraisse moins relie avec ma pensée proprement philosophique, et j'ajoutais que c'est là d'ailleurs une des raisons pour lesquelles elle est une de celles que je préfère ." p. 1; "c'est, je crois, une des pièces les plus rigoureuses que j'ai conçues; de là d'ailleurs l'impression pénible et presque étouffante qu'elle risque de donner aux spectateurs, si celui-ci n'en découvre pas la signification cachée. Peut-être vous surprendrai-je en disant que cette signification est pour moi-même beaucoup plus claire, beaucoup plus lisible que lorsque j’écrivis la pièce." ["Sur La Chapelle Ardente", p. 2]. Hilda Lazaron, na obra que dedica ao teatro de Marcel, integra a peça no conjunto de obras, de que fazem parte Le Mort de demain, Le Regard neuf e Le Monde Cassé, que têm por pano de fundo a Primeira Grande Guerra. Nestas quatro peças o tema central são os conflitos familiares e as hostilidades. De alguma forma a guerra é a responsável pelas situações em torno das quais se tece o tema principal. O problema em todas elas está ligado não só à dificuldade de compreender as ações humanas, como da dificuldade de enunciar, com caridade, juízos sobre essas mesmas ações. Hilda Lazaron escreve: "In the next group of plays, family conflicts and hostilities constitute the subject matter. In each of these plays World War I is responsible for the particular situations and dislocations; but in all of them the central problem is the difficulty of understanding human actions and judging these actions and judging these actions with charity. Most of the characters are avid for tolerance, forbearance and love; but vanity, one of the defenses raised against metaphysical problems are discussed here, but the soul remains "in exile", man is

Page 258: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

256

atitude de alguém que gravita em torno da conservação da memória de um ente querido

morto. Para Aline Fortier toda a sua existência, após a morte de Raymond, seu filho, na frente

de batalha, se encontra marcada pela preocupação doentia com a organização e conservação

das suas memórias. Pela sua atitude a vida do marido e de Mireille, a noiva do filho, são como

que congeladas, cristalizadas no instante da morte, na imagem convertida em ídolo, em

relíquia. Campeã da fidelidade, como se a fidelidade pudesse ser atestada por um terceiro,

Aline coloca sob uma vigilância constante o marido e a noiva do filho, a fim de garantir que a

fidelidade ao filho morto não possa ser, de nenhuma forma, traída. Assim Mireille, subjugada

pelo terrível ascendência que a mãe de Raymond exerce sobre ela, vive quotidianamente

como num santuário, numa capela ardente, sentindo dolorosamente que toda a felicidade,

todo o amor possível, mal grado as palavras de Aline,295 se encontram interditas, porque

apesar de morto, Mireille pertence a Raymond.296 A atração que Mireille sente por Chanteuil,

jovem militar, pleno de vitalidade, de amor pela vida, será silenciada, condenada à nascença

ao fracasso, porque ao entregar-se a esse amor nascente, aos olhos do fanatismo de Aline,

estaria a ceder a uma abominável traição. Neste sentido Joseph Chenu afirma:

Aline, como todos os fanáticos, pois é de um fanatismo que se trata, tem necessidade de fazer partilhar o seu culto por todos os meios. Mireille amou Raymond, deve-lhe fidelidade, ela não pode abandoná-lo agora que está morto. Mireille deve continuar a pertencer a Raymond para além da sua morte. Como mãe invejosa, ela não pode conceber que se cesse de amar o

alone." Hilda Lazaron, Gabriel Marcel. The Dramatist, London -Worcester, Colin Smythe Gerrards Cross, 1978, p. 52.

295 Na cena XII, do primeiro acto, num diálogo mantido entre Mireille e Aline, ainda que nas palavras de Aline possa parecer que há uma total abertura para que a noiva do filho morto possa, apesar de tudo refazer a sua vida, existem nas frases entrecortadas o tom da desaprovação, da condenação:

"Mireille.— Tu me blesses.

Aline, avec douceur. — Tu n'est pas très brave. (Mouvement de Mireille) Moi, en tout cas, il y a un engagement que je puis prendre envers toi: quelles que soient les confidences que tu pourras jamais être amenée a me faire, je t'affirme qu'elles ne changeront rien à…

Mireille, avec véhémence. — Tu le crois, mais tu te trompes toi-même; tu ne pourrais pas le supporter, comme veux-tu?… et moi non plus, je ne pourrais pas…

Aline. — La confiance, telle que je la conçois, ne peut être qu'absolue; quand je l'ai donnée, je na la reprends pas… Si jamais tu te décides à refaire ta vie, et, au fond, c'est dans l'ordre…

Mireille.— Maman! " La Chapelle Ardente, p. 48. 296 Cf. Joseph Chenu, Le Théâtre de Gabriel Marcel et sa signification métaphysique, p. 106: "Or, depuis la mort

de Raymond, c'est comme si on n'avait plus le droit de vivre, comme si toute vie était une injure à la mémoire du mort, comme un manque de respect et une profanation; comme si l'on devait s'excuser de vivre auprès de ceux qui ne sont plus, et marcher sur la pointe des pieds en retenant son souffle, en évitant de tousser. Parce que la vie est toujours bruyante et un peu triviale. En somme, Aline Fortier a le tort de vivre toujours dans un sanctuaire, et de vouloir que les autres y habitent avec elle. Or, vivre c'est profaner le sanctuaire, c'est parler fort et faire du bruit devant dieu… ou devant l'idole?"

Page 259: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

257

seu filho desaparecido. A fidelidade exige que a dor se perpetue. Sem dúvida que ela não ousa declarar os seus pensamentos. Nas palavras, ela pretende deixar Mireille inteiramente livre de refazer a sua vida, mas as suas atitudes e os seus silêncios encobrem uma intolerável desaprovação em relação a Mireille. Tudo acontece como se Aline Fortier pedisse a Mireille que consagrasse a sua vida à memória do desaparecido.297

Na obra Du Refus à l'invocation, Marcel sublinha a conjugação entre fidelidade e

morte. Recordando a célebre discussão com León Brunschvicg, o autor não só afirma a morte

como mistério, mas também, ao pôr a tônica, não na sua morte, mas na morte do ser amado, o

vínculo estreito entre esta e as duas magnas experiências de comunhão, a fidelidade e o

amor.298

Eu entrevejo igualmente o sentido profundo do culto dos mortos, entendido como recusa de trair aquele que foi, tratando-o simplesmente como não estando mais. Protesto ativo contra um certo jogo de aparências ao qual se recusa a ceder ou a entregar-se totalmente. Dizer «Eles não são mais» é não somente renegá-los, mas renegar-se a si mesmo, e talvez negar absolutamente falando.299

No culto dos mortos Marcel encontra a manifestação de uma recusa essencial, por

parte do homem, de ceder ao jogo das aparências que o impelem a considerar os entes

queridos mortos como não estando mais, numa inqualificável traição e negação. Na medida

em que pensamos a morte como dado último, tendo em conta a relação que nos vincula aos

seres amados, então torna-se patente a necessidade de declarar o caráter irrisório da própria

vida.300

A possibilidade da fidelidade criadora radica no fato da fidelidade ser ontológica no

seu princípio, porque prolonga uma presença que é um certo poder do ser sobre nós,

multiplicando e aprofundando o eco da presença na nossa duração. Tal posição repercute-se

inesgotavelmente na relação entre os vivos e os mortos.301

Se pensarmos nessa relação em concreto, na fidelidade a uma presença, esta não se

confunde com uma esfinge conservada de um objeto desaparecido, pois esta é um simulacro

297 Id., op. cit., p. 107-108. 298 Cf. RI, p. 198. 299 EA, I, p. 121. 300 Cf. PI, p. 97: "C'est par rapport à l'être aimé que nous pouvons comprendre comment, en traitant la mort

comme donnée ultime, nous sommes invinciblement conduits a proclamer le caractère dérisoire de la vie." 301 Cf. PAC, p. 79; Cf. PI, p. 97.

Page 260: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

258

e, metafisicamente, constitui uma redução do objeto, isto é, é menos do que ele, enquanto a

presença extravasando em todos os sentidos o objeto é mais do que ele. As atitudes de Aline

na peça La Chapelle Ardente, ou de Jeanne Framont de Le Mort de Demain, estão marcadas

por esta perniciosa confusão.

Ora a morte coloca-nos no princípio de um caminho onde é perspectivada como

épreuve de la présence.302 Conceber assim a morte parecerá inconsistente para os que a

definem em termos biológicos e que a reduzem a essa dimensão, mas nessa medida ela não

acede à épreuve de la présence. Marcel concede o mais elevado significado espiritual que é

possível conceder à morte, pelo que a sua redução ao fim biológico empobrece-a e ao mesmo

tempo atinge o sentido da existência humana, desta feita rebaixada à dimensão meramente

material e animal. A morte de alguém de quem tomamos conhecimento pelo jornal, enquanto

passamos distraidamente pela secção necrológica, não é senão um nome, um mero objeto de

notificação. Tomar conhecimento desta

significa que eu devo riscar alguém (Un tel) do número de pessoas a quem eu posso dirigir-me, para lhe pôr uma questão ou para nos informar. Acontece algo completamente distinto para um ser que me foi dado como presença. Aqui depende de mim, da minha atitude interior de manter esta presença que poderia degradar-se em esfinge (MARCEL, 1949, p. 79-80).

Só de forma aparente se pode pensar que a afirmação marceliana se confunde com a

tese que defende que depende de nós, pelo menos em certa medida, que os mortos vivam ou

não no universo das nossas recordações, numa existência completamente subjetiva. Não é

como uma imortalidade meramente interior que Marcel considera a sobrevivência do defunto.

Pelo amor sentimo-nos impedidos de reduzir o morto amado a uma imagem conservada pela

nossa imaginação. Aqui ainda não transcendemos a presença como ideia, como redução,

como esfinge.303 Para Marcel a presença é um certo influxo e se é legítimo defender que

depende de nós permanecermos permeáveis a esse influxo, não depende de nós suscitá-lo.

Assim, "A fidelidade criadora consiste em manter-se ativamente em estado de

permeabilidade, e nós vemos aqui operar-se um tipo de mudança misteriosa entre o ato livre e

o dom pelo qual lhe é respondido."304

302 Cf. PAC, p. 79. 303 Cf. PAC, p. 80: "On admet que tel objet a disparu, mais qu'il subsiste un simulacre qu'il est en notre pouvoir

d'entretenir au sens ménager du terme, comme une femme de charge entretiens un appartement, un mobilier. Il est trop clair que cet entretien ne présente aucune valeur ontologique. Mais si la fidélité est créatrice au sens que j'ai cherché à définir, il en va tout autrement."

304 PAC, p. 80.

Page 261: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

259

Se anteriormente, ao apresentar a noção de épreuve de la présence, Marcel antecipava

a objeção de que esta noção mais não fazia do que traduzir, numa linguagem insólita e

inutilmente metafísica, um fato psicológico banal, ao definir a fidelidade criadora como um

manter-se ativamente num estado de permeabilidade a um certo influxo, neste caso acontecia

algo de semelhante, pois segundo ele, alguns poderiam considerar que "afirmava

gratuitamente uma tese não demonstrada e que excede toda a experiência possível."305

Em resposta a esta segunda objeção, o autor defende que a noção de influxo só pode

ser acolhida no terreno do metaproblemático, metafísico e não físico ou objetivo. Quando

dizemos que um ser nos é dado como presença ou como ser, postos como sinônimos, isso

impede-nos de o tratar como se estivesse simplesmente diante de mim, isto é, como ob-

jectum. A relação que se estabelece entre ambos extravasa a consciência que se pode ter dela.

"Ele não está mais somente diante de mim, ele está também em mim; ou mais exatamente,

estas categorias são ultrapassadas, elas não têm mais sentido."306

Ainda que haja uma ressonância demasiado espacial e física na noção de influxo, em

Marcel ela traduz um contributo interior, realizada a partir do momento em que a presença é

efetiva. No entanto, a tentação é demasiado grande para converter numa presença de objeto

aquela presença efetiva, resvalando, desta forma, para o plano problemático, o que se

repercute no protesto da fidelidade absoluta. A noção tão profunda de être avec,307 ser com,

nutre este protesto contra a objetivação, exteriorização da presença. "Mesmo quando eu não

posso nem tocar-te, nem ver-te, eu sinto que estás comigo e seria magoar-te não estar seguro

disso."308

Recusando submeter a presença a uma simples manifestação exterior, física, objetiva,

Marcel encaminha-se definitivamente para a afirmação do contrapeso ontológico da morte,309

isto é, da presença de todos os seres que amamos, numa comunicação viva que nos transforma

e influencia poderosamente a nossa existência terrena.

305 PAC, p. 81. 306 PAC, p. 81. 307 Cf. PAC, p. 82: "Avec moi: notons ici la valeur métaphysique de ce mot avec, qui a été si rarement reconnue

par les philosophes et qui ne correspond ni a une relation d'inhérence ou d'immanence, ni à une relation d'extériorité. Il sera de l'essence — je suis obligé d'adopter ici le mot latin — d'un coesse authentique, c'est-à-dire, d'une intimité réelle de se prêter à la décomposition que lui fait subir la réflexion critique."

308 PAC, p. 82. 309 Cf. PI, p. 97.

Page 262: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

260

3.4.4 A morte como afirmação da presença do tu

Talvez pudéssemos perguntar com René Davignon se não somos forçados a

reconhecer que a morte de um ente querido, com quem uma comunicação efetiva se foi

mantendo ao longo de anos, se reveste do caráter de um corte, de uma ruptura, em última

instância, de um profundo silêncio. O morto seria aqui uma espécie de entidade de quem nada

saberíamos ou alguém a quem pudéssemos recorrer para obter alguma informação sobre si.310

Diante de uma situação de provação, como a morte do ser amado, duas grandes

reações podem ocorrer: ou assumir que a morte constitui um autêntico aniquilamento do ser

ou, em total oposição, a afirmação de uma exigência intrínseca de perenidade real.

Esta posição que assume a morte como aniquilamento, como destruição de um ser, no

fundo, a representação fenomenológica da morte como absoluta, fundamenta-se num

postulado materialista, que tende a identificar a pessoa com o conhecimento objetivo que dela

se pode ter. O silêncio do morto seria interpretado como não existência ou queda no não

ser.311 Esta posição, para além de desembocar no desespero e na traição dos que amamos,

impõe-se também como uma negação do além. No entanto, ao não se aceitar como única a

representação fenomenológica da morte, uma outra perspectiva encontra acolhimento, desta

vez, em claro confronto com a redução da morte a uma mera aniquilação.

3.4.5 Experiência metapsíquica: a comunicação com o além

O pensamento de Marcel, como clara antítese de toda e qualquer perspectiva

materialista, procurou através de diferentes meios312 uma aproximação ao mistério da morte.

O interesse pelos fenômenos metapsíquicos é sintomático, neste caso, das preocupações do

autor em ultrapassar por um lado o caráter definitivo e absoluto da morte, por outro, na

confluência e imbricação das questões da morte e da comunicação / comunhão, a procura de

uma garantia de que a comunicação se perpetua para além da própria morte.

Nas experiências metapsíquicas, pelo fato do desaparecido que amamos permanecer

para nós um ser querido, vivendo em nós e connosco, pode-se ser atraído pelo desejo de

310 Cf. René Davignon, Le Mal chez Gabriel Marcel. Comment affronter la souffrance et la mort ?, Paris,

Éditions du Cerf, 1985, p. 124. 311 Cf. HV, p. 206-207. 312 Sobre as diversas abordagens de Gabriel Marcel a respeito do tema da morte, destacamos o excelente estudo

de Marcel Belay intitulado: La mort dans le thèâtre de Gabriel Marcel. Paris: Vrin, 1980.

Page 263: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

261

buscar uma comunicação tangível com ele, pelo que, também aqui a tentação materialista não

se encontra em absoluto afastada. Na peça L'Iconoclaste, como pudemos observar

anteriormente, o desejo de comunicação com a esposa falecida, e o recurso a um medium,

emerge como a possibilidade de colmatar esta ânsia de comunicação. Noutras peças, como

L'Horizont, a problemática dos fenômenos metapsíquicos encontra um largo acolhimento.

O interesse de Marcel pelo ocultismo, pela vidência, pela telepatia são provas do

patente interesse com tudo o que direta ou indiretamente se liga à comunicação. Na peça Le

Quatour en fá dièse, como o autor tão bem sublinhou, ao perguntar-se pela origem da

personalidade, há uma rejeição das teses monádicas, que põem os indivíduos como unidades

distintas, mónadas fechadas, sem janelas e, consequentemente, radicalmente incapazes de

estabelecerem uma comunicação entre si. Nesta recusa encontramo-nos com uma das

garantias fundamentais que norteou toda a obra de Gabriel Marcel, a comunicação está

inscrita no coração da personalidade.313 Declara o autor:

O que aos meus olhos continua a ser fundamental é a intercomunicação tal como teve lugar entre o inglês e a sua defunta esposa, ou em outros casos concretíssimos, como o das relações entre a senhora Jouvenal e seu filho, ou o de um homem que não creio ter o direito de citar, incrédulo de primeira marca, que desesperado pela morte do seu filho (detido em vez dele pela Gestapo e morto no desterro), obteve por meio da escrita provas tais de identidade e renovou com o desaparecido comunicações tão convincentes que a sua visão do mundo e dos seus estados interiores sofreram uma total e definitiva transformação. Não ignoro, portanto, quantas tentativas se podem fazer para interpretar estas comunicações como uma espécie de jogo de escondidas entre o consciente e o inconsciente. Mas confesso que tais interpretações não me parecem nada convincentes e creio que em geral, assentam num postulado inadmissível. Na realidade, é o postulado do idealismo, que considero incompatível com a forma em que se revela a intersubjetividade, inclusive neste mundo. Estou certo de que, no que concerne ainda à sobrevivência, a chave está na intersubjetividade, porque — para o meu espírito, ao menos —, a ideia da sobrevivência solitária e narcísica carece de sentido.314

313 Cf. PI, p. 112-113: "Si jamais, comme je le souhaite, on entreprend de publier mes œuvres en tenant compte

de la chronologie, c'est-à-dire en insérant les pièces de théâtre dans la trame du Journal métaphysique proprement dit, je ne parle pas seulement du volume qui porte ce titre, mais bien entendu aussi de la première partie d' Être et Avoir et de Présence et Immortalité, on sera amené à constater que sur le plan dramaturgique se réalisa comme le prolongement ou l'explicitation de ce qui n'avait encore été pressenti qu'à lumière de l'expérience métapsychique. Ici je fis allusion, bien entendu, à la dernière scène du Quatour en fa dièse et la dernière scène de L'Iconoclaste. Je rappelle en effet que ces deux pièces dans leur première version furent composées pendant la guerre. La question posée à la fin du Quatour: «Moi-même, toi-même, où commence une personnalité?» ne prend sa pleine, sa radical signification qu'a la lumière des expériences que j'ai évoquées et je pense que là s'est constituée en moi une des assurances fondamentales qui ont commandé toute mon œuvre. Il m'est apparu radicalement absurde d'imaginer, à la façon des monadistes, que les personnalités humaines puissent être considérées comme des espèces d'unités distinctes et ne communiquant pas entre elles."

314 Gabriel Marcel apud M.Madelene Davy, op. cit., p. 303-304.

Page 264: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

262

Contra aqueles que olham com desprezo estes fenômenos, considerando que não são

dignos de merecer a atenção do labor filosófico, Marcel, na linha Henri Bergson, Williams

James, do poeta Rainer Maria Rilke, René Le Senne, Gaston Berger, Renouvier,315 apresenta

disponibilidade para os compreender.316 No texto inédito intitulado "Réflexions sur les faits

metapsychiques", Marcel critica abundantemente não só o alheamento dos filósofos em

relação a estas problemáticas, mas também uma certa cegueira voluntária com que alguns

desses pensadores se conduzem. O filósofo Alain é tomado como o exemplo deste tipo de

atitude que, em nome de um certo racionalismo, não completamente isento de

"arbitrariedade", a priori recusa com "uma repugnância quase invencível" tudo o que tenha a

ver com este tipo de investigações pois crê que, através delas, facilmente o filósofo deixaria

escancaradas as portas à entrada da "superstição e do fatalismo". Segundo Alain, com

manifesto escândalo para Gabriel Marcel, no que seria um inquestionável ato de coragem, o

filósofo deveria fazer do "saber ignorar" a sua suprema divisa.317

315 Cf. "Réflexions sur les faits métapsychiques", (inédito) Bibliothèque National de France, Paris, [Carton 84],

p. 3-4: "Infiniment rares sont ceux qui comme Renouvier par exemple, se sont véritablement efforcés de répondre positivement aux questions elles-mêmes positives qui n'ont pas cessé d'angoisser l'âme humaine. Trop souvent, par un souci de prudence qui n'est peut-être pas de tous points admirables, nos penseurs les plus vigoureux se sont en quelque sorte retranchés derrière une palissade, dans un monde à eux où le profane ne viendrait pas les troubler avec ses questions trop simples, ses dilemmes trop grossières."

316 Cf. ECVQE, p. 109: "Peu nombreux sont les philosophes que j'ai rencontrées qui aient eu véritablement le sens de cette réalité et surtout de la nécessité d'y consacrer leur pensée. Il y a eu Bergson, il y a eu, dans une certaine mesure René Le Senne et aussi Gaston Berger. Au cours de notre voyage en Amérique du Sud en 1951, celui-ci et moi avons parlé de ces problèmes et j'ai senti qu'il était sincèrement ouvert à ces recherches. Mais presque partout ailleurs j'ai constaté une sorte de mauvaise volonté, je dirais même d'opacité volontaire qui m'a toujours paru extrêmement irritant et qui, à mon sens, est à la base de peur, mais une peur qui ne s'avoue pas et une peur qui prend, comme est souvent le cas, l'aspect d'arrogance."

317 "Alain, dans un propos récemment réédité, exprime fortement la pensée rationaliste sur ce point: «Chacun aura à raconter, dit-il, s'il cherche bien, quelque émouvant histoire de somnambule ou de pressentiment ou de quelque chose comme cela. Mais je n'aime pas ce genre de récits; il ne me plais pas de les croire vrais; j'en pourrais même citer que j'ai constaté autant qu'on peut constater ces choses, mais j'ai fini par effacer sinon de ma mémoire du moins de ma croyance. Oui, j'efface cette science gribouillée, comme j'efface de mon mieux, sauvagerie, injustice, guerre. Et si l'on faisait des miracles quelque part, je n'irai pas y voir.» S'étonnera-t-on de ce parti-pris? Alain nous rappelle que l'esprit n'a point pour fonction d'enregistrer ou d'entasser simplement des faits, «il n'est une poubelle à vérités… savoir ignorer: voilà une belle devise… Dès le moment où on accueillerait ces expériences on ouvrirait la porte toute grande à la superstition au fatalisme, et a tous les maux qu'ils engendrent. C'est donc au nom d'une sorte de police de l'esprit qu'il convient de refuser créance aux faits de cet ordre, de les nier en somme comme vérité. Qui veut être savant renonce à être mage. Il faudrait choisit, on a choisi ; chacun de nous choisit à chaque instant. Dès lors c'est le parti-pris qui étonne et qui est peut-être le plus beau courage.»" Gabriel Marcel "Réflexions sur les faits métapsychiques",Bibliothèque Nationale, Paris, [Carton 84], 16 páginas dactilografadas, p. 1-2; Cf. DH, p. 183: "Et, c'est ainsi qu'on a pu voir un penseur rationaliste, tel qu' Alain, écrire dans un article publié, si je ne me trompe en 1929, dans la revue Europe, et dont la lecture fut pour moi un objet de scandale, que même si ces faits (parapsychologiques) se produisent en quelque part, il se garderait bien d'aller y assister. Ainsi s'affirmait une conception en quelque sorte policière de l'intelligence — douanière serait peut-être plus exact — car c'est bien une certaine contrebande à laquelle on entend s'imposer. Je crois d'ailleurs pouvoir dire que c'est avant tout contre une attitude d'esprit comme celle-là que j'ai toujours entendu prendre position et on retrouve ici cette sorte de disposition aventureuse que j'évoquais dans ma première leçon."

Page 265: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

263

Nestes fenômenos o autor continua ainda a escavar, buscando nos estratos mais

inacessíveis a um conhecimento objetivo e verificável sinais, pegadas, indícios que lhe

permitam aceder a outras possibilidades de comunicação. Em simultâneo, do esclarecimento

desses novos territórios da comunicação, o mistério da morte e da sobrevivência poderiam

também encontrar algum esclarecimento.

Enquanto colaborador nos serviços de informação da Cruz Vermelha, comungando da

angústia dos familiares dos militares, durante o inverno de 1916-1917,318 Marcel ao pretender

entrar em relação com os soldados mortos, de quem buscava alguns traços, acabou por se

entregar às experiências metapsíquicas.319 Ao interrogar aqueles que o procuravam na ânsia

de obterem informações sobre os seus, Marcel tinha acesso a uma experiência que o

encaminhava filosoficamente a interrogar-se, no domínio da comunicação, sobre o sentido do

questionamento, bem como das condições e limites do mesmo320 e de que encontramos eco no

seu Journal Métaphysique.321 Em simultâneo e a partir daqui, preparava-se uma reflexão que

se apresentava como transcendente à ordem da informação, que se posicionava para além do

próprio questionamento.

Se as experiências metapsíquicas podem, de algum modo, conduzir a uma procura de

uma comunicação tangível e, simultaneamente, a uma busca de provas concretas e

indubitáveis da sobrevivência, Marcel visa antes a morte do ser querido a partir do seu próprio

mistério. Diante do falecimento de um ser humano, com quem nos encontrávamos numa

relação intersubjetiva, numa relação de comunicação e comunhão, procurar saber se este

morreu irremediavelmente, converte-se para si na "questão por excelência". Estaríamos em

absoluto privados de a colocar se nos mantivéssemos limitados ao conhecimento objetivo ou

prisioneiros de uma ontologia que se move por entre abstrações.322 Como defende Marcel:

318 Sobre estas experiências encontramos um longo e esclarecedor relato na obra de Marcel En Chemin vers quel

éveil?, entre as páginas 100 e 114, bem como no prefácio à obra de Marcelle de Jouvenel, Au Diapason du Ciel, Coll. L'Invisible et le réel, Paris, La Colombe, 1950, p. 7-24.

319 Cf. ECVQE, p. 95-96: "Il est évident que, dans cette perspective, les faits métapsychiques et la réflexion sur ces mêmes phénomènes devaient prendre une grande importance. Je pense qu'on se méprendrait si on ne prenait pas conscience de la connexion très étroite qui a lié pour moi a cette expérience très douloureuse du questionnement et de l'enquête, l'expérience métapsychique proprement dite, telle qu'elle devait se développer pour moi, pendant quelques mois inoubliables au cours de l'hiver 1916-1917."

320 Cf. ECVQE, p. 95: "En même temps ma réflexion philosophique portait sur cette sorte d'interrogation à laquelle je soumettais mes visiteurs. Elle s'exerçait sur le questionnement lui-même et plus profondément sur les conditions dans lesquelles un questionnaire peut-être établi, et simultanément sur lesquelles une réponse peut être obtenue."

321 Cf. JM, p. 152-156. 322 Cf. "Muerte e Inmortalidad", p. 79-80: "El yo (je) que reflexiona acerca de su propia muerte, es y también

puede no ser un ser meramente abstracto como el yo transcendente moi. Como consecuencia de esto no puede

Page 266: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

264

Diante da vida, diante do amor, diante da morte, não há especialistas, ou antes, os especialistas da vida, do amor, da morte são falsos moedeiros. Que eles cedam o lugar aos metafísicos, aos teólogos unidos no supremo esforço não talvez para compreender, pois o ser está para além do compreender, mas para reconhecer e para proclamar.323

É concedida ao homem a possibilidade de negar o caráter definitivo da morte, sem

com isso pretender transformar a afirmação da sobrevivência num enunciado com alcance

universal.324 A imortalidade não é, segundo Marcel, objetivamente verificável. Este teria sido

o erro de Jacques da peça L'Iconoclaste. Aquele pretende ter da esposa morta uma

manifestação através de relações visuais, auditivas e tácteis. Prisioneira das confirmações

objetivas a imortalidade não é senão uma ilusão. Apesar de nos sentirmos impelidos a buscar

dar provas da imortalidade, somos também capazes de transcender esta aspiração, sobretudo

pelo reconhecimento do mistério que envolve.325 Para aqueles que se põem como centro, não

considerando os outros senão em relação a si mesmo, a ideia de um além esvazia por

completo de significado, pois aí mais não teríamos que uma continuação da ausência de

sentido. Se, ao invés, se apresentam como parte integrante da nossa experiência, maior será a

tendência para reconhecer o seu valor irredutível e para conceber um modo de existência

diferente do já conhecido, encaminhando-nos para uma unidade verdadeira e pleromática.326

tomarse en serio el intento idealista de salvar la inmortalidad mediante la afirmación de que el sujeto pensante por su misma naturaleza no puede morir. Porque en realidad, semejante sujeto probablemente ni siquiera puede vivir. Me parece que es mejor abandonar tales ideas a una filosofía ya caducada. Si esta concepción tiene todavía algún valor, sólo lo tiene en la epistemología, en la teoría del conocimiento, y sólo cuando se supone que puede ser separada completamente de una filosofía concreta determinada, lo que no me parece seguro en modo alguno."

323 Gabriel Marcel, introdução à obra de Robert Aron e Jean-Claude Renard, Mors et vita, Paris, Plon, 1945, p. 27.

324 Cf. PI, p. 153: "On m'a demandé si une expérience de cet ordre présentait à mes yeux un caractère universel. Je ne puis répondre. Je ne peut que proférer te proposer ce que me livre ma réflexion s'exerçant sur mon expérience. Peut-être convient-il d'ajouter que je trouve en moi-même le sceptique ou le profane que je puis espérer convaincre entièrement, mais comme ébranler. Et ceci montre assez clairement qu'il ne s'agit pas d'une démonstration de l'immortalité de l'âme au sens classique, et qu'il ne peut même être question de rien de semblable."; cf. DH, p. 183.

325 Cf. PI, p. 97: "En effet, l'immortalité n'a pas a être prouvée comme fait objectif. Bien que quelque chose nous porte invinciblement et malgré tout à aspirer à cette démonstration; mais en même temps, nous sommes capables de transcender cette aspiration: on en revient toujours à la dernière scène de L'Iconoclaste, qui reste un des pivots de mon œuvre."

326 Cf. DH, p. 183-184: "Il est clair que plus chacun de nous sera pris lui-même pour centre, ne considérant les autres que par rapport à lui, plus l'idée de un au-delà tendra à se vider de toute signification, car cet au-delà n'apparaîtrait alors que comme une continuation vide de sens. Il en est ainsi a fortiori dans une perspective comme celle de Sartre où l'autre est avant tout pensé comme menace à mon intégrité, celle-ci n'étant au fond que le fait pour moi de me suffire à moi-même. Au contraire, plus l'autre ou les autres auront fait partie intégrante de mon expérience, plus j'aurai été amené à reconnaître à la fois leur valeur irréductible et en même temps la difficulté pour nous d'arriver ici-bas à une harmonie durable, plus il m'apparaîtra nécessaire de

Page 267: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

265

3.4.6 A afirmação da presença

Afastada a tese materialista que postula a morte como fim, fenômeno biológico

passível de verificação objetiva, Marcel perspectiva a morte como afirmação da presença, a

garantia oferecida pelo amor de uma imortalidade. A comunhão que une os seres transporta

no seu âmago uma exigência de perenidade, pois mesmo perante o falecimento dos entes

queridos, a garantia da sua presença permanece.

Como se poderá contestar, com efeito, este fato misterioso e de que somos completamente incapazes de dar conta através dos meios de que dispõe o nosso pensamento conceptual, que cada um de nós vive numa comunhão estreita…com os seres de quem os nomes foram riscados há muito dos arquivos do registo civil. 327

Em nenhum momento Marcel duvidou da presença daqueles com quem esteve na vida,

ou que esta lhe concedeu como companheiros. A morte da mãe, apesar de se ter verificado

quando o autor era ainda tão jovem, a sua presença não se apagou, antes pelo contrário, esteve

sempre misteriosamente ligada a si. Desta afirmava que "independentemente das raras

imagens precisas que pude conservar dela, permaneceu para mim presente, ela esteve sempre

misteriosamente comigo".328

Toda a sua existência foi atravessada pelo signo da morte do outro, e ao mesmo

tempo, pela sua presença reencontrada.329 Nos Fragments Philosophiques. 1909-1914, de

forma muito particular nas suas «Notes sur l'immortalité», o autor põe a tônica na

indissociável ligação entre o amor, marcado pela exigência de perenidade, e a eternidade.

O amor quer o seu objeto como transcendente à morte, não como uma essência eterna, mas como sobrevivendo à morte. O amor envolve a afirmação da sobrevivência (e nós devemo-nos afirmar a nós mesmos como sobreviventes, enquanto somos objetos de amor). O amor não cria a sobrevivência, mas ele envolve a sua afirmação. Dir-se-á que esta sobrevivência não pode ser senão a sobrevivência no pensamento, na recordação? Mas esta sobrevivência não deve aparecer como símbolo, como a transposição psicológica de uma sobrevivência real. É neste sentido que a morte é vencedora da morte; ela nega-a.330

concevoir un mode d'existence différent de celui que nous avons connu et qui nous acheminerait vers l'unité véritable et pléromatique où nous serions tous en tous."

327 Gabriel Marcel in Cahiers Charles Du Bos, nº 18, Maio, 1974, p. 61. 328 «Regard en arrière», p. 302. 329 Cf. PI, p. 182. 330 FP, p. 84.

Page 268: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

266

Num mundo comandado pelo poder da tecnocracia, "submetido à exigência

tecnocrática" 331 e de onde as relações intersubjetivas tenham desaparecido, a morte não só se

encontra despojada do seu caráter de mistério, como se transforma num fato bruto, assimilável

à deslocação de um qualquer aparelho.332 Este mundo privado de amor não é seguramente o

nosso, ou como diria Marcel, "não é ainda o nosso e depende de nós que não venha a sê-lo

jamais",333 ainda que nos seja dado observar o conluio de forças maléficas e conscientes com

o objetivo de instaurar um mundo sem alma.334

Pela conjugação da ciência positiva e de uma filosofia criticista, impõe-se uma certa

tendência, a de reenviar para o domínio do imaginário e da miragem a vida no além, a

imortalidade. Defender que amar um ser é recusar a sua morte reveste-se de um caráter

verdadeiramente profético, uma garantia, a qual, numa perspectiva empirista ou positivista, só

poderá ser considerada absurda, em contradição com os dados empíricos da experiência.

O amor não poderá ser pensado sem uma exigência de eternidade, que tem inscrita na

declaração de amor, feita pelo eu ao tu, a recusa essencial de que este possa morrer. Assim ao

dizer a alguém que se ama afirma-se como transcendente à morte. Nas extraordinárias

palavras de Antoine Framont, na peça Le Mort de Demain, condenando a atitude da cunhada

que, antecipando a morte do marido, o transformara no morto de amanhã, ecoa a mesma

exigência de perenidade que a fidelidade, a esperança e o amor afirmam. "Amar um ser é

dizer-lhe: tu não morrerás."

Relegado para o domínio das coisas, o ser amado está exposto a todas as vicissitudes

destas, e nessa medida, à própria destruição. No entanto, o que importa saber, segundo

Marcel, é se a destruição pode incidir sobre o que faz com que um ser seja verdadeiramente

um ser. Ora, é esta qualidade335 misteriosa a que é visada no nosso amor336. Escreve o autor:

331 Cf. ME, II, p. 150. 332 Cf. ME, II, p. 152; Cf. PI, p. 67: " Si obscures et incertaines que soient toutes ces indications, si douteuses

même que soient les possibilités qu'elles visent à éclairer, elles présentent, me semble-t-il, ce grand intérêt de contraindre l'esprit à rompre avec toute représentation objective (mieux voudrait dire objectivant) de la vie et de la mort. L'existence du défunt cesse d'être regardée comme celle d'une chose qui se défait, ou d'une machine qui se disloque."; Cf. PAC, p. 48.

333 Cf. ME, II, p. 152. 334 Cf. ME, II, p. 153. 335 A noção de qualidade é inadequada, na medida em que é um predicado e na perspectiva de Marcel a ontologia

transcende toda a lógica predicativa. 336 Cf, “Tu ne mourras pas” (MARCEL, 2005) e “Connaissance et amour: essai sur la philosophie de Gabriel

Marcel” (BAGOT, 1958).

Page 269: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

267

Reconheço plenamente que este ser que eu amo não é somente um tu, ele é antes de mais um objeto que se propõe ao nosso olhar e sobre o qual me posso entregar a todo o tipo de operações cuja possibilidade está inscrita na minha condição de agente físico. Ele é um isso, e é nessa mesma medida que é uma coisa; enquanto é um tu, ao contrário, ele escapa à natureza das coisas, e tudo o que possa dizer delas não lhe pode dizer respeito, não pode mais ter que ver com o tu.337

A distinção kantiana entre númeno e fenômeno também não responde cabalmente à

dificuldade, pois, como é dito pelo autor, não é numa perspectiva numenal que é legítimo

considerar a indestrutibilidade do ser amado, mas antes um vínculo, um laço que os une que

não é o de um objeto. A garantia profética poderia ser enunciada numa fórmula feliz:

Quaisquer que sejam as mudanças ocorridas no que tenha sob os olhos, tu e eu nós permaneceremos juntos; o acontecimento que sobreveio, e que é da ordem do acidente, não pode tornar caduca a promessa de eternidade inscrita no nosso amor (MARCEL, 1951d, p. 155).

De outra forma, não menos explícita, escreve o filósofo: "Há em ti, já que te amo, já

que te afirmo como ser, algo com que superar o abismo do que chamo indistintamente a

morte” (MARCEL, 1951d, p. 62-63).

O espírito de verdade ou o espírito de fidelidade reclama de nós uma atitude de recusa

veemente da morte, uma negação do fim dos seres que amamos, pois ao aceitarmos a sua

morte, de algum modo, entregamo-los à morte. Ao invés, pelo espírito de verdade sentimo-

nos impedidos de capitular ou de trair os que amamos.338

Capitular seria, no fundo, ceder ao desespero, fechar as portas à possibilidade da

esperança. Em Marcel a morte é concebida como "o trampolim de uma esperança absoluta.

Um mundo onde faltasse a morte seria um mundo no qual a esperança não existiria senão em

estado larvar"339 e num mundo só de vivos, como afirmava Werner da peça Le Dard, esta

terra seria verdadeiramente inabitável.340

337 ME, II, p. 155. 338 Cf. HV, p. 205. 339 EA, I, p. 115. 340 Cf. Le Dard, p. 86-87: " GISELE — je ne suis une idiote, je ne me laisserai pas sacrifier … Werner ! (il ne

répond pas, mais continue à plaquer des accords, les yeux perdus) Ah! il y a encore du Rudolf là-dessus… je te préviens … je ne passerai pas mon existence à me battre avec un mort … je ne savais pas que j'étais la femme d'un fou. Je m'en irai, tu m'entends… mais pas seule, il y aura quelqu'un d'autre… Ein Wahnsinniger…

(Elle sort en sanglotant)

(Un long silence.)

(Eustache s'est assis au fond et semble plongé dans la lecture d'un livre qu'il a pris sur la table; les deux autres négligent entièrement sa présence)

Page 270: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

268

3.5 Metafísica da Esperança

A fenomenologia metafísica da esperança341 ancora-se no marco ontológico da fé que

devemos ter no homem, enquanto Ser de potencialidades e possibilidades existenciais. “A

esperança está comprometida com a trama de uma experiência de um Ser que se encontra em

formação, de uma trajetória em curso” (MARCEL, 2005, p. 63). A esperança pressupõe uma

relação original entre a consciência e o tempo, a condição e o sentimento, a confiança e a

concretização.

É mediante a realidade das experiências descontínuas da existência que Gabriel

Marcel nos conclama a pensar a esperança, enquanto ato de fidelidade do Ser a si mesmo,

comunhão, cuidado e perenidade, diante da realidade do desespero e da desconfiança com

relação à vida e aos outros seres humanos. A esperança, concebida como fulcro da condição

existencial do Ser, define-se, no cenário da filosofia marceliana, “[...] como a disponibilidade

de uma alma profundamente comprometida com uma experiência de comunhão capaz de

levar a cabo o ato que transcende a oposição entre o querer e o conhecer, através da qual ela

afirma a perenidade vivente da qual esta experiência lhe oferece [...]” (MARCEL, 2005, p.

79).

3.5.1 Confiança e Fidelidade

“De que maneira poderá o homem romper as cadeias da solidão existencial e recuperar

a referência portadora de uma realidade fora de si?” (BOLLNOW, 1962, p. 23). No centro

desta pergunta encontra-se a exigência da busca do Ser por sua existência autêntica. Por ser,

necessariamente, a Filosofia da Existência um pensamento que está voltado para a condição

do homem concreto é que ela considera a existência do Ser, não como um atributo, mas como

um devir que pressupõe sua liberdade perante seu próprio existir.

Enquanto filosofia que está voltada para o real, o Existencialismo é, essencialmente,

marcado pelo signo do paradoxo. Diante da necessidade do homem decidir-se, acaba se

Werner — (sans se retourner). S'il n'y avait que les vivants, Gisele, je pense que la terre serait tout à fait

inhabitable." 341 A discussão a respeito da Metafisica da Esperança foi fruto da nossa participação no III Congresso da

Sociedade de Filosofia da Educação de Lingua Portuguesa - SOFELP-, na cidade do Porto, Portugal, no Encontro Internacional: A solidão nos limiares da pessoa e da solidariedade: entre os laços e as fraturas sociais. O trabalho foi publicado com o tema: A Fenomenologia da Metafísica da Esperança no Pensamento de Gabriel Marcel: o lugar da formação humana diante do desvelamento do mistério do Ser. In: CARVALHO, Adalberto Dias de (Org.). Solidão, educação e condição humana. Edições Afrontamento, 2011. p. 85-91.

Page 271: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

269

deparando com aquilo que lhe aparece como uma exigência absoluta; com um sentido da vida

que não se esgota naquilo que é comum aos outros, mas, que só se manifesta ao Ser no

momento em que este passa a ter real contato consigo, através da plena certeza de si. Esta é

uma exigência por aquilo que é autêntico, que serve como fundamento para suas decisões e

como meio para que o homem possa transcender o vazio de uma existência inautêntica

seguindo em direção ao infinito, seu Absoluto.

O absoluto não é um modo de ser, é uma decisão que se clarifica pela reflexão, a partir de uma profundidade insondável e pela qual me torno idêntico a mim próprio [...] O absoluto surge primeiramente na decisão existencial que passou pelo crivo da reflexão [...] Ele não provém de um modo de ser, provém da liberdade, mas de uma liberdade que é compulsiva, não porque seja uma lei da natureza, mas pelo seu fundamento transcendente [...] É o absoluto que decide em última instância do fundamento da vida dum homem, do seu valor ou da sua nulidade (JASPERS, 1998, p. 59).

Segundo o autor, a apreensão do “absoluto” é algo maior do que um mero e supérfluo

conhecimento do homem sobre ele mesmo. É antes uma convicção, um ato de fé livre e

certeza incondicional de si. A exigência absoluta caracteriza-se por um saber profundo,

internalizado, com o qual me identifico e me comprometo existencialmente342. Uma

experiência que não pode ser descrita como um simples modo de existir, mas que aparece

como algo que precisa ser encarado à luz de uma decisão existencial, através do processo

constitutivo de sua liberdade. O absoluto não é inato, pois desponta à medida que o homem se

decide existencialmente. Ele não pode ser demonstrado a partir do que sabemos, porque tudo

é relativo, mas, realiza-se através de suas escolhas existenciais, num “comportar-se-para-si-

mesmo-no-mundo”.

Este comportar-se-para-si-mesmo-no-mundo é, nas compreensões de Otto Friedrich

Bollnow (1962) e Gabriel Marcel (1951ª, 1968), um dos fatores limitadores da condição

existencial, que conduz o homem à solidão e ao desespero de si. Por desejar alcançar o núcleo

mais íntimo de sua própria alma, ele acaba se isolando e tornando-se incomunicável. No ato

de afastar-se do outro, o homem considera-se cativo de si e fica impedido de chegar a uma

relação portadora de sentido com outro ser, que esteja fora dele mesmo e em quem ele possa

confiar.

342 “Toute philosophie qui nous présente un monde sans ampleur et sans palpitation, toute philosophie plate est

fausse. Toute exigence est une exigence de l’être [...] C’ est la présence de soi-même à soi-même, l’unité de soi avec soi, la plenitude, la jouissance, la joie” (WAHL, 2004, p. 185-186).

Page 272: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

270

A solidão anunciada pela Filosofia da Existência apresenta-se como uma categoria da

própria descontinuidade da experiência humana. À medida que ela contribui para o

desvelamento de si também pode conduzir o ser a querer existir só, no desespero, porque ela

embaça o sentido da vida, condiciona sua historicidade, quando nos isola do outro e provoca o

vazio existencial, porque causa um descompasso no processo constituinte das nossas relações.

Na solidão, o Ser até brilha como os astros, todavia, sua luminosidade nunca será vista total e

intensamente, em virtude do distanciamento dos outros, que à semelhança de si, também

possuem brilho e significado no tempo, no espaço e na história, enquanto presenças

existenciais e esperançosas.

Neste sentido, o despontar do Ser, que conduz o homem à superação de si, retira do

sujeito a possibilidade de encontrar outro caminho, fora desta solidão, que seja condutor de

sentido (MARCEL, 1933). “Por outro lado, uma vida humana repleta de sentido é

absolutamente impossível em semelhante estado” (BOLLNOW, 1962, p. 22). Em sua

vivência, ele pode até passar pelas crises da experiência existencial, porém, jamais conseguirá

enfrentá-las sem a esperança de uma possível superação. Diante destas condições, Bollnow

afirma que só há duas possibilidades para o homem:

[...] ou se tem que reconhecer que uma existência humana cheia de sentido é realmente impossível – retirando todas as conseqüências, para o extremo do suicídio, do conhecimento de que o “herói absurdo” de Camus é, por certo, uma grande construção do pensamento, a que, contudo, não determinar em si nenhuma possibilidade de vida real – ou se tem que aceitar que a existência é possível apesar de todas as experiências existenciais a despeito de sua interpretação, que parece inevitável na visão de mundo do existencialismo (BOLLNOW, 1962, p. 22).

Desta segunda possibilidade é que nasce a tarefa da Filosofia da Esperança

(MARCEL, 1951a, 2005), enquanto proposta alternativa pela qual o homem poderá lidar com

os processos descontínuos de sua própria existência. Uma perspectiva pela qual o Ser passa a

considerar as crises existenciais como passageiras e que é capaz de levá-lo a procurar, a partir

da própria realidade da vida humana, a superação da solidão da existência, através da abertura

de si a outras dimensões que se apresentam, como portadoras de uma existência real e efetiva.

Uma abertura que se apresenta como caminho mediador da relação existente entre o eu e o tu

no âmbito da fraternidade humana.

Desta forma, o fundamento das relações humanas, portadoras de sentido, encontra-se

na confiança que o homem passa a ter no Ser (MARCEL, 2003; BUBER, 1965). Uma

confiança que não se limita às dimensões emocionais e racionais, por não possuir um sentido

Page 273: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

271

subjetivo-psicológico, por ser independente de qualquer fé religiosa, porque se baseia na

relação elementar do Ser, que resolveu confiar livremente no outro, sem precisar depender de

qualquer artifício externo de orientação. Na visão de Bollnow

[...] não se trata, todavia, de uma confiança neste ou naquele ser determinado, neste ou naquele homem determinado, senão de uma confiança no mundo e na vida em geral que se encontra mais profundamente e que só possibilita cada confiança singular determinada. Falamos, portanto, de uma confiança cega que, todavia, não implica um objeto determinado em que se confia, daquela que surge da vida mesma, de um sentimento de profunda proteção (BOLLNOW, 1962, p. 24).

Assim, a superação da solidão da existência de si acontece através do desvelamento da

confiança no Ser. Afirmá-la é reconhecê-la como uma pré-condição para a própria busca de

uma vivência autêntica. Abrir mão desta confiança é entregar-se ao desespero, a que todas as

experiências existenciais nos levam; é eliminar, diante de si, a possibilidade de transcender-se

e enfrentar as próprias ameaças da vida.

Na compreensão de Gabriel Marcel (1927, 2003), a relação entre confiança e vida

produz implicações fundamentais para o processo de constituição do Ser. Falando, por

exemplo, sobre o desenvolvimento da criança, este teórico reconhece que a confiança é, desde

o início da vida humana, um princípio formativo, que confere ao infante a condição necessária

para o desenvolvimento de todas as suas dimensões.

Movido pela confiança, o Ser entra numa atmosfera relacional que lhe possibilita ver o

outro como uma presença ontológica, como alguém que, convivendo comigo, abre o caminho

para a superação da desconfiança no ser e para a redescoberta do sentido da vida. Na

confiança, o Ser se defronta com a condição possível de toda vida humana (RÖHR, 2013).

Por ela, o homem acessa e convive/dialoga com o núcleo mais íntimo do seu semelhante,

mesmo diante dos momentos de conflitos, fracassos e frustrações (MARCEL, 1956a). Através

da relação com o outro, ele passa a exercer um vínculo de fé e fidelidade no e com o humano.

Nenhuma relação humana e/ou interpessoal pode se tornar autêntica divorciada e/ou

alienada do encontro entre a fé e a fidelidade. A fé só faz sentido no âmbito da interface entre

o ‘eu’ e o ‘tu’. Fora desta experiência, o Ser a mutila, a fraciona, a nega e a esteriliza. A fé só

tem razão de ser se for direcionada para um outro, se encontrar-se voltada para além de si. Por

não ter um fim, em si mesma, a fé não pode ser concebida dissociada da fidelidade. É

mediante a vivência da fidelidade que o indivíduo transcende e lança-se para além da sua

própria individualidade; a partir do momento que se vê na perspectiva de interlocutor e

Page 274: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

272

mediador da relação e, não, como único conteúdo e sentido autentificador dela. Falando sobre

sua própria experiência, Gabriel Marcel nos diz

que a fé só tornou-se clara para mim a partir do momento em que pensei diretamente na fidelidade, e por outra, que a fidelidade só raiou perante meus olhos a partir do tu, a partir da própria presença interpretada como tu (MARCEL, 2002b, p. 158).

“O Ser é o lugar da fidelidade343” (MARCEL, 2003, p. 88). A fidelidade é, em si, um

ato de fé na presença irrepetível e inconfundível do outro ser. Ela só “se afirma realmente ali

onde desafia a ausência, onde triunfa sobre a ausência, em particular em ausência que se nos

dá” (MARCEL, 2002b, p. 162). O homem não pode entender-se, em verdade, separado do

reconhecimento do grande mistério em que estamos envoltos e no qual nos aproximamos do

nosso ser. A fidelidade não pode separar-se do mistério que é o outro ser. Em sua essência

metafísica, a fidelidade só pode ser apreendida se estiver vinculada à consciência de que o tu

transcende as ideias de tempo, espaço e objetivação. O tu, assim como, o mistério

não podem ser interpretados como fazem os agnósticos, a saber, com uma lacuna do conhecimento ou como um vazio a ela, senão pelo contrário, como uma plenitude, adicional, como expressão de uma vontade, de uma exigência tão profunda que se desconhece ela mesma e constantemente a trai forjando falsas certezas, todo um saber ilusório que sem dúvida não é suficiente e, portanto, prolongando deste modo o impulso a que tem dado para inventá-las. Neste conhecimento do mistério se transcende, ao contrário, está satisfeito, que a sede de conhecimento, que Trieb zum Wissen344 que constitui a raiz da nossa grandeza e também da nossa miséria (MARCEL, 2002b, p. 162).

Fundamentado na fidelidade o homem se posiciona frente à vida. Ele decide entre o

ato de negá-la e a possibilidade de assumi-la, face à exigência ontológica. Na fidelidade o

homem se une a si mesmo, à medida que se vincula ao outro ser. Neste sentido, a fidelidade

representa para Gabriel Marcel, “a união do homem consigo mesmo” (MARCEL, 1968, p.

53). Na fidelidade o Ser não se perde e se confunde em ou com sua situação. Por ela, o

homem situa-se como transcendente em direção ao seu devir; projeta-se, enquanto resposta de

si, à verdade e ao compromisso com o outro.

343 Segundo Le Van, “Marcel é o único filósofo que tratou em profundidade a temática da fidelidade, categoria

que a filosofia tradicional tanto quanto o pensamento contemporâneo deixaram mais ou menos na sombra. Depois de Kierkegaard, com efeito não se encontra nenhum filósofo ‘existencialista’ a pôr especificamente o problema” (1976, p. 196).

344 “Impulso em direção ao saber”

Page 275: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

273

Por não confundir-se com a situação do ser-no-mundo é que a fidelidade precisa ser

distinguida da mera constância345. Entre elas não há oposição; todavia, a constância

caracteriza-se, basicamente, como uma “armadura racional da fidelidade” (MARCEL, 2002b,

p. 163), um testemunho superficial da própria imagem do Ser, que se manifesta exteriormente

para me fazer sentir, simplesmente, que sou eu.

Na constância a presença é formal, porque seu fundamento resulta numa ideia ou

imagem que o Ser possui de si mesmo. Através da constância, não é possível sentir que o

outro está realmente comigo, seu princípio valorativo depende da resposta ou modo como o

Ser corresponde circunstancialmente à exigência do seu propósito. Na constância não há

garantia da presença. Por estar submetida à vontade corre-se o risco de agir contra a real

pretensão do desejo e do compromisso assumido; esteja esta intenção vinculada a um partido

político, a uma relação de amizade ou, quiçá, ao próprio ato conjugal.

De acordo com Marcel (1957), o problema da relação do sujeito, nestes três casos

acima, encontra-se no risco de causarmos uma fratura interior entre as palavras, os

sentimentos e as ações; no perigo de nos tornarmos indecisos e inconstantes, mediante a

supressão de toda disciplina e espontaneidade interior; de procurar corresponder aquilo que,

de fato, nós somos.

Mediante o ato de fidelidade, ao contrário da constância, o outro se presentifica para

mim, não se torna um alguém, porque se revela como um tu, uma pessoa, um ser encarnado

que resiste às circunstâncias e contingências, para se afirmar enquanto presença indistinta,

capaz de conferir-me, não apenas a sensação, mas, a certeza de que realmente está comigo e

não só perante mim. Joaquim Adúriz, interpretando Gabriel Marcel, diz que a captação que

“equivale dizer que eu não só me constituo como sujeito em virtude de um movimento

centrípeto, senão, de um movimento centrífugo. Em outras palavras, dizer eu sou, equivale a

declarar que sou algo para o outro” (ADÚRIZ, 1949, p. 65).

A fidelidade se expressa como condição resoluta do Ser, que resolveu agir

coerentemente consigo mesmo, independente dos aspectos de ordem temporal ou

contingencial. “A fidelidade só pode ser apreciada pela pessoa a que se promete se apresentar

um elemento de espontaneidade essencial que é em si radicalmente independente da vontade”

(MARCEL, 2002b, p. 165). A fidelidade consiste num ser-com, em engajar-se consigo e com

o outro, incondicionalmente. Conforme Joaquín Adúriz, este agir

345 “La fidélité équivaut à la reconnaissance a d’une certaine permanence ontologique” (VETÖ, 2014, p. 79).

Page 276: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

274

é o modo de presença que introduz o tu em minha existência em um modo de presença por amor, por abertura de alma que derribando as fortalezas do egoísmo reconhece fraternalmente o outro um companheiro, de destino em uma comunidade de situações e aspirações humanas (1949, p. 73).

A fidelidade não é só princípio ativo; é também ação criadora. Através da fidelidade o

homem não só revela-se ao outro; ele cria a si mesmo, se constitui e certifica-se do Ser que de

fato é. A fidelidade criadora não se confunde com princípio normativo346. De acordo com

Marcel, ela “não depende, de nenhuma maneira, da adesão a uma concepção religiosa

particular, nem ainda ao dogma cristão, que lhe confere uma justificação transcendente que

eleva infinitamente seu esplendor” (2005, p. 104).

Na fidelidade o homem se enxerga identificado com aquilo que é, no mais profundo

ser; com a decisão e a disposição interna que não só lhe ajudam a identificar os sentimentos

que orientam sua postura, como a corresponder à sua exigência absoluta. O homem ainda

identifica-se com um atuar autenticamente humano, que assegura ao Ser sua consciência livre

e ao outro, com quem se relaciona, a possibilidade de afirmar-se verdadeiramente. Em

Position et Approches Concrètes du Mystère Ontologique, Marcel afirma que “ a fidelidade é

na realidade o contrário de um conformismo inerte; ela é o reconhecimento ativo de um certo

permanente não formal, à maneira de uma lei, mas ontológico” (1949, p. 94).

Assim como o Ser, a fidelidade não se reduz a abstrações. Ela não se conforma com

processos estéreis que nada lhe comunicam ou acrescentam. A fidelidade pressupõe acesso à

ontologia, caminho para o desvelamento da verdade do Ser autêntico. Ancorado por ela, o

homem discerne entre o em si e sua situação, transcende, em certo modo, ao seu devir à

medida que se mostra comprometido consigo. Através da fidelidade “todo compromisso se

transforma numa resposta” (MARCEL, 1968, p. 57), capaz de ultrapassar o tempo, por causa

daquilo que tem para nós de absolutamente real.

O centro da fidelidade é a vida. Como fulcro metafísico, a fidelidade transporta o Ser

da disposição momentânea para a exigência ontológica da permanência. “A vontade capaz de

bloquear uma série de possibilidades e me coloca em disposição de inventar-me em certo

modus vivendi que em outras circunstâncias não teria como imaginar” (2002b, p. 172), a

decisão existencial de Ser e viver coerentemente.

346 Cf. OS II. p. 173; “Nada es más pueril que esas tentativas a las que ciertos espíritus se han entregado con el

objetivo de resolver el problema mediante compromisos: evoco aquí la idea de un ensayo prematrimonial en el cual los futuros esposos comenzarían por entregarse a una experiencia que, si bien nos los comprometerían en nada, si les aclararía algo sobre ellos mismos; resulta demasiado evidente que semejante experiencia estaría falseada de inmediato por las condiciones mismas con las cuales se comprometen”.

Page 277: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

275

O Ser da fidelidade não é um sujeito orgulhoso. A fidelidade não é uma forma de

apego a si mesmo. Apesar de estar exposto ao erro, o sujeito da fidelidade não se coloca de

maneira insensível ou irresponsável para consigo. Consciente de que está exposto aos limites

de sua condição de humano, o Ser da fidelidade não a trata como se fosse um costume ou um

conjunto mecânico de rituais e obrigações sócio-convencionais (MARCEL, 1968), pelos quais

se busca projeção e/ou autoafirmação.

Movido por seus estados de consciência, cabe ao homem não reduzir a fidelidade aos

axiomas dos saberes puramente técnicos. Na fidelidade, o homem articula sua consciência às

suas próprias determinações; a uma conexão de compromisso onde, por um lado, afirma-se a

ontologia propriamente dita e, por outro, a realidade do vínculo que me une ao outro ser

irrestritamente. “A fidelidade só é verdadeira quando o é em verdade criadora” (MARCEL,

2002b, p. 178), quando se revela como fé em um tu, na realidade pessoal ou supra-pessoal;

como uma atitude de abertura e ligação entre o Ser e a liberdade, a comunhão e o cuidado.

Esta nova fé encontra, na confiança no Ser, a base para a construção de um caminho

fecundo e promissor, que poderá nos conduzir do desespero para uma ‘nova esperança’; que

se anuncia como condição indispensável da e para a vida humana. Mediante os pressupostos

da fidelidade criadora, a existência poderá transcender a solidão de si, para se afirmar

enquanto princípio e expressão da nova confiança no Ser.

3.5.2 Comunhão e cuidado

A comunicação desempenha, no pensamento de Gabriel Marcel, um lugar central

(ESCOLA, 2010, 2011a, 2011b). As múltiplas facetas de que se reveste a obra deste pensador

e em torno da qual se foi construindo, seja o teatro, a música, a crítica literária, a filosofia e a

educação, encontraram sempre um chão comum onde colocaram os alicerces, que constituem

a comunicação intersubjetiva. Tomada em sentido etimológico, a comunicação é concebida

como comunhão, participação, pôr em comum (VILLA, 2000).

A noção de comunicação encontra a sua gênese, como atesta a sua origem latina, no

substantivo «communicatio», no verbo «communicare». Quer o substantivo, quer o verbo,

beneficiam-se da mesma raiz, no vocábulo «communis». A tradução do verbo «communicare»

conserva uma matriz dupla: comunicar e participar. A tradução de «communis» aponta para

os sentidos de comum-união, de comunhão, de comunidade, de posse de algo em comum

(GÓMEZ, 1991, p. 39-40).

Page 278: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

276

Nas últimas décadas do século XIV, os vocábulos «communiquer» e «communication»

fazem o seu aparecimento na língua francesa. Envolve como sentido de base o «participer à»

e muito próximo do latim «communicare» a ideia de pôr em comum, estar em relação. O pôr

em comum compreende mesmo a união dos corpos, de que nos dá testemunho Godefroy347.

Até o século XVI, o verbo «communiquer», e o substantivo «communication»,

conservam uma notável proximidade, em termos de sentido de «communier» (comungar) e de

«communion» (comunhão), palavras mais antigas, identificadas nos séculos X-XII, também

ligadas e saídas do vocábulo latino «communicare». Importa não esquecer que «communier»

poderia revestir-se de um outro sentido, ser «proprietário em comum», sentido ainda presente

em Littré, situação que não é extensível a outros grandes dicionários.

De um sentido mais geral de «partilha a dois ou a mais», no século XVI emerge com o

sentido de comunicação de uma notícia, «faire part (age) d'une nouvelle». No fim do século, a

palavra «communiquer» começa a significar «transmettre», podendo ser dada, como exemplo

da sua utilização, a transmissão de uma doença. No dicionário de Furetière (1690),

encontramos um exemplo suficientemente esclarecedor: "L'aimant communique as virtu

aufer".

No século XVIII surgem os «tubes communiquans». Como torna-se evidente, os usos

vão-se transmutando do sentido de partilhar para o sentido de transmitir. Assim, a designação

de “meios de comunicação” referir-se-ia tanto aos comboios, como aos telefones ou aos

media. O sentido de transmissão acaba por predominar em todas as acepções francesas

contemporâneas de comunicação. A evolução semântica do conceito, ainda que o tenha

inscrito num horizonte cada vez mais abrangente, não deixa de se depauperar.

A análise do termo ‘partilhar’ em inglês conhece uma evolução idêntica. Aparece no

século XV, sendo impregnado pelo sentido latino de «communis». Mantém, tal como o

vocábulo francês, um caráter quase sinônimo de «communion», bem como o sentido de «ato

de partilha» e de «pôr em comum». Só no terminus do século XV, «communication» torna-se

também o objeto posto em comum, para, no século XVII, colocar-se como meio de pôr em

comum. Através do desenvolvimento dos meios de transporte, no século XVIII, o conceito

reveste-se de um caráter plural; transforma-se, paulatinamente, num termo geral abstrato,

englobando estradas, canais, caminhos de ferro. Já no decurso do século XX, de forma mais

precisa entre o primeiro terço do século XX e a década de cinquenta, o termo partilhar

347 Cf. AAVV, (1981) La Nouvelle communication, Paris, Editions du Seuil, p. 14: "Quant mon mary n'a sceu de

moy/avoir lignée, j'ay bien voulu,/affin que ne huy fut tollu/Le droit de engendrer, qu'il allast/A toy et te communicast,/Te faisant quasi ma compaigne".

Page 279: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

277

encontra um novo campo de aplicação, designando, a partir daí, a imprensa, o cinema, a rádio

e a televisão. Ainda que esta acepção se dissemine em território francês e não só,

particularmente, no vocabulário tecnocrático e jornalístico, em finais da década de setenta e

princípios da década de oitenta, não figurava nos mais conceituados dicionários da língua

francesa.

O Dicionário Grand Robert, no suplemento de 1970, acrescenta uma quinta definição

às já existentes (ação de comunicar alguma coisa a alguém, aquilo que se comunica, ação de

comunicar com alguém, passagem de um lugar a outro) deixando aí presente o novo sentido

que a cibernética dá, de informação e comunicação348.

Este novo sentido aparece em ruptura total com o passado. Assiste-se à entrada da

comunicação no domínio científico, merecendo destaque, pelo papel extraordinário que

vieram a desempenhar, duas obras que apareceram nos Estados Unidos no final da década de

quarenta. A primeira foi do prestigiado matemático e investigador do MIT, Norbert Wiener,

Cybernetics, publicada em 1948. A segunda, publicada um ano mais tarde, o livro de Claude

Shannon, com o título The Mathematical Theory of Communication. Desta forma, entramos

numa nova era na compreensão da comunicação, no «paradigma cibernético da

comunicação».

No pensamento marceliano, a reflexão sobre a comunicação privilegia, de modo

evidente, a comunicação interpessoal, pensada como relação entre um eu e o tu, e

confrontando, de forma constante, a perspectiva da comunicação, pensada como comunhão e

a concepção objetiva da comunicação.

As noções de cuidar, de cuidado são polissêmicas, atravessadas por uma

extraordinária riqueza de sentidos. Identificada numa antiga narração, numa fábula de Higino,

posta em relevo no pensamento de Martin Heidegger, na magna obra ‘Ser e Tempo’ (2009a), a

noção do cuidado aparece associada à criação do ser humano, condição do “Dasein”, do “ser

aí”.

Conta-se que o Cuidado, enquanto atravessava um rio, depois de ter refletido, pegou

num pedaço de lodo colhido nas margens, moldou-o, dando-lhe a figura de um homem.

Enquanto meditava sobre a figura criada, Júpiter aproximou-se. Cuidado solicitou-lhe que a

insuflasse com o sopro vital, que o animasse. Discutindo, Júpiter e Cuidado, quanto ao nome

a atribuir à figura, aproximou-se a Terra, que também manifestou o desejo de atribuir o seu

nome à figura criada. Da mesma forma que Júpiter considerava ter dado vida à figura, com 348 "«5. Sc. Toda a relação dinâmica que intervém num funcionamento. Teoria das comunicações e da regulação.

V. Cibernética, informação e comunicação»" (AAVV, 1981, p. 15).

Page 280: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

278

seu sopro, e Cuidado por tê-la moldado, Terra reclamou, lembrando que fora do seu corpo, do

lodo colhido nas margens do rio, que havia saído a figura humana. Perante a incapacidade de

encontrar um consenso, acordaram que deveriam pedir um parecer a Saturno, submetendo a

decisão ao seu juízo. Analisada a questão, Saturno fez saber que pelo fato de ter sido Júpiter a

insuflar-lhe o espírito, recuperá-lo-ia no momento da sua morte. Na medida em que havia sido

a Terra que lhe emprestara a matéria de que brotou o seu próprio corpo, recebê-la-ia no

momento da sua morte. Por fim, dirigindo-se ao Cuidado, declarou que por ter sido ele quem

moldou a figura, caber-lhe-ia possuí-la e acompanhá-la ao longo da sua vida. Quanto ao seu

nome, dever-se-ia chamar ‘homo’ visto ter sido fabricada do ‘humus’ (HEIDEGGER, 1987, p.

218-219).

Conclui outro teórico, Roselló (2005), que o ato de cuidar inscreve-se na origem do ser

humano, pois é o próprio Cuidado que o cria e o protege no curso da sua existência, pondo em

destaque esta dimensão, na constituição da humanidade do homem. Cuidar, referindo-se a um

ser humano, não é algo externo ao homem ou algo artificial; pelo contrário, o cuidado está

cravado na essência do homem, humaniza-o, enobrece-o, assemelhando-o ao deus Cuidado,

seu criador. Neste sentido, escreve Roselló:

El mito de Cuidado nos transmite, pues, la idea que la tarea de cuidar a otros es una tarea fundamental de la condición humana, lo que no significa que no puedan ejercerla otros seres vivos entre sí, pero en el ser humano es el aspecto más revelador, pues el está constitutivamente creado por el dios Cuidado y por tanto está creado para cuidar y ser cuidado, tanto en el sentido activo como en el sentido pasivo de la expresión. El ser humano necesita cuidar a otro ser humano para realizar su humanidad, para crecer en el sentido ético el término, pero de La misma forma, necesita del cuidado de otros para alcanzar la plenitud, es decir, para superar barreras y las dificultades de la vida humana (ROSELLÓ, 2005, p. 311).

A noção de cuidado aparece aplicada em relação ao domínio dos objetos e ao domínio

das pessoas, divergindo em função do mesmo. O cuidado visa o universo da pessoa, para além

de transgredir claramente a dimensão objetivante, pois é sempre dirigido à pessoa na sua

singularidade, procurando garantir a sua integridade, liberdade, respeitando a

pluridimensionalidade da pessoa.

Gabriel Marcel constrói a sua meditação sobre a intersubjetividade, partindo da análise

dos pronomes pessoais (o eu, o tu, o ele, o nós) que evidenciam modos diferenciados de

relação, concorrendo para a compreensão da comunicação, comunhão e educação. A afirmação

da nossa condição de seres existentes, encarnados e, nessa medida, corpos que sentem,

Page 281: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

279

permite-nos aceder ao mundo e, pelo outro, a nós próprios, enquanto seres de comunicação.

Assim, defender que existir é ser-no-mundo, que o corpo não é um instrumento, mas

possibilidade da existência de instrumentos, ou que a sensação não é mensagem, nem

comunicação, mas antes condição para a eclosão, quer de uma ou de outra, deixa desde logo

vincada a importância, bem como a necessidade de abertura e da comunicação com o outro,

enquanto dimensão constituinte do ser encarnado.

A intersubjetividade deve então ser compreendida, numa primeira aproximação, a partir

da dialética do eu, do corpo e do outro, sendo o outro posto como um tu e o corpo, como

mediador. Será pelo corpo que o eu se apresenta a si mesmo e ao outro e, correlativamente, o

outro se apresenta a si mesmo e ao eu. Sirgardo Ganho, comentando sobre a ideia marceliana

da intersubjetividade diz que

É na existência humana, enquanto situação fundamental do homem, que nos afirmamos como identidade ou mesmidade e encontramos o outro como pólo correlativo da nossa ipseidade. A situação original do homem é, deste modo, a de uma existência encarnada, ponto de partida insofismável para a construção da realidade humana. A verdadeira existência é aquela que traz consigo a marca do homem, é a que se efectiva na abertura aos outros seres. Aqui, a existência, como dado, está ultrapassada, visto a intersubjectividade surgir como trama fundamental do existir humano (SIRGADO GANHO, 1987, p. 1).

A meditação em torno da segunda pessoa, o tu, está intimamente vinculada à

experiência pessoal de Marcel na Primeira Grande Guerra, em que, por motivos de saúde,

cumpria o serviço militar num gabinete da Cruz Vermelha, destinado a prestar informações

sobre a situação dos militares desaparecidos. Atingido, não pela vivência direta do conflito na

frente de batalha, nas trincheiras, mas, antes, pelo outro lado da experiência dolorosa da guerra,

isto é, a angústia, o desespero e o sofrimento dos familiares dos desaparecidos, Marcel

confrontou-se com uma experiência não menos traumática, a da negatividade da informação

impessoal. Em face da dor alheia, não cedeu à tentação do fácil, que era transformar a sua ação

numa forma impessoal de disponibilizar dados, isto é, rejeitou a condição de ser um simples

ficheiro de dados.

Em 1971, na obra En chemin, vers quel éveil? Marcel redigiu algumas notas biográficas

sobre este acontecimento tão decisivo na sua existência pessoal e na sua orientação filosófica,

para a meditação sobre a existência concreta, testemunho inconcusso desta experiência de

comunicação, em que o outro era verdadeiramente concebido como tu:

Page 282: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

280

Não creio na utilidade de entrar em detalhes do que foi a vida deste serviço da Cruz Vermelha. Direi simplesmente isto: tratava-se para mim, tanto quanto possível, na presença de cada caso particular que nos era exposto por uma mãe, uma esposa, uma noiva, uma irmã angustiada, de constituir um feixe de testemunhos que permitisse trazer alguma luz sobre a sorte dos desaparecidos [...] isto teria podido ser extremamente perigoso, quer dizer que isso teria podido converter para mim a guerra num esquema absolutamente abstrato. Mas o que impediu que ela fosse assim, eram as visitas que eu recebia várias vezes por dia, e que, quase sempre me perturbavam, porque me encontrava na presença da tal sofrimento de tal angústia [...] Eu creio que isto foi muito importante, porque, no fundo, isto foi como a primeira aprendizagem da intersubjetividade tal como eu devia defini-la mais tarde. Ao mesmo tempo a minha reflexão filosófica incidia sobre este tipo de interrogação à qual eu submetia os meus visitantes. Ela exercia-se sobre o próprio questionamento e mais profundamente sobre as condições nas quais um questionário pode ser estabelecido, e simultaneamente sobre os limites entre os quais uma resposta pode ser obtida. Por isso, preparava-se em mim, no meu espírito (disso o Journal Métaphysique transporta o traço irrecusável) uma reflexão que ia para além, e que impelia para o que justamente não é mais da ordem da informação, para lá da informação, para lá também do questionamento (MARCEL, 1971, p. 94-95).

Os inquéritos realizados no curso da sua passagem pelo gabinete da Cruz Vermelha

tiveram o mérito de conduzi-lo à reflexão sobre o outro e de "reconhecer a evidência do tu",

como Marcel reconhecia no prefácio à obra de Martin Buber (1969), como prova com tanta

nitidez o Journal Métaphysique (1927). Para Gabriel Marcel, o que se encontrava em

confronto era o que poderíamos designar por informação e comunicação, no seu sentido mais

próximo da etimologia. A dor que atingia inelutavelmente os que buscavam as informações e,

em simultâneo, penetrava aquele que, em princípio, poderia ser a chave para as suas mais

inquietantes questões.

As informações fornecidas por Marcel, sobre o destino do militar, de quem o pai, o

irmão ou a noiva, esmagados pela dor da incerteza, buscavam mínimos sinais, perdiam a força

do anonimato de um nome ou número sem rosto, para, na dor dos rostos destes, iluminar-se o

tu. O encontro do filósofo com todos os que, no sofrimento imposto pela ausência, silêncio e

solidão o procuravam, assinalavam, in concreto, a passagem da informação à comunicação e

comunhão, pois Marcel comungava a dor e o sofrimento alheios. A própria escuta, resultante

do apelo, não era mera recessão, mas participação, dádiva e acolhimento.

Será esta experiência intensamente vivida que, logo no Journal Métaphysique

(MARCEL, 1927; WAHL, 2004), se converterá na ocasião para uma extraordinária meditação

sobre o tu. Desde aí o autor nega a possibilidade de considerar uma pluralidade de sujeitos

envolvidos na unidade de uma consciência ou uma pluralidade de individualidades envoltas

em muralhas, sem portas e janelas, como as mónadas de Leibniz. As reflexões acerca do

Page 283: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

281

conhecimento de outros eu concorreram para a libertação de todos os "resíduos monádicos",

(MARCEL, 1940, p. 46) tendo em conta o fato desta solução se lhe apresentar “como

inaceitável” (MARCEL, 1927, p. 61).

A crítica ao solipsismo cartesiano evidencia uma categórica repulsa pela tese que

postula que a essência de cada um reside na consciência de si mesmo, tomada como ‘mónada

incomunicável’. Assim, a posição cartesiana que afirma que o ego não necessita do outro para

a sua constituição, aparece como inadmissível e incompatível, com a posição filosófica de

Gabriel Marcel349. Deste modo, o autor põe em evidência o primum relationis, prosseguindo

na senda de um pensamento que gradualmente foi tomando consciência da necessidade do

outro na constituição de si.

A independência e a mútua indiferença, isto é, o não ter em conta o outro, ressaltam a

consideração do objeto na sua própria essência. Desta forma, visar o outro como um objeto, a

quem pensamos ou conferimos o estatuto de coisa, destaca a sua exterioridade, ao mesmo

tempo em que impede que uma relação se estreite e nos una, correndo o risco de enclausurar

cada um em si próprio, imerso numa interminável solidão.

A ideia do inquérito, ocasionada no trabalho levado a cabo na Cruz Vermelha, permitiu,

como constatamos, que Marcel inaugurasse uma meditação sobre a realidade do tu e

estabelecesse a distinção entre este e o ele, comunicação objetiva e comunicação com

comunhão, ao focalizar-se na análise do sentido, que recobre a noção de questão e de resposta,

implicadas na noção de inquérito.

Poderíamos perguntar: O que é questionar? Toda questão, ao ser formulada, tem como

objetivo pôr fim a um estado de indeterminação relativa, implicando um juízo disjuntivo, isto

é, a afirmação de que só uma das alternativas em apreciação pode ser verdadeira ou válida,

reconhecendo-se a incapacidade de determinar a validade de uma das alternativas. A

veracidade desta análise permanece quer o eu se questione acerca do nome de uma cidade

esquecida, quer de um objeto perdido (MARCEL, 1927, p. 138), ou que interrogue uma outra

pessoa.

Que significa responder? É necessário que a resposta incida sobre a questão enunciada

e que a mesma tenha sido compreendida. Para que possamos compreender a questão é

349 A reflexão de Gabriel Marcel acerca do papel da comunhão no processo de desvelamento da condição

existencial do Ser constitui-se, na base de fundamentação da obra “Gabriel Marcel: une métaphysique de la communion” (2013), escrita por Joël Bouëssée. O texto procura articular as ideias marcelianas com as perspectivas de análise de autores como Schelling, Nicolas Berdiaeff, Gustave Thibon, Charles Du Bos, Emmanuel Lévinas, entre outros. Uma produção onde se reconhe Marcel como o propositor de uma filosofia da intersubjetiviade, da comunicação, do mistério, da comunhão, da participação, do engajamento, do cuidado e do dom.

Page 284: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

282

importante colocá-la para nós ou que nos coloquemos na posição do outro, que questiona. É na

consciência do que responde que acontece o encontro entre a pergunta e resposta, razão pela

qual Marcel considera que não podemos responder senão às próprias questões, sendo a

consciência do que responde "o meeting ground da questão e da resposta..." (MARCEL, 1927,

p. 138-139). Assim, afirma Marcel, que o

[...] solilóquio não imita simplesmente o diálogo; todo o diálogo para ser fecundo deve tornar-se num dado momento solilóquio, sem o qual a questão e a resposta não se encontrariam; o encontro não pode ter lugar senão no entendimento; é, aliás, por este mesmo encontro que o entendimento se definiu (MARCEL, 1927, p. 140).

Entre a questão e a resposta há a exigência de um chão comum, lugar de encontro,

escolhido ou aceito, pois tal ocorrência privaria de sentido a resposta (MARCEL, 1927, p.

138).

Para Gabriel Marcel, o mundo em que vivemos é um mundo de experiências

diferenciadas e susceptíveis de se completarem entre si. Na medida em que nos encontramos

ligados a um momento do tempo e a um lugar do espaço, as nossas experiências reclamam as

mediações (Erfüllung) dum sistema de questões e de respostas, as quais têm, na base, a

objetividade (1927, p. 139). No entanto, seria uma perigosa ilusão crer que, para a

compreensão do tu como ser, bastaria obter de si as respostas correspondentes às questões por

nós dirigidas. Qualquer obra de referência, enciclopédia ou dicionário dispensaria essa

informação por nós. Impõe-se que o eu encare o tu como transcendendo todas as respostas

dadas, na medida em que o eu se afirma para além da mera informação, no sentido em que nos

tem em conta e é por nós considerado. A questão só permite edificar uma relação pessoal com

o tu, na medida em que o eu aborda o tu como tu e, não, como um ele ou "objeto de

questionário". Se a questão por nós formulada tem o intuito de especificar ou determinar

predicados, a relação diádica, enquanto participação entre dois seres, “dá lugar à relação

triádica, intervindo o ele, o objeto, o n'importe qui” (MARCEL, 1927, p. 161).

Gabriel Marcel não rasura o fato que pela ação de questionar, corremos sempre o risco

de objetivar o questionado. Abordar um indivíduo com o propósito de obter uma informação,

não o converte automaticamente num tu, pela simples razão de nos ter respondido. Se

tomarmos como exemplo alguém com quem nos cruzamos e a quem solicitamos um

esclarecimento acerca de um itinerário, ainda que obtenhamos a resposta, “[...] não transforma

esse alguém num tu para nós, pois a informação conseguida é, em tudo, semelhante à de um

Page 285: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

283

letreiro que, por sua vez, fornece informações, respondendo de modo abstrato a um

questionador em geral” (MARCEL, 1927, p. 161).

Ao assimilar a noção de resposta à mera fonte de informação, somos irremediavelmente

impelidos a considerar o outro como "repertório", "anuário" ou "ficheiro", ratificando a sua

exterioridade, empurrando o outro para o domínio da máxima estranheza, onde nenhum

encontro terá/teria ocasião de ocorrer. Como reconhece Marcel, "o repertório é o ele", (1927, p.

175) e "não há mistério possível senão na ordem do tu" (1927 p. 160).

Se dois indivíduos que se comunicam entre si, com o intuito de se informar, quer dizer,

recorrendo a signos e a um código de transmissão objetiva, a fim de fazer passar um conteúdo

de B para A, quando muito, concebem-se como "continentes", não sendo legítimo defendermos

que existe entre ambos uma relação eu - tu. “Sem dúvida só dois continentes se comunicam. Na

medida em que nós nos observamos uns aos outros, como capazes de comunicar, nós nos

tratamos inevitavelmente como continentes” (1927, p. 175).

Como fonte de informação, concebemos o outro como continente, não escondendo o

desejo que temos de pretendermos esvaziá-lo, no próprio ato de comunicação. Mas, um ser que

não é passível de inventariação, de desmembramento, é nesta medida, um ser infinito,

inesgotável concreto; é uma realidade que transcende o curso do pensamento que opera por

questões e respostas.

A noção de resposta pode ser analisada como via possível e real de acesso ao tu, desde

que enraizada no chão comum ou na viva comunidade entre eu-tu. Esta noção, enquanto

ontologicamente constitutiva da relação, considera o tu como ser capaz de responder e

estabelecer um ‘diálogo que transcenda’350 a dimensão objetiva do desespero e que funde uma

relação pautada no sentido da abertura esperançosa do cuidado de si e do outro.

3.5.3 Desespero e esperança

A Esperança é, para Gabriel Marcel (2003, 2005), a expressão mais profunda do

núcleo interior do homem. Sem ela, é impossível compreendermos os fenômenos da

confiança e da fidelidade, da comunhão e do cuidado, enquanto posturas que transcendem as

categorias da crise, da solidão, da angústia e do desespero, apresentadas pela Filosofia da

350 “Philosopher concrètement, c’est faire coller la réflexion métaphysique à l’expérience vécue, c’est ne tolérer

aucune solution de continuité entre la pensée pensée et la pensée pensante, autrement dit ne jamais laisser l’intelligence fonctionner à vide à la façon d’un moulin désembrayé” (THIBON, 2003, p. 61).

Page 286: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

284

Existência, como evidências da descontinuidade da experiência e do modo como se dá a

formação humana do Ser.

Na perspectiva de Otto Friedrich Bollnow (1962)351, a abordagem Fenomenológica da

Metafísica da Esperança de Gabriel Marcel (2005) aponta para uma compreensão, onde a

esperança se apresenta como a virtude fundante da existência e de toda vivência que pretende

conduzir o Ser à maturidade humana. Tomando, inicialmente, como orientação o círculo dos

testemunhos poéticos, este teórico analisa a esperança a partir dos pontos de vistas de sua

Força Ativa, Repressora e Idealista da vida. Como força ativa, a esperança capacita o homem

a assumir posturas e comprometimentos que, de outro modo, não seriam possíveis. Diante dos

infortúnios da experiência humana, a esperança proporciona ao homem a renovação das

energias criadoras e fomentadoras de outras possibilidades.

Enquanto fulcro repressor, a esperança pode ser vista como um mecanismo criador de

ilusões, como um estímulo à crença em ficções e fantasias que, de modo direto, influenciam a

relação do homem consigo, com o outro e com sua própria realidade. Neste aspecto, ela é

vista como algo negativo, à medida que condiciona o Ser a existir, ligado somente às

imaginações infundadas de uma vida inautêntica, que em nada se justifica e se fundamenta. A

esperança, aqui, não passa de uma promessa falsa do cumprimento dos anelos inauditos, que

nunca foram expressos claramente e que o homem procura apresentar como possibilidades

verificáveis e como um sentimento que se traduz numa atitude de fuga de sua dura e

incompreensível forma de existir no mundo.

Do ponto de vista idealista, a esperança revela-se como “uma atitude juvenil”, uma

visão cíclica da vida e do mundo, capaz de conduzir a experiência humana à construção de um

projeto existencial superficial e enganador (MARCEL, 1933, 1935, 1987). Na tendência

idealista, a esperança é vista como algo que, necessariamente, vem de fora. Seu caráter é

sempre o de uma solução, uma saída que pretende servir de suporte para aliviar o peso da

existência e a monotonia da própria irrealização interior do homem. Para Gabriel Marcel

(2005), o que se busca não é nenhuma destas tendências acima. Seu interesse gira em torno da

possibilidade da descoberta da esperança verdadeira e do modo como esta se desvela,

enquanto virtude autêntica do Ser. Movido por este interesse, questionamos: é possível ser

feliz sem esperança? Ou a felicidade só é alcançada se dependermos dela?

351 As reflexões apresentadas por Otto Friedrich Bollnow sobre a esperança encontram, na Filosofia de Gabriel

Marcel, sua base de sustentação e fundamentação teórica. A obra Filosofía de la Esperanza (1962) é fruto da influência do filósofo francês sobre a compreensão pedagógica do educador alemão. As considerações pedagógicas de Bollnow correspondem às compreensões de Marcel à medida que tomam a categoria da Esperança como núcleo fundante do Ser e estrutura portadora de sentido humano e experiência formativa.

Page 287: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

285

De acordo com a perspectiva Existencialista, a felicidade só é possível sem a

esperança; ou quando o Ser, incentivado pelo “temor” e pela “angústia”, enquanto algo que

pertence essencialmente à vida humana, sente-se estimulado a seguir em frente, em busca da

realização existencial daquilo que ele não é ainda. A esperança, neste caso, deixa de ser um

fator positivo, para se transformar num impedimento à concretização da felicidade do homem.

Ela pode, segundo esta Filosofia, levá-lo a se desincumbir da responsabilidade de gerir a

construção de seu próprio projeto existencial e de buscar o esclarecimento e a transcendência

de si mesmo.

Para o poeta Hugo Von Hofmannsthal (apud BOLLNOW, 1962), é possível sim, ser

feliz sem esperança. No seu entendimento, felicidade e esperança são sentimentos

incompatíveis, que implicam no fato de que afirmar a veracidade de uma, consiste em negar a

existência da outra.

De acordo com Bollnow (1962), a afirmação de Hofmannsthal revela-se por meio de

um tríplice significado, que sintetizaremos a partir de três aspectos: primeiro, no sentido de

que o homem só pode - seguindo o ideal de vida dos estóicos - ser feliz separado do mundo.

Na concepção estóica, temor e esperança são colocados paralelamente e se expressam, na

vivência humana, como uma forma de inquietação e dúvida do homem com relação ao futuro;

como uma intranquilidade que pode levá-lo à compreensão de que a felicidade consiste em

viver permanentemente, indiferente aos males do mundo e aos apegos de suas próprias

paixões. O segundo aspecto consiste na ideia de que temor e esperança são sentimentos que,

por estarem presentes no homem, antecipam, para si mesmos, o futuro. Esta é uma condição

que eleva o ser sobre a temporalidade de sua própria vida e o insere num presente pleno, que

descarta o futuro daquilo que ele é ou não viveu. Por último, compreendemos que gozar o

presente em sua plenitude sem preocupar-se com o amanhã não consiste em negar totalmente

o tempo futuro, mas, em procurar vivenciar o presente, como condição estruturante da

dimensão humana mais profunda.

Para Bollnow, as teses de Von Hofmannsthal são limitadas à medida que apontam para

um estado de vida humana, onde o homem precisa desapegar-se do futuro, para alcançar a

plenitude da sua felicidade no presente. A felicidade, enquanto plenitude da existência, não é

algo constante, “pois necessariamente são raros os instantes nos quais o homem experimenta

um tal estado de elevado contentamento” (1962, p. 87). Diante desta refutação, não negamos

o perigo de, na força da esperança, correr o risco de tentar encobrir a realidade ou até negar os

sentimentos da angústia, do desespero e da intranquilidade. Pretendemos afirmar que tais

colocações reduzem e limitam o sentido essencial da verdadeira esperança, enquanto condição

Page 288: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

286

possível de toda vida humana e historicidade do Ser. Assim, cabe-nos questionar: qual é o

sentido da verdadeira esperança? Quais são as formas de sua manifestação? Qual é a função

que ela exerce na vida e ao longo do processo de formação do Ser? (MARCEL, 2005).

Sobre o sentido da esperança, Bollnow apresenta a diferença que há entre a Esperança

Relativa e a Esperança Absoluta. A esperança relativa é aquela cujo sentido poderá ser

desconstruído pela própria experiência humana. Enquanto sensação, ela se dilui entre o

sentimento intencional determinado e a angústia de um objeto indeterminado. A esperança

absoluta, ao contrário, “transcende a toda corroboração e comprovação empírica” (1962, p.

89). A diferença entre estas duas formas de esperança encontra-se no seu fundamento.

Enquanto a esperança relativa apoia-se num pressuposto natural, que pode ser investigado à

luz das dimensões psicológica e antropológica do sujeito, a esperança absoluta ancora-se no

pressuposto ético que só se revela ao ser, diante das situações-limite, como uma “força

especial que resiste sempre renovadamente às seduções do desespero” (1962, p. 90) e às

perturbações impulsionadoras da angústia.

Em sua essência, ter esperança não é o mesmo que viver esperando (MARCEL, 2005).

Apesar de sua estreita relação, há que se considerar que “a esperança sempre se dirige a algo

agradável e que a espera é indiferente frente a esta diferença” (BOLLNOW, 1962, p. 90). No

estar-esperando, o homem pode se angustiar por não ter consciência sobre o que lhe aguarda;

ele não sabe discernir se seu fim será glorioso ou obscuro. Nesta situação de passividade, seu

tempo presente não tem valor algum para sua realização futura. Sua inclinação maior gira em

torno de um certo conformismo, que nasce como fruto da tensão entre a atitude resoluta e a

frustração de um objetivo não alcançado. Uma condição “que desmorona e incapacita o

homem a responder adequadamente às exigências de uma situação que está acima de suas

forças” (BOLLNOW, 1962, p. 92).

Diferente do estar-esperando, o estar-esperançoso se desvela enquanto uma atitude

interior, que não aceita o condicionamento dos fatores externos, mas que se caracteriza,

fundamentalmente, pela liberdade de movimento, que o ser tem, frente às situações com as

quais se defronta (MARCEL, 2003, 2005). “Isto significa que o objeto da esperança está

situado num futuro muito mais indeterminado e distante. E o objeto da espera está, em

compensação, numa proximidade imediata” (BOLLNOW, 1962, p. 93).

Na esperança (MARCEL, 1951a), o homem está aberto àquilo que o futuro lhe

oferecerá; sua postura não é de exigência, mas, de disponibilidade. Pelo fato do tempo

humano não estar limitado aos acontecimentos sucessivos, mas, por se caracterizar pelas

diferenças produzidas pelas experiências vividas, é que a vivência do e/ou no tempo se torna

Page 289: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

287

uma das mais marcantes contribuições para o desenvolvimento do homem, face à sua

condição de sujeito inacabado.

Movido pela Esperança a atitude resoluta do Ser, de agente construtor de si mesmo,

mostra-se num sentido antropológico, à medida que ela, a esperança, passa a ser apreendida e

compreendida por ele como a última condição da vida humana, capaz de possibilitar todo

estar-paciente e todo estar-disponível.

A função antropológica da esperança é capacitar o Ser a resistir firme e resolutamente

às pressões existenciais da angústia e do desespero. “A esperança é o ato pelo qual esta

tentação é ativa e vitoriosamente superada” (MARCEL, 2005, p. 48). Ela é a força que

energiza a alma do Ser a não submeter-se à atração obscura de uma existência desesperada e

confusa. A esperança assume uma posição central na vida humana, porque sua natureza é,

antes de tudo, ontológica. Em sua imanência, ela comporta, tanto os aspectos negativos como

positivos da própria vivência existencial do homem, procurando tornar possível sua vida e

forma de Ser no mundo.

Com base na análise fenomenológica, Marcel (2005) considera a esperança, antes de

tudo, a partir da própria experiência existencial do homem que, diante do “eu espero”, em

face às situações-limite da enfermidade, do exílio, da separação, da escravidão e da morte, se

recusa a entregar-se ao desespero; e, ainda, do homem que passa a assumir esta esperança,

existencialmente, como uma verdadeira resposta do Ser que, consciente de sua condição

itinerante, a concebe como alicerce de si e, ao mesmo tempo, como condição para se engajar

existencialmente.

Por ser ontológica, a Esperança não pode ser reduzida à noção de um simples anelo,

desejo ou crença, com relação a algo que se “espera” que aconteça ou realize. Ela não pode se

constituir numa segurança ou otimismo sentimental e racionalmente provável, com relação a

alguma dificuldade concreta nem, muito menos, comportar, à semelhança do estóico, uma

atitude de entrega e isolamento, como se este fosse apenas responsável por si mesmo.

A metafísica da Esperança consiste numa atitude interior que, de modo incondicional,

move o Ser a resistir ao desespero, numa consciência de si, que não sucumbe diante da força

do tempo e das circunstâncias, mas que o leva a reagir positivamente (MARCEL, 1968).

Consiste, ainda, numa confiança na mudança da realidade, que insere o Ser num processo de

amadurecimento, crescimento e compromisso consigo mesmo, com o outro e com o mundo à

sua volta. Como defende Pedro Laín Entralgo,

Page 290: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

288

A vida esperançada é vida criadora: vida, portanto, cuja sucessão temporal se encontra aberta à novidade. Na experiência já constituída e susceptível de repertório – a experiência de quem aspira a existir sub specie praevisionis -, o tempo não passa, ou, o que vem a ser o mesmo, passa sem trazer nada de novo. Isto, no sentido mais literal da palavra, é desesperante. Desesperar é existir num tempo fechado à emergência da novidade; esperar é existir num tempo aberto ao novo (ENTRALGO apud MARCEL, 1968, p. 310).

A vida esperançada é vida criadora: vida, portanto, cuja sucessão temporal se encontra

aberta à novidade. Na experiência já constituída e susceptível de repertório – a experiência de

quem aspira a existir sub specie praevisionis -, o tempo não passa, ou, o que vem a ser o

mesmo, passa sem trazer nada de novo. Isto, no sentido mais literal da palavra, é

desesperante. “Desesperar é existir num tempo fechado à emergência da novidade; esperar é

existir num tempo aberto a novo” (1968, p. 310).

Bollnow comentando sobre a fenomenologia da esperança de Gabriel Marcel (2005)

diz que “a esperança é a determinação originária e portadora da estrutura interna e temporal

da vida humana” (1962, p. 99). A esperança não é uma mera ação de defesa sentimental. É,

antes, um princípio interior que vai além de toda concepção teórico-objetiva, que se revela

numa “Fé”, cujo fundamento encontra-se no íntimo do próprio Ser (MARCEL, 2005). É um

ato de transcender-se a si, uma força criadora que está vinculada a uma ação comunicativa,

capaz de conferir ao existir humano a decisão permanente de retomar sempre um novo e

fecundo percurso.

Por ocupar um lugar central na existência humana, a função da Esperança consiste em

conferir ao homem a consciência de que “Ser é ser e estar a caminho”; e que ter esperança é

procurar viver à luz de sua possibilidade existencial. A Metafísica da Esperança é, para

Marcel,

[...] a disponibilidade de uma alma intimamente comprometida numa experiência de comunhão para completar o ato transcendente à oposição do querer e do conhecer, pelo qual ela afirma a perenidade vivente de que essa experiência constitui simultaneamente o penhor e as premissas (MARCEL, 2005, p. 79).

O objetivo da Fenomenologia da Metafísica da Esperança, conforme Bollnow (1962) e

Gabriel Marcel (1968, 2003, 2005), é lançar luz sobre a existência humana, em face da sua

condição de inacabamento e inconclusão. É levar o homem a refletir sobre si mesmo,

entendendo que existência esclarecida é existência em liberdade e transcendência. A

esperança é uma virtude que se contrapõe a toda inquietação existencialista. Ela é o

Page 291: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

289

fundamento portador, enquanto estrutura fundamental, da alma do homem. Sua presença se

evidencia na existência humana, através do cultivo e da vivência das virtudes da paciência, da

disponibilidade e da confiança no Ser.

A perspectiva fenomenológica da Esperança possui uma significância humana, quando

reafirma sua importância diante do enfrentamento das experiências dolorosas e negativas da

vida; possui uma atitude existencial, que contempla todas as dimensões e possibilidades do

homem; uma vivência profunda, que o coloca para além da objetivação dos fatos, por meio de

uma metafísica que, aberta ao Ser (MARCEL, 1927, 2005), se torna uma fonte de esperança,

que implica todo o eu e toda a realidade, que envolve a plenitude da busca do desvelamento

do mistério antropológico que é o homem.

Page 292: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

290

CAPÍTULO 4 CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO DE GABRIEL MARCEL

PARA A EDUCAÇÃO NUMA PERSPECTIVA DA FORMAÇÃO HUMANA:

DESAFIOS E POSSIBILIDADES

A máquina é ameaça a todo o conseguido quando ousa estar no espírito e não na obediência. Para que não brilhe, esplêndida e hesitante, a mão, talha a rija pedra para o edifício atrevido.

Nem uma vez lhe escapamos, pois nunca se atrasa. Luzente de óleo, na muda fábrica está bem. E resoluta, ela ordena, ela cria, ela arrasa. É vida – que julga entender como ninguém.

Mas a existência ainda nos fascina, tantos são os lugares onde nasce. Um jogo de puras forças que se toca de joelhos, com espanto.

Palavras roçam ainda favorável, asas... E, de pedra palpitante, a sempre nova música ergue no espaço inapto a sua divina casa.

(Rainer Maria Rilke).

“Penso que ao educador-filósofo digno de sua missão incumbiria combater

diretamente as forças subreptícias que tendem à neutralização do passado e pela sua ação

conjugada suscitam o que chamarei insularização temporal do homem contemporâneo”

(MARCEL, 1951b, p. 37). Isto significa que, em sentido profundo, é preciso que o

educador,352 atento às questões do seu tempo, não perca a visão do que é o humano, nem o

352 A relação entre o educador e o educando ao lado da discussão sobre a prática pedagógica, numa perspectiva

da formação humana, é a temática central em torno da qual gira este último capítulo da tese. Queremos esclarecer aos leitores e leitoras que a questão que nos interessa é refletir a respeito do modo como, quem educa, se forma humanamente e, sobre como, quem aprende, pode se humanizar existencial e pedagogicamente. Queremos, ainda, chamar a atenção para a diferença entre o educador e o professor. Enquanto o professor subestima, no exercício da sua prática pedagógica, a necessidade de contribuir para estimular a consciência crítica do aluno, a respeito de si mesmo e do mundo, o educador procura apreender as condições em que a criticidade é possível, a partir da realidade e condição de Ser do próprio educando. O educador procura incentivar o educando a buscar os saberes que não são simplesmente transferidos, mas que precisam e podem ser desvelados e acessados de modo humano, espiritual e intersubjetivamente. Enquanto o professor dissocia, do ato de aprender, a necessidade da pesquisa, o educador compreende que o processo de formação humana também se desvela através da curiosidade epistêmico-ontológica e da atitude indagadora do Ser, que traz em si mesmo a consciência de que a prática educativa precisa se tornar, no quotidiano da vivência escolar, um testemunho rigoroso da busca pela realização de um trabalho coerente. Este é um trabalho pedagógico que não apenas se mostra academicamente significativo, mas que se anuncia enquanto processo

Page 293: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

291

contato com os âmbitos da sua realidade, que assim ficam reduzidos à simples menção

abstrata. Neste caso, consideramos que a educação procura contribuir para que o homem, no

contexto da técnica e da tecnologia, restaure a unidade entre a condição humana e a

problematização poético-filosófica, tanto da construção da sua visão de mundo, como de sua

ressignificação existencial.

Numa época em que as instituições geradoras de sentido já não eram amparo para o

homem, Gabriel Marcel acentua “que a crise do homem ocidental é uma crise metafísica”

(1951b, p. 85). Diante da impossibilidade das máquinas interrogarem-se sobre os limites de

sua própria eficácia e a respeito das condições da existência e condição humana, cabe à

educação compreender que “só o indivíduo, ou mais exatamente a pessoa é educável” (1951b,

p. 13). Entendemos que a educação, enquanto fenômeno humano, precisa se inscrever no

quadro de um conjunto de relações e/ou virtudes que se nutram por uma confiança no Ser. A

confiança, assim, assume também valor pedagógico, na medida em que a Fé no humano pode

ser apreendida numa relação intersubjetiva, o que torna a confiança no homem o pressuposto

da verdadeira Educação e da verdadeira Filosofia.

Neste espírito, pretendemos refletir sobre as contribuições do pensamento de Gabriel

Marcel para a educação, numa perspectiva da formação humana, em que pesem os muitos e

difíceis obstáculos que se encontram no caminho desse processo de humanização dos homens

e seus processos educativos. Assim, queremos refletir sobre o modo como o Pensamento de

Marcel, como esforço filosófico de pensar o homem e sua formação, procura por um lado,

interrogar sobre os desafios da formação humana na era da técnica e tecnologia e, por outro

lado, equacionar as vias de aplicação da filosofia marceliana, para a construção de uma

abordagem antropológica existencial da educação. Como delineamento das nossas

ponderações, propomos: a análise das exigências educativas da formação humana na era da

técnica e tecnologia; o estudo das perspectivas ontológicas e pedagógicas da relação entre

educador e educando; e a crítica sobre os papéis do educador-filósofo na era do progresso

tecnocientífico, face aos desafios das tarefas pedagógicas ao fazer concreto.

gerador de sentido humano e existencial. É a atitude de alguém que, tomado pelo senso da própria condição humana, não nega suas contradições existenciais, nem sublima o caráter das suas próprias limitações teóricas e profissionais. Na busca pela formação de si mesmo e através da relação com o educando, o educador procura se colocar, de modo nada insinuante, não pretende ser modelo, transmitir receita e/ou repassar orientação, mas, comunicar simplicidade sublime, experiência e sabedoria. O educador procura se ressignificar humana, social, pedagógica, política e existencialmente.

Page 294: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

292

4.1 Exigências educativas da formação humana na era da técnica e tecnologia

Gabriel Marcel (1933, 1940, 1956), ao discutir sobre a influência do saber objetivo

sobre a condição humana, não só critica os pressupostos dos saberes prontos e acabados como

ressalta o verdadeiro sentido da educação, cujo objetivo visa fornecer ao homem as condições

necessárias para alcançar o fim autêntico de sua vida.

Sob o ponto de vista das exigências educativas da formação humana, na era da técnica

e da tecnologia, destacamos a necessidade da educação, de procurar, primeiro, resgatar e

responder à formação integral do ser humano; segundo, responder às necessidades da era da

técnica e da tecnologia e, por último, possibilitar, através da vivência da prática pedagógica, a

redescoberta da noção de sabedoria.

4.1.1 Resgatar e responder à formação integral do ser humano

Durante as três primeiras décadas do século vinte, na Europa, uma imagem do homem

bem definida orientou pais e mestres na tarefa de educar as novas gerações. A concepção

antropológica acerca do humano, que apontava para um desenvolvimento paulatino, seguro e

linear de sua formação, foi fruto de uma fé nas boas energias criadoras de um homem que se

desenvolvia contínua e ininterruptamente para melhor. Em virtude dos progressos técnicos,

tecnológicos e científicos, alcançados através dos processos de aperfeiçoamento

desenvolvidos ao longo da Revolução Industrial, falou-se sobre a evolução do tempo e das

condições de vida, do cuidado com o corpo e sua higiene, do desenvolvimento psíquico,

enquanto fator de impulso para o aperfeiçoamento humano e prenúncio do surgimento de uma

nova e melhor civilização.

Com base nestas “certezas”, houve um investimento na formação da criança e na

preservação da juventude, através de uma educação que visava despertar suas qualidades

vitais e garantir a prevenção e solução dos problemas individuais e sociais353 da presente era.

A tendência pela busca originária da essência do homem, atrelada à crença de que estava

surgindo uma nova e melhor sociedade, segundo Bollnow,

353 Foi nesta época que Maria Montessori citou a ‘profecia’ de Ellen Key, quando afirmou que este seria o

‘século da criança’. Ela disse: “não é a criança física, mas, a psíquica, que poderá dar ao aperfeiçoamento humano um impulso dominante e poderoso. É o espírito da criança que poderá determinar qual será o verdadeiro progresso humano e, talvez, o início de uma nova civilização [...] Este ponto de vista poderá transformar-se no alicerce de uma nova ciência que se dedique a pesquisar a infância, cuja influência poderá fazer-se sentir em toda a vida social do homem” (MONTESSORI, 1987, p. 15-16).

Page 295: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

293

[...] acabou dominando o movimento pedagógico da década de vinte. Este movimento estava profundamente compenetrado da confiança no bom cerne originário no homem, cerne esse já existente. Restava só a tarefa de libertá-lo. Essa confiança era, ao mesmo tempo, a fé nas forças interiores do homem, forças que se desenvolvem a partir do seu próprio centro, segundo uma lei todo peculiar (BOLLNOW, 1971, p. 15-16).

No centro desta compreensão pedagógica, estava a concepção Essencialista de

homem, onde o professor partia de uma definição pré-concebida sobre o que constituía o

humano e o que se queria fazer dele e/ou formar nele uma ideia universal sobre o que era o

homem e o modo como devia ser sua educação.

“Neste sentido a tarefa da educação consiste em atuar da mesma maneira em todos”

(SUCHODOLSKI, 2002, p. 15), visando um mesmo fim. O objetivo era procurar estabelecer,

a partir de um único modelo ou padrão técnico-educacional, uma prática que pudesse não só

proteger as crianças das más influências, como corrigir a juventude das ideias e

comportamentos que desorientam a vida humana e comprometem o bem-estar social.

Assim como em outras épocas354, o fim e o modo de pensar a educação foram

determinados pela concepção que os homens tinham deles mesmos e de seus ideais

formativos. No caso da Europa, todo ideário pedagógico acabou desmoronando nos anos que

mediaram e sucederam as duas Grandes Guerras. A visão confiante que se tinha no homem e

o otimismo que se projetou com relação ao futuro, por meio da técnica e da educação,

acabaram perdendo vigor e vitalidade. Na base deste arrefecimento antropológico e

pedagógico encontraram-se, conforme Bollnow, pelo menos dois fatores:

De um lado, o mundo da técnica moderna, mais realista, mais duro, com seu clima e a experiência do trabalho revelou os limites de um desenvolvimento pleno e global das forças do homem [...] Do outro lado, a verificação e o conhecimento dos condicionamentos hereditários arrefeceram o entusiasmo pela educação, reduzindo seu ideal a proporções mais modestas (BOLLNOW, 1971, p. 17).

É a partir desta dura realidade que Gabriel Marcel (1940, 1951b, 1956, 2003) chama a

atenção para a necessidade de pensar sobre: o que é o homem? Quem sou eu? Será que a

visão que temos do humano é suficiente para assimilar suas experiências pessoais e

354 Já no século VII a.C., os gregos concebiam a educação baseada na ideia de excelência humana. É a partir

desta perspectiva, que atenienses e espartanos vão determinar o modo e o fim da educação. Segundo o historiador Franco Cambi, “Esparta e Atenas deram vida a dois ideais de educação: um baseado no estatismo; outro, na concepção da Paidéia, de formação livre e nutrida de experiências diversas, sociais, mas, também, culturais e antropológicas” (CAMBI, 1999, p. 82).

Page 296: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

294

existenciais? Diante da cultura da barbárie, é possível conceber uma visão fechada e definida

do homem? A formação do homem deve reduzir-se apenas à dimensão técnico-racional?

Na base destes questionamentos encontra-se a compreensão de que “o espírito de

abstração é o fator da guerra” (MARCEL, 1951b, p. 136). No âmago desta afirmação,

constata-se uma clara denúncia acerca da perda de uma visão mais ampla e integral do próprio

ser humano, por parte da sociedade industrial; num processo de esvaziamento do Ser, que não

se reduz a simples palavras, conceitos ou expressões. Antes, se expressa e encarna-se através

da determinação de costumes e rotinas, procedimentos e classificações institucionais,

condicionamentos dos pensamentos e das vontades, da tecnocratização e hibridização dela

derivadas.

De acordo com Marcel, a civilização industrial perdeu a consciência do que é o

humano. “Só conhece algumas dimensões do indivíduo; o homem integral, individualmente

considerado, não existe para ela” (1951b, p. 207). Na sociedade da técnica o homem está

limitado à dimensão técnico-racional. Submisso às imposições dos processos de

funcionalização, o homem passa a viver como uma máquina, de modo condicionante e

alienado de si, numa situação onde seu valor é posto em dúvida, à medida que a ideia de

pessoa é utilizada, muitas vezes, superficialmente e, em proveito de causas, por homens

movidos pela tendência à exploração, pelo desejo de opressão e a favor de grupos e interesses

econômicos e sócio-ideológicos.

Na perda da visão multidimensional do ser humano há sempre uma compreensão

limitada daquilo que constitui sua integralidade; do modo pelo qual o indivíduo se mostra

redutível a uma concepção determinista, daquilo que o homem é e poderá vir a ser. Na

intenção de acompanhar o progresso da indústria, a formação do Ser foi pensada, durante

muitos anos, na perspectiva das vitalidades corporal e racional-psicológica (ZARAGUETA,

1943). Com o foco nestas duas dimensões, acreditou-se que era possível garantir a plenitude

do desenvolvimento da humanidade, seus respectivos progressos355 e equilíbrio social.

Na ausência de uma visão integral do ser humano, o indivíduo é tomado na

perspectiva de um resíduo desvitalizado, que consiste no ato pelo qual os aviltadores “tentam

destruir em um ser a consciência, ilusória ou não, que esse ser tem de começo sobre o seu

355 De acordo com Zaragueta (1943), a ideia de progresso, associada ao princípio de um ideal realizável, é que

vai incentivar a criação das técnicas pedagógicas, como um conjunto de normas e regras que visam garantir o pleno desenvolvimento do aluno e o próprio modo de se pensar e fazer a educação. Este é um processo onde se exige a busca por um conhecimento prévio do aluno, determinações prévias da atuação pedagógica e a ordem das atividades e exercícios a serem aplicados. Essas exigências constituem uma espécie de diretivismo pedagógico fruto, de uma visão fechada, hermética e determinista do ser humano e de seu processo formativo.

Page 297: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

295

próprio valor” (MARCEL, 1951b, p. 43). Ao enfatizar uma visão mecânica da vida, o homem

passou a centrar-se, cada vez mais, nas dimensões racional e físico-laboral de sua própria

existência. Na abstração de si, o Ser perde a noção das outras dimensões, que compõem sua

realidade imanente e aliena-se de seu próprio fulcro espiritual e transcendente.

Pode dizer-se que hoje um ser perde tanto mais consciência da sua realidade íntima e profunda quanto mais depende de todas as mecânicas que lhe asseguram pelo seu funcionamento uma vida material tolerável. Pondo a dizer que o seu centro de gravidade e como a sua base de equilíbrio passam a ser-lhe exteriores; que ele se situa progressivamente nas coisas, nos aparelhos de que depende para existir. Não seria excessivo dizer que quanto mais o homem em geral consegue o domínio da natureza, mais o homem em particular se torna escravo da mesma conquista [...] Importa saber é que o homem da técnica, tendo perdido no sentido mais profundo a consciência de si, isto é, antes de tudo, das regulações transcendentes que lhe permitem referenciar o seu proceder ou intenções, está cada vez mais desarmado perante as forças destruidoras desencadeadas em torno e perante as cumplicidades que elas encontram no fundo de si mesmo (MARCEL, 1951b, p. 51-52, 67-68).

Ao falar sobre a integralidade do Ser, Gabriel Marcel (1951a, 1951b) não a

compreende como sinônimo das concepções de plenitude e totalidade356. A categoria da

integralidade compreende uma visão ampla e abrangente do homem. Seu significado não

comporta os sentidos de esgotabilidade, completude, acabamento e perfeição das disposições

e partes constituintes do ser humano.

De acordo com a visão antropológica marceliana, a noção de integralidade do Ser

envolve: a dimensão físico-corporal, por conceber o homem enquanto ser encarnado; a

dimensão sensorial, quando possibilita o desvelar da existência, através da mediação do corpo

e das relações sentidas; a dimensão cognitiva, por onde se testemunha que o mistério do Ser

pode ser apreendido, mas nunca esgotado totalmente; a dimensão emocional, por

compreender que a existência se afirma na relação intersubjetiva do eu e do tu; e, por último,

a dimensão espiritual357, que inclui o processo de busca pela unificação da alma através do

agir coerente, da possibilidade da transcendência e do encontro com o Absoluto.

356 Cf. MS, p. 240; “En esta perspectiva, cumplir no es en propiedad acabar, y acabar no significa terminar ni

cerrarse. No hemos visto que la plenitud no se confunde con la totalidad? Pero la perfección, justamente, está siempre en peligro de ser interpretada como un todo cerrado sobre si mismo. De buen grado diria que a este respecto la idea de perfección designa en cierto modo un callejón sin salida en la cual los filósofos del passado siempre sintieron la tentación de internarse, y esta tentación subsiste en cierta medida para os teólogos cuando no están en guardia contra las asechanzas de la figuración abstracta”.

357 Conforme as concepções e visão de Röhr, “destas dimensões a mais difícil de identificar é a quinta, a dimensão espiritual. Não se confunde essa dimensão com a religiosa, que, em parte, pode incluir a espiritual, mas que contém algumas características, como as da revelação, como intervenção direta de Deus e de um tipo

Page 298: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

296

É através da interface entre estas dimensões que Marcel problematiza o conceito de

existência. Esta é uma compreensão na qual o Ser, ao tomar consciência de si, pode afirmar:

“eu existo e existe o mundo com o qual estou ligado por meio das relações sentidos. Não

existe o problema da minha existência e da do mundo, mas sim a fé imediata de minha

existência e do mundo” (SCIACCA, 1966b, p. 281). A partir dos pressupostos da reflexão

ontológica sobre o Ser e o mundo, o homem não só passa a conhecer a natureza desta

articulação, como torna-se capaz de desvelar os liames de sua experiência com e através do

vivido.

Neste sentido, a compreensão multidimensional da realidade apresenta-se como um

chamado à reflexão sobre as possibilidades do homem, sobre o seu poder de transcender a si

mesmo e à sua realidade; como um modo de apreensão pelo qual o Ser ultrapassa o campo do

problema, próprio do pensamento técnico-objetivista, e penetra os âmbitos do mistério e do

metaproblemático. Este é o momento em que o homem percebe que, através da existência, o

Ser poderá aproximar-se da verdade de si concretamente; é o Ser autêntico, com o qual estou

em relação de presença e participação no mundo (MARCEL, 1951a).

A crítica à perda da noção de integralidade, seguida do apelo sobre a exigência de

procurarmos resgatá-la, não é uma tarefa fácil de realizar, compreende Marcel (1951b, 1955).

A constatação de que, atrelado ao desenvolvimento das técnicas, existe um conjunto de

interesses e procedimentos aviltantes que pretendem a degradação do humano, exige que

professores e alunos procurem construir uma visão pedagógico-antropológica, cuja

consistência transcenda aos resultados dos projetos formativos que postulam sua própria

redução. É uma visão do homem onde se busca não só o aprimoramento de suas habilidades,

como a promoção de sua emancipação e humanização possível.

Ao conceber a ontologia no âmbito de sua vivência concreta e sob o prisma de um

espiral hermenêutico, Gabriel Marcel nos convida a olhar o ser humano para além das cópias

e dos modelos abstratos, concebidos como se o homem fosse uma máquina naturalizada ou

um simples artefato biológico. Por compreender que o Ser é realidade e projeto, encarnação e

mistério, concretude e itinerância, presença e participação, o teórico nos chama atenção para a

de organização social, que, dessa forma, são estranhas ou não necessárias à dimensão espiritual. Podemos nos aproximar da dimensão espiritual, identificando uma insuficiência das outras dimensões, em relação ao homem, nas suas possibilidades humanas. Nesse sentido, podemos chamar essas dimensões de imanentes e a dimensão espiritual, de transcendente. Das dimensões imanentes, temos evidências constantes. A dimensão espiritual transcende a realidade empiricamente verificável; e nem por isso deixa de ser realidade, para quem se volta para ela e se compromete com ela. Podemos viver nas dimensões imanentes sem nos comprometermos com nenhum aspecto delas. Entramos na dimensão espiritual, no momento em que nos identificamos com algo, em que sentimos que isso se torna apelo incondicional para nós. Incluem-se, desta forma, todos os valores éticos e metafísicos na dimensão espiritual” (RÖHR, 2013, p. 26).

Page 299: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

297

verdade de que o homem não é só aquilo que faz; mas, é também, aquilo que pensa que não

foi e pode vir a ser, ainda. O homem é projeto e realização encarnados, alguém que se

presentifica através dos modos de Ser e viver a realidade do e no mundo.

A elaboração dialógico-filosófica acerca do mistério que é o homem, conduzida sob a

inspiração das problematizações apresentadas por Gabriel Marcel, abre-nos amplos horizontes

sobre as exigências que envolvem a reflexão, acerca da necessidade de procurarmos resgatar e

responder à formação integral do ser humano, na era da técnica e da tecnologia. Neste

sentido, podemos vislumbrar os desdobramentos de um tríplice direcionamento, que passa

pelo âmbito da exigência ontológica, pelo viés do papel epistemológico e pela busca

axiológica das metas educacionais, que envolvem transversalmente a compreensão de uma

educação, que se pretende comprometida com uma visão integral do ser humano.

A exigência ontológica pressupõe “que há no Ser uma verdade inesgotável”

(MARCEL, 1951a, p. 228). Pressupõe, ainda, a crença de que o homem não pode afirmar-se

como se fosse qualquer coisa, ou simples predicado de uma determinada condição de vida. A

exigência ontológica pretende levar o homem a ver-se para além das ideias de função, de

objeto e de coisa. Sua ênfase repousa na intenção de ajudar o homem a superar as abordagens

essencialistas, naturalistas e idealistas, que pretendem a sua determinação, redução,

condicionamento e alienação de si.

A exigência é mais que mera necessidade e/ou desejo. É busca pela construção de uma

visão antropológica, na qual é possível assimilar novas categorias e/ou dimensões

ontológicas, que consigam dialogar com as emergentes e duras experiências do homem no

âmbito de uma realidade que se mostra, cada vez mais, conduzida pelos novos e influentes

paradigmas produzidos pelos aparatos técnicos e tecnológicos na contemporaneidade.

O propósito das discussões em torno do sentido e da experiência da exigência

ontológica é nos demover da ideia de que o homem é um Ser programado ou passível de

robotização; alguém cuja existência já está natural e essencialmente pronta, acabada e

determinada. Movido pela exigência ontológica, o homem compreende que não é uma peça

ou instrumento de trabalho, que nasce pronto e que vai se gastando (MARCEL, 2003). O

homem é um Ser que nasce não pronto, que vai se fazendo e se constituindo para além de tudo

que, no limite, pretenda potencializar sua subjugação, quer nos domínios dos homens, quer

nos ditames e limites das máquinas.

A compreensão dos pressupostos marcelianos, sobre a exigência ontológica, comporta,

em si mesma, uma referência ao campo intelectual e à dimensão da ação. No campo

intelectual, encontramos uma argúcia de inteligência, um modo de desvelamento cognitivo,

Page 300: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

298

capaz não só de elaborar conceitos, ideias e teses sobre o humano, mas que se articula, através

das relações, leituras e releituras das linhas e entrelinhas de sua própria realidade concreta. No

ato de desvelar a si mesmo e seu mundo, o homem afirma a dimensão da ação (MARCEL,

1987). Corporifica-se, cognosciva e ativamente, mediante a busca do aprimoramento e

aprofundamento de sua humanidade possível.

Na reflexão ontológica, o Ser se sente comprometido em procurar corresponder não só

ao que sabe, como em transformar e/ou ampliar aquilo que já conhece. O homem se depara

com a tarefa epistemológica. Do ponto de vista epistemológico, a visão multidimensional do

homem implica em procurar analisar, questionar, criticar, problematizar e ressignificar as

concepções antropológicas, que foram construídas pela sociedade da técnica e reelaboradas na

e pela era da tecnologia (HANS, 1971).

A visão de que o homem é um ser da técnica, é fruto do projeto positivista da

Revolução Industrial. Ancorada nos fundamentos da eficácia e da eficiência, a técnica não só

possibilitou o domínio do mundo e da natureza, como impôs uma nova mentalidade

explicativa sobre o modo como o homem deve conceber sua vida e seu processo de formação.

A racionalidade da técnica desfigurou o humano à medida que o reduziu à dimensão

da coisa, que o condicionou aos processos de produção em série, que afrontou sua dignidade e

o alienou de si mesmo e de seu mundo. Assim, no que concerne à tarefa epistemológica, a

visão integral do ser humano exige que a pensemos a partir do próprio homem, através da

busca por novas categorias pedagógico-explicativas, que consigam nos ajudar, tanto a

desmascarar as ideologias propostas pelas diretrizes da tecnocracia e da funcionalidade, como

nos aproximar, mais adequadamente, do mistério, que é o homem, e dos aspectos abrangentes

de sua existência.

À tarefa epistemológica cabe oxigenar o fazer docente para que a educação “não caia a

maior parte de suas matérias num resultado que é nulo e sem sentido” (MARCEL, 1951a, p.

45). O fazer docente não pode ser servo das diretrizes epistemológicas; antes, esta relação

deve dar-se pelo viés dialógico entre suas especificidades, suas complementaridades e seus

aprofundamentos. À produção epistêmica não cabe equacionar a fenomenalidade humana; seu

papel é lançar luz sobre as novas possibilidades do homem, que são apresentadas pelo fazer

científico. Neste sentido,

[...] a questão que se coloca é a de saber se essas ciências, ao explicitar as leis que regem o fenômeno educacional, viabilizando as técnicas bastantes para a condução eficaz da prática educacional, não esgotariam a possibilidade de conhecimento da educação. Disso decorre a relevância que

Page 301: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

299

a teoria científica adquire para o conhecimento do processo educacional e para a sustentação técnica das práticas pedagógicas (SEVERINO et al., 2011, p. 27-28).

A formação integral do Ser não pode deixar-se “contaminar pela ditadura da eficiência

que reina na sociedade, valorizando, apenas, aquilo que obtém resultado imediato e

mensurável” (RÖHR, 2013, p. 158). A meta axiológica da educação não deve ser a de propor

modelos ou formas estanques de projeção comportamental. Por meta axiológica358, não se

entende a determinação de fins, ou afirmação do para quê do processo educativo. A meta

axiológica, apresentada aqui, compreende a busca valorativa daquilo que é próprio do humano

e específico de sua consciência, enquanto processo de amadurecimento e humanização do Ser.

Na meta axiológica propõe-se a articulação entre a dignidade humana e a formação

ética (MARCEL, 1968b), o encontro entre aquilo que eu sou, a visão de mundo que possuo e

o modo como estabeleço as minhas relações intra e interpessoais. A indissociabilidade entre a

dignidade humana e a ética confirma-se no pensamento de Marcel, nas obras “Journal

Métaphysique” (1927), “Homo Viator” (2005), “Ser y Tener” (2003), “Los Hombres Contra

Lo Humano” (1951b) e o “L’homme Problématique” (1955). Este é um conjunto de

produções no qual ele se opõe a tudo aquilo que ameaça o humano e sua existência concreta,

quando sua intenção é mostrar que há algo de precioso no humano que precisa ser preservado:

“a honra de ser homem” (MARCEL, 1951b, p. 225).

A meta axiológica da educação se assenta numa dimensão ontológica. Implica que a

ação ética do educador, com relação ao educando, no decorrer da sua formação, proceda de

modo a garantir que todo seu agir, em si mesmo, se mostre a favor do humano e contra todo e

qualquer tipo de abstração e/ou atitude aviltante. “A busca por uma postura ética, neste

sentido, habilita o educador a estimular uma atitude correspondente no educando” (RÖHR,

2013, p. 212). Esta atitude pode contribuir para levar o educando à autoavaliação, a desejar

sair dos labirintos falsificadores de suas próprias condutas, a ajudar o discente na busca

gradativa e progressiva do descobrimento de seu próprio caminho existencial, a confrontá-lo

quanto à necessidade de construir um agir coerente e comprometedor com sua própria

358 Cf. IF, p. 116-117: “Como he tenido ocasión de decir en outro lugar, el problema fundamental es aquí

axiológico. Pero no se trata de volver a sacar a relucir la polvorienta filosofía de los valores que, sobre todo en Alemania, ha demostrado suficientemente su impotencia debido a sus presupuestos idelistas, sobre los cuales la crítica ha hecho ahora justicia. Es el enraizamiento de los valores en lo concreto, y digámoslo, en la vida lo que vamos a afirmar, y esta afirmación no debe tener un caráter puramente teórico, sino que, por el contrario, debe especificarse al máximum a la luz de los casos concretos, cujo caráter trágico e incluso angustioso no deja de mostrarnos la experiencia”.

Page 302: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

300

formação. Na meta axiológica, o que se busca é contribuir para que o aluno alcance a trilha da

disponibilidade com relação ao outro, independente de seu credo religioso, status social,

função técnico-laboral, opção partidária e/ou visão de mundo.

Movido por estas inquietações, em torno da transformação da imagem do homem,

Gabriel Marcel (1951a) compreende que a Filosofia/Educação precisa contemplar novas

abordagens sobre o humano e o modo de conceber sua formação. Assim, ele questiona o

pressuposto de que toda formação deve se pautar apenas num “atuar técnico”, que pretende

“dar” ao homem uma certa estrutura permanente e estável de desenvolvimento, através da

simples transmissão de conhecimentos e aperfeiçoamento de suas habilidades.

Para Marcel, a pressuposição antropológica de que a formação humana fundamenta-se

no princípio da técnica e da funcionalidade é negada pela ontologia do homem concreto. Com

base no olhar existencial, quando afirma que a vida humana acontece dentro e/ou a partir de

processos descontínuos e instáveis, este teórico fala da postura questionadora da Filosofia da

Existência sobre o homem, focando sua imagem existencialista, na qual não há nenhuma

estabilidade; e passa a questionar: “não estaria no fato do homem neste caso empreender

transcender a sua condição e as limitações inerentes?” (MARCEL, 1951b, p. 50-51).

Ao assimilar novas categorias que consigam dialogar com as duras experiências do

homem, Marcel considera como pertinente a análise e a problematização das concepções

fundamentais que têm orientado a essência dos processos formativos da educação e da

capacitação profissional. Assim, seu objetivo é demonstrar que a formação do homem não só

acontece mediante as experiências produzidas pelo saber técnico-científico, mas se dá,

também, por meio de formas e processos contínuos e descontínuos que comportam a própria

itinerância do Ser, a busca por uma formação integral do humano e a compreensão do

mistério que o afeta e o envolve.

4.1.2 Responder às necessidades da era da técnica e da tecnologia

Os desenvolvimentos da técnica e da tecnologia introduziram, através dos seus

avanços, uma acelerada e vertiginosa acumulação de materiais, instrumentos e

conhecimentos. O processo de aperfeiçoamento da técnica e a criação de novos mecanismos

tecnológicos subverteram a ordem de valor e das relações entre o humano e a máquina, a

informação e a comunicação, o Ser e o ter (MARCEL, 2003). Os progressos técnicos e

tecnológicos, portanto, se constituem como a base de construção de uma mentalidade

Page 303: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

301

específica, onde a concepção de homem se confunde com as noções de organização,

burocratização, função e produtividade.

“A vitória do industrialismo é a mais profunda ruptura com o passado, autêntica ‘nova

barbárie’, onde o interesse dos homens se transladou dos valores da vida para os valores

pecuniários” (VITA apud ORTEGA Y GASSET, 1963). A tecnização substituiu a

subjetividade pela uniformidade; o elemento orgânico, pelo aparato mecânico-organizado e

instaurou o culto dos valores instrumentais e utilitaristas. Neste sentido, “vemos que os

progressos da técnica, ‘in concreto’, acentuam a redução progressiva da diversidade humana,

um nivelamento extraordinário das sociedades, do modo de viver” (MARCEL, 1951b, p.

198).

Esta redução progressiva da diversidade humana se deu em virtude das descobertas

tecnocientíficas. Ancorado no paradigma cibernético, o homem depositou, nos meios de

comunicação de massa e nas máquinas, a crença no desenvolvimento das sociedades e no

aperfeiçoamento das civilizações. A subjugação da técnica e da ciência aos interesses do

Estado acabou por difundir a crescente necessidade de unificação e uniformização dos

comportamentos e modos de existências (JASPERS, 1933). No interesse de promover a

aproximação, desencadeou-se a luta pela afirmação do individualismo, da competitividade e

do particularismo. Conforme Gabriel Marcel,

Não vemos nós, tanto na escala mundial como no nível da existência nacional, que o desenvolvimento das comunicações leva a uma uniformização crescente do modo de existência? Quer dizer que ele se realiza por toda a parte à custa da individualidade, que tende progressivamente a desaparecer; trata-se tanto de crenças, costumes, tradições, como do vestuário, práticas do artesanato, etc. Vendo superficialmente a psicologia e a história humanas, poderia julgar-se que esta eliminação do pitoresco é o preço inevitável de um bem, pois essa uniformização é já um começo de unificação. A experiência contemporânea permite afirmar, pelo contrário, que a unificação, longe de encaminhar os homens para uma certa assimilação concreta do universal, parece tender a desenvolver-lhes particularismos cada vez mais agressivos e a lançá-los uns contra os outros (1951b, p. 77-78).

Os meios de comunicação de massa não só promoveram a aproximação entre os seres

humanos, como serviram, também, para intensificar, ainda mais, as fraturas políticas e sócio-

existenciais entre muitas culturas, pessoas e povos. Apesar das múltiplas possibilidades que o

desenvolvimento científico-tecnológico proporcionou, devemos reconhecer que o ideal de

Page 304: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

302

progresso não se consumou, pois os acidentes359 e os conflitos étnicos, religiosos e políticos

irrompem nas mesmas épocas, espaços e realidades, onde as tecnologias e as relações dos

ciberespaços se afirmam e se consolidam como expressões do progresso e dos novos modos

de conceber a vida e as novas conexões no mundo globalizado. Nas palavras de Paul Virilio

(2005), todo progresso tecnocientífico traz consigo as faces, tanto da invenção, como da

desvitalização, desorbitação e despersonalização do mundo.

Na despersonalização do Ser e na sublimação do fulcro espiritual da vida, o homem se

reduz, progressivamente, ao nível da coisa e da função. Na ênfase em torno do fortalecimento

dos processos que pretendiam a regularidade da vivência humana, a cultura da técnica excluiu

a novidade, a espontaneidade e as possibilidades ressignificantes da própria existência do Ser.

Munido pelo princípio da ação mecânica, o homem buscou a uniformização dos modos de

pensar, crer, sentir, desejar e viver das pessoas. Na base, estabeleceu-se a antinomia homem-

técnica, enfatizou-se o automatismo e advogou-se a favor do predomínio dos meios científico-

tecnológicos, como instrumentos de disciplina, educação e sentido último da vida.

Sobre a educação, Karl Jaspers afirma que “esta só decai quando os homens que em

sua maturidade devem atribuir-se a responsabilidade se decompõem na substância

historicamente recebida” (JASPERS, 1933, p. 102). De acordo com este filósofo, por um

lado, o problema do processo educativo encontra-se, basicamente, na tentativa de reduzir,

intemporalmente, a aprendizagem à faculdade técnica e à aquisição de conhecimentos

pretensamente ideológicos. Por outra parte, “[...] parece característico a nossa situação a

dissolução de um interesse substancial por uma experiência docente vazia e interminável, de

uma decomposição em possibilidades indiferentes, de um falso imediatismo do inefável”

(JASPERS, 1933, p. 102). Tratamos de uma proposta educativa onde se fazem experimentos e

se alteram conteúdos, propósitos e métodos de ensino, de acordo com as metas e os

resultados.

Na concepção de Gabriel Marcel, “vivemos num mundo que parece construído sobre a

recusa de refletir” (1951b, p. 117), num mundo governado pela máquina, onde o repertório

das ações mecânicas pretende, na adaptação do sujeito ao meio, subordinar a existência

humana a uma atmosfera antiespiritual de degradação do Ser, por meio da manipulação das

consciências e da educação das massas. Deste modo

359 Paul Virilio mostra na obra L΄Accident Originel (2005), que na base de toda descoberta e invenção científica

existe o risco iminente do acidente e seus reveses. Uma dupla face da possibilidade inventiva testemunhada pela experiência do Titanic em 1912 e da Central nuclear de Chernobyl em 1986. Estes exemplos são apenas alguns acidentes que, emblematicamente, constituem as faces do ideal do progresso científico-tecnológico.

Page 305: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

303

Temos de reconhecer que quanto mais as técnicas progridem mais a reflexão recua – e o fato não me parece fortuito. Não digo que a conexão seja verdadeiramente fatal; mas o que parece certo é que o progresso e especialmente a difusão externa das técnicas tendem a criar uma atmosfera espiritual, ou melhor, anti-espiritual, minimamente favorável ao exercício da reflexão [...] (MARCEL, 1951b, p. 11-12).

As reflexões marcelianas sobre a educação das massas, numa era da técnica e da

tecnologia, tocam, fundamentalmente, nos aspectos que envolvem a formação do especialista,

o sentido do ensinar e do aprender e a finalidade dos exames e da própria educação. Sobre a

formação da e para a especialização de uma determinada área, Marcel compreende que, assim

como a educação não pode reduzir-se à capacitação profissional, o Ser humano não deve

conformar-se aos níveis da especialização, da função e da instrumentalização.

Na obra Aproximacion al Misterio del Ser: posición y aproximaciones concretas al

misterio ontológico, Gabriel Marcel afirma que “a época contemporânea se caracteriza por

algo que poderia chamar-se, sem dúvida, a desorbitação da ideia de função” (MARCEL,

1987, p. 23), quando o indivíduo tem sido tratado, diante de si mesmo e da sociedade, como

uma simples peça da grande engrenagem, que é o mundo. Neste sentido, o teórico nos alerta

sobre o perigo do humano sucumbir ao império da técnica e aos mecanismos determinantes da

indústria e dos processos de produção em série. Voltado para a concepção de homem,

difundida no período da Revolução Industrial, Marcel nos descreve o modo como a condição

existencial do Ser foi levada à noção de função.

As técnicas, diz Marcel, possuem “[...] um valor positivo à medida que se colocam

para além da utilidade pura e simples” (1955, p. 27). Na base, elas “não são más em si

mesmas” (MARCEL, 1951b, p. 238), porque representam a expressão da capacidade criativa,

inventiva e transformadora do ser humano. Implica que o desenvolvimento humano não pode

limitar-se à superficialidade do mundo artificial dos processos de fabricação e produção de

mão de obra. As particularidades do fazer da máquina não podem se dissimular nas

especificidades da formação integral e espiritual do ser humano.

As ações do, para e sobre o humano devem ser, essencialmente, muito mais

susceptíveis de pureza, do que os modos de intervenção sobre as coisas e a própria realidade

em si. Neste sentido, “[...] devemos recordar que é impossível tratar de atuar sobre os homens,

ou mais exatamente, tratar de transpor nesse terreno os procedimentos aplicáveis as coisas,

sem cometer um abuso cujas conseqüências podem ser gravíssimas” (MARCEL, 1955, p. 29).

O valor positivo da formação técnica consiste em não tomá-la como se fosse um fim

em si mesma; em não esquecer que, atrelada às dimensões metafísica e antropológica, a

Page 306: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

304

técnica não poderá se transformar no eixo fundante no qual deve se constituir toda formação

do homem e seu desenvolvimento. Este entendimento, do ponto de vista educacional, implica

no reconhecimento de que a educação para a técnica e a tecnologia não pode acontecer

dissociada do princípio da responsabilidade e dos pressupostos éticos, que pretendem a

preservação da dignidade humana e da vida em geral.

Na perspectiva de Marcel (1951b), o objetivo da educação não é primeiro formar

cientistas, inventores, produtores e/ou consumidores. Antes, seu papel é promover a

humanização e a transcendência do Ser; é contribuir para que o homem se desenvolva em

todas as suas dimensões. Assim como o homem não se define no ato da sua concepção,

também não pode achar-se concluído ao término dos processos de escolarização e

especialização técnica. Ao acentuar a dimensão humana, como fulcro estruturante do processo

educacional, Neidson Rodrigues (2001) alerta-nos, tanto sobre o perigo de atentarmos contra

a integridade do ser humano, como em limitarmos sua formação a um único fragmento e/ou

área de sua própria constituição.

O processo educativo não pode ser fragmentado ou hierarquizado, nem qualquer de

suas partes pode considerar-se como mais essencial do que as outras. Quanto mais se tratar da

formação do humano, menos o homem deve limitar as áreas de especificação de domínio do

mundo e de si. Poder-se-ia dizer que a educação na era da técnica e da tecnologia precisa

considerar “o axioma socrático que implica a ideia de uma certa identidade entre o

cognoscedor e o cognoscido” (MARCEL, 1955, p. 41-42). Precisa considerar, ainda, que

docentes e discentes necessitam reconhecer que a formação tecnocientífica não representa o

fim último de toda educação; que a educação numa dimensão técnica, ao articular a visão

pragmática e a concepção utilitarista do processo formativo, perde de vista o sentido humano

do ensinar e do que é aprender.

Diante da realidade de um mundo destroçado, Gabriel Marcel diz, na obra O Misterio

Del Ser (1951a), que, na educação, alunos e alunas têm convivido com um sistema

pedagógico marcado pelo signo do primado da coisa sobre o sujeito, do ter sobre o ser e da

representação sobre a verdade. A verdade autêntica do Ser limita-se ao âmbito de uma

verdade-coisa, cujo conteúdo, submisso aos ditames da racionalização técnica, passa a ser

assimilado pelos vieses da manipulação e da redutibilidade. Usando como exemplo a prática

de um determinado professor da disciplina de história, o teórico chama a atenção para o modo

como os fatos históricos são reduzidos ao autômato processo de assimilação de datas e

estratificações de épocas e acontecimentos.

Page 307: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

305

A generalização do fato histórico implica na abstração do Ser. A desvitalização do

humano, no âmbito das discussões históricas, contribui para levar “a educação a esvair-se em

verbalismo” (MARCEL, 1951b, p. 55). Culmina na degeneração das noções de indivíduo,

subjetividade, pessoa, liberdade, democracia e de gênero. Na subordinação do homem a fins

precisos e mecânico-material, tende-se a produzir, inevitavelmente, um estado de atomização,

onde o emprego destas categorias, em sua forma brutal, converte-se em slogans num mundo

em que sempre tendem a perder seu real e autêntico significado.

No esforço de educar, compromete-se o sentido do que é ensinar e aprender.

Construímos uma representação do aluno a partir “da imagem do recipiente que se oferece ao

espírito, porque na verdade há outra que surge com mais naturalidade mesmo: que é a do

disco” (MARCEL, 1951a, p. 30). Estas metáforas pretendem revelar uma determinada

concepção de aluno. Expressam a realidade de uma prática pedagógica, onde o discente é

visto como um recipiente, no qual o professor deposita seus conhecimentos e projeta sua

restrita visão de mundo. Na condição de uma esponja, cabe ao aluno apenas absorver os

conteúdos apresentados para depois expô-los, mecânica, objetiva e sistematicamente, através

dos processos classificatórios de avaliação. Fundamentado neste tipo de prática, “[...] é

absolutamente certo que para a maior parte das matérias o resultado seja vazio e nulo”

(MARCEL, 1951a, p. 45).

Na crise de sentido sobre o que ensinar e aprender, discute-se a natureza e a finalidade

dos exames e da própria educação. Sobre a complexidade do processo avaliativo, Marcel

(1951a, 1971) diz que a máxima mecanicista se apresenta de maneira deformante nos sistemas

asfixiantes de exames, provas e concursos, nos quais se debate nossa juventude; apresenta-se,

ainda, como um regime que tem contribuído para debilitar, ao estágio anêmico, o sentido

autêntico da vivência educativo-comunitária. Sobre as percepções despersonalizantes desse

processo, acrescenta o teórico?

[...] penso especialmente na evolução não só do ensino, senão da vida escolar mesma, cada vez mais carregada por exames cujos programas são muitas vezes estabelecidos num sentido inverso da sensatez. A seleção indispensável tende a fazer-se pelos caminhos mais artificiais, em muitos casos sem referência alguma as qualidades propriamente humanas que deveriam sem dúvida ser consideradas antes que nenhuma outra (MARCEL, 1955, p. 94).

Esta dilaceração sócio-educativa acontece à medida que reduzimos o aluno a uma

nota, número, conceito, código e/ou classificação. Neste processo, o discente é coisificado,

Page 308: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

306

abstraído da consciência de si e despersonalizado perante os outros homens, a comunidade

escolar e o mundo.

É a partir das constatações de Gabriel Marcel, a respeito das fragilidades pedagógicas

que envolvem a educação no seu tempo, e diante das inquietações e das exigências humano-

formativas da era da técnica e da tecnologia, prenunciadas por suas reflexões, que nos

propomos a questionar: de que maneira as novas tecnologias podem contribuir para o

fortalecimento da prática pedagógica, face à realidade de um mundo em crise? Qual o sentido

educativo dos meios de comunicação? Quais são os desafios do ensinar e educar numa época

de progressos científicos e conquistas técnicas?

Sobre a importância que as novas tecnologias representam para o fortalecimento da

prática pedagógica, Marcel compreende que as mesmas poderão contribuir para a construção

de uma visão de mundo ampla, aberta, plural, consistente, reflexiva, crítica e humana. Ao

falar sobre a noção de liberdade, o teórico contrapõe esta visão de mundo com as perspectivas

herméticas das posturas religiosas fundamentalistas e político-ideológicas, dos anos que

mediaram e sucederam as duas grandes Guerras Mundiais (MARCEL, 1961, 1971). Ele

critica a maneira como as técnicas de aviltamento são usadas na intenção de promover a

abstração da consciência que o homem tem de si, a cultura da barbárie e o modo como, em

seus artifícios, essas técnicas pretendem fazer o indivíduo perder contato consigo mesmo, pô-

lo fora de si e reduzi-lo, progressivamente, ao nível da coisa e do objeto.

Diante da cultura de massa, precisamos reconhecer “[...] que não pertencemos ao

mundo das coisas a que querem assimilar-nos e onde querem encarcerar-nos” (MARCEL,

1951b, p. 23). Neste sentido, cabe às novas tecnologias contribuir para o fortalecimento do

processo de democratização dos saberes e para a interpretação da realidade; e colocar-se a

serviço da abertura e valorização de outras formas, métodos, conteúdos, espaços e

experiências de saberes e aprendizados. À educação para os media é preciso acrescentar a

reflexão crítica daquilo que se lê, ouve, vê, expõe, produz e compreende-se, através da

captação dos sentidos e dos múltiplos modos de apreensão de si, da relação com o outro e da

vivência do e no mundo.

Atrelada às leituras da palavra e do mundo, é preciso ressaltar a importância da

releitura da imagem, a problematização não só do conteúdo lido, dentro ou fora da sala de

aula, como da própria visão que se quer mostrar sobre os outros homens e as outras formas de

entender a vida e seus múltiplos processos de formação e afirmação humana, política,

religiosa, étnica e sócio-cultural. É necessário buscar compreender que a visibilidade do

conteúdo ideológico sempre esconde mais da realidade do que pretende mostrar. Entender que

Page 309: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

307

“[...] nunca é demais afirmar fortemente que a mentira, venha de onde vier, vai sempre

favorecer a servidão” (MARCEL, 1951b, p. 32).

A pressuposição de que a educação se faz a partir dos aspectos gnosiológicos,

epistemológicos, científicos e tecnológicos, precisa ser oxigenada pela dimensão

antropológica e pelo fulcro metafísico do ser humano (MARCEL, 2005). O conhecimento não

é simplesmente um produto, uma mercadoria, uma coisa. Conhecimento tem a ver com

relação, interação e envolvimento do homem com o mundo biológico, social, histórico e

espiritual de sua própria vivência e condição de ser encarnado. A produção do conhecimento

pressupõe presença, interface, comunhão, interpelação, partilha, correlação e distinção; algo

que deve possibilitar ao sujeito modificar-se, à medida que apreende as especificidades do

objeto da sua análise e seu modo de compreensão do real. No afã de descortinar os aspectos

da realidade, o homem descobre a si mesmo, desvela sua humanidade e ressignifica-se

existencialmente.

As novas tecnologias da comunicação precisam ser colocadas a serviço do

desenvolvimento integral do homem. Seu papel não é promover a barbárie, mas possibilitar o

encontro entre os homens. Sua força não pode estar a serviço da construção unidimensional da

vida, porque toda visão especializada, parcelada e situada, é limitada e pobre360. A capacidade

e o potencial das novas tecnologias precisam colocar-se à disposição do cultivo da

consciência multidimensional do Ser, da existência, das relações e do mundo. As novas

tecnologias devem deixar de ser usadas como concorrentes e/ou instrumentos promotores do

esvaziamento da prática pedagógica, para se transformarem num mecanismo auxiliador,

revigorante, oxigenador e possibilitador do processo educativo. Encontramos o sentido

educativo dos meios de comunicação, na descoberta e na aproximação do homem das novas

tecnologias, através da postura do sujeito diante da informação e da produção do

conhecimento.

Ensinar e educar numa época de progressos científicos e conquistas técnicas exige a

articulação entre a capacitação técnica e a formação humana do sujeito361. Educar não

360 Cf. DS, p. 33: “Hay que sostener, sin vacilar, que el medio técnico, considerado en sí mismo, es un medio tan

pobre, tan desnaturalizado como es posible serlo”. 361 Neidson Rodrigues falando sobre a relação entre cidadania, educação, formação humana e a construção do

sujeito ético comenta que “[...] a Educação, entendida como o processo de formação humana, atua sobre os meios para a reprodução da vida – e essa é sua dimensão mais visível e prática –, bem como coopera para estender a aptidão do homem para olhar, perceber e compreender as coisas, para se reconhecer na percepção do outro, constituir sua própria identidade, distinguir as semelhanças e diferenças entre si e o mundo das coisas, entre si e outros sujeitos. A Educação envolve todo esse instrumental de formas de percepção do mundo, de comunicação e de intercomunicação, de auto- conhecimento e de conhecimento das necessidades humanas. E propõe-se a prover as formas de superação dessas necessidades, sejam elas materiais ou psíquicas, de

Page 310: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

308

significa promover o ajustamento do educando a uma determinada função ou realidade. A

educação pressupõe a possibilidade de cada indivíduo desenvolver-se humana e socialmente,

de adquirir a capacidade de conduzir a si e ao seu próprio processo formativo. Para Marcel,

“só o indivíduo, ou mais exatamente, a pessoa é educável” (MARCEL, 1951b, p. 13). O

homem não se determina como tal no ato do seu nascimento; o Ser não é fruto de um processo

de fabricação. O ser humano é pura possibilidade, projeto e devir. A esse Ser possível, a

educação deve proporcionar a condição de deixar de ser o que é, para tornar-se aquilo que não

foi ainda.

É preciso considerar a importância do desenvolvimento da humanidade do Ser,

associado ao aperfeiçoamento da técnica; reconhecer a relação indissociável que há entre o

vital e o espiritual. Aos atos de desumanização, propõem-se: a valorização daquilo que é

próprio do humano, o resgate da consciência de si e das relações pessoais e transcendentes,

que lhe permitem referenciar seus procedimentos e intenções perante as forças aviltantes dos

processos que pretendem a abstração e o domínio do próprio homem.

A educação, entendida como processo de formação humana, não se limita apenas ao

aspecto externo da atuação e participação do homem no mundo. Ela compreende a busca do

sentido ontológico, da própria experiência concreta do Ser encarnado. A educação deve

procurar “[...] dar peso ontológico às realidades mais humanas e cotidianas que estão ao

alcance da mão de todos os homens” (FERNÁNDEZ apud MARCEL, 1987, p. 12).

Ao falar das influências e necessidades da era da técnica e da tecnologia sobre o

homem, não devemos ceder ao nível das generalidades, relativo aos seus malefícios

espirituais, nem colocar-nos a favor de uma emancipação geral das técnicas. Precisamos

antes, ressaltar o valor do primado do pensamento centrado no Ser, sobre as esferas do ter e

fazer técnicos. Na relação entre educação e desenvolvimento científico-tecnológico é preciso

articular as dimensões do saber, fazer, conviver, comunicar e ser. Implica em não aceitar a

concepção de progresso como a expressão “[...] de um realismo que exclui a noção concreta

do espírito” (MARCEL, 1927, p. 122). Implica, ainda, em compreender que todo progresso

expõe não só os limites da realidade na qual se inscreve, como anuncia o princípio de uma

nova possibilidade que lhe abrange, excede e transcende.

superação ou de reconhecimento de limites, de expansão do prazer e outras. Educar requer o preparo eficiente dos educandos para que se capacitem, intelectual e materialmente, para acionar, julgar e usufruir esse complexo de experiências com o mundo da vida” (RODRIGUES, 2001, p. 243).

Page 311: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

309

4.1.3 Possibilitar a redescoberta da noção de sabedoria

As eras da técnica e da tecnologia se assentam nos pressupostos da descoberta e da

cultura do novo. Submisso ao ciclo empírico da produção, distribuição e consumo, o homem

perdeu a noção de si e passou a existir conforme o caráter abstrato do meio industrial.

Conduzido por uma concepção objetiva de mundo, cedeu aos ditames da tendência “[...] que

procura identificar o valor de um ser com o rendimento que ele pode dar” (MARCEL, 1951b,

p. 156-157). O homem abriu mão dos testemunhos insignes da história e relegou ao status de

inferioridade pessoas, lugares, monumentos, modos e expressões da presença do Ser no

mundo. Em nome do desenvolvimento técnico, o homem também abriu mão de sua herança

espiritual.

No transcurso dos últimos tempos, todas as aquisições intelectuais da humanidade, todas as riquezas de pensamento, de conhecimentos e de valores, acumulados por séculos, me parecem intoleráveis, como um jogo irritante ou uma roupa muito pesada na qual me asfixio [...] Me digo: ‘Que a felicidade seria jogar-se ao Leteo, a fim de transbordar totalmente da alma e recordar de todas as religiões e todos os sistemas filosóficos, de todos os acontecimentos, de todas as artes, de toda a poesia! Que felicidade seria voltar da praia, desnudo, alegre e ligeiro, como o primeiro homem; estender e levantar aos céus os braços desnudos, conservando do passado uma só recordação; o do peso esmagador das roupas e a alegria de saber-se despojado dela! ...’ Quiçá nossa roupagem suntuosa não nos incomodou enquanto permanecia intacto e resplandecente, enquanto modelava nosso corpo. Porque desde que se desgarraram, como aconteceu ao longo destes anos, desde que estava em frangalhos, quisera arrancá-los definitivamente e jogá-los para longe de mim (GERSCHENSON apud MARCEL, 1955, p. 50).

As transformações destas perspectivas estão presentes e ligadas a um sentimento de

impaciência crescente. Pelo fato do homem tomar a noção de rendimento, como único critério

aceitável do valor humano, a realidade tem sido submetida aos domínios da economia e do

mercado. Com base neste critério, violenta-se a natureza para realizar um determinado plano

abstrato. O mundo é transformado num habitat roto (MARCEL, 1956); os monumentos

históricos são deplorados e usados como depósitos e/ou espaços comerciais; as relações

humanas tornam-se pragmáticas; a cultura, a filosofia e as produções artísticas são

desorbitadas e a educação se confunde, cada vez mais, com meros processos de escolarização

e transmissão de informações e conhecimentos. Mais ainda, observa Gabriel Marcel que

Page 312: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

310

[...] esta transformação das perspectivas está ligada, sem dúvida alguma, ao prestigio crescente que é atribuído a juventude como tal e ao descrédito ao envelhecimento. O ancião é visto, cada vez mais, como aquele que não serve mais pra nada e isto não é mais que um simples corolário do fato geral de que o rendimento é, cada vez mais, comumente considerado o único critério aceitável de valor humano. Na América do Sul, fico chocado extraordinariamente, com países como Peru e Colômbia, a desenvoltura brutal com a qual se demolem edifícios veneráveis para construir casas desprovidas de todo caráter e que não poderão ser jamais depositárias de nenhuma presença. São habitações e nada mais, destinadas a abrigar o maior número possível de indivíduos ou oficinas amontoadas umas sobre as outras (1956, p. 51-52).

Neste sentido, percebemos que a noção de herança espiritual se perde. Já não é mais

reconhecida como tal. A herança espiritual não se situa no âmbito das coisas; ela circunda a

dimensão espiritual. Ela diz respeito ao “[...] papel do espírito quando consiste em voltar a

partir de cada momento a remontar em particular signos de uma realidade significativa, que

deve sempre ser redescoberta, porque é em si refratária a toda possível transmissão” (1956, p.

52).

Por um lado, vemos a técnica e a tecnologia se constituírem no espectro de dominação

do mundo, e num conjunto de processos puramente assimiláveis. Por outro lado,

reconhecemos a necessidade de buscar construir uma mentalidade multidimensional, que

consiga dialogar com o homem e a realidade, a partir de uma concepção de conhecimento

capaz não somente de levá-lo a uma visão ampla do mundo, como de restituir-lhe seu valor e

sentido existencial. Esta mudança do homem preconiza a formação humana, como condição

indispensável para o desvelar e o transcender de si, algo que poderá se realizar pelo despertar

da noção de sabedoria.

A sabedoria, da qual nos fala Gabriel Marcel, não consiste num acúmulo de

conhecimentos técnicos ou aparatos científicos. A sabedoria corresponde ao agir coerente, à

busca pela unificação da alma, através da relação harmônica entre aquilo que sou, penso, sei e

faço. Implica em procurar demonstrar de que maneira a condição encarnada do Ser poderá

contribuir para levar o indivíduo a encontrar, através da compreensão multidimensional do

homem e da realidade, seu caráter ontológico e peso existencial. Marcel relaciona a condição

encarnada do Ser às noções de equilíbrio, de moderação e trato responsável com relação às

coisas da vida e às dimensões imanentes e transcendentes da existência humana. O teórico

ilustra esta ideia, dizendo:

É então o dentista quem fala: autorizo o tabaco e o álcool, porém com descrição, etc. [...] O uso moderado do tabaco e do álcool, direi talvez, não

Page 313: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

311

têm em princípio inconvenientes apreciáveis e poderia ser, ademais, que a abstenção completa fora irritante, para quem teve durante muito tempo o costume do tabaco e do vinho. Porque este dentista então nos alerta, será em nome de certa sabedoria do corpo (MARCEL, 1955, p. 79).

A sabedoria do corpo pressupõe uma ética para a vida. Representa a busca por um agir

que, em razão de certas predisposições ou ameaças, não se entrega à prática de um viver

desmedido ou desprovido de discernimento intelectual, cultivo da maturidade humana,

vivência efetiva e engajamento. Através da pedagogia do corpo, o Ser é conduzido a conciliar

a compreensão, a firmeza, a agilidade, a temperança e a coerência. É a partir das observações

em torno dos aspectos da vida orgânica e do corpo que chegamos à compreensão de que a

sabedoria não pode ser assimilada, tal como a técnica, que o homem não pode adequar-se ao

nível da máquina, e a existência humana, que não se autorregulamenta mecânica, abstrata e

tecnologicamente.

Onde a técnica é soberana – e refiro-me, antes de tudo àquela que tende a assegurar a ação do homem sobre a natureza – não se vê como a complicação possa ser evitada; é justo que ela seja a condição de um aperfeiçoamento que se deve tornar cada vez mais preciso. Esta complicação apóia-se, ao mesmo tempo, sobre cálculos e aparelhagens, cálculos estes que são o fundamento das possibilidades e da eficiência. Mas o que é notável e do que poucas pessoas se apercebem, é que, a partir do momento em que estamos em presença do humano tudo muda; é verdade que esta palavra “o humano” é perigosamente ambígua: se eu considero um homem como uma máquina ou como um conjunto mecânico, sou certamente levado a reconhecer a extrema complicação de suas engrenagens. Mas, - prestemos atenção – por isso mesmo, deixo de considerar o homem como tal. Não posso adotar esta maneira de o considerar sem esquecer, justamente, o essencial, isto é, que um ser humano é capaz de conceber – não digo criar – valores e objetivos, e agir, seja em conformidade, seja em contradição com os mesmos. Ora, dizer isto é justamente deixar de pensar no homem como uma máquina (MARCEL, 1961, p. 7-8).

A sabedoria sempre esteve ligada às prerrogativas da aparência, da faixa etária de

idade, da posição e/ou função que o homem ocupa na sociedade. A ideia do homem sábio

sempre esteve relacionada à visão estética do corpo, da formação técnico-acadêmica, das

vestes e da longevidade. Para além destas concepções, Marcel compreende que “[...] sábio é

aquele que tem chegado a certo domínio de si” (1955, p. 82), porque a sabedoria é fruto da

maturidade existencial, que se articula através dos nexos da paciência e da continuidade. A

continuidade não significa continuísmo, não representa reforço, condicionamento, linearidade

e adestramento. A continuidade paciente implica em busca decidida, resoluta e persistente de

Page 314: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

312

e por si. Significa atitude humilde, reconhecimento daquilo que não é e busca por aquilo que

ainda não se foi.

O tempo da sabedoria não é o mesmo da técnica e da tecnologia. A técnica e a

tecnologia se movem pelos ditames da pressa, da velocidade, da rapidez e do instantaneísmo

turvo. O tempo da sabedoria se dá pelo prisma da condição itinerante do Ser, respeita sua

subjetividade e considera as especificidades dos processos contínuos e descontínuos de sua

própria existência. A sabedoria autêntica respeita aquilo que é próprio do humano, encarna-se

na vivência e expressa-se através da visão de mundo e da relação política e espiritual362 do

Ser363 (BUBER, 2011).

A sabedoria não germina no campo do abstrato; ela nasce na dimensão concreta do Ser

e se enraíza e incorpora-se mediante a livre decisão que o sujeito assume de confiar no

humano e na vida364. A sabedoria não surge de fora para dentro do homem, não é algo dado,

362 De acordo com Röhr, a educação espiritual não pode ser pensada desarticulada da formação política do

homem. “O conceito de espiritualidade não deixa de ter um significado político, no sentido mais amplo da palavra. Não se trata de um posicionamento político-partidário. Porém, opõe-se, com veemência, a todas as formas de política autoritária ou totalitária. A política, baseada nos preceitos da espiritualidade, tem que preservar tanto a liberdade do indivíduo quanto zelar pelo bem comum” (RÖHR, 2011, p. 236-237).

363 Na concepção de Martin Buber esta sabedoria capaz de unir mundos e pessoas só se revela quando alcançamos a maturidade humana do olhar e do modo como concebemos a vida e os outros à nossa volta. Através da relação Eu e Tu, o pensamento acerca da responsabilidade do homem pelo próximo e seu mundo deve orientar a postura que é aplicada ao outro ser humano ou forma de vida em geral. Representa participação responsável e reverente em seu ser e em sua vida, independente da situação que esteja vivenciando e em cada lugar do mundo no qual se encontre. Sobre isto ele acrescenta, quando fala que a mudança começa aqui onde estamos: “As pessoas com as quais convivemos ou com as quais nos encontramos vez ou outra, os animais que nos ajudam em nosso negócio, o solo que cultivamos, as matérias-primas que manufaturamos, os equipamentos que nos servem – tudo esconde uma substancia espiritual secreta, que depende de nós para alcançar sua forma pura, sua concretização. Se desprezamos essa substância espiritual que foi enviada ao nosso caminho, então vamos prestar atenção apenas aos seus usos, sem desenvolver uma relação autêntica com o ser ou com a coisa, em cujas vidas deveríamos tomar parte, assim como o ser ou a coisa tomariam parte na nossa vida; então vamos desperdiçar a existência autêntica, concretizada. No meu entender, esse ensinamento é verdadeiro em sua essência. A cultura espiritual mais elevada permanece Arida e estéril se não dermos a esses pequenos encontros, dia após dia, aquilo que merecem, a água extraída da vida e canalizada para o espírito, da mesma maneira que a força interior mais poderosa torna-se impotência quando não está numa ligação secreta com esses contatos ao mesmo tempo submissos e proveitosos com o ser, que é estranho, porém próximo. Algumas religiões não consideram nossa estada na Terra como a vida verdadeira. Ou elas ensinam que tudo aquilo que nos aparece aqui é mera aparência, por trás da qual temos de conseguir chegar, ou que é apenas uma antessala do mundo verdadeiro que temos de percorrer sem prestar uma atenção muito especial nela [...] Em sua verdade mais profunda, ambos os mundos são únicos. Eles apenas se afastaram. Mas devem voltar a se tornar a unidade que são em sua verdade mais profunda. Para isso foi criado o homem, para unir os dois mundos. Ele contribui para essa unidade por meio de uma ‘vida santa’, numa relação com o mundo no qual ele foi posto, no lugar onde vive” (BUBER, 2011, p. 46-48).

364 Conforme Gabriel Marcel a maneira como o homem se coloca perante as questões da vida é que determina a diferença entre o olhar do sábio e a visão daquele cuja fé é evasiva e desconexa do mundo e da existência. Assim ele comenta: “La vida, el mundo, nos ofrecen un espetáculo horrible; el verdadeiro sábio, aquele en quien la sabiduría es al mismo tiempo heroísmo, mira a este mundo cara a cara; sabe que no puede esperar encontrar fuera de sí mesmo, de su razón, ningún recurso contra el desorden del que este mundo es el teatro. El creyente, por el contrario, imagina más Allá de este mundo un recurso último en el que pone su confianza, al que dirige sus plegarias. Imagina que el Dios al que invoca le está agradecido por sus adoración, y así, de

Page 315: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

313

adquirido ou transplantado. Toda sabedoria que se restringe a si mesma petrifica-se e,

finalmente, corrompe-se. A sabedoria nasce de sua relação com o âmbito existencial; ela não

é fruto do isolamento, porque se revela comprometida com a verdade do Ser e as questões que

perpassam, medeiam, atravessam e transcendem sua realidade, constituição e vivência. “O

que se mostra aqui abaixo, uma luz verdadeiramente maravilhosa, é o fato que o sábio está

essencialmente ligado ao cosmos” (MARCEL, 1955, p. 85).

Ao contrário da técnica e da tecnologia, a sabedoria não pretende apenas a mudança do

imediato ou a satisfação dos desejos e das necessidades. Pela sabedoria busca-se a integração

à ordem universal. Sua perspectiva não dialoga com as tendências sistêmicas do idealismo,

geocentrismo e/ou do antropocentrismo, porque na relação do homem com a realidade, a

sabedoria “[...] se expressa e se orienta deliberadamente contra todos os ‘ismos’” (MARCEL,

1951a, p. 11). Na interface entre razão e sabedoria, a razoabilidade se apresenta como o

princípio equilibrador entre os modos de apreensão, construção e transmissão de

conhecimentos.

O homem razoável é aquele cujo pensamento não se fixa na dimensão do problema, na

crença de uma verdade absoluta. Reduzida à dimensão do problema e do objetivável, a razão

humana sempre tende a funcionar no vazio das posições restritas de suas próprias concepções.

Entre o homem insano e o sábio se diz que “[...] o insano é aquele cuja razão não tem raízes e

funciona no vazio” (MARCEL, 1955, p. 87), enquanto o sábio é aquele que, exercendo uma

postura razoável, mantém-se aberto e respeitoso a todas as possibilidades de acesso à verdade.

“Mas respeitar a verdade não é fazer frases; é manter abertos todos os caminhos, por vezes

tênues, por onde podemos esperar, não digo alcançá-la, mas ao menos aproximar-nos dela”

(MARCEL, 1951b, p. 134). Sobre a relação entre o sábio e a aproximação da verdade,

acrescenta Marcel,

[...] a sabedoria é o atributo do homem livre e, inversamente, que o sábio se esforça em alcançar é a liberdade autêntica [...] O sábio é, em primeiro lugar, aquele que tem conseguido impor silêncio as suas paixões, ou ao menos domá-las, domesticá-las. É também aquele que tem sabido tornar-se independente da opinião, dos prejuízos, aquele que em toda circunstância sabe resistir às explosões coletivas. Quiçá convém dizer que de certa maneira essa independência lhe outorga a paz, e conquanto essa palavra signifique num certo sentido, bem-aventurança, ela representa a condição, que naturalmente se distingui do simples prazer (1955, p. 88).

rechazo, viene a considerar como una virtud lo que nosotros, los no creyentes, sabemos bien que no es sino una evasión, una ceguera voluntaria” (MARCEL, 1968, p. 48).

Page 316: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

314

Na sabedoria não se afirma a completude do homem, “[...] se interroga pela totalidade

do Ser e por mim mesmo enquanto totalidade” (MARCEL, 1987, p. 34). Por ela, o processo

de desvelamento do homem sai da ordem da afirmação e ganha o estatuto ontológico da

problematização, da inesgotabilidade e da indeterminação. Na sabedoria, o Ser adquire a

primazia e o conhecimento se “[...] transforma num modo de participação do qual nenhuma

epistemologia pode esperar dar conta porque ela mesma o supõe” (MARCEL, 1987, p. 37). A

sabedoria transporta o Ser do nível do problema para a dimensão do mistério que avança,

invade e ultrapassa seus próprios dados; coloca-o na trilha da transcendência que o interpela e

o implica humana, existencial e educacionalmente.

Numa era da técnica e da tecnologia, quais as implicações da concepção marceliana

acerca da sabedoria para a formação humana? Em que condições é possível conservar sua

preeminência no âmbito do contexto educativo? Notemos, inicialmente, que a sabedoria

pressupõe um processo de maturidade humana e aponta para a necessidade que o humano tem

de adquirir um autodomínio de si. Não confundamos autodomínio com simples autonomia.

Por autodomínio, entendemos a busca paciente pelo conhecimento de si, a rejeição a todo tipo

de postura egoísta e presunçosa, que pretende conceder ao homem uma falsa ideia a respeito

de si mesmo e de suas aspirações mais íntimas. Nas palavras de Marcel,

[...] chegar à conclusão de que quanto mais eu realizo em mim uma íntima, efetiva e profunda busca em mim mesmo, tantos mais motivos terei para ter por suspeitosa e absurda a representação que faço de mim mesmo como um objeto com o qual me seria lícito preocupar-me definitivamente (1969, p. 170).

Num sentido pedagógico, a sabedoria implica a articulação entre educação e

existência, entre conhecimento e vida. Ao pretender levar o homem a alcançar o domínio de

si, à educação caberá ajudar a promover a sua emancipação; levá-lo a enxergar a realidade

para além das técnicas de aviltamento, quando propõem a submissão das narrativas de ensino

e aprendizagem, aos sofismas dos processos ideológicos e despersonalizadores da própria

condição humana e do Ser.

Educação para a sabedoria é aquela onde se propiciam as condições para que o

discente aprenda, através da experiência sensível e da construção simbólica, a se relacionar

com o mundo e com os diversos âmbitos da realidade local, global e multidimensional; a

identificar e discernir atitudes, posturas, ideias, valores e aspirações, que ameaçam e

comprometem a liberdade humana e os modos de organização do seu próprio existir. O

Page 317: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

315

homem da autonomia deve ser educado para tornar-se o Ser da heteronomia; aquele que vive,

circula e atua no espaço social de modo lúcido, aberto, disponível, engajado e participativo;

alguém que, na vivência da própria liberdade, promove e procura garantir a qualidade e o

fortalecimento da experiência formativa e emancipadora do outro.

Ademais, podemos dizer que a sabedoria implica na valorização do conhecimento

considerado de ‘sentido comum’365; procura abrir espaço para o acesso a outras formas de

entender a vida, em suas mais diversas ocasiões, manifestações e contextos. Conforme

Marcel, “[...] como deixar de reconhecer que a família é o lugar onde mora certa sabedoria

popular e que freqüentemente esta sabedoria tende a dissolver-se” (1955, p. 85). No olhar do

teórico, o acesso à construção da sabedoria começa em casa, na experiência do lar, através da

preservação do conjunto de ritos, costumes e tradições, na forma como um determinado povo

ou grupo se afirma enquanto presença espiritual, histórica, social e política no mundo.

Educar, na era da técnica e da tecnologia, exige o olhar e a escuta atenta a outras

formas de expressões e vivências humano-formativas. Gabriel Marcel, ao falar sobre sua

experiência de abertura, na obra A Revolução da Esperança: rearmamento moral em ação

(1961), descreve como o ato de ouvir as histórias/vivências de pessoas tão diversas - como um

representante do Comintern, um portuário brasileiro, um chefe da tribo africana, um japonês,

piloto-suicida de torpedos, uma francesa socialista militante, um monge budista, um industrial

canadense e um agitador político da Nigéria - contribuiu para alargar sua visão de mundo,

influenciar sua existência individual e ampliar sua esfera de atuação política. Sobre a argúcia

desta compreensão, o teórico acrescenta:

Ousarei fazer a seguinte observação: a humanidade passa, atualmente, pela crise mais trágica que já atravessou no curso da história tal como nós a conhecemos. Os peritos mais qualificados se revelam absolutamente

365 Cf. DS, p. 92-93: “Pero la desaparición del sentido común aparece como un fenómeno de incalculable

gravedad y que puede transformar radicalmente el clima espiritual. Se trata de una transformación que no podemos comparar sino con la que parece producirse en ciertas épocas en el plano meteorológico, y me siento inclinado a proponer aqui el término meteorologia mental para designar un cambio que es quizá demasiado profundo para ser fácilmente discernido. No solo demasiado profundo, sino demasiado general – tan general que se produce sin duda alguna en cada uno de nosotros. De manera que se nececita un esfuerzo sostenido de la reflexión para llegar a adquirir conciencia. Donde el sentido común tiende a desaparecer, no se puede dejar de pensar que la sabiduría misma está destinada a perderse, o por lo menos a convertirse en el atributo de una ínfima minoria. Pero cabe preguntarse si en tal caso no há cambiado de naturaleza y no tiende hacia la santidad. Es éste un punto importante sobre el cual me reservo volver más adelante. Lo que debemos reconocer ahora es que el sentido común no es quizás, en último análisis, de esencia absolutamente diferente de la sabiduría. Estaría tentado a decir que es algo así como un depósito, en el sentido físico de la palabra, lo que la sabiduría, en vez de dejar suspendido, deja en el término médio de los seres, pero solo si ciertas condiciones de orden sociológico son salvaguardadas. Ahora bien, la misma palabra común, sino donde hay una vida e nociones comunes, es decir donde existen aún agrupamientos orgânicos tales como la familia, el pueblo, e etc.”.

Page 318: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

316

incapazes, não somente de resolver o problema fundamental, isto é, restabelecer uma paz digna deste nome, mas até mesmo, talvez, em medir a inimaginável gravidade da situação. Um diplomata inglês, vindo a Caux, de Genebra, me dizia que a conferência sobre as aplicações pacíficas da energia nuclear estava como que envenenada por ocultas ideias beligerantes. Mas, do mesmo modo que quando a ciência médica falha temos, perfeitamente o direito, e talvez mesmo o dever, de apelar para os curandeiros, eu acho que estamos aqui em presença do que eu chamarei, de bom grado, um socorro de urgência, do qual não me parece absolutamente permitido subestimar o valor. Assim como os curandeiros, os mais respeitáveis, declararam que as forças de que são misteriosamente dotados lhes foram conferidas por um poder superior, todos os nossos amigos, sem exceção, dão testemunho de uma humildade, cujo segredo foi perdido pelo universo em vias de tecnocratização. Mas saibamos bem compreender que isto não é um caso. Num mundo entregue aos técnicos, aos habilidosos, a palavra humildade, em si, perde toda a significação. O fato é que existem, por exemplo, cirurgiões que, antes de proceder a uma operação particularmente delicada e perigosa, fazem uma prece. Mas por isso mesmo, deixam de se comportar como simples técnicos; proclamam, ao contrário, a insuficiência da técnica, reduzida a si mesma [...] Para concluir, direi, como alias declarei publicamente em Caux, que o que me sensibiliza, antes de tudo, é que aí se encontre realizada uma surpreendente conjunção do mundial do íntimo [...] Posso atestar que todos nós tivemos consciência de ascender a uma dimensão superior, a do coração, ou, mais exatamente, àquela onde o coração e o espírito se encontram: sob nossos olhos, o mundo, o vasto mundo tornou-se uma família (MARCEL, 1961, p. 18, 20-21).

A educação da e para a sabedoria favorece a aprendizagem do viver em comunidade e

na diversidade. Ela ensina a escuta e a reciprocidade entre saberes, conhecimentos e

experiências, à medida que procura articular os novos e múltiplos modos de compreensão,

encontro, comunicação, vivência e transformação do real366.

Ao nos atrelar à necessidade da valorização das tradições e outras formas de

entendimento da vida e da realidade, é possível acrescentar a importância de construirmos um

processo educativo pautado no princípio da democracia e valorização das atividades do

espírito. “O que quero dizer é que não existe sabedoria senão onde certa hierarquia de modos

366 Cf. DS, p. 85-86: “Pues, después de todo, la función esencial del sabio es sin duda alguna una función de

relación y de armonía. Y aqui no es únicamente, ni siquiera tal vez principalmente, en los griegos en quienes tenemos que pensar, sino en la China clásica, en la China de Lao-Tsé. Lo que se muestra aqui bajo una luz verdaderamente maravillosa es el hecho de que el sábio está esencialmente ligado al cosmos. Aquí todos los textos son formales y reveladores. El orden que se debe poner en la vida – ya se trate del individuo, de la ciudad o del imperio – no es de ningún modo separable del orden mismo del universo. Y sin duda a este respecto convendría darle mucho mayor importancia de la que comúnmente se otorga a las técnicas, hoy desacreditadas – quizás y aún sin duda absurdamente desacreditadas – que em China y otras regiones del Asia presentaron un tan alto grado de perfeccionamiento: la geomancia, la astrologia, etc. El punto capital y sobre el cual es imposible, creo, insistir demasiado, es que en una perspectiva como aquélla, el fin esencial del conocimiento y de la vida consiste en integrarse al orden universal, y no en ejercer una acción transformadora sobre un mundo que el hombre debiera someter a sus deseos o necesidades”.

Page 319: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

317

de viver é reconhecida, uma ideia de uma vida melhor, sem que se refira necessariamente a

um absoluto de caráter metafísico ou religioso” (MARCEL, 1955, p. 89).

Na ambivalência do homem, provocada pelo doutrinamento aviltante da propaganda,

do cinema, da televisão, do rádio e das novas tecnologias, têm-se constatado “[...] que a

sabedoria mesma está destinada a perder-se, ou pelo menos, a converter-se num atributo de

uma ínfima minoria” (MARCEL, 1955, p. 93). Há que se reconhecer que, na era da técnica e

da tecnologia, um grande número de atividades espirituais tem sido desqualificada em nome

da satisfação de desejos e pretensões tecno-industriais. Entre estas atividades do espírito,

destacamos o trabalho artesanal, as produções artísticas, a sabedoria popular, a poesia, a

música e toda produção de caráter intelectual.

“O povo adulado, doutrinado, submetido a todas as propagandas, está condenado a

perder a sensatez que fora então seu patrimônio” (MARCEL, 1955, p. 92). Na artificialidade

da mentalidade social encontra-se a força aviltante do espírito de abstração. Diante dos

incursos da cultura de massa, identificamos os processos “[...] que fazem cada vez mais,

estranho o sentimento da vida e das realidades viventes, e que ao mesmo tempo, faz deles um

terreno perigosamente favorável ao desenvolvimento das ideologias totalitárias” (MARCEL,

1955, p. 95).

Ao enfrentar o desafio que pretende a superação da complexa malha dos saberes

totalitários, a educação para a sabedoria precisa se colocar, na era da técnica e da tecnologia,

de forma crítica e a favor da dignidade humana; precisa posicionar-se a partir da consciência

inalienável da própria concretude do homem. Nenhuma educação que despreza as produções

das atividades do espírito é digna deste nome. A sabedoria, que nasce dos saberes artísticos,

poéticos, artesanais e filosóficos tende, inevitavelmente, a colocar-se contra o fanatismo e a

demência das ideologias políticas, religiosas, econômicas e sindicais.

A sabedoria das atividades do espírito é expressão de um pensamento comprometido e

parte “[...] de uma ideia verdadeira que considera que o homem é um ser em situação e que

ele não é dado a pensar senão a partir de uma situação concreta, que seja a sua” (MARCEL,

1955, p. 96). Toda educação que se pretende humana nasce da própria realidade do Ser. É

fruto da condição encarnada do homem e de sua relação com os outros seres e a vida em

geral. O papel da educação, na era da técnica e da tecnologia é, antes de qualquer coisa,

procurar contribuir, diretamente, para levar o Ser “[...] a desnudar a própria condição humana

e suas implicações” (MARCEL, 1951b, p. 87).

Por último, a sabedoria, enquanto exigência educativa na era da técnica e da

tecnologia, envolve o processo de maturidade humana e profissional dos próprios docentes.

Page 320: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

318

Ela comporta, inevitavelmente, uma atitude de respeito com relação ao trato daquilo que é

ensinado no âmbito da sala de aula (MARCEL, 1951a). Sobre o exercício da prática docente,

percebemos que a mesma tem caído no vazio. Em nome da inovação, tem se desprezado a

relação com o passado e suas contribuições para a formação das novas gerações no presente.

Desta forma, Marcel nos diz que “[...] a herança espiritual se esvazia de seu conteúdo

na medida em que a história se desvitaliza para degenerar em pura documentação empilhada,

em que é só inscrição e não rememoração” (1955, p. 66). Ao se referir ao passado, o teórico

não o relaciona a um conservadorismo, saudosismo ou algum tipo de tradicionalismo

supersticioso, mas aos erros que foram cometidos pelos nossos antepassados e que, de alguma

forma, ao negligenciá-los, nos tornamos cúmplices destes mesmos atos. Na ausência de

problematização dos conteúdos, reafirma-se a inércia da inteligência. Abre-se mão da

oportunidade de construir um pensamento engajado e comprometido com a história, com a

preservação da vida e da honra humana.

A partir dos pressupostos da sabedoria, professores e alunos poderão tratar os

conhecimentos e conteúdos proporcionados pela evolução científico-tecnológica, movidos

pela consciência de que “a memória consiste, essencialmente, por estar dentro do

acontecimento, em não sair dele, em permanecer nele e reconstruí-lo por dentro” (MARCEL,

1951b, p. 86). Através da sabedoria, os saberes especializados da técnica e da tecnologia

cedem lugar à compreensão de que toda redutibilidade consistirá na abstração, não só dos

conceitos e das ideias, mas, também, do próprio homem e de todos os recursos de que pode

dispor para a promoção de sua humanidade possível.

Todo este conjunto de considerações, em torno do resgate da noção de sabedoria numa

era da técnica e da tecnologia, nos coloca frente ao desafio de nos interrogarmos sobre as

conexões que podem existir entre a educação, a formação humana e a herança espiritual. A

sabedoria, enquanto princípio, só representará um valor possibilitador do humano e do

processo educativo se nós a tomarmos sob “[...] a condição de encarnar-se, e esta encarnação,

não pode efetuar-se senão no mais humilde e no mais íntimo da existência humana, ali onde

alguns homens de boa vontade se reúnem para realizar uma obra comum” (MARCEL, 1955,

p. 109).

Page 321: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

319

4.2 Perspectivas ontológicas e pedagógicas da relação entre educador e educando: da

formação humana à construção da consciência engajada

De que maneira poderá a relação entre o educador e o educando contribuir para a

reintegração da honra de ser homem? Num mundo onde os indivíduos são reduzidos a

códigos, notas, conceitos, métodos e avaliações classificatórias, são cada vez mais

questionados os elementos de uma educação que se “[...] funda apenas na formação de mão de

obra ou em diplomas de significado humano praticamente nulo” (MARCEL, 1951b, p. 231).

Ao refletir sobre sua própria trajetória escolar (MARCEL, 1951a) e ao tentar

ressignificá-la através da produção teatral e inquietação filosófica (MARCEL, 1927, 1967),

Gabriel Marcel questiona a formação que recebeu e os modos de vida aos quais se encontrava

submetido, como muitos alunos da sua época. Com essa atitude, ele problematiza os

princípios em que se assentava a educação do seu tempo, tornando-se crítico dela.

Neste sentido, a filosofia marceliana se delineia a partir da tentativa de encontrar, no

âmbito da experiência existencial do homem, vias de oxigenação para as inquietações que

perpassam a condição humana, face aos desafios de sua própria realidade. É com base nesse

intento que pretendemos analisar as perspectivas ontológicas e pedagógicas da relação entre

educador e educando, tomando como desafio a possível articulação entre o processo de

formação humana e a necessidade da construção de uma consciência engajada. Esta análise

poderá ser realizada a partir dos construtos da dimensão comunicativa entre o eu e o tu; da

dimensão da presença entre o compromisso e a participação; da dimensão da paciência,

enquanto fulcro de serenidade e confiança humano-existencial e, por último, da dimensão da

vivência pedagógica, que, pretendendo se mostrar aberta à diversidade humana, se dispõe à

construção de uma pedagogia da e para a tolerância entre os homens, em suas mais variadas

formas de leituras e interpretações do mundo e da realidade.

4.2.1 Dimensão comunicativa: comunhão entre o eu e o tu

De que maneira poderá o Ser alcançar a inteligibilidade da sua própria existência? Em

que condições o homem poderá tomar consciência de si mesmo? Desde o início, o

pensamento filosófico de Gabriel Marcel se debruça em torno do mistério que é o homem e

sua situação concreta. Instigado pelo princípio da experiência existencial, ele compreende que

o papel da investigação filosófica é procurar restituir à experiência humana “[...] todo

pensamento metafísico verdadeiramente autêntico” (MARCEL, 1987, p. 49). Neste sentido,

Page 322: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

320

sua reflexão se orienta a partir da ideia de que o mistério do Ser não se desvela no isolamento

de sua condição, mas, através da abertura à dimensão comunicativa, do encontro e da

comunhão entre o eu e o tu.

A sociedade industrial se constitui num espaço onde o homem sempre tende a criar

uma imagem de si, que se opõe a tudo aquilo que verdadeiramente ele é. Na abstração de si, o

Ser é conduzido a reconhecer que o ato pelo qual ele procura se afirmar é o mesmo que o

reduz às ficções que cria a respeito de si mesmo (MARCEL, 1959). Na intenção de atrair,

materialmente, a atenção sobre si mesmo, o homem busca seu próprio reconhecimento através

dos processos e das atitudes que pretendem, não só o destaque dos seus atributos pelo outro,

como a exclusão de tudo aquilo que possa concorrer, direta ou indiretamente, com a

promoção de sua própria imagem.

Na cultura da técnica e da tecnologia, tudo que tem caráter permanente se confunde

com aquilo que é efêmero e passageiro. Na busca de correspondência, o homem se depara

com uma visão enganosa de sua própria situação e realidade. Saturado de si, acaba se

entregando a uma condição de angústia e inquietação, capaz de levá-lo à contradição entre

aquilo que ele é, autenticamente, e o que deseja possuir. Na nulidade do que é, passa a viver,

cada vez mais, centrado em si mesmo e apegado aos aspectos exteriores de sua própria

existência.

Gabriel Marcel ilustra “o jogo complexo da hipocrisia social” (MARCEL, 2005, p. 26)

através da atitude do filho que, ao recolher umas flores para sua mãe no campo, exclama:

“Olha – disse – sou eu quem as tenho recolhido!” (2005, p. 25). Na expressão triunfal do

garoto, encontramos o interesse do homem de procurar distinguir-se dos demais, na intenção

de receber aplausos, elogios e toda forma de atenção. A fala do menino é capital: no desejo de

atrair, sobre si, os olhares, procura excluir, toda e qualquer possibilidade de ser confundido

com qualquer outra pessoa. Por outra parte, sua atitude revela que o tu a quem se dirige não é

alguém que aparece, perante seus olhos, como uma pessoa, mas, simplesmente um ser que é

“tratado como uma caixa de ressonância ou amplificador através de quem poderá receber a

complacência para com si mesmo” (2005, p. 26), uma entidade impessoal, por meio de quem

e/ou do qual a criança se afirma e se destaca.

O ato pelo qual o eu é constituído passa, necessariamente, pela representação que o

outro ser reproduz e devota a mim. Na postulação de si, o homem se põe diante e,

consequentemente, adverte o outro sobre as regulações da sua conduta, através das projeções

dos olhares que lhe dirige. Aqui, a referência ao tu é fundamental; a noção que se tem dele é

de alguém, cuja presença se confunde entre a propriedade de um mérito e/ou a

Page 323: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

321

representatividade de uma coisa. A articulação entre a consciência de existir e a noção de

presença se confunde, pois o “[...] outro, com efeito, só lhe interessa na medida em que é

capaz de formar sobre ele uma imagem favorável, que por sua vez, irá tomar como sua”

(MARCEL, 2005, p. 29).

Na abordagem fenomenológica do ter, Gabriel Marcel afirma que há, no homem

moderno, uma “degradação insensível entre o sentimento que se tem e o sentimento que se é”

(MARCEL, 2003, p. 144), uma situação de alheamento da consciência de si e da presença do

outro, que tem o poder de suprimir e dissolver a profunda e necessária unidade que deve haver

entre a minha existência e o existente que sou. A partir do sentido da posse, o homem procura

impor-se intimista e obrigatoriamente, nos e através dos espaços sociais com os quais

convive. Seja na escola, nas redes sociais, na igreja, na rua, na praça, no clube ou em qualquer

outro lugar, “a posse se converte numa maneira de bajular, uma forma de cortejar a si mesmo

na intenção de parecer necessário” (MARCEL, 2005, p. 29). No afã de se destacar, o homem

flerta entre o artificial e o real, a opinião e a aparência. O sujeito blefa entre o desejo e a

necessidade de construir, perante e sobre os outros, uma imagem pautada no signo do

aceitável e do politicamente correto. Ele pretende deixar de ser visto como pessoa, para

ascender ao status abstrato do conceito e da representatividade. Na visão de Marcel

E, com efeito, a simulação está contida na posse: não há mais que lembrar, para dar-se conta, do que é seu envolvimento em todas as suas formas. A partir do momento em que me preocupo de fato em produzir-me sobre o outro, todos meus atos, todas as minhas palavras, todas as minhas atitudes perdem sua autenticidade; e todos nós sabemos o que pode ser acrescentado a uma simplicidade fabricada ou fingida (2005, p. 29).

Todas as vezes que o eu tenta projetar-se para além do que é, acaba reduzindo a

relação com o outro à dimensão funcional. Quando o tu deixa de ser, para mim, um indivíduo,

eu o trato e o reduzo à noção de coisa e de objeto. O outro “não é mais que uma caixa de

ressonância ou amplificador, que tende a converter-se para mim em uma espécie de aparato

que possuo ou creio poder manipular e do qual posso dispor [...]” (2005, p. 29). O tu se

transforma num acessório, num instrumento projetor da imagem de um eu que “[...] se fechará

silenciosamente em um pequeno santuário privado onde se encontra apenas com seu próprio

ídolo, ele mesmo” (2005, p. 30). Neste tipo de encontro, toda e qualquer relação fracassa, se

despersonaliza e se converte num simulacro.

Diante do processo de abstração de si e da despersonalização da relação com o tu,

importa ao educando e ao educador, na era da técnica e da tecnologia, saberem em que

Page 324: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

322

condições cada um pode tomar consciência de si e da verdade do que são, individualmente.

Importa compreender que o regime de competição e o critério de competitividade contribuem

para o fortalecimento da cultura redutora do eu, da noção do isso e da coisa (SENNETT,

2009). O sistema de competição debilita o espírito de liberdade, de fraternidade,

solidariedade, justiça e democracia. Movidos pelo individualismo, professores e alunos

tendem, cada vez mais, a aderirem ao critério de classificação como condição sine qua non,

de aceitação do outro e reconhecimento de suas habilidades e capacidades sócio-educativas.

No autocentrismo, docentes e alunos fazem das noções de mérito e retribuição um

mecanismo de promoção aferidor de privilégios, capaz de levar alguns a se sentirem

superiores aos outros e a se colocarem como se fossem o centro do universo acadêmico-

escolar, aqueles em torno de quem tudo gravita e ganha sentido. Na egolatria, a relação

educativa se torna impessoal, se degenera e precipita os homens na inércia e incapacidade de

tomarem consciência de si mesmos. Na despersonalização da relação entre docente e discente,

o indivíduo “se deixa assimilar a um átomo arrastado por um torvelinho, ou simples elemento

estatístico” (MARCEL, 2005, p. 32). Ambos se transformam em números, conceitos, dados e

informações técnicas, burocráticas e funcionais.

Mediante a relação dialógica do eu e do tu, o homem não apenas corre o risco de

perder-se, como pode, também, ver-se diante da possibilidade de apropriar-se do seu próprio

Ser, a partir do momento em que se dispõe a cultivar uma postura de abertura e

disponibilidade com relação ao outro, em plena comunicação humano-existencial. “No

encontro do nós o ser não é afirmado, mas se afirma a si mesmo” (MARCEL, 1959, p. 159).

Na dimensão comunicativa, o homem encontra a condição de se afirmar como sujeito ativo e

construtor de si, do mundo e dos processos de aprendizagens. O indivíduo deixa de ser

assimilado ao elemento estatístico e passa a se colocar como pessoa à medida que assume a

responsabilidade do que pensa, faz e diz. “Mediante seus atos o ser se afirma e mantém a

identidade consigo mesmo” (ADÚRIZ, 1949, p. 60).

O compromisso pessoal é a marca do ser pessoa. Aqui, a afirmação do eu edifica-se

sobre as referências de si e dos outros homens. Este eu, que se afirma ante os outros, não

surge como um conteúdo determinado, mas, se expressa como uma presença. “[...] eu me

afirmo como pessoa à medida que creio realmente na existência dos outros e na medida em

que esta crença tende a dar forma a minha conduta” (MARCEL, 2005, p. 34). Nesta

perspectiva, encontramos na relação pessoa - compromisso - comunidade - escola - realidade

um encadeamento de noções que pretendem levar educandos e educadores à compreensão de

que a educação não se dá no isolamento de si mesmo ou através da solidão do eu, mas, no

Page 325: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

323

encontro que possibilita a preservação da subjetividade de cada um e da consciência engajada

de ambos e de todos. A formação do Ser não se dá no encarceramento dos sujeitos, mas, na

interação da condição livre de cada um, na troca e partilha daquilo que cada um é, sabe, faz e

traz para o ambiente escolar e para os espaços de ensino e aprendizagem.

O papel da dimensão comunicativa entre o eu e o tu é contribuir para que educandos e

educadores transcendam as concepções difusas e confusas de suas próprias imagens, para que

sejam transportados da noção de objeto para a consciência do eu, do tu e do nós (BUBER,

2001, 2011), para que correspondam à vocação do ser pessoa e para que ressaltem seu próprio

valor e respondam à exigência ontológica de sua própria condição de ser encarnado. Neste

sentido, a educação não pode ser vista como um ato de fabricação do ser. A produção do

conhecimento não pode adequar-se à perspectiva funcional da máquina e impessoal das novas

tecnologias e ciberespaços, porque o desvelamento do ser pessoal só pode acontecer através

da íntima conexão entre o meu eu e o ser do outro (MARCEL, 1968a), através do encontro de

consciências que, desejando ser um, nunca deixam ou abrem mão da compreensão de que, na

verdade, são dois. Toda relação educativa que perde a noção da subjetividade do Ser, na

relação educando e educador, corre o risco de se despojar num ato aviltante, degradante e

destrutivo da dignidade humana.

Num mundo em crise e em que “a educação já não é mais amparo” (MARCEL, 1951b,

p. 40), Gabriel Marcel compreende que o conhecimento de um ser individual não se dá e/ou

separa-se do ato do encontro e da relação intersubjetiva entres os seres humanos e a vida em

geral; que a educação não pode estar a serviço, apenas, de fins burocráticos ou puramente

tecnológicos. É preciso atrelar a capacitação técnica à dimensão comunicativa da própria

educação.

É necessário resgatar a compreensão de que a humanização do homem se afirma na

liberdade de Ser e na reciprocidade dos saberes entre educandos e educadores; de que a

escola, ao invés de ser um lugar de reforço da cultura egoísta da individualidade, da

competitividade, da classificação e da exclusão social, precisa recuperar, na vitalidade das

relações pedagógicas e interpessoais, a noção de que é um espaço onde os valores humanos e

autênticos encontram sua expressão, problematização, aplicação e sentido educativo e

existencial.

Page 326: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

324

4.2.2 Dimensão da presença: compromisso e participação

“Toda técnica é assimilável à manipulação” (MARCEL, 1951a, p. 30), não só de

coisas, mas, também, de concepções, processos, experiências e pessoas. À medida que uma

atividade se torna propriamente técnica, menos se pode fazer referência à presença e à

participação de qualquer indivíduo. Na sociedade da tecnologia “[...] há setores em que o

automatismo se aplica não somente a certas técnicas determinadas, senão também, ao que

antes se chamava vida interior e que agora se converte na vida mais exteriorizada possível”

(1951a, p. 34). No aperfeiçoamento do processo técnico, a lógica da superficialidade cresce

paralela aos ditames da desvitalização e desorbitação do Ser.

Em tese, podemos dizer que, submissos à era da técnica e da tecnologia, passamos a

viver num mundo onde as concepções de presença e de participação perdem seus respectivos

sentidos, numa realidade cujas ideias de pertencimento e de filiação tendem a cair no vazio e a

comprometerem seu conteúdo substancial. Falamos de um tempo em que a noção de vínculo

se perde na abstração de toda qualidade espiritual, onde as relações familiares, profissionais,

sociais e educativas são concebidas como uma obscura e vaga experiência funcional e

objetiva. Ao longo do processo de abstração é possível percebermos não só uma profunda

ausência de reconhecimento da subjetividade do homem, como uma marcante negação de sua

realidade vital e espiritual.

Em um mundo tecnicamente assimilado, onde as condições existenciais do Ser são

negadas e abolidas, através da mecanização da dinâmica da vida, a reflexão sobre as

consequências do processo de abstração implicam na discussão sobre as perdas das noções de

pertença e enraizamento sócio-fraternal. Ao falar sobre as categorias da presença e

participação, Gabriel Marcel, no que se refere à dimensão concreta da existência do Ser, situa

a discussão na ordem do humano, num sentido que transcende a dimensão biológica, a lógica

do mercado industrial e o campo jurídico.

Na obra Homo Viator (2005), Marcel trata da noção de presença, relacionando-a tanto

à dimensão do mistério, como à concepção espiritual da fidelidade. No entendimento do

autor, ‘o mistério familiar’ é nada mais que uma expressão particular do próprio mistério do

Ser; algo que, do ponto de vista metafísico, aparece como um possível caminho de que o

homem dispõe para tentar recuperar o senso da sua própria experiência ontológica, como o

testemunho de alguém que não se sente como uma “coisa” lançada ao mundo, porque se

compreende como um Ser em situação.

Page 327: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

325

Sendo assim, as aproximações concretas do mistério ontológico não devem ser procuradas no registro do pensamento lógico, cuja objetivação coloca em questão preliminar, mas na elucidação de certos dados espirituais, tais como a fidelidade, esperança e o amor (MARCEL, 2003, p. 173).

O homem é um ser que pertence à ordem da realidade e do concreto. Um Ser de

presença, que se sente implicado em procurar responder às exigências do seu pensamento e da

própria condição de ser encarnado. O homem é alguém cuja realidade íntima está ligada à sua

existência. Um Ser que, nomeadamente, não pode fazer abstração de si, ou realizar um corte

entre aquilo que é e o sentimento que tem sobre sua própria condição existencial. O homem é

um Ser que está comprometido, vital e efetivamente, consigo mesmo. Com relação à

vinculação do homem consigo, Marcel nos diz:

Assim ocorre, por exemplo, na união da alma ao corpo, em linguagem mais precisa, no vínculo que me une ao meu corpo: este vínculo não pode colocar idealmente diante de mim como um objeto sem violar sua natureza essencial. Por isso que todas as relações que ocorrem para qualificá-lo ou para precisar sua função se revelam invariavelmente inadequadas: não posso dizer na verdade nem que sou do meu corpo, nem que sou escravo de mim mesmo, nem que sou seu proprietário (2005, p. 82).

Negar a realidade e indissociabilidade destas relações é agir contra o princípio

fundamental da unidade que há entre o Ser e sua presença no mundo; é sair da dimensão

inesgotável do mistério para a limitação e aridez da ordem do problema. É tentar condicionar

o homem e passar a negar todas as suas possibilidades. Na unidade profunda entre o homem e

sua presença é que encontramos o sentido da sua encarnação.

Através do mistério familiar, compreendemos as relações que unem seus membros e

os seres entre si. Nestes vínculos invioláveis identificamos as relações existentes entre o

homem, sua presença e participação no mundo. Damos conta do quanto estamos implicados

por aquilo que somos e pelo sentimento que se forma entre o íntimo e o metafísico, entre o

Ser e sua condição de presença. Assim como não podemos objetivar a natureza dos vínculos

afetivos que mantêm os membros de uma família ligados, da mesma forma, não é possível

definir funcional e tecnicamente o sentido da presença do homem no mundo. Nestes termos,

Marcel nos fala:

A família existe, repete obstinadamente aquele que se nega a olhar o perigo de frente. Porque o termo existir é aqui o mais equivocado e, por conseguinte o mais enganoso que pode haver. Se existe uma realidade da família, não se pode considerar estabelecê-la objetivamente, como uma simples filiação; digamos incluso, que desborda infinitamente tudo o que

Page 328: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

326

depende da inscrição pura e simples através de registros do estado civil. Ela só existe se for apreendida não só como valor, senão como presença (2005, p. 88-89).

O valor da família367 encontra seu sentido na dimensão sócio-pedagógica de suas

relações. Na vivência familiar é que descobrimos “[...] um sentimento construtivo; contribui

para dar-me os conhecimentos interiores que necessito para determinar minha conduta”

(MARCEL, 2005, p. 89). Por construir-se sempre na perspectiva do outro, é que se pode

compreender em que sentido a família é um valor. Através da ordem de construção de seus

laços é que me sinto comprometido com a realidade e com os desafios familiares. A família é

um espaço onde encontramos, inicialmente, as raízes formativas do processo de construção e

desenvolvimento integral do ser.

Na medida em que as técnicas e as tecnologias se desenvolvem e os meios de

comunicação ocupam, cada vez mais, espaços na contemporaneidade, começam a ser

direcionados, para a escola, os olhares e as exigências de que esta exerça as funções de

aproximar os alunos das novas tendências científico-tecnológicas e contribua para a criação

de uma sociedade livre, justa e humana. Sobre a educação, pesa a responsabilidade de

transcender os processos que pretendem reduzir a formação do homem ao estágio da

escolarização e preparação para o mercado de trabalho.

Diante destes desafios, e a partir das reflexões marcelianas sobre o mistério familiar, é

que procuramos destacar a perspectiva de que a escola, na intenção de responder às exigências

da sociedade da tecnologia, poderá se colocar como um espaço de inserção dos seres humanos

na ordem da realidade. A escola poderá servir como um núcleo de criação de novas

possibilidades de sentidos e aprendizagens, buscando contribuir para a construção de laços

humanos e fraternos, através da redescoberta das noções de presença, compromisso e

participação.

Assim como a ‘família’, a escola também é um espaço de inserção dos seres humanos

na ordem do real. A família aparece como uma ponte mediadora da relação entre o homem e

seu mundo; um núcleo de vivências humanas e existenciais que se interpõe entre as

dimensões do uno e do múltiplo, entre o eu, o tu e o nós. É através da perenidade vivida, do

fazer das tarefas diárias e dos vínculos familiares, que se manifesta o sentimento de um

367 A imagem da família retratada por Gabriel Marcel na obra Homo Viator (2005) não pretende servir de

parâmetro ou modelo através do qual as relações familiares devem ser obrigatoriamente pensadas, nos dias de hoje. Antes, referem-se à realidade de uma época, onde a tensão entre o que a família é e o modo como devia ser se apresenta como a projeção de uma imagem possível criada e/ou discutida pelo próprio Marcel.

Page 329: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

327

horizonte cotidiano que se liga, incondicional e indissoluvelmente, à existência. Num sentido

inverso, temos que reconhecer, que tudo que acontece no espaço escolar “que tende a debilitar

num ser em formação o sentido de um habitat permanente contribuirá para uma volta anêmica

da própria consciência” (MARCEL, 2005, p. 90). Quanto mais a educação se propõe a ajudar

no processo de inserção do educando, no âmbito da própria realidade, mais e melhor o homem

poderá superar as dicotomias aviltantes que pretendem separar vida e mundo, conhecimento e

realidade, interior e exterior, teoria e prática, imanência e transcendência.

É mediante o ritual construtor das heranças espirituais e das tradições e expressões

familiares que as novas gerações vão se fazendo. É através do fazer e sentir o mundo, que

toda família constrói as bases de seu viver concreto; um viver que é tecido no lastro da

experiência do vivido, da escuta dos relatos e da reflexão sobre os exemplos e os

acontecimentos. Dessa maneira, é construída uma experiência da relação e da compreensão,

onde se diz que “[...] só pensando com o outro e em relação ao outro nos tornamos mais certos

de nós mesmos” (JASPERS, 1965, p. 76).

Na experiência do mistério familiar, educadores e educandos podem aprender que o

processo de iniciação humana, para a construção de saberes, não pode se confundir com as

propostas aviltantes e negadoras do pensamento; que a educação do Ser não se confunde com

trivialidades, com informações simples, porque a atenção do humano deve estar voltada para

aquilo ou àquelas dimensões que são próprias de si. Não se trata da simples substituição de

um método, conteúdo ou sistema, mas, de procurar proporcionar a súbita elevação ou

sobressalto a respeito da compreensão e/ou verdade daquilo que o Ser é e busca alcançar.

Conforme Marcel, toda educação e/ou

[...] filosofia digna deste nome deve tomar uma situação concreta determinada para captar suas implicações, sem deixar de reconhecer a multiplicidade quase imprevisível das combinações que podem dar lugar aos fatores que sua análise tem descoberto (1951a, p. 45).

A educação que se dirige ao indivíduo não pode ceder às forças e/ou sistemas

ideológicos que intencionam debilitá-la e/ou convertê-la num simples aparato ou proposta do

e para o abstrato. A educação que nasce da experiência do concreto não desenraiza o Ser

social e, existencialmente, não alude aos processos manipuladores das consciências. Ao

pretender entrar em contato com os grandes temas da vida e da realidade, a educação atua

como um núcleo de criação de novas possibilidades de sentidos e aprendizagens. Importa

conduzir o pensamento empírico e racional à busca do desvelamento das bases e das origens

Page 330: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

328

de seus próprios desenvolvimentos. Implica que “[...] o objetivo do pensar é levar a uma

forma de pensamento capaz de iluminar-nos interiormente e de iluminar o caminho diante de

nós, permitindo-nos apreender o fundamento onde encontramos significado e orientação”

(JASPERS, 1965, p. 12).

O sentido da educação não se encontra naquilo que ela faz ou propõe a partir de cada

conteúdo e pensamento abordado. A educação encontra sua razão de ser naquilo que ela ajuda

a fazer de cada ser humano. Seu sentido não está no método, no conteúdo, nos debates, nas

tarefas, mas, no humano e no modo como este estabelece suas relações dentro e fora da sala

de aula. Ao fechar-se ao mundo dos saberes, o homem se encerra no universo do abstrato. No

aviltamento das consciências busca-se a uniformização crescente dos indivíduos e, na

educação das massas, o esvaziamento e a despersonalização das relações interpessoais

(MARCEL, 1951b).

A educação “[...] não pode justificar-se, senão no sentido do Ser e com relação a ele”

(MARCEL, 1968, p. 123), não pode se dar fora ou para além dos aspectos e relações que

fundam e promovem seu desenvolvimento. A primeira constatação e descoberta que o

indivíduo faz, a partir do mistério familiar, é que, ao nascer, não está só no mundo, que não

pode realizar a sua existência de modo solitário e isolado. Ele compreende que necessita

construir inter-relações com outros seres humanos e com a natureza. Reconhece que,

enquanto humano, precisará formar laços humanos e fraternos que possam ajudá-lo a

desenvolver-se integralmente. Ao se dar conta de que sua existência afirma-se através do

convívio com o outro Ser, o homem se reconhece como uma presença viva e real.

“A presença é realidade e é mistério na medida mesma em que é presença”

(MARCEL, 1987, p. 66). Em si, ela se constitui numa misteriosa incitação à experiência

educacional e criativa, à medida que mantém em nós, ativamente, um estado de

permeabilidade e abertura disponível e livre, com relação aos outros seres e à vida em geral.

Conforme as apreciações feitas por Gabriel Marcel (2005), o valor desta relação encontra-se

na sua intimidade, na disponibilidade e no acolhimento, não só daquilo que o outro sabe

efetivamente, mas, existencial e humanamente.

A presença pressupõe um saber engajado e a consciência de que sou o sujeito

construtor da história. A presença é matriz da subjetividade e seu desvelar não pode ser

pensado desvinculado de uma experiência de comunhão. Enquanto fulcro espiritual, a

presença é criadora e princípio promotor da emancipação do homem. A presença requer

comprometimento e engajamento existencial e sócio-educacional. Ela exige que docentes e

discentes, partindo de suas próprias experiências concretas, caminhem até as fronteiras que

Page 331: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

329

marcam o surgimento de novas questões e problemáticas. O momento em que, diante do

mistério do Ser “[...] indaguemos de nós próprios acerca do sentido e missão da nossa

existência” (JASPERS, 1965, p. 12), seu desvelamento e processos de ressignificação.

4.2.3 Dimensões da paciência: serenidade e confiança

A Filosofia da Existência fundamenta-se basicamente na ideia de que existir é

escolher-se existencialmente. Nela, a existência autêntica está sempre colocada diante das

situações-limite da angústia, do desespero, do fracasso, da morte e do nada. Como alguém que

se sente impelido a buscar o esclarecimento das possibilidades de seu próprio ser, o homem se

vê impaciente diante de si mesmo e da necessidade de decidir-se; e passa a comprimir seu

instante presente, por sentir-se desconfiado e inseguro com relação ao futuro daquilo que ele

não é, ainda.

“A incapacidade de ter paciência é, em geral, um dos maiores danos da moderna

existência civilizada” (BOLLNOW, 1962, p. 60) 368. Impaciência e modernidade se

alimentam e se revigoram mutuamente. Na obra, Gabriel Marcel et les Injustices de ce

Temps: la responsabilité du philosophe (1968), o autor diz que, na sociedade pós-guerra,

marcada pelo signo do vazio deixado pela pulverização do Transcendente e pelas lacunas da

Razão, a impaciência passou a ser o estandarte de uma época atormentada pelo cepticismo,

com relação aos elementos animados e inanimados, de uma existência submersa em condições

de profundas incertezas e indefinições constantes. Diante de uma era de sombras, o que surgiu à nossa frente foi o drama “de uma

humanidade que, no temor e no tremor, procurava o sentido da vida, como se o problema

tivesse tomado um rumo novo, absolutamente inédito, reclamando imperiosamente soluções

igualmente novas” (JOLIVET, 1953, p. 27). Este drama configura-se como uma inquietação,

que transformou a constância em impetuosidade, a serenidade em nervosismo e a aderência de

si em instabilidade e desconfiança do outro. Assim, movido pela insatisfação do eu consigo

mesmo, o homem sentiu a necessidade de acelerar o processo de definição de sua

autoimagem, através dos pressupostos existenciais que exigiam do Ser, a “postura heróica”

368 Otto Friedrich Bollnow faz uma abordagem filosófico-pedagógica na obra Filosofía De La Esperanza (1962)

das categorias da paciência e da confiança com base nas reflexões de Gabriel Marcel. Como educador, Bollnow procura investigar e discutir acerca da categoria da esperança e do modo como esta se apresenta como fenômeno central e fundamental do homem. Seu objetivo é demonstrar como a Esperança-paciência pode servir de base a toda vida humana e como fulcro renovador do processo educacional, através da relação entre professores e alunos.

Page 332: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

330

da atitude resoluta da virtude suprema, quando compreende que a vida não deve se apoiar,

senão em si própria, enquanto força portadora de sentido e segurança.

De acordo com Gabriel Marcel, a impaciência foi o fator que impulsionou o homem a

uma atitude resoluta e exagerada, a uma postura de insatisfação e pressa, que “o impulsionou,

portanto, a uma espécie de instantaneismo turvo em voga entre nossos contemporâneos”

(MARCEL, 1955, p. 82). Assim, a paciência369 surge, neste cenário, enquanto uma virtude

singela, que pretende contribuir para levar o homem à possibilidade de uma existência aberta,

a uma postura alternativa, que se apresenta como um novo e possível acesso à compreensão

da vida humana e ao modo de ser do homem no mundo, face aos desafios de sua própria

formação e existência.

Como princípio constitutivo de um novo fundamento existencial, a paciência se dirige

às mais variadas situações e configurações do viver humano. Entre outras situações, ela se

revela no âmbito da relação do homem com seu trabalho, da vivência religiosa e da vida em

geral. Sobre sua presença na vida profissional das pessoas, a paciência aparece como um

suporte pelo qual o homem supera as dificuldades do seu mundo externo e consegue lidar com

as irregularidades e limitações dos objetos e materiais.

Do ponto de vista do trabalho artesanal e artístico, a paciência é algo indispensável,

pois estas atividades laborais requerem do homem a capacidade de administrar,

equilibradamente, a relação entre produção, tempo, ritmo e habilidades sensitiva e

instrumental. A impaciência, nestes casos, torna-se uma ameaça ao objetivo pretendido, um

nervosismo que pode causar um dano cultural ou grande prejuízo ao trabalho empreendido e

ao êxito esperado. Na pressa, o homem sempre tenta suplantar o espaço entre o tempo e o

objetivo. Seu desejo é sair do presente para precipitar-se no futuro de suas próprias ações e

resultados, sem, contudo, levar em conta o movimento subjetivo de si mesmo, diante de cada

instante vivido.

A paciência está necessariamente ligada à relação do homem com o tempo e sua

ordem interna (MARCEL, 2005). “Ao esperar o homem se comporta de acordo com o sucesso

futuro que se pode prever com certa segurança, na espera o homem transcende ao presente e

se ajusta ao futuro desenhando-o como algo presente” (BOLLNOW, 1962, p. 64). Neste

sentido, a paciência aproxima-se do conjunto das virtudes cristãs (MARCEL, 2003, 2005).

369 “Etimologicamente: Geduld significa ‘paciência’, e Dulden: ‘suportar’. Esses termos pertencem a uma mesma

família, ainda que, segundo as informações dos dicionários, o atual verbo Dulden, ‘suportar’, derive da palavra mais antiga Geduld, ‘paciência’, que, por sua vez, se refere a um verbo correspondente mais antigo. Paciência é, aqui, a capacidade de suportar (dulden). Significa, desta maneira, aguentar coisas desagradáveis em geral” (BOLLNOW, 1962, p. 69).

Page 333: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

331

Sua essência encontra-se na força de uma esperança que, apesar dos sofrimentos e das

dificuldades da vida, aponta para a revelação de um fulcro ultraterrenal e transcendente.

Nesta relação entre paciência e esperança “a confiança pressupõe sempre, por certo,

que detrás de todas as opressões e decepcionantes experiências da vida há um fundo de

segurança que surgirá no futuro fazendo cessar os sofrimentos” (BOLLNOW, 1962, p. 71). O

fundamento da confiança encontra-se no princípio portador do Ser; um sentimento existencial

que se tornou desconhecido nos dias de angústia e desespero, durante as décadas que se

seguiram após os horrores de Auschwitz e que, conforme Gabriel Marcel (2005), precisa

voltar a ser visto como uma das grandes virtudes da humanidade.

Enquanto atitude de vida, a paciência se afirma como uma postura do ser que carece

de renovação. Apesar de toda paciência repousar na certeza de que o futuro não pode ser

previsto matematicamente, ela mesma se afirma como uma consciência, “que exige como

toda crença genuína, a oposição corajosa de uma pessoa, a qual tem que manter-se firme de

novo contra a tentação de uma debilidade” (BOLLNOW, 1962, p. 72).

Paciência e impaciência são aspectos de uma mesma realidade do cotidiano da vida

humana. Diante das adversidades e injustiças, o homem pode reagir, paciente ou

impacientemente, contra o lado penoso e doloroso de sua própria existência. No entanto, só a

paciência lhe servirá de amparo e fonte de energia para suportar as desgraças e aflições, com

confiança e expectativa de dias melhores. Na paciência, o homem encontra a virtude

necessária para discernir sobre suas ações; por ela, o ser, à semelhança de um meteorologista,

toma consciência das estações da vivência humana, seus períodos de luz e calor, frio e

solidão, declínio e grandeza, sombra e plenitude, realidade e possibilidade.

Ter paciência implica em saber esperar o tempo e o modo certo para agir e reagir;

acreditar, resiliente e resignadamente, que todas as coisas haverão de tomar outro rumo

(MARCEL, 1951a, 1968a). Ser paciente é um modo de “ser” pelo qual o homem passa a

confiar que a mudança é possível e pressupõe, portanto, uma relação crescente do homem

com aquilo que ele é no mais profundo do seu ser.

A reflexão de Marcel sobre a paciência põe em destaque sua dimensão pedagógica,

quando a apresenta como um dos núcleos fundantes da relação do docente com o discente, o

tempo pedagógico e o desenvolvimento do seu trabalho. Para ele, “toda sabedoria paciente

implica num processo de maturação” (MARCEL, 1955, p. 97). “Sem paciência inesgotável

não é possível em última instância nenhuma educação” (BOLLNOW, 1962, p. 61).

Saber relacionar-se com o educando é uma das grandes virtudes do educador. A

paciência com o próximo exige o saber da escuta, enquanto abertura e aceitação do outro;

Page 334: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

332

uma vivência que se dá na horizontalização da comunicação e, não na verticalização do

discurso pedagógico. Como virtude legitimadora das relações humanas, a paciência nos

coloca no ritmo do outro. Ela nos transporta da asfixia do isolamento das cavernas conceituais

para as colinas ventiladas do encontro com o saber do outro e com aquilo que ele tem a dizer e

partilhar. A paciência desafia o educador a procurar transformar a solidão da reprodução dos

conteúdos em partilha de saberes e encontros dialógicos. Na pressa, o professor não só corre o

risco de comprometer a si, enquanto educador, como pode expor o educando ao

constrangimento perante os outros, com quem se comunica e convive, no âmbito da

comunidade escolar. Para Bollnow,

O impaciente se adianta sempre e quer ter o resultado antes que o relator tenha chegado a ele. Isto ocorre especialmente quando o impaciente quer saber algo determinado e aquele que fala se perde em divagações. O impaciente corta a narração e trata de acelerar seu curso mediante sua intervenção. Ele está sempre em perigo ao cortar a comunicação e o interrompido, que foi separado de sua própria ordem, se cale ofendido (1962, p. 66).

Assim, a paciência, ao contrário da pressa, sempre transforma o saber-escutar num ato

de bondade. Uma bondade que, em si mesma, é expressão de um silêncio atencioso,

profundamente respeitável aos conhecimentos, ideias e diferenças do outro (MARCEL, 1955).

Paciência e bondade estão sempre em íntima e profunda conexão. Ser paciente implica,

necessariamente, em procurar ser bondoso e, ao mesmo tempo, digno da convivência dos

outros com os quais nos relacionamos no contexto educacional.

Movido pela paciência, o professor necessitará sempre procurar respeitar o tempo

pedagógico do aluno. Através do seu trabalho, ele não pode tentar apressar o desenvolvimento

do discente, porque este poderá acabar caindo na superficialidade de suas próprias apreensões.

Diante deste argumento, é possível questionarmos: “(...) não se trata por acaso que nesta

paciência não se deva exigir absolutamente nada do aluno, perdendo-se aqui toda a dureza

necessária do processo educativo?” (BOLLNOW, 1962, p. 68). Ter paciência com o aluno

consiste na perda do vigor da prática docente? Ser paciente significa o mesmo que agir com

indiferença às deficiências do aluno? Conforme Bollnow (1962) e Gabriel Marcel (1951a), a

resposta a estas perguntas encontra-se no entendimento de que a paciência, enquanto virtude

qualificadora das relações pedagógicas entre os homens, não se dá divorciada das categorias

da suavidade, da precaução e da indulgência.

Ser suave não significa ser inerte, superficial, bonachão ou indiferente. A suavidade

indica mansidão, trato refinado e cheio de significado. Na suavidade, a relação docente e

Page 335: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

333

discente, que poderia desembocar em violência, abuso, autoritarismo e constrangimento,

ganha outro sentido e passa a ser vivenciada como expressão de brandura, respeito, dignidade

e precaução.

“Na relação com o próximo a suavidade se abre completamente no presente sem tomar

em conta o passado e o futuro” (BOLLNOW, 1962, p. 66). Neste sentido, a suavidade deixa

de ser um mero comportamento e se desvela como uma virtude constituída de intenção

pedagógica, capaz de transformar a ausência de afetividade em presença comprometida; a

arrogância epistemológica, em abertura humana; e a rigidez do trato, em docilidade

aprendente. Pela suavidade, o educador sai da posição de adestrador de destrezas, para a

condição de criador de cenários educativos (MARCEL, 1951a). Ele ultrapassa o papel de

agente transmissor do conhecimento, para o de sujeito comprometido com o desenvolvimento

do outro e de sua própria humanidade.

A suavidade do docente não se confunde com a espontaneidade que suplanta ou ignora

o compromisso e a responsabilidade que devem permear sua prática. A suavidade anda de

mãos dadas com a precaução. “Esta precaução é uma espécie de cuidado que quer apartar do

próximo todo dano vindouro” (BOLLNOW, 1962, p. 67). Toda prática pedagógica que

pretende o desenvolvimento humano do discente precisa, antes de ser corretiva, se constituir

numa vivência preventiva. Prevenir não é só alertar simplesmente ou precaver-se, mas,

procurar agir de modo significativo na e para a vida do outro. A prevenção se dá na relação

entre os homens, no modo como educadores e educandos se dirigem, sempre diretamente,

para as possibilidades de seus próprios desenvolvimentos, aprendizados e formas de ser no

mundo.

É diante do reconhecimento da descontinuidade do desenvolvimento humano - que

pode acontecer, apesar da suavidade e da precaução - que a indulgência assume a categoria de

pressuposto pedagógico, no processo educativo. Por indulgência, entendemos aqui a

predisposição e a capacidade dos homens de perdoarem as faltas e os delitos uns dos outros.

Tratar indulgentemente o educando não significa ignorar os erros que foram cometidos no

passado, ou passar a considerá-los como se fossem sentenças do presente, dando a entender

que, do discente, não podemos mais esperar algo de melhor no futuro. Uma prática

pedagógica indulgente é aquela em que o educador procura olhar o educando pelo prisma de

suas possibilidades humanas, por aquilo que ele ainda não é, mas que está se fazendo, através

das relações interpessoais, que se dão entre o curso objetivo de seu desenvolvimento e sua

espera subjetiva.

Page 336: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

334

A compreensão dos aspectos que envolvem a espera subjetiva, enquanto dimensão da

esfera educacional, poderá contribuir para levar o educador a não querer apressar o processo

de amadurecimento do seu aluno. Por ser parte constituinte da paciência, a espera subjetiva

conduz o professor a não se colocar impacientemente “quando as crianças não conseguem

alcançar o que ele exige, pois a impaciência pode arruinar todo seu trabalho [...]. O pedagogo

paciente dá tempo ao desenvolvimento do aluno e se dá, por sua vez, o mesmo tempo”

(BOLLNOW, 1962, p. 68).

A paciência, no trato docente, não deve ser confundida com ausência de vigor

pedagógico, nem com negligência metodológica ou de planejamento. O princípio da paciência

encontra-se na confiança que o próprio educador tem no educando, enquanto ser inacabado e

cheio de possibilidades. Em sua configuração, esta confiança transcende as perspectivas das

concepções mecânico-artesanal e orgânica da educação, porque lhes falta a fé nas forças

portadoras do ser. “Sem esta fé não há possibilidade de paciência; onde ela falta resta ao

pedagogo só a escolha entre a pressa por um lado e a indiferença e a debilidade por outro”

(BOLLNOW, 1962, p. 69).

Na virtude da paciência confiante, o educador poderá encontrar o ponto de equilíbrio

entre a pretensão e a pressa, o desejo subjetivo e o transcurso objetivo, que se dá no decorrer

do tempo e ao longo da historicidade, não só do processo educativo, mas da própria vivência

do educador e do educando. Movido por esta confiança no Ser, o educador poderá

compreender que “só onde há esperança é possível encontrar a paciência e perdendo-se a

esperança perde-se também, necessariamente, a possibilidade interna da paciência”

(BOLLNOW, 1962, p. 67). A paciência é, conforme a abordagem fenomenológica de Gabriel

Marcel (1927, 2003, 2005), o que nos abre à diversidade e nos vincula à esperança, que nos

capacita e motiva a confiar no futuro daquilo que ainda haveremos de ser.

4.2.4 Dimensões da vivência: diversidade e tolerância

A vinculação da existência humana aos processos organizacionais e funcionalizadores,

na era da técnica e da tecnologia, impõe sobre a sociedade contemporânea uma cultura que se

afirma sob os signos do novo e do nivelamento. Cria uma atmosfera marcada tanto pela

ambivalência, como pela reafirmação de posturas excludentes e reações dogmáticas. Esta

vinculação prevê uma situação em que os atos de problematicidade e hermetismo, ao mesmo

tempo em que se confundem, parecem determinar os aspectos de uma realidade social

mutante e cheia de contrastes; prevê, ainda, uma realidade centrada sobre a consciência

Page 337: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

335

hipertensa de um homem que, mesmo dizendo-se aberto, se recusa a dialogar com “[...] tudo

que não gravite no seu campo de atração” (MARCEL, 1951b, p. 129). Falamos de uma época

em que a noção de globalidade se confunde com a de totalidade, onde as pessoas têm

convivido não só com atitudes de abertura e aceitação, mas, também, com posturas

intolerantes e negadoras das diferenças e das diversidades humanas e sócio-culturais.

Na opinião de Gabriel Marcel, toda postura excludente “[...] é fruto de um certo

fanatismo igualitário” (MARCEL, 1951b, p. 6). Reflete o modo de ser de uma consciência

passional, que se expressa através das atitudes e instrumentos promotores do espírito de

abstração e da cultura da barbárie. Na degradação da liberdade de ser de cada indivíduo, o

homem é reduzido, progressivamente, ao nível da coisa; é assimilado e encarcerado no âmbito

das liberdades ilícitas, dos discursos que pretendem suprimir as diferenças e advogar a favor

do postulado de que igualdade e progresso marcham paralelamente.

Em tese, todo discurso a favor do igualitarismo “[...] se não tem por fim, tem pelo

menos como resultado mascarar aos beneficiários o regime de opressão burocrática a que os

condenam” (MARCEL, 1951b, p. 28). Através dos processos produtores de necessidades e

satisfação, a imaginação do homem é envilecida e transforma-se, tanto num mecanismo

promotor da alienação, como da acomodação e passividade social. Estes processos incidem

“[...] na ordem da imaginação e das afetividades mais vis; a satisfação que posso ter, quando

sujeito a pressões e vexames, ou simplesmente se estou na miséria, em ver que o meu vizinho

se encontra em situação igual” (MARCEL, 1951b, p. 28).

O pensamento igualitário, venha de onde vier, vai sempre favorecer a intolerância; vai

contribuir para o comprometimento das liberdades e o esvaziamento das relações humanas. A

postura igualitária é sempre portadora da espionagem recíproca, do fomento ao ressentimento,

da simulação simpática, da suspeita mútua, da manipulação da opinião, da prática da exclusão

e até de atos de violência e extermínios. O igualitarismo serve à intolerância “[...] quando seu

centro de gravidade e sua base de equilíbrio passam a ser-lhe exteriores; quando ele se situa

progressivamente nas coisas” (MARCEL, 1951b, p. 52) e, não, nas pessoas e na vida em

geral. Na intolerância, o respeito se desvincula da inteligência, as atitudes falseiam as

intenções, a sociedade se massifica, a educação se transforma em adestramento, as relações se

cristalizam, a espiritualidade declina e a vida se confunde com os meros aspectos

constituidores de sua inconsistente aparência e simulação. No entendimento de Karl Jaspers

Page 338: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

336

A totalidade370 é uma tensão do inconciliável. Não é para nós um objeto, senão, um incerto horizonte, no lugar dos homens como existenciais sendo eles mesmos, frutos de suas criações como esquemas visíveis, da glorificação do sobrenatural sobre o sensível..., o vemos afundando de volta para o abismo de não ser mais (JASPERS, 1933, p. 110).

As perspectivas analíticas de Jaspers se aproximam das abordagens feitas por Gabriel

Marcel, a partir do momento em que ambos enxergam, no mesmo período histórico, os efeitos

nefastos que a tendência à totalidade e a imposição ao igualitarismo passam a exercer sobre a

produção de saberes e sobre a situação espiritual do homem, sobre a educação que lhe é

oferecida e sua condição de ser encarnado. Para Marcel, por exemplo, o que se pretende no

discurso igualitário, através da educação, é “[...] instaurar um regime capaz de subtrair o

maior número possível de seres humanos a este estado de aviltamento ou de alienação”

(MARCEL, 1951b, p. 13). Este pensamento é constatado por Karl Jaspers, quando, falando do

totalitarismo, denuncia que

[...] parece característica da nossa situação a dissolução substancial da educação em interesses de um experimentar pedagógico sem fim, de uma decomposição de uma falsa imediatez do inefável. Se fazem experimentos e se alteram conteúdos, propósitos e métodos de acordo com os resultados. É como se a liberdade do homem renunciasse a si mesma, numa vácua liberdade do nulo (JASPERS, 1933, p. 102).

O que se descreve destes dias, com base na educação (MARCEL, 1951a), é apenas um

sintoma da inquietação humana e social, fruto de um esforço ideológico, que pretende

manipular os conteúdos e procedimentos didáticos, a fim de levar alunos e alunas, a um

estado degradado de suas condições e formas de ser e de se relacionar no mundo.

A pretensão totalitária é correlata ao processo de tecnização dos meios de produção e

da vida do indivíduo. Através dos meios aviltantes de assimilação histórica, o homem é

levado a abrir mão de suas raízes, a se submeter aos discursos pautados em máximas anti-

sociais, a esvaziar-se de sua substância espiritual; é levado, ainda, a desfazer-se de seu legado

sócio-cultural e a assumir uma postura de hostilidade, em relação a tudo aquilo e a todos

aqueles, que, na emergência de seu fazer-se, humana e historicamente, se apresentam como

expressões de resistência, ressignificação, fulcro humano e sentido existencial.

370 Na obra Ambiente Espiritual de Nuestro Tiempo (1933) Karl Jaspers acrescenta que “a totalidad, sin

embargo, nunca es lo total pura y simplemente. Allí donde el hombre llegue como en última instancia en mundo, en el origen decisivo, se encuentra con algo que incluey Estado y educación” (1933, p. 83).

Page 339: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

337

Ao falarem sobre totalitarismo, labor científico e formação universitária, tanto Marcel

como Jaspers, quando reconhecem seus extraordinários desenvolvimentos, também constatam

a influência do espírito de abstração e a emergência da cultura das massas no âmbito das

universidades e dos seus respectivos espaços de pesquisas. Enquanto Marcel (1951b, 1955)

diz que falta à formação do técnico, do especialista e do cientista, a formação humana e

espiritual, Karl Jaspers compreende que as pesquisas científicas precisam recuperar seu

sentido mais amplo; necessitam procurar transcender a sua própria noção de objetividade e de

saber absoluto. Sobre o perigo da incidência da existência da massa, a respeito dos processos

construtores de saberes, ele acrescenta:

A existência das massas nas universidades tende a destruição da ciência como ciência. Esta deve adaptar-se a multidão que só busca sua finalidade prática: um exame e a justificativa a ele vinculados; a investigação só deve ser fomentada enquanto promete resultados aplicáveis praticamente. Assim se reduz a ciência a inteligibilidade e objetividade do que pode aprender-se. Ao invés da escola superior em sua espiritual inquietude do separe aude, faz sua aparição a escola pura e simplesmente. Ao indivíduo se priva do risco do caminho que ele há de buscar a si mesmo através de uma rotina curricular de estudos. Sem o risco da liberdade não se põe o transe original da possibilidade do próprio pensar. Depois resta apenas um técnico virtuosíssimo das especialidades e das grandes cópias do saber; se impõe um tipo de sábio e não do investigador. Algo em que já passa a se confundir como sintoma desta decadência (JASPERS, 1933, p. 136).

Em virtude do comprometimento da dimensão subjetiva do saber, Marcel diz que “[...]

a diferença entre Ciência e técnica anula-se praticamente” (1951b, p. 56). Num mundo onde

se afirma a hegemonia da técnica sobre o humano, a produção científica tende a confundir-se

e a perder o sentido que a define, como uma atividade benéfica, que deve ser dirigida para fins

superiores. Diante da perda do sentido benéfico da Ciência, Jaspers constata que “a crise do

saber científico é uma crise dos humanos, da qual são vítimas quando não há autenticidade em

sua incondicional vontade de saber” (1933, p. 137).

Conforme as análises de Gabriel Marcel (1961; 1968a), a clarividência da existência

não deve limitar-se nem resumir-se às teorias científicas ou discursos universais, que

pretendem a objetivação do Ser, sua vivência e relações, pois o pensar, assim como o existir, é

pura possibilidade. Seu desvelamento não remonta simplesmente ao que é palpável e sua

realização só encontra sentido à medida que compreendo a mim mesmo e aproprio-me da

verdade da minha existência. A constatação da limitação de encontrar, apenas no método

Page 340: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

338

científico, o sentido da realidade foi o fator determinante para a redescoberta do papel e da

importância da Filosofia para a Ciência, da vida humana e do diálogo entre as diferenças.

Segundo Karl Jaspers (1973), o valor da Filosofia encontra-se nos limites da própria

ciência, cuja cognição não diz respeito ao ser, não oferece objetivos à sua existência e nem é

capaz de, sozinha, oferecer resposta ao seu próprio significado. Ser limitada não significa ser

incapaz ou totalmente insuficiente. Isto quer dizer que, segundo este filósofo, a Ciência

contribui com a Filosofia quando, através de suas pesquisas, produz conhecimento, associa-se

à atitude científica e a conduz ao rigor metodológico e à crítica.

Na obra Razão e Anti-Razão em Nosso Tempo (1958), Jaspers demonstra que é

possível haver uma íntima e complementar relação entre Filosofia e Ciência. Para ele, uma

não pode subsistir sem a outra; pois, enquanto a primeira herda da segunda a busca pela

natureza do pensamento objetivo, seu método e rigor, a Ciência deve ter na Filosofia seu

interesse pelo exercício e sentido mais profundo dos resultados. O caminho de construção da

Ciência passa pela trilha do pensar filosófico e vice-versa. Nenhuma se basta sozinha; sua

unidade não pode ser confundida com homogeneidade, pois esta relação é de

indispensabilidade e, por isso, aberta às afirmações e às contradições de suas respectivas

análises e pontos de vistas.

A atividade filosófica é, por excelência, um movimento reflexivo-dialético, que não

aceita a limitação de uma determinada teoria ou campo do saber. Filosofar, para Jaspers

(1973) e Marcel (1940), é ir além dos guetos e limites do conhecimento objetivo; é passar a

transitar nas ruas espaçosas daquilo que eles chamam de “metafísica” que, neste caso, se

constitui num ato de elevação do pensar, pelo qual o sujeito alcança um autêntico

conhecimento de si mesmo e da realidade, lançando-se, deste modo, para além das fronteiras

das teorias objetivas da própria ciência.

Enquanto a meta da Ciência é estabelecer um modo de certeza que seja comum a todos

os homens, em todos os lugares e para todas as épocas, Karl Jaspers (1998) compreende que a

função da Filosofia é procurar desvelar a existência possível-concreta do homem que se vê

impelido pela “dúvida” e pelo “espanto” de si mesmo no mundo. A dúvida, enquanto atitude

problematizadora de todas as certezas e afirmações, enquanto postura inquietante do Ser

diante da realidade, o leva a questionar: do que podemos ou não duvidar? Qual o tipo de

certeza ou não que podemos alcançar? Estas questões surgem como ponto de partida para que

reflitamos a respeito do despertar do Ser, diante de si mesmo e de sua própria existência.

De acordo com Jaspers (1998), a dúvida nos leva a pensar sobre o que devemos buscar

na Filosofia, quando nos aponta o caminho de sua autenticidade, ou seja, “o chão firme da

Page 341: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

339

certeza” daquilo que sou e do modo como existo. Para ele, a “verdade” baseia-se no Ser e não

numa mera representação das coisas exteriores. Ela prova-se como autêntica consciência da

realidade.

Já o espanto consiste na experiência do homem em encontrar outra forma de ver e

conceber seu mundo, uma nova postura diante do mundo que sempre esteve ali, perto e em

volta do homem, e que agora passa a ser considerada através das lentes de uma nova

percepção, que o impele a buscar novos conhecimentos a fim de suplantar sua própria

ignorância. Conforme a análise de Joaquim Escola,

[...] o espanto, segundo Marcel, deverá ser a força, o móbil de uma autêntica educação [...] Educar seria então uma ação que visa despertar, desencadear nos alunos a capacidade do espanto e, ao mesmo tempo, vigiar como o homem do farol, iluminando a noite escura e perscrutando no mar revolto o caminho, indicando o trajeto seguro ao retirar da penumbra os rochedos que ameaçam, a todo o instante, fazer naufragar a frágil onde navega a nossa civilização (ESCOLA, 2011a, p. 472-473).

Filosofar-educar é estar disposto a enxergar a mesma realidade por outros ângulos

(MARCEL, 1940, 1956). Conforme Jaspers (1988), o espanto incita ao conhecimento; diante

dele nos tornamos conscientes de nossa própria ausência de saber. O espanto, deste modo,

apresenta-se como a expressão da liberdade no sentido positivo, ou seja, não é o ato de tomar

o espanto pelo espanto, mas, a atitude de vivenciá-lo, enquanto inquietação, para a mudança e

a transformação de si mesmo. Este espantar-se/filosofar parte da tarefa impulsora, dirigida

para o esclarecimento das existências individual e plural do ser humano.

Movido por estas inquietações, Otto Friedrich Bollnow chama a atenção para o caráter

apelativo da Filosofia, tomando como exemplo, a Filosofia de Karl Jaspers, quando afirma

que “[...] nos devamos limitar a um simples interrogar e a um constante apelar para a

experiência existencial” (JASPERS, 1946, p. 36). Para Bollnow,

(...) o apelo à existência, que deve ser despertada no homem, é certamente um tema de implicação pedagógica extraordinária, de tal sorte que seria possível, a partir desse conceito “apelo”, estabelecer uma forma própria, especialmente existencial da Pedagogia (BOLLNOW, 1971, p. 29).

O apelo à existência, caracterizado por Jaspers, já traz em si um aspecto educativo: o

ato de chamar a si mesmo para o que é fundamental à vida e à sua formação; uma convocação

da própria consciência livre, do Ser que clama por uma atitude de empenho, de engajamento e

Page 342: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

340

comprometimento, diante da construção formativa de seu próprio projeto existencial. Nas

palavras de Hubert Henz, este apelo pedagógico-existencial significa

[...] um chamado, um brado dirigido à consciência na liberdade e está acima da admoestação e do conselho. O apelo é o ato de despertar, praticado pelo educador sob a forma de uma intervenção na vida da criança que vive na distração, mas só se perfazendo pelo despertar do educando e pela libertação interior a ser efetivada pelo mesmo, onde o indivíduo é chamado a si (HENZ, 1970, p. 361-362).

É neste sentido que a reflexão pode contribuir para a educação e o fazer pedagógico.

Em sua natureza, esta educação revela-se como portadora deste chamado do Ser a si, a certas

realidades do homem, que na prática sempre estiveram presentes. Agora, apesar de não terem

sido admitidas anteriormente pelas teorias pedagógicas tradicionais, estas realidades podem

sim contribuir para a ressignificação do modelo hermético do homem, condicionado por sua

formação.

Conforme Gabriel Marcel (1951a), na problematização do saber encontramos os

aspectos mobilizadores da vivência humana, que podem contribuir para a releitura da noção

de diversidade, abertura e promoção da tolerância. A tolerância existe entre a fronteira do que

se sabe, o sentimento que se tem e a atitude que se forma. Saber, sentir e agir são aspectos

determinantes das relações entre os homens e a vida em geral. Enquanto na intolerância a

opinião se converte em crença, na tolerância a crença se converte em opinião, em atitude de

acolhimento à verdade daquilo que o outro é e apresenta saber. “Em rigor a tolerância é a

negação de uma negação, é uma contra-intolerância” (MARCEL, 2002b, p. 220).

A tolerância se ancora no pressuposto de que o outro ser humano é uma presença. É

um Ser, cuja concretude histórica, social, humana e espiritual é apreendida por mim, como

uma outra realidade pessoal, que deve ser salvaguardada. Na tolerância, o homem dá

testemunho daquilo que ele é, do desvelamento de si e do reconhecimento da verdade-

presença, que é o outro Ser. A presença possui um valor ontológico-pedagógico. Por ela, o tu

nos é apresentado como um Ser e não como um sujeito-objeto; como alguém com quem

mantemos uma relação de pertença e, não de um simples contato e/ou uso. Para Marcel, o

sentido desta pertença só transcende ao aspecto etimológico quando apreendemos seu

significado metafísico.

Notemos aqui o valor metafísico desta palavra ‘com’, tão raramente reconhecida pelos filósofos, e que não corresponde nem a uma relação de imanência ou de inerência, nem a uma relação de exterioridade. Será essência – e estou obrigado a adotar aqui a palavra latina – que um ‘coesse’

Page 343: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

341

autêntico, quer dizer que há uma intimidade real [...] (MARCEL, 2002b, p. 70).

Através da noção de presença é que se compreende que “[...] não há nem pode haver

fraternidade na abstração [...] e que não há nada mais enganoso do que a dialética do

igualitarismo” (MARCEL, 1951b, p. 143). Na igualdade, o Ser não se afirma, se abstrai; a

existência não se desenvolve, paralisa-se; e o homem não se humaniza, se despersonaliza. A

presença, ao contrário, “[...] é algo que se revela imediata e irrecusavelmente em um olhar, em

um sorriso, em um aceno, em um aperto de mãos” (MARCEL, 1987, p. 72). Implica em

reciprocidade porque exclui toda relação sujeito-objeto e ressalta o encontro ontológico do eu

com o tu. Pela presença, o homem não se aliena, se humaniza, fraterniza-se e educa-se aberta

e incondicionalmente.

Vivência, diversidade, tolerância, presença e educação são expressões e aspectos da

experiência humana que se correlacionam e não se separam; porque o paradoxo da

diversidade se dá mediante o processo de maturidade humana, que passa, necessariamente,

pelo reconhecimento de que “minha experiência está em comunicação real com outras

experiências e que não pode separar-se delas nem separar-se de si mesma” (MARCEL, 1951a,

p. 206). É a partir desta compreensão, e das implicações que a era da técnica e da tecnologia

impõem sobre o homem e o processo de ensino e aprendizagem, que Gabriel Marcel analisa e

propõe uma visão de educação que visa levar o educando a libertar-se do estado de sujeito

alienado, para a condição de liberdade e de produção do próprio conhecimento.

No livro Revolução da Esperança: rearmamento moral em ação (1961), Gabriel

Marcel amplia esta discussão a partir de novos aprendizados e novas perspectivas de

apreensão do real. Esta análise ampliada é o resultado de seu contato com pessoas de muitos

lugares, muitas nacionalidades e vários tipos de classes sociais. Partindo da análise da relação

política das pessoas com grupos e segmentos os mais variados possíveis, o autor discute o

problema e as implicações das ideologias totalitária e igualitária, que visam manipular as

minorias, os negros, os pobres, as crianças, as mulheres e os trabalhadores. Estes são seres

humanos atuantes no mundo, que fazem história, que produzem conhecimentos, que realizam

descobertas, mas que se veem totalmente como vítimas do ‘poder’ aviltante dos meios de

comunicação de massa e dos processos de funcionalização da vida. Ao falar das pessoas e de

suas realidades concretas, Marcel lança mão de uma ação reflexivo-pedagógica que se

descobre e se fundamenta na própria experiência do humano; uma prática que não o anula,

Page 344: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

342

mas que se faz a partir de suas falas e de sua própria maneira de ver, sentir, entender e ser no

mundo.

Entretiens Paul Ricoeur et Gabriel Marcel (1968a) é outra obra importante nesta

discussão. Ela é o resultado de uma conversa entre Ricoeur e Marcel. É um diálogo que

pretende mostrar que a interpelação da existência é tão importante quanto a existência da

reflexão. Este diálogo nos revela que estamos tão acostumados com ensaios, textos densos

sobre teorias e muito mais, que a educação do e para o diálogo e a tolerância é, de fato, mais

promissora à formação humana do Ser, que a pedagogia da resposta e da afirmação do saber

objetivo. O livro não tem introdução e também não possui conclusão, fazendo-nos

compreender que a educação para a tolerância não precisa de um momento específico para

começar, assim como não pode ter um limite e/ou tempo determinado para encerrar. A obra

de Marcel desvela um continente “[...] onde o pensamento se explicita e se materializa numa

busca conjunta, num trabalho de aprofundamento e cooperação, no encontro com o

pensamento alheio” (ESCOLA, 2011a, p. 203).

A pedagogia da pergunta e da comunicação se dá na e através da vida. Enquanto

houver vida, a atitude dialógico-interpelativa deverá conduzir todo o processo de formação

existencial do sujeito, que se reconhece, ao mesmo tempo, plural e inacabado, presença e

projeto, certeza e possibilidade. Por isto, como ser encarnado, o homem quer ultrapassar-se.

“Não se satisfaz com ser, numa quietude fechada em si mesma, o perpétuo retorno do

existente. Não mais se reconheceria autenticamente como homem, se se contentasse com ser o

homem que hoje é” (JASPERS, 1965, p. 50).

Considerando a diversidade humana e a singularidade de cada pessoa, tanto Marcel

como Jaspers nos convidam, através de suas abordagens, a olhar e a fazer do exercício

docente um meio de despertar a curiosidade, tanto do que ensina como do que aprende,

visando explicitar fatos e aspectos “[...] sobre a situação fundamental do homem” (MARCEL,

1951b, p. 108), a fim de se construir uma relação educativa humana, ética, justa, solidária e

democrática. Na busca pela construção de sentido de uma educação voltada para a diversidade

e tolerância, é preciso se destacar que

A educação chega ao indivíduo através do seu próprio ser, da participação do conhecimento da totalidade. Ao invés de permanecer imóvel aderindo ao seu mundo, ingressa no mundo, de modo que sua existência pode ser animada em toda sua estreiteza. A capacidade do homem para chegar a ser ele mesmo passa tanto por sua decisão, como pela claridade do mundo com a qual sua própria realidade pode identificar-se (JASPERS, 1933, p. 101).

Page 345: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

343

Compreendemos, neste sentido, que tanto Jaspers como Marcel (1968b; 1987)

enxergam a educação como um processo de interação humana, a partir do qual todo homem é

convidado a receber o outro, sem pretender dominá-lo ou reduzi-lo às suas próprias opiniões e

convicções, procurando construir o futuro sem fechar os olhos para os novos horizontes

humanos e históricos de sua própria formação. Buscamos compreender “que o homem é

sempre mais do que sabe de si mesmo, que não é uma existência rota que se repete através das

gerações, nem uma existência clara que evidencia a si mesma [...]” (JASPERS, 1933, p. 146).

Entendemos que o homem é alguém que, pensando, se contrapõe a si mesmo e aos demais,

porque pode ver todas as coisas entre as diferentes realidades, a diversidade da existência

humana e para além dos seus próprios contrastes e limites.

4.3 Papéis do educador-filósofo na era da técnica e da tecnologia

O pensamento de Gabriel Marcel inscreve-se num contexto onde os discursos e

debates sobre o predomínio da técnica, a emergência e a influência do cinema, do rádio, da

televisão e da propaganda, como meios de comunicação de massa, estão a serviço da

incidência da alienação e contra a dignidade do ser humano. Atrelados aos acontecimentos da

Segunda Guerra Mundial, estes mecanismos de persuasão das consciências transformaram a

existência humana num processo de produção e consumo, que resultou na obliteração do agir

livre e da capacidade do homem fazer-se autenticamente. Ao debruçar-se sobre o influxo

destas técnicas de aviltamento sobre o comportamento do homem, o teórico empreende uma

aguda crítica à realidade educativa do seu tempo, afirmando que “a educação não é amparo

onde há desmoronamentos lamentáveis” (MARCEL, 1951b, p. 40).

Esta foi uma época em que, segundo Marcel, a educação “(...) havia se transformado

num sistema rígido e angustiante” (1940, p. 126), pois, “(...) o ensino era penoso ao espírito

da criança, o sistema inteiro estava caindo aos pedaços, e era absolutamente certo, que para a

maior parte das disciplinas o resultado fosse vazio e nulo” (MARCEL, 1951a, p. 45). Ao

invés da educação desempenhar o papel de experiência formadora do desenvolvimento da

consciência crítica dos alunos e núcleo fortalecedor de seu fulcro espiritual, transformou-se

num tempo/espaço de conflitos e abstrações, que “[...] acabou contribuindo diretamente para

debilitar a formação do ser ao seu estado anêmico” (MARCEL, 2005, p. 90).

Diante destas dificuldades e sob a ameaça que o espírito de abstração tem exercido

sobre as consciências humanas, num período de desenvolvimento tecnocientífico, Gabriel

Marcel procura fazer, na obra Os Homens Contra o Homem (1951b), uma reflexão-crítica

Page 346: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

344

sobre o papel do educador-filósofo face à “essência da realidade espiritual [...] de um mundo

destroçado e em guerra consigo mesmo” (MARCEL, 1951a, p. 14, 32). Levando em conta

estes pressupostos, destacamos as exigências que pesam sobre o docente, numa era da técnica

e da tecnologia, procurando partir das condições gerais de suas possibilidades.

Num sentido amplo, a ideia do professor sofreu, no âmbito da cultura da indústria e da

técnica, uma verdadeira degradação, na medida em que a noção de sabedoria perdeu seu ethos

e o conteúdo substancial daquilo que o identificava como um ser de espírito livre e

conhecedor da realidade (SARRAMONA, 1975). Como sujeito formador de opinião, e como

alguém capaz de exercer influência sobre as outras pessoas, cabe ao docente procurar

desenvolver, de modo consciente e contínuo, uma prática que esteja ancorada numa visão

crítica dos princípios que a fundamentam, dos fins por ela visados e dos compromissos que

dela são requeridos.

Diante das mudanças e de outras exigências e a partir dos aspectos complexos da

educação, Gabriel Marcel compreende que, em primeiro lugar, o educador deve procurar

‘manter-se em guarda contra sua pretensa capacidade’, precisa “[...] reconhecer seus limites e

necessidades e ver que há domínios onde a sua incompetência é absoluta” (MARCEL, 1951b,

p. 97). A prática docente não acontece no âmbito de uma realidade resistente, bruta, imóvel e

impossível de mutação. A era da técnica e da tecnologia é mutante, complexa e fluída.

Zigmunt Bauman, na obra Confiança e Medo na Cidade (2006), descreve o caráter dos

desdobramentos destas mudanças como sendo próprios de uma época marcada pela migração

populacional, por conflitos étnicos, religiosos e políticos, de agravamento das diferenças

econômicas e sociais entre continentes, países e pessoas, degradação das condições materiais

das populações, crescimento do desemprego, insegurança. Esta foi, ainda, uma época marcada

pelo desenraizamento sócio-histórico, pela despersonalização das relações humanas, pelo

fluxo intenso de produção e troca de informações, criação de cidades virtuais, alargamento da

dimensão planetária e transgressão dos limites, que antes demarcavam os influxos da relação

entre sujeito, espaço, tempo, distância, conhecimento, sentido, segurança e vida.

Em Aproximacion Al Misterio Del Ser: posición y aproximaciones concretas al

misterio ontológico (1987), Marcel anteviu os efeitos que a revolução industrial e o

triunfalismo tecnológico trariam sobre a imagem que o homem constrói de si e de suas

respectivas consequências, do modo como os cidadãos modernos haveriam de lidar com os

novos aspectos deflagradores de sua realidade. Neste sentido, o teórico adverte que o

educador não pode permitir que sua atuação incorra em frivolidades, falsas lisonjas e/ou

discursos pretensamente ideológicos e puramente publicitários.

Page 347: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

345

Isto é, deve estar sempre em guarda contra uma pretensão incompatível com sua vocação verdadeira [...], porque o intelectual não se defronta com uma realidade resistente, como o operário ou o camponês, mas trabalha com palavras e o papel tudo consente (MARCEL, 1951b, p. 98).

Se, por um lado, o educador-filósofo pode achar, diante dos desafios que lhe cercam,

que deve ficar no campo das afirmações abstratas e/ou dos saberes que se pretendem

absolutos, por outra parte, ele precisa reconhecer que o engajamento da prática docente se

expressa pelo modo como cada um se compromete com as questões concretas do Ser, através

da relação entre os fazeres e os dizeres, que são realizados dentro e fora dos espaços

possibilitadores das vivências educativas e das aprendizagens.

O ato de ensinar exige que o docente faça o discernimento entre a arrogância

acadêmica e o espontaneismo da prática, entre achar que sabe de tudo ou que não deve

comprometer-se com nada; este ato implica em procurar reconhecer que há domínios e

saberes que a sua especialidade não alcança. Implica, ainda, em buscar o conhecimento de

outras competências e categorias humanas que consigam proporcionar, ao exercício do ofício

docente, as condições necessárias para o desempenho desejável dos seus próprios saberes e

realizações pedagógicas (MARCEL, 1955; BOLLNOW, 1962, 1971).

Neste sentido, ao educador-filósofo cabe, num segundo momento, ‘manter-se atento

às questões humanas e às transformações do mundo’, buscar questionar as ideologias e repelir

os processos que reforçam a cultura do envilecimento e da submissão à servidão. O docente

não pode colocar-se como “[...] um especialista de certo modo intoxicado pela própria

especialidade” (MARCEL, 1951b, p. 92). A atuação docente nunca se dá no campo da

neutralidade; jamais poderá fechar-se em si mesma, porque a produção dos saberes articula-se

através das relações existentes entre a escola, a sociedade, o homem e a realidade. A

construção de conhecimentos se transforma, continuadamente, através do tempo e nos

diversos espaços que vivemos e onde nos relacionamos. Posicionar-se indiferente aos

processos de mudanças é subestimar a própria condição possível do Ser, é perder de vista a

capacidade que o homem tem de criar, recriar e ressignificar os aspectos que constituem e dão

sentido à sua própria visão de mundo.

Como Ser de presença, a relação do homem com o mundo é sempre livre, criativa,

consciente e intencional. Movido pelo senso da presença, o agir do homem nunca é

determinista, porque reconhece, na condição humana, a realidade da dimensão histórica. “A

nossa própria situação histórica se transforma desde que nos pomos em guarda contra o que

pode chamar-se a sedução do acontecimento” (MARCEL, 1951b, p. 211). Colocar-se em

Page 348: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

346

guarda representa procurar não repetir ou esquivar-se diante das práticas e posturas aviltantes

que pretendem a humilhação do homem e sua degradação. “O silêncio em tal caso é

cumplicidade [...]. Efetivamente – e sem sombra de hesitação – o primeiro dever do professor-

filósofo no mundo atual é combater o fanatismo sob qualquer forma que revista” (MARCEL,

1951b, p. 98-99).

Na determinação do pensamento, as palavras dos homens, em alguns momentos,

constroem guetos, encerram-se em fórmulas precisas, comprometem a percepção da vida e

tornam míope sua visão da existência. “Isolado o professor corre o risco de separar-se da vida

e substituí-la insensivelmente pelo domínio de pensamento, espécie de jardim cerrado e bem

tratado, onde ele muda cuidadosamente os arbustos” (MARCEL, 1951b, p. 93). Na servidão,

as palavras docentes e discentes constroem submundos, fecham-se, caem em

condicionamentos e tornam estes sujeitos, escravos de ideias e concepções que ameaçam a

liberdade de si mesmos e a vitalidade da relação com os outros e o mundo. Onde quer que a

educação seja assim entendida, as possibilidades de transformação humana e intervenção

social são reduzidas.

Na relação entre conhecimento e mundo é que surge, num terceiro aspecto, a

necessidade do educador-filósofo ‘procurar cultivar um olhar fenomenológico da situação

fundamental do sujeito-educando’ e empenhar-se em construir uma prática pedagógica do

concreto. Para Marcel, as ideias e as concepções epistemológicas só fazem sentido quando são

vistas a partir da própria realidade e do contexto imediato dos homens.

Pensemos que as ideias só têm vida se o espírito lhe conserva, julgando-as sempre, quer dizer, mantendo-se mais alto, e que elas deixam de ser boas e até de ser ideias quando deixam de ser a base sólida e a expressão em atos da liberdade interior (MARCEL, 1951b, p. 100).

Realidade, existência e pensamento não devem/podem ser concebidos separadamente.

Na fratura desta relação estão presentes: a força dos processos de abstração, a energia dos

pensamentos sectários, o imperialismo da ditadura da ignorância e a legitimação dos

discursos, propostas e posturas absolutistas, intolerantes e excludentes de concepções,

culturas, experiências e pessoas.

A construção de conhecimentos e habilidades constitui uma das dimensões da

formação humana, algo que não deve ser confundido com a totalidade do processo formativo.

A educação do homem não é uma experiência que nasce do abstrato para o concreto.

Educação é um fenômeno que surge a partir do humano, à medida que encontra, nele e em sua

Page 349: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

347

existência, os aspectos fundantes de seu modo de ser, a razão primária e sentido último de seu

existir. O sentido da educação encontra no homem seu real significado e valor. À educação,

pensada nestes termos, impõe-se a atenção à realidade do mundo e a atitude de respeito aos

homens e às especificidades de suas vivências. A educação, nestas dimensões, exige a

necessária atitude de cultivar um olhar fenomenológico da situação concreta do Ser.

Em seu aspecto proposicional, a dimensão pedagógica da abordagem fenomenológica

apresenta-se como um ato em que se reconhece a educação como uma experiência

fundamental e profundamente humana. Na ótica de Antônio Muniz de Rezende, a

educação371,

371 Antonio Muniz de Rezende, na obra Concepção Fenomenológica da Educação (1990) considera a maneira de

trabalhar fenomenologicamente um processo educativo de formação humana. Ao acentuar o sentido e a força que o discurso pedagógico pode e/ou exerce sobre a prática docente e o processo de formação dos educandos, este teórico nos diz que, ao fazer fenomenológico, é preciso associar seu sentido pedagógico, estabelecer relações significativas entre os diversos elementos do fenômeno educacional e humano. A referência à Rezende e sua obra, no contexto deste trabalho de pesquisa, se dá por duas razões: primeiro, pela aproximação que há entre o papel da sua abordagem fenomenológica sobre a análise do discurso pedagógico e a compreensão fenomenológica do saber, descrita por Gabriel Marcel no Diário Metafísico (1968a); segundo, pelo fato de enxergarmos, no pensamento de Rezende, uma concepção fenomenológica da educação que se volta para educando numa perspectiva dos processos de desvelamento, que pretendem não só ajudá-lo a discernir os âmbitos da sua realidade, como contribuir com seu desenvolvimento humano e a ressignificação de sua própria existência. Neste sentido, ao fazer análises dos possíveis riscos e ameaças que perpassam a natureza do discurso pedagógico, Rezende compreende que é necessário o professor atentar para “[...] a discursividade do discurso pedagógico [...] e o alcance existencial da descrição. Isto significa, por um lado, o reconhecimento de que o sentido a ser aprendido é o da própria existência; e, de outro, que a questão comporta sentido [...] A compreensão, verificar o alcance simbólico do discurso, isto é sua capacidade de concentrar sentido, ao mesmo tempo, que sua capacidade tornar acessível o seu simbolismo [...] a interpretação que proporciona a densidade semântica nela contida [...] indagar de que maneira e até que ponto o discurso pedagógico contribui para a aprendizagem [...] igualmente, ênfase na corporeidade, insistência na significação dos procedimentos racionais abstratos, atenção especial à criatividade, à formação da vontade, ao exercício da liberdade [...] No que diz respeito à cultura a ser aprendida, os textos poderão fazer-nos ver, mais ou menos, a estrutura do mundo e sua complexidade [...] Mais ainda, o próprio texto pode ser analisado como fator de cultura. A produção de um texto é, também ele, trabalho gerador de cultura [...] Isto impõe a inserção do texto em seu contexto cultural e social de produção e comunicação [...] Significa que a visão do mundo manifestada pelo discurso pedagógico nunca é neutra [...] O reconhecimento da complexidade da nossa cultura não nos permite cair em qualquer forma de reducionismo: seja reducionismo tópico, enfatizando um tópico (a economia, por exemplo) em detrimento dos outros; seja o reducionismo radical, a-tópico, negando a própria realidades de uma cultura brasileira [...] Neste em muitos outros sentidos, o discurso pedagógico pode dificultar a apropriação da cultura, favorecendo ante os diversos processos de massificação e alienação cultural [...] E a questão se coloca de saber se, e em que medida, o discurso pedagógico se desenvolve como autêntica ação cultural [...] Todo discurso pedagógico encontra o problema da conscientização e se posiciona em relação a ele, ao menos implicitamente [...] Em relação à situação concreta de mundo, o discurso pedagógico poderá traduzir simplesmente um determinada hierarquia de valores, sem questioná-la, como poderá também pô-la em questão abrindo perspectivas para outros valores, numa nova forma de existência [...] Isto significa que todo texto, escrito ou falado, é confrontado com o problema da revolução cultural [...] Igualmente, as posições declaradamente implicadas na problemática da ação cultural e da revolução podem afinal conter limitações que reduzem de modo sensível o seu alcance [...] Qual é então o projeto cultural contido no discurso pedagógico? Há sempre um projeto, ao menos implícito, nas análises, nas críticas, no exame dos problemas. Quais os objetivos educacionais explícitos ou implícitos nos textos e em suas críticas? Reconhecendo que a ideologia não é apenas uma falsa consciência, mas a manifestação-ocultamento do desejo, indagamos que desejo é este subjacente ao texto e de que maneira este mesmo texto contribui para a manifestação ou abafamento das aspirações humanas? Finalmente, como um texto, na instituição escolar, nunca é utilizado de maneira isolada,

Page 350: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

348

Em seu sentido forte, é mesmo uma experiência universal e exclusivamente humana: todos os homens se educam, e só eles o fazem. Isto significa que a experiência da educação se torna uma das manifestações mais primitivas e típicas do fenômeno humano, em relação essencial com as outras características deste último. Tanto os indivíduos como os grupos, a família e a sociedade, a história e o mundo, estão implicados na estrutura do fenômeno educacional. Isto quer dizer que, em sua polissemia, a educação pode ser enfocada de vários pontos de vista, mas cada um deles acaba por nos remeter aos demais (REZENDE, 1990, p. 48).

Neste sentido fenomenológico, o papel da educação é tentar compreender a realidade,

buscar explicitar os aspectos do desenvolvimento da condição humana, através da apreensão

do seu sentido e do desvelamento dos modos como a existência e as relações são

experienciadas e apreendidas.

Gabriel Marcel descreve seu método de investigação como uma forma de abordagem

fenomenológica, que se dirige ao homem concreto. Sua intenção não se volta “[...] a uma

inteligência abstrata e anônima, senão, a seres individuais em que pretende despertar uma

certa via profunda de reflexão por uma verdadeira anamnesis no sentido socrático da palavra”

(MARCEL, 1951a, p. 11). Esta forma de organização do pensamento expressa-se,

deliberadamente, contra todos os ‘ismos’ ou sistemas fechados de interpretação do real,

quando pretendem desvincular o Ser das situações concretas do seu próprio existir. “Não pode

haver hoje uma educação-filosofia sem uma análise de essência fenomenológica sobre a

atuação fundamental do homem” (MARCEL, 1951b, p. 108).

A desvinculação do educando da sua realidade é, para Marcel, um dos fatores que tem

contribuído para o enfraquecimento das vozes individuais dos homens e o agravamento da

profunda crise de identidade que as pessoas enfrentam, na era da técnica e da tecnologia.

Representa “[...] um dos dilemas que tem sido enfrentado por um grande número de

educadores, [...] porque favorece a aparência de um relativismo sereno que, em nossa época,

tende a mutilar tão perniciosamente o adequado juízo moral” (MARCEL, 2005, p. 86-87).

Na educação, o homem só se desenvolve humanamente quando ousa colocar, sob

suspeita, as concepções e conclusões já assumidas; quando toma a iniciativa de problematizar

suas verdades e a visão que tem de si mesmo e do mundo. Atrelado ao discurso existencial, a

posição fenomenológica já anuncia que “a própria existência tem sentido e que toda

significação é inseparável da existência" (REZENDE, 1990, p. 17). Numa perspectiva

fenomenologicamente pedagógica, compreendemos que o papel da educação é: ajudar o

nos perguntamos qual o discurso pedagógico que emerge do conjunto dos textos preferidos, em função de um currículo e de sua integração, tanto horizontal como vertical” (REZENDE, 1990, p. 88-90).

Page 351: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

349

homem a enxergar a partir da base, por dentro e para além do real, os sentidos da própria

existência humana; é contribuir para desvelar o modo como o Ser é apreendido e/ou se torna

uma realidade viva e pessoal para si mesmo; é o desvelamento que se mostra através das

diversas manifestações do sentido, que atravessam a trama constitutiva do fazer existencial.

Ao falar sobre o modo como o homem se vê através da relação entre o ser e o ter,

Marcel afirma que “a escuridão do mundo exterior depende da minha obscuridade para

comigo mesmo” (MARCEL, 2003, p. 15). Ao fazer esta declaração, o teórico também diz que

não há, no mundo, nenhuma obscuridade intrínseca; que o problema da relação sujeito-mundo

encontra-se na maneira como o homem se enxerga e no modo como procura afirmar-se

perante os outros e sua própria realidade. A escuridão, neste caso, se constitui num estado

confuso do homem que se dá entre a opacidade de si e o mistério que o compreende e

envolve.

Através da busca fenomenológica do sentido existencial entre o homem, o

conhecimento e a realidade, os aspectos obscuros da sua análise, que estavam condicional e

ideologicamente cobertos, podem ser aflorados e/ou manifestar-se através da recusa a toda

tendência comportamentalista, que pretende aprisionar o modo de pensar, viver e ser do

humano. Na busca pelo cultivo de um olhar fenomenológico da concretude do homem, não

advogamos apenas a favor do repasse conceitual, ou teórico, de uma determinada forma de

investigação. Pelo contrário, buscamos ressaltar que o sentido da existência não se limita aos

cânones dos saberes dogmáticos e das teses materialistas. O que pretendemos é dizer que as

respostas que os educadores e educandos darão às suas inquietações poderão comportar

elementos que não só eram antes conhecidos como aspectos que os transcendem e os

ultrapassam.

Ao falar sobre a fenomenologia do saber, no Diário Metafísico (1968a), Gabriel

Marcel procura relacioná-la à compreensão que o homem tem de si. O processo de

assimilação dos saberes implica no reconhecimento da condição encarnada e histórica do

próprio ser humano. A mediação da corporalidade é que possibilita a construção do saber;

algo que permite “[...] de início que a oposição entre sujeito e objeto seja transcendida”

(MARCEL, 2003, p. 13). Deste modo, “O saber compreende em si a possibilidade de

alternância do ritmo” (MARCEL, 1968a, p. 184) de cada pessoa, ao se apropriar dos

conhecimentos que são necessários à vida. Ao professor, no processo de produção dos

saberes, cabe respeitar as especificidades ontológicas do sujeito-educando e o modo como a

realidade é apreendida através da experiência subjetiva de cada um.

Page 352: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

350

A análise fenomenológica do saber nos coloca na perspectiva de que a educação

consiste na tomada de consciência que o homem faz mediante a interpelação da existência. Os

atos de ensinar e aprender não se limitam a um atuar mecânico de simples estímulo ou

repetição de atividades. A educação, enquanto atitude fenomenológica, não deve desejar

apenas desenvolver no aluno a capacidade de elaborar problemas e resolvê-los técnica e

mecanicamente; senão, em ajudá-lo a descobrir “[...] como são dadas as respostas, mas, mais

que isso, de que outras maneiras elas poderiam ou deveriam ser dadas” (REZENDE, 1990, p.

11). Na inquietação de si mesmo e do seu existir, o educando deve/pode pretender a

ampliação do olhar que perscruta a realidade da qual é sujeito criador.

Assim como o mistério do Ser, o fenômeno da educação é inesgotável. Desvelamento

do Ser e educação não são aspectos que devem separar-se, porque seus respectivos

desdobramentos implicam uma comunicação por dentro. Envolvem o ato de procurar

examinar a natureza dos discursos e o modo como estes podem se transformar em

instrumentos de veiculação das proposições políticas e suas ideologias. A educação se dá no

âmbito da tensão entre a influência externa e a liberdade do Ser, numa relação onde “[...] há

que se reconhecer que esta tensão, esta espécie de reciprocidade fatal pode em qualquer

momento transformar nossa vida numa espécie de escravidão incompreensível e intolerável”

(MARCEL, 1968a, p. 204).

Ao procurar cultivar um olhar fenomenológico da situação fundamental do sujeito-

educando, não somente consideramos como importante a mudança na relação entre o homem

e a produção do conhecimento. Faz-se necessário alterar a própria percepção que o eu passa a

construir do tu. O olhar fenomenológico da realidade também pode contribuir para melhorar a

qualidade da relação entre professores e alunos. Através dos saberes absolutos e das posturas

herméticas da técnica, pode ser implantada uma radical ruptura entre um Ser e outro. Todavia,

diante da abordagem fenomenológica, compreendemos que docentes e discentes também

podem alcançar o reconhecimento da encarnação histórica e contextual de cada sujeito.

A partir das contribuições da atitude fenomenológica, professores e alunos poderão

passar a considerar seus saberes como parte de uma realidade ampla, que, através do diálogo,

tende a aprofundar-se e a alargar-se teórica e praticamente. Na busca pelo desdobramento dos

significados, a obscuridade que separa os sujeitos é superada à medida que torna possível ver

o outro como uma “[...] presença que está vinculada à alteridade” (MARCEL, 2003, p. 14); e

também vinculada ao acolhimento, não só do que este outro diz, produz ou apresenta, como

do que ele é e representa, enquanto Ser, subjetivamente encarnado.

Page 353: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

351

Neste sentido, a educação pode tomar o mundo como referência, o educando, como

centro e “as condições fenomenológicas como ato que implica sempre um comprometer-se”

(MARCEL, 1951a, p. 347). Na intenção de corresponder às exigências deste

comprometimento, cabe ao professor-filósofo, num quarto momento, ‘procurar desenvolver

uma visão metafísica de suas concepções fundamentais’.

De acordo com Gabriel Marcel, “a crise do homem ocidental é uma crise metafísica”

(1951b, p. 35), um acrisolar do humano, onde, na perda do contato real consigo mesmo, com

o mundo e com os acontecimentos à sua volta, o homem se sente reduzido à simples menção

abstrata. Na compreensão de Karl Jaspers, esta mudança de concepção sobre o humano

acontece na era da técnica e da tecnologia porque

[...] o conhecimento que se tem do homem passa a ser mais importante que o próprio homem, adota-se por vezes, atitude de singular superioridade, como a de quem possuísse conhecimento absoluto, capaz de tudo penetrar e tudo esclarecer. Dessas alturas, olha-se para as misérias humanas. Toma-se posição de Ser superior, que domina espiritualmente o mundo – o que se torna de um ridículo todo particular, quando se é pessoalmente um pigmeu (JASPERS, 1965, p. 92).

Em nome do progresso e da produtividade, a que todo homem devia entregar-se,

instaurou-se uma política da totalidade, a crença numa existência da uniformização e se

propôs uma educação voltada para a aquisição de domínios científicos e especializações

técnicas. Ademais, admite-se que as questões referentes à educação estão suficientemente

construídas; assim, caberia uma preocupação com questões de ordem prática e de cunho

metodológico: promover a implementação de propostas curriculares, cujos fundamentos

apontam para uma concepção da realidade que se anuncia, pretensamente, como concretizada.

Entretanto, ao falar sobre a necessidade do educador-filósofo procurar desenvolver uma visão

metafísica de suas concepções fundamentais, Marcel propõe questionar a natureza do

cerceamento do processo educativo, buscando problematizar as concepções de senso-comum,

a partir de uma visão integral do ser humano e do reconhecimento de que “[...] há no ser

humano tal como nós o conhecemos algo que se rebela contra esta espécie de violação ou

desvinculação de que é vítima” (MARCEL, 1951a, p. 41).

Ao pretender construir uma concepção educativa do humano, a partir da visão

metafísica de suas concepções fundamentais, Marcel anuncia uma total recusa a toda

pretensão idealista do homem e da própria educação; e a procurar “[...] mostrar como o

Idealismo tende inevitavelmente a eliminar toda consideração existencial” (MARCEL, 1968a,

p. 14). À educação, na intenção de superar toda concepção totalitária do ser humano, cabe,

Page 354: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

352

continuadamente, a renovação de seus pressupostos teóricos e a libertação de todas as

categorias que limitam a compreensão humana à ordem da quantidade e do quantificável.

“Cumpre à imaginação metafísica proceder a uma renovação das categorias fundamentais”

(MARCEL, 1951b, p. 109) do Ser e sua formação.

Numa perspectiva metafísica, recomenda-se ao educador considerar outros olhares, a

partir e sobre o humano, que consigam ajudar a suplantar toda tendência educativa

maniqueísta372, que pretenda determinar os modos de sua existência e os rumos de sua

formação. Ao sucumbir à tentação do quantitativo sobre o metafísico, o educador renuncia

àquilo que é próprio do humano. Para além disso, o homem, na sua condição encarnada e

metafísica, não pode permanecer como é. Ele deve, conforme Karl Jaspers, pensar-se a partir

do que tem sido.

O homem foi definido como ser vivo dotado de palavra e pensamento (zoo logon echon); como ser vivo que, agindo dá a sociedade a forma de cidade regida por leis (zoon politikon); como ser que produz utensílios (homo faber); que trabalha com esses utensílios (homo laborans) que assegura sua subsistência por meio de planificação comunitária (homo economicus). Cada um dessas definições leva em conta uma característica, mas o essencial não está presente: o homem não pode ser concebido como um ser imutável, encarnando reiteradamente aquelas formas de ser. Longe disso, a essência do homem é mutação: o homem não pode permanecer como é. Seu ser social está em evolução constante. Contrariamente aos animais, ele não é um ser que se repete de geração em geração. Ultrapassa o estado em que é dado a si mesmo [...] Tudo que sabemos do homem, tudo que cada um dos homens as de si mesmo não corresponde ao homem. Aquilo a que o homem está ligado, aquilo com que o homem se debate não identifica o homem. Sua origem propõe-lhe um problema que se transforma em alavanca da qual se vale para tentar fugir àquilo em que está enterrado. A partir daí, ouve ele a exigência que não lhe deixa repouso. Sua consciência de ser se realiza com base em algo que ele jamais compreende, mas de que acredita participar uma vez que seja ele mesmo (JASPERS, 1965, p. 47-48).

Consciente de sua própria condição metafísica e movido por uma visão ampla acerca

do humano, o educador tentará compreender que a educação não pode limitar-se a um simples

372 Cf. HCH, p. 110-111; “Decerto não seria errado lembrar que a nossa situação nos leva a aceitar o que

chamarei um certo maniqueísmo prático; quero dizer – e isto é mais sensível na nossa época do que em qualquer outra – que todos nós, como seres morais, temos de reconhecer a oposição irredutível do bem e do mal e de optar pelo primeiro contra o segundo. Mas o maniqueísmo prático, relativo ao modo como o bem e o mal se apresentam à consciência militante, não pode transformar-se sem abuso em um maniqueísmo teórico ou metafísico, que trata o bem e o mal como princípios de realidade iguais, que disputam, entre si, o império dos homens. Dizendo que tal operação é legítima, claro que me coloco no ponto de vista do filósofo, não do crente, conforme com a decisão de um concílio que há mais de quinze séculos proclamou herética a doutrina maniqueísta. Quero dizer somente que o maniqueísmo como doutrina metafísica, implica o falso conhecimento da experiência humana no mais alto nível”.

Page 355: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

353

processo de produção e rendimento, e que o educando não deverá ser pensado ou

condicionado ao nível da máquina ou da função. O educador precisa conscientizar-se de que o

indivíduo-educando não é redutível a uma ficha, nota, conceito, caderneta ou número, através

de elementos determinantes de seu futuro ou da sorte que lhe caberá. Em tais condições, o Ser

autenticamente criador é suplantado, ignorado, humilhado e aviltado na sua condição humana

e na sua relação intersubjetiva.

Em Homo Viator (2005), Gabriel Marcel afirma que a dimensão metafísica “constitui

o núcleo de uma fenomenologia das relações entre eu e o próximo” (MARCEL, 1951a, p.

161). Este teórico enfatiza que o desvelar da existência humana passa, necessariamente, pelo

caminho da comunhão intersubjetiva. Através da noção de comunhão intersubjetiva,

professores e alunos poderão pensar e/ou superar a problemática dos sentimentos de

isolamento, abandono e solidão que, numa era da técnica, da tecnologia e da criação dos

cyberespaços, ao mesmo tempo em que contradizem a dimensão metafísica, também revelam

que o homem é o único ser que não se desenvolve separado de outros da sua mesma espécie.

A análise em torno da visão metafísica nos coloca na trilha do encontro com o outro, em

direção à compreensão de que a educação não se dá no encarceramento social, digital,

conceptual ou institucional do aluno. A reflexão metafísica sobre o ser e sobre a educação

sugere do entendimento de que a formação humana faz-se na convivência fraterna, através da

relação dialógica entre professores, alunos e a comunidade em geral.

Os postulados da visão metafísica do humano e de sua relação intersubjetiva

equivalem a dizer “[...] que o homem deve ser apreendido como uma participação efetiva”

(MARCEL, 2003, p. 133), que caberá ao educador-filósofo, num quinto momento, no

comprometimento de si, ‘buscar a coerência entre um agir ético e uma visão ampla do

humano’, no âmbito de suas relações sociais e de seu fazer educativo. O fazer pedagógico

nunca se encerra nele mesmo. Nenhuma teoria, método, conteúdo ou prática educativa terá

sentido se não se relacionar ao homem e à sua própria existência. Pela educação, não somente

educandos se formam, mas educadores também se fazem, se constituem, desenvolvem-se e

podem avançar no processo de maturidade e formação humana.

Numa era da técnica e da tecnologia, docentes e discentes são bombardeados,

diariamente, por concepções, imagens, mensagens e informações que criam uma visão

caricatural, que pretende subalternizar e desvalorar a própria condição humana. Essa leitura

condicionada do Ser é fraticida da relação entre o agir e a visão que o educador pode vir a ter

do aluno. Ao deixar de reconhecer o primado da dignidade humana sobre as fórmulas de

pensamentos abstratos e reducionistas do homem, é possível que a relação pedagógica mostre-

Page 356: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

354

se desinteressada ou pretensiosamente vazia. Ao invés de ser um processo de emancipação, a

educação, nestes termos, poderá se converter num mecanismo de manipulação, um fio

condutor do espírito à servidão e reprodutor da cultura da barbárie e da degradação social.

Ética, visão e relação intersubjetiva são aspectos do fazer educativo que se

interpenetram, nutrem-se, ajudam-se e complementam-se. Articulados, poderão nos levar à

compreensão de que “as ideias só tem vida se o espírito lhas conserva, julgando-as sempre,

quer dizer, mantendo-se mais alto, e que elas deixam de ser boas e até de ser ideias quando

deixam de ser a base sólida e a expressão em ato da liberdade interior” (MARCEL, 1951b, p.

100). Toda prática pedagógica que se pretende humana e humanizadora dos homens e dos

processos educativos deve procurar buscar a coerência entre um agir ético e uma concepção

ampla acerca do humano e dos processos possibilitadores do seu desenvolvimento.

A coerência entre os fazeres e os dizeres docentes só é possível a um Ser cuja

existência esteja comprometida com sua própria formação. A articulação entre ser e fazer é

mais importante ao educador, que seu discurso ou simples domínio cognitivo de teorias. Na

ausência desta coerência, a prática docente “[...] tende invariavelmente a obliterar-se na

consciência do filósofo-professor para quem o seu sistema tende a substituir o mundo e a

vida” (MARCEL, 1951b, p. 108).

“Assumir uma postura ética trata-se de uma opção decisiva, de uma escolha entre ser e

não-ser” (MARCEL, 1951b, p. 113), entre enfeudar-se ou comprometer-se existencial e

pedagogicamente. Implica em dizer que as intenções docentes e os fins da educação, por

melhores que sejam, pouco servirão ao processo de formação humana dos alunos, se os

próprios educadores não se tornarem uma expressão viva daquilo que ensinam e do seu

comprometimento. Neste sentido, não se deve entender que ao educador caberá indicar ao

educando qual é o caminho a ser seguido ou, quem sabe, o exemplo a ser copiado. O que se

pretende não é que o docente seja visto como um modelo ou padrão, senão, que cada aluno,

contemplando seu agir ético, sinta-se motivado a realizar, na busca pela construção de si, “[...]

não um trabalho malfeito, mas um trabalho coerente” (BUBER, 2011, p. 27).

No interesse pela construção de um trabalho coerente, caberá ao educador, num último

aspecto, ‘colocar-se na condição de mediador dos processos transformadores da realidade e do

mundo’. Diante de uma cultura geradora da “auto-complacência burguesa, de

convencionalismos, do hábito de considerar o bem-estar material como razão suficiente de

vida, de apreciar a ciência em função de uma utilidade técnica” (JASPERS, 1965, p. 140),

além da pretensão do ilimitado desejo de poder, da bonomia dos políticos e do fanatismo das

Page 357: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

355

ideologias, “talvez pudesse dizer-se que entre o mundo das técnicas e o da espiritualidade

pura a mediação do filósofo é cada vez mais indispensável” (MARCEL, 1951b, p. 116).

Nesta direção, como propõe Marcel, observamos que o papel do educador não deve

ser o de querer fazer prevalecer sua crença. Antes, supomos que o docente tem todo o direito

de se pronunciar sobre todas as matérias que envolvem os processos constituidores e

transformadores da realidade. Todavia, temos que considerar também que o professor precisa

reconhecer a especificidade de cada situação, explorá-la quanto possível, sem esperar atingir o

conhecimento exaustivo a que se presta o objeto da matéria/Disciplina que leciona, ou da

ciência/Teoria que estuda.

Nesta perspectiva, é possível compreender que reconhecer é diferente de conhecer,

que toda atividade docente se dá no âmbito de uma dualidade paradoxal, que envolve tanto a

sua própria condição quanto a consciência que a analisa e a apreende. Neste caso, o cuidado

que se deve tomar é o de não converter um pensamento, que é específico e pessoal, numa

leitura que se pretende totalitária dos homens e do mundo. Decerto, cumpre afirmar que um

simples ponto de vista não pode determinar o nosso pensamento, encerrando-o em fórmulas

precisas e que a construção do conhecimento sempre traz consigo o princípio de uma sublime

irredutibilidade.

A produção do saber não pode se constituir num processo de sublimação do Ser, nem

se transformar numa postura pela qual se impõem juízos de valor, de acordo com seus padrões

últimos e individuais. “Considera que o professor, se quiser permanecer nos limites da

honestidade intelectual, deve ter a consciência de que não é possível ter o domínio das rodas

da história, fazendo-as girar de acordo com os seus desejos” (CARVALHO, 2005, p. 106). Ao

educador, “categoricamente direi que ele não pode volver-se profeta” (MARCEL, 1951b, p.

114). Um dos possíveis equívocos que um professor pode cometer é o de tentar levar seu

aluno a ver e interpretar as coisas do mundo de acordo com suas próprias lentes e opiniões.

Aos educadores cabe instigar, no aluno, o senso crítico, a capacidade de não só entender os

aspectos fundantes da realidade, como também, a motivação para questionar o porquê, o para

quê e o modo de ser de cada um deles. Como Ser encarnado, o homem precisa conservar sua

integridade intelectual, a fim de dar sentido às suas utopias, responsabilidades e ações.

O papel do educador-filósofo, na era da técnica e da tecnologia, é colocar-se como

sujeito mediador dos processos de ensino e aprendizagem; discernir entre o profetismo

pedagógico e a pedagogia da esperança “[...] sem pretender exceder a experiência e fundar as

suas próprias profecias sobre a ciência, a biologia, a economia ou a sociologia” (MARCEL,

1951b, p. 115). É seu papel, ainda, compreender que o fazer pedagógico passa, direta e

Page 358: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

356

transversalmente, pelos caminhos sinuosos das experiências contínuas e descontínuas da

formação humana. Ao educador-filósofo cabe problematizar as concepções e aos saberes que

orientam sua prática e denunciar, incansavelmente, a ilegitimidade das posturas aviltantes e

ideológicas.

O educador-filósofo, no mundo atual, busca sempre compreender, que a audácia da

confiança, que o educador deposita no educando, pode lograr êxito, através do testemunho

pessoal de uma ação pedagógica que demonstra, conscientemente, o esforço de não se deixar

desanimar nem sucumbir, não obstante as decepções e desconfianças que o assediam e o

ameaçam existencialmente (MARCEL, 1927; BOLLNOW, 1971). Enfim, o educador-filósofo

evita que os domínios da técnica e da tecnologia violem e/ou determinem o fulcro de sua

condição existencial, procurando sempre questioná-los, à luz da esperança e da fé que

necessitamos sempre conservar com relação ao humano e suas possibilidades.

4.4 Desafios das tarefas pedagógicas ao fazer concreto: exigências da formação humana

Para tornar atualizável e autêntica a ação educativa, é imprescindível que o educador,

fundamentado no esforço de construir uma prática pedagógica para a existência concreta do

sujeito-educando, possua não apenas domínios e saberes técnico-metodológico. O educador,

ao conceber a educação como uma dos modos de submeter a existência humana à ordem

objetiva de uma razão técnico-pragmática, não apenas torna o binômio ensino-aprendizagem

como sinônimo de reprodução estéril, como restringe a liberdade do homem de desvelar-se

como um Ser de potencialidade e possibilidade.

Ao afirmar que ao educador cabe “[...] uma certa vida de reflexão que pode e deve

prosseguir em todos os degraus da atividade humana” (MARCEL, 1951b, p. 248), Gabriel

Marcel sinaliza que é tarefa do educador “defender o homem contra si mesmo, contra a

extraordinária tentação do inumano, a que tantos seres hoje sucumbem – quase sempre sem

dar conta disso” (1951b, p. 236). Ao ressaltar que à educação cabe o papel de contribuir para

subtrair o maior número de pessoas do estado de aviltamento e alienação, Marcel considera

que a educação, enquanto processo de formação humana, não deve consistir apenas numa

proposta puramente instrumental, própria da ciência e da técnica moderna. Antes, a educação

deve possibilitar ao homem não apenas a condição de mover-se na esfera do concreto, mas

oferecer ao Ser as condições necessárias para alcançar o fim autêntico de sua vida. Posto

nestes termos, educadores e educandos têm diante de si os desafios de procurar desenvolver

Page 359: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

357

uma prática pedagógica geradora de sentido humano, que seja promotora da dignidade do Ser

humano e que se mova numa perspectiva do mistério e da transcendência do Ser.

4.4.1 Desenvolver uma prática pedagógica geradora de sentido humano

O mundo da técnica e da tecnologia exige, urgentemente, que o homem tome

consciência da sua singularidade e posição histórica no mundo, sem que possa reduzir-se a um

conjunto de clichês e afirmações, pretensamente, ideológicas e elementares. “Ao perguntar-se

sobre quem sou eu? Ou, o que significa minha existência?” (MARCEL, 1951a, p. 140), o

homem não apenas interroga se está qualificado a responder a estas perguntas, como sente a

necessidade de encontrar fora de si um testemunho que comprove os aspectos que

fundamentem sua autoapreciação.

Na intenção de resolver estas questões, o homem hesita entre duas respostas possíveis;

“trata-se de uma opção decisiva, de uma escolha entre ser e não-ser” (MARCEL, 1951b, p.

113): definir-se diante de uma experiência análoga e/ou de uma tomada de consciência

autêntica. Ao tentar posicionar-se entre estas possibilidades, o homem se vê na tensão de

buscar cultivar um viver coerente, a partir de si mesmo, ou conforme os pressupostos das

técnicas de aviltamento reducionistas, que pretendem a abstração da diversidade humana.

Diante destas considerações, perguntamos: de que maneira a supressão das distâncias, operada

pelas novas tecnologias, terá incidência espiritual sobre o homem? E de que modo a educação

poderá se colocar a serviço da construção de sentido humano, a partir da própria existência do

Ser?

“Onde a técnica é soberana – e refiro-me, antes de tudo àquela que tende a assegurar a

ação do homem sobre a natureza – [...] o homem passa a viver uma completa desapropriação

de si mesmo” (MARCEL, 1958, p. 7, 10). Através das insurgências da técnica e da tecnologia,

o homem pode ser levado a pensar que sua vida é literalmente inapreensível, ou que ele

sempre deverá procurar viver voltado para algo que não seja ele mesmo e/ou que esteja fora

ou para além da sua própria existência.

Ao falar na obra, El Misterio Del Ser (1951a), sobre o sentido da vida, Gabriel Marcel

lança mão de uma reflexão que trata sobre a importância da relação existencial entre as

categorias da (inter)subjetividade, da identidade e da profundidade. Ao relacioná-las, o teórico

nos diz que o homem pode, ao se questionar sobre o sentido da vida, encontrar-se na condição

de ator ou autor da própria existência.

Page 360: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

358

Quando me pergunto se minha vida tem sentido, parece que me refiro a um sentido independente de minha vontade; mais ou menos explicitamente me refiro a uma obra de teatro na qual desempenho um papel, e me interrogo sobre a significação possível da ação em que devo participar. Desde este ponto de vista me sinto na posição de um ator de quem não se tenha lido a obra, ou que não tenha feito um resumo antes de dar-lhe o papel que deve aprender. Se tenha dito simplesmente: a tal sinal você entrará, pronunciará tais palavras, fará tais gestos, logo sairá. O ator tem que supor que essas palavras e esses gestos que para ele tem apenas algum sentido, se explicarão, sem dúvida, na luz projetada pelo conjunto. Se a vida tem sentido (if there is a plot), minha vida terá sentido (MARCEL, 1951a, p. 159).

De acordo com as comparações extraídas do universo teatral, em circunstâncias

concretas, o homem terá que resolver entre uma vida que é sua e outra que não coincida

consigo mesmo. Terá que decidir entre viver, conforme o ator, no improviso da representação

social, quando determina seus gestos, comportamentos e falas, ou, de acordo com o diretor,

que tem a capacidade de dar aos personagens os dados necessários para que estes

desempenhem, com maestria, os papéis que lhes foram confiados, no sentido de criarem a si

mesmos.

As ilustrações do ator e do autor pretendem levar educadores e educandos a pensarem

que a existência humana não se dá de modo espontâneo ou de maneira fortuita, “[...] como

uma carteira que foi encontrada por azar num determinado caminho” (MARCEL, 1951a, p.

160). Para Marcel, a existência não deve ser comparada com um descobrimento, um achado

desprovido de esforço ou intenção, que pode acontecer ou não a qualquer momento da vida. A

existência não pode ser tomada como um ato de pura sorte, uma ação desprovida de sentido e

engajamento real.

Na busca pelo discernimento e compreensão dos aspectos possibilitadores do sentido

da vida, é preciso que se faça uma distinção entre as noções de objetividade e subjetividade,

entre o modo como o homem se vê e a forma como os outros o enxergam. Marcel ilustra,

através de um segundo exemplo, o modo como estas noções podem se diferenciar por meio de

um simples olhar ou forma de perceber a si e o outro, no âmbito das relações entre as

circunstâncias e as coisas:

Digamos que estou atrasado, que é tarde e que corro o risco de perder-me numa região difícil e quiçá perigosa, tenho a impressão fugaz e irresistível de que se dirige a mim um amigo desejoso de ajudar-me. Ocorre que o outro se coloca em meu lugar, idealmente ocupa minha situação. Não se trata simplesmente de dar-me indicações como faria um guia ou um mapa, senão, de estender a mim a mão que estou só e desamparado. É uma espécie de guia espiritual que aparece para sumir de imediato, não voltaremos a nos ver,

Page 361: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

359

porque durante um momento me sinto confortado pela cordialidade inesperada que me dedicou este desconhecido que passava (MARCEL, 1951a, p. 164).

De acordo com a descrição acima, através do encontro das individualidades, entramos

na perspectiva das relações intersubjetivas, do domínio em que a vida passa a ser afetada pelo

signo do ‘com’, do encontro de subjetividades, que jamais poderá aplicar-se ao objeto

enquanto tal.

Quando atrelada às noções de identidade e de profundidade, a categoria da relação

intersubjetiva nos indica que o fato de dois indivíduos estarem envolvidos numa mesma tarefa

ou causa não representa, necessariamente, que houve entre eles um processo de fusão de

individualidades, uma unificação capaz de comprometer suas especificidades e anular suas

diferenças. Do ponto de vista contrário, isto só acontece no âmbito do processo de abstração.

No abstrato podem imaginar-se vários casos, conforme houver ou não redução; se há redução, uma das coisas perde parte dos caracteres próprios para confundir-se com a outra; a unificação liga-se neste caso com o empobrecimento de uma delas ou de ambas; se não há, teoricamente pode a convalescência produzir-se sem modificação de qualquer uma delas (MARCEL, 1951b, p. 196-197).

Articulada ao universo das relações escolares, a contraposição entre intersubjetividade

e abstração sugere que, tanto uma como a outra, pode vir a acontecer. É possível que, na

relação educador-educando, uma das duas possa ser reduzida a simples unidades que se

somam. O conteúdo da relação entre docentes e discentes só se enriquece, na medida em que

esses indivíduos chegam a conhecer-se individualmente e a reconhecer a singularidade do Ser

e do futuro possível de cada um. Só assim é possível criar, no espaço escolar, um verdadeiro

companheirismo, onde todos estão simultânea, pedagógica e existencialmente comprometidos

com aquilo que são e haverão de ser, particular, histórica e incondicionalmente. Na relação

intersubjetiva, “a dedicação é como a semente que permite a criação destes laços e destas

relações” (MARCEL, 1951a, p. 165). Na perspectiva de Röhr,373

373 Ferdinand Röhr considera que o processo de desvelamento, que envolve a busca pelo sentido da vida,

comporta a necessidade de uma reflexão mais profunda do Ser, a partir de uma visão da integralidade humana, incluindo nela a dimensão espiritual. Assim, ele comenta: “A proposta da integralidade só pode ser compreendida, na nossa visão, como tentativa de atender a todas as dimensões do ser humano, considerando as características específicas que cada dimensão traz em si. Concentramos o maior peso, nas nossas reflexões, na dimensão espiritual, por ser ela a que está sendo negligenciada na maioria das propostas em discussão e para sugerir uma compreensão que se diferencia do modismo que em torno dela se criou ultimamente” (RÖHR, 2013, p. 142).

Page 362: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

360

Trata-se de um compromisso incondicional consigo mesmo, de sua realização na vida prática, que pode até contar com recaídas e fragilidades, mas nunca sem sentir a dor profunda da negação de si mesmo e o desejo de superação. São indispensáveis, nessa busca e luta, as pessoas que compartilham como companheiras o mesmo caminho, na exigência que cada um se torne sempre mais ele mesmo, podemos encontrar a única base sólida na edificação de estruturas sociais humanizadas, que prometam uma convivência pacífica diante das ameaças políticas, econômicas, tecnológicas e ambientais existentes (RÖHR, 2013, p. 144-145).

Através da relação intersubjetiva, tanto a identidade como a profundidade do Ser, ao

mesmo tempo em que são identificadas, também se expandem em qualidade e

especificidades. Cria-se uma atmosfera de conhecimentos recíprocos que transcende as

perspectivas da relação entre o transmissor e o simples receptor de informação e sentido. O tu

deixa de ser uma mensagem para o eu, à medida que ambos se afirmam como autênticas

presenças (MARCEL, 2005). Desta maneira, reconhecemos que o sentido da vida passa pela

compreensão do Ser a respeito de si mesmo. Esta é uma forma de entendimento pela qual se

entende que, assim como é impossível reduzir o homem a uma unidade formal, da mesma

forma pode-se afirmar que o encontro intersubjetivo, à medida que revela, também afeta a

própria formação humana, espiritual e existencial do sujeito. Através da relação entre os seres

fica demonstrado “[...] que o subjetivo em sua estrutura própria é imediata e profundamente

intersubjetivo” (MARCEL, 1951b, p. 167).

A reflexão intersubjetiva propõe à transcendência a oposição que há entre unidade e

pluralidade. Condicionado à ideia de unidade, o homem converte-se no parâmetro da sua

própria totalidade. O Ser desnaturaliza-se, despersonaliza-se, desumaniza-se e deixa de

exercer, sobre si mesmo e sua existência, um olhar de questionamento e problematização

histórica (MARCEL, 1927, 1987). No auge do próprio apego, o aluno ou o professor terá

dificuldades de reconhecer seus limites e potencialidades. Nestes termos, o indivíduo não

pode separar-se ou reduzir-se abstratamente à sua própria simplificação. A unidade de si

contrapõe-se ao encontro da diversidade dos seres, “porque reduzir é sempre desqualificar, é

acentuar a redução progressiva da diversidade humana, um nivelamento extraordinário das

sociedades e do modo de viver” (MARCEL, 1951b, p. 197-198).

A construção da identidade pessoal passa, necessariamente, pela minha condição de

ser histórico, pelos processos contínuos e descontínuos da experiência não objetivável do

homem. Entre o que fui, sou e estou sendo, há tanto um modo de existência singular, quanto

um estado de vigilância entre o homem que fui e o que intento ser. Nestes termos, o juízo de

identidade só pode ser articulado aos domínios dos objetos e das coisas, pois a relação do

Page 363: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

361

homem com seu núcleo mais íntimo nunca poderá acontecer através de uma dialética

aporética, ou seja, sem considerar as modificações e transformações que o homem sofre e

efetua ao longo de sua historicidade. “Independente da qualidade do sentimento que confere

sentido àquilo que poderia chamar-se identidade, haverá a continuidade de um devir

histórico” (MARCEL, 1951a, p. 171). Haverá, ainda, a condição do ser-possível, que existe

independentemente das mudanças que o homem viveu e experimentou ao longo da vida.

O homem é existencialmente puro devir e não pode ser confundido com uma

representação sucessiva de imagens ou com um ser estático, invariável, imóvel e que se

perpetua, de acordo com a formação técnica, como uma peça de substituição e engrenagem,

incapaz de ser algo mais do que tem sido e fazer mais do que tem realizado. Este tipo de

mentalidade sobre o humano só pode se repetir, sobre a educação, em condições históricas

determinadas a um indivíduo dependente, e subordinado, em certa medida, a estruturas e

ficções que pretendem sua subordinação e manipulação sócio-existencial.

A noção do abstrato não resiste à ideia de sucessão, posto que ela não pode ser

assimilável a uma sequência de imagens imutáveis. Entre o processo de sucessão de imagens

e a noção do abstrato existe a possível incidência da exigência ontológica. Através do apelo

da exigência ontológica, o homem é, a partir da própria experiência, convocado a procurar

perceber, apesar das suas recaídas e fragilidades, a articulação indissociável que há entre

verdade e vida, sentido e história, experiência e transcendência. Karl Jaspers, ao comentar

sobre o enigma que é o homem, e o modo como a compreensão a respeito do Ser pode

ultrapassá-lo, diz que

[...] é perversão transformar a fórmula: todos são homens como nós – fórmula que, sem abolir a indefinível hierarquia, nos leva a todos – em algo que nos nivela por baixo e dizer “todos não passam de homens e são semelhantes a nós”. Afirmamos que o homem não podia ser compreendido a partir da natureza, nem a partir da História, nem a partir de si mesmo. Exilado em seu existente, o homem quer ultrapassar-se. Não se satisfaz com ser, numa quietude fechada em si mesma, o perpétuo retorno do existente. Não mais se reconheceria automaticamente como homem, se se contentasse com ser o homem que hoje é. Para transcender-se, não basta ao homem à sensação ou gozo de imagens mitológicas, nem sinhô, nem uso de palavras sublimes, como se nelas a realidade estivesse inclusa. Só na ação sobre si mesmo e sobre o mundo, em suas realizações é que ele domina a vida e se ultrapassa. Isso ocorre de duas maneiras: por ilimitado progresso no mundo e pelo infinito que se faz presente a ele em sua relação com o transcendente (JASPERS, 1965, p. 50).

Segundo Gabriel Marcel, a exigência ontológica convoca o homem “[...] a manter-se

no plano concreto, a procurar escutar sua experiência mais íntima” (MARCEL, 1951a, p.

Page 364: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

362

174). Com efeito, trata-se de conceber a educação a partir daquilo que o homem é no mais

íntimo do seu ser, em procurar vivenciá-la concretamente, buscando sempre promover a

articulação entre a autenticidade subjetiva de cada ser e as singularidades inesgotáveis de suas

respectivas existências. Representa, como expressa Fernando Namora na sua poesia, tomar o

homem/educador-educando como ‘o começo e o fim das coisas’ e de toda educação:

Repara: no querer do gesto te nasce o gesto, na memória da estrela te nasce o planeta. Repara: na montanha escutas a mão que o sino tange e não o som que no bronze se incorpora. Repara: não é o correr das árvores que nos teus olhos viaja, mas sim o galope da tua jornada tal como nas eiras do Estio é o teu sono que adormece o Verão. Tudo enfim começa em ti e a ti retorna se de ti fazes o que em ti é espera [...] (NAMORA, 1984, p. 250).

Desenvolver uma prática pedagógica geradora de sentido humano implica em

reconhecer que há no homem um sentido profundo, que não se esgota na dimensão do dado e

do objetivo, mas que se revela para além das nossas próprias narrativas. Consiste em

reconhecer que ao longo da trajetória itinerante do Ser, à medida que ele caminha para

alcançar a luz do conhecimento de si e do sentido da vida, acaba se distanciando da

luminosidade que é e daquilo que a própria vida lhe acrescentará. O sentido da vida nunca se

dá de modo pleno e total, pois a existência é, conforme Marcel, pura transição entre um ponto

e outro, da nossa condição de Ser.

O que compreendemos agora é que há uma profundidade da história que se descobre em todos os níveis porque particularmente a vida pessoal enquanto não a concebemos, não há como traduzi-la como se traduz um filme ou uma narração, que em última instância são como cabos estendidos sobre o que deveria seguir sendo um abismo (MARCEL, 1951a, p. 175).

Toda meta pedagógica, que se pretende geradora de sentido humano, precisa

reconhecer que qualquer ideia de perfeição é transitória, que o homem não pode formar-se sob

o signo de uma imagem acabada, porque a sua existência comporta o vislumbre de uma

abertura luminosa, cuja experiência do profundo está ligada a uma promessa de realização que

nunca é plena e total. Neste aspecto, cabe ao educador procurar “perceber que o porvir

humano não pode conceber-se ou representar-se numa perspectiva de simples inovação”

(MARCEL, 1951a, p. 176), seja esta inovação teórica, metodologia, digital ou tecnológica.

Cabe ao educador, ainda, perceber que, com base nas noções de identidade, subjetividade e

Page 365: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

363

profundidade, a existência humana se apresenta como uma luz iluminada e iluminadora, cujo

caráter irrevogável, ao abrir-se perante o mundo, torna-se objeto de solicitude e permanente

cuidado da e para a dignidade humana.

4.4.2 Cultivar uma prática pedagógica promotora da dignidade humana

A educação é um dos projetos mais ambiciosos da humanidade. Por pretender a

formação do sujeito humano é que a educação exige um conjunto de princípios, teorias,

práticas e habilidades, ao redor dos quais articula-se a relação entre a vida privada e a

atividade pública do indivíduo. A educação é um projeto de possibilidades humanas, políticas

e sociais. Plantada no solo das pseudo-democracias e/ou das ideologias políticas e religiosas, a

educação pode se transformar num instrumento de manipulação das consciências e

degradação da condição humana.

Atento aos escombros de uma realidade em crise, “[...] de um mundo entregue, cada

vez mais, aos processos de atomização e coletivização” (MARCEL, 1951a, p. 37), Gabriel

Marcel nos chama a atenção para o fato de que a “educação havia por um lado, deixado de ser

amparo diante dos desmoronamentos lamentáveis” e que, por outra parte, tinha se convertido

num “[...] regime capaz de subtrair o maior número possível de seres humanos a um estado de

aviltamento e alienação” (MARCEL, 1951b, p. 13, 40). A condição de um estado de alienação

pauta-se e reflete-se nas escolhas dos discursos reducionistas, propagados através das técnicas

de aviltamento, nas posturas negadoras da singularidade humana, na sublimação das noções

de liberdade e subjetividade do indivíduo, no comprometimento existencial do Ser e na perda

do horizonte espiritual de seu tempo.

Ao falar no dia 25 de março de 1955, sobre a educação para a técnica, numa

conferência para o Collége Libre des Sciences Sociales, Gabriel Marcel ressalta que, ao impor

como finalidade a formação do especialista, a educação havia perdido a noção da dimensão

humana do Ser. Ao esvaziar-se da visão integral e multidimensional do homem, Trajano

pontua que “a civilização ocidental, na sua última fase de progresso, só conhece algumas

dimensões do indivíduo; o homem integral, individualmente considerado, não existe para ela”

(apud MARCEL, 1951b, p. 207). Ao substituir as noções de pessoa e indivíduo, pela

concepção abstrata de massa, as propostas educativas, na era da técnica e tecnologia,

demonstram que a preocupação “[...] é antes de mais formar produtores, secundariamente

cidadãos, e por último, eventualmente homens” (MARCEL, 1955b, p. 12).

Page 366: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

364

O comprometimento qualitativo da relação entre a inteligência, a sabedoria, a herança

espiritual e a dignidade humana, na era da técnica e das descobertas tecnológicas, transformou

a educação num processo de adestramento das massas (JASPERS, 1933). Na educação das

massas a verdade do Ser é abstraída, “[...] torna-se redutível às fórmulas comunicáveis,

destinadas a ser depois mecanicamente veiculadas” (MARCEL, 1951b, p. 12). Condicionado

aos processos de constituição das massas, o homem não se desenvolve; perde contato consigo

mesmo, oblitera suas relações, expõe-se às tendências fanatizáveis dos discursos totalitários,

funcionaliza o processo de formação humana, subverte sua vontade, reduz sua memória

histórica à simples menção abstrata, permite que os direitos mais elementares da humanidade

sejam violados, degrada sua existência e vê a “[...] educação esvair-se em mero verbalismo”

(MARCEL, 1951b, p. 55).

Educação que se esvai em verbalismo é aquela que relaciona o valor do aluno ao

rendimento que ele pode dar, supondo que o indivíduo, por si só, não tem dignidade própria.

Neste tipo de educação, a subjetividade do discente subtrai-se perante a fascinação do

número, do resultado e dos processos de classificação. Submissa ao poder regulador dos

critérios técnicos da educação verbalista, a produção do conhecimento transforma-se num

simulacro do pensamento; o processo de avaliação converte-se em instrumento de afirmação

ou exclusão das pessoas e as construções dos saberes, em reproduções mecânicas de

postulados e teorias.

Ao converter-se em verbalismo, a educação desvitaliza-se e a prática pedagógica se

expõe e, em alguns casos, sucumbe às tentações do uso do medo, da ameaça, da intolerância e

das violências simbólicas e físicas, como mecanismos adestradores dos comportamentos e

manipuladores das consciências de alunos e alunas, em todas as faixas etárias (BOURDIEU,

2010). No avanço deste tipo de postura, acentua-se a redução progressiva da diversidade

humana, num nivelamento extraordinário das sociedades e do modo de pensar, sentir, ver,

viver e ser das pessoas. Toda educação que se esvai em verbalismo pressupõe que “[...] a

noção de valor fica nas imediações do rendimento e da função” (MARCEL, 1951b, p. 156).

O resgate e a preservação da dignidade humana são pontos centrais da abordagem

metafísica de Gabriel Marcel. “No aspecto dinâmico toda sua produção filosófica é um

combate obstinado e sem tréguas contra o espírito de abstração” (MARCEL, 1951b, p. 5).

Trata-se somente de procurar recuperar uma segurança interna, com consciência do grande

perigo ao qual o homem está exposto, num esforço para alcançar uma visão ampla e coerente

sobre o humano, face à situação de caos e ameaça que lhe assediam. Neste sentido, o que nos

interessa é saber de que maneira neste tipo de civilização a educação “poderá contribuir para

Page 367: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

365

assegurar o primado da dignidade humana” (MARCEL, 2005, p. 119), sobre os processos de

redução e funcionalização da vida e do Ser.

Na obra, Os Homens Contra o Humano (1951b), Gabriel Marcel, ao mesmo tempo

que nos alerta sobre os riscos e implicações dos processos que pretendem a abstração do Ser,

também nos oferece algumas pistas a respeito do modo como a educação poderá colocar-se ao

serviço da formação humana e a favor de uma educação que se pretende promotora da

preservação da dignidade do homem e de seu desenvolvimento multidimensional.

De início, é importante ressaltar que toda educação, que se pretende promotora da

dignidade do homem, precisa respeitar as próprias especificidades humanas dos sujeitos que

nela estão envolvidos. A educação não pode ser um meio promotor da igualdade, nem, muito

menos, um mecanismo de comparação das diferenças dos seres humanos. Na igualdade,

professores e alunos centram-se nas consciências reivindicatórias de si mesmos, suplantam as

diferenças e negam suas individualidades históricas e pessoais. Na atitude de comparar, o

movimento é inverso; pois, o que se busca, não é ressaltar o valor da subjetividade dos

homens, mas, subestimá-los e considerá-los menores e/ou inferiores aos outros e a si mesmo.

Conforme Marcel, tanto a igualdade como a comparação colocam em risco a nobreza do ser

humano.

A igualdade traduz uma espécie de afirmação espontânea, que é a da pretensão e do ressentimento: sou teu igual, não valho menos que tu. Por outras palavras, a igualdade centra-se na consciência reivindicatória de si mesmo [...] Comparar é diferente; e todos nós pudemos experimentar imediata e dolorosamente, humilhantemente, a espécie de contração ou frio súbito, quando depois de excitados pela admiração e pela simpatia radiante pelo êxito dum amigo, bruscamente retomamos consciência do nosso inêxito ou das nossas decepções pessoais; se a nossa alma é de alguma nobreza, essa dolorosa contração parece-nos culposa, como uma traição, e quase o mesmo pode dizer-se da espécie de despeito com que diremos talvez: apesar de tudo, valho tanto como ele! Quer dizer que a igualdade, como experiência, como Erlebnis (o termo alemão é preferível) corresponde a uma introversão, efetuada em sentido inverso da generosidade criadora. Certamente pode racionalizar-se esta ideia de igualdade, refinando-a superficialmente, como se refina açúcar, perdendo a consciência da sua baixa origem; mas receio bem que seja trabalho de má fé, que a reflexão deve denunciar e destruir. Dizer a outrem: tu és meu igual é colocar-se realmente fora das nossas condições efetivas de apreensão [...] Aqui se abririam larguíssimas perspectivas: haveria que averiguar como a partir do que ingenuamente se supôs um ideal de igualdade, se desenvolveram as iniqüidades monstruosas a que assistimos. Não se trata de pretender que a iniqüidade não tenha reinado muito antes do advento das ideias igualitárias; mas que a sua máscara ideológica atual a torna, se é possível, mais odiosa ainda e mais difícil de combater (MARCEL, 1951b, p. 187-188).

Page 368: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

366

Toda prática educativa, que se ancora nas pressuposições da igualdade ou da

comparação, coloca-se a favor da intolerância e contra o espírito de fraternidade, convivência

e de comunidade humana. Ressaltar que os homens têm, jurídica e socialmente, os mesmos

direitos é um dever de todos os educadores e papel de toda educação. No entanto, afirmar que

os homens são iguais, metafísica e ontologicamente, é atentar contra a dignidade individual de

cada Ser e a condição subjetivo-existencial de todos. Assim, “poderia dizer-se que o espírito

de comparação é estranho à consciência fraterna” (1951b, p. 186). Na abstração não pode

haver fraternidade, nem verdadeira educação.

O processo de humanização do ser exige que o homem não se anule, mas, também,

que não se isole. A formação humana dos educandos e dos educadores acontece através do

diálogo entre as diferenças. No desenvolvimento e aprofundamento da humanização, o

indivíduo é chamado a se colocar, diante dos outros homens, como alguém que é original,

singular e irrepetível. Entretanto, ao afirmar sua subjetividade, a este mesmo sujeito cabe a

atitude de procurar se apresentar, de modo aberto e disponível, à verdade e à singularidade do

que o outro é, representa e traz, enquanto contribuição ao universo das relações educativas e

extra-escolares.

Nestes termos, cabe à educação, num segundo momento, criticar os discursos

ideológicos e repelir a alienação. Como sujeito da história, o aluno é também protagonista dos

processos que envolvem as transformações de si, da educação e do mundo. Na crítica aos

discursos ideológicos, exige-se que docentes e discentes, ao tomarem consciência de seus

papéis e potencialidades, reconheçam que “[...] nossa vida tem não apenas o sentido que os

outros lhe dão, mas aquele que nós próprios lhe damos ou deixamos de dar” (REZENDE,

1990, p. 95). Exige-se, ainda, que docentes e discentes comprometam-se com suas próprias

formações, que assumam suas responsabilidades e compreendam que a educação não é algo

dado, recebido ou herdado, senão, que é um fenômeno humanamente histórico, social, político

e concreto, porque é fruto da própria capacidade de articulação, produção, invenção,

realização, ressignificação e forma de ser do homem no mundo.

No comprometimento do Ser encontra-se a exigência pela busca da coerência entre a

verdade que o homem é e aquilo que ele faz. Ao comprometer-se com a formação humana de

si mesmo e dos seus alunos, o professor pode, num terceiro aspecto, engajar-se

profissionalmente. Ao aludir ao sentido e valor da dedicação profissional, Gabriel Marcel

critica aqueles que, tendo a responsabilidade de ensinar aos outros, “[...] se comportam nos

pormenores da vida como se só tivessem aversão e desprezos pelos seres a quem deviam ser

inteiramente dedicados” (MARCEL, 1951b, p. 177).

Page 369: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

367

Ao deixar-se iludir pelos processos aviltantes e pelas noções abstratas do Ser, o

educador poderá, consciente ou inconscientemente, aderir às propostas de degradação

humana, redutoras de sua própria prática pedagógica. “Para ter a certeza, basta evocar as

reuniões amigáveis de professores, onde nunca se abordavam os problemas técnicos da

profissão, mas, só os de aumento de vencimento ou subsídio do custo de vida” (MARCEL,

1951b, p. 227). Quando fala sobre o caráter destas reuniões, Marcel não perde de vista as

condições estruturais e de expropriação dos professores. Sua preocupação estende-se,

especificamente, à perda do elã pedagógico “[...] e à diminuição, dolorosa, do sentimento de

honra profissional que se traduziu na incrível generalização da exploração coletiva”

(MARCEL, 1951b, p. 227).

Em particular, o que se pretende mostrar é que, ao reduzir a educação aos liames da

funcionalização e produtividade da cultura da técnica, acabou se desencadeando um processo

de esvaziamento, cansaço e desencanto de todo fazer secular e profissional. Na ótica de

Marcel

Cumpre mostrar que este ressentimento se desenvolve com a burocratização do mundo, à proporção em que se multiplicam as atividades puramente parasitárias e funcionais não só incapazes de criar, mas até destinadas a entravar, a paralisar toda criação possível [...] Assim se constitui o domínio óptimo do ressentimento; e a razão é simples: para o burocrata é cada vez menos possível interessar-se pelo que faz, por um trabalho tão abstrato, tão despersonalizado, onde o homem não pode pensar em imprimir a sigla própria (MARCEL, 1951b, p. 28-29).

O problema da falta de comprometimento de alguns profissionais da educação, não é

só de ordem funcional, estrutural e/ou salarial, mas, é também, de importância e caráter

metafísico. Passa, necessariamente, pelo modo como cada professor se vê e se enxerga

humana, espiritual, existencial e ontologicamente. A honra de qualquer atividade profissional

“[...] como se sabe, liga-se à pessoa ou ao que a ultrapassa, pois a pessoa só o é com a

condição de ultrapassar-se, suspender-se de alguma coisa que a transcende” (MARCEL,

1951b, p. 182). Entendamos que não se trata de uma visão ingênua, apolítica ou romântica de

se pensar a vivência e os desafios que se colocam ao docente e à sua prática pedagógica.

Trata-se, porém, de procurar afirmar que “[...] cada um de nós pode na sua ordem, na sua

profissão, lutar sem descanso pelo homem, pela dignidade humana, contra tudo o que hoje

ameaça destruí-lo” (1951b, p. 221).

“Num mundo onde o sentimento das relações pessoais ou intersubjetivas se obnubila

progressivamente” (MARCEL, 1951b, p. 171), faz-se necessária uma educação que seja

Page 370: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

368

promotora da dignidade humana; um fazer educativo onde é possível recriar e ressignificar o

tecido vivo das relações sociais, dentro e fora dos espaços escolares. No ato de recriar o tecido

vivo das relações intersubjetivas, é preciso que docentes e discentes se comprometam “[...] em

multiplicar a sua volta as relações de ser a ser, e lutar tanto quanto puder contra a espécie de

anonimato devorador, que prolifera em torno como um tecido canceroso” (MARCEL, 1951b,

p. 185). É importante que docentes e discentes comprometam-se em engajar-se, para que a

educação da massa, que impõe ao homem o aniquilamento perante a multidão, pretendendo

convertê-lo num elemento insignificante e efêmero, seja substituída por uma atmosfera

pedagógica capaz de encontrar no indivíduo seu núcleo vital. Este é o fulcro onde se funda o

homem e a sua humanidade.

A prática pedagógica promotora da dignidade humana não pode se fundar, se não

pautar-se num princípio autenticamente espiritual. “De onde poderia inferir-se que a honra

está ligada a um sentido profundo e não desenraizável do ser, porque entre o ser e a palavra

existe infrangível unidade” (MARCEL, 1951b, p. 227). Refiro-me à unidade entre a visão

poética, a criação filosófica e o diálogo multidimensional do indivíduo, onde a capacidade

criativa, ao se articular à consciência da exigência ontológica, passa a contribuir para restituir

ao Ser o “[...] elo nupcial entre o homem e a vida” (MARCEL, 1951b, p. 168).

Decerto, não é fácil precisar a natureza de uma educação promotora da honra humana.

No entanto, parece que é possível considerar que a ética da dignidade humana pressupõe o

resgate do sentido da hospitalidade e da atitude recíproca de desejar ser acolhido e de confiar

em hospedar, em e ao redor de si mesmo, o mais plural e maior número possível de seres

humanos. Precisamente, as relações educativas promotoras da dignidade humana tendem a

fazer, simultânea e energicamente, um duplo movimento: rejeitar as posturas onde os

indivíduos são reduzidos a elementos abstratos e restituir ao coração do Ser a certeza da honra

de ser homem. “A honra em todos os casos aparece ligada a uma certa simplicidade grandiosa

das relações humanas fundamentais” (MARCEL, 1951b, p. 231), entre as quais, destaca-se a

relação humano-pedagógica entre educadores e educandos.

4.4.3 Vivenciar uma prática pedagógica que se move numa perspectiva do mistério e da

transcendência do Ser

“A dignidade do homem reside no fato de ele ser indefinível” (JASPERS, 1965, p. 54).

O homem é um Ser inesgotável, alguém cujo conhecimento fundamental não se encerra na

evidente descrição do saber objetivo, porque em sua existência, ele sempre comporta um

Page 371: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

369

princípio de inexaustabilidade. Como alguém que se ultrapassa, suas imagem e condição

nunca são fixas. Em sua consciência de Ser, o homem não pode realizar-se nas dimensões do

dado e do acabado, porque compreende que é puro projeto e possibilidade. Enquanto Ser

inacabado, o homem jamais se realizará naquilo que não compreende, mas poderá alcançar o

conhecimento de si, através daquilo em que acredita participar, uma vez que seja ele mesmo.

Reconhecer a condição inconclusa e possível do Ser consiste em afirmar que “[...] há

no homem muito mais além de tudo que é dado, de tudo que pode ser matéria de um

inventário ou servir de base para uma computação qualquer, um princípio misterioso que está

em cumplicidade comigo mesmo [...]” (MARCEL, 1987, p. 52). Consiste, ainda, em

conscientizar-se de que a humanização do Ser se dá entre a percepção do mistério ontológico

e a compreensão da exigência de transcendência e do chamado existencial, que convoca o

indivíduo a criar a si mesmo e a responder à ordem das suas insatisfações, carências,

incompletudes e anelos mais humanos.

Enquanto ser-problema, o homem sente-se movido a abrir-se ao mistério que o

comporta, afeta e o transcende, à honra e à grandeza que o constitui como pessoa e indivíduo.

Como ser-pessoa, o homem está implicado na realidade humana, ao questionar-se, sobre o

que de fato é, e não pode colocar-se como se fosse uma coisa ou um objeto que está fora de si

mesmo. O estudo do homem sobre si supõe que existe, “[...] na ordem do vivido, um conjunto

de categorias que nenhum descobrimento científico pode esgotar ou substituir por si mesmo”

(MARCEL, 1951a, p. 48). O estudo do homem sobre si, supõe, ainda, que a realidade da

condição humana deve ser também compreendida a partir da experiência pessoal, do

inesgotável, do inesperado, do dinâmico e indeterminável. Na busca pelo desvelamento de si

mesmo “a referência ao homem é fundamental, e há que se acrescentar que é uma referência

não abstratamente pensada, senão, intimamente vivida [...]” (MARCEL, 1951a, p. 52).

É através da relação entre Ser, pensar e viver que Gabriel Marcel constrói as bases de

sua abordagem metafísico-dramatúrgica. Esta é uma produção que é “incontestavelmente um

teatro mais para ler do que para ver, porque essas ‘situações dramáticas’ ilustravam claramente

as ideias filosóficas que encarnavam” (HUISMAN, 2001, p. 82). É por meio das ilustrações

vivas dos seus personagens que Marcel procura ampliar sua investigação filosófica374. Ao

374 Sobre o lugar e importância que a dramaturgia ocupa na produção do seu pensamento filosófico, Gabriel

Marcel comenta: “Quando, hoje, tenho uma visão de conjunto de minha obra, é no teatro que mais e mais estou inclinado a situar o seu centro de gravidade. Porque, apesar de tudo, é a forma ou a apresentação dramática ùnicamente que permitem pôr a descoberto o caráter existencial das relações que unem os seres entre si. As relações que ninguém poderá jamais converter nas que se mantêm de objetivos puros” (MARCEL, 1964, p. 7-8).

Page 372: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

370

compreender que o pensamento metafísico se apreende, in concreto, através do drama375, ele

ensaia uma relação de diálogo entre as dimensões imanente e transcendente do Ser. Provoca um

(re) encontro376, no qual se pretende saber de que modo o homem poderá responder às situações

próprias da vida, desenvolver-se humanamente e procurar desvelar o sentido da sua existência.

Segundo Paul Fouiquié,

Seu método toma uma situação concreta como às relações entre mim e outro, a representação de uma cena passada ou de uma cena que se passa a distância, a esperança [...] e faz da mesma uma análise fenomenológica aprofundada até tornar-se hiperfenomenológica, atingindo, assim, além do que é imediatamente dado (FOUIQUIÉ, 1961, p. 107).

Por considerar “inseparáveis a existência, a consciência de si mesmo como existente

e a consciência como ser encarnado” (GIORDANI, 2009, p. 192), Gabriel Marcel coloca-se

contra toda produção filosófica, cujo ponto de partida não é a situação em que o homem se

encontra. Ao optar pelo teatro, como gênero literário, o teórico pretende se distanciar do

pensamento meramente especulativo. Esta forma existencial de abordar o vivido explica que,

para Marcel, o pensado se explicita, não só através da reflexão filosófica, porque pode

também se fazer por dentro da estrutura dos dramas e teares das experiências que se tecem no

âmbito da própria existência humana. Mediante os atos de criação e representação

dramatúrgica o Ser se presentifica, aparece, ganha rosto e adquire identidade própria, através

dos corpos, movimentos e expressões dos seus personagens e atores.

Por compreendermos que “[...] o pensamento não é algo paralelo ao Ser, mas, um

mistério que me força a meditá-lo como tal [...]” (MARCEL, 2002a, p. 5), é que pretendemos

tomar uma das obras dramatúrgicas de Gabriel Marcel como leitura paralela ao seu

pensamento filosófico. Entre suas numerosas obras dramáticas, há várias que estão centradas,

de modo especial, em torno de personagens, cujas vivências nos apontam caminhos para uma

possível abordagem a respeito do pensar que envolve a formação humana e o fazer educativo.

Neste sentido, ressaltamos que nossa intenção é propor algumas considerações, a partir da

375 Roger Troisfontaines ao comentar a natureza da produção dramatúrgica de Gabriel Marcel, expressa-se nestes

termos: “Esses dramas são essencialmente dramas de ideias, se movem na esfera do pensamento metafísico, e pelo contrário não são de nenhum modo diálogos filosóficos; apontam as últimas antinomias que a mente descobre ao refletir sobre ela mesma, e ao contrário não se encontra ai nem alegorias nem símbolos. Reconheço o esforço nessas obras em mostrar um pensamento trágico realizando-se diretamente na única ordem que merece se chamado a vida, quer dizer, a consciência” (apud MARCEL, 2002a, p. 365).

376 Conforme Parvis; “Ces petits ouvragens ont l΄ambition d΄être, mieux que des livres conservés à portée de la main, dês livres que l΄on reprend pour lês méditer. Leur choix, leus présentation même, est inspire par cette idée qui a pour nous valeur de critère: qu΄un véritable livre, un beau livre doit se reconnaître à ce qu΄il laisse en son lecteur le souvenir d΄une rencontre” (apud MARCEL, 1959, p. 8).

Page 373: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

371

peça377, Um Homem de Deus378 (MARCEL, 1964), que possam contribuir para levar

educandos e educadores a refletirem, um pouco mais, sobre alguns aspectos que envolvem a

vivência de uma prática pedagógica, que se anuncia numa perspectiva do mistério e da

transcendência do Ser. Sem negar a estreita interligação dos quatro atos que compõem esta

peça, percorremos a sequência indicada por Marcel.

O caráter existencial da peça se desdobra em função da relação que há entre o Ser,

sua história e a condição subjetiva que comporta sua própria humanização. Na base do enredo

desta saga, encontramos as presenças de Cláudio Lemoyne, um religioso protestante, e

Edméia, sua esposa sempre dedicada. Apesar de estarem casados há vinte anos, este

relacionamento foi marcado tanto pela falta de confiança entre os cônjuges, como por uma

comunicação conflituosa com Osmunda, a filha do casal que no auge da sua juventude já não

suporta a rigidez e a intolerância da educação que lhe é imposta por sua mãe. Em tese, a trama

se desdobra de acordo com os seguintes fatos:

O pastor Cláudio Lemoyne, há vinte anos, passados, perdoou sua esposa Edméia, quando lhe confessou tê-lo traído com Miguel Sandier, e que Osmunda, sua filha, é fruto dessas relações adulterinas [...] Mas não é só: antes da confissão, Miguel Sandier propusera á amante á fuga. Ela a repeliu. Que valor, porém, teve essa negativa? Não houve nela certa dose de covardia? A volta de Miguel Sandier, gravemente doente, vai obrigar Cláudio e Edméia a se fazerem estas mesmas perguntas e dar-lhes uma resposta. Entretanto, mais uma vez ainda, qual o valor dessa resposta, da dupla autocondenação retrospectiva que ambos farão sobre sua passada conduta? Essa é a pergunta terrível em torno da qual gira a peça, e o que tem de trágico é que não comporta solução humana. Só cabe apelo a

377 “Simultaneamente jornalista, editor, organizador de coleção, crítico dramático, compositor de música,

conferencista, escritor, ensaísta, e, evidentemente, filósofo, reivindicava primeiro e, antes de tudo, sua vocação de dramaturgo. Gabriel Marcel publicou cerca de trinta peças de teatro de 1909 a 1959 e permaneceu convencido de que sua obra dramática tinha a mesma qualidade, a mesma importância, o mesmo alcance que seus livros de filosofia [...] Todavia, nos anos de 1950, Un Homme de Dieu, ficou na França, em cartaz, perto de um ano” (HUISMAN, 2001, p. 81-82).

378 Ao comentar, no prefácio desta peça seu real objetivo, Gabriel Marcel, procura prevenir o leitor contra uma interpretação que poderia desvirtuar radicalmente o sentido. Na intenção de ajudar seu publico ao entender o que de fato pretendeu com esta produção ele esclarece; “Convém que Un Homme de Dieu foi escrito em 1921. Longe, muito longe estava de pensar que, um dia, pudesse me converter ao catolicismo; por múltiplas razões sentia-me bem próximo dos protestantes tanto mais que, dois anos antes, ingressava pelo casamento em uma família protestante. Desarrazoado, pois, supor, como tantas vezes se fez, ter sido meu intuito atacar o protestantismo e, em particular, justificar indiretamente o celibato dos religiosos. É assunto de que jamais cogitara nesse tempo. Devo esclarecer, outrossim, que de um modo geral meu teatro nunca se prestou a interpretações dessa espécie, e que sempre tive horror às peças com pretensões a demonstrar seja o que for; no meu conceito, é degradação da admirável forma dramática considerada em sua pureza. Se me perguntam: Que desejou o senhor provar nesta peça?, eu só poderia responder: A pergunta é vazia de sentido. Não quis provar nem demonstrar coisa alguma. Como nas demais peças de minha trajetória, eu fui habitado por personagens vivendo determinada situação especial e dramática. Que significado tem aí o termo dramática? Que a situação põe à prova os personagens que nela são jogados, obrigando-os a se revelarem pelas suas próprias ações” (MARCEL, 1964, p. 5).

Page 374: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

372

TRANSCENDÊNCIA [...] Ao fim de vinte anos, Cláudio e Edméia não sabem, nem podem mais saber o que realmente sentiram e talvez errem por querer sabê-lo. O ato de perdoar só foi válido hic et nunc, e só poderá desvirtuar-se quando o submetem, demasiadamente tarde, a essa manipulação retrospectiva (MARCEL, 1964, p. 6-7).

Submerso no âmbito de uma profunda crise vocacional e conjugal, cabe a Cláudio

questionar-se: como deve ser encarado esse perdão? Uma obrigação ou atitude funcional? Um

ato de generosidade ou de magnanimidade pura e, como tal, digno de admiração? Aqui se

situa a discussão sobre a diferença entre uma educação que pretende a funcionalização do

homem e a formação humana, numa perspectiva do mistério e da transcendência do Ser.

No primeiro ato379 da peça, Gabriel Marcel apresenta ao leitor uma situação

conflituosa entre os personagens: o momento em que o drama começa a pôr à prova a

natureza das relações intersubjetivas e o modo como elas se revelam através das suas próprias

expressões, ações e reações. À medida que Cláudio, um dos protagonistas aparece, nos damos

conta de que sua vida é tecnicamente conduzida e burocraticamente transformável:

Cláudio: afinal, porque Francis não veio almoçar?

Senhora Lemoyne (sua mãe): Foi ver um doente, num subúrbio. Virá buscar-me. (baixando a voz): Parece ter algo a lhe dizer.

Edméia: como? Senhora Lemoyne: Digo que virá buscar-me.

Edméia: Nunca o vemos! (A Cláudio): Desde as férias, seu irmão só apareceu aqui duas ou três vezes. Senhora Lemoyne: Está sempre muito ocupado [...] Agora que estou aqui é que percebo [...] O hospital, as visitas, as obrigações sociais, comunicações, à Academia [...] Não sei como resiste. (A Cláudio): Tal como você, meu filho. Oh! Não serei eu quem o vai responder por cumprir o dever e mais do que o dever, como dizia seu querido pai. Esta paróquia, porém, me parece muito, muito pesada. Diga-me [...] e exercício [...] você cuida de fazer exercícios? A Edméia encarrega-se disto, não é?

Edméia: Nós nos sentimos muito bem [...] Cláudio: Tenho de escrever duas ou três cartas e preparar minha alocução para amanhã [...] (MARCEL, 1964, p. 14-15).

Condicionado aos ditames de sua função paroquial, Cláudio reduz sua existência a

um nível de realidade que se mostra, cada vez mais, desapegado de si mesmo,

descomprometido do cuidado com outras dimensões da existência - a físico-corpórea, por

exemplo - e totalmente abstraído da natureza, do valor e do sentido da sua real dedicação.

Incorporado ao mundo da máquina, assim como um operário de uma grande indústria,

Cláudio, “[...] move-se no plano da funcionalidade pura” (MARCEL, 1951b, p. 177). 379 “Sala dos Lemoyne. Mobilário frio e vulgar. Na parede, parábolas de Burnand e uma reprodução da Virgem

de São Sixto” (MARCEL, 1964, p. 11).

Page 375: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

373

Fica evidente que a prática paroquial de Cláudio acontece desprovida de uma visão

ampla a respeito de sua própria condição humana, da ausência de um fator antropológico, que

possa ajudá-lo a superar a dicotomia entre a dimensão espiritual e a dimensão física, entre o

ser e o parecer. Na perda de uma visão integral de si, Cláudio e Edméia procuram camuflar

seus próprios estados físicos e emocionais, na intenção de simplesmente parecer que vivem

saudável e equilibradamente bem – “Nós nos sentimos muito bem, exclama Edméia [...]”

(MARCEL, 1964, p. 15). Ao sublimar suas reais necessidades, estes personagens nos ajudam

a entender que, na falta de um conhecimento multidimensional do humano, tanto educandos

como educadores, poderão criar falsas imagens a respeito de si mesmos. A falsa noção do

homem sobre si mesmo pode comprometer tanto a qualidade dos seus relacionamentos como

seu processo de desenvolvimento e maturidade humana. Conforme Röhr,

Quando nos deparamos conosco, encontramos, naturalmente, fragilidades localizadas nas nossas dimensões básicas imanentes. Essas fragilidades podem se tornar negativas ou prejudiciais no nosso convívio social. Em vez de tentar superar as fragilidades, procura-se um caminho mais curto e fácil: camuflar as próprias falhas perante os outros. Isso significa preocupar-se com a imagem que o outro tem de nós mesmos e não com aquilo que somos. Tornamos sempre mais convincentes as nossas capacidades de representar a imagem que desejamos que o outro adquira de nós, ao invés de aperfeiçoarmos a nós mesmos. Chegamos ao um ponto em que a nossa habilidade de parecer é tão perfeita que nós mesmos acreditamos na própria aparência, na medida em que conseguimos convencer os outros dela. Tomamos a crença do outro na aparência que criamos, como confirmação, obviamente equivocada, de que somos aquilo que tentamos parecer. Daí deriva um mar infinito de atitudes de fazer de conta, da qual a nossa visa social está contaminada. Todo esforço esgota-se na tentativa de corresponder aos papeis sociais favoráveis a si mesmo. O que a pessoa é sucumbe na luta de convencer, vendendo uma imagem falsa de fazer tudo para não ser flagrado no que é realmente (RÖHR, 2013, p. 210-211).

Mergulhado num mundo onde o sentimento das relações pessoais e/ou

intersubjetivas se fragmenta progressivamente, Cláudio torna-se incapaz de perceber o modo

como a comunicação, entre os membros de sua família, está afetada pelo signo da

desconfiança. Encontra-se desatento à maneira como a degradação da ideia do Ser pode

contribuir para despersonalizar as relações humanas e ameaçar a consciência fraterna de sua

própria família.

Senhora Lemoyne: Osmunda me parece um tanto nervosa. Cláudio: (à espera): Talvez a sensação de que se não confia nela.

Edméia: A mim não me engana. A pesar de sua aparência tranqüila, Osmunda é uma impulsiva. Percebo-o todos os dias.

Page 376: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

374

Cláudio: A tendência é sempre para aumentar os defeitos alheios. Não acha mamãe?

Edméia: É aconselhável, então fechar os olhos? Cláudio: Não digo isso, mas o nosso modo de tratar os outros [...] Edméia: Eu sei, mas que como tal teoria se pode ir longe [...]

Senhora Lemoyne: De minha parte estou encantada com minha neta [...] Sabem que estão preparando conferências e excursões para o semestre de verão, em Lausanne?

Cláudio: Já sei que a senhora não faltará Senhora Lemoyne: Naturalmente.

Cláudio: Entretanto, desde já fique sabendo que não tenho disposição alguma de lhe emprestar minha filha [...] (MARCEL, 1964, p. 16-18).

Ao penetrarmos no mundo das relações pessoais destes personagens, é possível

constatar que os vínculos que aparentam apresentar não são autênticos e que as motivações,

que os aproximam, já não são tão claras e seguras. Tudo parece se mover na ordem da função,

do objeto e do utilitário. Este é um ciclo de diálogo marcado pela desconfiança e redução do

outro à noção de peça, coisa e serviço, ou algo efêmero, como um objeto que pode, inclusive,

ser ‘emprestado’. Na ausência de uma visão integral de si, tanto Cláudio, como o restante da

sua família, contribuem para despersonalizar, ainda mais, as relações formativas,

intersubjetivas e familiares.

Ao contrário do que acontece numa educação que pretende a funcionalização do

homem, a formação humana, numa perspectiva da transcendência do Ser, reconhece que

nenhuma evolução humana sadia, pode ser realizada numa esfera de mútua desconfiança e

alienação de si. A audácia, na confiança, consiste na criação de uma atmosfera relacional,

entre educador e educando, abertos para as novas possibilidades de uma convivência, cujo

resultado não pode ser previsto de antemão, mas que se anuncia desde o início como um

caminho que pretende levá-los à transformação de si mesmos e à condição de seres humanos

mais humanizados. O poder transformador da confiança se expressa, no diálogo entre Cláudio

e Osmunda, sua filha:

Cláudio: Agora, escuta: pretendes que a vida é fácil e unida demais; queixas-te de não teres uma tarefa digna de ti. Pois bem, já que me forças, vou-te desenganar. Acontece [...] que não somos uma família como as outras.

Osmunda: Não entendo. Cláudio: Não é questão de julgar ninguém compreendes? Osmunda: Parece-me tão infeliz! Cláudio: É insuportável! Osmunda: Algo a respeito de você e mamãe que eu não sabia?

Cláudio: Jurei que jamais o saberias e, no entanto [...] Bem, prefiro não contar-te. (Levanta-se caminha de um lado para o outro, muito agitado). Como abusam de mim! Que injustiça!

Osmunda: Abusar, eu, papai?

Page 377: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

375

Cláudio: Oh! Se tudo houvesse terminado para mim! Osmunda: (com amargura) Nada termina nunca [...] para ninguém (silêncio). Cláudio: Se nada transmiti, se não salvei pessoa alguma [...] por que vivi? Até mesmo tu já estais meio pervertida!

Osmunda: (emocionada) De modo algum. Cláudio: Sim, sim, há pouco mesmo previas tua queda [...]

Osmunda: Pode impedi-la. Comece por ter confiança em mim (MARCEL, 1964, p. 110).

A postura que emana desta confiança é, antes de tudo, pedagógica. É esta confiança

que o educador deve demonstrar ao aluno diante das situações-limite com que este se defronta

e, muitas vezes, é levado a agir incoerentemente. Através de sua prática pedagógica, o

docente pode contribuir para elevar o discente/sujeito a uma nova fé. Uma fé/confiança que o

impede de desistir do outro e que é capaz de levá-lo a crer que o educando cumprirá suas

promessas e alcançará seus propósitos existenciais.

A desconfiança desestimula, desencoraja, constrange e limita, porque se fundamenta

na técnica e nas atuações mecanicistas do processo educativo. A confiança, ao contrário,

transforma e revitaliza, porque nasce e revela-se naquilo que é próprio do humano. Isto não

significa que o educador não possa fracassar. Não se trata de um ato em que o docente se

lança a uma fé ingênua e ilusória; mas, em acreditar que, em sua condição descontínua, depois

de um erro, o educando poderá encontrar, nesta confiança, um outro amparo e um renovador

princípio para um novo e mais significativo recomeço.

Por isso, ao assumir uma postura audaciosa, o educador se vê entre o desvelar de sua

sinceridade e a consciência de sua vulnerabilidade. Na sinceridade, ele expõe seus interesses

mais íntimos e profundos sem precisar esconder a dimensão da realidade que o toca

profundamente. Em meio a esta abertura, cabe ao educador não temer ser ridicularizado ou

rotulado, como um sujeito sentimentalista, idealista e utópico. Nesta exposição de si, o

professor não deve se furtar de falar do que tem relação com a dimensão interior do

humano/aluno. Diante da possibilidade ou não de ser acolhido, “[...] o professor deve mostrar

abertamente a sua alma, onde outro tem o direito de escondê-la atrás de um invólucro

protetor” (BOLLNOW, 1971, p. 230). Relembrando seu tempo de escola, Bollnow comenta,

ainda, sobre

O fato de um professor ter se desculpado perante seus alunos, por causa de uma falta cometida, ou por causa de uma suspeita demonstrada e que se revelou infundada ou por causa de uma palavra repreensiva dita irrefletidamente. Um tal equívoco está longe de ser um fracasso. O notável é, porém, o fato de o erro que motiva a desculpa do professor ter um efeito incomparavelmente maior do que o resultado atingível por uma ação

Page 378: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

376

educativa, seja ela a mais perfeita possível e sem falhas. Portanto, eis a nossa pergunta: onde se acha a causa deste efeito positivo inesperado, desse efeito quase sem proporção? Certamente a causa deve estar no fato de o professor ter aqui descido do pedestal da sua perfeição e ter reconhecido ao aluno uma fundamental igualdade de direito, com a qual é suspenso o relacionamento usual de professor-aluno. Nesse reconhecimento, o aluno sente-se engrandecido. Mas, com isso, o professor não decai aos olhos dos alunos, antes pelo contrário é exaltado. A auto-superação, para a qual o educador se decidiu livremente, lhe trouxe o maior respeito dos seus alunos (BOLLNOW, 1971, p. 132).

Assim, frente à realidade de seu próprio fracasso, o educador decide revelar a

confiança que tem no Ser, através do testemunho pessoal de uma ação pedagógica que

demonstra, conscientemente, o esforço de não se deixar desanimar nem sucumbir, não

obstante as frustrações, os desencantos e as desconfianças que o assediam e ameaçam,

profissional e existencialmente.

Assumir essa decisão já é em si uma audácia, um ato de entrega ao outro, diante de

uma verdadeira situação-limite na educação, um encontro vivencial autêntico, onde, educando

e educador se assumem a partir de suas próprias experiências descontínuas e instáveis de

formação e liberdade. Reconhecer a liberdade do outro já é, em si, assumir uma postura

audaciosa na educação. A liberdade do educando não pode ser vista, pelo educador, como um

prenúncio da tragicidade da sua profissão. Tentar cerceá-la é ir de encontro à dignidade do

humano e da educação; é assumir a postura de senhor-destino, de alguém que, no âmbito de

sua atuação pedagógica, se coloca como se tivesse nas mãos a liberdade e/ou o futuro de seus

educandos. Na audácia, o educador não lida com a objetividade das coisas e das tarefas, mas

com a subjetividade de si e do outro, enquanto humanos.

O diálogo sobre função, confiança e desconfiança, à luz do reconhecimento da

liberdade do outro, nos coloca frente à temática do segundo ato380 da peça, o momento em que

os personagens, diante da chegada de Miguel Sandier381 – amante de Edméia - se posicionam

conceitualmente, uns perante os outros, como cada um compreende sua existência face às

situações-limite da vida e a partir das concepções sobre o tempo, o saber e a construção de

sentido: ‘Batem a porta’:

Cláudio: Quem é? Osmunda: Sou eu papai.

380 “Noite do mesmo dia. Gabinete de trabalho de Cláudio. Sala comprida e estreita, com estantes altas cobertas

de volumes encadernados. No centro, mesa de escritório, onde, além de papeis, está um lampião a querosene. Oito horas. Cláudio, sentado, lê. Batem a porta” (MARCEL, 1964, p. 49).

381 “Miguel Sandier é um homem de quarenta a cinquenta anos, alto, um tanto encurvado, denotando estar seriamente doente” (MARCEL, 1964, p. 61).

Page 379: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

377

Cláudio: Entra minha filha. (Osmunda entra pela esquerda). Muito bem, vejamos o que é que há. Para início de conversa, não achas descortezia com tua mãe vires me falar a sós? (Movimento de Osmunda). E se a chamássemos?

Osmunda: Eu me retiraria. Cláudio: Osmunda!

Osmunda: É justamente a respeito de mamãe [...] bem, de mamãe e de mim [...] Acho que compreende [...] Papai, eu não sou feliz.

Cláudio: Querida! Osmunda: Completamente infeliz! Noutro dia, na concentração de Rogações, você disse que a felicidade está em nós mesmos.

Cláudio: Sabes que é verdade. Osmunda: No meu caso não [...] Tudo me faz sofrer. Se algo mais existe, está tão escondido, tão velado [...] Oh! Mamãe sabe que sou infeliz e julgo que me detesta por isso.

Cláudio: Mas, afinal [...] o que é [...] deves ter uma razão especial [...] Osmunda: Muitas razões [...] Oh papai só confio no senhor. Cláudio: E em tua mãe, Osmunda?

Osmunda: Mamãe não colabora. De saída, tem opinião formada sobre tudo, tudo quanto se faz e se diz [...] Isto me inibe a tal ponto [...] E você [...] está sempre tão ocupado, tantos problemas e misérias humanas a solucionar. Todos o absorvem [...] Evidentemente que, à vista disso [...]

Cláudio: Dizes que tens motivos ponderáveis para não seres feliz. Osmunda: Quando encaro o futuro, nada vejo! A vida não me atrai (MARCEL, 1964, p. 49-51).

Ao colocar-se nestes termos, Osmunda assume a postura de alguém, cuja vida está

centrada num tempo fechado. A falta de confiança de sua mãe não lhe promove a existência.

Em virtude desta falta de fé em si, Osmunda tem dificuldades de enxergar a existência pelo

prisma de suas potencialidades. Para ela, o tempo é o artesão da vida, aquele que tem o poder

“de talhar a existência por meio de um único critério e padrão” (MARCEL, 1964, p. 52).

Desta forma, Osmunda compreende que o presente deve repetir o passado, porque o futuro

não lhe reserva grandes novidades, sobre o que ela mesma exclama: “Quando encaro o futuro,

nada vejo! A vida não me atrai” (MARCEL, 1964, p. 51).

Para Osmunda, o tempo não lhe ajuda a enxergar os horizontes de sua existência. Para

Miguel Sandier, cujos dias estão contados por causa do seu grave estado de saúde, o passado é

algo que permanece inalterado, inseparável do presente e sem nenhuma conexão com aquilo

que poderemos vir a ser, ou fazermos de nós mesmos, no futuro. Esta parece ser uma sentença

condenatória, que determina a condição histórica do Ser. Para Sandier, o passado é um

tribunal que exerce um poder regulador sobre sua existência. Nesta regulação da história, o

tempo se transforma num abismo que divide os aspectos norteadores da sua trajetória e

formação. Neste caso, sua experiência com o tempo fechado é a de alguém que já não

encontra saída, sentido e/ou possibilidade de ressignificação existencial. Condenado diante de

Page 380: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

378

si, mantém perante a vida uma espécie de aposta concreta, onde o homem alcança um certo

nível de consciência, “[...] onde tem de reconhecer que entrou em agonia” (MARCEL, 1951b,

p. 17).

Ao conversar com Edméia, Miguel Sandier procura expressar sua visão sobre o tempo,

a história e o modo como podemos nos deixar conduzir na incidência de uma existência

fechada e sem sentido.

Edméia: (em voz baixa) Por que veio a esta casa? (Gesto vago de Miguel). Por mim, não o receberia.

Miguel: Ah! Edméia: Agora lhe peço, vá embora.

Miguel: Por quê? Edméia: Primeiro, por minha filha [...] depois [...] não devo recebê-lo.

Miguel: Porque não mudei muito ou [...] ao contrário. Naturalmente sabia do meu estado. Caso contrário, ele não me receberia [...] Mas, no ponto a que as coisas chegaram, tornou-se-lhe quase um dever profissional.

Edméia: Cale-se, por favor. Miguel: Decididamente, seu marido, sob todos os pontos de vista, é um

homem notável. Representa muito bem [...] É o seu ofício. Você disse que não me deve ver. Muito bem! É curioso, mas não sinto nada de estranho encontrando-a novamente. Há partes de nós mesmos que são como pedaços de pele morta; pode-se cortá-la e não sangra [...] Presumo que morremos por inteiro, mas vivemos aos pedaços (MARCEL, 1964, p. 67-68).

Enquanto Edméia e Miguel, em virtude dos erros que cometeram no passado,

cristalizam suas existências, Cláudio, ao falar com sua filha Osmunda, demonstra acreditar

que a vida, apesar dos seus declives, aclives e percalços, pode conter em si um fulcro singular

de possibilidades que apontam na direção de outros horizontes. Ao dirigir-se a Osmunda, ele

questiona o modo como ela avalia as vidas de suas amigas, como pensa sua própria existência

e, consequentemente, o que fará de si mesma no futuro imediato:

Cláudio: Não será um julgamento muito superficial? Osmunda: Existências estreitas, difíceis [...] Cláudio: Então é isso?

Osmunda (nervosa) Deixe-me explicar-lhe [...] Admitamos que sejam felizes [...] não sei [...] Têm maridos que não as enganam [...]

Cláudio: Mas não existe um padrão. Qualquer dessas vidas tem sua beleza secreta (MARCEL, 1964, p. 52).

Na comparação entre os olhares dos personagens acerca da relação entre o tempo e a

história, encontramos a possibilidade de olhar para nossas existências na perspectiva dos seus

condicionamentos, ou através de uma possível abertura ao novo e ao possível de cada ser

Page 381: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

379

humano, de poder enxergar a existência através das lentes da transcendência (MARCEL,

2003). Num sentido pedagógico, podemos compreender que toda prática, que se afirma

segundo o tempo fechado, tende a encerrar-se em si mesma, a anunciar-se pretensiosa, como

se fosse meio e fim de toda intenção educativa. No tempo fechado o fazer docente empobrece,

esvazia-se, torna-se hermético e pretensamente condicionante de pessoas, estruturas, práticas,

conteúdos, concepções, discursos e realidades.

No tempo aberto, tanto o docente como seu fazer, transcendem. A prática do educador

é sempre construída na forma de um espiral, que nunca se fecha, se enclausura ou limita-se a

si mesmo/a. Enquanto no tempo fechado, a prática docente corre o risco de se tornar circular,

rígida, impessoal e intolerante, no tempo aberto, o fazer docente mostra-se hospitaleiro e

disponível à história, à realidade e aos saberes dos seus educandos. No tempo fechado, as

relações pedagógicas petrificam-se, cristalizam-se, alienam-se e se descontextualizam. Assim

como acontece com as vidas de Miguel e Edméia, professores e alunos podem, num tempo

fechado, enclausurar-se, prender-se e perder-se sob as influências de suas frustrações, erros,

desencantos, fracassos, simulações e desilusões. Quanto menos criticidade há em nós, tanto

mais ingenuamente tratamos os problemas e discutimos superficialmente aquilo que somos e

os saberes e as visões de mundo que orientam nossas decisões e formas de viver.

No tempo aberto, a prática docente sempre se anuncia como caminho de esperança,

renovação, transformação, emancipação e liberdade. No tempo fechado, a vivência do

educador pode se transformar em impedimento ao seu próprio crescimento pessoal, porque

nele o indivíduo se desfalece, cede ao desânimo, desumaniza-se e abre mão de sua condição

de ser-mais (BOLLNOW, 1962). No tempo aberto, o sujeito resgata sua memória, situa-se

política e socialmente e afronta o futuro, na certeza de que o tempo não o determina, porque

pode ser, por ele mesmo, determinado e transformado, real e consubstancialmente.

Conscientes de si mesmos e de suas inconclusões, no tempo aberto, educadores e educandos

podem sempre colocar-se num permanente movimento de busca, questionamento, descoberta

e desvelamento do que são e da realidade onde vivem.

Conceber a educação numa perspectiva do mistério e da transcendência implica

necessariamente na problematização da concepção de que a continuidade se constitui no

núcleo fundante de toda e qualquer educação. A maneira como o educador se pensa e realiza

sua prática docente passa pelas concepções que constrói sobre o humano, a educação, o

educando e a meta pedagógica. Ao nos deparar com Cláudio, no terceiro ato da peça, o

encontramos mergulhado numa profunda crise existencial. A conversa com Francis, seu irmão

e médico, representa o momento em que ele questiona sobre: “quem sou eu? O que é que

Page 382: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

380

estou fazendo de mim? Será que não estou me perdendo? Estou vivendo a minha vida ou a de

outrem?” (MARCEL, 1956).

Cláudio: Se houvesse um equívoco em minha vida, convinha dissipá-lo.

Francis: Equívoco? Cláudio: Não compreende? Anos e anos vivemos com uma firme opinião de

nós mesmos, acreditamos haurir forças desta convicção e, de repente, percebemos que estávamos redondamente enganados.

Francis: Quem fala disso? Cláudio: Perdemos a segurança, não sabemos mais nada e é como se

estivéssemos perdidos [...] A verdade é que meus pensamentos, as minhas palavras de outrora, tudo deveria ser transparente para mim, fazendo-me sentir em minha própria casa [...] Não! Tudo se tornou impenetrável! (MARCEL, 1964, p. 85).

Ao ser confrontado sobre a natureza do perdão que havia declarado a Edméia, Cláudio

descobre que vivera apenas representando um papel social. “Que sua bondade não é mais que

uma virtude profissional” (MARCEL, 1964, p. 89). A descoberta mostrou-se profunda,

dolorosa e inquietante. À medida que Edméia, sua esposa e auxiliadora paroquial, vai abrindo

seu coração e expressando seus sentimentos mais profundos, Cláudio se depara com a

inautenticidade de si, da sua vocação e da generosidade que tem demonstrado. Ao receber

uma proposta para dirigir uma paróquia maior, ele responde à senhora Lemoyne:

Cláudio: Sobre o meu ministério. Como estou menos convencido do que

você dos meus dotes evangélicos [...] ou mesmo [...] (Detém-se) Quando me lembro do ambiente em que fui criado! A especialidade de Francis eram os êxitos na composição; a minha os escrúpulos morais. Ah! Mamãe, o brilho de seus olhos quando eu procedia as minhas ilações! E todos diziam: Francis é uma inteligência, mas Cláudio vale mais, é uma consciência. Quem sabe se não cheguei a inventar escrúpulos, só pra lhe dar prazer, mamãe? Aí está o que se chama formar uma alma para o serviço de Deus. E depois, já na Faculdade de Teologia, quando surgiram duvidas e inquietações. Falei delas à papai. Desta vez, foi diferente. Do meu quarto, ouvia-a falar a noite inteira e, no dia seguinte, ao café da manhã você estava com os olhos vermelhos de chorar e me olhava como se eu tivesse passado a noite fora. Foi assim que desenvolveu em mim o gosto pela sinceridade. Não, importa que esta palavra lhe cause espanto, porque é pura verdade. Vivi de dinheiro que não me pertencia. E sempre á crédito. E agora [...]

Senhora Lemoyne: Não responderei as suas censuras. São injustas e não refletem o seu pensamento. Mas não quero que me torture assim. Eu tenho orgulho de você, está compreendendo? Porque sei que semeou a boa semente a mancheias.

Cláudio: Para mim essas palavras já não têm mais sentido. Senhora Lemoyne: A sua vida foi a de um cristão.

Cláudio: Antes vivesse a de um homem, e eu não sou um homem; nem mesmo soube amar como um homem – odiar como um homem.

Senhora Lemoyne: Odiar?

Page 383: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

381

Cláudio: Sim, sim, odiar também [...] Eu não sou nada, eu não sou nada! (afunda-se numa poltrona) (MARCEL, 1964, p. 108-110).

A grande constatação de Cláudio, sobre si mesmo, neste momento da trama teatral, é

que, na intenção de se mostrar espiritualizado, acabou negando por completo a sua própria

humanidade. Seu desprendimento não foi nada mais que uma total anulação de si, uma evasão

religiosa que o desumanizou e despersonalizou suas relações interpessoais, à medida que

transformou o ato de perdoar numa obrigação puramente profissional, num ritual sacerdotal,

que, em si, não lhe comunicou e acrescentou nada.

Na crise existencial e profissional que enfrentou, Cláudio não apenas questiona a si

mesmo e os outros que estão envolvidos, direta ou indiretamente, na trama, mas, lança um

olhar problematizador sobre as concepções que tem do educador e de sua própria formação.

Na visão de Cláudio, o professor é um artesão, cuja função é moldar o aluno, à semelhança de

um artífice que procura esculpir na pedra bruta a imagem do homem que deseja criar. Ao falar

com a sua mãe, sobre como concebe sua própria formação, ele declara:

Sem você eu poderia ter sido alguém. Trabalharia num escritório [...] As

lágrimas que verteria à ideia de ter um filho trabalhando num escritório! Como se não fosse isto o que eu precisava! Oh! A sua lista de profissões, como os respectivos números! Em primeiro lugar, pastor, como o pai, como o avô e como o pai do avô, em segundo lugar, professor, porque se tem a oportunidade de moldar as almas; em terceiro, medico, oportunidade para servir a seus semelhantes. Aí estão às parvoíces que fizeram de mim um fracassado! (MARCEL, 1964, p. 109).

Para Cláudio e a senhora Lemoyne, tanto a educação como a formação humana do

sujeito possuem um caráter técnico-objetivista. Nelas, o professor segue, à semelhança de

uma artífice, a partir de um material já dado, a construção de um modelo previamente

determinado. Assim, o artesão produz a sua obra através da aplicação de seus instrumentos e

realização dos procedimentos e métodos apropriados, que foram escolhidos para tal fim,

esperando alcançar, deste modo, o resultado por ele almejado.

Como artesão, o professor também atua como o que produz o Educar. Por ser

reconhecido como o principal agente do processo formativo, elabora o plano de ensino,

seleciona o material, detém as habilidades e projeta a imagem do homem que deseja formar,

como se fosse um escultor que esculpe na madeira, no mármore ou no barro sua particular

visão da vida e da própria realidade. Neste caso, conforme Bollnow,

Page 384: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

382

[...] educar é produzir, caso assinalarmos com o termo produzir aquele tipo de atividade, dirigida a um fim, cujo efeito depende unicamente da vontade do homem. Disso resulta a dupla conexão, à qual tradicionalmente a educação está vinculada. A ética fornece as metas finais, isto é, o produto a ser criado nesse trabalho chamado educação. A psicologia, por sua vez, o conhecimento necessário do material (BOLLNOW, 1971, p. 24).

Este “produzir”, de acordo com o ideal proposto, seria o resultado de uma ação

externa, um ato de forjar o outro através da manipulação dos conteúdos e mecanismos dos

processos que envolvem o ensino e a aprendizagem. Educar, neste caso, significa “moldar” o

discente, através de uma atividade de produção, à imagem e concepção de homem do próprio

educador.

A analogia do artífice, usada por Cláudio, ajuda-nos a entender que a concepção

técnico-artesanal da educação mostra-se pretensiosa382, quando propõe a formação do homem,

de acordo com uma determinada imagem e meta pedagógica. E, ainda, revela-se limitada em

perceber que o princípio da continuidade, que aponta para um progresso que se dá ano após

ano e passo-a-passo, rumo a um esplêndido acabamento, mostra-se irrealizável e impossível

de ser concretizado, devido à condição subjetiva, não moldável e inacabada do ser humano.

Portanto, o que se propõe, na concepção artesanal, não é uma educação para a

imensidão, mas para o reducionismo; uma formação que pretende fazer do ser um objeto para

si/discente ou um conteúdo objetivo para o outro/docente; uma educação que absolutiza o

suposto da substância contínua a ser desenvolvida no homem (QUADROS, 1981). Nesta

concepção técnica, observa-se um processo de modelagem educativa que restringe o devir

humano ao dever-ser de um ato pedagógico-artesanal, pelo qual se crê que o máximo da

essência do educando poderá ser levado a existir, a partir de um dado imediato ou de uma

meta pedagógica definida, sem levar em conta as especificidades e/ou subjetividades de cada

educando.

A concepção técnico-artesanal limita a educação a um ato definidor da imagem do

humano e a uma visão comum e popular da educação, que reduz a formação do ser a

quaisquer categorias abstratas, de acordo com receitas prontas ou fórmulas mágicas, que

condicionam, não só a visão que o homem tem de si mesmo, como esgotam as possibilidades

do próprio processo educacional. Em tese, a ideia de um professor que molda a alma do aluno

382 De acordo com E. M. Arndt “Formar, uma palavra magnífica – fazer uma imagem. Seria divino, se o

conseguíssemos por meio de artifício, se pudéssemos progredir passo a passo, de ano após ano, como faz o artista, ao trabalhar o bloco de mármore, até que a obra esteja ali na sua frente no seu esplêndido acabamento” Mais ainda, “tal processo é, conforme Arndt, algo irrealizável” (apud BOLLNOW, 1971, p. 25).

Page 385: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

383

consiste, de fato, “[...] numa ação envilecedora para aqueles que tenta modelar” (MARCEL,

1951b, p. 47).

Quando a educação se degrada em formação e a inexistência da falta de sentido

aprisiona a memória, o homem tende a imobilizar-se no determinismo da sua própria

existência. Nas cenas do quarto e último ato da peça, nos deparamos com as posturas díspares

entre Cláudio e Edméia, diante da necessidade de resolverem-se relacional e existencialmente.

Cláudio: Lembre-se do que houve depois. Os primeiros meses de nosso casamento. As dúvidas que me assaltaram. Os longos passeios que você dava sozinha e dos quais voltava fatigada, com semblante triste. Às minhas perguntas, respondia com monossílabos [...] e eu sentia aversão por você.

Edméia: Nunca a fez sentir. Cláudio: Porventura, eu a amava? E você? Nem nos lembramos, nem talvez o soubemos. (Silêncio). Pela fé de um olhar ou de uma inflexão de voz, comprometeu sua vida. Um olhar que prometia [...] O quê? A promessa misteriosa não foi mantida, e aí ETA toda a história da nossa vida em comum. O mesmo é quando penso em Deus. Acreditei, por vezes, que ele me falava e não era, possivelmente, mais do que uma exaltação misteriosa. Quem sou eu? Quando procuro assimilar-me, fujo de mim mesmo. Há pouco acreditei detestá-la, com vontade de magoá-la, expulsá-la e tripudiar sobre sua lembrança. Eis o que se passou [...] Ele tem muita sorte não é? Edméia: De quem fala? Cláudio: Dêle. Edméia: Por que sorte? Cláudio: Porque acabará em breve. Edméia: A morte não o assusta? Cláudio: Não, creio que não [...] É talvez a única ventura do homem, mesmo quando não seja uma porta que se abre. Edméia: Tem mais coragem do que eu. Cláudio: Tem medo de ser julgada? Edméia: Sim [...] não sei. Cláudio: Eu, ao contrário. Ser conhecido como se é [...] (MARCEL, 1964, p. 133-134).

Diante da incompatibilidade dos olhares de suas existências e condições históricas,

Gabriel Marcel considera que aquilo que separa Cláudio de Edméia pode se constituir numa

possível abertura para um fecundo debate, que poderá servir para o surgimento de outras

Page 386: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

384

formas e categorias humano-pedagógicas, que consigam dialogar com as duras e dramáticas

experiências do Ser-no-mundo. Movido pelas inquietações da postura de Cláudio, Marcel

chama a atenção para o caráter apelativo da sua fala, quando afirma que o homem deve “[...]

ser conhecido tal como se é” (MARCEL, 1964, p. 138).

O apelo à existência, caracterizado através da fala de Cláudio, traz em si um aspecto

da formação humana que se pretende numa perspectiva da transcendência do Ser. Traz, ainda,

o ato de chamar a si mesmo para o que é fundamental à vida e à sua formação; uma

convocação da própria consciência, livre do Ser que clama por uma atitude de empenho,

engajamento e comprometimento, diante da construção formativa de seu próprio projeto

existencial. Nas palavras de Hubert Henz, este apelo pedagógico-existencial significa

[...] um chamado, um brado dirigido à consciência na liberdade e está acima da admoestação e do conselho. O apelo é o ato de despertar, praticado pelo educador sob a forma de uma intervenção na vida da criança que vive na distração, mas só se perfazendo pelo despertar do educando e pela libertação interior a ser efetivada pelo mesmo, onde o indivíduo é chamado a si (HENZ, 1970, p. 361-362).

Neste sentido, a noção do despertar aponta para uma experiência de descontinuidade

entre dois momentos: passado e presente, que remontam à tomada de consciência do Ser, com

relação a si mesmo e ao seu próprio modo de existir. À semelhança do paciente, diante da

crise na enfermidade, o despertado é aquele que acordou para si, alguém que foi provocado a

sair de um estado de sonolência existencial para o da vivência autêntica. Esta é a diferença de

atitude encontrada nas posturas de Cláudio e Edméia, quando pressionados sobre a

possibilidade de viver apenas pela aparência assumem, perante si mesmos e a vida, uma

postura distinta sobre o que cada um fará de si.

Senhora Aubonneau: Bom dia, senhora; bom dia, senhor pastor. Desculpem vir a esta hora, mas é o dia de saída de Renato e andamos a tarde toda. Cláudio: Ao contrário, acho que é muita amabilidade.

Senhora Aubonneau: Fizemos empenho em vir hoje, por ser aniversário de seu casamento.

Edméia: É verdade [...] 21 de dezembro.

Senhora Aubonneau: Podes oferecer o ramo de flores à senhora Lemoyne (Renato entrega o ramo a Edméia).

Edméia: Muito amável. Cláudio: Muita gentileza.

Page 387: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

385

Senhora Aubonneau: É nada, quando penso no muito que lhes devemos [...] A mãe dele (indica Renato) encarregou-me de apresentar-lhes suas congratulações [...] Sem o senhor e a senhora Lemoyne, somente o bom Deus saberia onde eu estaria [...].

Cláudio: Muito obrigado.

Edméia: Aí está pelo que devemos viver agora.

Cláudio: Ser conhecido tal como se é... (MARCEL, 1964, p. 135-138).

Enquanto Edméia insiste em viver na aparência, na superficialidade e no fingimento de

si e de sua relação conjugal, Cláudio toma a atitude de buscar um novo e autêntico sentido

para sua existência. Desta forma, o despertar assinala o ressurgimento da subjetividade do Ser

diante de sua própria vida; aponta, ainda, para uma mudança de postura, pela qual o homem

sai da escuridão de sua inautenticidade, para a vivência clara e iluminante do que ele é, em

seu mais íntimo e profundo ser. O despertar existencial, vivido por Cláudio, é uma “situação-

crise”, que impele o homem a questionar sua própria condição a respeito do que ele ainda não

traz em si e que precisa ser buscado interiormente, como sinal de desenvolvimento e

maturidade humana.

Educar para formação humana, numa perspectiva do mistério e da transcendência do

Ser, implica numa chamada existencial que pode ajudar a educação a ser encarada como um

pressuposto, antes de tudo, antropológico e pedagogicamente humano e humanizador. Este

despertar implica, ainda, numa ação educativa que considera os acontecimentos existenciais

como princípios ativadores e exortativos, capazes de colaborar para conduzir o homem a uma

vida em e com autenticidade, diante da realidade que o cerca.

O papel da educação do homem, numa perspectiva do mistério e da transcendência do

Ser, é procurar servir como estímulo para o alastramento e ampliação da própria Pedagogia, a

partir das análises dos processos instáveis e descontínuos da existência. Em sua natureza, a

existência revela-se como portadora deste chamado do Ser a si, a certas realidades do homem,

que na prática sempre estiveram presentes. Seu objetivo é chamar a atenção de educandos e

educadores para aquelas questões que são próprias da experiência humana. E se forem

consideradas devidamente, haverão de apontar para outras possibilidades de abordagens

pedagógicas, que poderão contribuir para desencadear a revitalização do movimento próprio

do pensar e fazer educacional.

Page 388: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

386

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Glória ao espírito que nos pode unir; Pois, na verdade, vivemos em figura. E com pequenos passos, as horas Caminham ao lado de nosso autêntico dia. Sem conhecer nosso verdadeiro lugar, Agimos a partir de uma relação real. As antenas sentem as antenas, E a distância vazia trouxe... Pura tensão. Música das forças! Não foi através de pequenas ocupações Que se afastou de ti toda perturbação. Mesmo quando o camponês se afana e trabalha, Quando a semente se transforma no verão, Nunca é ele que alcança. É a terra que presenteia (RILKE, 1989, p. 43).

Envolto no mistério da existência, o poeta Rainer Maria Rilke convida o homem,

quem quer que ele seja, a ousar sair da rotina e da mesmice de sua própria existência, a fim de

ultrapassar o conhecimento que já possui a respeito de si mesmo. Encarnado em sua dimensão

concreta, cabe ao homem, transcendendo a dimensão da figura que representa, buscar

encontrar, na comunhão intersubjetiva com os outros seres, o caminho autêntico de sua

itinerante existência. Provocados por este senso da vivência itinerante do Ser, entre o não-ser

e o vir-a-ser, onde há “[...] uma relação estreita que une o Espiritual e as Figuras das imagens

em que se encarnam” (MARCEL, 2005, p. 224), é que procuramos refletir e discutir sobre a

“A Fenomenologia da Metafísica do Ser e do Ter: contribuições do pensamento filosófico de

Gabriel Marcel para a educação, numa perspectiva da formação humana”.

A análise de sua produção não constitui uma tarefa fácil, porque seu estilo não

obedece a uma sistematização objetiva, que pretende servir como um manual de filosofia

(MARCEL, 1927). Antes, representa uma meditação, inquieta e interpeladora dos problemas

existenciais com que se debateram o homem e a sociedade de seu tempo; representa, ainda, a

tensão, destacada no poema rilkeano, que se dá entre aquilo que somos e poderemos vir a ser,

espiritual e humanamente. A produção de Marcel nos leva à inquietação própria de alguém

que, após descobrir que não é um ser determinado, compreende que “[...] a existência humana

é a viagem que o homem faz entre a realidade e a realização. E, que para realizar-se e ao

Page 389: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

387

realizar-se, o homem irrompe na totalidade do real e, nesta irrupção, instala estâncias de

relacionamento com tudo que existe e não existe” (RILKE, 1989, p. 11).

Após as leituras, as reflexões e os confrontos com a vastidão da obra de Gabriel

Marcel, que se situam nos âmbitos da Filosofia, do Teatro, da Música e da Crítica Literária,

seus principais aspectos, que no início se traduziram em dificuldades, foram, gradualmente, se

tornando mais claros, à medida que apontavam para as perguntas-problema que atravessam

toda sua exposição. Entre elas, destacam-se: que é o homem? Quem sou eu? Por que vivo e

que sentido tem tudo isto? (MARCEL, 1956). A partir das questões deste teórico, passamos a

indagar: será a continuidade dos processos da vida a pressuposição necessária de toda

existência humana? De que modo a dialética do ter sobre o ser contribui para a

despersonalização das relações humanas e do processo educativo? O que a Pedagogia pode

aprender com os estímulos da Filosofia Existencial?

Mais ainda, questionamos: a perspectiva existencial, de que a vida humana deve ser

apenas concebida através das experiências descontínuas, constitui-se na premissa fundamental

de toda formação do Ser? Qual a relação que existe, para Marcel, entre intersubjetividade e

formação humana? Em que sentido a Filosofia da Esperança poderá contribuir para o

aprofundamento das concepções do Existencialismo e para o modo como o

homem/docente/discente orienta sua relação consigo, com o outro e com o mundo, no âmbito

das experiências sistemáticas e assistemáticas da educação?

Desta maneira organizamos o trabalho em quatro momentos, com a intenção de

explicitar o modo como Gabriel Marcel, enquanto filósofo, dramaturgo, músico e educador

procura examinar as contribuições e consequências decorrentes da Filosofia da Existência e

da Filosofia da Esperança para a formação do Ser. Procuramos refletir e discutir sobre estas

Filosofias, à luz das exigências de um tempo marcado pelo vazio e pelas fragilidades de uma

prática pedagógica, que sucumbiu e mostrou-se limitada, face ao desmoronamento de um

mundo complexo e de uma visão desencantada do humano e da vida. Nossa intenção consiste

em estabelecer um diálogo fecundo entre os universos multidimensionais do seu pensamento,

chamando a atenção, de educadores e educandos, para a necessidade de refletir, para além dos

limites formais da escolarização, sobre o papel da educação contemporânea, enquanto

processo de formação humana e fator pertinente de educabilidade.

Assim, no primeiro capítulo, partindo da visão de Gabriel Marcel sobre o humano e

sua existência, apresentamos a caracterização antropológica e metafísica do seu pensamento,

tomando como ponto de partida a compreensão do homem, enquanto ser encarnado e

presença itinerante no mundo, e da sua consciência em relação ao seu corpo, seu sentir,

Page 390: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

388

considerando a mediação e o mistério que o compreende. Deste modo, procuramos destacar a

condição do homem como Ser a caminho, sua condição, temporalização, realidade e formas

de inteligibilidade. Mais ainda, propusemos uma descrição dialógica do conceito de liberdade,

buscando ressaltar o homem como um ser aberto, que se articula através da razão, da graça, da

verdade, da abertura heterônima e do testemunho, como vias de acesso à verdade do Ser.

Apresentamos também uma análise da relação intersubjetiva e o enfrentamento dos processos

que pretendem a abstração da visão que o homem tem de si, enquanto Ser de comunhão

fraterna que, abrindo-se ao outro, se dispõe, existencial e humanamente, a recebê-lo em toda

sua subjetividade. Destacamos, ainda, a condição transcendente do homem, como ser voltado

para o absoluto; sua exigência imanente e situação histórica diante dos modos de reflexão

primeira e reflexão segunda, à luz do curso da evolução da técnica e dos processos de

funcionalização da vida e de suas capacidades. Nosso interesse é proporcionar não só uma

compreensão geral a respeito das concepções deste autor, como possibilitar o confronto do

seu pensamento com as propostas que pretendem a uniformização e redução do sujeito aos

níveis da coisa, do objeto e da função.

No que concerne ao pensamento ontológico de Gabriel Marcel, no segundo capítulo,

procuramos apresentar uma descrição metafísica do mistério do Ser, sua exigência concreta e

indeterminação histórica, face aos seus respectivos distanciamentos e possíveis pontos de

aproximação. Partindo de noções gerais do existencialismo acerca da morte, evidenciamos sua

natureza, manifestação e posição na vida humana, diante da decisão existencial e eternização

do Ser. Procuramos explicitar o modo como Marcel a compreende, como mistério, diante do

fascínio e da possibilidade do homem transcender o desespero. Refletimos, também, sobre a

relação entre a morte e o ter; sobre a concepção de Martin Heidegger, quando se refere à

condição do homem, como um ser-para-a-morte; e sobre a morte, enquanto situação-limite, no

pensamento de Karl Jaspers e suas implicações para as relações humanas, como experiência

de afirmação do outro e suas experiências de comunicação.

Na intenção de clarificar a natureza da relação entre as formas contínuas e

descontínuas da condição humana, propusemos a descrição da metafísica da esperança, sob o

primado da imagem de um homem que mudava e exigia uma abordagem pedagógica, que

estivesse mais próxima da vida e de novas realidades antropológicas e sociais. Outrossim,

destacamos a categoria da confiança, como conceito pedagógico, capaz de reconduzir o Ser

ao desvelamento de si, de sua própria existência e formação, em perfeita relação com a

fidelidade, enquanto modo de articulação entre a comunhão e o cuidado, o desespero e a

esperança, quando visa ajudar o homem a decidir-se e engajar-se existencialmente.

Page 391: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

389

O objetivo destas reflexões, articuladas ao campo da educação, foi mostrar como a

necessária audácia do professor pode levá-lo a um tipo de fracasso, em princípio, inevitável,

caso o educando se negue, por livre arbítrio, a aderir à proposta do educador. O educador

precisa aprender a vivenciar esses fracassos humanamente, confrontando-se com suas próprias

vivências de marasmos, limitações, acomodações, desconfianças e fortalecendo sua

confiança, seus compromissos, motivações e esperanças em si e nos outros. Uma confiança

que não se revela ingênua, religiosa ou supersticiosa, mas, que se propõe humana e

humanizadora dos homens e de suas trajetórias educacionais e formativas.

No terceiro momento, procuramos analisar a natureza dos processos de

despersonalização das relações humanas na civilização técnico-industrial, tomando como base

seu ambiente espiritual e respectivos modos de funcionalização do Ser. Partimos da

compreensão do valor da técnica e sua importância para a subsistência e o desenvolvimento

da espécie humana, sua influência e seu impacto sobre o meio industrial e a crise de valores,

que esvazia e abstrai da vida humana seu real sentido e significado. A reflexão sobre o modo

como o homem pode, gradualmente, perder a consciência de si, na era da técnica, nos convoca

a pensar sobre as técnicas de aviltamento; sobre a forma como as novas tecnologias podem ser

usadas, para incidir num processo de ideologização da história, através da manipulação da

propaganda do rádio e da televisão.

Neste sentido, procuramos discutir o lugar que Marcel concedeu ao estudo do espírito

de abstração e desumanização do humano, face às insurgências da técnica e do fanatismo,

sobre o processo de construção utilitária da consciência do homem e da degradação de sua

dignidade.

No estudo sobre as implicações da civilização técnico-industrial sobre o homem,

procuramos chamar atenção para seus limites e riscos e para a maneira como Marcel nos

adverte sobre o perigo de confundirmos civilização humana com desenvolvimento técnico,

sem levarmos em consideração o jogo das aparências sucessivas e inconsistentes dos

processos e mecanismos que ameaçam suprimir a condição do Ser encarnado e o valor de suas

relações interpessoais.

No último capítulo, buscamos dedicar atenção às contribuições do pensamento de

Gabriel Marcel para a educação, numa perspectiva da formação humana, seus desafios e suas

possibilidades. O ponto central de suas considerações situa-se na visão de que é possível ao

homem, apesar da situação dos anos de pós-guerra, das experiências descontínuas e do

desenvolvimento da técnica, sair do desespero para uma Nova Esperança, que encontra no

humano uma nova Fé, capaz de conduzi-lo ao futuro e à possibilidade daquilo que ele não é

Page 392: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

390

ainda. Iluminados por esta aspiração, encontramos em Gabriel Marcel a ênfase na necessidade

do homem responder às exigências educativas da formação humana, na era da técnica e

tecnologia, através do resgate da visão integral do Ser humano, da valorização das suas

potencialidades e da possibilidade e possível ressignificação da noção de sabedoria.

Falamos das perspectivas ontológicas e pedagógicas da relação entre educador e

educando, partindo da dimensão da comunicação e da comunhão entre o eu e o tu, para as

dimensões multifacetadas das noções de presença, compromisso, participação, paciência,

serenidade e da confiança no Ser. Refletimos sobre uma confiança que torna o Ser disponível

à singularidade do outro e que se expressa na dimensão da vivência da diversidade e da

tolerância, numa abertura acolhedora à sua subjetividade, enquanto estado receptivo daquilo

que ele é no seu mais íntimo núcleo interior. Assim, ainda nesta última parte, dedicamos

atenção aos papéis do professor-filósofo, na era da técnica e da tecnologia e aos desafios das

tarefas pedagógicas, diante das exigências e aspirações do Ser. Neste sentido, Marcel nos

convida a pensar sobre a necessidade do desenvolvimento de uma prática pedagógica que seja

geradora de sentido humano, promotora da dignidade das pessoas e das relações, e que se

mova numa perspectiva do mistério e da transcendência do Ser.

Na concepção de Gabriel Marcel, cabe à educação procurar discernir entre as formas

e/ou categorias que possam contribuir para o desenvolvimento, não só da prática pedagógica,

como do próprio aprofundamento das dimensões que compõem o humano e sua vivência. Seu

objetivo foi mostrar como as influências instigantes e provocativas da Filosofia da Existência

e da Filosofia da Esperança podem ajudar a iluminar o fazer humano, buscando enxergar este

humano na sua integralidade.

Nossa preocupação, a partir da análise central da abordagem filosófica de Gabriel

Marcel, não é desconsiderar o valor das propostas e formas desenvolvidas pelas concepções

clássicas da Filosofia, como se elas estivessem superadas ou não pudessem contribuir para a

educação e a formação do homem. Esta posição é, antes, problematizadora, à medida que se

coloca como atitude investigativa e curiosa a respeito da visão de homem que, marcadamente,

orienta a formação de seu tempo e determina suas formas de realização. No estudo desta

abordagem, não ignoramos as tendências mais marcantes do tempo em que se situa o

pensamento de Marcel, mas procuramos estimular a reflexão sobre o homem, enquanto ser de

esperança. “Uma esperança que se situa no marco de uma prova que não só corresponde,

senão que é uma verdadeira resposta do Ser” (MARCEL, 2005, p. 42).

Ainda que reconheça a importância de uma antropologia da e para a descontinuidade,

Marcel anuncia sua limitação e pontua sua necessidade de superação, a partir das categorias

Page 393: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

391

elencadas pela Filosofia da Esperança, enquanto fulcro de uma formação movida pela

Continuidade, a vivência contínua, que não é o mesmo que continuísmo, que se revela por

meio dos pressupostos da primazia do Ser sobre o pensamento e do Ser sobre o ter,

compreendendo esta condição de primazia enquanto atitude dialética, por onde se procura

entender que o pensamento é uma epifania do Ser, que, mesmo precisando estar ligado ao ter,

deve equalizá-lo, não deixando-se abstrair por ele, mas conduzindo-o e orientando-o para si

(MARCEL, 1935).

Compreendemos, assim, a dimensão científica de que se reveste o pensamento, as

categorias e as análises de Marcel, sobre as concepções de homem e de mundo. Suas

abordagens revelam um nível expressivo de cientificidade, de rigor científico caracterizado

“[...] como uma ideia reguladora de alta abstração e não como sinônimo de modelos e normas

a serem seguidos” (MINAYO, 2007, p. 11). Aprendemos, então, com a análise dos

constructos teóricos de Gabriel Marcel, a transgredir “modelos e normas”, a abstrair e

interpretar conceitos e ideias com a “[...] humildade de quem sabe que qualquer conhecimento

é aproximado, é construído” (2007, p. 12) e, portanto, incompleto, provisório e inacabado.

Diante destas considerações, reconhecemos os limites da pesquisa, no que concernem

ao domínio e conhecimento da língua francesa, o que dificultou a interpretação e a

familiarização dos conceitos e das terminologias, que perpassam a elaboração das obras, que

tomamos como referência para a produção deste trabalho. Por outro lado, fizemos o

investimento da leitura atenta e contextualizada, ressaltando que o pensamento de Gabriel

Marcel, por sua originalidade e por estar imerso no âmbito da Filosofia da Existência e da

Filosofia da Esperança, apresenta um grande número de conceitos e palavras novas, que

exigem um nível considerável de investigação e análise. Daí, que sua tradução literal para a

língua portuguesa se constituiu num desafio de difícil interpretação, ao mesmo tempo em que

também implicou em semelhante desafio, nosso desejo e intenção de articular o pensamento

filosófico de Marcel com a espiritualidade, em confronto com a prática pedagógica

desenvolvida no cotidiano dos espaços educacionais.

Ainda sobre os desdobramentos e avanços deste trabalho, consideramos pertinente

ressaltar sua perspectiva hermenêutico-interpretativa. O esforço hermenêutico empreendido

nesta pesquisa não pretende se colocar como a última palavra ou interpretação a respeito das

abordagens pedagógica e filosófica de Gabriel Marcel. Estas formas de abordagens podem se

constituir numa dimensão plural e multifacetada, por entendermos que a categoria da verdade

pode ser interpretada, repensada e ressignificada, a partir de vários olhares. E, ainda, por

compreendemos que a consciência histórica, como uma marca da construção científica

Page 394: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

392

(MINAYO, 2007), ultrapassa os limites de uma epistemologia que exclui o sujeito e se

compreende como técnica, à medida que transforma o tempo, no horizonte gerador de

sentidos do Ser (GADAMER, 2005).

Por ser a consciência humana e histórica, a condição da e para a própria experiência

produtora do conhecimento humano (MARCEL, 1933, 1935) é que afirmamos a possibilidade

de outras formas de apresentação, visão e interpretação das categorias elencadas ao longo

deste trabalho. Assim, compreendemos que diferentes leituras sobre o pensamento filosófico

de Marcel poderão acrescentar significativas percepções e acenar para novas perspectivas de

abordagens interpretativas e explicativas sobre o tema que orienta esta produção científica e

suas respectivas categorias de análise.

O pensamento filosófico e dramatúrgico de Gabriel Marcel mantém abertas vias e

possibilidades de pesquisas, que merecem ser estudadas e desenvolvidas posteriormente.

Estamos falando de possíveis abordagens que aqui não foram apresentadas ou discutidas, em

virtude da natureza e da incompletude, que são próprias de uma tese de doutoramento e

trabalho de pesquisa. Deste modo, destacamos que a amplitude e profundidade do pensamento

e da produção acadêmica deste autor acenam para uma gama de temas, ideias, discussões e

elaborações que poderão se mostrar fecundas e promissoras, dentro dos cenários acadêmico e

educacional brasileiros.

Sobre as questões e pistas alternativas que ficam abertas para outras pesquisas,

destacamos: as contribuições do estudo do pensamento marceliano, numa perspectiva

hermenêutica e fenomenológica voltada para a Filosofia da Educação; e, ainda, contribuições

da filosofia de Gabriel Marcel para a constituição de uma antropologia espiritual da educação;

a articulação possível das categorias do pensamento filosófico e pedagógico de Marcel, à luz

da História da Educação e os resultados de seu intercâmbio com a América do Sul e/ou o

mundo Oriental; estudo sobre a interface que há entre a dramaturgia e a pedagogia do teatro

marceliano; contribuições de Marcel para a construção de uma fenomenologia e dialética da

educação, numa perspectiva da formação humana; explicitação do diálogo entre experiência

religiosa e inteligibilidade filosófica em Gabriel Marcel e seus desdobramentos para a prática

pedagógica.

E acrescentamos, ainda, outras alternativas de pesquisa: o processo de educação para a

cidadania, a partir das contribuições teóricas de Gabriel Marcel, no contexto de uma

sociedade democrática, marcada por posturas de intolerância e discriminação sócio-racial;

implicações dos estudos da dramaturgia de Marcel para a formação do sujeito ético e de suas

relações interpessoais; estudo da articulação possível entre Marcel e Martin Buber, sobre a

Page 395: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

393

dimensão pedagógica da relação eu-tu e eu-isso; análise da presença e influência da filosofia

de Gabriel Marcel sobre os pressupostos da educação como prática da liberdade em Paulo

Freire; discussão sobre as categorias da subjetividade, fidelidade e solidariedade, à luz das

contribuições teóricas de Marcel, no contexto de uma sociedade consumista, narcisista e

desumana; estudo sobre as contribuições da prática educativa de Marcel, em tempos

sombrios, a partir da sua relação com o Instituto Montessori e suas contribuições para a

compreensão da formação humana do Ser/professor/aluno, no âmbito do cenário educacional

brasileiro.

Ao final deste percurso, anunciamos como desafio ao campo da Filosofia da Educação

o estudo das contribuições do pensamento filosófico de Marcel sobre as reflexões filosófico-

antropológicas que orientam a formação do professor e a prática pedagógica brasileira nos

dias atuais. Ressaltamos a necessidade de refletir sobre a importância da transposição

didática do pensamento filosófico de Gabriel Marcel no processo de formação do educador; e

sugerimos um estudo sobre as formas descontínuas e contínuas apresentadas pela Filosofia da

Existência e a Filosofia da Esperança e sua articulação com as teorias clássicas da educação

no sentido de (re)pensar a prática pedagógica.

Diante destes desafios, sugestões e possibilidades de caráter científico, epistemológico

e didático-pedagógico, compreendemos e afirmamos a importância de refletir sobre o

cotidiano de educadores e educandos, em seu processo de formação acadêmica, pedagógica,

cultural, política e humana. Estas reflexões mostram-se necessárias, a partir da realidade de

uma sociedade cada vez mais fascinada pela tecnologia, atraída pelo consumo, movida pelo

individualismo, influenciada pela intolerância religiosa, conduzida pelo conservadorismo

político e pela criação de rótulos e slogans que garantem a autoafirmação, diferença, destaque

e hegemonia de uns homens sobre os outros.

Enfim, procuramos identificar e reconhecer, na obra ensaísta de Gabriel Marcel,

através do estudo cuidadoso de suas categorias, possibilidades investigativas do humano, que

possam servir de orientação para o alcance de novos horizontes conceituais, que sejam

criadores de sentidos humanos e educacionais.

Assim, entendemos que o estudo, a discussão e a visibilidade do pensamento filosófico

de Gabriel Marcel, em relação à Filosofia da Existência e à Filosofia da Esperança,

constituem-se num caminho promissor para a criação de um cenário sócio-educativo de

acolhimento à alteridade e de reconhecimento da sua existência, numa dimensão

humanizadora, enquanto ser integral. A discussão e o mergulho nas ideias de Marcel fazem

lançar novos olhares para a educação e para o homem, como instâncias que transcendem as

Page 396: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

394

dimensões técnica, curricular e burocrática dos saberes. Os estudos dos referenciais de Marcel

nos convidam a olhar a vida e a formação humana, de educadores e educandos, a partir da

própria existência do Ser que, ultrapassando os limites dos saberes objetivos sobre si mesmo e

a sua formação “[...] se lança ao encontro de uma luz que pressente, e da qual experimenta, no

fundo de si mesmo, como um secreto estímulo e um ardente presságio” (MARCEL, 1985, p.

82), caminhando, do tapete dialético do problema, para a dimensão ontológica e transcendente

do mistério, para a possibilidade de Ser.

Page 397: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

395

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre JOU, 1970.

______. Historia de la filosofia. v. 3. Barcelona: Montáñez y Simón, 1973.

______. História da filosofia. v. 12. Lisboa: Editora Presença, 1976.

______. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ACKER, Leonardo Van. A filosofia contemporânea. São Paulo: Convívio, 1981.

AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulus, 1984.

______. Vida e Obra. São Paulo: Nova Cultura, 1999.

AYALA, F. Tratado de sociologia. v. II. Buenos Aires: Editora Losada, 1949.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação e da Pedagogia: geral e do Brasil. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2006.

ADÚRIZ, Joaquín. Gabriel Marcel: el existencialismo de la esperanza. México: Espasa-Calpe Mexicana, 1949.

ARISTÓTELES. Os pensadores: Aristóteles. São Paulo: Nova Fronteira, 1996.

______. Ética a Nicómaco. Lisboa: Quetzal Editores, 2004.

ARNALDEZ, Roger. L’aventure philosophique avec Gabriel Marcel. In: SACQUIN, Michèle (Org.). Gabriel Marcel: colloque organisé par la Bibliothèque Nationale et l’Association ‘Présence de Gabriel Marcel’. Paris: Bibliothèque Nationale, 1988.

AUBERT, Emmanuel de Saint. Le scénario cartésien: recherches sur la formation et la cohérence de l’intention philosophique de Merleau-Ponty. Paris: Vrin, 2005.

BAGOT, Jean-Pierre. Connaissance et amour: essai sur la philosophie de Gabriel Marcel. Paris: Beauchesne et sés fils, 1958.

BALEKE, Stanislas R. Étique, espérance et subjectivité. Paris: L’Harmattan, 2010.

BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

______. Confiança e medo na cidade. Lisboa: Relógio d’Água, 2006.

Page 398: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

396

______. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

______. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

BELAVAL, d’Yvon. Histoire de la philosophie. III v. 2. Paris: Gallimard, 1974.

BELAY, Marcel. Sur Le Dard. In: AAVV. Gabriel Marcel. Paris: Bibliothèque Nationale, 1989.

______. La mort dans le thèâtre de Gabriel Marcel. Paris: Vrin, 1980.

BERDIAEV, N. L΄homme et la machine. Paris: Editora Gallimard, 1933.

BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido: a orientação do homem moderno. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

BESPALOFF, Rachel. Cheminements et carrefours. Paris: Vrin, 2004.

BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

BOLLNOW, Otto Friedrich. Filosofia existencial. São Paulo: Saraiva, 1946.

______. Filosofía de la esperanza. Buenos Aires: Compañia General Fabril Editora, 1962.

______. Pedagogia e Filosofia da Existência: um ensaio sobre formas instáveis da educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1971.

BOUËSSÉE, Joël. Gabriel Marcel: une métaphysique de la communion. Paris: L’Harmattan, 2013.

______. Du côté de chez Gabriel Marcel. Paris: L’Age d’Homme, 2004.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

BOUILLARD, Henri. A lógica da fé. São Paulo: Herder, 1968.

BUBER, Martin. Nachlese. Heidelberg: Lambert Schneider, 1965.

______. Je et Tu, avant propos de Gabriel Marcel. Paris: Aubier, 1969.

______. Qué es el hombre? México: Fondo de Cultura Economica, 1976.

______. Eu e tu. São Paulo: Centauro, 2001.

Page 399: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

397

______. O caminho do homem segundo o ensinamento chassídico. São Paulo: Realizações Editora, 2011.

BLIN, Georges. Gabriel Marcel: métaphysicien de la foi en Fontaine. In: MURILLO, Ildefonso Murillo. Diálogos Filosóficos. nº 15. Madrid: Ediciones Encuentro, 1989.

CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999.

CARMONA, Feliciano Blázquez. Marcel – 1889 – 1973. Madrid: Ediciones del Orto, 1995.

CARVALHO, Delgado de. Sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1931.

CHENU, Joseph. Le théatre de Gabriel Marcel et as signification métaphysique. Paris: Aubier, 1948.

COLIN, Pierre. Gabriel Marcel philosophe de l’espérance. Paris: Éditions Du Cerf, 2009.

CORTE, Marcel de. La philosophie de Gabriel Marcel. Paris: Simon, 1970.

COTRIM, Gilberto. História e consciência do mundo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

COUTO, Sérgio Pereira. Dossiê Hitler. São Paulo: Universo dos Livros, 2007.

DAVID, Marie-Madeleine. Un philosophe itinerant de Gabriel Marcel. Paris: Flamarion, 1959.

DAVIGNON, René. Le mal chez Gabriel Marcel: comment affronter la souffrance et la mort? Montréal: Bellarmin, 1985.

DESCARTES, René. Discurso do método. 11. ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1982.

DELHOMME, Jeanne. Témoignage et dialeticqui. In: GILSON, Étienne. Existentialisme chrétien: Gabriel Marcel. Paris: Librairie Plon, 1947.

DAVY, M. M. Un filósofo itinerante: Gabriel Marcel. Madrid: Editorial Gredos, 1963.

DILTHEY, Wilhelm. História da filosofia. Lishboa: Editorial Presença, 1961.

DOMINGUES, Rui Octávio. Metodologia da transcendência em Gabriel Marcel. In: CINTRA, Frei Raimundo (org.). Credo para amanhã. Petrópolis, RJ: Vozes, 1972.

DUCASSÉ, P. Histore dês techniqces. Paris: Presses Universitaires, 1948.

DUROZOI, Gérard. Dicionário de filosofia. 2. ed. Campinas, SP: Papirus, 1996.

Page 400: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

398

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do estado e civilização. v. 2. Rio de Janeiro: editora, 1993.

______. O processo civilizador: uma história dos costumes. v.1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

______. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

ESCOLA, Joaquim José Jacinto. Paulo Freire e Gabriel Marcel. In: SEVERINO, António Joaquim; ALMEIDA, Cleide Rita Silvério; LORIERI, Marcos António (Orgs.). Perspectivas da Filosofia da Educação. São Paulo: Cortez, 2010a.

______. Comunicação e Comunhão em Gabriel Marcel. In: CARVALHO, Adalberto Dias de (Coord.). Contemporaneidade educativa e interpelação filosófica. Porto: Edições Afrontamento, 2010b.

______. Gabriel Marcel: comunicação e educação. Porto: Edições Afrontamento, 2011a.

______. Paulo Freire e Gabriel Marcel: pedagogia da comunicação como prática de emancipação. In: SEVERINO, Antônio Joaquim et al. Perspectivas da filosofia da educação. São Paulo: Cortez, 2011b.

FOUIQUIÉ, Paul. L΄existentialisme. 11. ed. Paris: Presses Universitaires, 1961.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 29. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

______. Uma educação para a liberdade. 4. ed. Porto: Textos Marginais, 1974.

______. Educação e mudança. 23. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

______. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2005a.

______. Pedagogia do oprimido. 40. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005b.

______. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.

FRIEDMAN, George. A próxima década: onde estamos... e para onde iremos. Ribeirão Preto, SP: Novo Conceito Editora, 2012.

Page 401: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

399

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 7. ed. São Paulo: Editora Universitária São Francisco, 2005.

______. Verdade e método II: complementos e índice. 3. ed. São Paulo: Editora Universitária São Francisco, 2007.

GADOTTI, Moacir. Os mestres de Rousseau. São Paulo: Cortez, 2004.

GARAUDY, Roger. Perspectivas do homem: existencialismo, pensamento católico e marxismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

GEVAERT, Joseph. El problema del hombre: introduccion a la antropología filosófica. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1987.

GIESECKE, Hermann. Hitlers pädagogen: heorie und praxis national sozialistischer Erziehung. 2. Auflage. München: Weinheim, 1999.

GILES, Thomas Ransom. História do existencialismo e da fenomenologia. São Paulo: EPU, 1989.

GILSON, Étienne. Un exemple. In: MARCEL, Gabriel, Existentialisme chrétien: Gabriel Marcel. Paris: Librairie Plon, 1947a.

GIORDANI, Mário Curtis. O existencialismo à luz da filosofia cristã. São Paul: Ideias & Letras, 2009.

GIRARDI, Leopoldo Justino. O ser do valor: perspectivas de Gabriel Marcel. Porto Alegre: Nilton Rocha de Souza Editor, 1978.

GOETHE. Fausto. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2002.

GÓMEZ, David Sacristán. Comunicación. In: AAVV. Filosofia de la educación hoy, conceptos, autores, temas. 2. ed. Madrid: Dykinson, 1991.

GUSDORF, George. Traité de métaphysique. Paris: Armand Colin, 1956.

HACKETT, David A. O relatório de buchenwald. Rio de Janeiro: Record, 1998.

HANS, Nicholas Adolph. Educação comparada. 2. ed. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1971.

HATEM, Jad. Christ et intersubjectivité chez Marcel, Stein, Wojtyla et Henry. Paris: L’Harmattan, 2004.

Page 402: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

400

HEIDEGGER, Martin. El Ser y El Tiempo. México-Madrid-Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1987.

______. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Nova Cultura, 1989.

______. Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

______. Ser e tempo. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009a.

______. Seminários de Zollikon: protocolos, diálogos, cartas. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009b.

HEINEMANN, Fritz. Está viva o muerta la filosofia existencial? Madrid: Revista do Ocidente S.A., 1954.

HENZ, Hubert. Manual de pedagogia sistemática: pedagogia geral e diferencial e introdução aos métodos de pesquisa pedagógica. São Paulo: Herder, 1970.

HERSCH, Jeanne. Karl Jaspers. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1978.

HIRSCHBERGER, Johannes. História da filosofia contemporânea. 3. ed. São Paulo: Herder, 1963.

HUISMAN, Denis. História do existencialismo. Bauru; SP: EDUSC, 2001.

HUSSERL, Edmund. Investigações lógicas: sexta investigação, elementos de uma elucidação fenomenológica do conhecimento. São Paulo: Nova Cultura, 2005.

IFUMBA, Père Pontien Biajila. L’existentialisme chez Gabriel Marcel. Paris: L’Harmattan, 2011.

JASPERS, Karl. Ambiente espiritual de nuestro tiempo. Barcelona – Buenos Aires: Labor, 1933.

______. Razão e anti-razão em nosso tempo. Rio de Janeiro: Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1958.

______. Filosofia. vs. I e II. Madrid: Revista de Occidente, 1959.

______. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 1965.

______. Filosofia da existência: conferências pronunciadas na academia alemã de Frankfurt. Rio de Janeiro: Imago, 1973.

______. Iniciação filosófica. Lisboa: Guimarães editores, 1998.

Page 403: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

401

JOLIVET, Régis. As doutrinas existencialistas: de Kierkegaard a Sartre. Porto: Livraria Tavares Martins, 1953.

______. Curso de filosofia. 12. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1976.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultura, 1999.

KIERKEGAARD, Sören Aabye. Diário de um sedutor: temor e tremor; o desespero humano. 3. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1988.

______. Temor e tremor. Lisboa: Guimarães Editores, 1990.

______. O conceito de angústia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

KRIECK, Ernst. Educação e política nacional. Uberaba, MG: Editora Barcelona, 1941.

LAWN, Chris. Compreender Gadamer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

LE VAN, Ran. Autrui dans la pensée de Gabriel Marcel. Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Fribourg/Suiça, 1976.

LENZ, Josef. El moderno existencialismo aleman y frances. Madrid: Editorial Gredos, 1955.

LETONA, Francisco Peccorini. Gabriel Marcel: la razón de ser en la participación. Barcelona: Juan Flors Editor, 1959.

LUTERO, Martinho. Educação e reforma. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2000.

MACDONALD, Dwight (Org.). A indústria cultural. Lisboa: Meridiano, 1971.

MANVELL, Roger; FRAENKEL, Heinrich. Doutor Goebbels: vida e morte. São Paulo: Madras, 2012.

MARCEL, Gabriel. Jornal metafísico. Madrid: Gallimard, 1927.

______. Le monde casse suivi de positions et approches concrètes du mystère ontologique. Paris: Vrin, 1931.

______. Le monde cassé. Paris: Plon, 1933.

______. La soif. Paris: Desclée de Brouwer, 1938.

______. De refus a l΄invocation. França: Librairie Gallimard, 1940a.

Page 404: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

402

______. Essai de philosophie concrète. Madrid: Gallimard, 1940b.

______. La metaphysique de Royce. Paris: Aubier, 1945.

______. Existentialisme chrétien: Gabriel Marcel. Paris: Librairie Plon, 1947a.

______. Regard en arrière. In; Existentialisme chrétien: Gabriel Marcel, Paris: Plon, 1947b.

______. Position et approaches concretes du mystère ontologique. Paris: Vrin, 1949.

______. La chapelle ardente. Paris: La Table Ronde, 1950.

______. El misterio del ser. Buenos Aires: Editora Sudamericana, 1951a.

______. Os Homens contra o homem. Porto: Editora Educação Nacional, 1951b.

______. Le mystère de l’être: I - reflexion et mystère. Paris: Aubier, 1951c.

______. Le mystère de l’être: II - foi et réalité. Paris: Aubier, 1951d.

______. Le déclin de la sagesse. Paris: Plon, 1954.

______. L’homme problématique. Paris: Aubier, 1955a.

______. Decadencia de la sabiduría. Buenos Aires: EMECÉ, 1955b.

______. El mundo quebrado. Buenos Aires: Ediciones Losange, 1956a.

______. El hombre problemático. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1956b.

______. Teatro: Roma yo no está em Roma; Un hombre de dios; El emisario. Buenos Aires: Editora Losada, 1957a.

______. Diário metafísico. Buenos Aires: Losada, 1957b.

______. La dimension Florestan. Paris: Plon, 1958.

______. Présence et immortalité. Paris: Flammarion, 1959a.

______. Théâtre et religion. Lyon: Editions Emmanuel Vitte, 1959b.

______. Revolução da Esperança: rearmamento moral em ação. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1961.

Page 405: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

403

______. Um homem de deus. Petrópolis; RJ: Vozes, 1964a.

______. La dignité humaine et ses assises axistentielles. Paris: Aubier Édittions Montaigne, 1964b.

______. Kierkegaard en mi pensamiento. In: Sartre, Heidegger, Jaspers y outros: Kierkegaard vivo - Coloquio organizado por la Unesco en París, del 21 al 23 de abril de 1964. Madrid, 1966, p. 51-62.

______. Foi et réalité. Paris: Aubier, 1967.

______. Diário metafísico: 1928-1933. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1968a.

______. Entretiens Paul Ricoeur et Gabriel Marcel. Paris: Aubier Montaigne, 1968b.

______. Incredulidad y fe. Madrid: Guadarrama, 1968c.

______. Pour une sagesse tragique et son au-delá. Paris: Aubier, 1968d.

______. Enchemin versquel evéil? Paris: Gallimard, 1971.

______. O conceito de herança espiritual. In: RUITENBEEK, Hendrik M. O dilema da sociedade tecnológica. São Paulo: Vozes, 1971.

______. L’Inconoclaste. Paris: Fayard, 1973.

______. Interrogé par Pierre Boutang: archives du XX siècle. Paris: J.M. Place, 1977.

______. L΄existence et la liberte humaine chez Jean-Paul Sartre. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1981.

______. Et lês injustices de ce temps et la responsabilité du philosophe. Paris: Aubier, 1983.

______. Aproximacion al misterio del ser: posición e aproximaciones concretas al mistério ontológico. Madrid: Ediciones Encuentro, 1987.

______. Obras seletas I: el misterio del ser, el dardo, la sed, la señal de la cruz. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002a.

______. Obras seletas II: de la negación a la invocación, el mund rorto, um hombre de dios, el camino de Creta. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002b.

______. Ser y tener. 2. ed. Madrid: Caparrós Editores, 2003.

Page 406: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

404

______. Homo viator: prolegómenos a una metafísica de la esperanza. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2005.

______. Tu ne mourras pas. Paris: Arfuyen, 2005.

______; PICARD, Max. Correspondance 1947-1965. Paris: L’Harmattan, 2006.

MARITAIN, Jacques. Cristianismo y democracia. Buenos Aires: Club de Lectores, 1955.

MERLEAU-PONTY, Maurice. La philosophie de l’existence. Dialogue. Canadian Philosophical Review/Revue canadienne de philosophie. v.5. 1966. p. 307-328.

MENDONÇA, Nelino Azevedo de. Pedagogia da humanização: a pedagogia humanista de Paulo Freire. São Paulo: Paulus, 2008.

MESNARD, Pierre. Gabriel Marcel: dialecticien de l’esperance em la vie intellectuel. _____. In: MURILLO, Ildefonso Murillo. Diálogos Filosóficos. nº 15. Madrid: Ediciones Encuentro, 1989.

MINAYO, Maria Cecília de Sousa. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 7. ed. Rio de Janeiro: HUCITEC-ABRASCO, 2000.

______ (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 26. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

MIRLAS, Leon. Panorama del teatro moderno. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1956.

MOLARD, Julien. Séquences philosophiques I: philosophie et christianisme. Paris: A a Z Patrimoine, 2007.

MONDIN, Batista. Curso de filosofia: os filósofos do ocidente. v. 3. São Paulo: Paulus, 1981-1983.

MONTESSORI, Maria. A criança. 2. ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1987.

MORA, J. Ferreira. Dicionário de filosofia. tomo III (K-P). São Paulo: Loyola, 1994,

MOUNIER, Emmanuel. Introdução aos existencialismos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1963.

______. El personalismo. Buenos Aires: EUDEBA, 1962.

NAMORA, Fernando. Nome para uma casa. Lisboa: Livraria Bertrand, 1984.

Page 407: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

405

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiadamente humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

NOVALIS, Georg Philipp Friedrich Von Hardenberg. Os hinos à noite. Lisboa: Assírio & Alvim, 1988.

ORTEGA Y GASSET, José. Meditação da técnica: vicissitudes das ciências-cacofonia na física. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano Limitada, 1963.

______. Meditaciones de la técnica y otros ensayos sobre ciência y filosofia. 5. ed. Madrid: Alianza Editorial, 1997.

PARAIN-VIAL, Jeanne. Gabriel Marcel: un veilleur et un éveilleur. Lausanne: L’Age d’Homme, 1989.

PASQUA, Hervé. Introdução à leitura de Ser e Tempo de Martin Heidegger. Lisboa: Grifo, 1997.

PÉREZ, Julia Urabayer. El pensamiento antropológico de Gabriel Marcel: um canto al ser humano. Navarra: EUNSA, 2001.

PLOURDE, Simonne; PARAIN-VIAL, Jeanne; DAVINGNON, René; BELAY, Marcel (Orgs.). Vocabulaire philosophique de Gabriel Marcel. Paris: Bellarmin, 1985.

PRINI, Pietro. Gabriel Marcel et la méthodologie de l`invérifiable. Paris: Desclée de Brouwer, 1953.

PROUDHON, J. P. Systhème des contradiction séconomiques ou philosophie de lamisère. Paris: Union générale d'éditions, 1923.

PUIGGRÓS, Adriana. Paulo Freire do ponto de vista da interdisciplinaridade. In: STRECK, Danilo et al. Paulo Freire: ética, utopia e educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

REZENDE, Antônio Muniz de. Concepção fenomenológica da educação. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1990.

RICOUER, Paul. Gabriel Marcel et Karl Jaspers. Paris: Ed. Du Temps Présent, 1947.

______. A região dos filósofos. São Paulo: Loyola, 1996.

RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa social: métodos e técnicas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

RILKE, Rainer Maria. Poemas e cartas a um jovem poeta. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, 1924.

Page 408: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

406

______. Soneto a Orfeu; Elegias de Duíno. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989.

______. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

______. Poemas as elegias do duíno sonetos a orfel. Lisboa: Edições ASA, 2003.

RODRIGUES, Neidson. Elogio à educação. São Paulo: Cortez, 1999.

______. Educação: da formação humana à construção so sujeito ético. Educação & Sociedade. Campinas, v. 22, nº 76, outubro 2001.

RÖHR, Ferdinand. Confiança: um conceito básico da educação numa era de desconfiança. In: IV Colóquio Franco Brasileiro de Filosofia da Educação. Rio de Janeiro: UERJ. v. 1, 2008, p. 26.

______. Espiritualidade e educação. In: ______ (Org.). Diálogos em educação e espiritualidade. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2010.

______. Educação e espiritualidade: contribuições para uma compreensão multidimensional da realidade, do homem e da educação. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2013.

ROSSELLÓ, Francesc Torralba. Antropologia del cuidar. Madrid: Editorial Mapfre, 2005.

SANSEN, Jean-Raoul. Découvrir l’unité de l’esprit. Paris: ACTES SUD, 2009.

SANTOS, Theobaldo Miranda. Noções de história da educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1951.

SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo, a imaginação, questão de método. 3. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1987.

SARRAMONA, Ferrandez. La educación: constantes y problemática actual. Barcelona: Ediones CEAC, 1975.

SCHELER, Max. Le formalisme en éthique et l’éthique matériale des valeurs. Paris: Gallimard, 1955.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2009.

SEVERINO, Antônio Joaquim et al. Perspectivas da filosofia da educação. São Paulo: Cortez, 2011.

SCIACCA, Michele Federico. La filosofia hoy: de los orígenes románticos dela fisolofia contemporánea hasta los problemas actuales. Barcelona: Luis Miracle editor, 1947.

Page 409: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

407

______. O problema da educação na história do pensamento filosófico e pedagógico: do idealismo aos nossos dias. v. II. São Paulo: Herder, 1966a.

______. História da filosofia: do século XIX aos nossos dias. v. 3. São Paulo: Mestre JOU, 1966b.

SILVA, Ezir George. Pensamento pedagógico de Otto Friedrich Bollnow: diante da filosofia da existência e da filosofia da esperança. 2011. 151p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2011.

______. Desenvolvimento pessoal, formação humana e educação: entre a noção de encontro de Afonso Lopes Quintás e a categoria da comunicação em Gabriel Marcel. In: CARVALHO, Adalberto Dias de (Org.). Revista Itinerários de Filosofia da Educação. nº 11. Porto: Edições Afrontamento, 2012.

______; ESCOLA, Joaquim José Jacinto. A dimensão pedagógica da morte em Gabriel Marcel e Karl Jaspers: eternização e decisão existencial. In: PEREIRA, José Dantas Lima; LOPES, Marcelino de Sousa; RODRIGUES; Tânia M. Moreira (Orgs.). Animação sociocultural, gerontologia e geriatria: a intervenção social, cultural e educativa na terceira idade. Boticas; Espanha: Intervenção, 2013.

______; RÖHR, Ferdinand. A fenomenologia da metafísica da esperança no pensamento de Gabriel Marcel: o lugar da formação humana diante do desvelamento do mistério do ser. In: CARVALHO, Adalberto Dias de (Org.). Solidão, educação e condição humana. Porto: Edições Afrontamento, 2011.

SIRGADO GANHO, Maria de Lourdes. As figuras do eu e do tu na filosofia de Gabriel Marcel. Revista Portuguesa de Filosofia, Lisboa, p. 44, 1987.

SPENGLER, Oswald. La decadencia de occidente: bosquejo de una morfología de la historia universal. Vol. I. Madrid: Espasa, 1998a.

______. La decadencia de occidente: bosquejo de una morfología de la historia universal. v. II. Madrid: Espasa, 1998b.

SUCHODOLSKI, Bogdan. A pedagogia e as grandes correntes filosóficas: a pedagogia da essência e a pedagogia da existência. São Paulo: Centauro, 2002.

TARNOWSKY, Karol. La liberté philosophique et la religion chez Gabriel Marcel. In: SACQUIN, Michèle (Org.). Gabriel Marcel: colloque organisé par la Bibliothèque Nationale et l’Association ‘Présence de Gabriel Marcel’. Paris: Bibliothèque Nationale, 1988.

TILLIETTE, Xavier. Le christ des philosophes: du maître de sagesse au divin témoin. Paris: Culture et Vérité, 1993.

Page 410: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

408

_____. Gabriel Marcel: l’étique entre l’ontologie et le christianisme. In: ______. Arcchivio de filosofia. Paris, 64, nº 1-3, 1996. p. 763-772.

THIBON, Gustave. Ils sculptent en nous le silence: rencontres. Paris: François-Xavier de Guibert, 2003.

TROISFONTAINES, Roger. La notion de présence chez Gabriel Marcel. In: MARCEL, Gabriel. Existentialisme chrétien: Gabriel Marcel. Paris: Librairie Plon, 1947.

______. De l'Existence à l'Être: la philosophie de Gabriel Marcel. Tome I. Paris: Éditions J. Vrin, 1953a.

______. De l'Existence à l'Être: la philosophie de Gabriel Marcel. Tome II. Paris: Éditions J. Vrin, 1953b.

______. Gabriel Marcel. In: LELOTTE, J. S. F. (Org.). Convertidos do século XX. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir Editorial, 1966.

TSUKADA, Sumiyo. L’Immédiat chez Henri Bergson et Gabriel Marcel. Paris: Louvain, 1995.

WADA, Machico. Gabriel Marcel au Japon. In: SACQUIN, Michèle (Org.). Gabriel Marcel: colloque organisé par la Bibliothèque Nationale et l’Association ‘Présence de Gabriel Marcel’. Paris: Bibliothèque Nationale, 1988.

WAELHENS, Alphonse de. La philosophie de Martin Heidegger. 4. ed. Louvain: Publications Universitaires de Louvain, 1955.

WAHL, Jean. Le journal métaphysique de Gabriel Marcel. Paris: Vrin, 1932.

______. Historia del existencialismo: discusión y Kafka y Kierkegaard. Buenos Aires: Editorial Dedalo, 1960.

______. As filosofias da existência. Lisboa: Publicações Europa-América, 1962.

______. Vers le concret: études d’histoire de la philosophie contemporaine, William James, Whitehead, Gabriel Marcel. Paris: Vrin, 2004.

WUST, Peter. Letrres de France & d’Allemagne: correspondance de Peter Wust avec sés amis français. Paris: Éditions Téqui, 1985.

VASSALLO, Ángel. Nuevos prolegómenos a la metafísica. Buenos Aires: Editora Losada, 1945.

VETÖ, Miklos. Gabriel Marcel: les grands thèmes de sa philosophie. Paris: L’Harmattan, 2014.

Page 411: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO … Ezin... · universidade federal de pernambuco centro de educaÇÃo programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo curso de doutorado ezir

409

VILLA, Mariano Moreno. Dicionário do pensamento contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2000.

VIRILIO, Paul. L΄accident originel. Paris: Galilée, 2005.

ZARAGUETA, J. Pedagogia fundamental. Madrid: Editorial Labor, 1943.

ZILLES, Urbano. Gabriel Marcel e o existencialismo. Porto Alegre: Acadêmica – PUC, 1988.