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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MARIANA MARIS RAMOS LIMA
ANÁLISE LINGUÍSTICA NA ESCOLA: POSSIBILIDADES DE INTERSEÇÃO COM O
EIXO DA LEITURA NA PRÁTICA DE PROFESSORES DO SÉTIMO ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL
Recife
2016
MARIANA MARIS RAMOS LIMA
ANÁLISE LINGUÍSTICA NA ESCOLA: POSSIBILIDADES DE INTERSEÇÃO COM O
EIXO DA LEITURA NA PRÁTICA DE PROFESSORES DO SÉTIMO ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal
de Pernambuco como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientadora: Prof. Dra. Maria Lúcia Ferreira de
Figueirêdo Barbosa
Recife
2016
MARIANA MARIS RAMOS LIMA
ANÁLISE LINGUÍSTICA NA ESCOLA: POSSIBILIDADES DE INTERSEÇÃO COM O
EIXO DA LEITURA NA PRÁTICA DE PROFESSORES DO SÉTIMO ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal
de Pernambuco como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Educação.
Aprovada em: 30/09/2016.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Lúcia Ferreira Figueirêdo Barbosa (Orientadora)
Universidade Federal de Pernambuco
Prof. Dr. Clécio dos Santos Bunzen Júnior (Examinador Externo)
Universidade Federal de Pernambuco
Profª. Drª. Eliana Borges Correia de Albuquerque (Examinadora Interna)
Universidade Federal de Pernambuco
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, Mônica Mariz, pelo amor incondicional, por acreditar, por saber esperar,
pelas palavras e pelo silêncio, pelos abraços, por todo o apoio durante o mestrado e durante toda a
vida.
Ao meu pai, Juarez Lima, pelo amor incondicional, por aceitar minhas escolhas, pelos
almoços de sábado, pelas risadas, por viver na diferença, pelos carnavais e pelo carinho de
sempre.
Ao meu irmão, Juarez Ramos (em memória), por todo o afeto e por toda a força que as
suas lembranças me trazem, pelas conversas solitárias, pelo abraço distante, pelo amor que
permanece e que só cresce.
Aos meus irmãos, David Vicente e Luisa Marinho, pelo companheirismo, pelos apertos de
bochecha, pelo carinho e amor nossos, por conseguirem fazer o mundo girar mais devagar
quando estamos juntos.
Ao meu namorado, Tiago Peixoto, pelo carinho e pelo amor construído aos poucos, por
aparecer num momento tão especial, pela paciência de apaziguar minhas agonias, por acreditar o
tempo todo.
Ao CNPq, pela concessão da bolsa durante a realização da pesquisa.
Aos professores da prefeitura do Recife e da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes que
abriram suas salas de aula para mim, pela confiança, pelo enorme aprendizado que me
proporcionaram, por me reacenderem o desejo de fazer escola.
À minha orientadora, Maria Lúcia Barbosa, pela confiança com que me recebeu na pós-
graduação, pela leitura atenta do trabalho e pelas contribuições de nossos encontros.
A Lívia Suassuna, por toda a admiração que me provoca, pelos sorrisos e pelos abraços
carinhosos, por ter me trazido para o mundo da pesquisa em educação e linguagem, por estar
sempre de portas abertas, por me ensinar tanto.
A Eliana Albuquerque, por acreditar desde o começo, por me ensinar a pesquisar, pelo
olhar humano com que me fez olhar a prática dos professores.
A Clécio Bunzen, por ter aceitado compor a banca de avaliação desta pesquisa e pelas
importantes contribuições dadas no exame de qualificação.
Aos professores que ministraram as disciplinas que cursei ao longo do mestrado, Beth
Marcuschi, Artur Morais, Janete Lins, Magna Cruz, Eliana Albuquerque, Lívia Suassuna e
Socorro Nunes, pelo conhecimento partilhado e pelos momentos de aprendizado.
Aos colegas da turma 32B do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em
Educação da UFPE, especialmente a Luísa Victor, a Nathália Cavalcanti, a Giedre Benatto, a
Washington Ferreira e a Kleydson Thyago, pelas trocas de conhecimento durante as aulas e pelos
breves mas tão agradáveis encontros nos corredores no PPGE.
Às colegas do núcleo de Educação e Linguagem do PPGE, Erika Vieira, Letícia Melo
Hampel, Mayara Palácio, Cinara Menezes e Kátia Neves, por dividirem suas experiências
profissionais e acadêmicas, por me ensinarem tanto ao mostrar os rumos que suas pesquisas
tomavam durante os nossos encontros, pela busca constante e coletiva de encontrar o melhor
caminho.
Às colegas que tive a oportunidade de conhecer nas disciplinas eletivas da pós-
graduação, especialmente a Leila Britto e a Ana Paula Berford, pela experiência partilhada,
pelas palavras de incentivo, pela amenidade dos gestos.
A Álvaro Vinícius Duarte, pela disposição e abertura com que partilhou sua experiência e
pelas preciosas sugestões durante o processo de busca dos professores que seriam sujeitos da
pesquisa.
A Hérica Karina, a Kátia Barreto, a Rosana Meira, a Deyvid Souza, a Djário Dias, a
Cristiane Abreu, a Larissa Didier, a Laís Rosal, a Leila Britto, a Jailton Nóbrega, a Noádia Silva
e às técnicas das GREs Recife Sul, Metro Norte e Metro Sul, pelas indicações de professores e
pelas ideias trocadas durante a busca dos sujeitos da pesquisa.
À minha psicóloga, Maria Helena Barros, por alumiar o caminho.
A Mariana Lins, a Marcela Alves, a Edson Araújo e a Felipe Rodrigues, pela presença
contínua, por me fazerem acreditar na longevidade da amizade, por estarem sempre lá.
A Diego Alexandre e a Mayara Palácio, por serem tão especiais para mim, pela história já
tão densa que temos guardada na memória, pela procura incansável do sonho e da beleza, pela
sensibilidade com que olham o mundo junto comigo.
A Nathaly Ramos, pela parceria nas ansiedades e nos medos que o mundo às vezes nos
traz, por me entender tanto e pela torcida recíproca nas empreitadas em que a gente inventa de
mergulhar.
A Ricardo Germano, pelo silêncio acolhedor, pela sensibilidade das poucas palavras,
pelas gargalhadas contagiantes de sempre.
A André Gustavo, a Ana Flávia Pires, a Denize Cunha, a Claudia Vasconcelos e a Thays
Lima, pelos momentos de alegria, por me lembrarem que não só de rotina se faz o mundo e por
fazerem dele um lugar mais agradável e esperançoso de se viver.
A Marina Moura, pelo carinho guardado e pelos risos dos encontros, por contemplar o
belo sem ignorar as ranhuras que inevitavelmente marcam a pele da gente, pelos encantamentos
literários.
A Chico Ludermir, por me mostrar a beleza do mundo, por me fazer lembrar sempre que
existe um outro lado, por ser tão especial pra mim.
A Leonardo Gueiros e a Eduardo Vieira, pelas contribuições teóricas durante a
preparação para o exame de qualificação, por terem pacientemente ouvido minhas dúvidas e
terem, na medida do possível, tentado ajudar.
A Rafael Patu, pelas palavras de tranquilidade, por acender as luzes num momento de
angústia e por desembaralhar tantos nós num só dia.
A Gabriela Medeiros, pela ajuda com as transcrições do material de pesquisa.
A Breno Pessoa, pela amizade irônico-amorosa.
A Emanuele Pacheco, pelas librianices, por ser massa e por dar leveza às “noias”.
A Ray Farias e a Juliana Gleymir, por me trazerem o bem e pela boa energia que
carregam consigo quando estão por perto.
A Jailton Nóbrega, o querido Jota, a quem devo meu interesse inicial pelo tema desta
pesquisa e com quem tive a oportunidade de trocar conhecimentos ainda nos anos finais da
graduação.
Ao meu primo, Jorge Luiz Valença, por ser um amor constante, pelos carnavais juntos,
pela tranquilidade do abraço, por estar sempre comigo.
A Amanda Virgínia Torres, a João Paulo Martins e a Larissa Arruda, por permanecerem
perto mesmo com a distância física.
A Valéria Cavalcante, por me ter despertado lá na quinta série o desejo de ser professora
de língua portuguesa e por, sem nem saber, ter permanecido ao longo de todos esses anos.
A Cristina Almeida, pela inspiração.
A Peron Rios, pelos cafés, pelos debates e pelos momentos de calmaria.
RESUMO
Esta pesquisa teve como objetivo investigar as práticas de análise linguística desenvolvidas pelo
professor de português e as relações dessas práticas com o ensino da leitura. Para isso, traçamos
objetivos específicos que visavam examinar, mais detidamente, quatro elementos das práticas
investigadas: as concepções teóricas do professor; o planejamento quanto às ações constitutivas
da prática de ensino e à seleção de conteúdos e textos a serem trabalhados em sala de aula; os
procedimentos didáticos adotados na construção da prática docente; e a abordagem do papel dos
elementos linguísticos na construção de sentidos dos textos. Compusemos o referencial teórico do
segundo capítulo com base em estudiosos vinculados aos campos da cultura escolar e da história
das disciplinas escolares, principalmente: Bunzen (2011), Chervel (1990 [1988]), Fávero (2010),
Julia (2001), Razzini (2010) e Soares (1998, 2002). No terceiro capítulo, recorremos a
pesquisadores que se dedicam ao estudo das práticas de análise linguística na escola por um viés
sociointeracionista de ensino e, também, a teóricos da prática docente na perspectiva dos saberes
da ação. Do primeiro grupo, destacamos: Geraldi (1997a [1984], 1997b [1984], 1991, 1996,
2014), Mendonça (2001, 2006, 2007a, 2007b) e Suassuna (2012). Do segundo, concentramo-nos
nas ideias de Chartier (2000a, 2000b, 2002, 2007) e Tardif (2002). Desenvolvemos uma pesquisa
qualitativa, através da observação participante, com dois professores de turmas do sétimo ano do
ensino fundamental (uma da rede municipal do Recife e outro da rede municipal de Jaboatão dos
Guararapes), valendo-nos de dois instrumentos de coleta de dados: a entrevista semiestruturada e
a observação de aulas. Os resultados de nossa pesquisa apontaram para a implementação de
mudanças significativas quanto à abordagem dos conhecimentos linguísticos na escola –
inclusive no tocante ao diálogo com o eixo da leitura –, ainda que a experiência profissional dos
professores validasse algumas práticas típicas do ensino tradicional de gramática. No processo de
construção de suas formas de ensinar, ambos os docentes levavam em consideração os saberes
teóricos disseminados pelos documentos curriculares e adquiridos ao longo da formação inicial e
continuada, mas filtravam-nos em função das circunstâncias concretas da sala de aula.
Palavras-chave: Análise linguística. Ensino de gramática. Ensino de leitura.
Sociointeracionismo. Prática docente. Saberes docentes.
ABSTRACT
This research aimed to investigate practices of linguistic analysis put forward by the Portuguese
teacher and the relations of such practices with the teaching of reading. In order to do that, we
have set specific goals, which aimed to examine, more carefully, four elements of the
investigated practices: the theoretical concepts of the teacher; the planning in regard to the
constitutive actions of teaching practice and the selection of contents and texts to be worked with
in the classroom; the didactic procedures adopted in the construction of the teaching practice; and
the approach of the roles linguistic elements play when it comes to construct meanings in the
texts. We have composed the theoretical framework of the first chapter based on scholars linked
to the fields of school culture and the history of the school disciplines, mainly: Bunzen (2011),
Chervel (1990 [1988]), Fávero (2010), Julia (2001), Razzini (2010) and Soares (1998, 2002). In
the second chapter, we have resorted to researchers who devote their time to the study of
practices of linguistic analysis at school through a social interactionist way of teaching and, also,
to theoreticians of teaching practice in the perspective of the action knowledges. From the first
group, we highlight: Geraldi (1997a [1984], 1997b [1984], 1991, 1996, 2014), Mendonça (2001,
2006, 2007a, 2007b) and Suassuna (2012). From the second, we concentrate on the ideas of
Chartier (2000a, 2000b, 2002, 2007) and Tardif (2002). We have developed a qualitative
research, through participant observation, alongside two seventh grade teachers in Elementary
School (one from Recife’s municipal system of education and the other from Jaboatão dos
Guararapes’s), having two data collection tools as a resource: semi-structured interview and class
observation. The results of our research have pointed towards the implementation of significative
changes concerning linguistic knowledge at school – including, as far as it is concerned, the
dialogue with reading -, the teachers’ professional experience still validating some typical
practices of traditional teaching of grammar notwithstanding. In the construction process in their
ways of teaching, both teachers have taken into consideration the theoretical knowledge
disseminated by curricular documents and acquired throughout their initial and continuing
education, yet filtered out due to the concrete circumstances found in the classroom.
Keywords: Linguist analysis. Grammar teaching. Reading teaching. Social interactionism.
Teaching practice. Teaching knowledges.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES
AL – Análise linguística
ASSOESTE – Associação Educacional do Oeste do Paraná
CEEL – Centro de Estudos em Educação e Linguagem
ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio
EPM – Encontros Pedagógicos Mensais
FAFIRE – Faculdade Frassinetti do Recife
FUNESO – Fundação de Ensino Superior de Olinda
GRE – Gerência Regional de Educação
MEC – Ministério da Educação
OCEM – Orientações Curriculares para o Ensino Médio
PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais
PCN+ – Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais
PCNEM – Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
PIBID – Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência
PJ – Professor da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes
PNLD – Programa Nacional do Livro Didático
PR – Professora da prefeitura do Recife
PTG – Paradigma Tradicional de Gramatização
SAEB – Sistema de Avaliação da Educação Básica
SAEPE – Sistema de Avaliação da Educação Básica de Pernambuco
UFPE – Universidade Federal de Pernambuco
UFRPE – Universidade Federal Rural de Pernambuco
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas
UNICAP – Universidade Católica de Pernambuco
UPE – Universidade de Pernambuco
VLE – Variedades linguísticas estigmatizadas
VUP – Variedades urbanas de prestígio
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Resumo da proposta de Geraldi (1997b [1984]) para a produção de textos .............. 85
Quadro 2: Diferenças entre ensino de gramática e análise linguística segundo
Mendonça (2006) ......................................................................................................... 94
Quadro 3: Alternativas práticas para articular análise linguística e leitura elaboradas por
Mendonça (2006) ....................................................................................................... 114
Quadro 4: Propostas didáticas elaboradas por professores das redes públicas de
Pernambuco para articular análise linguística e estudo dos gêneros textuais ......... 121
Quadro 5: Correspondência entre objetivos específicos e instrumentos de coleta de dados ...... 174
Quadro 6: Categorias de análise dos dados da entrevista inicial ............................................... 177
Quadro 7: Categorias de análise dos dados da observação de aulas ......................................... 177
Quadro 8: Base curricular da prefeitura do Recife para o eixo da leitura no sétimo ano .......... 201
Quadro 9: Base curricular da prefeitura do Recife para o eixo da análise linguística no
sétimo ano .................................................................................................................. 204
Quadro 10: Síntese das aulas observadas na escola da prefeitura do Recife ............................. 210
Quadro 11: Síntese das aulas observadas na escola da prefeitura de Jaboatão dos
Guararapes ................................................................................................................ 296
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Poema “póstudo”, de Augusto de Campos .................................................................... 24
Figura 2: Comentário de professora acerca de sua prática de ensino quanto ao eixo da
análise linguística .......................................................................................................... 28
Figura 3: Detalhamento da relação entre os eixos do uso e da reflexão linguística com base
nas práticas de linguagem propostas por Wanderley Geraldi .................................... 104
Figura 4: Critérios de análise utilizados pelo PNLD 2014 para o eixo dos conhecimentos
linguísticos ................................................................................................................... 108
Figura 5: Critérios de análise utilizados pelo PNLD 2014 para o eixo da leitura (1) ................ 109
Figura 6: Critérios de análise utilizados pelo PNLD 2014 para o eixo da leitura (2) ................ 110
Figura 7: Poema “Estas mãos”, de Cora Coralina ..................................................................... 115
Figura 8: Exemplo da exploração dos efeitos de sentido decorrentes do uso das reticências .... 117
Figura 9: Exemplo da exploração dos efeitos de sentido dos sinais de pontuação em relação
às especificidades dos gêneros textuais ....................................................................... 118
Figura 10: Exemplo da exploração dos efeitos de sentido decorrentes do uso da vírgula (1) .... 119
Figura 11: Exemplo da exploração dos efeitos de sentido decorrentes do uso da vírgula (2) .... 119
Figura 12: Letra da música “Apesar de você”, de Chico Buarque ............................................. 123
Figura 13: Letra da música “Maninha”, de Chico Buarque ....................................................... 123
Figura 14: Trabalho comparativo entre receita culinária escrita e oral (1) ............................... 135
Figura 15: Trabalho comparativo entre receita culinária escrita e oral (2) ............................... 135
Figura 16: Comentário crítico de professora acerca da escolha de uma abordagem
tradicional para ensinar a formação do modo imperativo ....................................... 136
Figura 17: Comentário de professora sobre a escolha de materiais didáticos utilizados para
as práticas de análise linguística .............................................................................. 138
Figura 18: Comentário sobre os objetivos do ensino de língua portuguesa (PR) ....................... 179
Figura 19: Comentário sobre a presença do texto na prática de ensino (PR) ............................ 182
Figura 20: Comentário sobre a organização da prática em eixos didáticos (PR) ...................... 182
Figura 21: Comentário sobre os objetivos do eixo da análise linguística (PR) .......................... 183
Figura 22: Comentário sobre o enfoque nos usos linguísticos em detrimento da
descrição (PR) ........................................................................................................... 184
Figura 23: Comentários sobre a relação entre análise linguística e leitura pela via dos
gêneros textuais (PR) ................................................................................................. 186
Figura 24: Descrição de trabalho com concordância verbal a partir do gênero carta do
leitor (PR) .................................................................................................................. 187
Figura 25: Descrição de trabalho de sistematização de conceito gramatical (PR) .................... 188
Figura 26: Exemplos de conteúdos propícios a serem trabalhados a partir de textos (PR) ....... 189
Figura 27: Comentário sobre a recorrência a práticas e conceitos vinculados ao ensino
tradicional de gramática ........................................................................................... 191
Figura 28: Critérios de diferenciação entre conhecimentos linguísticos favoráveis e
desfavoráveis à abordagem didática a partir de textos (PR) .................................... 193
Figura 29: Comentário sobre o espaço da metalinguagem na prática de ensino (PR) ............... 196
Figura 30: Relato sobre experiência com o ensino de língua materna de aluna a
professora (PR) .......................................................................................................... 197
Figura 31: Comentário sobre a recorrência a práticas tradicionais de ensino de
português (PR) ........................................................................................................... 199
Figura 32: Exemplo de prática tradicional de ensino relevante (PR) ......................................... 199
Figura 33: Comentário sobre a seleção de textos a serem trabalhados na sala de aula (PR) .... 201
Figura 34: Comentário sobre a autonomia profissional frente à proposta curricular oficial
da prefeitura do Recife (PR) ...................................................................................... 205
Figura 35: Comentário sobre o papel do livro didático na construção da prática de
ensino (PR) ................................................................................................................ 207
Figura 36: Avaliação crítica do livro didático utilizado na prática de ensino (PR) ................... 208
Figura 37: Apresentação do gênero carta do leitor à turma (PR) .............................................. 214
Figura 38: Capas das revistas utilizadas para o trabalho com a carta do leitor (PR) ............... 216
Figura 39: Apresentação de carta do leitor publicada na revista Continente à turma (PR) ...... 218
Figura 40: Carta do leitor publicada na revista Continente (PR) ............................................... 219
Figura 41: Comentário sobre o papel do professor enquanto modelo de leitor (PR) ................. 220
Figura 42: Exploração da intencionalidade discursiva na carta do leitor (PR) ......................... 221
Figura 43: Análise comparativa quanto ao grau de formalidade da linguagem utilizada
nas cartas do leitor publicadas nas revistas Continente e Horizonte
Geográfico (PR)......................................................................................................... 223
Figura 44: Análise comparativa quanto ao grau de formalidade da linguagem utilizada
nas cartas do leitor publicadas nas revistas Continente, Horizonte Geográfico
e Ciência Hoje das Crianças (PR)............................................................................. 223
Figura 45: Retomada do percurso interpretativo dos aluno após leitura de carta do
leitor (PR) .................................................................................................................. 225
Figura 46: Sistematização de conhecimentos sobre a carta do leitor (PR) ................................. 227
Figura 47: Carta do leitor em versão originalmente produzida e em versão publicada (PR) .... 230
Figura 48: Explicação sobre o uso das aspas para mencionar a reportagem comentada na
carta do leitor (PR) .................................................................................................... 231
Figura 49: Análise comparativa entre versão original e versão editada da carta do
leitor (PR) .................................................................................................................. 232
Figura 50: Criação de contexto hipotético de enunciação de frases copiadas no
quadro (PR) ............................................................................................................... 236
Figura 51: Análise de orações quanto aos sujeitos e às formas dos verbos (PR) ....................... 238
Figura 52: Comentário sobre as dificuldades no trabalho com o eixo da análise
linguística (PR) .......................................................................................................... 241
Figura 53: Comentário sobre a introdução da metalinguagem gramatical (PR) ....................... 241
Figura 54: Construção coletiva do conceito de concordância verbal (PR) ................................ 242
Figura 55: Reflexão sobre o emprego da concordância verbal de acordo com as situações
enunciativas (PR)....................................................................................................... 245
Figura 56: Conclusão do processo de construção do conceito de concordância verbal (PR) .... 249
Figura 57: Ficha de aula utilizada para sistematização de conhecimentos sobre
concordância verbal (PR).......................................................................................... 252
Figura 58: Autoavaliação do trabalho com a concordância verbal (PR) ................................... 253
Figura 59: Ficha de aula utilizada para a apresentação das regras de uso da
letra “s” (PR) ............................................................................................................ 256
Figura 60: Início de aula sobre o emprego da letra “s” (PR) .................................................... 257
Figura 61: Comentário acerca da aula expositiva sobre o emprego da letra “s” (PR) ............. 260
Figura 62: Comentário sobre a escolha das palavras do ditado (PR) ........................................ 260
Figura 63: Exercício sobre o emprego da letra “s” (PR) ........................................................... 261
Figura 64: Princípio de comentário sobre os objetivos do ensino de língua portuguesa (PJ) ... 264
Figura 65: Reformulação da pergunta sobre os objetivos do ensino de língua
portuguesa (PJ) ......................................................................................................... 264
Figura 66: Comentário sobre os objetivos do ensino de língua portuguesa (PJ) ....................... 264
Figura 67: Descrição geral da prática de ensino (PJ) ................................................................ 266
Figura 68: Comentário sobre a presença do texto na prática de ensino (PJ) ............................. 267
Figura 69: Comentário sobre a organização da prática de ensino quanto aos eixos
didáticos (PJ) ............................................................................................................. 268
Figura 70: Comentário sobre o trabalho com o eixo da leitura (PJ) .......................................... 270
Figura 71: Comentário sobre os objetivos das práticas de análise linguística (PJ) ................... 272
Figura 72: Autoavaliação sobre a condução prática do eixo da análise linguística (PJ) .......... 273
Figura 73: Comentário sobre a relação entre análise linguística e demais eixos de
ensino (PJ) ................................................................................................................. 275
Figura 74: Comentário sobre a relação entre análise linguística e leitura (PJ) ........................ 276
Figura 75: Exemplo prático de trabalho articulado entre análise linguística e leitura (PJ) ...... 277
Figura 76: Comentário sobre as metodologias adotadas para a construção de
conceitos (PJ) ............................................................................................................ 279
Figura 77: Exemplo de prática tradicional de ensino de gramática (PJ) ................................... 280
Figura 78: Exemplo de abordagem construtivo-reflexiva de conteúdo linguístico (PJ) ............. 281
Figura 79: Comentário sobre o espaço das práticas tradicionais de ensino de
gramática (PJ) ........................................................................................................... 282
Figura 80: Autoavaliação sobre trabalho com a conjugação verbal (PJ) .................................. 283
Figura 81: Crítica à rejeição da academia aos dispositivos pedagógicos tradicionais (PJ) ...... 285
Figura 82: Comentário sobre o espaço da metalinguagem na prática de ensino (PJ) ............... 285
Figura 83: Comentário sobre a avaliação da aprendizagem quanto ao eixo da análise
linguística (PJ)........................................................................................................... 286
Figura 84: Comentário sobre a seleção de textos a serem trabalhados na sala de aula (PJ) .... 287
Figura 85: Comentário sobre os textos de autoria própria utilizados nas aulas (PJ) ................ 288
Figura 86: Texto autoral utilizado para o estudo dos advérbios (PJ) ......................................... 289
Figura 87: Avaliação crítica quanto ao livro didático adotado (PJ) .......................................... 290
Figura 88: Proposta curricular da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes para o eixo da
análise linguística ...................................................................................................... 293
Figura 89: Comentários sobre o planejamento geral da prática de ensino (PJ) ........................ 294
Figura 90: Introdução ao estudo dos advérbios através da análise de frases (PJ) ..................... 301
Figura 91: Comentário sobre a dificuldade de se trabalhar com os advérbios (PJ) .................. 304
Figura 92: Comentário sobre o uso dos advérbios em textos e apresentação de
subcategorias dos advérbios (PJ) .............................................................................. 305
Figura 93: Excerto do romance “Menino de Asas”, de Homero Homem (PJ) ........................... 308
Figura 94: Reflexão sobre o uso de advérbios em excerto do romance “Menino de
Asas” (PJ) .................................................................................................................. 308
Figura 95: Comentário sobre os efeitos de sentido do uso de advérbios em textos
escritos (PJ) ............................................................................................................... 312
Figura 96: Autoavaliação das atividades de categorização de advérbios (PJ)........................... 313
Figura 97: Atividade do livro didático sobre advérbios e locuções adverbiais (PJ)................... 314
Figura 98: Realização de atividade do livro didático sobre advérbios e locuções
adverbiais (PJ)........................................................................................................... 314
Figura 99: Exploração dos efeitos de sentido provocados pelo uso de advérbios e locuções
adverbiais em excerto do romance “Menino de Asas” (PJ) ..................................... 315
Figura 100: Anotação teórica sobre advérbios e locuções adverbiais (PJ) ................................ 318
Figura 101: Comentário sobre o uso de frases como ponto de partida para a reflexão
linguística (PJ) ........................................................................................................ 319
Figura 102: Atividade do livro didático sobre o uso de advérbios e locuções adverbiais em
letra de música (PJ) ................................................................................................ 321
Figura 103: Correção coletiva de atividade do livro didático sobre o uso de advérbios e
locuções adverbiais em letra de música (PJ) .......................................................... 322
Figura 104: Atividade do livro didático sobre a expressão de opiniões por meio dos
advérbios (PJ) ......................................................................................................... 326
Figura 105: Comentário crítico acerca da atividade do livro didático sobre a expressão de
opiniões por meio dos advérbios (PJ) ..................................................................... 328
Figura 106: Anotação teórica sobre os advérbios como modalizadores (PJ) ............................. 328
Figura 107: Prova escrita sobre os advérbios e as locuções adverbiais (PJ) ............................. 330
Figura 108: Comentário sobre a elaboração da prova escrita e sobre o desempenho dos
alunos (PJ) .............................................................................................................. 332
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 20
2 A GRAMÁTICA NA CONSTITUIÇÃO DA DISCIPLINA PORTUGUÊS:
PRÁTICAS, OBJETOS DE ENSINO E PERFIL DOCENTE .................................... 32
2.1 HISTÓRIA DAS DISCIPLINAS ESCOLARES E CULTURA ESCOLAR:
SITUANDO A PERSPECTIVA TEÓRICA ADOTADA .................................................. 35
2.2 TRADIÇÃO GRAMATICAL E ENSINO DE PORTUGUÊS NO BRASIL ..................... 39
2.2.1 Breve caracterização da gramática tradicional: concepção de língua e princípios
gerais .................................................................................................................................. 39
2.2.2 Antecedentes históricos do ensino de língua portuguesa no Brasil: do ensino
jesuítico às reformas pombalinas ...................................................................................... 43
2.2.3 A constituição da disciplina português no curso secundário do Colégio Pedro II ......... 45
2.2.4 Repercussões dos estudos da linguística no ensino de língua portuguesa no Brasil:
mudanças e permanências ................................................................................................. 51
2.3 SÍNTESE DO CAPÍTULO ................................................................................................. 62
3 ANÁLISE LINGUÍSTICA E LEITURA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL NO
ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA ......................................................................... 64
3.1 ENUNCIAÇÃO E INTERAÇÃO VERBAL: A CONCEPÇÃO BAKHTINIANA DE
LINGUAGEM ................................................................................................................... 65
3.2 ENSINO DE LÍNGUA MATERNA NA PERSPECTIVA SOCIOINTERACIONISTA:
PRÁTICAS DE LINGUAGEM NA ESCOLA .................................................................. 72
3.3 ESPECIFICIDADES DA ANÁLISE LINGUÍSTICA ESCOLAR E INTERFACES
COM O EIXO DA LEITURA ............................................................................................ 82
3.3.1 Fundamentos teórico-metodológicos da análise linguística ............................................ 82
3.3.2 Diálogos entre análise linguística e leitura no ensino de português ............................... 94
3.3.3 Documentos parametrizadores: o que dizem os PCN e o PNLD acerca das práticas
de análise linguística e de sua relação com o eixo da leitura? ...................................... 103
3.3.4 Práticas escolares de análise linguística e ensino de leitura: pesquisas e propostas .... 112
3.4 ANÁLISE LINGUÍSTICA E INOVAÇÃO PEDAGÓGICA: CONSIDERAÇÕES
SOBRE A CONSTRUÇÃO DAS PRÁTICAS DOCENTES ........................................... 125
3.5 SÍNTESE DO CAPÍTULO ............................................................................................... 140
4 FUNDAMENTOS E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS............................. 143
4.1 PARADIGMAS INVESTIGATIVOS .............................................................................. 143
4.1.1 A pesquisa qualitativa ...................................................................................................... 143
4.1.1.1 A observação participante ................................................................................................ 146
4.2 CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO E SUJEITOS DA PESQUISA .................................... 149
4.2.1 Definição dos sujeitos de pesquisa e dos campos de investigação ................................. 150
4.2.2 Processo de seleção dos professores sujeitos da pesquisa .............................................. 153
4.2.2.1 A escolha da professora da prefeitura do Recife ............................................................. 156
4.2.2.2 A escolha do professor da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes ................................ 159
4.2.3 Perfil profissional e acadêmico dos professores participantes ...................................... 162
4.2.3.1 Perfil profissional e acadêmico da professora da prefeitura do Recife ........................... 162
4.2.3.2 Perfil profissional e acadêmico do professor da prefeitura de Jaboatão dos
Guararapes ....................................................................................................................... 163
4.2.4 Descrição dos campos de investigação............................................................................ 164
4.2.4.1 Descrição da escola da prefeitura do Recife.................................................................... 165
4.2.4.2 Descrição da escola da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes .................................... 167
4.3 INSTRUMENTOS DE COLETA DE DADOS ................................................................ 169
4.3.1 A entrevista ...................................................................................................................... 169
4.3.1 A observação .................................................................................................................... 172
4.4 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE ................................................................................ 175
5 ANÁLISE DOS DADOS ................................................................................................ 178
5.1 ANÁLISE DOS DADOS RELATIVOS À PRÁTICA DA PROFESSORA DA
PREFEITURA DO RECIFE ............................................................................................. 178
5.1.1 Análise da entrevista inicial (PR) ................................................................................... 178
5.1.1.1 Objetivos do ensino de língua portuguesa e das práticas de análise linguística (PR) .... 179
5.1.1.2 Relação entre análise linguística e leitura (PR) .............................................................. 185
5.1.1.3 Espaço das práticas e dos conceitos vinculados ao ensino tradicional de
gramática (PR) ................................................................................................................. 190
5.1.1.4 Critérios de escolha e fontes de pesquisa dos textos utilizados em sala de aula (PR) .... 200
5.1.1.5 Definição dos conteúdos de ensino vinculados ao eixo da análise linguística (PR) ....... 202
5.1.1.6 Planejamento das ações a serem realizadas em sala de aula no trabalho com os
conteúdos de análise linguística (PR) .............................................................................. 206
5.1.2 Análise das aulas observadas (PR) ................................................................................. 209
5.1.2.1 Trabalho com o gênero carta do leitor (PR) .................................................................... 212
5.1.2.2 Trabalho com a concordância verbal (PR) ...................................................................... 236
5.1.2.3 Trabalho com a ortografia (PR) ....................................................................................... 253
5.2 ANÁLISE DOS DADOS RELATIVOS À PRÁTICA DO PROFESSOR DA
PREFEITURA DE JABOATÃO DOS GUARARAPES .................................................. 262
5.2.1 Análise da entrevista inicial (PJ) .................................................................................... 262
5.2.1.1 Objetivos do ensino de língua portuguesa e das práticas de análise linguística (PJ) ..... 263
5.2.1.2 Relação entre análise linguística e leitura (PJ) ............................................................... 274
5.2.1.3 Espaço das práticas e dos conceitos vinculados ao ensino tradicional de
gramática (PJ) .................................................................................................................. 278
5.2.1.4 Critérios de escolha e fontes de pesquisa dos textos utilizados em sala de aula (PJ) ..... 287
5.2.1.5 Definição dos conteúdos de ensino vinculados ao eixo da análise linguística (PJ) ........ 290
5.2.1.6 Planejamento das ações a serem realizadas em sala de aula no trabalho com os
conteúdos de análise linguística (PJ) ............................................................................... 293
5.2.2 Análise das aulas observadas (PJ) .................................................................................. 295
5.2.2.1 Trabalho com os advérbios (PJ) ...................................................................................... 300
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 333
REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 345
APÊNDICES ................................................................................................................... 352
APÊNDICE A – Roteiro para a seleção dos professores ............................................ 352
APÊNDICE B – Roteiro da entrevista inicial .............................................................. 353
APÊNDICE C – Registro descritivo das aulas 2 e 3 da PR (carta do leitor) ............ 354
APÊNDICE D – Registro descritivo da aula 4 da PR (carta do leitor) ..................... 359
APÊNDICE E – Registro descritivo das aulas 8 e 9 da PR (concordância
verbal) .................................................................................................. 362
APÊNDICE F – Registro descritivo da aula 13 da PR (ortografia) ........................... 365
APÊNDICE G – Registro descritivo das aulas 14 e 15 da PR (ortografia) ............... 366
APÊNDICE H – Registro descritivo da aula 2 do PJ (advérbios).............................. 367
APÊNDICE I – Registro descritivo das aulas 3 e 4 do PJ (advérbios) ...................... 368
APÊNDICE J – Registro descritivo da aula 5 do PJ (advérbios) ............................... 370
APÊNDICE K – Registro descritivo da aula 7 do PJ (advérbios).............................. 371
APÊNDICE L – Registro descritivo da aula 8 do PJ (advérbios) .............................. 372
APÊNDICE M – Registro descritivo da aula 10 do PJ (advérbios) ........................... 373
ANEXOS ......................................................................................................................... 375
ANEXO A – Cartas do leitor trabalhadas nas aulas 2 e 3 da PR .............................. 375
ANEXO B – Atividade de sistematização de conhecimentos sobre o gênero carta
do leitor (PR) ........................................................................................... 376
ANEXO C – Ficha de aula utilizada pela PR nas aulas 4, 5, 6 e 7 (carta do
leitor) ........................................................................................................ 377
20
1 INTRODUÇÃO
As aulas de português estiveram, durante muito tempo, centradas, sobretudo, no ensino da
norma linguística socialmente prestigiada e do aparato categorial da gramática tradicional através
da identificação e classificação de estruturas da língua e da memorização de regras gramaticais.
Conforme nos aponta Mendonça (2007a), o pressuposto de que o estudo da língua poderia se dar
apenas com base em suas partes estruturais vinculava-se à noção de língua como código, ou seja,
como um conjunto de signos que se combinam segundo regras. Entendida a língua como
imanência, como entidade exterior aos sujeitos, cabia a estes apropriarem-se das normas que
regiam o sistema a fim de se tornarem “bons” usuários da língua – tanto melhores quanto mais se
aproximassem do padrão legitimado. A escola, então, acreditava que formaria leitores e
produtores de texto competentes à medida que os alunos dominassem o código linguístico. Por
isso, apostava em estratégias didáticas que permitissem ao aluno reconhecer unidades linguísticas
(partindo-se dos fonemas até o nível da frase, numa lógica linear de aprendizagem) e atribuir a
esses elementos a terminologia técnica adequada, com o intuito de fixar as prescrições e as
descrições da gramática tradicional.
Fundamentadas inicialmente na linguística textual e na sociolinguística, mas, logo depois,
principalmente nas teorias enunciativas, algumas mudanças podem ser percebidas nas orientações
teórico-metodológicas para o ensino de língua materna nas últimas décadas, desde as metas de
aprendizagem estabelecidas até os objetos de ensino e os percursos metodológicos adotados. A
língua(gem) passa a ser concebida a partir de uma visão sociointeracionista: não mais depósito de
estruturas, é agora compreendida como discurso, lugar de interação social, de constituição dos
sujeitos, situados historicamente e imbuídos de ideologia (cf. GERALDI, 1997a [1984], 1991,
1996). Como destaca Suassuna (2011, p. 40, grifos da autora), essa maneira de entender a
natureza e o funcionamento da linguagem produziu um redirecionamento das práticas
pedagógicas: os objetivos traçados para o ensino de português agora visam “ampliar as formas de
interação por meio da linguagem” e concentram-se na “busca de novas possibilidades de
expressão e compreensão do sentido, partindo-se dos usos que cada falante faz de sua própria
língua, bem como do conhecimento que já acumulou sobre ela”. Sob essa nova ótica, pressupõe-
se que o aluno, na relação com os discursos que circulam socialmente através de textos escritos e
orais, constitua-se como interlocutor, produzindo significação e (re)construindo sentidos através
21
do diálogo com o outro. Nos termos dos Parâmetros Curriculares Nacionais, trata-se de expandir
a competência discursiva do educando1 (BRASIL, 1998).
Diante do quadro de reconfiguração dos propósitos do trabalho pedagógico com a
linguagem, o viés normativo e descritivo que lhe era característico fica deslocado. O domínio da
metalinguagem em si mesma e de regras do bom uso – cujo parâmetro foi, durante muito tempo,
a escrita literária de autores consagrados pela tradição – deixa de estar no centro da organização
curricular.
[...] O estudo dos fenômenos linguísticos em si mesmos perde o sentido, pois se
considera que a seleção e o emprego de certos elementos e estratégias ocorre, afora as
restrições óbvias do sistema linguístico, em consonância com as condições de produção
dos textos, ou seja, de acordo com quem diz o que, para quem, com que propósito, em
que gênero, em que suporte, etc. (MENDONÇA, 2006, p. 206).
Como alternativa, João Wanderley Geraldi sugere, no início dos anos 1980, um outro
direcionamento escolar para abordar os fatos da língua: a prática que ele denominou análise
linguística. De acordo com sua proposta, a reflexão sobre a língua(gem) e sobre o modo de
operar com ela deve ocorrer em articulação aos demais eixos de ensino da língua – leitura e
produção de texto – e “inclui tanto o trabalho sobre questões tradicionais de gramática quanto
questões amplas a propósito do texto” (GERALDI, 1997b [1984], p.74). Com as práticas de
análise linguística, Geraldi busca fugir do que considera um tratamento artificial da linguagem,
pautando-se em situações concretas de interlocução. Nessa perspectiva, problematiza o trabalho
em torno de palavras e frases fora de um possível contexto de produção, e sugere o texto como
ponto de partida (e de chegada) para as reflexões mediadas pelo professor nas aulas de português.
O domínio de uma nomenclatura (gramatical, por exemplo) deixa de ser encarado como um fim
em si mesmo e passa a ser valorizado como um mecanismo para que o aluno possa explicitar as
reflexões metalinguísticas decorrentes da análise do funcionamento dos fenômenos da língua em
uso.
Dessa forma, as práticas de análise linguística buscam desenvolver no aluno uma
compreensão explícita dos mecanismos de manipulação da linguagem a serviço da construção de
1 “Toda educação comprometida com o exercício da cidadania precisa criar condições para que o aluno possa
desenvolver sua competência discursiva. Um dos aspectos da competência discursiva é o sujeito ser capaz de
utilizar a língua de modo variado, para produzir diferentes efeitos de sentido e adequar o texto a diferentes
situações de interlocução oral e escrita. [...] Sobre o desenvolvimento da competência discursiva deve a escola
organizar as atividades curriculares relativas ao ensino-aprendizagem da língua e da linguagem” (BRASIL, 1998,
p. 23).
22
sentidos. Haveria, portanto, uma profunda relação entre as práticas de análise linguística e a
formação de leitores mais críticos e autônomos, porque, mais do que conduzir o olhar para o que
o autor disse, o aluno-leitor refletiria sobre como o autor disse aquilo que disse, isto é, sobre
como o autor se serviu das inúmeras possibilidades de operar com a linguagem para produzir
significação. É justamente neste ponto que se situa a nossa proposta de pesquisa. Procuramos
analisar as práticas de análise linguística propostas pelo professor de português em turmas do
sétimo ano do ensino fundamental e as relações dessas práticas com o ensino da leitura.
A formação do leitor na escola pressupõe uma profunda imersão no texto, através do qual
o leitor estabelece um diálogo efetivo com o autor, fazendo emergir contrapalavras em resposta
às palavras do autor por meio de um processo ativo de compreensão discursiva (GERALDI,
1991, 1996). Para que o leitor adquira essa autonomia, ele precisa estar atento a determinados
recursos expressivos dos quais o autor se utilizou intencionalmente para alcançar determinados
efeitos de sentido e que, muitas vezes, não estão explícitos numa leitura de superfície
(GERALDI, 1991). Há conhecimentos de ordem linguística e discursiva que são necessários para
que um leitor amplie suas possibilidades de interpretar um texto, de com ele produzir sentidos e,
assim, efetivar o processo interativo que pressupõe a leitura.
Certamente, não incluímos no rol desses conhecimentos distinguir um complemento
nominal de um adjunto adnominal ou reconhecer uma oração subordinada substantiva objetiva
direta. Entretanto, no âmbito da pesquisa acadêmica, entendemos que é preciso, mais do que
condenar uma prática, buscar compreender as razões que fazem determinados conteúdos
validados pela tradição ou pela experiência do professor (cf. TARDIF, 2002) permanecerem na
escola ou serem eleitos por um professor (ou por um grupo de professores) para serem objetos de
estudo. É preciso analisar o contexto em que esses conteúdos ditos tradicionais são trabalhados e,
sobretudo, as razões que levam os professores a trabalharem esses conteúdos da forma como
trabalham. Como Chartier (2000a [1995]), parece-nos redutor analisar o que efetivamente é
realizado pelo professor em sala de aula com base numa dicotomia entre prática tradicional e
prática inovadora, pois, no exercício de seu ofício, o professor se vale de diferentes perspectivas
teóricas em função das necessidades concretas que encontra no aqui e agora da sala de aula,
organizando suas ações, portanto, em torno de uma forte coerência pragmática (CHARTIER,
2000a [1995]).
23
Nossa opção, então, é por tratar a voz do professor como fonte privilegiada de dados,
devido ao nosso entendimento de que ele pode nos trazer informações às quais a observação
externa não permite acesso, a exemplo das razões que levam os professores a fazerem
determinadas escolhas e a construírem suas práticas de determinadas formas – ponto que
consideramos crucial para uma pesquisa que busca compreender como se desenvolve uma prática
de ensino. Quando aludimos ao termo voz do professor, fazemos referência aos dizeres do
professor ao longo de toda a pesquisa: em suas aulas (observação), em conversas informais e nas
entrevistas semiestruturadas.
O interesse de investigação desta pesquisa surgiu das experiências da pesquisadora nos
anos finais da licenciatura em letras (habilitação em língua portuguesa), cursada entre 2009 e
2012 na Universidade Federal de Pernambuco. Dado o caráter pessoal deste relato, optamos
temporariamente pelo emprego da primeira pessoa do singular. Nos anos de 2012 e 2013 (último
ano da graduação e primeiro ano de licenciada), fui aluna e atuei como monitora das disciplinas
Prática de Ensino de Português 1 e 2, sob a orientação da professora Lívia Suassuna e da
professora Ana Cláudia Pessoa, ambas do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da
UFPE. Durante esse período, vivenciei algumas situações que me despertaram para a necessidade
de se estudar a problemática que vimos apresentando desde o parágrafo de abertura desta
dissertação.
A primeira delas aconteceu em 2012, quando vivenciava meu primeiro estágio curricular
obrigatório, no qual acompanhei a prática de duas professoras de língua portuguesa da escola
básica. Uma delas atuava no Colégio de Aplicação da UFPE, e eu observava suas aulas numa
turma do terceiro ano do ensino médio. Desde o início, a prática da professora me chamava a
atenção por se diferenciar muito de minhas experiências enquanto aluna e mesmo das
experiências que vivi em dois anos de estágio extracurricular numa escola da rede privada da
cidade do Recife. A professora tinha grande afinidade com a leitura literária, tendo, inclusive,
cursado doutorado em teoria da literatura na UFPE. Por isso, a literatura era a espinha dorsal da
prática de ensino que desenvolvia junto a seus alunos. Isso não implicava dizer que ela
negligenciava os demais conteúdos e eixos didáticos, mas, em geral, as reflexões que propunha à
turma partiam da literatura e/ou a ela retornavam. Também me saltavam à vista as provocações
que a professora fazia – no intuito de que os próprios alunos elaborassem os conhecimentos que
24
procurava ensinar – e a escuta atenta ao que os alunos tinham a dizer, que a levavam a fazer
novas provocações em resposta às colocações dos estudantes.
Numa das aulas que observei, a professora realizou um trabalho que articulava leitura e
análise linguística, contrariando a minha crença ingênua de então de que a análise linguística era
uma teoria com poucas possibilidades de aplicação prática. Para introduzir o estudo do
concretismo brasileiro, projetou no quadro o poema póstudo, de Augusto de Campos,
reproduzido na Figura 1, abaixo:
Figura 1: Poema “póstudo”, de Augusto de Campos2
A professora solicitou aos alunos que lessem o poema silenciosamente e, em seguida,
procurassem responder à seguinte questão, que anotou no quadro: “Reflita sobre as escolhas
lexicais de Augusto de Campos, poeta do Concretismo, e as relações morfossintáticas e
semânticas do verbo no poema”. Eu não era aluna, mas aquela proposta me intrigou. Os alunos
pareceram, a princípio, um pouco confusos. “O que a senhora está perguntando exatamente?”,
indagava um deles. Inesperadamente, a professora respondeu: “Exatamente eu não estou
perguntando nada. Eu estou pedindo uma reflexão.”. Aos poucos, após uma primeira leitura
coletiva, a professora foi mediando as reflexões suscitadas pelos comentários dos alunos.
Enfocando as intencionalidades discursivas do autor, ela explorou os tempos verbais que cada um
dos verbos expressava e as múltiplas leituras que a disposição espacial das palavras possibilitava
ao leitor. Explorou, por exemplo, a fluidez com que o termo “mudo” poderia ser interpretado
(como verbo ou como substantivo) e as implicações que cada uma das leituras trazia para o
sentido global do texto.
2 CAMPOS, A. póstudo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 27 jan. 1985. Folhetim, p. 12, n. 419.
25
É importante salientar que, na ocasião dessa análise, os alunos ainda não haviam estudado
formalmente as particularidades do concretismo brasileiro. Esse primeiro contato com o poema
de Augusto de Campos foi o mote para que, em aulas subsequentes, fossem debatidos alguns
manifestos e textos teóricos acerca desse movimento artístico. Em relação à análise linguística
propriamente dita, a análise de póstudo também foi mote para uma sistematização posterior sobre
a estrutura e o funcionamento dos verbos, quando a professora se valeu de obras gramaticais
tradicionais, tendo, no entanto, deixado claro para os alunos que aquele era um material de
consulta ao qual eles poderiam recorrer sempre que fosse necessário na realização das atividades
por ela propostas. A reflexão linguística da turma em torno do poema de Augusto de Campos
desaguou, ainda, numa atividade em que os alunos foram solicitados a analisar suas próprias
escolhas linguísticas em artigos de opinião que haviam produzido.
Esse foi o meu primeiro contato concreto com uma atividade de análise linguística. Futura
professora, e desde sempre interessada no estudo da gramática, aquele episódio havia modificado
a forma como eu concebia o ensino de língua materna. Nesse mesmo semestre, a professora Lívia
Suassuna, como era de praxe, solicitou a elaboração, em grupos, de oficinas pedagógicas de
linguagem, com quatro horas de duração. Tratava-se de um projeto de extensão destinado à
formação de professores da escola básica e de alunos das licenciaturas. Instigada pelo episódio
que descrevi há pouco, sugeri aos meus colegas a construção de uma oficina sobre poesia visual.
Como era de se esperar, uma das maiores dificuldades que encontramos no planejamento das
atividades práticas a serem realizadas com os participantes da oficina e na elaboração das
apostilas teóricas foi a proposição de um trabalho com os conhecimentos linguísticos que
prezasse pela produção de sentidos dos textos que selecionávamos, tal como eu havia vivenciado
no estágio curricular. Aos poucos, discutindo possibilidades com o monitor e com a professora da
disciplina, fomos encontrando caminhos, mas, ainda assim, durante a execução da oficina, eu
percebia que as atividades de análise linguística propostas eram as que mais suscitavam debates
entre os professores e os alunos que participavam do projeto.
Nos semestres seguintes, por quatro vezes consecutivas, atuei como monitora das
disciplinas práticas do currículo de letras de então. No decorrer dessa experiência, auxiliei outros
colegas do curso no planejamento das mesmas oficinas pedagógicas de linguagem, e também na
produção de artigos e relatórios sobre suas experiências de estágio e, ainda, na elaboração de
projetos didáticos temáticos a serem colocados em prática pelos próprios alunos durante seus
26
estágios de regência de turma. Em todas essas experiências, permanecia comigo e entre boa parte
de meus colegas (alunos da graduação e professores dos estágios em que esses alunos atuavam)
uma atmosfera de dúvidas e incertezas quando o assunto era pensar a análise linguística na escola
com vistas à formação de leitores e escritores. Foi esse o percurso de minha experiência enquanto
aluna do curso de letras e enquanto professora recém-formada que me despertou para a temática
de estudo que aqui proponho.
Assim, esta pesquisa se propõe a investigar as práticas de análise linguística
desenvolvidas por professores de língua portuguesa na sua relação com o eixo da leitura. Para
isso, buscamos analisar como o professor de língua portuguesa constrói a sua prática no que
tange à análise linguística. Nessa investigação, tencionamos identificar os procedimentos que
permeiam seu fazer pedagógico e situá-los em contexto. Isso significa buscar compreender a
intencionalidade dos modos de fazer dos professores e as motivações desses modos de fazer, sem
perder de vista as condições em que a prática docente ocorre. Para tanto, procedemos à
observação de aulas de dois professores das redes municipais de Recife e de Jaboatão dos
Guararapes e à realização de entrevistas semiestruturadas. Elencamos abaixo o objetivo geral da
pesquisa e os objetivos específicos a partir dos quais procuramos alcançar o propósito primeiro
aqui anunciado:
Objetivo geral:
Analisar as práticas de análise linguística propostas pelo professor de português em
turmas do sétimo ano do ensino fundamental e as relações dessas práticas com o ensino da
leitura.
Objetivos específicos:
a) Analisar as concepções do professor quanto ao ensino de língua materna, especialmente
no que se referem à análise linguística e sua relação com o eixo da leitura;
b) Investigar o modo como o professor planeja a sua prática quanto ao eixo da análise
linguística, bem como os critérios que utiliza para escolher os textos e os conteúdos que
serão trabalhados em sala de aula;
27
c) Identificar os procedimentos didáticos que o professor adota em sala de aula para
construir a sua prática quanto ao eixo da análise linguística e analisá-los na sua relação
com o ensino da leitura;
d) Investigar de que forma o professor de português explora, em suas aulas, o papel dos
elementos linguísticos na construção de sentidos dos textos.
Acreditamos se tratar de um problema de investigação relevante, alinhado às atuais
demandas de pesquisa no âmbito das práticas pedagógicas de linguagem, especialmente por duas
razões. A primeira delas é o fato de a temática estudada ainda contar com um número limitado de
pesquisas acadêmicas se comparado aos estudos relacionados aos demais eixos didáticos. Dentre
aquelas que tocam em alguma medida no nosso objetivo geral, isto é, no propósito para o qual
estamos voltando todas as nossas atenções, selecionamos algumas delas para o compartilhamento
de dados que contribuam com a discussão que pretendemos empreender. São os estudos
realizados por: Bastos, Lima e Santos (2012); Duarte (2014); Manini (2009); Mendonça (2001,
2007b); Neves (1990); Souza (2010); e Tenório (2013). Ainda que nem todos esses estudos
tenham sido realizados em torno de práticas docentes (alguns têm como corpus livros didáticos
ou documentos curriculares), todos têm em comum o tema da análise linguística – ou do ensino
de gramática. Por entendermos que múltiplos fatores influenciam nas inovações produzidas nas
práticas que os professores empreendem no dia a dia da sala de aula, não nos detivemos apenas
nas pesquisas cujos dados advêm de práticas de ensino, pois consideramos que dados de outra
natureza poderiam ampliar o nosso olhar acerca do contexto no qual a prática docente está
inserida e acerca dos condicionantes dessa prática. É por essa razão, inclusive, que optamos por
fazer, ao longo de nossa fundamentação teórica, uma análise de como as interfaces entre análise
linguística e leitura vêm sendo propostas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e pelo
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
A outra razão diz respeito às muitas hesitações que as pesquisas têm demonstrado ainda
haver em relação ao fazer pedagógico dos professores de língua portuguesa quanto ao trabalho
com os conhecimentos linguísticos (cf. DUARTE, 2014; SOUZA, 2010). Da década de 1980 para
cá, as orientações de viés sociointeracionista para o ensino de língua materna e, mais
especificamente, para o trabalho com a análise linguística vieram se estabelecendo e pode-se
28
dizer até que elas se consolidaram no sentido de que se configuram hoje como diretrizes
amplamente difundidas tanto no meio acadêmico quanto no meio escolar. Isso se deu de tal forma
que os professores buscam, muitas vezes, desvincular sua imagem das práticas ditas tradicionais
e, assim, esforçam-se em efetivar inovações em suas práticas (cf. SOUZA, 2010; MENDONÇA,
2006), ainda que muitas dessas “inovações”, na verdade, assemelhem-se às práticas tradicionais
das quais, por vezes, tanto desejam fugir. Embora seja possível verificar uma incorporação
relativamente generalizada das orientações oficiais para o trabalho com o eixo da análise
linguística e embora, por vezes, essas orientações sejam validadas na experiência do professor,
restam ainda muitos questionamentos, muitas incertezas e muitas hesitações. O excerto abaixo, da
entrevista de uma das professoras participantes da pesquisa de Souza (2010, p. 128-129, grifos
nossos), é bastante representativo dessa atmosfera de inquietações:
Eu não sei se eu faço a coisa certa, não sei se eu estou entendendo a finalidade da língua e consigo aplicar na
funcionalidade. Eu não sei se estou colocando em prática aquilo que eu acredito, entende? A leitura, a escrita,
é importante? É! A gramática também é importante! O indivíduo não está conhecendo a Língua Portuguesa?
Eu acho que o indivíduo deve conhecer gramática, sim! Pra interagir melhor, escrever melhor, falar melhor,
se comunicar melhor de uma forma geral, né? Eu confesso que não sei se faço o casamento perfeito dentro
do que eu acho, eu tenho dúvidas como as coisas devem acontecer sequencialmente [referindo-se à
articulação entre os aspectos gramaticais e os demais eixos didáticos], mas eu posso dizer que eu acho
importante os alunos aprenderem gramática como forma de ajudá-los a interagir melhor.
Figura 2: Comentário de professora acerca de sua prática de ensino quanto ao eixo da análise
linguística
Observe-se que a professora reconhece a primazia do aspecto funcional da língua, o que
nos leva a crer que, se esta mesma professora não consegue colocar em prática uma abordagem
didática perfeita – para usar as palavras dela mesma – dos conhecimentos linguísticos, não se
trata de desconhecimento das orientações teórico-metodológicas vigentes. Talvez tenha alguma
razão Chartier (2007, p. 189, grifo nosso) quando afirma que “a eficácia de uma formação estaria
relacionada não aos saberes nela difundidos, mas ao lugar assumido pela reflexão sobre as
práticas”. Nesse sentido, o acesso direto às práticas de ensino desenvolvidas pelos professores –
alvo de nossa pesquisa – possibilita essa reflexão por trazer dados concretos acerca de como se
desenvolve efetivamente a ação docente e acerca das condições em que essa prática é construída
cotidianamente.
Esta dissertação está organizada em seis capítulos: o primeiro é a presente introdução; o
segundo e o terceiro compõem a fundamentação teórica; no quarto, expomos os fundamentos e os
29
procedimentos metodológicos que foram adotados para a realização do estudo; no quinto,
apresentamos a análise dos dados das entrevistas e das observações; e, no sexto e último, fazemos
as nossas considerações finais.
No segundo capítulo (A gramática na constituição da disciplina português: práticas,
objetos de ensino e perfil docente), procuramos recuperar o percurso de constituição da disciplina
português no Brasil, com o objetivo de destacar o espaço que a tradição gramatical ocupou no
ensino de língua materna desde a sua implementação no país até os dias de hoje. Para isso,
apresentamos inicialmente os pressupostos gerais da história das disciplinas escolares e da cultura
escolar, perspectivas teóricas às quais nos filiamos para a construção do referido retrospecto
histórico. Em seguida, a fim de situarmos o leitor quanto à natureza da gramática tradicional,
procedemos à caracterização desse conceito, destacando a concepção de língua que lhe subjaz e
os traços teórico-metodológicos que o constituem. Partimos, então, para o resgate histórico
propriamente dito da disciplina, incluindo as circunstâncias que antecederam a sua instituição no
Brasil (o ensino jesuítico do período colonial e as reformas pombalinas que regulamentam
oficialmente o ensino de português no império), alguns dos currículos normatizados e colocados
em prática no curso secundário do Colégio Pedro II (desde a sua inauguração, em 1838, até o
início dos anos 1940) e as primeiras repercussões dos estudos da linguística no redirecionamento
do ensino de português no Brasil, especialmente no que diz respeito à abordagem didática dos
conhecimentos linguístico-gramaticais na escola. Ao longo da construção do capítulo, sempre que
possível, procuramos fazer algumas considerações acerca dos três elementos que constam no
título que lhe atribuímos: as práticas (atividades, ações e procedimentos constitutivos do ensino
escolar), os objetos de ensino (saberes ensinados) e o perfil docente (identidade do professor e
formação profissional). Nosso aporte teórico para este segundo capítulo foram as obras de:
Bakhtin (2014 [1929]), Batista (1997), Borges Neto (2013), Bunzen (2011), Chartier (2000a
[1995], 2002), Chervel (1990 [1988]), Fávero (2009), Geraldi (1997b [1984], 1991, 1996), Julia
(2001), Neves (1990, 2010), Pietri (2003), Razzini (2010), Silva (2015a), Soares (1998, 2002) e
Tardif (2002).
O terceiro capítulo (Análise linguística e leitura: um diálogo possível no ensino de língua
portuguesa) se aproxima, no plano temporal, do período atual do ensino de língua materna no
Brasil, dando ênfase, claro, às práticas escolares de análise linguística. É quando chegamos mais
especificamente à questão norteadora de nossa pesquisa. Na abertura do capítulo, direcionamos
30
nossa atenção a questões teóricas acerca da linguagem que, em alguma medida, trouxessem
implicações para o ensino de língua materna e que subsidiassem nosso posterior esforço em
vincular as práticas escolares de análise linguística ao eixo da leitura. Contemplamos, nesse
momento, a concepção de linguagem elaborada por Mikhail Bakhtin, bem como as suas ideias
quanto ao processo de compreensão da enunciação por parte do sujeito. Em seguida, fizemos um
apanhado geral da proposta de João Wanderley Geraldi para o ensino de língua materna segundo
uma perspectiva sociointeracionista. Nesse apanhado, procuramos percorrer sua produção
acadêmica desde O texto na sala de aula (1984) até algumas produções mais recentes, destacando
os principais pontos de sua proposta de renovação do ensino. Contextualizada a esfera mais
ampla de sua proposta, passamos à apresentação dos fundamentos básicos da análise linguística
enquanto eixo didático, tanto no formato como foi originalmente proposta quanto nas
reformulações que veio sofrendo após a sua disseminação no meio acadêmico e escolar.
Buscamos também evidenciar a intrínseca relação que ela pode estabelecer com o ensino da
leitura, com base nas sugestões didáticas de estudiosos da área, nas indicações teóricas e
metodológicas normatizadas pelos PCN e pelo PNLD, bem como no modo como as pesquisas
demonstram estarem os professores da educação básica se apropriando da proposta e construindo
suas práticas de ensino. Tendo em vista a finalidade de renovação do ensino que acompanha a
proposição da análise linguística escolar, concluímos o capítulo com algumas breves reflexões
sobre a prática docente e a inovação pedagógica, a fim de explicitarmos a natureza complexa dos
processos que envolvem a sua implementação. Os autores em que nos apoiamos para tecer nossa
argumentação no decorrer do capítulo foram: Bakhtin (2014 [1929]), Bastos, Lima e Santos
(2012), Chartier (2000a [1995], 2000b, 2002, 2007), Duarte (2014), Franchi (2011 [1977], 2013
[1987]), Freire (1992), Geraldi (1997a [1984], 1997b [1984], 1991, 1996, 2014), Manini (2009),
Mendonça (2001, 2006, 2007b), Neves (2012), Possenti (1990, 2001), Silva (2015b), Suassuna
(2012) e Tenório (2013).
O quarto capítulo, conforme indicamos, versa sobre os aspectos metodológicos da
pesquisa. Iniciamos pela contextualização quanto aos paradigmas investigativos nos quais nossa
pesquisa se insere (pesquisa qualitativa com observação participante). Buscamos justificar nossas
escolhas sempre tendo como norte os objetivos traçados para o estudo e já anunciados no
decorrer desta dissertação. Em seguida, explicitamos as razões que nos levaram a definir como
campos de investigação turmas do sétimo ano do ensino fundamental de escolas das redes
31
públicas municipais de Recife e Jaboatão dos Guararapes. Também apresentamos os critérios de
seleção dos professores sujeitos da pesquisa e o caminho que seguimos para encontrar cada um
deles. Após esse relato, redigimos um perfil profissional e acadêmico dos professores escolhidos,
além de descrevermos as escolas nas quais observamos suas práticas de ensino. Por fim, fizemos
algumas considerações acerca dos instrumentos que utilizamos para coletar os dados da pesquisa
(a entrevista e a observação de aulas) e explicamos os procedimentos de análise adotados para o
tratamento dos dados com base nas categorias teóricas que previamente delimitamos.
No quinto capítulo desta dissertação, apresentamos a análise dos dados propriamente dita.
Organizamos o capítulo em dois blocos: o primeiro com a apreciação do material relativo à
prática da professora da prefeitura do Recife, e o segundo com aquele que representa a prática do
professor da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes. Esses blocos, por sua vez, estão divididos de
acordo com os instrumentos utilizados na coleta dos dados, seguindo a ordem em que recorremos
a eles: da entrevista para a observação de aulas. As seções dedicadas à análise das entrevistas
foram subdivididas de acordo com as seis categorias de análise definidas no quarto capítulo,
referente aos aspectos metodológicos da pesquisa. São elas: objetivos do ensino de língua
portuguesa e das práticas de análise linguística; relação entre análise linguística e leitura; espaço
das práticas e dos conceitos vinculados ao ensino tradicional de gramática; critérios de escolha e
fontes de pesquisa dos textos utilizados em sala de aula; definição dos conteúdos de ensino
vinculados ao eixo da análise linguística; planejamento das ações a serem realizadas em sala de
aula no trabalho com os conteúdos de análise linguística. Já as seções dedicadas à análise das
observações de aulas foram subdivididas de acordo com os conteúdos de ensino abordados por
cada professor: carta do leitor, concordância verbal e ortografia (uso da letra “s”) para a
professora da prefeitura do Recife; e advérbios para o professor da prefeitura de Jaboatão dos
Guararapes.
Nas considerações finais, enfim, fazemos uma síntese de nosso trabalho, apresentando as
conclusões a que chegamos a partir de sua realização, as possíveis contribuições trazidas ao
campo dos estudos sobre ensino de língua materna e as demandas de pesquisa para as quais ele
parece, a nosso ver, apontar.
32
2 A GRAMÁTICA NA CONSTITUIÇÃO DA DISCIPLINA PORTUGUÊS: PRÁTICAS,
OBJETOS DE ENSINO E PERFIL DOCENTE
Conforme indicamos na introdução desta dissertação, o objeto aqui investigado são as
práticas de análise linguística desenvolvidas por professores de língua portuguesa em suas
possibilidades de interseção com o ensino da leitura. O olhar norteador de nossa pesquisa é,
então, o funcionamento das práticas de ensino dos professores. Quando decidem o que ensinar e o
percurso metodológico adotado, e sobretudo durante a sua própria atuação em sala de aula, eles
revelam os caminhos pelos quais organizam as práticas de análise linguística e, nesse percurso,
uma preocupação maior ou menor com a ampliação das habilidades de leitura de seus alunos.
Mas, se por um lado as práticas dos professores são determinadas pelo viés através dos quais eles
se relacionam com a língua e pelo papel que atribuem ao ensino (BATISTA, 1997), também é
verdade que esses elementos não são suficientes para explicar o trabalho do professor na aula de
português. Acreditamos, como Batista (1997), que a construção dos saberes ensinados na escola
está também atrelada às condições sociais de produção e de transmissão desses saberes, o que
implica a necessidade de levar em consideração o contexto histórico, institucional e cultural no
interior do qual o ensino ocorre.
A proposta da análise linguística escolar, inicialmente elaborada por Geraldi (1997b
[1984], 1991, 1996), surgiu num movimento de questionamento ao conjunto de práticas e de
conteúdos vinculados ao ensino tradicional de gramática. As orientações para o ensino de
português que daí advieram no contexto brasileiro centraram-se na ideia de que a língua é uma
forma de interação social e, portanto, produzida em situações concretas de uso por sujeitos
históricos ideologicamente constituídos. Em linhas gerais, é o que chamamos de perspectiva
sociointeracionista ou sócio-histórica de linguagem, fruto das reflexões teóricas produzidas pelo
filósofo russo Mikhail Bakhtin. Contrapondo-se à noção de língua como sistema estável de
formas exterior ao sujeito propagada pelo estruturalismo saussuriano (“objetivismo abstrato”) e
opondo-se também à noção de língua como atividade mental centrada na expressão subjetiva do
indivíduo (“subjetivismo idealista”), Bakhtin (2014 [1929]) defende a natureza histórica, social e
dialógica da linguagem. Orientando-se sempre para o outro (daí, o termo dialogia), os sujeitos de
linguagem interagem verbalmente por meio do processo de enunciação, cuja estrutura é
determinada pela situação social imediata, pelos interlocutores que dele participam e pelo
33
contexto social mais amplo. Fundamentado nessas concepções, Geraldi (1997b [1984], 1991,
1996) propõe um ensino condizente com a natureza e o funcionamento da língua(gem). Do seu
ponto de vista, então, o ensino de língua materna deveria privilegiar práticas efetivas de uso da
língua, com o texto como unidade essencial de análise, e não mais as frases isoladas ou as
palavras soltas. No lugar de dominar a nomenclatura gramatical, o aluno aprenderia a refletir
sobre a língua, podendo, para isso, utilizar-se ou não do aparato analítico da gramática
tradicional, mas sem limitar-se a reproduzi-lo. A mediação dessas reflexões seria feita pelo
professor em articulação com duas outras práticas escolares de linguagem: a leitura e a produção
de textos. No cerne dessas atividades, estaria a mobilização de recursos linguísticos sobre a qual
caberia investigar nas aulas de português.
Como é de se esperar, entretanto, a instauração de um novo direcionamento teórico-
metodológico para o ensino não produz uma modificação radical e imediata nas práticas dos
professores. Como afirma Julia (2001, p. 23), “[...] no momento em que uma nova diretriz
redefine as finalidades atribuídas ao esforço coletivo, os antigos valores não são [...] eliminados
como por milagre, as antigas divisões não são apagadas, novas restrições somam-se
simplesmente às antigas”. Vale lembrar que o movimento de contestação de onde partiram os
encaminhamentos didáticos sugeridos por meio das práticas de análise linguística é bastante
recente, se o localizarmos no quadro histórico do ensino de língua portuguesa no Brasil. Ao longo
dessa trajetória, a gramática tradicional ocupou quase sempre lugar de destaque na educação
linguística formal do país, sendo a sua influência no ensino de língua anterior até mesmo à
implementação da disciplina português tal como a concebemos hoje (com programa próprio, com
conteúdos de ensino e objetivos de aprendizagem definidos, centrada na figura de um professor,
executada em um tempo e um espaço físico delimitados, etc.). Entender o atual momento
histórico – tanto no que a proposta da análise linguística representa quanto no espaço que cabe à
gramática tradicional, bem como às práticas e aos conceitos a ela associados, no ensino de língua
materna – demanda que façamos um retrospecto da constituição da disciplina português no
Brasil.
Cumpre ressaltar que o resgate do percurso do ensino de língua portuguesa no país traz
consigo necessariamente a imagem do professor, o sujeito que constrói, nos pequenos passos em
seu ambiente de trabalho, nos “fazeres ordinários” do cotidiano escolar (cf. CHARTIER, 2000a
[1995]), as práticas de ensino propriamente ditas. Como nos lembra Chartier (2002), quando se
34
fala de uma prática ideal ou típica (referente a uma época ou a um estilo pedagógico, por
exemplo), embora o efeito de tomá-la como anônima seja corriqueiro, ela não tem existência real
sem o fazer dos “atores”, dos “praticantes”, ou seja, dos docentes. Assim, é verdade que nossa
pesquisa se voltará em sua análise de dados, com base nas aulas que observamos e nas entrevistas
que fizemos aos professores, para o modo como eles constroem a sua prática de ensino, ou seja,
as maneiras de fazer dos professores (os procedimentos didáticos, o uso dos materiais didáticos,
as atividades propostas, a forma de abordar os fenômenos linguísticos em relação à construção de
sentidos do texto, etc.) nos interessam em larga medida. Entretanto, consideramos também
importante recuperarmos as ideias linguísticas subjacentes às práticas pedagógicas e os
dispositivos institucionais reguladores da disciplina português, pois, ao fazermos isso, remetemos
a macroelementos também constitutivos do trabalho docente. Em cada etapa da história do
ensino, esses condicionantes pressupõem um certo perfil de professor, isto é, demandam uma
formação profissional específica, em que saberes de diversas ordens devem ser mobilizados para
a efetivação da prática.
Neste segundo capítulo, baseando-nos no campo da história das disciplinas escolares (cf.
CHERVEL, 1990 [1988]) e da cultura escolar (cf. JULIA, 2001), traçamos um breve panorama
histórico do ensino de língua materna no Brasil, enfatizando o lugar da gramática tradicional no
decorrer do processo de constituição e evolução da disciplina português. Além disso, com vistas
ao nosso objeto de investigação, buscamos, ainda, observar a relação (ou não) que se veio
estabelecendo no ensino entre a abordagem dos fatos gramaticais e o trabalho com a leitura.
Como sinalizado no título do capítulo – A gramática na constituição da disciplina português:
práticas, objetos de ensino e perfil docente –, procuramos dar relevo a três pontos decorrentes da
reconstituição do percurso histórico que nos propomos a realizar. O primeiro deles diz respeito às
práticas que podem ser inferidas dos documentos em que se baseiam os estudos sobre a história
das disciplinas escolares (programas curriculares, legislação, textos normativos, materiais
didáticos, relatórios de pesquisa, etc.). O segundo procura essencialmente responder à questão “o
que se ensina?”, mas, como não poderia deixar de ser, dada a perspectiva histórica adotada, a
explicitação dos conteúdos de ensino privilegiados em cada época traz à tona dados relevantes
acerca das finalidades do ensino (“por que se ensina o que se ensina?”). Por fim, o terceiro ponto
concerne à identidade do professor de português vinculada às práticas de ensino normatizadas e
desenvolvidas no decurso da história. Não abordamos, contudo, os três eixos elencados – as
35
práticas, os objetos de ensino e o perfil docente – necessariamente nessa ordem, nem
contemplamos todos eles na descrição de cada um dos períodos da história da disciplina incluídos
em nossa exposição. Noutra via, versamos sobre esses elementos quando havia, no referencial
teórico consultado, informações suficientes para fazermos inferências a eles relacionadas e
quando considerávamos essas inferências relevantes para a compreensão de nosso objeto de
pesquisa.
2.1 HISTÓRIA DAS DISCIPLINAS ESCOLARES E CULTURA ESCOLAR: SITUANDO A
PERSPECTIVA TEÓRICA ADOTADA
A perspectiva histórica por meio da qual resgatamos o percurso de constituição e evolução
da disciplina português no Brasil, já afirmamos, está associada a dois campos de estudo da
história da educação intimamente conectados: a história das disciplinas escolares (cf. CHERVEL,
1990 [1988]) e a cultura escolar (cf. JULIA, 2001). Nesta seção, expomos e justificamos nossa
filiação às referidas áreas de pesquisa. Para isso, fazemos uma sucinta caracterização das duas,
apresentando os fundamentos teóricos gerais que as norteiam, bem como alguns de seus
conceitos-chave, e procurando realçar os diálogos que elas estabelecem entre si na investigação
de práticas escolares. Também procuramos elucidar nossa explanação com base em reflexões e
exemplos práticos de análise elaborados pelos pensadores que aqui representam cada um dos
campos de investigação, os franceses André Chervel e Dominique Julia.
Negando a inércia não raro atribuída à escola, Chervel (1990 [1988]) opta, em seus
estudos e na configuração de uma então nova área de pesquisa, por focalizar as disciplinas
escolares como objetos autônomos de investigação, uma vez que as entende como elementos
indispensáveis à compreensão da cultura escolar. Para o autor, as disciplinas escolares revelam o
que há de criativo no funcionamento da escola, evidenciando-a como lugar de produção de
saberes, não relegado à mera função de reproduzir conhecimentos elaborados externamente.
Dessa forma, a compreensão de Chervel (1990 [1988]) acerca da relação entre a cultura escolar e
a cultura global não é de alienação ou de subserviência. As disciplinas escolares, ao contrário,
exercem pressão sobre a história cultural da sociedade e, claro, intervêm na história do ensino.
Porque são criações espontâneas e originais do sistema escolar é que as disciplinas
merecem um interesse todo particular. E porque o sistema escolar é detentor de um
poder criativo insuficientemente valorizado até aqui é que ele desempenha na sociedade
36
um papel o qual não se percebeu que era duplo: de fato ele forma não somente os
indivíduos, mas também uma cultura que vem por sua vez penetrar, moldar, modificar a
cultura da sociedade global. (CHERVEL, 1990 [1988], p. 184)
Assim, ele defende a necessidade de se reconhecerem as propriedades constitutivas das
disciplinas escolares enquanto entidades culturais específicas e que, como tais, apresentam uma
origem, um delineamento e uma estrutura interna que lhes são próprios. Para demonstrar a
autonomia do conhecimento produzido no interior das disciplinas escolares e advogar contra a
imagem de uma escola “receptáculo dos subprodutos culturais da sociedade” (CHERVEL, 1990
[1988], p. 184), o autor exemplifica sua linha de pensamento a partir da análise da história da
gramática escolar francesa. Ele argumenta que, embora seja possível reconhecer no que se ensina
sob o rótulo de “gramática” um conjunto de conceitos concatenados em maior ou menor grau, a
gramática ensinada na escola francesa não corresponde às chamadas ciências “de referência”. O
que, na verdade, Chervel (1990 [1988], p. 181) percebeu em sua investigação foi que a gramática
escolar francesa havia sido “historicamente criada pela própria escola, na escola e para a escola”.
Na sua gênese, aponta o autor que ela esteve vinculada a um projeto pedagógico nacional que
visava à aprendizagem da ortografia, não se constituindo de forma alguma como uma
vulgarização ou uma simplificação do conjunto de teorias gramaticais elaboradas fora da escola.
Chervel (1990 [1988]) destaca, inclusive, a coincidência temporal entre a criação de conceitos da
gramática escolar francesa e o seu ensino.
Fica claro o caráter de originalidade que Chervel (1990 [1988]) atribui à cultura escolar,
obviamente não restrita ao âmbito das disciplinas escolares, mas predominantemente determinada
por elas. Ele reconhece que os ensinos explícitos e programados que o decurso de uma disciplina
visa alcançar não representam a totalidade da educação escolar, porém elege-os como objeto de
investigação privilegiado por considerar que foram largamente negligenciados diante da
dimensão de seu potencial explicativo do fenômeno da cultura escolar – e mesmo da história
cultural da sociedade. Dominique Julia (2001), autor cuja obra foi fortemente influenciada por
Chervel, arrisca-se a definir com mais precisão o que entende por cultura escolar: “um conjunto
de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas
que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos”
(JULIA, 2001, p. 10, grifos do autor). Observe-se, portanto, que são dois os principais eixos
constitutivos da cultura escolar segundo Julia (2001) e que, da forma como são descritos pelo
37
autor, ambos guardam íntima relação com as disciplinas escolares. Indissociáveis das normas e
das práticas que integram a cultura escolar são as finalidades educativas (JULIA, 2001).
Tais finalidades são também foco de atenção da história das disciplinas escolares, de
acordo com Chervel (1990 [1988]), ainda que o componente “teórico” ou “expositivo” (isto é, os
conteúdos explícitos de ensino) possa ser considerado o núcleo da disciplina e, por isso mesmo, o
interesse medular deste campo de estudo. A ênfase nos objetos de ensino, claro, não restringe a
atuação do historiador das disciplinas escolares a uma simples listagem de conteúdos, pois eles
não aparecem gratuitamente na história do ensino; não são “transparentes”, no dizer do autor.
Cabe ao historiador procurar explicá-los na medida de sua conexão com os objetivos de ensino,
cuja evidência é usualmente opaca. Essa tarefa, na história das disciplinas escolares, demanda
olhar a disciplina “de dentro”, procurando nela sua lógica de funcionamento e os elos que
estabelece com as circunstâncias sociais e culturais em que veio sendo produzida. Nas palavras
de Chervel (1990 [1988], p. 187, grifo nosso), “trata-se [...] de fazer aparecer a estrutura interna
da disciplina, a configuração original à qual as finalidades deram origem, cada disciplina
dispondo, sobre esse plano, de uma autonomia completa, mesmo se analogias possam se
manifestar de uma para outra”.
À guisa de síntese, podemos dizer que os problemas do campo da história das disciplinas
escolares são a gênese, a função e o funcionamento das disciplinas (CHERVEL, 1990 [1988]),
elementos para os quais nossa pesquisa atenta em maior ou menor proporção. Embora nossos
objetivos de investigação apontem mais diretamente para a função e para o funcionamento de
uma parte da disciplina português (nosso enfoque são as práticas de análise linguística, e aquelas
desenvolvidas por dois professores específicos), também apostamos na reconstituição do percurso
histórico por ela trilhado (incluindo, evidentemente, sua gênese). Como Soares (2002),
entendemos que o resgate promovido pela história das disciplinas escolares acerca do surgimento
da disciplina e acerca de suas transformações ao longo do tempo ajuda a explicar a sua condição
atual. Nesse sentido, ao analisarmos as práticas dos professores (ou “os ensinos efetivamente
dispensados”, para usar os termos de Chervel), destacando os conteúdos ensinados, os objetivos
do ensino e os caminhos através dos quais eles ensinam, estamos documentando um minúsculo
recorte do estágio em que a disciplina se encontra nos dias de hoje, o que nos leva a crer que, em
alguma medida, estamos registrando a história da disciplina português.
38
É importante esclarecer, ainda, que a história das disciplinas escolares não se contenta
com a análise dos textos reguladores do ensino para encontrar o delineamento que procura
construir acerca de seu objeto de estudo. Já destacamos anteriormente nosso interesse pela
constituição das práticas de ensino, o que nos levou a concentrar parte de nossa análise nos
“fazeres ordinários” dos professores investigados, pois “[...] é somente na prática cotidiana
daquele que conduz a classe, que se podem formular e resolver os problemas cotidianos
engendrados pelas dinâmicas de evolução do ofício” (CHARTIER, 2000a [1995], p. 164). A
história das disciplinas atenta para a necessidade de se investigarem os ensinos efetivamente
realizados. Se ela parte muito mais de documentos escritos para reconstruir as práticas e as
normas que as rodeiam, é porque, para além do próprio interesse nos dispositivos normativos de
regulação da disciplina escolar, não é possível revisitar as salas de aula de um tempo que já se
passou. Nessas circunstâncias, ela procura os vestígios das práticas constitutivas das disciplinas
nos documentos escritos que tem a seu dispor.
Sobre a necessidade de ir além dos textos reguladores, tanto Chervel (1990 [1988]) quanto
Julia (2001) nos alertam sobre o descompasso que pode existir entre a normatização do ensino e a
realidade pedagógica. O primeiro autor o faz diferenciando as finalidades teóricas das finalidades
reais e localizando a passagem de uma para a outra no ato pedagógico que é o ensino escolar.
Destaca que a preocupação com os objetos de ensino própria da história das disciplinas escolares
não se esgota nela mesma, mas atende a um propósito mais amplo:
A descrição de uma disciplina não deveria [...] se limitar à apresentação dos conteúdos
de ensino, os quais são apenas meios utilizados para alcançar um fim. Permanece o fato
de que o estudo dos ensinos efetivamente dispensados é a tarefa essencial de um
historiador das disciplinas. Cabe-lhe dar uma descrição detalhada do ensino em cada
uma de suas etapas, descrever a evolução da didática, pesquisar as razões da mudança,
revelar a coerência interna dos diferentes procedimentos aos quais se apela, e estabelecer
a ligação entre o ensino dispensado e as finalidades que presidem a seu exercício.
(CHERVEL, 1990 [1988], p. 192, grifos nossos)
Na mesma direção, Julia (2001) critica a supervalorização dos textos normativos –
situação que julga recorrente no âmbito dos estudos em história da educação – e defende a
necessidade de se olhar para o funcionamento interno da escola. O autor acredita que há um
longo hiato entre os modelos pedagógicos arquitetados nos programas oficiais e a realidade
escolar onde os projetos são colocados em prática. A crença de que os textos normativos são
suficientes para se inferir a operacionalização da prática pedagógica, para Julia (2001),
negligencia as tensões e os apoios inerentes à execução concreta de qualquer projeto pedagógico.
39
Esses textos, assinala o autor, devem sempre remeter o pesquisador às práticas. É à história das
disciplinas escolares que Julia (2001) delega a missão de desvendar a cultura escolar por uma via
menos externalista, que permita costurar os fios que ligam normas e práticas:
É de fato a história das disciplinas escolares, hoje em plena expansão, que procura
preencher esta lacuna [entre as ideias e as práticas pedagógicas]. Ela tenta identificar,
tanto através das práticas de ensino utilizadas na sala de aula como através dos grandes
objetivos que presidiram a constituição das disciplinas, o núcleo duro que pode
constituir uma história renovada da educação. Ela abre, em todo caso, para retomar uma
metáfora aeronáutica, a “caixa preta” da escola, ao buscar compreender o que ocorre
nesse espaço particular. (JULIA, 2001, p. 12-13)
2.2 TRADIÇÃO GRAMATICAL E ENSINO DE PORTUGUÊS NO BRASIL
Contextualizada a perspectiva à qual nos filiamos para a construção deste capítulo e
apresentadas as justificativas para que tenhamos optado por este caminho teórico, passamos agora
ao resgate histórico propriamente dito do percurso de constituição da disciplina português no
Brasil. Em nossa exposição, conforme indicamos, têm lugar de destaque dados que revelem o
espaço e o papel dos conteúdos gramaticais no ensino de língua materna, bem como a relação que
se estabelecia na prática pedagógica entre a abordagem desses conteúdos e a leitura. Procuramos
atentar, como sugere Soares (1998), para os fatores internos e externos que atua(ra)m sobre a
história da disciplina em questão. Isso significa que foram contemplados, respectivamente: as
circunstâncias sociopolíticas e culturais no interior das quais o ensino era normatizado e
praticado; e aspectos linguísticos subjacentes às normas e práticas, tais como as concepções de
língua em vigor e a configuração dos estudos linguísticos enquanto área de conhecimento.
2.2.1 Breve caracterização da gramática tradicional: concepção de língua e princípios gerais
Fizemos menção, na abertura deste capítulo, ao lugar de protagonismo que a gramática
tradicional ocupou na educação linguística formal do Brasil e à influência que ainda hoje ela
exerce sobre a prática de muitos professores. Sabemos que o termo “gramática” pode abarcar um
conjunto relativamente amplo de conceitos e práticas e que sua definição não é consensual, mas
pode variar segundo a própria perspectiva de observação do objeto. Por isso, optamos por iniciar
esta seção esclarecendo de forma sucinta a que estamos nos referindo ao falarmos em “gramática
tradicional” ou “tradição gramatical”. Longe de pretendermos esgotar a discussão acerca de uma
40
noção tão complexa, nosso propósito é apenas o de evitar a abordagem demasiadamente
imprecisa de um conceito cuja relevância é patente para o desenvolvimento desta pesquisa.
Delinear seus contornos nos proporcionará, mais à frente, uma compreensão mais acurada tanto
das propostas de ensino de língua no interior das quais a tradição gramatical era uma preocupação
central quanto da própria análise linguística escolar, tendo em vista que ela surge enquanto eixo
didático em meio a um fluxo contestatório da primazia dessa mesma tradição no ensino de língua.
Grosso modo, podemos dizer que a tradição gramatical fundamenta-se no princípio da
correção linguística, entendido como meio de organizar logicamente o pensamento e, assim,
expressá-lo com clareza. Desse princípio de correção, advêm as regras que o usuário da língua
precisa dominar para bem falar e para bem escrever. Perceba-se que as regras de funcionamento
da língua são pensadas à parte dos sujeitos que as utilizam. Cabe a eles se apropriarem das regras,
uma vez que elas são capazes de organizar o pensamento individual em um código transparente.
Noutras palavras, quanto maior o domínio que o usuário da língua tem dessas regras, melhor ele
consegue se expressar. É nesse sentido que podemos dizer que compõem um sistema autônomo.
Foi essa a concepção de língua que guiou o ensino de língua materna no Brasil, desde a sua
instauração com as reformas pombalinas até a segunda metade do século XX (SOARES, 1998).
A gramática enquanto reflexão sobre a língua(gem) humana remonta aos filósofos da
Antiguidade clássica, tendo perpassado várias culturas do mundo ocidental até chegar à
configuração a que hoje temos acesso. Dois milênios nos separam, portanto, das primeiras
reflexões que deram origem ao aparato teórico-metodológico de análise linguística de que se
valem os estudos gramaticais do Ocidente. Embora possam ser percebidas ligeiras diferenças no
arcabouço conceitual e categorial que os diversos gramáticos propuseram ao longo da história,
há, nesse percurso, mais permanências do que rupturas – de tal forma que Borges Neto (2013)
considera hoje, no âmbito dos estudos linguísticos contemporâneos, a existência de um processo
de “naturalização” da gramática tradicional. Com isso, ele quer dizer que há um apagamento do
trabalho de elaboração teórica – e, consequentemente, do componente ideológico – implicado nas
noções gramaticais, que são, então, encaradas como fenômenos em si mesmos, já dados pela
própria realidade. Assim, Borges Neto (2013) aponta que a abordagem da linguística
contemporânea acerca dos fenômenos da língua termina por ter sempre como parâmetro e ponto
de partida a teoria da gramática tradicional, cujos resultados chegam a ser por ela incorporados.
41
Em pesquisa recente sobre a produção de gramáticas brasileiras contemporâneas do
português, Silva (2015a) evidenciou com bastante precisão a longevidade da tradição gramatical
do mundo ocidental. Sua tese de doutorado partia da hipótese de que essas obras representavam
um novo fazer gramatical, no sentido de que estabeleciam rupturas epistemológicas com o que
ele denominou paradigma tradicional de gramatização3 (PTG), modelo cujos fundamentos
básicos têm conduzido a produção de gramáticas no Ocidente há dois mil anos. Numa outra
direção, os resultados da pesquisa não indicaram a vigência de um novo paradigma. Após
identificar as linhas de continuidade e os movimentos de ruptura que as gramáticas brasileiras
contemporâneas do português apresentam em relação ao paradigma tradicional de gramatização,
Silva (2015a, p. 452, grifo do autor) conclui que as obras analisadas4 sinalizam, na verdade, “o
esgarçamento do PTG [...] e a elaboração inaugural de novas gramáticas à luz de novas frentes de
gramatização ainda embrionárias, que buscam atender às demandas da virada linguística”.
Uma das grandes contribuições teóricas da pesquisa de Silva (2015a) que gostaríamos de
destacar, dada a sua relevância para o objetivo delimitado nesta seção, é a construção do conceito
de PTG. Nascido da ramificação que os gramáticos alexandrinos impuseram à vertente lógico-
filosófica grega de reflexão sobre a linguagem e consolidado pelo processo de gramatização
massiva das línguas europeias, o PTG, como já explicitado, guiou de forma hegemônica a
produção de gramáticas ao longo da história do pensamento linguístico-gramatical do Ocidente.
Na citação a seguir, podemos perceber a amplitude dos ecos que as concepções e o instrumental
teórico dele decorrentes fizeram ressoar:
Esse paradigma transpôs a dimensão espaço-temporal da Grécia antiga, atravessou os
mais diferentes contextos históricos e se incrustou nas mais distintas civilizações, sendo,
ainda hoje, o mentor daquilo que se entende por gramáticas normativas, tradicionais ou
de referência, no que diz respeito à regulação de seu papel social, à apresentação e
distribuição de conteúdos gramaticais, a seu aparato analítico e terminológico, dentre
outros aspectos. (SILVA, 2015a, p. 63, grifos do autor)
Para caracterizar a tradição gramatical que o PTG representa, Silva (2015a) apresenta seus
traços constitutivos na forma de um conjunto de proposições não hierarquizadas entre si que,
segundo ele, revelam sua orientação teórico-metodológica e socioideológica. São vinte e três
3 Fundamentando-se em Auroux (1992), Silva (2015a, p. 20) explica que “[...] gramatização é o processo de origem
renascentista, com base na tradição greco-latina, de descrever e instrumentalizar as línguas ocidentais a partir de
duas tecnologias metalinguísticas: a gramática e o dicionário”.
4 As obras analisadas por Silva (2015a) foram: Gramática Houaiss da Língua Portuguesa, de José Carlos Azeredo
(2008); Gramática do Português Brasileiro, de Mário A. Perini (2010); e Gramática Pedagógica do Português
Brasileiro, de Marcos Bagno (2012).
42
proposições, mas a filiação de uma obra ao PTG, alerta o autor, não depende da adesão total a
cada uma delas; basta que se vincule à maioria. Fizemos abaixo a transcrição literal das
proposições elaboradas por Silva (2015a, p. 147):
a) A gramática é um instrumento que constrói um modelo artificial e ideal de língua.
b) A gramática é um instrumento que regula a língua, prescrevendo suas formas legítimas.
c) Descrever uma língua se confunde com normatizá-la, prescrevê-la.
d) A gramática, independentemente do seu uso escolar, tem função pedagógica.
e) A função da gramática é ensinar a língua correta.
f) A melhor língua é a língua das camadas dominantes da sociedade.
g) O português de Portugal é melhor que o português do Brasil.
h) A língua é a expressão do pensamento.
i) A língua é um objeto autônomo, independe de seus usuários.
j) A língua equivale à sua modalidade escrita.
k) A língua é homogênea.
l) Os usos que se afastam das formas legitimadas pela gramática são ignorados ou
classificados como vícios.
m) A língua é estática.
n) A língua deve ser preservada.
o) A língua literária é a mais bem elaborada e deve, portanto, servir de modelo.
p) A língua das gerações pregressas é melhor que a das gerações atuais.
q) O aparato conceitual e taxionômico de tradição greco-latina serve para todas as línguas.
r) A gramática de uma língua se divide em fonologia, morfologia e sintaxe.
s) A gramática de uma língua é a gramática das frases (períodos) da língua, tomadas como
unidade máxima de análise.
t) As frases de uma língua têm sentido pleno, bastam-se a si mesmas.
u) A exposição do conteúdo da gramática é sistemática: categoria, definição, subdivisão e
exemplo.
v) As categorias gramaticais são fixas, estanques e avessas a controvérsias.
w) As fontes teóricas não precisam ser apresentadas no corpo da gramática.
43
O conhecimento gramatical milenar à nossa disposição hoje carrega consigo as
concepções sintetizadas acima quanto à natureza da língua, à sua organização interna e à sua
funcionalidade. É também imbuído, como se pôde verificar, de juízos de valor no que dizem
respeito aos usos linguísticos legítimos e à função da gramática na regulação e disseminação
desses usos. Ainda que a pesquisa de Silva (2015a) não tenha se debruçado particularmente sobre
as práticas escolares ou sobre a gramática enquanto parte integrante da disciplina português, não
há como negar que o saber gramatical tradicional – desdobrado nas premissas reproduzidas há
pouco – é componente historicamente predominante na formação do professor de língua materna,
perpassando, inclusive, a sua experiência enquanto aluno. É bem verdade que, na mobilização de
saberes necessária à efetivação do ensino, o professor hibridiza conhecimentos de diversas ordens
(pedagógicos, disciplinares e curriculares) em função de sua formação, dos objetivos do ensino e
das circunstâncias concretas de sala de aula (cf. TARDIF, 2002). Logo, estamos cientes de que o
conhecimento teórico acerca do objeto ensinado não é o único condicionante da prática docente,
nem mesmo o único saber que alicerça a atuação do professor em sala de aula. O ponto que
queremos destacar e que converge para a importância do saber gramatical na constituição da
disciplina português e das práticas de ensino a ela vinculadas é o fato de que, especificamente na
esteira dos saberes disciplinares mobilizados, os conhecimentos produzidos pela tradição
gramatical têm estado sempre, em alguma medida, implicados na formação do professor de
português. A despeito das diferentes polêmicas que envolvem a abordagem didática do saber
gramatical, ele inegavelmente integra o domínio dos conhecimentos teóricos do professor de
língua e, nesse sentido, vem ocupando um lugar relativamente consolidado em sua formação e
em sua identidade profissional, ao passo que o espaço dos conhecimentos oriundos das teorias
linguísticas contemporâneas (e de quais teorias?) ainda tem se mostrado bastante instável.
2.2.2 Antecedentes históricos do ensino de língua portuguesa no Brasil: do ensino jesuítico às
reformas pombalinas
A inclusão da disciplina português no currículo da escola brasileira aconteceu, como
aponta Soares (2002), tardiamente: apenas no final do século XIX, com as reformas promovidas
pelo Marquês de Pombal. Antes disso, o ensino de língua no país era focado quase
exclusivamente nas disciplinas clássicas, sobretudo a gramática latina e a retórica (que, até então,
44
incluía a poética). A aprendizagem do vernáculo limitava-se à alfabetização, após a qual já se
iniciava o estudo do latim (SOARES, 1998). Embora o período focalizado nesta seção, portanto,
não contemple o ensino de língua portuguesa propriamente, escolhemos tal ponto de partida no
intuito de contextualizar as circunstâncias históricas que antecederam a implementação do
português enquanto disciplina curricular, incluindo os fatores internos e externos apontados na
abertura desta seção (cf. SOARES,1998). A explicitação de tais circunstâncias visa desvelar
aspectos da gênese da disciplina, explicando, assim, as raízes do vínculo histórico do ensino de
português no país com a tradição gramatical.
Até a primeira metade do século XVIII, nossa educação formal era dominada pelos
jesuítas, que, além de catequisarem a população indígena segundo a política colonialista e
mercantilista portuguesa, eram responsáveis pela instrução da elite colonial brasileira (FÁVERO,
2009). O ensino da língua portuguesa não tinha lugar na educação desse tempo, sendo a formação
linguística formal promovida pelos jesuítas direcionada à aprendizagem da língua latina. Como
bem aponta Soares (2002), esse fato explica-se pelo perfil do público a quem essa educação se
destinava, bem como pelo baixo valor cultural do português no âmbito das trocas linguísticas
realizadas entre os habitantes da colônia. A comunicação entre colonizadores e colonizados se
dava através da chamada língua geral, sendo o papel da língua da metrópole relegado a segundo
plano durante os séculos de dominação jesuítica no Brasil. Os jesuítas, por sua vez, eram
herdeiros de uma tradição pedagógica pautada na formação humanística-clássica, em que a
principal língua de cultura era o latim. Nessa mesma direção, interessava ao grupo social
escolarizado de então – os descendentes dos colonizadores – receber uma educação formal que
estivesse em consonância com o modelo hegemônico da época, a Ratio Studiorum, um programa
de estudos proposto pela Companhia de Jesus e por ela implantado em todo o mundo.
No campo das letras, o currículo da Ratio Studiorum visava ao domínio da língua latina
através da aprendizagem de sua gramática, da leitura das principais obras literárias clássicas e do
estudo dos princípios da retórica. À maneira da educação medieval europeia, a ênfase na
gramática latina conferida pelo ensino jesuítico no Brasil estava associada ao acesso à cultura
escrita dominante, largamente determinada pelas línguas clássicas:
Para um europeu do século IX, o latim é antes de tudo uma segunda língua que ele deve
aprender. A gramática latina existe e vai se tornar prioritariamente uma técnica de
aprendizagem da língua [...]. Foi necessário primeiro que a gramática de uma língua já
gramatizada fosse massivamente empregada para fins de pedagogia linguística, porque
esta língua se tornou progressivamente uma segunda língua, para que a gramática se
45
tornasse – o que tomará um tempo considerável – uma técnica geral de aprendizagem,
aplicável a toda língua, aí compreendida a língua materna. (AUROUX apud BUNZEN,
2011, p. 890, grifos nossos)
No Brasil, esse cenário só começou a ser modificado a partir das reformas políticas
promovidas pelo Marquês de Pombal, no final do século XVIII, quando foram os jesuítas
expulsos do país. Dentre as determinações de Pombal, estava a obrigatoriedade do uso da língua
portuguesa no Brasil e, consequentemente, a implantação e expansão de seu ensino. Nessa esfera,
as reformas basearam-se em O verdadeiro método de estudar, obra de 1746 em que o lisboeta
Luís António Verney propunha, à luz das ideias iluministas, novas orientações pedagógicas para
a educação lusitana. No que concerne ao ensino de língua, Verney recomendava que, antes da
gramática latina, fosse realizado o estudo da gramática portuguesa. Soares (2002) esclarece que
tal procedimento justifica-se pelo caráter instrumental que marca inicialmente o ensino do
vernáculo no Brasil: o domínio da gramática da língua portuguesa deveria dar suporte à
aprendizagem da gramática latina, tanto é que uma era ensinada em contraste com a outra.
É oportuno, ainda, salientar a concepção de gramática e a decorrente finalidade que se
atribuía à sua aprendizagem no texto de Verney (apud FÁVERO, 2009, p. 19): “Gramática [...] é
a arte de falar e escrever corretamente. Todos aprendem sua língua no berço; mas se acaso se
contentam com essa notícia, nunca falarão como homens doutos”. Deste fragmento, podemos
perceber explicitamente a noção de correção linguística própria da tradição gramatical e o caráter
de erudição associado ao domínio da gramática – expectativa compatível com o perfil
sociocultural do público a quem era facultada a escolarização. O estudo da gramática, então,
vinculava-se aos usos concretos da língua apenas na medida em que visavam regulá-los no
sentido de definir as construções linguísticas consideradas legítimas e descartar as que delas
desviavam. Se havia alguma participação da leitura na abordagem didática dos conteúdos
gramaticais, tratava-se apenas de oferecer ao aluno um modelo de escrita correta, baseado
sobretudo na literatura clássica, e um objeto para se exercitar a análise categorial proposta pela
tradição gramatical greco-latina.
2.2.3 A constituição da disciplina português no curso secundário do Colégio Pedro II
Durante a primeira metade do século XIX, começa a despontar na educação formal do
império um formato de escola um pouco mais próximo de como hoje a conhecemos. Isso porque,
46
no esforço de organizar o sistema de ensino formal do país, foram fundados os chamados liceus
provinciais, estabelecimentos que ofereciam um conjunto de aulas avulsas em um mesmo lugar,
sem que os alunos precisassem se deslocar da casa de um à de outro professor para receber as
instruções relativas a cada disciplina curricular, como demandava o sistema de aulas régias
implantado pelo Marquês de Pombal (FÁVERO, 2009). Dentre os liceus fundados a partir do Ato
Adicional de 1834, está o tradicional e ainda em funcionamento Colégio Pedro II. Localizado no
Rio de Janeiro, criado em 1837 e inaugurado em 1838, tal estabelecimento surgiu com o objetivo
de normatizar a educação formal concedida pelo poder público no Brasil. Sua importância na
história do ensino e das ideias pedagógicas no contexto brasileiro é tal que o currículo nele
ensinado servia de modelo para todo o ensino secundário5 do país. A fundação do Colégio Pedro
II representou, portanto, a oficialização de um programa curricular instituído pela metrópole
portuguesa no Brasil. É no interior desse currículo que a língua portuguesa vai se constituindo
enquanto disciplina escolar autônoma, com objetos de ensino próprios, objetivos de
aprendizagem definidos, dinâmica de funcionamento interno, além de práticas a todos esses
elementos vinculadas. Tais diretrizes demandavam, claro, uma formação profissional específica
dos professores que ministrariam a disciplina e, nesse sentido, é também na história do ensino de
língua do Colégio Pedro II que podemos acompanhar o início do processo de constituição da
identidade do professor de português. Por tudo isso, é visível a importância de se resgatar o
percurso da disciplina português no Colégio Pedro II, dada a sua representatividade na história da
disciplina no Brasil, sobretudo em relação à sua gênese.
A história do ensino secundário na Corte reduz-se, durante o Império, à história do
Colégio de Pedro II, o único estabelecimento público dessa natureza existente na cidade
do Rio de Janeiro. Em tais condições, o conhecimento das intenções que nortearam as
inúmeras reformas sofridas pelo Colégio criado por Vasconcelos6 equivale, de certo
modo, ao conhecimento do pensamento oficial acerca da natureza e dos objetivos do
ensino secundário. (HAIDAR apud FÁVERO, 2009, p. 22)
Para recuperar o histórico da disciplina português no Colégio Pedro II, recorremos
principalmente ao trabalho de Razzini (2010) devido à abrangência temporal de sua pesquisa
(desde 1838 – quando o colégio foi inaugurado – até a década de 1940) e ao caráter de imersão
no currículo da instituição decorrente do enfoque temático proposto. Partindo da perspectiva
5 O ensino secundário corresponde à fase de escolarização que hoje denominamos ensino fundamental.
6 Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850), então ministro do império, foi o fundador e idealizador do Colégio
Pedro II. Segundo consta no site da escola (http://cp2.g12.br/), foi Pereira de Vasconcelos que fez a indicação dos
primeiros professores a trabalharem no colégio e dos primeiros materiais didáticos a serem adotados.
47
teórica da história das disciplinas escolares e da cultura escolar, já apresentada no início deste
capítulo, Razzini (2010) reconstrói o itinerário de constituição da disciplina português na escola
secundária brasileira através da análise das normas e práticas inferidas com base no conteúdo de
uma série de documentos consultados pela pesquisadora: os programas curriculares e os livros
didáticos adotados no Colégio Pedro II, a legislação referente ao período investigado, as normas
dos Exames Preparatórios e dados de estudos em história da educação. Dessa forma, Razzini
(2010) dividiu o histórico de configuração da disciplina português no curso secundário do
Colégio Pedro II em quatro etapas, cujas características sintetizaremos a partir de agora, sempre
enfocando, conforme os objetivos delineados para este capítulo, os aspectos vinculados ao ensino
de gramática e à sua relação com as práticas escolares de leitura.
A primeira fase perdurou de 1838 a 1869, isto é, da inauguração do colégio até a inclusão
da disciplina português nos chamados Exames Preparatórios, testes escritos que davam acesso
aos cursos superiores da época. Razzini (2010) salienta que esses exames exerceram uma enorme
influência sobre o currículo das disciplinas escolares do secundário, porque, até 1931, quando a
Reforma Francisco de Campos modificou esse cenário, a posse dos certificados de aprovação nas
disciplinas exigidas nos Exames Preparatórios era suficiente para se ingressar nas escolas
superiores, não sendo necessário, para tanto, cursar de fato cada uma das sete ou oito séries que
compunham o ensino secundário. Por essa razão, durante um longo espaço de tempo, as escolas
secundárias cumpriram predominantemente a função de preparar os candidatos para os Exames.
O crescimento da demanda de ingresso nos cursos superiores foi, inclusive, um dos fatores que
motivou o aparecimento de diversos estabelecimentos públicos e privados de ensino, incluindo os
liceus provinciais. Embora o currículo do Pedro II também tenha sido inicialmente moldado
segundo as disciplinas exigidas nos Exames Preparatórios, o colégio se destacava dentre as
demais instituições porque seus alunos, ao concluírem o curso secundário e receberem o diploma
de “bacharel em Letras”, ganhavam automaticamente o direito de entrar em qualquer curso
superior do império.
Ao longo da primeira fase indicada por Razzini (2010), como é de se esperar, o currículo
do Colégio Pedro II esteve alinhado à hegemônica inclinação humanística clássica da educação
de seu tempo. Havia, assim, uma supremacia das línguas clássicas em detrimento do vernáculo,
cujo estudo era realizado apenas no primeiro ano do secundário e conduzido pelo professor de
latim. A gramática era o principal componente curricular ensinado nas aulas de língua
48
portuguesa, mas sua abordagem estava subordinada ao estudo da gramática latina. A partir de
1855, conforme destaca Razzini (2010), a disciplina português passou a contemplar exercícios
ortográficos e algumas práticas oriundas das disciplinas retórica e poética, tais como a leitura
literária e a recitação. Segundo a autora, os materiais didáticos comumente utilizados para dar
suporte a esse ensino eram uma gramática, um dicionário, uma seleta de leitura com fragmentos
de autores portugueses e brasileiros (com ênfase nos primeiros), além de uma ou duas obras
completas de autores consagrados pela tradição literária lusitana (em geral, provenientes dos
séculos XVI e XVII, principalmente Luís de Camões, Padre Antônio Vieira e Padre Manuel
Bernardes).
Em 1869, o governo imperial baixou um decreto que determinava a inclusão do exame de
português dentre os Exames Preparatórios. A decisão entrou em vigor em 1871 e era válida para
o ingresso em todos os cursos superiores do império, tendo repercutido fortemente na
configuração do currículo do Colégio Pedro II, sobretudo no espaço crescente dedicado ao estudo
do vernáculo (RAZZINI, 2010). Podemos dizer que a incorporação dos conteúdos de língua
portuguesa nos Exames Preparatórios marca o início do processo de constituição do português
enquanto disciplina no ensino secundário brasileiro, tanto que, nesse mesmo ano, em 1871, é
criado no país o cargo de “professor de português” (SOARES, 2002). Esse processo foi
intensificado quando um novo decreto imperial, em 1886, determina a precedência do exame de
português sobre os demais, acelerando a expansão da disciplina no currículo do Colégio Pedro II.
Desse modo, o ano de 1870 representa o início de uma nova etapa no ensino de língua do
Colégio Pedro II, de acordo com a classificação proposta por Razzini (2010). Ela se estende até
1890, quando as disciplinas retórica e poética são apagadas do currículo da instituição. No
decurso dessas duas décadas, a carga horária e o os conteúdos de português se expandiram
bastante, passando a integrar as três séries iniciais do secundário. Uma mudança importante,
segundo Razzini (2010), foi a exclusão do latim no currículo do primeiro ano, o que significa
dizer que a introdução dos estudos linguísticos no Pedro II deixa de ser feita em latim, como
recomendava a tradição pedagógica clássica.
Também assinala a autora que era ensinada gramática histórica e filosófica do vernáculo
no terceiro ano do secundário. Para acompanharem a evolução histórica da língua e assimilarem
as categorias gramaticais estudadas, os alunos deveriam fazer a leitura de textos literários
seguindo uma ordem cronológica inversa e neles observarem a aplicação dos princípios da
49
gramática filosófica. A disposição dos textos nas seletas não acompanhava essa ordenação por
meio da qual os textos eram apresentados aos alunos nas aulas; os critérios de organização dos
compêndios permaneciam temáticos e relativos à classificação dos gêneros literários. Assim, se
os parâmetros da retórica e da poética continuavam guiando a forma como esse material didático
era estruturado, sua influência era cada vez menor na educação linguística escolar da época,
sobretudo a partir de 1881. A abordagem cronológica inversa dos textos literários é um exemplo
da perda de espaço que a retórica e a poética sofreram no interior da disciplina português. Essa
opção didática se justificava por serem os textos contemporâneos (de autoria brasileira e lusitana)
considerados de mais fácil leitura. Apesar da inclusão desses textos nos compêndios utilizados
nas aulas, ainda havia uma preferência pelos autores de língua portuguesa originários dos séculos
XVI e XVII. Apenas no final desta segunda etapa, em 1887, o Colégio Pedro II adotou uma
seleta nacional, organizada por professores da própria instituição, que contemplava em um único
volume prosadores e poetas brasileiros e portugueses dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, cujos
textos eram apresentados em ordem cronológica, a Seleção Litteraria. Segundo Razzini (2010), é
possível verificar, também na adoção de gramáticas, essa mesma inclinação de escolher um
material didático produzido no Brasil, especialmente aqueles elaborados por professores do
Colégio Pedro II.
Um crescimento vertiginoso de valorização da gramática como componente curricular da
disciplina português é identificado por Razzini (2010) na terceira etapa do ensino de língua do
Colégio Pedro II, que vai de 1891 a 1930. A retórica e a poética desaparecem definitivamente do
currículo, sendo alguns de seus conteúdos incorporados às disciplinas literárias, oferecidas
somente na série final do curso secundário, tendo em vista que não eram exigidas nos Exames
Preparatórios. Para além do último ano do secundário, a literatura ficou, durante esse tempo,
limitada aos textos que compunham as antologias adotadas e que eram selecionados para serem
utilizados nas aulas de português. Razzini (2010) constata em seu trabalho um aspecto muito
representativo da força que a gramática assumiu no ensino de língua portuguesa ao longo dessa
etapa: a indicação majoritária de gramáticas como material didático frente aos compêndios
literários. Em 1928, o número de obras gramaticais indicadas chegou a dezesseis, junto com
apenas uma seleta, a famosa Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet.
Publicada em 1895, adotada nesse mesmo ano pelo Colégio Pedro II e indicada nos
Exames Preparatórios, essa é uma obra emblemática da história da disciplina português no Brasil,
50
dada a sua ampla e longa utilização nas aulas de língua materna (de 1895 a 1969). Razzini (2010,
p. 53) situa a sua publicação na atmosfera nacionalista que dominou o contexto de proclamação
de nossa república, tanto que essa obra foi “a primeira seleta brasileira organizada por categorias
da história literária nacional”. Nela, as produções brasileiras precediam as lusitanas, apresentadas
século a século do mais contemporâneo ao mais antigo, seguindo a sequência proposta nas aulas
do Pedro II. Antes, todos esses textos apareciam mesclados, apresentados conjuntamente no
âmbito das produções literárias de língua vernácula. Além disso, a Antologia Nacional realçava a
fase contemporânea da literatura nacional, isto é, os textos datados da época então vigente, o
século XIX. Razzini (2010) acredita que, por trás dessas inovações trazidas no compêndio
(recorte temporal e distinção entre autores portugueses e brasileiros), havia o reconhecimento da
autonomia da literatura brasileira contemporânea. Quanto ao uso didático da Antologia Nacional
no curso secundário, a autora pontua, entretanto, o seu vínculo com o ensino de um modelo
específico de língua e não prioritariamente com a formação literária:
A leitura da Antologia Nacional, porém, não era complemento do manual de história
literária, e sim ponto de partida para as atividades das aulas de Português: leitura,
recitação, estudo do vocabulário, da gramática normativa, da gramática histórica, dos
exercícios ortográficos, das análises “lexicológica” e “lógica”, da redação e composição,
enfim, para a aquisição da norma culta vigente. (RAZZINI, 2010, p. 54, grifos nossos)
Sendo assim, apesar do caráter inovador da seleção literária e da organização da Antologia
Nacional, Razzini (2010) alerta que ela não representou uma ruptura efetiva com a tradição do
ensino de português historicamente produzida no país, pois a leitura dos clássicos literários era
ainda encarada como o melhor caminho para a aprendizagem dos padrões socialmente
legitimados de uso da língua. A autora chega a afirmar que “[...] a literatura nacional era
atropelada nas aulas de Português pela excessiva preocupação gramatical [...]” (RAZZINI, 2010,
p. 55, grifo nosso). A tendência a cultivar o princípio da correção linguística, de certo modo,
também se mostrava presente na “defesa da vernaculidade” que guiava a escolha dos textos
integrantes da Antologia Nacional. Essa postura se traduzia na eleição do português europeu
como parâmetro de língua a ser preservada; dessa forma, a aproximação ou o distanciamento dos
padrões de escrita literária da língua portuguesa europeia era determinante na inclusão (ou não)
de um escritor brasileiro na mencionada seleta.
Convém destacar, ainda em relação ao uso didático da Antologia Nacional e das seletas
anteriormente adotadas, a possibilidade de se inferir o perfil do professor de português, conforme
51
o faz Soares (2002). De acordo com a autora, tratava-se de um profissional que, por ser estudioso
da língua e da literatura, acabava por também atuar no ensino, mesmo porque, até o início do
século XX, ainda não havia faculdades com cursos especificamente voltados para a formação
docente. Para manusear os compêndios literários utilizados nas aulas de português, era necessário
um profundo conhecimento teórico acerca da língua, na medida em que essas obras não traziam
consigo comentários sobre os textos apresentados, muito menos propostas de exercícios a serem
respondidos pelos alunos. O conteúdo das antologias restringia-se a uma compilação de textos
literários. Cabia ao professor de português escolher o percurso através do qual analisaria os textos
junto aos alunos e elaborar as atividades que seriam realizadas com base nesses textos. Vale
lembrar que, associadas às seletas literárias, as gramáticas também eram utilizadas como material
didático no ensino da língua portuguesa. Até os anos 1940, essas obras eram impressas em
volumes separados, competindo ao professor fazer a articulação que lhe conviesse.
A última fase analisada por Razzini (2010) refere-se ao período compreendido entre os
anos de 1931 e 1942. Inicia-se com duas mudanças resultantes da Reforma Francisco de Campos:
o desaparecimento definitivo dos Exames Preparatórios e, consequentemente, a exigência da
conclusão do curso secundário para o ingresso nos cursos superiores. A ausência da pressão que o
programa dos Exames exercia sobre o secundário, segundo Razzini (2010), fez com que os
currículos das disciplinas do ciclo fundamental (aquelas de estudo obrigatório – dentre as quais, o
português) se estabilizassem. Nesse contexto, a autora aponta que a literatura recuperou espaço
enquanto disciplina na grade curricular do ensino secundário, uma vez que seus conteúdos eram
cobrados nos exames de acesso aos cursos jurídicos. A literatura aparecia como disciplina no
chamado ciclo complementar, oferecido nos últimos dois anos do secundário e cuja
obrigatoriedade de estudo dependia do curso superior em que o aluno desejava entrar. Em 1942,
ela perdia sua condição de disciplina autônoma e era incorporada ao currículo de português,
como o é até os dias de hoje.
2.2.4 Repercussões dos estudos da linguística no ensino de língua portuguesa no Brasil:
mudanças e permanências
A despeito das alterações próprias de cada época quanto aos objetos de ensino
privilegiados e às orientações metodológicas assumidas, pode-se dizer que, de um modo geral,
52
até a década de 1960, o ensino de língua portuguesa pautado nos modelos tradicionais de escrita,
com vistas à aquisição da norma linguística de prestígio e ao domínio do aparato categorial e
terminológico da gramática tradicional, permaneceu em vigor no Brasil. Soares (2002) mostra
que, a partir dos anos 1950, algumas mudanças no contexto socioeconômico, institucional e
cultural do país influíram mais significativamente no ensino de língua materna, ainda que a força
da tradição gramatical tenha se mostrado quase continuamente presente. Em primeiro lugar,
houve uma transformação progressiva no perfil do alunado da escola brasileira, antes restrita às
elites e agora aberta aos filhos dos trabalhadores. Para atender a essa demanda, foi preciso fazer
um massivo recrutamento de professores para atuar na educação básica, o que parcialmente
explica a necessidade de um direcionamento mais definido por parte dos livros didáticos,
paulatinamente convertidos em instância de formação docente. A ampliação do espectro de
alunos com acesso à escola trouxe a esse espaço novas necessidades e expectativas de
aprendizagem, acarretando uma redefinição de sua função social e, consequentemente, das
disciplinas ensinadas. No caso da disciplina português, um ponto decisivo era que o modo como
o novo alunado se relacionava com a cultura escrita e com a língua não era o mesmo dos filhos
das elites, que chegavam à escola com razoável domínio da norma linguística de prestígio.
No tocante à articulação entre gramática e leitura, Soares (2002, p. 153, grifos da autora)
traz uma importante informação sobre esse período:
É então que gramática e texto, estudo sobre a língua e estudo da língua começam a
constituir realmente uma disciplina com um conteúdo articulado: ora é na gramática que
se vão buscar elementos para a compreensão e a interpretação do texto, ora é no texto
que se vão buscar estruturas linguísticas para a aprendizagem da gramática. Assim, nos
anos 1950 e 1960, ou se estuda a gramática a partir do texto ou se estuda o texto com os
instrumentos que a gramática oferece. (SOARES, 2002, p. 153, grifos da autora)
Essa constatação advém da análise de livros didáticos publicados ao longo dos anos 1950
e 1960, quando o que antes era gramática e antologia passa a integrar um único volume didático,
embora inicialmente a parte gramatical e a coletânea de textos viessem desmembradas no interior
do livro. É nessa época que começa a despontar o formato de livro didático que conhecemos hoje,
com divisão em unidades didáticas que propunham textos para estudo, abordagem de conteúdos
gramaticais e atividades pedagógicas (SOARES, 2002).
Não obstante a presença de texto e gramática em uma mesma unidade didática e a
decorrente articulação das propostas de trabalho pedagógico com ambos os elementos, a
abordagem do texto em geral estava subordinada ao estudo da gramática. Essa era a tendência
53
encontrada nos livros didáticos de então e refletia a perspectiva segundo a qual a língua era
ensinada: “[...] ensinar português era ensinar a conhecer/reconhecer o sistema linguístico, ou
apresentando e fazendo aprender a gramática da língua, ou usando textos para buscar neles
estruturas linguísticas que eram submetidas à análise gramatical” (SOARES, 1998, p. 55).
Acontecimento determinante na formação de professores e que causou impactos
definitivos nas orientações oficiais para o ensino de língua materna no Brasil foi a incorporação
da linguística às grades curriculares dos cursos de letras a partir da década de 1960. Entretanto, é
apenas duas décadas depois que esse fato começa a produzir efeitos visíveis na configuração da
disciplina português e nas práticas a ela vinculadas (SOARES, 2002).
Após o longo período em que as orientações oficiais para o ensino de língua materna no
país estiveram assentadas nos padrões gramaticais e nos cânones literários, houve um curto
intervalo de tempo em que as teorias da comunicação entraram para a escola: os anos 1970 e o
início dos anos 1980. Foi o único momento em que, de fato, se chegou a questionar a necessidade
de ensinar gramática na escola. Soares (1998) explica que essa inclinação utilitarista no ensino de
língua esteve intimamente atrelada ao contexto sociopolítico da época: o governo militar que
conduzia o país tinha um perfil de gestão desenvolvimentista baseado na expansão industrial.
Nesse panorama, a escola – e o ensino de língua portuguesa – ganha um perfil mais técnico:
agora, a formação para o trabalho era uma de suas principais finalidades, em consonância com a
demanda de industrialização imposta pelo regime que vigorava no país. A própria Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional então promulgada (LDB 5692/71) determinava que a
língua nacional na escola teria lugar de destaque “como instrumento de comunicação e como
expressão da cultura brasileira” (BRASIL apud SOARES, 1998, p. 57, grifo da autora). A
disciplina português chega, durante esse tempo, a mudar de nome: nas séries iniciais do primeiro
grau (correspondente ao atual ensino fundamental), passa a se chamar comunicação e expressão;
e nas séries finais, comunicação em língua portuguesa.
Os objetivos do ensino se modificam profundamente nesse período. Soares (2002, p. 154)
os caracteriza como pragmáticos e utilitários por buscarem “desenvolver e aperfeiçoar os
comportamentos do aluno como emissor e recebedor de mensagens, através da utilização e
compreensão de códigos diversos – verbais e não verbais”. Como se pode perceber, o processo de
seleção de textos a serem trabalhados na escola ganha novos critérios: no lugar das produções
literárias consagradas, priorizam-se os textos de presença mais marcante nas práticas cotidianas
54
de linguagem, tais como os jornalísticos, os publicitários e os humorísticos. Introduz-se um
enfoque considerável na oralidade e reduz-se ao mínimo a abordagem dos conteúdos gramaticais.
Razzini (2010) reconhece nos deslocamentos teórico-metodológicos desse período o declínio
definitivo da formação clássica humanista da escola secundária.
A segunda metade dos anos 1980 vê florescer um intenso movimento crítico contra o
ensino de língua portuguesa tal como ele vinha sendo praticado. Segundo Soares (1998), tal
mobilização adveio de diversos setores da sociedade (academia, mídia, professores da educação
básica, etc.), tanto daqueles que desejavam o retorno do ensino tradicional de português quanto
dos que ansiavam por uma renovação pedagógica. O que havia em comum entre eles era a
insatisfação com os resultados que a educação linguística escolar vinha produzindo entre as novas
gerações. Na análise da conjuntura sociopolítica e cultural envolvida nessa atmosfera de rejeição
ao ensino de português pautado numa concepção de língua como instrumento de comunicação,
Soares (1998, 2002) esclarece que ele se tornara incompatível com o momento de
redemocratização do país e com as teorias acadêmicas que vinham sendo elaboradas no campo da
linguística, recém-interessada em questões relacionadas ao ensino. Assim, a autora ressalta que as
contribuições da linguística constituem possivelmente o principal traço definidor dos novos
rumos que a disciplina português toma no Brasil dos anos 1980.
Dentre os diversos linguistas que advogavam pela renovação do ensino de língua no
Brasil e que, para tanto, procuravam validar suas propostas para os problemas educacionais com
base na divulgação de teorias científicas da área, constituiu-se o que Pietri (2003) chama de
“discurso da mudança”. O autor apresenta quatro pontos constitutivos da base desse novo
discurso, os quais afirmam a necessidade de:
i. considerar a diferença entre a língua da escola e a língua das camadas populares que
começavam a chegar à escola; ii. considerar a realidade da variação linguística e
respeitar a variedade do aluno; iii. relacionar ensino de linguagem e condições
socioeconômicas com o objetivo de produzir práticas pedagógicas democráticas e
transformadoras; iv. divulgar informações produzidas pela Linguística e outras ciências,
a fim de alterar as práticas pedagógicas existentes. (PIETRI, 2003, p. 80)
As produções acadêmicas que propagavam o “discurso da mudança”, no que tange ao
ensino da gramática, propõem uma reconstrução radical das práticas de ensino, tanto nos
objetivos de aprendizagem almejados quanto nas metodologias adotadas em sala de aula. Tudo
isso interferiria, claro, na definição dos próprios objetos a serem ensinados, decorrente, por sua
vez, das novas concepções de língua(gem) defendidas. É nesse contexto, inclusive, que João
55
Wanderley Geraldi (1997a [1984] e 1997b [1984]) propõe as práticas escolares de análise
linguística em substituição à abordagem tradicional da gramática. No capítulo seguinte,
discorreremos mais detidamente sobre os fundamentos básicos dessa proposta. Por ora, cabe
salientar que o “discurso da mudança” impulsionou um amplo debate nas instâncias educacionais
do país sobre a renovação do ensino de língua materna, tendo esse processo culminado na
oficialização de novas diretrizes para a disciplina português no Brasil, representadas sobretudo
pela publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) em 1998 e pela instituição do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) em 1996.
Apesar de ser possível perceber alguma indefinição quanto ao conceito de gramática
defendido como apropriado às novas recomendações para o ensino de língua materna e relativa
heterogeneidade teórica na normatização proposta nos PCN, esse documento constitui um
importante marco histórico no redimensionamento das práticas de ensino de português, pois se
assenta em contribuições dos estudos linguísticos e procura trazer uma visão ampliada acerca da
língua(gem), incentivando uma postura de reflexão e investigação por parte de professores e
alunos (MANINI, 2009). Em suas reflexões teóricas e sugestões metodológicas direcionadas ao
ensino, os PCN privilegiam os usos da língua em situações concretas de interação e a formação
do aluno para a cidadania (NEVES, 2010).
O PNLD veio, de certa maneira, legitimar por uma via prática as recomendações teórico-
metodológicas que os estudiosos vinham defendendo nas publicações acadêmicas e que, anos
depois, seriam sistematizadas na forma de parâmetros curriculares. É um programa do governo
federal cujas finalidades são a distribuição gratuita e a avaliação institucional dos livros didáticos
voltados para a educação básica. Fornece, assim, subsídios materiais para o trabalho pedagógico
do professor e traz possibilidades práticas de caminhos didáticos a serem desenvolvidos em sala
de aula. Tendo em vista que a dinâmica de avaliação do programa procura sempre incluir
critérios alinhados às perspectivas teóricas vigentes acerca do ensino, a tendência é que os livros
didáticos se aproximem paulatinamente da abordagem proposta nas práticas de análise
linguística, apesar de ainda revelarem certo apego à tradição gramatical. Na pesquisa de Manini
(2009), por exemplo, é possível encontrar a análise de três volumes didáticos com diferentes
encaminhamentos teórico-metodológicos quanto ao tratamento dos conhecimentos linguísticos:
um deles7 segue mais à risca os princípios do ensino tradicional de gramática, enfocando as
7 Projeto Araribá, de autoria coletiva (Editora Moderna), aprovado pelo PNLD 2008.
56
nomenclaturas e definições clássicas em detrimento das reflexões sobre os usos da língua, além
de dar preferência a uma metodologia transmissiva de ensino; as outras duas coleções8, com
maior ou menor grau de explicitude, baseiam-se numa perspectiva enunciativa de língua(gem)
para propor um tratamento dos aspectos linguístico-gramaticais predominantemente a partir de
textos concretos e de atividades que possibilitem operar sobre a língua, criar hipóteses acerca de
seu funcionamento e refletir sobre seus usos.
Passadas três décadas desde o início do debate no Brasil em torno de um ensino de língua
pautado em práticas sociais de linguagem e voltado para a formação do aluno enquanto ser que
interage verbalmente, certamente podemos dizer que algumas mudanças se operaram nas práticas
de ensino de português desenvolvidas na escola brasileira. Contudo, é até previsível, diante de
sua longa presença na história da disciplina, a constatação de que muitos laços permaneceram
atados com a tradição gramatical. Sabemos que múltiplos são os condicionantes que atuam na
construção das práticas docentes, e que, portanto, uma mudança dessa magnitude, que inclui a
elaboração de novos referenciais teórico-metodológicos para o ensino de língua, não ocorre de
forma instantânea, mas, pelo contrário, envolve uma complexa rede de agentes, contextos,
histórias de vida, saberes e identidades profissionais. Como explica Chervel (1990 [1988]), se é
verdade que o acesso dos professores às finalidades que se impõem à escola se dá por meio de
uma sofisticada tradição pedagógica e didática, também é fato que eles participam ativamente da
transformação das finalidades em ensino nos períodos de reconfiguração da disciplina:
As coisas se passam de forma diferente quando à escola são confiadas finalidades novas,
ou quando a evolução das finalidades desarranja o curso das disciplinas antigas. [...] De
um lado, os novos objetivos impostos pela conjuntura política ou pela renovação do
sistema educacional tornam-se objetos de declarações, claras e circunstanciadas. De
outro, cada docente é forçado a se lançar por sua própria conta em caminhos ainda não
trilhados, ou a experimentar as soluções que lhe são aconselhadas. (CHERVEL, 1990
[1988], p. 192-193)
Para se ter uma ideia da complexidade do processo que guia a renovação do ensino de
língua materna no contexto brasileiro, podemos observar os resultados de algumas pesquisas
empreendidas nas últimas décadas que atestam o lugar que a gramática tradicional ainda ocupa na
construção de recentes práticas de professores de português. Em Batista (1997), por exemplo,
encontramos o itinerário do estudo de caso que o autor realizou em 1988 acerca da atuação de
8 Linguagens do século XXI, de Heloísa Harue Takazaki (Editora IBEP), e Português: uma proposta para o
letramento, de Magda Soares (Editora Moderna) – ambos aprovados pelo PNLD 2008.
57
uma professora da rede estadual de Minas Gerais numa turma de quinta série (atual sexto ano).
Conforme indicam Magda Soares no prefácio de abertura e o próprio Batista (1997) no título que
atribui à introdução da obra, uma das perguntas centrais da investigação era: “Quando se ensina
Português, o que se ensina?”. Mais especificamente, o objetivo da pesquisa era “[...] descrever os
saberes transmitidos na aula de Português, explorando as relações entre esses saberes
transmitidos, a atividade mesma de transmissão [...] e as condições nas quais se realiza essa
atividade” (BATISTA, 1997, p. 8). Nessa busca descritiva, Batista (1997) procurou privilegiar o
olhar para os elementos da organização do trabalho pedagógico, a saber: a demarcação do tempo
e do espaço escolares, as relações sociais que se estabelecem na escola e as formas de avaliação e
de exercício. Assim, embora se apoie em pressupostos das ciências linguísticas para entender a
natureza da atividade transmissiva (ou, ainda, em suas palavras, da produção discursiva) na aula
de português, Batista (1997) considera que uma compreensão satisfatória do funcionamento da
prática do professor demanda que o pesquisador vá além das teorias acerca do objeto ensinado e
tente detectar os demais elementos condicionantes da atuação docente em sala de aula. Ele
argumenta, inclusive, que a definição do objeto de ensino está intrinsecamente associada a esses
fatores, ou seja, que “a especificidade da escola e de suas condições conforma a natureza dos
saberes que na aula de Português se transmitem” (BATISTA, 1997, p. 8).
A extensa análise que Batista (1997) desenvolveu a respeito da prática da professora
participante da pesquisa o levou a perceber que o objeto privilegiado de ensino na aula de
português era a disciplina gramatical. Logo, ensinar língua portuguesa era sobretudo ensinar
gramática. Segundo o autor, fora dessa esfera, os saberes ensinados estavam vinculados aos usos
da língua e apresentavam caráter residual em relação ao trabalho discursivo que materializava a
aula de português. Esse resíduo, no entanto, não constituía um outro objeto. Sua abordagem,
noutro caminho, convergia para o ensino de aspectos da tradição gramatical.
Em ambos o casos, a transmissão dos saberes escolares se organizava em torno de duas
instâncias fundamentais e interdependentes: a instância da aula e a instância do exercício. Era
principalmente nesta última que o aluno estabelecia uma relação com o objeto estudado na
disciplina, enquanto que a instância da aula era marcada pela ação corretiva do professor sobre
esse objeto. Partindo desse ponto de vista, Batista (1997) esclarece que, a despeito da ênfase na
gramática tradicional, a expectativa de aprendizagem que a escola deposita no aluno como
resultado do ensino de língua materna não focaliza o domínio da gramática como um todo, mas,
58
em especial, da dimensão prescritiva desse saber. Tal constatação se justifica no fato de que,
confrontados ao componente descritivo da disciplina gramatical, o uso de conhecimentos e
habilidades vinculados à prescrição era demandado com maior urgência no desenrolar da aula. É
nesse sentido que o autor afirma, na introdução de seu trabalho, que “aquilo que se ensina não são
as próprias coisas, (a língua ou a história mesmas), mas, antes, um conjunto de conhecimentos
sobre as coisas ou um modo, dentre outros possíveis, de se relacionar com eles” (BATISTA,
1997, p. 3, grifo do autor). Era, portanto, a regulação dos usos linguísticos que conduzia a relação
do objeto estudado nas aulas de português (a gramática) com os alunos aprendizes.
Em consonância com o propósito inicial expresso por Batista (1997) de compreender o
funcionamento da aula de português, muito mais do que julgá-la, o autor procura encontrar as
razões que explicam seu modo de operar. Sua interpretação é de que o objeto de ensino a ser
priorizado na disciplina é definido em paralelo com a medida segundo a qual ele é “ensinável”,
ou seja, com a sua adequação às “condições escolares de transmissão” (BATISTA, 1997). No
excerto abaixo, é possível compreender como o autor entende a natureza dessas circunstâncias e
por que ele acredita serem os saberes vinculados à tradição gramatical aqueles que mais se
adaptam a elas, se contrastados com os demais saberes que integram a disciplina português:
Trata-se, por um lado, de um conjunto de conhecimentos parceláveis e passíveis de se
organizarem em séries progressivas, favorecendo, portanto, a construção do tempo
escolar através de sua marcação pela realização de tarefas e pela aquisição de parcelas de
conhecimentos [...]. Mas trata-se ainda de um conjunto de saberes sobre a língua
independentes de situações de uso da língua: são um sistema de conteúdos abstratos que,
procurando descrever e orientar qualquer uso da língua e independendo, por exemplo,
dos textos em que eles se manifestam, podem ser tomados, simultaneamente, como
objeto de ensino e objeto de discurso em sala de aula. São, por excelência, “conteúdos”
e, portanto, saberes passíveis de serem continuamente retomados através de sínteses.
Consequentemente, passíveis de serem expostos, avaliados, mensurados, distribuídos,
em suma, passíveis de uma transmissão disciplinada e uma acumulação progressiva.
(BATISTA, 1997, p. 119-120)
Portanto, a presença robusta da tradição gramatical na educação linguística escolar não é,
como já vínhamos esforçando-nos em mostrar, gratuita ou ocasional. Não é fruto da mera opção
voluntária do professor, cuja decisão se restringiria a aderir a uma tradição pedagógica e resistir à
renovação do ensino ou implementar as contínuas inovações indicadas pelas produções
acadêmicas e pelos documentos normativos (aquilo que Chartier (2000a [1995]) chama de
“concepção voluntarista da prática”). Já vimos que a constituição da disciplina português, como
as demais disciplinas escolares, se dá no interior de uma imbricada teia de elementos contextuais
59
(tanto as condições sociais, políticas e culturais do tempo histórico vigente quanto os fatores
internos à própria construção do conhecimento). As reflexões de Batista (1997) elucidam o papel
da cultura escolar na delimitação dos saberes ensinados no âmbito de uma disciplina. A natureza
dos conteúdos escolares vinculados à tradição gramatical, para ele, coincide com a natureza da
transmissão de saberes empreendida na escola, na medida em que viabiliza a organização seriada
e cumulativa do trabalho pedagógico, tal qual veio sendo historicamente produzido.
Por evidenciar a permanência da gramática tradicional nas escolas brasileiras dos
primeiros anos após a proposição de novos encaminhamentos para o ensino de língua materna na
educação básica, a pesquisa de Neves (1990) merece também algumas breves considerações. A
autora aplicou um questionário e entrevistou seis grupos de professores de língua portuguesa que,
à época, atuavam em turmas de primeiro e segundo graus (correspondentes aos atuais níveis
fundamental e médio) da rede estadual de São Paulo. Foram cento e setenta o total de
profissionais que participaram da pesquisa. Um dos objetivos de Neves (1990) era caracterizar o
tratamento que os professores conferiam à gramática quanto às finalidades de seu ensino, quanto
às suas bases e à sua natureza e quanto ao desenvolvimento das atividades que propunham.
Coletadas as respostas, Neves (1990) agrupou-as de acordo com categorias diversas acerca do
ensino de gramática, expondo o quantitativo de professores que haviam associado a essas
categorias suas concepções teóricas e seus relatos de prática. As classificações e os números
resultantes da pesquisa revelaram importantes fatos a respeito das apropriações que os
professores vinham fazendo das críticas ao ensino de língua que a eles chegavam por cursos
então promovidos pela Secretaria de Educação do estado e orientados por especialistas da
academia.
Os professores foram questionados acerca dos objetivos do ensino de gramática e acerca
da “utilidade” da gramática ensinada na escola. Em resposta à primeira questão, metade dos
docentes disse que via na gramática um meio de aprimorar o desempenho linguístico do aluno, no
que tange à expressão, às habilidades de comunicação e à compreensão. Trinta por cento dos
entrevistados faziam referência a objetivos ligados à normatividade, dentre eles a correção
linguística, o conhecimento das regras gramaticais e o domínio da variedade de prestígio da
língua. Os demais professores, vinte por cento do total de participantes, indicavam para o ensino
de gramática o que Neves (1990) chamou de “finalidades teóricas”, tais como a ampliação/
60
sistematização do conhecimento da língua, a aquisição de estruturas linguísticas e a assimilação
de regularidades da língua.
Percebe-se, desde já, que parecia haver no discurso do professor um vínculo entre
gramática e usos da língua (escrita, fala e leitura), ainda que a preocupação com a prescrição se
mostrasse relevante para uma parcela significativa de entrevistados. Nas respostas à segunda
questão – sobre a serventia da gramática ensinada na escola –, as alusões a habilidades de leitura
praticamente desaparecem, mas continua predominando a melhoria do desempenho linguístico
oral e escrito como efeito decorrente da aprendizagem da gramática. Curiosamente, entretanto, a
alta frequência com que os professores apontavam a relação entre gramática e usos da língua não
implicou que eles priorizassem esse diálogo na definição dos objetos estudados nas aulas, na
metodologia de ensino desenvolvida e na proposição de atividades vinculadas à abordagem da
gramática.
De fato, a incidência de conteúdos e exercícios normativos era relativamente baixa, porém
os professores direcionavam sua prática de ensino de gramática ao reconhecimento e à
classificação de entidades da língua nos moldes da tradição gramatical, privilegiando o trabalho
com as classes de palavras e as funções sintáticas (juntas, as classes de palavras e as funções
sintáticas representavam mais de setenta por cento dos exercícios que os professores afirmavam
aplicar com maior recorrência em sala de aula). Quanto aos procedimentos didáticos, os docentes
descreviam suas aulas por meio de uma sequência de ações que, a despeito de certa variação,
dava relevo à exposição prévia de definições gramaticais para dar suporte ao reconhecimento e à
classificação demandados aos alunos. Em geral, o caminho didático da aula movia-se da
explicação para a exercitação. Quando presente, a leitura de um texto teórico ou do livro didático
poderia vir antes ou depois da explicação, mas sempre era anterior os exercícios.
Também a forma como o trabalho com o texto era contemplado no ensino de gramática
destoava da relação entre gramática e usos da língua (ou desempenho linguístico) apontada pelos
professores que foram sujeitos da pesquisa de Neves (1990). Todos os entrevistados revelaram
proceder a uma compartimentação entre: redação; leitura e interpretação; e gramática. O
isolamento do ensino da gramática frente aos demais eixos de ensino, segundo a autora,
explicava-se porque a gramática era tida pelos professores como atividade normativa e/ou como
atividade descritiva. Daí, a exposição de regras do bom uso, no primeiro caso, e principalmente a
descrição das entidades da língua (com foco na taxionomia gramatical), no segundo caso. Neves
61
(1990) assinala que, apesar de nenhum professor ter se expressado explicitamente nesses termos,
todos eles se valiam exclusivamente da exercitação da metalinguagem para ensinar gramática e
negligenciavam na prática a reflexão e a operação sobre a linguagem. Havia, de acordo com a
autora, uma busca generalizada de renovar o ensino de gramática tradicional, como reação às
recentes críticas que o viés normativo desse ensino vinha enfrentando no meio acadêmico e às
quais os professores tinham acesso nos encontros de formação continuada. O movimento de
inovação promovido pelos profissionais que participaram da pesquisa de Neves (1990),
entretanto, limitava-se à substituição da prescrição gramatical pela análise descritiva das classes
de palavras e das funções sintáticas. Isso porque, mesmo quando eram trazidos exemplos
concretos ou mesmo textos para a aula de gramática (atitude que parecia ser encarada como
inovadora pelos professores), as finalidades de ensino permaneciam as mesmas: identificar e
categorizar entidades gramaticais. O texto era, então, utilizado como pretexto para o exercício da
metalinguagem, como avalia Neves (1990), tendo em vista que, ao articular gramática e leitura,
os professores apenas retiravam dos textos excertos ou expressões que possibilitassem
exemplificar as análises taxionômicas em torno das quais o ensino de gramática girava.
Contemplam-se, na verdade, ou as atividades de operação com a linguagem (redação,
leitura, interpretação) ou as atividades de sistematização gramatical. Não se observa
qualquer reserva de espaço para a reflexão sobre os procedimentos em uso, sobre o
modo de relacionamento das unidades da língua, sobre as relações mútuas entre
diferentes enunciados, sobre o propósito dos textos, sobre a relação entre textos e seus
produtores e/ou receptores, etc. Tudo se passa como se o aluno estivesse na sala de aula
para uma de duas atividades totalmente apartadas: 1) exercitar a linguagem estruturando/
representando/comunicando experiências, ou no outro polo, interpretando experiências
comunicadas (redação e leitura com interpretação) e 2) tomar conhecimento do quadro
de entidades da língua, especialmente classes, subclasses e funções, e tomar
conhecimento do que se considera bom uso da língua (gramática). (NEVES, 1990, p. 41-
42, grifos nossos)
As pesquisas que vêm sendo feitas mais recentemente, após a virada do século XXI,
acerca do tratamento didático dos conhecimentos linguístico-gramaticais na escola ou do que
hoje se denominam práticas de análise linguística mostram que o perfil do ensino (e do professor)
de língua portuguesa no Brasil vem se modificando aos poucos. Na construção das novas
práticas, os professores fazem escolhas didáticas e pedagógicas em conformidade com as
circunstâncias concretas do aqui e agora da sala de aula, isto é, com aquilo que consideram
satisfatório e racionalmente realizável diante das necessidades que encontram no dia a dia do
fazer docente (cf. CHARTIER, 2000a [1995]). Assim, no que diz respeito aos conhecimentos
62
linguístico-gramaticais, ora se aproximam da abordagem tradicional com a qual conviveram ao
longo de sua vida escolar e no interior da qual em alguma medida constituíram-se professores de
português, ora caminham na direção proposta pelas produções acadêmicas e pelos documentos
curriculares publicados dos anos 1980 para cá – distintos entre si, mas todos marcados pela
rejeição ao ensino da metalinguagem gramatical como uma finalidade em si mesma e pelo foco
na produção de sentidos inerente à natureza dos textos que circulam socialmente. Parece estar
havendo nos últimos anos um esforço coletivo em se adaptar às novas concepções de língua(gem)
e ensino vigentes, bem como às novas expectativas de aprendizagem que vêm sendo difundidas.
São exemplos dessas pesquisas os trabalhos de: Bastos, Lima e Santos (2012), Tenório (2013) e
Duarte (2014). Os dados a eles referentes foram incorporados ao desenvolvimento do terceiro
capítulo teórico desta dissertação, na medida em que dão visibilidade aos contornos do atual
cenário do ensino de língua portuguesa no Brasil, sobretudo no que concerne ao
(re)posicionamento dos conteúdos vinculados à tradição gramatical e à constituição de (novos)
modos de se refletir na escola sobre o funcionamento da língua(gem).
2.3 SÍNTESE DO CAPÍTULO
Ao longo deste segundo capítulo teórico, buscamos elaborar um histórico da constituição
da disciplina português no Brasil, tomando como ponto de partida os momentos que antecederam
o ensino de língua portuguesa no país (período colonial), passando pela corporificação oficial de
um currículo escolar representada pelo ensino secundário do Colégio Pedro II (império e início
da república), até chegar à época em que as ciências linguísticas começaram a produzir impactos
efetivos na configuração da disciplina e nas práticas de ensino a ela vinculadas (fase que perdura
até o momento presente). Nesse percurso, procuramos enfatizar o lugar que a gramática
tradicional ocupou (e ainda ocupa) na disciplina e no modo de se conceber o ensino de língua
materna (os objetivos de aprendizagem, os conteúdos privilegiados, as ideias linguísticas e
pedagógicas subjacentes, as metodologias adotadas, os materiais didáticos utilizados, os saberes
teóricos demandados pela formação docente). Antecipamos também alguns elementos do
movimento de renovação pedagógica que os especialistas acadêmicos e os documentos
curriculares têm proposto nas últimas décadas para a abordagem escolar dos conhecimentos
linguístico-gramaticais: as chamadas práticas de análise linguística. Além disso, impulsionados
63
pelos objetivos delimitados para esta pesquisa, atentamos, sempre que possível, para a relação
que se veio estabelecendo entre ensino de gramática e práticas escolares de leitura.
No retrospecto histórico que expusemos, ficou clara a presença constante da tradição
gramatical na constituição da disciplina português no Brasil, desde os parâmetros iniciais de
formação humanística clássica até as tentativas de reconstrução mais recentes do ensino de língua
materna empreendidas pelos professores da educação básica. É claro que, no decorrer de todo
esse tempo, os contornos dessa presença iam se modificando em meio às inovações didáticas e
pedagógicas promovidas e/ou propostas no contexto educacional brasileiro, como esforçamo-nos
em evidenciar no desenvolvimento do capítulo. Tanto a natureza das inovações sugeridas quanto
a medida de sua concretização estiveram sempre submetidas às circunstâncias sociopolíticas e
culturais de sua proposição e de sua implementação, aos imperativos da cultura escolar, à
identidade profissional do professor de português, ao perfil do alunado e às condições materiais e
ideológicas da instituição escola.
Quanto ao diálogo entre o ensino de gramática e as práticas escolares de leitura,
mostramos que historicamente ele só ocorria na medida em que os textos lidos em sala de aula
possibilitavam a exercitação da metalinguagem gramatical estudada e forneciam um modelo de
boa escrita conforme os padrões da norma socialmente prestigiada. Embora essa forma de
“articulação” possa ser verificada em alguma proporção até os dias de hoje nas práticas de ensino
e nos livros didáticos, ela tem perdido a sua força num contexto em que as diretrizes oficiais para
o ensino de português advogam por um caminho didático que privilegie a produção de sentidos
decorrente da mobilização dos recursos linguísticos à disposição do usuário da língua. Já se
encontra bastante difundido entre os professores da educação básica um discurso contrário à
utilização do texto como mero pretexto para o ensino de gramática tradicional. Isso pode não ter
significado uma transformação imediata e radical das práticas de ensino, mas certamente este
início de século tem assistido a uma lenta (re)construção de novas maneiras de conduzir a
aprendizagem da língua na escola, incluindo a abordagem dos textos apresentados à leitura e a
mediação de reflexões sobre o funcionamento da língua. Nas tentativas de redimensionar o
ensino com base nos novos referenciais teóricos, ainda que recorram a conhecimentos e práticas
que tradicionalmente constituíram a sua formação, os professores de português parecem procurar
se aproximar de uma nova perspectiva de ensino e de língua. É sobre esse contexto atual que
versa o próximo capítulo desta dissertação.
64
3 ANÁLISE LINGUÍSTICA E LEITURA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL NO ENSINO DE
LÍNGUA PORTUGUESA
Já mencionamos na introdução e no segundo capítulo desta dissertação que foi João
Wanderley Geraldi o linguista responsável pela proposição das práticas de análise linguística no
ensino de língua portuguesa das escolas brasileiras. Também apresentamos de forma bastante
sintética alguns elementos de sua proposta no que diz respeito ao deslocamento que tencionava
promover em relação ao ensino tradicional de gramática. Essa mudança – de grandes proporções
se levarmos em consideração o lugar da tradição gramatical na constituição da disciplina
português no Brasil ao longo do histórico que regatamos no capítulo anterior – estava atrelada a
um deslocamento conceitual ainda mais amplo: uma nova forma de compreender a natureza da
língua(gem) e sua relação com o sujeito apontava para novos objetivos de aprendizagem e,
consequentemente, para novos objetos de ensino e novas abordagens metodológicas na sala de
aula.
Neste capítulo, procuramos apresentar de forma mais detalhada as ideias de Geraldi
quanto ao redimensionamento do ensino de gramática, inserido, por sua vez, em um novo projeto
de ensino de língua materna. Embora tenhamos recorrido também a outros autores que refletem
sobre análise linguística e ensino de português, optamos por enfocar a obra de Geraldi devido ao
seu pioneirismo na proposição de um ensino de língua filiado a uma perspectiva
sociointeracionista de linguagem e, principalmente, na elaboração de um conjunto de diretrizes
teóricas e práticas que pudesse transplantar o enfoque normativo-descritivo predominante no
ensino de gramática. Dado o propósito central desta pesquisa, trazemos à discussão também
questões relativas à leitura e ao seu ensino, sobretudo sob a ótica de Geraldi. Entretanto, como
vimos procedendo até o momento, os conceitos e as reflexões que dizem respeito ao eixo da
leitura serão abordados apenas na medida de sua articulação com o eixo da análise linguística,
pois é este o objeto de nossa investigação nas práticas dos professores que acompanhamos ao
longo do trabalho de campo.
Além da apresentação dos fundamentos basilares da análise linguística escolar e do
diálogo que essa prática pode estabelecer com a leitura, também incorporamos ao capítulo
resultados de pesquisas recentes cujas temáticas vinculam-se ao contexto atual do ensino de
gramática e/ou das práticas de análise linguística desenvolvidas por professores de língua
65
materna na educação básica. Conforme temos destacado no decorrer desta dissertação,
reconhecemos a complexidade dos fatores que incidem sobre a construção da prática docente, de
forma alguma determinada apenas pela produção acadêmica acerca do ensino ou pelos caminhos
teórico-metodológicos apontados pelos documentos curriculares. Embora a identificação de cada
um desses condicionantes esteja além dos limites desta pesquisa, acreditamos que é preciso,
como Julia (2001), não superestimar os efeitos concretos dos textos normativos. Se eles têm uma
repercussão importante na transformação das práticas efetivas, é também verdade que a simples
divulgação das ideias contidas nesses textos não é suficiente para alterar a atuação dos
professores em sala de aula. Além do campo da formação teórica, entram em jogo identidades
profissionais, circunstâncias concretas de ensino (o aqui e agora da sala de aula, o perfil dos
alunos, as condições materiais da escola, as cobranças dos pais, etc.), contexto sócio-histórico
mais amplo, formação docente, dentre outros aspectos reguladores das práticas de ensino. Assim,
os dados empíricos dos estudos selecionados podem nos dar uma ideia mais fidedigna das
mudanças (e das permanências) que vêm sendo de fato empreendidas nas práticas dos professores
de língua portuguesa. Mais especificamente, tais resultados ajudam a compreender o modo como
esses profissionais vêm se apropriando da proposta da análise linguística e como vêm
executando-a nas escolas brasileiras.
3.1 ENUNCIAÇÃO E INTERAÇÃO VERBAL: A CONCEPÇÃO BAKHTINIANA DE
LINGUAGEM
A proposta de João Wanderley Geraldi para o ensino de língua materna foi inovadora
porque, antes de tudo, decorria de uma nova concepção de linguagem que vinha se difundindo no
âmbito dos estudos linguísticos no Brasil, sobretudo na chamada linguística da enunciação: a
noção de que a língua é mais do que um código do qual o sujeito passivamente se apropria para
dele fazer uso segundo suas necessidades, a noção de que o sistema linguístico não passa de uma
abstração teórica que não explica por si só o funcionamento concreto da língua, a noção de que a
língua(gem) é produzida ininterruptamente num contínuo evolutivo, a noção de que a
língua(gem) é fruto das interações sociais entre sujeitos históricos. Era essa a concepção que o
filósofo russo Mikhail Bakhtin tinha acerca da língua(gem). Embora suas reflexões datem da
primeira metade do século XX, foi apenas entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970
66
que o pensamento de Bakhtin começou a circular entre os acadêmicos brasileiros. A reflexão
acerca do ensino formal de língua materna não esteve, em momento algum, presente na esfera de
interesse do filósofo russo. Entretanto, o modo como ele concebia a língua(gem) – sua natureza e
seu funcionamento – trouxe importantes contribuições para o debate sobre a aprendizagem e
sobre o ensino de língua materna em todas as fases de escolarização. Dentre os diversos
estudiosos sobre os quais as ideias de Bakhtin exerceram forte influência está João Wanderley
Geraldi. Por ter sido determinante para as rupturas que são sugeridas ao ensino tradicional de
língua materna no Brasil (centrado na descrição do sistema linguístico com base nas categorias da
tradição gramatical greco-latina), a concepção bakhtiniana de linguagem é o primeiro aspecto ao
qual optamos por dar relevo neste início de capítulo.
Para construir uma nova concepção de linguagem, Bakhtin (2014 [1929]) parte da
negação do modo como duas grandes correntes do pensamento filosófico-linguístico de então
compreendiam a língua(gem) e traçavam diretrizes metodológicas para o seu estudo. Já numa
atitude de crítica, denominou-as “subjetivismo idealista” e “objetivismo abstrato”. Em ambos os
casos, o autor julgava que o componente ideológico da linguagem escapava aos estudos
linguísticos. Os principais representantes das duas tendências criticadas por Bakhtin (2014
[1929]) eram respectivamente o fundador da linguística moderna Ferdinand de Saussure e o
linguista alemão Wilhelm Humboldt.
Em linhas gerais, Bakhtin (2014 [1929]) apresenta o subjetivismo idealista (ou
individualista) como uma orientação teórica que vê os atos individuais de fala como a
materialização da língua, que, por sua vez, seria uma atividade de criação centrada na atividade
mental do sujeito. Nesse sentido, a criatividade linguística estaria submetida às leis da psicologia
individual. Já o objetivismo abstrato, segundo o autor, vê a língua como um sistema fechado e
imutável de formas linguísticas, imune aos sujeitos (a quem cabe se apropriar das leis do sistema
para dele fazer uso) e aos valores ideológicos. A fala, nesse contexto, é explicada pela ação
individual e, por isso mesmo, apresenta variações ou mesmo “deformações” em relação às formas
normativas que compõem o sistema. Ao passo que o subjetivismo idealista enfatizava a unicidade
de cada ato de fala (característica que evidenciaria o potencial criativo da atividade mental do
indivíduo), o objetivismo abstrato enfocava os traços normativos (fonéticos, lexicais e
gramaticais) reiteráveis do sistema (aqueles que, por se repetirem nas enunciações, garantiam a
unidade da língua e permitiam que os indivíduos de uma mesma comunidade linguística
67
compreendessem uns aos outros). Nas palavras de Bakhtin (2014 [1929], p. 79): “Enquanto que,
para a primeira orientação, a língua constitui um fluxo ininterrupto de atos de fala, onde nada
permanece estável, nada conserva sua identidade, para a segunda orientação a língua é um arco-
íris imóvel que domina este fluxo”.
Bakhtin (2014 [1929]) refuta o objetivismo abstrato saussuriano ao situar a língua numa
corrente evolutiva ininterrupta e ao contestar categoricamente tanto a existência objetiva de um
sistema sincrônico da língua em qualquer momento da história quanto a utilização que o falante
faria desse aparato teórico para comunicar-se com outros falantes.
O que importa não é o aspecto da forma linguística que, em qualquer caso em que esta é
utilizada, permanece sempre idêntico. Não; para o locutor o que importa é aquilo que
permite que a forma linguística figure num dado contexto, aquilo que a torna um signo
adequado às condições de uma situação concreta dada. Para o locutor, a forma
linguística não tem importância enquanto signo estável e sempre igual a si mesmo, mas
somente enquanto signo sempre variável e flexível. Este é o ponto de vista do locutor.
(BAKHTIN, 2014 [1929], p. 96)
Também para o interlocutor que descodifica uma dada enunciação, a essência da
linguagem vai além do reconhecimento de uma forma linguística familiar, em conformidade à
norma socialmente convencionada. Também para o interlocutor interessa o caráter flexível e de
novidade da enunciação, pois, para compreendê-la, ele precisará localizá-la num contexto
concreto preciso e, nesse ínterim, construir uma significação. Portanto, para Bakhtin (2014
[1929], p. 98, grifo nosso), “[...] na prática viva da língua, a consciência linguística do locutor e
do receptor nada tem a ver com um sistema abstrato de formas normativas, mas apenas com a
linguagem no sentido de um conjunto de contextos possíveis de uso de cada forma particular”. O
filósofo russo defende que o sistema linguístico com o qual o objetivismo abstrato opera só pode
embasar a compreensão e a explicação da estrutura das línguas mortas, aquelas cuja evolução foi
interrompida e cuja aprendizagem pode partir de um recorte de fato estático.
Bakhtin (2014 [1929]) alerta para a impossibilidade de se separar a língua de seu fluxo
evolutivo contínuo, pois é justamente nesse processo que ela perdura com o passar das gerações.
Os sujeitos falantes não se apropriam da língua como um artefato pronto e acabado; não é pela
transmissão de formas fixas a serem utilizadas que o indivíduo “adquire” a linguagem. Noutra
via, o sujeito e a linguagem estão intrinsecamente entrelaçados, um quase como que sendo uma
extensão do outro, de modo que a aprendizagem da língua se dá, segundo o autor, à medida que o
sujeito “mergulha” na corrente da comunicação verbal. É interagindo com o outro e fazendo uso
68
da língua que o sujeito de linguagem se constitui enquanto tal e, ao mesmo tempo, vai
constituindo a língua em seu incessante fluxo evolutivo.
Quanto ao subjetivismo idealista, a principal contestação que Bakhtin (2014 [1929], p.
116, grifo do autor) lhe faz é propor uma inversão na relação entre atividade mental e expressão:
“Não é atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza
a atividade mental, que a modela e determina sua orientação”. Essa afirmação se justifica pelo
fato de Bakhtin (2014 [1929]) explicar a expressão por meio da enunciação, ou a forma como a
linguagem se materializa. A própria natureza da enunciação – em especial, seu inevitável
direcionamento para o outro e sua dependência da situação imediata concreta em que ocorre e do
contexto social amplo que o indivíduo integra – explica a exterioridade do centro organizador da
expressão do indivíduo. Assim, “a estrutura da enunciação e da atividade mental a exprimir são
de natureza social” (BAKHTIN, 2014 [1929], p. 126), não estando nenhuma das duas, portanto,
sujeitas às leis da psicologia individual tal como alegavam os adeptos do subjetivismo idealista.
Outro conceito-chave intimamente ligado à enunciação e importante para se entender o
pensamento bakhtiniano acerca da língua(gem) é a interação verbal. Na visão do autor, é esse
fenômeno social que traduz a realidade essencial da língua. Através dele, o sujeito se constitui,
constitui a linguagem e é por ela constituído. A interação verbal faz mover o fluxo contínuo de
evolução linguística, ou seja, dá vida à linguagem e faz emergir uma flexibilidade de sentidos
sem a qual a língua não se concretiza. Bakhtin (2014 [1929]) elege a enunciação como unidade
real da língua e aponta como uma lacuna da linguística de então o fato de suas análises operarem
com base na segmentação do discurso em unidades mínimas e não ultrapassarem o nível dos
constituintes imediatos. Essa unidade da cadeia verbal só deixa de ser mera forma para constituir
um todo significativo concreto na interação entre sujeitos falantes de uma língua. Por isso, deve
ser analisada em função de sua natureza social: dos interlocutores envolvidos, da situação precisa
no interior da qual a interação acontece e dos aspectos extralinguísticos que determinam a
estrutura da enunciação.
A plasticidade com que o signo linguístico se apresenta à consciência do sujeito falante
não implica uma absoluta indeterminação da linguagem. As formas linguísticas não representam,
a cada nova enunciação, o nascimento de um sentido integralmente original, sem vínculo algum
com os usos que lhes precederam e com aqueles que estão por vir. Uma constatação como essa
acarretaria o apagamento da linguagem, justamente nos elementos que fazem dela linguagem: o
69
seu intrínseco inacabamento e a sua dinâmica de construção contínua, a sua natureza histórica e
ideológica, a sua inevitável procedência das relações sociais e da interação verbal. Nas palavras
de Bakhtin (2014 [1929], p. 101): “Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é
uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo na cadeia dos atos de
fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com
as reações ativas da compreensão, antecipa-as.”.
O modo como o autor descreve e conceitua o processo de compreensão da linguagem por
parte dos sujeitos traz importantes esclarecimentos acerca de como estabilidade e novidade das
formas linguísticas se entrelaçam na produção de sentidos. Compreender uma enunciação, na
perspectiva bakhtiniana, é sempre posicionar-se diante do que foi verbalizado. Como a
enunciação provém sempre de alguém e dirige-se sempre a alguém, o processo de compreensão
sempre implica estabelecer com o outro um diálogo (não apenas nas interações face a face, mas
em toda e qualquer ação de linguagem). Nesse diálogo, forçosamente cruzam-se as palavras do
locutor e as contrapalavras do interlocutor. Bakhtin (2014 [1929], p. 137) acredita que “quanto
mais numerosas e substanciais forem [as nossas contrapalavras], mais profunda e real é a nossa
compreensão”. Assim, tanto para enunciar quanto para compreender, o indivíduo assume um
papel ativo no trato com a linguagem, porque está sempre produzindo réplicas ao dizer do outro
(ao dito ou ao que se presume dizer na compreensão). Nem a língua está previamente pronta para
ser usada pelo locutor, nem a enunciação é transparente à compreensão do interlocutor. Ambos os
sujeitos comprometem-se um com o outro e atuam na produção de sentidos para concretizar o
processo interativo que o uso da língua e a relação com o outro demandam. Por isso mesmo,
constituem-se como interlocutores um em função do outro, em meio às pressões do contexto
social mais amplo e das circunstâncias imediatas da enunciação.
Para esmiuçar o processo de compreensão da linguagem pelos sujeitos, Bakhtin (2014
[1929]) estabelece uma distinção conceitual bastante elucidativa: trata-se da diferença entre tema
e significação. Eles se interconectam de tal maneira que um não acontece sem o outro. O
desmembramento ao qual recorre o autor tem, portanto, finalidades apenas teóricas. O tema é o
sentido da enunciação completa. Nele, prevalece o seu caráter concreto, pois refere-se ao sentido
particular que a enunciação assume no instante histórico em que ela acontece. Noutras palavras, o
tema da enunciação ressalta aquilo que nela há de único e não reiterável. É determinado pelas
70
formas linguísticas (palavras, formas morfológicas e sintáticas, sons, entoações) e pelos
elementos não verbais da situação (BAKHTIN, 2014 [1929]).
Como já anunciamos anteriormente, apesar da flexibilidade do signo linguístico, as
enunciações não perdem, a cada nova ocorrência, suas raízes com o fluxo histórico da língua. É
por essa razão que Bakhtin (2014 [1929]) identifica na enunciação, além de um tema, uma
significação. A significação é parte do tema e diz respeito aos “elementos da enunciação que são
reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos” (BAKHTIN, 2014 [1929], p. 134, grifo do
autor). Diferentemente do tema, a significação não tem existência concreta; é composta, pelo
contrário, de elementos abstratos instituídos por uma convenção. Consiste, ainda assim, em
componente essencial da enunciação, pois a concretude do tema depende do aparato técnico
fornecido pela significação. Bakhtin (2014 [1929]) aponta para uma relação de profunda
interdependência entre o tema e a significação na produção de sentidos de uma enunciação, de
modo a não haver condições para se determinarem fronteiras precisas entre um e outro. Explica o
autor que compreender a significação de uma palavra, por exemplo, demanda que o interlocutor a
localize no interior de um tema, isto é, relacione a significação ao todo da enunciação. Da mesma
forma, a concretude e a particularidade do tema de uma dada enunciação precisam da estabilidade
dos elementos da significação para produzir sentido sem romper o necessário encadeamento com
as enunciações pregressas e futuras. O exemplo abaixo, construído por Bakhtin (2014 [1929], p.
134), ilustra com precisão a diferença entre tema e significação, bem como o papel que cada um
desses componentes desempenha para tornar efetiva uma dada enunciação:
O tema da enunciação “Que horas são?”, tomado em ligação indissolúvel com a situação
histórica concreta, não pode ser segmentado. A significação da enunciação “Que horas
são?” é idêntica em todas as instâncias históricas em que é pronunciada; ela se compõe
das significações de todas as palavras que fazem parte dela, das formas de suas relações
morfológicas e sintáticas, da entoação interrogativa, etc.
É por essa razão que uma análise segmentada só é possível quando se está buscando a
significação da enunciação; o tema, por sua vez, só pode ser compreendido em sua dimensão
global. Cabe salientar que mesmo a análise da significação, ainda que feita com base em suas
partes integrantes, não prescinde do olhar para a totalidade enunciativa, uma vez que cada
elemento linguístico (ou um conjunto de elementos) que compõe a enunciação deve ser
compreendido no modo como funciona em relação ao todo, como bem já ressaltamos. Se
compreender é também dialogar, a significação não está na palavra enquanto forma linguística, e
71
sim na “palavra enquanto traço de união entre os interlocutores” (BAKHTIN, 2014 [1929], p.
137). Vê-se, em síntese, que mesmo os elementos abstratos que dão significação à linguagem
precisam de um universo concreto de interação para significar, ou seja, precisam residir no
interior de um tema, que, por seu turno, só constitui um sentido no interior de uma enunciação
completa. Sendo assim, não é a linguagem a pura estabilidade de sentidos das formas linguísticas
nem um eterno recomeço, em que tudo que se enuncia adquire um sentido original dependente
apenas da unicidade da situação enunciativa. Como explica Bakhtin (2014 [1929], p. 141), “[...] a
significação, elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida pelo tema, e dilacerada por suas
contradições vivas, para retornar enfim sob a forma de uma nova significação com uma
estabilidade e uma identidade igualmente provisórias”.
Bakhtin (2014 [1929]) acrescenta, ainda, que o tema e a significação de uma palavra não
equivalem apenas ao seu “conteúdo”, no sentido objetivo do termo, mas englobam também um
acento de valor ou acento apreciativo, sem o qual a enunciação não se concretiza. Só pode ser
destituída de ideologia a palavra enquanto elemento abstrato do sistema linguístico (condição
insuficiente para que seja incorporada à cadeia de interação verbal), mas nunca a palavra
enquanto componente da estrutura da enunciação. A palavra enunciada, mais do que um
complexo sonoro, é produto de uma réplica a um interlocutor e, portanto, traz consigo sempre um
posicionamento ante os discursos prévios e mesmo ante aqueles que podem vir a sucedê-la.
Consequentemente, a compreensão da palavra vai além do reconhecimento de um conteúdo,
exigindo do ouvinte/leitor a mesma atitude apreciativa.
[...] A forma linguística [...] sempre se apresenta aos locutores no contexto de
enunciações precisas, o que implica sempre um contexto ideológico preciso. Na verdade,
não são palavras que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas
boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está
sempre carregada de um conteúdo ou um sentido ideológico ou vivencial. É assim que
compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós
ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida. (BAKHTIN, 2014 [1929], p. 98-99,
grifo do autor)
Em suma, a língua(gem) não é, de forma alguma, neutra ou apartada dos sujeitos e do
contexto social e ideológico em que vivem os enunciadores ou do percurso histórico da atividade
discursiva pregressa. A língua(gem), do ponto de vista bakhtiniano, é continuamente produzida
através da interação verbal na qual se engajam interlocutores que ocupam lugares diversos na
realidade social, que comprometem-se uns com os outros, que posicionam-se frente ao que
ouvem e ao que leem. São sujeitos de linguagem, porque agem através dela e definem-se como
72
sujeitos também através dela. São sujeitos de linguagem, porque, nas interações contínuas de que
participam, fazem correr o fluxo evolutivo da língua, transformando-a e não meramente
submetendo-se às normas de um sistema que lhe é exterior.
3.2 ENSINO DE LÍNGUA MATERNA NA PERSPECTIVA SOCIOINTERACIONISTA:
PRÁTICAS DE LINGUAGEM NA ESCOLA
Inserido no contexto do “discurso da mudança” (PIETRI, 2003) iniciado nos anos 1980,
João Wanderley Geraldi desenvolveu uma extensa produção acadêmica e integrou um amplo
trabalho de formação de professores com o objetivo de desconstruir os parâmetros que norteavam
o ensino de língua materna até então (concepção de linguagem, conteúdos curriculares, objetivos
de aprendizagem, metodologia de ensino, papel do professor, relação professor/aluno, etc.) e de
propor novos horizontes para o trabalho pedagógico com a língua(gem) na educação básica. A
obra de Geraldi tomou grandes proporções no Brasil, influenciando a produção científica de
diversos estudiosos que se dedicavam à proposição de novos rumos para o ensino de português na
escola e chegando até mesmo a fundamentar diretrizes curriculares em âmbito nacional e
estadual.
Desde então, operaram-se muitas mudanças no ensino de língua no Brasil, com base nas
ideias defendidas e divulgadas por Geraldi. Se é verdade que o movimento de renovação do
ensino demonstra certa lentidão e que é possível identificar sem dificuldades alguns traços de
continuidade em relação ao viés normativo-descritivo que acompanha o ensino de língua desde a
sua implementação no Brasil, também é incontestável ter se generalizado entre os professores e
demais profissionais de educação alguns discursos críticos acerca do ensino de língua materna
nos moldes como veio convencionalmente sendo praticado nas escolas brasileiras: como aponta
Mendonça (2006), o ensino de gramática tradicional, por exemplo, parece estar vinculado à
imagem de uma prática ultrapassada, o que tem levado muitos docentes a negarem executar na
sala de aula práticas associadas a essa forma de ensinar.
Em parte, o alastramento do projeto de inovação pedagógica elaborado por Geraldi se
explica não apenas pelas publicações acadêmicas no campo do ensino, mas principalmente pelas
ações que ele empreendeu em parceria com os próprios professores da rede pública de ensino. Na
introdução de sua obra Portos de Passagem (GERALDI, 1991), fruto da tese de doutorado
73
defendida em 1990 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o autor faz um breve
relato acerca de sua trajetória profissional desde que iniciou sua carreira como professor de
português no turno da noite ainda sem habilitação formal no tempo em que atuava como
bancário, passando pelas aprendizagens trazidas pelo curso de mestrado em linguística, até
chegar às revisões de interesse teórico e às mudanças no olhar para a prática dos professores da
escola básica e para o papel que lhe cabia desempenhar enquanto pesquisador universitário na
formação desses profissionais. Rememora o início de sua experiência como professor
universitário no curso de letras com as seguintes palavras:
Na verdade, ocupava-me com o ensino de 1º grau (até pela função de professor de um
curso que formava – ou habilitava – pessoas para o magistério), sem me preocupar com
ele. O ângulo redutor com que via a realidade me exigia definir meus cursos (aqueles
que o departamento me atribuía) sem considerar quer a precariedade da situação de
ensino nos níveis inferiores e, para mim, preocupar-se com essa precariedade era reduzir
tudo ao didatismo, às técnicas de ensino (e a lembrança do professor reciclado não
permitia isso), quer a possibilidade efetiva de os alunos produzirem análises próprias dos
dados linguísticos. Higienizava estes para que aqueles aprendessem a teoria a ser
transmitida. Então um slogan me guiava: o que falta aos professores é teoria. Construir
a ponte entre as aulas de semântica, de sociolinguística, de análise do discurso e as aulas
de língua portuguesa na escola era problema de quem tivesse que pensá-las. Eu não era
companheiro de travessia: isto era função da área pedagógica que, confesso, olhava
como menor. (GERALDI, 1991, p. XXIII, grifos do autor)
Foi o longo processo de diálogo que travou com os professores de língua portuguesa que
culminou na construção de toda a sua obra sobre ensino de língua materna. Foi um desses
professores, inclusive, que o fez hesitar diante do caminho que até então vinha construindo e das
apostas que fazia na formação teórica, como nos conta o próprio Geraldi (1991, p. XXIV, grifo
nosso): “Num deles [num dos cursos de atualização para professores que ministrava], alguém
provocou: e se você fosse professor de 1º grau, o que faria? De repente, via que uma pergunta
destas poderia estar querendo uma resposta e não uma receita.”. É certo que não há espaço nesta
dissertação para resgatar as nuances do percurso profissional de Geraldi, mas cabe dizer que sua
história enquanto pesquisador é marcada por uma atenção profunda aos professores da escola
básica e por uma preocupação com a renovação da prática de sala de aula, não mais por ele vista
como decorrente exclusivamente da aprendizagem de teorias linguísticas. Além de ter se
envolvido em projetos de formação de professores e de ter proferido inúmeras palestras sobre
temas relacionados ao ensino de língua materna (ambos pensados para alcançar um grande
número de professores, inclusive em cidades interioranas, como o trabalho que desenvolveu no
74
estado do Paraná nos anos 19809), Geraldi direcionou a maior parte de sua produção acadêmica
aos professores, tendo-a concebido com base na escuta atenta de suas demandas e desejando ser
por eles ouvido.
Ao longo de sua experiência profissional, em contato com os professores e com eles
repensando caminhos para efetivar as mudanças que considerava necessárias no ensino de língua,
Geraldi (1991) afirma ter chegado a algumas importantes conclusões sobre o papel do
pesquisador diante dos profissionais que atuam diretamente nas salas de aula da escola básica.
Dentre essas aprendizagens, ele destaca sobretudo dois pontos: a necessidade de que a construção
das possibilidades de renovação do ensino seja coletiva e o compromisso da crítica em indicar
uma contrapartida na forma de alternativas práticas para que sejam superados os problemas
apontados. Quanto à primeira aprendizagem, Geraldi (1991) defende que não é possível impor de
fora caminhos de trabalho aos professores, sob pena de reduzi-los a aplicadores de receitas
prontas, sem que participem ativamente da concepção de sua própria atividade docente e sem que
as demandas efetivas que os professores identificam em sua prática cotidiana sejam ouvidas pelos
pesquisadores. No que diz respeito à segunda aprendizagem, Geraldi (1991) entende que a
aliança entre pesquisador e professor requer um direcionamento prático como condição para que
as críticas ao ensino sejam de fato construtivas. Diferentemente de quando se recusava a produzir
“receitas” por receio de restringir a reflexão sobre o ensino a “didatismos”, Geraldi (1991)
percebe que indicar caminhos não engessa a atividade docente, porque uma mesma receita
poderia produzir bolos diferentes e uma mesma proposta poderia ser lida de diversas maneiras.
Portanto, o que era preciso, no envolvimento do pesquisador universitário com o professor da
educação básica, era apostar na autonomia docente, progressivamente construída; para tanto, não
cabia ao pesquisador a pretensão de controlar a prática dos professores “para, em nome de uma
9 Em 1983, um convite feito pela Associação Educacional do Oeste do Paraná (ASSOESTE) para a organização de
um curso direcionado aos professores de português das redes públicas do oeste do Paraná levou Geraldi a propor e
coordenar um amplo projeto de formação na região. A ideia era alcançar todos os professores em exercício,
inclusive os da rede privada. Assim, no ano seguinte, em 1984, uma equipe constituída por Geraldi e outros
professores ministrou as aulas do projeto para todos os docentes que se interessaram em participar do curso com
base na coletânea O texto na sala de aula, organizada por Geraldi para este fim: servir de material didático para o
curso. A coletânea foi, na época, publicada em forma de livro pela ASSOESTE e distribuída gratuitamente a todos
os professores das redes públicas e privada da região. A segunda etapa do curso foi destinada apenas aos
professores que, tendo participado da primeira etapa, se comprometessem a colocar em prática o que haviam
aprendido no curso. No ano seguinte, esses professores discutiriam com a equipe pedagógica do curso o
desenvolvimento de seu trabalho e, tomando suas experiências como ponto de partida, aprofundariam as reflexões
teóricas que lhes havia sido propostas na primeira etapa. Para mais informações sobre este projeto, ver entrevista
realizada por Luzia de Fátima Paula a Geraldi (2014a) em 2002, publicada integralmente na edição comemorativa
dos trinta anos da coletânea O texto na sala de aula.
75
ciência, com variáveis bem definidas, transformar o que era vida em tema de exposições
científicas”, mas “deixá-los andar com as próprias pernas” (GERALDI, 1991, p. XXVII).
Como já indicamos, o interesse de Wanderley Geraldi foi o de propor um ensino de língua
compatível com a perspectiva segundo a qual ele compreendia a língua(gem). Esta, na visão do
autor, deveria ser abordada em sua dimensão discursiva, pois, como Bakhtin (2014 [1929]), ele
defende que é na forma de discurso que ela se apresenta aos sujeitos falantes e é na própria
interlocução (operacionalizada sempre por meio da produção discursiva) que eles ampliam
gradativamente suas possibilidades de interagirem e de produzirem linguagem nas mais variadas
situações enunciativas. Geraldi (1991) reconhece que o problema do ensino engloba um extenso
leque de fatores mais amplos a serem avaliados, mas elege um ângulo específico por meio do
qual repensa o ensino de língua: a linguagem. Fortemente influenciado pelo pensamento
bakhtiniano, ele aponta três implicações em especial para a concepção da linguagem enquanto
atividade interlocutiva: o inacabamento da língua, construída continuamente nas interações
cotidianas; o inacabamento do sujeito, também constituído na produção discursiva; e a intrínseca
relação entre as interações verbais e o contexto sócio-histórico mais amplo no qual elas
acontecem (GERALDI, 1991).
Para definir o ponto de partida das reflexões sobre o ensino, Geraldi (1991, 1996) atrela
essas implicações da perspectiva bakhtiniana de língua(gem) às reflexões de Carlos Franchi
(2011 [1977], 2013 [1987]) acerca da historicidade da linguagem e do trabalho linguístico do
sujeito. Ambos os conceitos estão intimamente vinculados, pois a historicidade nega a existência
de qualquer aspecto imanente na linguagem, isto é, rejeita a ideia de que a linguagem esteja de
antemão pronta para ser utilizada pelo sujeito. Por isso mesmo, entra em jogo o trabalho
linguístico – ou, para Geraldi (1991, 1996), as operações discursivas – do sujeito, pois, não
dispondo de um aparato técnico externamente constituído, ele tem a necessidade de atuar
linguisticamente para concretizar as interações nas quais se engaja incessantemente. No trabalho
do sujeito, Geraldi (1991, p. 11, grifos do autor) identifica o entrecruzamento do estruturado e do
transitório: “[...] Individualmente, nos processos interacionais de que participamos, trabalhamos
na construção dos sentidos ‘aqui e agora’, e para isso temos como material a língua que ‘resultou’
dos trabalhos anteriores.”. Daí, o autor considerar a língua uma “sistematização aberta”.
No encontro do trabalho discursivo pregresso e no que está sempre por ser realizado pelos
indivíduos inseridos em processos interlocutivos, três tipos de ações linguísticas constroem
76
sentidos para os recursos expressivos10
da língua: as ações com a linguagem, as ações sobre a
linguagem e as ações da linguagem. O intuito de tal distinção é apenas teórico, pois a
conceituação de cada tipo de operação nos ajuda a compreender a natureza e o funcionamento da
linguagem enquanto produto da ação dos sujeitos, mas elas acontecem de forma simultânea,
sobrepondo-se umas às outras nas situações concretas de interação.
As ações da linguagem dizem respeito ao agenciamento de recursos expressivos e à
constituição de sistemas de referências na produção de sentidos que se opera nas interações dos
sujeitos. Elas ressaltam o componente estruturado da língua, decorrente dos processos
interlocutivos pregressos, evidenciando que a liberdade de criação do sujeito de linguagem não é
absoluta e que ele sozinho não é a fonte dos sentidos produzidos. As ações da linguagem
representam as restrições da língua sobre as operações discursivas dos sujeitos, porque delimitam
a natureza das ações que os sujeitos podem empreender sobre e com a linguagem. Para
exemplificar as ações da linguagem, Geraldi (1991) lembra que o material concreto e físico da
língua (dentre os quais, as articulações sonoras, a linearidade e a ordem com que o indivíduo
opera) determina possibilidades estruturais à produção discursiva do sujeito.
As determinações da linguagem, entretanto, não cristalizam os usos linguísticos, pois os
indivíduos operam discursivamente justamente na tentativa de transcender os limites impostos
pelas ações da linguagem: trata-se das ações que os sujeitos fazem com a linguagem e sobre a
linguagem. Ambas evidenciam o aspecto transitório e flexível da língua, mas partem das
construções historicamente estabilizadas. Nas primeiras, os sujeitos alteram as relações que
estabelecem com os demais interlocutores envolvidos na interação. Isso acontece porque com a
linguagem o indivíduo dirige-se ao outro, comprometendo-se com ele em função das ações que
pretende realizar: avaliar, persuadir, informar, divertir, convencer, doutrinar, seduzir, etc.
(GERALDI, 1991, 1996) Nas ações sobre a linguagem, aponta Geraldi (1991) que o sujeito
produz novas determinações relativas da língua, através do deslocamento do sistema de
referências, da construção de novos sentidos para os recursos expressivos já constituídos ou
10
O termo “recurso expressivo”, na obra de Geraldi (1996), remete à palavra tanto na sua condição de item lexical
quanto na sua constituição interna (seus morfemas). Mas, além disso, remete ainda às combinações que o sujeito
efetua entre os itens lexicais para construir frases e às formas de construção de textos completos. Nesse sentido, o
autor define a língua como “um conjunto de recursos expressivos [...] não fechado e sempre em constituição” e
explica: “Estes recursos expressivos remetem a um sistema antropocultural de referências, no interior do qual cada
recurso adquire significação. Este sistema, também ele certamente aberto porque histórico, está sempre em
modificação, refletindo as mudanças que sobre o mundo vamos produzindo na história [de] nossas compreensões
desta mesma história.” (GERALDI, 1996, p. 64).
77
mesmo da criação de novos recursos expressivos. Esses deslocamentos de sentido são efetuados
principalmente por meio dos processos metafóricos e metonímicos, mas, para produzir o novo, os
sujeitos de linguagem também recorrem às paráfrases, às paródias, aos processos de formação de
palavras e aos processos de estruturação sintática (GERALDI, 1996).
O que viabiliza a realização desses três tipos de ações, explica Geraldi (1991, p. 16-17), é
a reflexividade da linguagem:
Com a linguagem não só representamos o real e produzimos sentidos, mas
representamos a própria linguagem, o que permite compreender que não se domina uma
língua pela incorporação de um conjunto de itens lexicais (o vocabulário); pela
aprendizagem de um conjunto de regras de estruturação de enunciados (gramática); pela
apreensão de um conjunto de máximas ou princípios de como participar de uma
conversação ou de como construir um texto bem montado sobre determinado tema,
identificados seus interlocutores possíveis e estabelecidos os objetivos visados, como
partes pertinentes para se obter a compreensão.
Ao mostrar que, nas interações cotidianas, o sujeito faz movimentar a cadeia verbal que
constitui a linguagem atuando sobre suas determinações estruturais e sobre os sistemas de
referências construídos pelos sujeitos históricos que lhe precederam, Geraldi (1991) rejeita a
noção de língua como sistema prévio e externo aos falantes e marca a inseparabilidade entre
língua(gem) e sujeito, dado que um é reciprocamente instituído pelo outro. Além disso, escancara
uma relação direta entre o domínio progressivo da língua e o envolvimento do sujeito em
situações de interação verbal. Noutras palavras, é constituindo-se sujeito (na e pela linguagem) e
constituindo a linguagem que o indivíduo aprende a língua. Por isso, essa aprendizagem por si só
implica uma atitude reflexiva acerca da linguagem por parte do sujeito, tendo em vista que, para
concretizar as interações nas quais se engaja, ele precisa agir sobre e/ou com a linguagem no
sentido de mobilizar os recursos expressivos e, assim, a eles atribuir sentidos.
Por considerar que o enfoque descritivo-normativo do ensino tradicional de português não
condizia com a natureza da língua(gem), com as relações que o sujeito com ela estabelece e com
o processo de aprendizagem da língua, Geraldi (1997b [1984], 1991, 1996) vai centrar a
organização do trabalho pedagógico nas práticas de linguagem em detrimento dos conteúdos
propriamente ditos, tradicionalmente vinculados aos tópicos distribuídos nos sumários das
gramáticas tradicionais (da fonologia à sintaxe). Ele considera que cabe à escola investir num
projeto de produção de conhecimentos, isto é, pensar as atividades pedagógicas na direção de
uma atitude investigativa por parte de alunos e professores, de maneira que, juntos, eles se
debrucem sobre um determinado objeto de estudo, tragam para as interações de sala de aula
78
contribuições exploratórias para a compreensão do fenômeno investigado e, assim, participem
coletivamente do processo de construção dos conhecimentos que circulam na aula de português
(GERALDI, 1991). Daí, a sua principal crítica ao ensino de língua materna ser o recorrente
enfoque na reprodução de conhecimentos, na aprendizagem dos resultados das reflexões de
outrem, sem que se tenha acesso ao percurso através do qual o conhecimento foi elaborado. É por
essa razão que Geraldi (1991) vê na atividade de ensino uma fetichização do produto do trabalho
científico. Os resultados das descrições e explicações sobre a língua historicamente produzidos
são tomados como verdades e ensinados à parte do seu contexto de produção e das motivações
epistemológicas que lhes deram origem. O exemplo clássico dessa fetichização na disciplina
português, para Geraldi (1991, p. 97), é o ensino de gramática, uma vez que nele é clara e
crescente a distância “entre o que os pesquisadores pensam sobre a estrutura da língua e o
professor que a ensina (transmite) a seus alunos”.
A propriedade reflexiva da língua e o imbricamento sujeito/linguagem deve, para Geraldi
(1997a [1984], 1997b [1984], 1991, 1996), nortear as práticas de linguagem desenvolvidas na
sala de aula: práticas de leitura, práticas de produção de textos (orais e escritos) e práticas de
análise linguística. Em Unidades básicas do ensino de português, Geraldi (1997b [1984]) elabora
uma proposta prática detalhada do que ele considera um ensino alinhado à concepção
sociointeracionista de linguagem, inclusive com conteúdos curriculares e sugestões de atividades
a serem desenvolvidas e de intervenções didáticas para cada série do ensino fundamental (quinta
à oitava série, atualmente sexto ao nono ano).
O ponto central do ensino de língua materna – de onde as atividades realizadas em sala de
aula deveriam partir e para onde objetivariam retornar – era o eixo da produção de textos. Mais
do que a uma questão metodológica, tal posicionamento se deve à urgente necessidade que
Geraldi (1991) encontra em se devolver ao aluno o direito à palavra e em oportunizar a sua
constituição enquanto locutor para que seja ele próprio capaz de conduzir seu processo de
aprendizagem. Mas, além disso, há uma questão linguística e pedagógica implicada na escolha de
Geraldi (1991): com o foco na produção de textos, seria a palavra do aluno, tanto no conteúdo de
sua fala quanto no seu modo de dizer, o principal elemento norteador do trabalho do professor na
sala de aula. Diferentemente da elaboração de redações que prevalecia no ensino de português até
então, a produção de textos proposta por Geraldi (1997b [1984], 1991) deveria consistir numa
autêntica situação interlocutiva, em que o aluno dissesse algo para alguém (não necessariamente
79
apenas para o professor) movido por motivações concretas de interação, constituindo-se como
locutor e mobilizando estratégias de dizer para alcançar seus propósitos comunicativos.
Aliados ao eixo da produção de textos, estavam as práticas de leitura e as práticas de
análise linguística. Em sua versão inicial, a proposta de Geraldi (1997b [1984]) recomendava a
leitura de textos longos e a leitura de textos curtos. Para os primeiros, o professor deveria fazer
uma avaliação fundamentalmente quantitativa, pois o objetivo era que o aluno desenvolvesse o
gosto pela leitura (sobretudo literária) através do contato constante com livros disponibilizados
pela escola. É por essa razão que a escolha das obras era aleatória: interessava o desejo do aluno
em lê-la, não necessariamente a qualidade do que estava sendo lido. O autor apostava que, com o
tempo e o aprofundamento da relação do aluno com a leitura, ele naturalmente passaria a
procurar livros de maior qualidade literária. Era na leitura de textos curtos que o professor
encontraria espaço para explorar coletivamente as questões que considerasse relevantes para o
ensino da língua, tais como a discussão de um tema para a produção de textos, a revisão de
pontos de vista acerca de temáticas nas quais os textos lidos tocavam, o estudo das formas de
dizer utilizadas pelo autor para posterior revisão das formas de dizer empregadas pelos alunos em
seus textos e o estudo de tópicos específicos do currículo escolar (GERALDI, 1997b [1984]).
Quanto à prática de análise linguística, a ideia inicial era que ela partiria do texto do aluno
e objetivaria a sua reescrita nos aspectos trabalhados durante a aula (acentuação, pontuação,
ortografia, problemas de ordem sintática, progressão textual, etc.). O princípio básico dessa
prática era “partir do erro para a autocorreção” (GERALDI, 1997b [1984], p. 74). Nas produções
posteriores, Geraldi (1991, 1996) mantém a convergência do ensino de língua na produção de
textos, mas apresenta também possibilidades de se voltar a análise linguística escolar para as
estratégias de dizer estudadas nos textos lidos pelos alunos. Tendo em vista o interesse desta
pesquisa nessa articulação específica (entre análise linguística e leitura), concentramos nossas
atenções nessa questão de forma mais aprofundada nas próximas seções deste capítulo. Além dos
vínculos que a análise linguística pode estabelecer com os demais eixos de ensino, Geraldi (1996,
p. 123) chega ainda a apresentar possibilidades do trabalho pedagógico com “micro-operações
[...] de construção de textos”, isto é, com questões mais pontuais de análise linguística,
concernentes ao nível da palavra e da frase.
De um modo geral, Geraldi (1997a [1984], 1997b [1984]) inicialmente sugeria o domínio
da variedade padrão como o objetivo fundamental do ensino de língua portuguesa, porque via
80
nessa aprendizagem um caminho para romper o bloqueio linguístico de acesso ao poder pelas
classes socialmente desprestigiadas. Contudo, desde então, sua proposta já se diferenciava do
direcionamento excludente e reprodutor que convencionalmente guiava o ensino de língua, na
medida em que o foco no domínio da norma padrão não deveria, na sua visão, significar a
depreciação das variedades linguísticas com as quais o aluno se identificava nas interações que
empreendia com os membros de seu grupo social. Outro ponto que já marcava o caráter inovador
da proposta de Geraldi (1997a [1984], 1997b [1984]) era que o acesso à norma de prestígio não
decorria do ensino das descrições linguísticas elaboradas pelos gramáticos e das regras que
prescrevem as formas legitimadas de emprego da língua, mas, noutra via, advinha dos usos da
língua e das reflexões acerca desses usos nas mais diversas situações enunciativas. Em seus
primeiros escritos relacionados à questão do ensino, Geraldi (1997a [1984], p. 45) já tinha
consciência de que “saber a língua” não era o mesmo que “saber analisar uma língua dominando
conceitos e metalinguagens”. Tomar a linguagem na sua natureza dialógica e enunciativa era, na
ótica do autor, privilegiar o domínio de habilidades que levavam o aluno a “saber a língua”, ou
seja, era preciso que o aluno produzisse enunciados de acordo com suas intenções comunicativas
e fosse capaz de identificar as diferenças entre as várias maneiras de se expressar nos diversos
textos (orais e escritos) que circulam socialmente. Falar sobre a língua através de uma
terminologia técnica específica, bem como compreender as características estruturais e de uso da
língua, é, para Geraldi (1997a [1984]), uma etapa posterior e secundária em relação às atividades
centradas na produção e compreensão discursiva, pois o domínio da metalinguagem não é uma
finalidade pedagógica em si, mas um eventual caminho para aprofundar a compreensão dos usos
da língua.
Nas contínuas revisões que procurava fazer de sua própria produção teórica, Geraldi foi
aprimorando sua proposta para o ensino de língua materna, de modo que o enfoque na variedade
padrão tal como ele expunha em O texto na sala de aula deixa de aparecer nas produções
subsequentes. Recentemente, em texto publicado na edição comemorativa dos trinta anos da
coletânea, ele revisita a versão original de sua proposta, fazendo uma autocrítica quanto à ênfase
que atribuía ao domínio da norma socialmente prestigiada:
O padrão linguístico dos sujeitos escolarizados não é um padrão já dado, pronto,
acabado. Ele varia no tempo (e também no espaço num mesmo tempo). Uma aposta
assim aberta sem um ponto de chegada era muito mais coerente com a concepção de
linguagem que se defendia. No entanto, ainda em 1984, defendia o ensino da língua
padrão, como se esta fosse algo pronto e acabado enquanto variedade e como se seu
81
ensino fosse o caminho para o processo de construção de autoconfiança linguística “des-
inculcadora” da ideologia da incompetência. (GERALDI, 2014b, p. 214-215)
Nesse mesmo texto, Geraldi (2014b) também apresenta algumas justificativas para a sua
forte crença em um trabalho pedagógico calcado em práticas de linguagem ao longo de toda a
sua produção acadêmica. O autor alega questões pedagógicas e linguísticas imbuídas em tal
escolha. Quanto às primeiras, ele lembra que a aprendizagem da língua acontece pela prática
linguística e explica que o predomínio da modalidade escrita na escola demanda do professor um
papel de mediador das interações do aluno com o texto/autor. As razões linguísticas explicitadas
por Geraldi (2014b) também decorrem da presença maciça da escrita na escola. Se, dentre outras
atribuições, cabe ao professor de língua materna oportunizar aos alunos situações de produção e
leitura de textos escritos, essas situações são irredutíveis a um conjunto de regras que regulassem
a atuação do aluno enquanto sujeito leitor e escritor, mas dependem da bagagem que ele traz das
interações das quais participou anteriormente, das contrapalavras que pode oferecer aos textos
que lhes são apresentados (GERALDI, 2014b). O autor sintetiza a ênfase conferida às práticas de
linguagem da seguinte forma:
Implantar práticas de linguagem na sala de aula é substituir um objeto dado para estudo
(uma gramática tradicional ou não, uma teoria linguística, uma teoria literária, uma
história da literatura) pelo convívio reflexivo com os recursos linguísticos mobilizados
na produção ou na leitura de textos, pelo convívio com a obra de arte verbal e os
recursos aí mobilizados. (GERALDI, 2014b, p. 215)
Assim, o objetivo do ensino de língua portuguesa, para Geraldi (1991, 1996), é a
ampliação da inserção do aluno em processos interlocutivos. O diferencial das vivências de
linguagem proporcionadas pela escola, se contrastadas àquelas que o aluno já desenvolvia antes
mesmo do primeiro contato com a educação formal, é o predomínio da participação em instâncias
públicas de uso da linguagem. As instâncias, segundo Geraldi (1996, p. 39), “correspondem a
diferentes espaços sociais dentro dos quais se dá o trabalho linguístico”, isto é, “a diferentes
contextos sociais das interações”. A depender da instância em que o sujeito participa de um
processo interlocutivo, ele precisará se valer de diferentes estratégias de dizer e precisará recorrer
a diferentes variedades linguísticas. Ao elencar as características das instâncias de uso da
linguagem, Geraldi (1996) atribui à instância pública: objetivos imediatos; interações a distância
no tempo e no espaço, com interlocutores desconhecidos; alusão a um sistema de valores ou a
sistemas de referência nem sempre compartilhados; e privilégio da modalidade escrita. Na escola,
Geraldi (1996) defende que o aluno deverá aprender a transitar entre as instâncias públicas e
82
privadas em que as interações verbais acontecem. Concentrar-se nas primeiras significa expandir
as possibilidades de interação do aluno, na medida em que ele passa a dialogar com interlocutores
distantes de seu grupo social imediato, tais como autores de textos com os quais ele nunca
estabelecerá contato face a face e cuja forma de compreender o mundo e de se expressar difere
largamente das referências imediatas até então construídas pelo aluno.
3.3 ESPECIFICIDADES DA ANÁLISE LINGUÍSTICA ESCOLAR E INTERFACES COM O
ENSINO DA LEITURA
Explicitados os contornos gerais do contexto epistemológico em que se insere a proposta
de Wanderley Geraldi para um ensino de língua materna pautado numa perspectiva
sociointeracionista de linguagem, chegamos, nesta seção, ao objeto particular de nossa
investigação: as práticas escolares de análise linguística. Nosso propósito, a partir de agora, é
apresentar os fundamentos básicos da análise linguística e algumas possibilidades de trabalho
prático propostas por estudiosos da área e/ou desenvolvidas por professores da educação básica.
Tanto na exposição teórica quanto na exemplificação prática, procuramos dar relevo ao diálogo
que a análise linguística pode estabelecer com a leitura. Dizendo de um outro modo, esforçamo-
nos em trazer à vista caminhos por meio dos quais as reflexões linguísticas mediadas pelo
professor de português possam convergir para o desenvolvimento das habilidades de leitura de
seus alunos.
3.3.1 Fundamentos teórico-metodológicos da análise linguística
Nesta primeira subseção, abordaremos os aspectos teóricos e metodológicos do eixo
didático focalizado em nossa pesquisa. Com essa exposição, esperamos evidenciar a medida da
inovação pedagógica proposta, o que nos demanda apontar as rupturas com o ensino tradicional
de gramática, mas também o viés segundo o qual seus conceitos são trazidos à tona no trabalho
com a análise linguística.
Sinalizamos anteriormente que as orientações teórico-metodológicas elaboradas por
Geraldi (1997a [1984], 1997b [1984], 1991, 1996) sugerem que o ensino de língua portuguesa
seja alicerçado em três grandes eixos, que abarcam as práticas de linguagem a serem
83
desenvolvidas na sala de aula: leitura, produção de textos (orais e escritos) e análise linguística.
As atividades didáticas vinculadas a cada um dos eixos, na visão do autor, precisariam ser
planejadas de forma articulada, isto é, deveriam convergir para objetivos de aprendizagem em
comum. Tal entrelaçamento se explica pela própria natureza das práticas de linguagem, pois, no
interior destas, o sujeito não executa atividades linguísticas isoladamente, mas vale-se de sua
experiência com as demais atividades para colocar alguma delas em prática ou mesmo executa
mais de uma atividade simultaneamente, uma dando subsídio à realização da outra. A título de
exemplo, perceba-se que, para ler, o sujeito deverá necessariamente refletir acerca dos usos
linguísticos empregados no texto, procurando na mobilização dos recursos linguísticos
empreendida pelo autor pistas para atribuir sentidos ao texto. Para ler, o sujeito remete ainda às
experiências pregressas de leitura e também de fala, comparando o conteúdo e a forma do que já
leu/ouviu/falou com o resultado do trabalho linguístico do autor que tem diante de si. Seguindo
essa mesma lógica, poderíamos pensar em inúmeras outras combinações que demonstrassem a
interpenetração das práticas de linguagem nas ações cotidianas do sujeito. Geraldi (1997a [1984],
1997b [1984], 1991, 1996) procura substituir o artificialismo dominante do ensino de língua
como tradicionalmente vinha sendo desenvolvido (pautado, segundo o autor, na simulação de
práticas de linguagem e na reprodução de conhecimentos elaborados previamente) por
alternativas que se aproximassem mais do real funcionamento das práticas de linguagem na
interação verbal concreta.
A despeito do diálogo inerente entre leitura, produção de texto e análise linguística,
Geraldi (1997b [1984], 1991, 1996) discute as especificidades de cada eixo didático
separadamente para viabilizar a presença de cada um deles na aula de português. Na obra dele,
ficam claros os objetivos de trabalho com cada um desses eixos (e caminhos para se desenvolver
um trabalho que atente para esses objetivos), mas, ao mesmo tempo, no próprio decorrer da
exposição teórico-prática acerca de um dos eixos, o autor já vai tecendo as inevitáveis conexões
com os demais. Assim, embora o propósito desta subseção seja apresentar os fundamentos da
análise linguística, é inevitável que, em alguma medida, indiquemos desde já algumas interseções
com os demais eixos de ensino (dentre os quais, a leitura): ao tocarmos em questões relativas à
análise linguística, seremos impelidos a relacioná-la à leitura, pois, como veremos, o eixo dos
conhecimentos linguísticos atravessa globalmente o ensino de língua materna, subsidiando o
trabalho com os outros eixos didáticos. Da mesma maneira, na subseção seguinte, dedicada
84
particularmente à interseção investigada nesta pesquisa, ao tocarmos em questões relativas ao
ensino da leitura, seremos impelidos forçosamente a antecipar elementos concernentes à reflexão
linguística.
A versão inicial da proposta de Geraldi para as práticas de análise linguística surge com a
publicação, em 1981, do texto Subsídios metodológicos para o ensino de língua portuguesa, nos
Cadernos da Fidene (n. 18). Após algumas modificações e republicações (inclusive como
material didático para a formação de professores do estado do Paraná, conforme relatamos na
nota nº 9, na página 71 desta dissertação), esse texto chegou, em 1984, à configuração das
publicações atuais, agora dividido em duas partes: Concepções de linguagem e ensino de
português (GERALDI, 1997a [1984]) e Unidades básicas do ensino de português (GERALDI,
1997b [1984]). Juntos, os dois textos apresentam, em linhas gerais, uma proposta de ensino
baseada numa concepção sociointeracionista de linguagem, cujas particularidades foram
apresentadas na seção anterior. No primeiro texto, o autor levanta algumas questões teóricas
relacionadas às mudanças que propunha ao ensino de língua materna: repercussões da noção de
interação linguística, o ensino da norma padrão, o olhar para o fenômeno da variação linguística,
a distinção entre ensino de língua e ensino de metalinguagem. No segundo, o autor explica com
mais detalhes em que consiste cada um dos eixos didáticos que devem, a seu ver, integrar o
ensino de língua e apresenta alternativas práticas para a concretização de sua proposta em turmas
do ensino fundamental. Tendo em vista que já tivemos a oportunidade de descrever as ideias que
Geraldi (1997b [1984]) apresenta nesse texto para o trabalho com a leitura, enfocaremos a seguir
os pormenores de sua proposta para o eixo da análise linguística tal como o autor elaborou
especificamente nessa obra.
Para introduzir ao leitor o papel das práticas de análise linguística no âmbito de um
projeto sociointeracionista de ensino de português, Geraldi (1997b [1984]) faz, em forma de
tópicos, algumas considerações acerca delas, defendendo: o enfoque nos problemas linguísticos
encontrados nos textos produzidos pelo aluno; a utilização desses textos como material de
planejamento por parte do professor; a exploração de um problema de cada vez; o princípio
“partir do erro para a autocorreção” como norteador das atividades propostas; o estreito vínculo
com a reescrita dos textos produzidos em sala de aula (com base no aspecto linguístico
explorado); a possibilidade de que as atividades sejam realizadas tanto em pequenos quanto em
85
grandes grupos; o uso de cadernos de redação, cadernos de anotações, dicionários e gramáticas
como materiais didáticos necessários às aulas dedicadas à prática de análise linguística.
Geraldi (1997b [1984]), então, organiza os tópicos que podem ser abordados ano a ano
segundo a sua proposta de trabalho para o eixo da análise linguística num contínuo crescente de
dificuldades. Ele esclarece que as selecionou com base nos problemas suscetíveis de aparecerem
nos tipos de texto que sugeriu para o trabalho com o eixo da produção de textos em cada série,
sintetizados no quadro abaixo elaborado pelo próprio autor (GERALDI, 1997b [1984], p. 73):
ANO
TEXTOS
Sexto
Sétimo
Oitavo
Nono
narrativos
descritivos
dissertativos
normativos
correspondência
histórias
familiares
–
debate oral:
por quê?
regras
de jogos
familiar
história do
Brasil e
noticiários
onde/quando
por que foi
assim?
regras de
trabalho em
grupo
familiar
fatos:
comentários,
lendas e contos
–
o porquê
dos fatos
aparecendo
nos textos
estatutos de
grêmios
estudantis
ofício
economia e
política
–
argumentação
regimento da
escola
carta-emprego
Quadro 1: Resumo da proposta de Geraldi (1997b [1984]) para a produção de textos
Para o sexto ano, por exemplo, Geraldi (1997b [1984]) elenca os seguintes tópicos para o
eixo da análise linguística: problemas de ordem textual (elementos da narrativa, sequenciação dos
acontecimentos da narrativa), problemas de ordem sintática (concordância verbal, concordância
nominal, regência), problemas de ordem morfológica (léxico/adequação vocabular, conjugação
verbal, formas de plural e feminino), problemas de ordem fonológica (ortografia, acentuação,
divisão silábica). Além desses tipos de problemas, haveria ainda aqueles de ordem estilística, que
não aparecem nessa primeira listagem por não terem sido sugeridos especificamente para o
trabalho com o sexto ano. Uma primeira característica da proposta de Geraldi (1997b [1984]) que
é possível inferir dessa relação de conteúdos é o fato de não serem descartados categorias e
conceitos oriundos da tradição gramatical. Em nota de rodapé, o autor chega mesmo a explicar
que “a análise linguística inclui tanto o trabalho com questões tradicionais de gramática quanto
86
questões amplas a propósito do texto [...]” (GERALDI, 1997b [1984], p. 74). É certo que nem
sempre a interpretação da gramática tradicional será suficiente para explicar satisfatoriamente um
determinado fenômeno linguístico explorado pelo professor de português. No entanto, nada
impede que ele recorra a essa tradição para planejar sua prática de ensino naquilo for pertinente
aos objetivos de aprendizagem previamente traçados. O que importa é prezar por uma atitude
reflexiva diante do conteúdo estudado – em vez de se proceder a uma mera transmissão de
verdades sobre o funcionamento da língua – e privilegiar o texto enquanto unidade de análise. Se
o professor sente a necessidade de explorar algum aspecto linguístico mais pontual, o que Geraldi
propõe é que se procure compreender a repercussão que esse aspecto traz para o funcionamento
global do texto. É evidente que nem todos os conteúdos vinculados à reflexão linguística podem
ser explicados na sua relação com o texto. Na lista que expusemos há pouco, Geraldi (1997b
[1984]) inclui, por exemplo, acentuação, ortografia e divisão silábica para as práticas de análise
linguística do sexto ano. Sobre tópicos como esses, o autor explica, em outra nota, que a análise
linguística por ele proposta não exclui a possibilidade de ser explorado, durante as atividades, o
que ele chama de “aspectos sistemáticos da língua portuguesa”, mas alerta logo em seguida:
“Chamo atenção aqui para os aspectos sistemáticos da língua e não para a terminologia
gramatical com que a denominamos. O objetivo não é o aluno dominar a terminologia (embora
possa usá-la), mas compreender o fenômeno linguístico em estudo.” (GERALDI, 1997b [1984],
p. 74).
Como chegamos a informar anteriormente, Geraldi (1991, 1996), nas obras subsequentes,
mantém o foco na produção de textos, porém esclarece com maior sorte de minúcias as interfaces
que as práticas de análise linguística podem apresentar também em relação à leitura. Para
aprofundar nossa compreensão quanto a essa interseção em especial, discorreremos sobre alguns
conceitos aos quais Geraldi recorre nessas obras no intuito de ampliar sua proposta para o ensino
de língua materna. Trata-se das ações constitutivas do trabalho linguístico realizado pelo sujeito
nas interações verbais cotidianas: as atividades linguísticas, epilinguísticas e metalinguísticas.
Esses três tipos de atividades podem ocorrer, segundo Geraldi (1991), nas ações que o sujeito
realiza com a linguagem e pela linguagem, e até mesmo nas ações da linguagem.
A atividade linguística é o próprio exercício da linguagem, guiado por intenções
significativas (FRANCHI, 2013 [1987]). Como já vimos, esse exercício acontece no âmbito das
interações verbais cotidianas. Assim, qualquer indivíduo, independentemente de escolarização,
87
realiza atividades linguísticas a todo momento. Geraldi (1991, p. 20) explica que, embora a
intencionalidade inerente às interações verbais nos permita afirmar que esse tipo de atividade já
se configura em alguma medida como uma atitude reflexiva em relação à linguagem, as reflexões
do sujeito nas atividades linguísticas acontecem de forma “quase automática”, no sentido de que
aqui, tanto no processo de agenciamento de recursos expressivos operado pelo locutor para
construir um enunciado quanto no processo de compreensão do interlocutor, não é preciso
interromper a progressão do assunto em pauta.
Na construção de toda essa categorização, Geraldi (1991) fundamenta-se em Franchi
(2013 [1987]), que, por sua vez, havia se fundamentado no linguista francês Antoine Culioli,
estudioso que originalmente criou tais conceitos. Entretanto, há uma diferença fundamental entre
a definição criada por Culioli e as reformulações dos dois outros autores: o primeiro distinguia as
atividades epilinguísticas e metalinguísticas encontrando naquelas uma operação inconsciente por
parte do sujeito de linguagem e nestas uma operação consciente. Franchi (2013 [1987]) faz breve
referência ao fato de o saber gramatical que já era mobilizado pelo aluno em suas atividades
linguísticas corriqueiras se tornar consciente em decorrência do ensino de gramática centrado nas
atividades epilinguísticas e metalinguísticas. Contudo, o autor não recorre explicitamente ao
critério de Culioli para discriminar essas duas formas de o sujeito operar com a linguagem. Já
Geraldi (1991) tece abertamente uma crítica ao critério empregado pelo linguista francês na
delimitação conceitual dos termos, considerando-a bastante problemática, porque, como os três
tipos de ações envolvem intencionalidade, ele acredita ser difícil avaliar as ações constitutivas do
trabalho linguístico em termos de consciência ou inconsciência. Por isso, assim descreve as
atividades epilinguísticas:
Poderíamos caracterizar as atividades epilinguísticas como atividades que,
independentemente da consciência ou não, tomando as próprias expressões usadas por
objeto, suspendem o tratamento do tema a que se dedicam os interlocutores para refletir
sobre os recursos expressivos que estão usando. Seriam operações que se manifestariam
nas negociações de sentido, em hesitações, em autocorreções, reelaborações, rasuras,
pausas longas, repetições, antecipações, lapsos, etc. e que estão sempre presentes nas
atividades verbais. (GERALDI, 1991, p. 24, grifo nosso)
Fica claro, portanto, como destaca Geraldi (1991), que, ao desenvolver atividades
epilinguísticas, o indivíduo toma como objeto de reflexão aspectos da língua em qualquer de suas
dimensões: pode atuar sobre a estrutura dos enunciados, sobre a organização do discurso ou até
sobre aspectos mais amplos da interação. Num caminho semelhante, Franchi (2013 [1987], p. 97)
88
define as atividades epilinguísticas como uma “[...] prática que opera sobre a própria linguagem,
compara as expressões, transforma-as, experimenta novos modos de construção canônicos ou
não, brinca com a linguagem, investe as formas linguísticas de novas significações”. O autor
explica que o sujeito de linguagem empreende esse tipo de ação desde criança, quando começa a
construir hipóteses sobre a estrutura da língua. Na escola, cabe, para Geraldi (1991) e Franchi
(2013 [1987]), a intensificação dessas atividades, dado o seu potencial reflexivo e investigativo
em relação ao funcionamento da linguagem.
As atividades metalinguísticas, como as anteriores, também envolvem a tomada da
linguagem como objeto de reflexão e, para tanto, também demandam uma suspensão temporária
da progressão do tema abordado na interação. Entretanto, Geraldi (1991) esclarece que, se nas
atividades epilinguísticas a reflexão está atrelada ao próprio processo interativo (numa
autocorreção, por exemplo), nas atividades metalinguísticas a análise que o indivíduo opera
depende da mobilização consciente de conceitos e terminologias específicas, que remetam à
própria linguagem (isto é, uma metalinguagem). Parte da formação cultural dos sujeitos
escolarizados, o conhecimento da metalinguagem gramatical é fruto da experiência do indivíduo
com o ensino formal, embora nada o impeça de criar termos técnicos não oficializados para se
referir aos recursos linguísticos dos quais se utiliza para interagir verbalmente.
De acordo com Geraldi (1991), a existência desses três tipos de atividades na produção
discursiva do sujeito atesta que qualquer indivíduo, apenas na sua condição de falante/escritor/
leitor, reflete sobre a linguagem no interior de situações concretas de interação, e não apenas
especialistas da área, como linguistas e gramáticos. Sendo os alunos sujeitos de linguagem, eles
igualmente refletem sobre a linguagem nas interações das quais participam nos diversos espaços
sociais. No lugar de transmitir aos alunos os resultados do trabalho reflexivo do gramático e de
ter como parâmetro de avaliação a proximidade ou o distanciamento com que o aluno reproduz
esses resultados que lhe foram previamente dados, o professor de língua materna, na visão de
Geraldi (1991), deve trazer para a sala de aula as reflexões que o aluno enquanto sujeito de
linguagem empreende sobre os recursos linguísticos que mobiliza para produzir e compreender
enunciados. Deve, além de trazê-las para a escola, potencializar tais reflexões através de sua
mediação. Essencialmente, é em torno das atividades epilinguísticas e metalinguísticas que deve
girar o eixo da análise linguística proposta por Geraldi (1991, 1996), cabendo aos dois outros
eixos promover a realização de atividades linguísticas na escola. É assim que o autor busca, com
89
sua proposta, superar o artificialismo das práticas vinculadas ao ensino tradicional de língua
materna.
Para Geraldi (1991, 1996) e para Franchi (2013 [1987]), é o exercício contínuo de operar
sobre a linguagem através de atividades epilinguísticas que possibilitará ao aluno refletir sobre a
língua no interior de um quadro nocional com categorias e terminologias próprias. Por essa razão,
as práticas de análise linguística (ou o ensino de gramática, para Franchi) devem, na visão dos
autores, priorizar, sobretudo nos anos iniciais de escolarização, o desenvolvimento de atividades
epilinguísticas, como um meio de valorizar a atividade intuitiva de reflexão linguística realizada
por todo sujeito falante. Com as atividades metalinguísticas, Geraldi (1991) entende que o aluno
poderá sistematizar o conhecimento que produziu por meio das atividades epilinguísticas, e não
se limitar a memorizar, através da exposição exaustiva a exemplos prototípicos e da posterior
exercitação, categorias gramaticais já construídas pelos especialistas. Franchi (2013 [1987], p. 97,
grifo nosso) também defende que o foco das aulas de gramática sejam as atividades
epilinguísticas e que a metalinguagem só seja paulatinamente introduzida como decorrência de
um amplo trabalho epilinguístico:
Não se trata (espero que tenha ficado claro) de começar desde cedo a “classificar” as
orações (em interrogativas, exclamativas, afirmativas) ou em estudar séries de pronomes
pessoais (do caso reto e do caso oblíquo) ou de rever a concordância (nominal e verbal
com as categorias de gênero e de número, listas de regras de formação do plural etc.) ou
de estudar formas cultas de orações relativas e seus pronomes (quem, que, o qual, os
quais, a qual, as quais e cujo), ou de aprender paradigmas de conjugações verbais
(regulares e irregulares, no presente, no pretérito, no futuro, no indicativo e no
subjuntivo), em decorar listas de preposições (a, ante, até, após, com, contra, de, desde,
para, perante, por, sem, sob, sobre, trás...). Trata-se de levar os alunos, desde cedo, a
diversificar os recursos expressivos com que falam e escrevem e a operar sobre sua
própria linguagem, praticando a diversidade dos fatos gramaticais de sua língua.
O enfoque nas atividades epilinguísticas e a sua precedência ante as atividades
metalinguísticas defendidos por Geraldi (1991, 1996) e Franchi (2013 [1987]) nos conduzem a
um conflito recorrente entre professores de português e estudiosos da área: diante das novas
recomendações teórico-metodológicas para o tratamento dos fenômenos linguísticos na escola,
qual é o espaço das nomenclaturas em meio a um ensino de língua centrado na reflexão e na
produção de conhecimentos? Muitos estudiosos da área já procuraram responder a essa questão e,
dentre os que partilham com Geraldi da necessidade de um ensino voltado para a concepção
sociointeracionista de linguagem, a maior parte deles não enxerga como um problema o uso da
metalinguagem na aula de português. O problema está em fazer do domínio da metalinguagem a
90
finalidade última do ensino de língua. Mais do que isso, o problema está em desvincular as
designações que os especialistas atribuíram aos elementos linguísticos de suas motivações
epistemológicas, como se as categorias gramaticais tivessem uma existência autônoma, como se
sua forma de referir os fenômenos da língua fosse neutra e não atendesse a propósitos específicos
de descrição/análise/prescrição nem trouxesse consigo uma visão particular de língua – algo
semelhante ao processo de naturalização da gramática tradicional apontado por Borges Neto
(2013) e à fetichização dos conteúdos de ensino apontado por Geraldi (1991). Observe-se, por
exemplo, a crítica que Geraldi (1996, p. 124-125, grifos nossos) faz ao modo como, não raro, as
classes de palavras são apresentadas ao aluno da escola básica:
Ora, as classes gramaticais lhe [ao aluno] são apresentadas a partir de definições, sem
que os critérios de classificação sejam explicitados e sem que os objetivos da própria
classificação sejam considerados. Aprende nomes de classes, definições, faz exercícios,
mas não consegue entender a razão de tais classificações. [...] Toda classificação
responde a algum objetivo teórico (em língua não há classes naturais e aquelas que
construímos respondem a alguma necessidade do estudo teórico que a produziu), e este
objetivo nunca é explicitado no ensino da gramática (a classificação parece ter um valor
em si).
Ao discutir o conflito acerca da função da metalinguagem no ensino de língua materna,
Suassuna (2012) alerta para o fato de que o pensamento científico exige a construção de uma
nomenclatura própria para viabilizar a referência aos fenômenos por parte dos sujeitos. A autora,
então, realoca a problemática da metalinguagem na escola: a questão não está em utilizá-la ou
não, mas em não tomá-la como objeto de ensino. O que se ensina na aula de português, já vimos,
são as diferentes formas de usar a língua para produzir sentidos nos processos interativos e os
caminhos para se compreenderem os discursos que circulam socialmente. A metalinguagem,
então, deve ser uma ferramenta que colabore para que esses objetivos sejam alcançados. Nas
palavras de Suassuna (2012, p. 22), o apelo à metalinguagem é válido “quando a descrição da
língua se impõe como meio para alcançar o domínio da língua”. Nessa perspectiva, ela afirma
que “[...] não é a aprendizagem da nomenclatura que nos faz aprender a língua; pensar sobre ela
é que exige de nós que tenhamos uma linguagem científica própria” (SUASSUNA, 2012, p. 22,
grifo nosso).
Mendonça (2006) também discute a questão do papel da metalinguagem no contexto das
práticas escolares de análise linguística. Ela considera que o dilema entre ensinar ou não
nomenclatura é uma “falsa questão”, porque, como Suassuna (2012), entende que o ato de
designar os fenômenos do mundo (dentre eles, a língua) é uma etapa comum à construção do
91
conhecimento, qualquer que seja a sua natureza. Essa constatação, entretanto, não implica a
necessidade de se demandar do aluno a memorização da extensa categorização da tradição
gramatical. O que Mendonça (2006) coloca em pauta é a necessidade de que o aluno saiba dizer
(ainda que por meio de uma paráfrase individual e intuitiva), e não apenas saiba. De fato,
aprendendo a falar sobre um determinado fenômeno linguístico, o aluno reflete sobre o seu uso, e
não apenas pratica esse uso. Essa reflexão pode, por sua vez, levá-lo a modificar (ou não) o uso,
mas certamente a escolha por uma forma ou por outra decorre de uma reflexão sobre sua
adequação em relação aos propósitos da interação. Da mesma forma, a reflexão sobre os usos
ampliará as suas possibilidades de avaliar as formas linguísticas utilizadas por um autor na
construção de um texto, de modo que, enquanto leitor, o aluno poderá interagir mais
profundamente com o texto/autor, identificando as possíveis intencionalidades subjacentes à
configuração que o autor deu ao texto e atribuindo sentidos ao que lê por meio das pistas
linguísticas que encontra no processo de leitura.
A reflexão linguística, portanto, está a serviço dos usos (leitura, escrita, fala e escuta), e o
conhecimento dos termos técnicos utilizados para se referir aos fenômenos linguísticos pode
auxiliar o processo reflexivo, contanto que sua aprendizagem não se limite à memorização e à
aplicação de análises previamente fabricadas. Conhecer as nomenclaturas auxilia a reflexão que
se propõe nas aulas de língua portuguesa porque, como lembra Mendonça (2006, p. 218), “[...] o
uso da metalinguagem é econômico [...]”, no sentido de que “[...] possibilita referir-se aos
fenômenos em qualquer exemplo, desde que estes estejam englobados por um nome genérico”.
Outra contribuição fundamental do domínio da metalinguagem pelo aluno, segundo a autora, é o
desenvolvimento de uma autonomia na manipulação de manuais de consulta, tais como
gramáticas e dicionários, uma vez que os índices e os verbetes são neles apresentados através da
terminologia gramatical (MENDONÇA, 2006). Vale salientar que as considerações de Mendonça
(2006) dizem respeito ao contexto de trabalho com o ensino médio e que, portanto, apontam para
o objetivo final de se ir progressivamente introduzindo os conceitos gramaticais aos alunos, não
sugerindo de forma alguma que os estudantes das séries iniciais tenham, desde já, a necessidade
de conhecer a fundo a metalinguagem gramatical.
Mendonça (2006) recorre, ainda, a uma distinção que contribui largamente para se
responder à indagação em pauta: a formação de usuários da língua e a formação de analistas da
língua. O ensino de português deve, no seu ponto de vista, atentar para o primeiro objetivo,
92
embora tradicionalmente tenha se ocupado do segundo: “A escola não tem de formar gramáticos
ou linguistas descritivistas, e sim pessoas capazes de agir verbalmente de modo autônomo,
seguro e eficaz, tendo em vista os propósitos das múltiplas situações de interação em que estejam
engajadas” (MENDONÇA, 2006, p. 204, grifo nosso). Com vistas à formação do usuário da
língua, ensinar português, como já pontuamos, não requer exigir do aluno o domínio de todo o
aparato terminológico da tradição gramatical (ou de qualquer outra teoria linguística). É preciso,
pois, filtrar os conhecimentos que são de fato necessários para ampliar as possibilidades de
expressão oral e escrita dos alunos, bem como para aprofundar a sua imersão nos textos com os
quais dialogam no momento da leitura. Não há dúvidas de que, para fazer essa seleção, o
professor deve ter consolidado o seu conhecimento em relação ao saber gramatical. O professor é
um especialista da língua, o aluno não, como bem lembra Mendonça (2006).
É devido à necessidade de formar usuários da língua e não especialistas que a autora
critica a organização cumulativa dos conteúdos gramaticais recorrente nas escolas brasileiras.
Isso porque ela entende que essa lógica utilizada para instituir a progressão dos tópicos a serem
estudados nas aulas de português (supostamente do mais simples para o mais complexo) vai de
encontro ao fluxo natural de aprendizagem. Se convencionalmente a escola vinha (e, por vezes,
vem) apostando numa abordagem sequenciada das unidades menores da língua às maiores – não
ultrapassando, contudo, o nível da oração –, Mendonça (2006) explica que é, ao contrário, do
macro para o micro que se dá a aprendizagem da língua. O indivíduo aprende à medida que se
envolve em situações de interação e produz sentidos de acordo com intencionalidades
comunicativas precisas. Da inserção no amplo processo interativo, o sujeito se vale da
mobilização mais pontual de recursos expressivos para alcançar aqueles mesmos objetivos.
Assim, Mendonça (2006) demonstra entender o processo de aprendizagem da língua na mesma
linha de pensamento de Geraldi (1991), tendo em vista o destaque que ele atribui ao mergulho do
sujeito em práticas de linguagem concretas como caminho necessário à ampliação do domínio
dos recursos expressivos dos quais a língua dispõe.
O fluxo natural da aprendizagem é: da competência discursiva para a competência
textual até a competência gramatical (também chamada por alguns de competência
linguística). O isolamento de unidades mínimas – que é parte da competência gramatical
– é um procedimento de análise e que só tem razão se retornar ao nível macro: na escola,
analisar o uso de determinada palavra num texto só tem sentido se isso trouxer alguma
contribuição à compreensão do funcionamento da linguagem e, portanto, se auxiliar a
formação ampla dos falantes. (MENDONÇA, 2006, p. 204)
93
Como foi possível perceber até o momento, a introdução das práticas de análise
linguística nas aulas de língua portuguesa da educação básica não exclui os saberes oriundos da
tradição gramatical, mas, devido à insuficiência desses saberes para explicar o funcionamento da
língua e para desenvolver as habilidades de leitura e escrita necessárias à participação ativa do
sujeito nas diversas situações concretas de interação verbal, propõe um redimensionamento dos
objetos de ensino, dos objetivos de aprendizagem e dos caminhos metodológicos trilhados pelo
professor. Nesse sentido, na proposta de Geraldi (1997a [1984], 1997b [1984], 1991, 1996), as
categorias e os conceitos oriundos da gramática tradicional só integram as atividades
desenvolvidas no ensino de língua materna quando são relevantes para expandir a capacidade de
expressão e compreensão dos alunos. E, ainda assim, não se trata dos mesmos objetos, porque,
mudadas as metas de aprendizagem, muda também o ângulo segundo o qual o fenômeno
linguístico é analisado. Antes eram valorizadas as habilidades de identificação e classificação das
estruturas com base em categorias previamente definidas pelos gramáticos. Cabia ao aluno
reproduzir essa forma de analisar as unidades da língua, tomada como verdade absoluta e
desvinculada dos contextos de produção discursiva. Agora, valoriza-se, no eixo da análise
linguística, o processo de tomar a língua(gem) como objeto e refletir sobre o seu funcionamento,
relacionando a dimensão estrutural da língua aos efeitos de sentido passíveis de serem
construídos. Não se trata mais de reproduzir o conhecido, mas de, em decorrência de uma atitude
reflexiva, elaborar efetivamente conhecimentos acerca da língua(gem), partindo das intuições que
todo sujeito, já na condição de falante, possui sobre ela. Com as reflexões propostas na aula de
português, essas intuições devem ser potencializadas e sistematizadas com a mediação do
professor. No contraste entre suas intuições e o saber já produzido acerca da língua, os alunos
podem desenvolver uma atitude crítica perante os conhecimentos propagados pela tradição
gramatical, percebendo que estes não constituem verdade inquestionável a respeito da estrutura
da língua e mobilizando com autonomia aquilo que dessa tradição se mostre relevante para seus
usos linguísticos nas diversas instâncias de produção discursiva.
Para fins de síntese, consideramos produtivo transcrever o quadro produzido por
Mendonça (2006, p. 207) para estabelecer uma comparação entre o tratamento dado aos
fenômenos linguísticos na escola a partir de uma abordagem tradicional e o viés proposto pelas
práticas de análise linguística. É evidente que, na prática concreta de sala de aula, não há uma
divisão tão nítida entre uma e outra perspectiva, dada a complexidade dos fatores que incidem
94
sobre as práticas de ensino. Como explica Mendonça (2006), a sistematização do quadro tem
finalidade ilustrativa em relação aos elementos prototípicos de cada forma de abordagem, não
representando a multiplicidade de procedimentos adotados efetivamente nas salas de aula, mesmo
porque ela própria reconhece, no momento atual, a presença simultânea de perspectivas distintas
nas práticas desenvolvidas por um mesmo professor. A despeito disso, o quadro nos traz uma boa
síntese dos pontos que abordamos até o momento.
ENSINO DE GRAMÁTICA
PRÁTICA DE ANÁLISE LINGUÍSTICA
Concepção de língua como sistema, estrutura inflexível e
invariável.
Concepção de língua como ação interlocutiva
situada, sujeita às interferências dos falantes.
Fragmentação entre os eixos de ensino: as aulas de
gramática não se relacionam necessariamente com as de
leitura e de produção textual.
Integração entre os eixos de ensino: a AL é
ferramenta para a leitura e a produção de textos.
Metodologia transmissiva, baseada na exposição dedutiva
(do geral para o particular, isto é, das regras para o
exemplo) + treinamento.
Metodologia reflexiva, baseada na indução
(observação dos casos particulares para a conclusão
das regularidades/regras).
Privilégio das habilidades metalinguísticas.
Trabalho paralelo com habilidades metalinguísticas
e epilinguísticas.
Ênfase nos conteúdos gramaticais como objetos de ensino,
abordados isoladamente e em sequência mais ou menos
fixa.
Ênfase nos usos como objetos de ensino
(habilidades de leitura e escrita), que remetem a
vários outros objetos de ensino (estruturais, textuais,
discursivos, normativos), apresentados e retomados
sempre que necessário.
Centralidade da norma-padrão.
Centralidade dos efeitos de sentido.
Ausência de relação com as especificidades dos gêneros,
uma vez que a análise é mais de cunho estrutural e, quando
normativa, desconsidera o funcionamento desses gêneros
nos contextos de interação verbal.
Fusão com o trabalho com os gêneros, na medida em
que contempla justamente a intersecção das
condições de produção dos textos e as escolhas
linguísticas.
Unidades privilegiadas: a palavra, a frase e o período.
Unidade privilegiada: o texto.
Preferência pelos exercícios estruturais de identificação e
classificação de unidades/funções morfossintáticas e
correção.
Preferência por questões abertas e atividade de
pesquisa, que exigem comparação e reflexão sobre
adequação e efeitos de sentido.
Quadro 2: Diferenças entre ensino de gramática e análise linguística segundo Mendonça (2006)
3.3.2 Diálogos entre análise linguística e leitura no ensino de português
Na subseção anterior, ao esmiuçarmos conceitos teóricos vinculados à proposta de Geraldi
para o eixo da análise linguística e ao apresentarmos alguns aspectos metodológicos relativos à
sua concretização na aula de português, procuramos apontar alguns indícios da intrínseca
95
articulação dessa abordagem dos conhecimentos linguísticos com a produção de textos e,
sobretudo, com a leitura. Ao longo de toda a nossa exposição, demos relevo à posição de
transversalidade da análise linguística no interior do projeto de ensino de língua materna na
perspectiva sociointeracionista tal como propõe Geraldi. Esse atravessamento se revela para
professores e alunos especialmente no papel auxiliar da reflexão linguística em relação aos usos
da língua, tanto na modalidade escrita quanto na modalidade oral, tanto na atuação do sujeito
enquanto enunciador quanto na sua atuação enquanto interlocutor. Refletir sobre a natureza e o
funcionamento da linguagem por meio de atividades epilinguísticas e metalinguísticas é, na ótica
de Geraldi, um caminho para ampliar as possibilidades de interação do aluno em situações
concretas de interlocução. É um caminho para que ele desenvolva autonomia na escolha das
formas linguísticas mais adequadas às suas intencionalidades discursivas e na compreensão do
percurso discursivo trilhado por outrem em circunstâncias de fala e de escrita. Esta subseção
avança na direção do aspecto particular que buscamos investigar com a presente pesquisa por se
concentrar especificamente nas interseções verificadas entre os eixos didáticos da análise
linguística e da leitura. Se historicamente, conforme vimos no primeiro capítulo desta dissertação,
gramática e leitura só dialogavam para que os textos lidos servissem de material de exercitação
metalinguística e/ou fornecessem um modelo de boa escrita segundo os padrões da norma
linguística de prestígio social, a situação parece se modificar com a entrada das práticas de
análise linguística na escola. Para explicitar essa mudança de cenário, versaremos sobre as
concepções e reflexões de Geraldi (1991, 1996) sobre o trabalho com a leitura na escola,
procurando destacar os pontos de convergência entre tais ideias e os elementos teórico-
metodológicos que expusemos no item anterior, principalmente no tocante ao desenvolvimento
de atividades epilinguísticas na escola.
Apesar do enfoque na produção de textos, Geraldi (1996, p. 62, grifo nosso) explica que
“a reflexão linguística [...] se dá concomitantemente à leitura, quando esta deixa de ser mecânica
para se tornar construção de uma compreensão dos sentidos veiculados pelo texto [...]”. Fica
claro, então, que o diálogo entre os dois eixos em pauta depende do viés através do qual se
compreende a leitura e se pratica essa atividade na escola. Por essa razão, é este o nosso ponto de
partida: iniciamos nossa discussão acerca da interface análise linguística/leitura trazendo à tona a
perspectiva de leitura defendida por Geraldi (1991, 1996) para guiar o ensino de língua materna
na educação básica e explicitando as repercussões práticas da abordagem por ele proposta.
96
É longo e antigo o debate acadêmico acerca da natureza da atividade do sujeito durante a
leitura e acerca do que essa prática representa no âmbito da relação do sujeito com a língua(gem).
À medida que se alteram os pontos de vista sobre a língua(gem), alteram-se também os pontos de
vista sobre a leitura. Embora Possenti (2001) esteja vinculado a uma perspectiva teórica distinta
da via pela qual optamos por seguir no desenvolvimento desta pesquisa (sua atuação enquanto
pesquisador se insere no campo da análise do discurso francesa), resgatamos um retrospecto
histórico que, em um de seus escritos relacionados à leitura, ele elaborou sobre como as diversas
abordagens linguísticas foram, ao longo do tempo, passando a compreender tal prática. Essa
escolha se deve à concisão do apanhado histórico de Possenti (2001) e ao potencial dessa
retomada para situar com certa precisão a posição de Geraldi (1991, 1996) no domínio das teorias
sobre a leitura.
As concepções de leitura e sobre a natureza da atividade do leitor variam de acordo com o
componente focalizado como determinante para a significação (leitor, autor, texto) para o qual é
atribuído mais relevância (ou ênfase) na definição da “origem”, por assim dizer, da produção de
sentidos. Quanto a tal enfoque, Possenti (2001) volta o olhar para a história da leitura (ou para a
história de como se lia e de como os estudos linguísticos compreendiam a natureza dessa
atividade), elaborando uma sinopse que passamos agora a resgatar.
Num primeiro momento, Possenti (2001) destaca que a produção de sentidos era atribuída
ao autor enquanto indivíduo, solitário, egocêntrico, que representava suas ideias e seus valores
através de um código transparente. Essa transparência, como aponta Possenti (2001, p. 27),
“poderia ser reconstituída para a época da obra e do autor”. O autor, então, tinha completo
domínio sobre os significados que imprimia ao texto. A atividade do leitor era recuperar a
expressão do pensamento do autor materializada no texto, ou seja, nele reconhecer as ideias e as
intenções do autor. Evidencia-se uma noção de língua como expressão do pensamento, centrada
na subjetividade do sujeito e codificável em sinais gráficos plenamente recuperáveis.
No segundo momento, a ênfase recai sobre o próprio texto. Apagam-se da produção de
sentidos os sujeitos – autor e leitor –, que se limitam a usar o texto (como se faz com um objeto)
para decodificá-lo. Trata-se, conforme indica Possenti (2001), do advento do estruturalismo: as
categorias da langue de Saussure foram realocadas para o texto. E é nesse sentido que a língua (e
o texto) é também vista como transparente. Em ambos os casos, a materialidade linguística do
texto é o todo de onde emana a significação. Não há ambiguidades, ou possibilidades não
97
previstas (num texto “bem escrito”). Mas, se no primeiro caso, o que o leitor buscava recuperar
era o pensamento do autor, agora ele procura o significado do próprio texto reificado.
A hipótese de que a leitura estaria centrada unicamente no código (e que desse código
emanaria a totalidade do sentido do texto), tal qual Saussure pensara a langue como signos
combináveis no interior de um sistema alheio ao sujeito, foi refutada ao serem percebidos o
potencial polissêmico dos textos e a existência de “espaços em branco que deveriam ser
preenchidos de alguma forma” (POSSENTI, 2001, p. 27). É quando o foco de atenção se volta,
enfim, para o leitor. Sobre as concepções que veem no leitor a fonte precípua da produção de
sentidos, Possenti (2001, p. 27) assinala algumas possibilidades para a ação do sujeito durante a
leitura: “[o leitor] é [...] o que lê o que nem o texto diz e/ou que opta entre as muitas coisas que
um texto diz, ou ainda que ‘fica’ com todas as coisas que um texto diz ao mesmo tempo, ou,
alternativamente, que numa leitura fica com uma coisa e em outra com outra [...]”.
Houve, pode-se dizer, uma contribuição importante a partir dessas últimas abordagens, a
saber: o reconhecimento da condição não passiva do sujeito leitor. Entretanto, o problema que se
instaurou daí por diante foi de outra ordem. Constatado que o leitor não se limita a uma atividade
de reconhecimento/decodificação de um texto entendido como materialização do pensamento do
indivíduo-autor ou como código transparente e unívoco; e constatado que, se há várias leituras
possíveis para um mesmo texto e se o texto não diz explicitamente tudo como se supunha, esses
fatos se explicam pela atuação do leitor; as questões em pauta agora eram: a) qual é a natureza da
atuação do leitor na produção de sentidos do texto?; b) se o elemento primordial para a
significação na leitura é o leitor – e não o texto ou o autor –, isso quer dizer que os significados
produzidos são infinitamente múltiplos e que independem do material linguístico ou das
intenções do autor?
Em outro texto, Possenti (1990) trata da origem desse aparente conflito teórico. Segundo
o autor, à medida que se focalizava um componente, os demais perdiam seu lugar, como se não
exercessem, em instância alguma, influência na significação implicada na leitura. É nesse sentido
que o autor tece uma contundente crítica ao posicionamento teórico do “tudo ou nada” na
reflexão acerca da atividade leitora:
O equívoco revela um raciocínio rasteiro, e que pode, simplificadamente, ser assim
formulado: se um fator não resolve totalmente um problema, então ele não tem
relevância alguma. Aplicado o raciocínio ao caso, produziu os seguintes equívocos: se o
autor não tem condições de controlar totalmente a interpretação do texto que produz,
então ele é um fator a ser desconsiderado totalmente. Vai-se então ao texto, pensando:
98
agora sim temos a chave, pois estamos diante de um código: como ele é geral, não é
idiossincrático, é só decodificar. E o que se percebe é que o texto que deveria ser
transparente está longe de exibir tal propriedade. Donde se conclui que, se ele não
fornece completamente seu sentido, então não deve mais ser levado em conta. Vale o
que vale o autor: nada. E vai-se então ao leitor, dizendo-lhe que ele faz com o texto o
que puder, que ele é o árbitro. Alguns concluem que, se é a eles que cabe a decisão,
então é preciso esforçar-se para não fazer feio. Outros acham que, já que são eles mesmo
que decidem, o que fizerem estará bem feito (POSSENTI, 1990, p. 560, grifo nosso).
Geraldi (1991) toca nessa mesma questão ao criticar a forma como a escola veio se
apropriando das teorias que ressaltam o papel do leitor enquanto produtor de sentidos a partir do
preenchimento dos espaços em branco do texto. Trata-se, para o autor, de mais uma forma de
fetichização do conhecimento científico promovido pela escola quando dele se vale para instituir
um conteúdo de ensino.
A escola passa a admitir [...] que o sentido que vale é aquele que lhe atribui o leitor:
como contraponto “revolucionário” a tudo o que era anterior, o texto e as leituras que lhe
são previstas desaparecem em benefício do sentido que lhe atribui o leitor em suas
leituras. Uma forma de inserção do texto, com uma ideologia de que tudo vale, que
paradoxalmente faz desaparecer o próprio objeto de leitura. (GERALDI, 1991, p. 108,
grifo do autor)
Haveria, então, uma via alternativa às concepções que apresentamos? Uma via que
reconheça a não transparência da língua e, ao mesmo tempo, não exclua a incidência do texto, do
autor e do leitor na produção de sentidos? Uma das vertentes de estudos linguísticos que nos
permite responder a essa indagação é justamente a perspectiva interacionista ou enunciativa de
linguagem em que se insere Geraldi (1991,1996), pois ela entende como fator determinante para
a significação na leitura a relação que se estabelece entre autor/texto/leitor, levados em conta os
sujeitos do processo interlocutivo. É por isso que falamos em leitura dialógica. O elemento texto
aqui é contemplado, mas como a materialização de uma interação entre sujeitos – não como
código a ser captado tal qual foi produzido, nem como representação de uma subjetividade
individual (visto que qualquer texto, na perspectiva da enunciação, integra uma cadeia mais
ampla de produção discursiva). Apesar de reconhecer a atividade do leitor – sem a qual a leitura
não se concretiza –, Geraldi (1991, 1996) entende que ela não descarta a existência de um objeto
a ser lido (o texto), produzido também por meio do trabalho linguístico do agente-autor. Ainda
que o autor não tenha condições de controlar plenamente os diversos caminhos que os leitores
podem trilhar com base em um mesmo texto, as possibilidades de caminho (as “leituras
legitimáveis”) são construídas através das pistas de interpretação presentes no texto (GERALDI,
1996). É claro que essas pistas não são transparentes e, para gerarem um sentido, dependem de
99
seu encontro com o trabalho discursivo do leitor. É nesse sentido que Geraldi (1991) afirma que o
texto aponta tanto para a abertura quando para o fechamento de sentidos. Leitor e autor
estabelecem, na escrita e na compreensão do texto, um compromisso mútuo que deságua na
produção de sentidos, fruto da interação que entre eles ocorre no momento da leitura.
Ao ressaltar o caráter dialógico da leitura, Geraldi (1991, p. 167) refuta a ideia de que ler
consista num ato de mera decodificação: “Se assim não fosse, não seria interlocução, encontro,
mas passagem de palavras em paralelas, sem escuta, sem contrapalavras: reconhecimento ou
desconhecimento, sem compreensão”. Remete, assim, à concepção bakhtiniana de que a
linguagem é sempre orientada para o outro e, por isso, de que a compreensão é também sempre
um processo ativo e responsivo. Bem como em qualquer atividade enunciativa, na leitura, a
compreensão exige do interlocutor um posicionar-se diante da palavra do outro. Ao ler – e
compreender – um texto, o leitor age, relacionando sua experiência de mundo (ou a sua leitura de
mundo, nos termos de Paulo Freire11
) e seu repertório linguístico ao universo construído pelo
autor e, por isso mesmo, reorganizando essa esfera de criação. Assumir o caráter produtivo da
leitura implica assumir que a construção de sentidos do texto não é mais outorgada à figura
individual do autor nem a um código linguístico pretensamente transparente capaz de fornecer o
sentido legítimo, adequado e unívoco do texto. O leitor ativo, então: dialoga ininterruptamente
com o autor; e produz significação em cooperação com o autor (e com o repertório proveniente
da relação com o outro e de suas leituras anteriores – da palavra e do mundo, cf. FREIRE, 1992).
Frente a esse modo de compreender a leitura e a atividade do leitor, Geraldi (1991, 1996)
repensa o lugar do texto no ensino de língua materna com base na perspectiva de linguagem que
veio assumindo no decorrer de sua obra. Se não há uma única leitura prevista para o texto e se o
caminho a ser percorrido está sujeito ao diálogo que o leitor travará com o texto/autor, cabe ao
professor se colocar como um interlocutor junto ao aluno e intermediar o seu encontro com o
texto/autor através de intervenções didáticas: “Mediador de leituras, cabe ao professor um papel
ativo nesse processo, perguntando, fazendo refletir, fazendo argumentar, escutando as leituras de
seus alunos para com elas e com eles reaprender o seu eterno processo de ler” (GERALDI, 1996,
11
Na intrínseca relação que via entre linguagem e realidade, Paulo Freire (1992) foi um ferrenho defensor de que a
leitura (“leitura da palavra”) – bem como qualquer forma do sujeito atuar no mundo – não é neutra, no sentido de
que não se desloca da visão de mundo daquele que lê (“leitura do mundo”). É nesse sentido que entendia a leitura
crítica (na relação entre o que, naquele momento, ele chamava de texto e contexto): “A leitura do mundo precede a
leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele.”
(FREIRE, 1992, p. 11).
100
p. 118). Ao fazer isso, assume-se o processo interlocutivo implicado na prática da leitura e, como
pensava Bakhtin (2014 [1929]), reconhece-se a compreensão como um inevitável posicionamento
ativo e responsivo diante do que foi enunciado. Dessa forma, o professor, explica Geraldi (1991,
1996), valoriza as contrapalavras que o aluno tem a oferecer ao texto e pode, inclusive, contrastá-
las com aquelas que outros leitores lhe ofereceram (até mesmo com aquelas que o professor
enquanto leitor lhe ofereceu). Entretanto, escutar as contrapalavras do aluno, como já vimos, não
significa aceitar todo e qualquer sentido por ele produzido no processo de leitura. No diálogo que
se estabelece entre professor e aluno, Geraldi (1991, 1996) defende que é preciso recuperar a
caminhada interpretativa que levou o aluno a atribuir determinados sentidos ao texto justamente
para poder identificar coletivamente a origem de um eventual equívoco: “Caberá ao professor não
a correção de tal leitura, mas descobrir com o leitor os passos desta caminhada para que este
leitor/aluno perceba onde os encadeamentos feitos poderão estar sendo responsáveis pelo sentido
final inadequadamente produzido” (GERALDI, 1996, p. 117).
Apresentada, em linhas gerais, a abordagem teórico-metodológica defendida por Geraldi
(1991, 1996) para o trabalho com a leitura na escola, chegamos ao momento de costurar
explicitamente os fios que ligam essa abordagem à proposta da análise linguística sobre a qual
discorremos na subseção anterior. Podemos dizer, numa síntese inicial, que é no resgate do
percurso interpretativo do aluno-leitor que Geraldi (1991) encontra espaço para o
desenvolvimento das atividades epilinguísticas que caracteriza o eixo dos conhecimentos
linguísticos. Vejamos como o autor sugere a concretização desse trabalho.
Tendo em vista que o texto lido em sala de aula é resultado de um processo de produção
em que se engajou o autor, Geraldi (1991) retoma os elementos que apresentara como condições
necessárias para a produção de textos (dos alunos, ou de qualquer outro locutor). Segundo
Geraldi (1991, p. 137), a produção de um texto demanda que: “a) se tenha o que dizer; b) se tenha
uma razão para se dizer o que se tem a dizer; c) se tenha para quem dizer o que se tem a dizer; d)
o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que diz para quem diz [...]; e) se
escolham as estratégias para realizar (a), (b), (c) e (d).”
Na proposta de Geraldi (1991), a leitura se vincularia à produção de textos por possibilitar
o contraste entre as palavras do autor e as contrapalavras do aluno, envolvendo-o num processo
ativo e responsivo de compreensão e, desse modo, atuando sobre “o que se tem a dizer”: “[...]
lendo a palavra do outro, posso descobrir nela outras formas de pensar que, contrapostas às
101
minhas, poderão me levar à construção de novas formas, e assim sucessivamente” (GERALDI,
1991, p. 171). A leitura também se articularia à produção de textos porque o autor, para produzir
o texto lido pelo aluno na sala de aula, precisou escolher estratégias de dizer para viabilizar os
efeitos de sentido que pretendia proporcionar ao leitor por meio de seu texto. As estratégias de
dizer e o que se diz são elementos inseparáveis no interior de uma dada enunciação. No diálogo
com essas formas de dizer, o leitor amplia suas possibilidades de construir ele próprio uma forma
de dizer condizente com aquilo que desejar dizer.
Em suma, trata-se de, durante a leitura, analisar como as estratégias de dizer escolhidas
pelo autor contribuíram para que o texto adquirisse o formato com o qual o leitor se deparou e
por meio do qual ele foi capaz de encontrar-se com o autor e produzir sentidos com base nas
pistas linguísticas identificadas: “O locutor/autor ao escolher uma certa configuração para o seu
texto, ‘desescolhe’ outras e, em certa medida, compromete-se com as estratégias escolhidas.
Estas são também chaves com que o lê.” (GERALDI, 1991, p. 184). Perceba-se que essa análise
já se configura como uma atividade de análise linguística, nos moldes pensados por Geraldi
(1991, 1996), pois há aqui um movimento de tomar a linguagem como objeto para compreender
as suas propriedades estruturais e seu funcionamento sociodiscursivo. Portanto, é no cruzamento
das estratégias de dizer com o que se tem a dizer que a análise linguística se instaura no processo
de leitura dos alunos: “[...] Toda a reflexão sobre diferentes formas de dizer [...] são atividades
epilinguísticas e, portanto, ‘análises linguísticas’ tão importantes quanto outras mais pontuais
[...]” (GERALDI, 1991, p. 190). É por isso que sua proposta para o trabalho com a leitura na sala
de aula procura ir além das questões acerca do conteúdo propriamente dito do texto. Geraldi
(1991, 1996) defende que as indagações feitas pelo professor de língua portuguesa provoquem o
aluno a perceber esse “conteúdo” como consequência de um trabalho linguístico e discursivo
realizado pelo autor – trabalho em que os recursos expressivos da língua são manipulados
intencionalmente para resultarem nos dizeres que o texto fornece ao leitor como ponto de partida
para se instaurar um processo interlocutivo. Assim, é imprescindível que a mediação da leitura
realizada na escola promova uma reflexão sobre as formas de dizer reveladas pelas marcas
linguísticas dos textos lidos. Do contrário, Geraldi (1991) entende que o trabalho pedagógico
desenvolvido se limitará a uma leitura da superfície do texto.
É no âmbito da análise linguística impulsionada pelo processo de leitura instituído na sala
de aula que o professor terá, inclusive, condições de, como indicamos anteriormente, levar o
102
aluno a compreender as causas de uma possível compreensão equivocada do texto, pois a
recuperação da caminhada interpretativa do aluno necessariamente demandará um exame
aprofundado da mobilização dos recursos expressivos realizada pelo autor e do diálogo que o
aluno travou com essa forma de dizer. Sabe-se, no entanto, que analisar linguisticamente um
texto na escola não significa dele retirar palavras, expressões e frases para isoladamente solicitar
a exercitação da metalinguagem gramatical. A análise linguística concebida por Geraldi (1997b
[1984], 1991, 1996) surge justamente contrapondo-se a essa forma tradicionalmente utilizada
para ensinar gramática na escola. Sobre essa questão, Geraldi (1991) não enxerga um problema
no ato de tomar o texto como pretexto, pois, tendo em vista que o leitor tem sempre um objetivo
em mente ao travar diálogo com um determinado texto, o pretexto está sempre presente no ato de
ler, orientando a atividade do leitor. O ponto problemático da leitura como pretexto para o
exercício taxionômico recorrente no ensino tradicional de gramática não está no fato de, com
isso, instalar-se um pretexto na atividade pedagógica. A crítica de Geraldi (1991, p. 174) a esse
tipo de prática está no tipo de pretexto que se instala, bem como nos objetivos que guiam a
utilização do pretexto e no decorrente caminho trilhado para colocá-lo em prática:
[...] Há pretextos que, não por serem pretextos, se ilegitimam. Talvez o melhor exemplo
disto seja a utilização do texto que, na escola, se faz para a discussão da sintaxe de seus
enunciados. A ilegitimidade não me parece surgir do estudo sintático em si, mas da
cristalização de tais análises que se não apresentam como possíveis mas como verdades
a que só cabe aderir, sem qualquer pergunta. Qualquer texto, oral ou escrito, nos oferece
ocasião para tentar descobrir os mecanismos sintáticos da língua; e esta não é portanto a
questão. O problema está em que não é a descoberta de tais mecanismos que funciona de
fato como pretexto. É a mera incorporação de explicações sintáticas já prontas que
ilegitimam essa atitude de uso do texto.
Lançadas as bases teóricas da proposta de Geraldi (1997a [1984], 1997b [1984], 1991,
1996) para o eixo dos conhecimentos linguísticos e esclarecido o viés através do qual ele se
articula ao eixo da leitura, procuraremos, a partir da subseção seguinte, ampliar a discussão
acerca desse entrelaçamento fundamentando-nos no que outros autores propuseram para
concretizá-lo. Também procuraremos esboçar os contornos que essa nova forma de encarar os
fenômenos linguísticos na escola têm assumido no contexto brasileiro. Para tanto, voltaremos o
olhar para os dados empíricos de pesquisas recentemente realizadas acerca da temática sobre a
qual temos nos debruçado ao longo desta dissertação, destacando as práticas dos professores
investigados. Ainda com o mesmo intuito, revisitaremos brevemente a abordagem dos PCN e do
PNLD quanto ao eixo da reflexão linguística e à sua relação com as práticas de leitura na escola.
103
3.3.3 Documentos parametrizadores: o que dizem os PCN e o PNLD acerca das práticas de
análise linguística e de sua relação com o eixo da leitura?
O primeiro indício da propagação da proposta de Geraldi para o ensino de língua materna,
como chegamos a afirmar no capítulo anterior, foi a sua oficialização em termos de políticas
públicas com a publicação dos PCN, em 1998. Tendo em vista que as turmas nas quais
acompanhamos as práticas dos professores sujeitos desta pesquisa eram do sétimo ano, os dados
que trouxemos para o início desta subseção referem-se ao documento que se destina ao terceiro e
quarto ciclos do ensino fundamental (isto é, dos atuais sexto ao nono ano). O documento está
dividido em duas partes. A primeira situa brevemente no que consiste a área de língua portuguesa
na educação básica e, a partir da análise de alguns problemas então verificados no ensino,
apresenta os elementos fundamentais por meio dos quais se propõe a reorganização do trabalho
com a língua(gem) na escola, contemplando os objetivos gerais da disciplina e os critérios
indicados para selecionar e sequenciar os conteúdos de ensino. A segunda parte do documento
traz orientações teórico-metodológicas voltadas especificamente para o terceiro e o quarto ciclos
do ensino fundamental. Além de discutir questões mais amplas do processo de ensino e de
aprendizagem de língua portuguesa – tais como as atribuições que, nesse âmbito, cabem a
professores e alunos –, o documento indica parâmetros para a organização do ensino em cada um
dos eixos didáticos (leitura/escuta de textos, produção de textos orais e escritos, análise
linguística), incluindo os objetivos e os conteúdos que lhes concernem. Há, ainda, orientações
para o tratamento didático dos conteúdos indicados para cada eixo, até mesmo para alguns
conteúdos específicos no interior desses eixos (para a análise linguística, por exemplo, há uma
breve discussão acerca do tratamento da variação linguística, do léxico e da ortografia). Por fim,
o documento versa sobre o papel das tecnologias da informação então emergentes no ensino de
língua portuguesa e sobre aspectos relativos à avaliação da aprendizagem.
Já na apresentação inicial do eixo da “reflexão sobre a linguagem”, os PCN se coadunam
com a perspectiva de Geraldi apresentada nas seções e subseções anteriores. Em primeiro lugar,
porque o documento, partindo de uma concepção de linguagem como atividade discursiva e da
defesa de que a unidade de ensino privilegiada na escola deve ser o texto, destaca a
transversalidade do eixo da análise linguística, ou seja, define-o na sua relação com as outras
práticas de linguagem desenvolvidas na aula de português: a leitura/escuta e a produção de textos.
104
No que diz respeito ao diálogo com a leitura, o documento afirma que as práticas de análise
linguística devem possibilitar ao aluno “a reflexão não apenas sobre os diferentes recursos
expressivos utilizados pelo autor do texto, mas também sobre a forma pela qual a seleção de tais
recursos reflete as condições de produção do discurso e as restrições impostas pelo gênero e pelo
suporte” (BRASIL, 1998, p. 27-28). O que se acrescenta aqui à proposta de Geraldi é o trabalho
com os gêneros discursivos como elo entre a reflexão linguística e o ensino da leitura. Traremos
mais detalhes acerca dessa alternativa didática na próxima subseção quando apresentarmos a
proposta de Mendonça (2007b) para a abordagem dos gêneros discursivos no ensino de língua
materna. Por ora, cabe salientar que, como Geraldi (1991, 1996), os PCN introduzem a discussão
sobre o eixo da análise linguística dando relevo à operação do aluno sobre a linguagem com base
nas hipóteses que o seu conhecimento intuitivo permite elaborar sobre o funcionamento de
linguagem. Dessa forma, recomenda um movimento que vai das atividades epilinguísticas às
metalinguísticas para que o aluno seja capaz de comparar as formas linguísticas e de perceber o
que há de regular nos usos linguísticos e o que varia segundo os contextos enunciativos. Outra
similaridade com a proposta de Geraldi é a recomendação de que as gramáticas tradicionais não
sejam os únicos materiais de consulta e os únicos parâmetros para se definirem os conteúdos a
serem ensinados. A escolha dos conteúdos, segundo os PCN, deve atentar para “os aspectos que
precisam ser tematizados em função das necessidades apresentadas pelos alunos nas atividades de
produção, leitura e escuta de textos” (BRASIL, 1998, p. 29). É nesse sentido que o documento
organiza os conteúdos de língua portuguesa em torno de dois núcleos básicos interdependentes: a
o uso de língua oral e escrita; e a reflexão sobre a língua e a linguagem. Esses núcleos, por sua
vez, podem ser subdivididos com base nos eixos didáticos propostos por Geraldi (1997b [1984],
1991, 1996), com o acréscimo da prática de escuta de textos, conforme o esquema abaixo:
Figura 3: Detalhamento da relação entre os eixos do uso e da reflexão linguística com base nas
práticas de linguagem propostas por Wanderley Geraldi (BRASIL, 1998, p. 35)
USO
REFLEXÃO
PRÁTICA de
ESCUTA
e de
LEITURA
de
TEXTOS
PRÁTICA de
PRODUÇÃO
de
TEXTOS
ORAIS e
ESCRITOS
PRÁTICA
de
ANÁLISE
LINGUÍSTICA
105
A partir da Figura 3, é possível perceber que o núcleo central do ensino de língua
portuguesa segundo propõem os PCN são os usos linguísticos, organizados em práticas de leitura/
escuta e produção de textos orais e escritos. São as atividades linguísticas. Os conteúdos
curriculares referentes a esse núcleo, segundo o documento, são “os aspectos que caracterizam o
processo de interlocução”, dentre os quais são elencados:
historicidade da linguagem e da língua; constituição do contexto de produção,
representações de mundo e interações sociais (sujeito enunciador, interlocutor, finalidade
de interação, lugar e momento de produção); implicações do contexto de produção na
organização dos discursos (restrições de conteúdo e forma decorrentes da escolha dos
gêneros e suportes); implicações do contexto de produção no processo de significação
(representações dos interlocutores no processo de construção de sentidos, articulação
entre texto e contexto no processo de compreensão, relações intertextuais). (BRASIL,
1998, p. 35)
O núcleo da reflexão sobre a língua(gem) é viabilizado pelas práticas de análise
linguística e deve ser direcionado para o núcleo central. Noutras palavras, são as atividades
epilinguísticas e metalinguísticas como ferramentas a serviço de uma ampla compreensão acerca
dos usos da língua(gem) – esta ponto de partida e de chegada das ações empreendidas na aula de
português. Quanto aos conteúdos vinculados a esse núcleo, os PCN elencam: “variação
linguística (modalidades, variedades, registros); organização estrutural dos enunciados; léxico e
redes semânticas; processos de construção de significação; modos de organização dos discursos”
(BRASIL, 1998, p. 36). Observe-se que, em consonância com a perspectiva teórica defendida no
documento, os conteúdos selecionados para a reflexão linguística atendem ao critério de,
potencialmente, auxiliarem as habilidades associadas ao núcleo dos usos, não se limitando às
categorias e às noções da gramática tradicional. Ainda que o professor de língua materna possa se
valer do quadro conceitual da tradição gramatical para trabalhar alguns dos tópicos sugeridos
pelos PCN, ele não é suficiente por si só para explicar os fenômenos indicados. Mais do que isso,
a possibilidade de explicar parcialmente os fatos linguísticos por meio do aparato categorial da
tradição gramatical exige que a abordagem desse aparato vá além dos convencionais exercícios
de identificação e classificação. É preciso, mesmo com base nesse quadro teórico, refletir sobre
as implicações das categorias gramaticais para a produção de sentidos, ou seja, é necessário
pensar sobre o modo como determinado elemento linguístico está sendo utilizado no interior de
uma situação concreta de interação e/ou sobre o que aquela categoria nos diz acerca da forma
como o locutor organizou o que tinha a dizer em articulação às razões que motivaram esse dizer.
O uso da metalinguagem por parte do aluno, segundo os PCN, só deve acontecer quando ela se
106
revelar funcional (BRASIL, 1998), o que quer dizer que a importância da metalinguagem
depende da contribuição que ela traz para expandir a compreensão do aluno sobre o
funcionamento da língua(gem) em contextos de uso.
É na interação com o outro e na atuação do sujeito sobre o objeto de conhecimento que os
PCN situam o processo de aprendizagem do sujeito (BRASIL, 1998). O trabalho pedagógico com
a linguagem deve, então, atender à natureza segundo a qual o sujeito aprende a linguagem: nas
situações concretas de interlocução e mobilizando os recursos de que a língua dispõe. Apesar da
necessidade apontada pelos PCN de se atrelar o ensino de língua materna às práticas de
linguagem tal como elas ocorrem no contexto extraescolar, o documento explica o sentido
específico das atividades linguísticas desenvolvidas na aula de português com vistas à
aprendizagem dos alunos:
[...] As práticas de linguagem que ocorrem no espaço escolar diferem das demais porque
devem, necessariamente, tomar as dimensões discursiva e pragmática da linguagem
como objeto de reflexão, de maneira explícita e organizada, de modo a construir,
progressivamente, categorias explicativas de seu funcionamento. Ainda que a reflexão
seja constitutiva da atividade discursiva, no espaço escolar reveste-se de maior
importância, pois é na prática de reflexão sobre a língua e a linguagem que pode se dar a
construção de instrumentos que permitirão ao sujeito o desenvolvimento da competência
discursiva para falar, escutar, ler e escrever nas diversas situações de interação.
(BRASIL, 1998, p. 34, grifos nossos)
A peculiaridade da reflexão linguística mediada pelo professor de português, bem como
das situações de interação que ele cria para viabilizar a aprendizagem da língua(gem), portanto,
está na intencionalidade pedagógica. É verdade que os processos interlocutivos em que o aluno
se engaja fora da escola lhe trazem aprendizagens acerca da natureza e do funcionamento da
língua(gem). É essa condição de interlocutor, inclusive, que garante o conhecimento intuitivo a
partir do qual Geraldi e os PCN recomendam que o professor de língua materna medeie o
desenvolvimento de atividades epilinguísticas na sala de aula. Contudo, cabe à escola transformar
o intuitivo em conhecimento explícito, isto é, em um saber passível de ser verbalizado pelo aluno
por meio de um quadro conceitual e nocional, seja ele proveniente da tradição gramatical ou não.
Assim, das aprendizagens espontâneas típicas do envolvimento do sujeito em situações de
interação verbal, o aluno passa às aprendizagens planejadas de forma progressiva pelo professor
de língua portuguesa.
Como os PCN, o PNLD, em língua portuguesa, também é guiado por uma concepção de
linguagem como forma de interação social e por uma preocupação com a inserção do aluno em
107
práticas de linguagem vinculadas à escrita e à oralidade. Para avaliar os livros didáticos que são
distribuídos às escolas públicas brasileiras, o programa leva em consideração alguns critérios
comuns a todas as áreas de conhecimento e critérios específicos para cada uma das disciplinas.
No caso de língua portuguesa, os critérios de avaliação estão organizados de acordo com quatro
eixos didáticos: leitura, produção de texto, oralidade e conhecimentos linguísticos (equivalente à
análise linguística). Os dados que trazemos a partir de agora acerca do programa referem-se ao
Guia de Livros Didáticos PNLD 2014, dos anos finais do ensino fundamental (BRASIL, 2013).
Trata-se do guia mais recente publicado pelo programa, pois as avaliações dos livros didáticos
são realizadas de três em três anos. Embora nossa pesquisa não os tenha como corpus de análise,
os livros didáticos são, como já dissemos, parte integrante da prática docente e chegam mesmo a
se constituir como instância de formação profissional. Por isso, a evolução do livro didático
reflete, em alguma medida, nas práticas de ensino empreendidas nas escolas, com um impacto
imediato talvez mais significativo do que os documentos curriculares.
Nos PCN, verificamos a proposição de uma prática de análise linguística articulada à
leitura na medida em que se destaca a necessidade de que o eixo da reflexão linguística se
direcione ao eixo dos usos da língua(gem), conforme representado na Figura 3. O PNLD mantém
essa recomendação de plano mais geral na apresentação dos critérios específicos para a área de
língua portuguesa. Nela, o documento atribui posição prioritária às atividades de leitura e escrita
e às atividades de produção e compreensão oral, todas elas inseridas em situações concretas de
uso. O eixo da análise linguística aparece, como nos PCN, em contato direto com os eixos
vinculados aos usos: “[...] As práticas de reflexão, assim como a construção correlata de
conhecimentos linguísticos e a descrição gramatical, devem justificar-se por sua funcionalidade,
exercendo-se, sempre, com base em textos produzidos em condições sociais efetivas de uso da
língua [...]” (BRASIL, 2013, p. 17, grifo nosso).
No roteiro de análise utilizado para a avaliação das obras que seriam distribuídas a partir
de 2014, é possível encontrar orientações mais particulares quanto ao diálogo dos conhecimentos
linguísticos com a leitura. Na Figura 4 (BRASIL, 2013, p. 49), abaixo, estão dispostos os
aspectos relativos ao eixo dos conhecimentos linguísticos que deveriam ser contemplados pelos
avaliadores na apreciação crítica das atividades vinculadas a esse eixo:
108
Figura 4: Critérios de análise do PNLD 2014 para o eixo dos conhecimentos linguísticos
Note-se que a questão inicial, tal como é formulada, aponta para dois objetivos principais
do trabalho com os conhecimentos linguísticos: “o desenvolvimento da proficiência oral e
escrita” e “a capacidade de análise de fatos de língua e de linguagem”. Portanto, a avaliação do
PNLD toma a análise linguística como uma prática que visa à reflexão sobre fenômenos
linguísticos e cujos instrumentos de análise possibilitem ao aluno aprimorar suas habilidades
linguísticas, dentre as quais a leitura. A necessidade de articular as reflexões propostas nas
atividades de análise linguística aos demais eixos está explicitada no primeiro tópico que se segue
à questão central e a desdobra. Nos outros tópicos, podemos identificar que as atividades dos
livros didáticos avaliados devem, ainda, situar o estudo da norma socialmente prestigiada no
âmbito das variedades linguísticas e priorizar uma atitude reflexiva por parte do aluno na
construção das noções estudadas (a produção de conhecimentos em detrimento da reprodução dos
saberes já formulados, tal como defendia Geraldi). É importante lembrar que, por constituírem
desdobramentos da questão inicialmente levantada, todos os tópicos elencados (incluindo o
trabalho com as convenções de escrita) devem, quando abordados pelas coleções didáticas, ter
como norte os dois objetivos que destacamos há pouco, ou seja, privilegiar a reflexão sobre o
funcionamento da língua(gem) e/ou a expansão das habilidades de leitura, fala e escrita.
Não é apenas na definição dos critérios de avaliação do eixo dos conhecimentos
linguísticos que o PNLD demonstra prezar pela articulação entre as práticas de análise linguística
109
e a leitura. Se observarmos os critérios estipulados para avaliar as atividades de leitura das
coleções didáticas, elencados na Figura 5 (BRASIL, 2013, p. 42) e na Figura 6 (BRASIL, 2013,
p. 43), também conseguimos reconhecer essa preocupação por parte do programa.
Figura 5: Critérios de análise utilizados pelo PNLD 2014 para o eixo da leitura (1)
Figura 6: Critérios de análise utilizados pelo PNLD 2014 para o eixo da leitura (2)
As indagações iniciais, norteadoras dos critérios detalhados logo em sequência, já atestam
a concepção de leitura como um processo no qual o leitor age no sentido de (re)construir sentidos
110
para o texto que lê. A forma como estão escritas também evidencia que o PNLD entende que as
atividades de leitura devem proporcionar aos alunos a possibilidade de se constituírem leitores
ativos, capazes de compreender o texto em sua dimensão global. Essa é uma constatação
importante para a problemática que vimos discutindo ao longo desta dissertação, tendo em vista
que, como já ressaltamos, Geraldi (1991, 1996) acredita que a reflexão linguística em torno das
práticas de leitura demanda, para que seja concretizada de forma significativa, que a leitura deixe
de ser encarada como um ato mecânico e seja tomada como construção de uma compreensão de
sentidos produzidos no encontro do leitor com o texto/autor.
Nos tópicos que apontam os aspectos a serem observados para se responder às questões
indicadas para a avaliação das coleções, encontramos elementos vinculados à reflexão linguística,
entendidos pelo programa como parte de uma proposta de ensino que privilegie a produção de
sentidos e a formação do leitor no trabalho com o eixo da leitura. Na Figura 5, por exemplo, o
segundo tópico solicita ao avaliador que atente para a exploração de propriedades textuais e
discursivas dos textos dados à leitura nas atividades. Não há dúvidas de que, para assimilar essas
propriedades, é necessário que o aluno leia o texto e o compreenda. Mas, durante esse processo,
ele precisará analisar os mecanismos linguísticos dos quais o autor lançou mão e o modo como os
recursos expressivos estão dispostos no texto, tal como propõe Geraldi com as práticas de análise
linguística. Tanto é que alguns dos subitens indicados na Figura 5 para esse tópico são conteúdos
que poderiam ser encontrados numa proposta curricular direcionada ao eixo dos conhecimentos
linguísticos, tais como os recursos de coesão e coerência. Além disso, perceba-se que mesmo os
subitens que remetem a aspectos mais globais do texto (unidade e progressão temática,
articulação entre as partes, modos de composição tipológica, intertextualidade, etc.) dependem de
uma análise mais pontual da estruturação dos elementos linguísticos do texto e de sua
repercussão na produção de sentidos.
Na Figura 6, a relação mais explícita da leitura com a análise linguística aparece no
tópico que demanda do avaliador um olhar crítico para “a exploração da materialidade do texto
(seleção lexical, recursos morfossintáticos, sinais gráficos, etc.) na apreensão dos efeitos de
sentido” (BRASIL, 2013, p. 43). Os elementos indicados entre parênteses também poderiam
figurar numa proposta curricular direcionada ao eixo dos conhecimentos linguísticos, mas a
interseção com a leitura se dá justamente porque esses aspectos não devem ser abordados de
111
maneira isolada e descontextualizada, e sim compreendidos como recursos que contribuem para a
produção de sentidos numa determinada unidade textual.
Quanto ao perfil das coleções resenhadas pelo PNLD 2014, o documento informa que
predomina a abordagem do texto como ponto de partida e de chegada para a proposição de
atividades, independentemente do princípio organizador utilizado pela obra (organização
temática, por gêneros discursivos, por gêneros associados a projetos ou por tópico de estudo
linguístico). Segundo o documento, esse predomínio é recorrente inclusive nas atividades
dedicadas aos conhecimentos linguístico-gramaticais, sendo comum nesses casos a retomada de
fragmentos de um texto anteriormente explorado para o trabalho com a leitura e a apresentação
de novos textos ou excertos para análise (BRASIL, 2013).
No geral, o tratamento didático dos conteúdos curriculares vinculados ao eixo dos
conhecimentos linguísticos nas obras avaliadas pelo PNLD 2014 oscila entre uma metodologia
transmissiva e uma metodologia construtivo-reflexiva. Segundo o documento, a metodologia
transmissiva acontece “quando a proposta de ensino acredita que a aprendizagem de um
determinado conteúdo deve dar-se como assimilação, pelo aluno, de informações, noções e
conceitos, organizados logicamente pelo professor e/ou pelos materiais didáticos adotados”
(BRASIL, 2013, p. 24). No caso do eixo dos conhecimentos linguísticos, ela acontece
principalmente quando os conceitos e as regras gramaticais são apresentados ao aluno por meio
do esquema definição-exemplificação-exercícios. O documento explica, todavia, que, a despeito
da alta frequência com que essa metodologia é empregada na abordagem de conteúdos de análise
linguística (especialmente os morfossintáticos), as obras avaliadas nunca a utilizam em prol da
mera aplicação mecânica dos conceitos e das regras exploradas, havendo sempre um espaço para
a reflexão (BRASIL, 2013). A segunda metodologia – a construtivo-reflexiva – acontece,
conforme descreve o documento, quando a aprendizagem do aluno decorre de um caminho que
vai da reflexão sobre dados ou fatos que lhe são ofertados à inferência de um conhecimento que
é, então, construído através de um exercício analítico mediado pelo professor e/ou pelo material
didático. O Guia do PNLD 2014 não informa a quantidade de obras nas quais predomina esse
tipo de metodologia, limitando-se a afirmar que as coleções nas quais essa metodologia pode ser
verificada se valem da construção/reflexão na dimensão global da obra e costumam, no
tratamento de cada um dos eixos didáticos, incorporar também outras perspectivas
metodológicas. É nesse sentido que o documento ressalta não haver, entre as obras resenhadas,
112
alguma que possa ser enquadrada integralmente dentro de uma única abordagem metodológica. É
mais comum identificar o emprego de uma única metodologia (ou de uma metodologia
predominante) na abordagem de um determinado eixo de ensino, e não na obra como um todo
(BRASIL, 2013).
Por fim, ao avaliar globalmente como as coleções resenhadas propõem o trabalho com
cada eixo didático, o Guia do PNLD 2014 reconhece a leitura como o mais desenvolvido e
explorado deles. Chega a ser frequente que a abordagem dos demais eixos de ensino parta das
atividades de compreensão e interpretação de textos, retomando deles aspectos discursivos ou
relacionados à tipologia e ao gênero (BRASIL, 2013). No tocante à análise linguística, o
documento indica que “a tendência predominante, no conjunto das coleções, é articular os
conhecimentos relacionados ao discurso e à textualidade ao trabalho com leitura e/ou produção
escrita, em abordagens ora epilinguísticas, ora metalinguísticas” (BRASIL, 2013, p. 28). É
frequente, também, que as obras tematizem praticamente todos os principais conteúdos
encontrados nos índices das gramáticas tradicionais, concentrados sobretudo nas duas séries
finais do ensino fundamental. Esses tópicos são, muitas vezes, explorados num espaço em
separado, ainda que, em sua maioria, partam de textos selecionados para tal abordagem. Apesar
de verificar uma prevalência de propostas centradas no desenvolvimento de habilidades de leitura
e escrita, o Guia do PNLD 2014 identifica algumas obras nas quais o peso conferido aos
conhecimentos linguísticos se mostra semelhante ou, por vezes, mais forte. Nesses casos, as
resenhas elaboradas pelos avaliadores alertam o professor para que procure não perder de vista o
trabalho com os demais eixos de ensino.
3.3.4 Práticas escolares de análise linguística e ensino de leitura: pesquisas e propostas
A exposição teórica empreendida nas seções e subseções anteriores atesta a amplitude da
renovação pedagógica proposta por Geraldi com as práticas de análise linguística. Algumas
décadas nos separam das primeiras orientações teórico-metodológicas por ele construídas. De lá
para cá, suas ideias foram largamente difundidas entre os profissionais da educação, tanto entre
aqueles que atuam diretamente nas escolas quanto entre os que procuram, da esfera acadêmica,
pensar alternativas para se viabilizar a desejada transformação das práticas de ensino na direção
de uma perspectiva sociointeracionista de linguagem. Na subseção anterior, acompanhamos parte
113
dessa difusão nas orientações teórico-metodológicas para o ensino de língua materna – mais
particularmente para o eixo da análise linguística em sua relação com a leitura – propostas pelos
PCN e colocadas em prática na avaliação de livros didáticos realizada pelo PNLD. Ainda assim, a
transformação do ensino de língua materna quanto ao eixo dos conhecimentos linguísticos tem se
mostrado desafiadora para os profissionais de educação e, até hoje, pode ser considerada em
processo de construção contínua. Por isso, com as propostas apresentadas nesta subseção e na
próxima seção, buscamos, por um lado, evidenciar o terreno movediço em que ainda se esteia a
abordagem dos conhecimentos linguísticos na escola e, por outro, sinalizar algumas
possibilidades de caminhos já construídas.
Márcia Mendonça é uma das autoras que, ao longo de sua carreira universitária, tem se
dedicado constantemente à problemática do tratamento escolar para com os conhecimentos
linguísticos e à construção de alternativas de trabalho que vinculem esses conhecimentos à
dimensão textual-discursiva da língua. Por isso, optamos por dedicar a maior parte desta subseção
a algumas de suas produções acadêmicas voltadas para a análise linguística, dentre as quais
enfatizaremos as reflexões que associam esse eixo didático à leitura. Em Mendonça (2006), por
exemplo, a autora apresenta algumas possibilidades práticas de articulação dos dois eixos
investigados nesta dissertação. No quadro abaixo (MENDONÇA, 2006, p. 210-211), por ela
elaborado, encontramos algumas indicações de caminhos para transfigurar objetos de ensino,
estratégias metodológicas e metas de aprendizagem tradicionalmente adotados no ensino de
gramática na direção de uma abordagem mais construtiva e reflexiva:
ENSINO DE GRAMÁTICA
Objeto de ensino
Estratégia mais usada
Habilidade esperada
Advérbios,
locuções
adverbiais e
orações
adverbiais
Exposição de frases e períodos (ora
inventados, ora retirados dos textos
de leitura) para identificação e
classificação dos termos.
Uso das explicações das gramáticas
como texto didático de base para a
abordagem do assunto.
Identificar e classificar os termos em orações e
períodos.
Transformar advérbios em locuções adverbiais.
Fazer a correspondência, em exercícios escolares,
entre locuções adverbiais e advérbios, resultando,
algumas vezes, em construções que não se
equivalem pragmaticamente (por ex.: de forma
feliz ≠ felizmente, de forma real ≠ realmente
etc.).
Adjetivos,
locuções
adjetivas e
orações
Exposição de frases e períodos (ora
inventados, ora retirados dos textos
de leitura) para identificação e
classificação dos termos.
Identificar e classificar os termos em orações e
períodos.
Transformar adjetivos em locuções adjetivas.
Conhecer e reproduzir, em exercícios escolares, a
114
adjetivas Exposição de listas de adjetivos
relativos a certas locuções, a serem
memorizadas.
Uso das explicações das gramáticas
como texto didático de base para a
abordagem do assunto.
correspondência entre locuções adjetivas e
adjetivos, geralmente de uso menos comum (de
gelo = glacial; de chumbo = plúmbeo etc.).
ANÁLISE LINGUÍSTICA
Objeto de ensino
Sugestão de estratégias
Competência esperada
Expressões
adverbiais,
indicadoras
de circunstâncias
Leitura e comparação de gêneros
diversos; observação de casos
particulares para se chegar a
conclusões mais gerais.
Consulta a manuais, gramáticas e
dicionários para ampliar as
discussões e o próprio repertório
de expressões etc.
Perceber que:
as circunstâncias podem ser sinalizadas – por
meio dos adjuntos adverbiais e de outros recursos
– construindo-se expectativas de leitura e matizes
de sentido relevantes para a compreensão global
(ex.: o uso de Na verdade, indicando a posição do
locutor);
em diferentes gêneros, há usos específicos desses
recursos para atender a propósitos distintos (ex.:
notícia e fábula).
Processos de
adjetivação /
qualificação
Leitura e comparação de textos;
observação de casos particulares
para se chegar a conclusões mais
gerais.
Consulta a manuais e gramáticas e
dicionários para ampliar as
discussões e o próprio repertório
de expressões etc.
Perceber que:
a adjetivação pode ser construída por meio de
várias estratégias e recursos, criando diferentes
efeitos de sentido;
gêneros diferentes admitem certas adjetivações e
não outras, como as notícias com descrições mais
“contidas” que uma fábula ou um artigo de
opinião;
os processos de adjetivação/qualificação,
incluídos numa descrição, podem estar além do
uso dos adjetivos, revelando-se na escolha dos
verbos (esbravejou no lugar de afirmou), por
exemplo.
Quadro 3: Alternativas práticas para articular análise linguística e leitura (MENDONÇA, 2006)
As alternativas de abordagem didática para as expressões adverbiais e os processos de
adjetivação elaboradas por Mendonça (2006, p. 204, grifo da autora) destinam-se ao ensino
médio, etapa em que a autora acredita ser importante ir além da abordagem intuitiva dos
fenômenos linguísticos (sejam eles normativos, sistêmicos, textuais ou discursivos) e,
consequentemente, partir “de uma reflexão explícita e organizada para resultar na construção
progressiva de conhecimentos e categorias explicativas dos fenômenos em análise”. É por essa
razão que as competências esperadas para as propostas de Mendonça (2006) quanto à prática de
análise linguística incluem uma compreensão dos conceitos explorados no nível metalinguístico e
em maior grau de abstração. Nesse momento da educação formal, não basta saber usar um
115
determinado recurso expressivo segundo suas intencionalidades discursivas; é preciso
compreender, a partir dos usos, o que leva determinadas escolhas linguísticas a produzirem os
efeitos de sentido desejados. E mais, é preciso elaborar um conhecimento abstrato que explique
os princípios gerais que viabilizam a ocorrência de um dado fenômeno da língua, não mais
apenas compreender o modo como esse fenômeno acontece em situações enunciativas precisas e
particulares. Para verbalizar esse conhecimento, o aluno precisa, por meio de um processo
indutivo – isto é, observando ocorrências particulares para encontrar explicações gerais –, fazer
uso de uma terminologia específica e, com ela, explicar o funcionamento do fenômeno estudado.
Embora nossa pesquisa se atenha ao contexto da segunda etapa do ensino fundamental,
exemplos como os elencados no Quadro 3 oferecem bons horizontes do caminho que precisa ser
vislumbrado pelos professores das primeiras fases de escolarização. Afinal, uma alternativa de
trabalho como essa só se torna exequível no ensino médio se, nos níveis de ensino que lhe
antecederam, os alunos foram sendo gradativamente inseridos em variadas práticas de linguagem
e preparados para aprender a mobilizar de forma cada vez mais autônoma seu conhecimento
intuitivo de falante com o intuito de compreender o funcionamento de um dado fenômeno
linguístico em circunstâncias concretas de interação. Mendonça (2006) exemplifica o trabalho do
Quadro 3 especificamente por meio da abordagem dos processos de adjetivação. Para tanto, toma
como ponto de partida um poema de Cora Coralina, selecionado devido à relevância que esse
fenômeno linguístico assume na construção da representação do eu lírico feminino:
Figura 7: Poema “Estas mãos”, de Cora Coralina (MENDONÇA, 2006, p. 212)
ESTAS MÃOS
Olhe para estas mãos
de mulher roceira,
esforçadas mãos cavouqueiras.
Pesadas, de falanges curtas,
sem trato e sem carinho.
Ossudas e grosseiras
Mãos de semeador...
Afeitas à sementeira do trabalho.
Semeando sempre.
Jamais para elas
os júbilos da colheita.
Mãos tenazes e obtusas,
feridas na remoção de pedras e tropeços,
quebrando as arestas da vida [...]
Mãos que varreram e cozinharam.
Lavaram e estenderam
roupas nos varais.
Pouparam e remendaram.
Mãos domésticas e remendonas. [...]
Mãos pequenas e curtas de mulher
que nunca encontrou nada na vida.
Caminheira de uma longa estrada.
Sempre a caminhar.
Sozinha a procurar,
o ângulo prometido,
a pedra rejeitada.
(CORALINA, C. Meu livro de cordel. Goiânia: P.
D. Araújo/Livraria e Editora Cultura Goiana, 1976,
pp. 59-60)
116
A autora ressalta que as mãos descritas no texto representam o eu lírico feminino do
poema e que essa representação é operacionalizada por meio de um processo metonímico. Tendo
em vista que um dos recursos linguísticos empregados para realizar a descrição é o emprego
abundante de termos adjetivos, Mendonça (2006) propõe que a prática de análise linguística
caminhe da leitura do texto e da exploração de questões acerca de sua dimensão global para a
focalização na adjetivação enquanto recurso que, ao longo de todo o poema, contribui para a
construção de sentidos do texto. A título de exemplo, a autora propõe duas questões para guiar a
análise acerca da construção da representação do eu lírico feminino através dos processos de
adjetivação, a saber: “a) por que, no poema, a descrição das mãos é o mote para tematizar as
características do eu lírico e os percalços de sua vida; b) com que recursos essas descrições são
realizadas” (MENDONÇA, 2006, p. 212). Note-se que encontrar uma resposta pertinente a essas
indagações demanda que o aluno recorra ao percurso interpretativo que trilhou durante a leitura e
também a conhecimentos de ordem linguística, associando o uso dos recursos linguísticos aos
efeitos de sentido que (re)construiu em colaboração com a autora durante o processo de leitura.
Nesse exemplo, ficou clara a possibilidade, como destaca a própria Mendonça (2006) de
se proporem atividades de análise linguística como ferramenta para que os alunos desvendem
traços da criação literária nos textos que leem. Neves (2012) corrobora essa possibilidade ao
lembrar que a gramática é parte da linguagem e, por isso, com ela se move. É a maleabilidade da
gramática – e da linguagem – que permite que os sujeitos atuem enquanto interlocutores,
movendo-se no próprio ato de falar, de escrever, de atribuir sentidos à leitura e de refletir sobre a
linguagem. Nessa perspectiva, estudar gramática a partir de textos pressupõe, segundo Neves
(2012), perceber os efeitos que se podem alcançar por meio da linguagem: exatidão ou
inexatidão, redundância ou inacabamentos, elevação ou banalização, etc. A autora julga que o
desvelamento da criação poética de um texto é uma oportunidade particularmente enriquecedora
para se explorar a potencialidade da gramática na produção de linguagem:
Ora, a literatura se singulariza exatamente no sentido de que não há outras pressões que
não a plenitude da expressão pela linguagem. Daí por que o poeta (termo que, aqui, não
envolve necessariamente produção em versos) é o que explora mais livremente
(criativamente) todas as possibilidades da “gramática” da língua, todas as nuanças de
arranjo que ela põe à disposição do usuário, mas que nem todo usuário descobre na sua
inspiração e/ou encontra nos escaninhos de seu trato com a linguagem. Daí por que o
poeta dá lições soberbas de gramática da língua. E daí por que o texto literário tem
abrigo especial na reflexão sobre os usos, na direção de própria explicitação gramatical
da língua. (NEVES, 2012, p. 204-205)
117
Além de discorrer sobre alguns caminhos que o professor do ensino médio pode trilhar
para levar os alunos a refletirem sobre a língua(gem) a partir dos textos que circulam
socialmente, Mendonça (2001), em estudo anterior, chegou a apresentar possibilidades de
trabalho articulado entre análise linguística e leitura em turmas do ensino fundamental, tanto nas
séries iniciais (atuais primeiro a quinto ano) quanto nas séries finais (atuais sexto a nono ano). A
autora selecionou, para a realização da pesquisa, um tópico gramatical específico – a pontuação –
por considerá-lo essencial para a aprendizagem da leitura e da escrita. Seu objetivo era investigar
como os livros didáticos de língua portuguesa abordavam esse tópico e a relação que, nessa
abordagem, estabeleciam com a reconstrução de sentidos dos textos utilizados no trabalho com a
leitura.
Nas coleções didáticas destinadas às séries iniciais, Mendonça (2001) encontrou
invariavelmente uma preocupação de evidenciar a relação entre o oral e o escrito marcada pelo
uso dos sinais de pontuação, o que ela julgou compreensível, na medida em que se trata de um
período de apropriação de conhecimentos acerca da escrita. Em geral, os livros exploravam os
efeitos de sentido da pontuação na frase para, em seguida, promoverem uma reflexão acerca de
seus usos nos textos. Na Figura 8 (MENDONÇA, 2001, p. 118), a seguir, é possível encontrar
um dos exemplos coletados pela autora de uma abordagem da possibilidade de transitar entre
diversos matizes de sentido por meio do uso das reticências:
Figura 8: Exemplo da exploração dos efeitos de sentido decorrentes do uso das reticências
Observe-se que, por se tratar de uma atividade destinada a alunos da antiga segunda série
(atual terceiro ano) do ensino fundamental, a teorização linguística que se propõe ao aluno
construir dispensa a utilização de uma metalinguagem detalhada e abstrata. Além do nome do
sinal gráfico estudado (“reticências”), o aluno não precisa recorrer a nenhuma outra categorização
formal para responder à questão proposta. Pelo exemplo de análise que o enunciado da questão
traz para explicar ao aluno como tentar avaliar os demais usos das reticências no texto lido (“Nós
7. Leia com atenção (segue um texto com várias reticências)
a. Observe todas as reticências que aparecem em negrito. Puxa, quantas!...
b. A pontuação pode ser a mesma, mas o sentido não é o mesmo. Por exemplo, observe que no
primeiro parágrafo deste trecho há o uso das reticências: Não deixe perceber nada, senão... Nós
achamos que estas reticências dão uma sensação de ameaça ao que o ladrão está dizendo. E as
outras reticências que aparecem destacadas? Que sensação você acha que elas nos dão?
(Carvalho et al., v. 2, p. 40-21)
118
achamos que estas reticências dão uma sensação de ameaça ao que o ladrão está dizendo.”), nota-
se que o autor do livro didático espera do aluno uma resposta particularmente relacionada ao
contexto da história lida, e não, desde já, a construção de um conhecimento mais generalizável
acerca dos usos das reticências.
Como os demais exemplos analisados pela autora em coleções destinadas às séries iniciais
do ensino fundamental, a atividade da Figura 8 aposta num percurso analítico por parte do aluno
que vai da observação à comparação. Mais especificamente, Mendonça (2001) descreve os
seguintes passos para o percurso que encontrou na maioria das atividades que compuseram o
corpus de sua investigação: sensibilizar, observar, identificar, relacionar, sistematizar e explicitar.
Nas atividades em que a pontuação foi explorada do ponto de vista das especificidades
linguístico-discursivas dos gêneros textuais, foi possível reconhecer mais minuciosamente cada
passo desse percurso, como no exemplo reproduzido na Figura 9 (MENDONÇA, 2001, p. 119):
Figura 9: Exemplo da exploração dos efeitos de sentido dos sinais de pontuação em relação às
especificidades dos gêneros textuais
Quanto aos livros didáticos voltados para as séries finais do ensino fundamental,
Mendonça (2001) identifica uma diferença em relação às abordagens mais comumente utilizadas
na etapa anterior: a relação da pontuação com os recursos da oralidade, pouco a pouco, deixa de
4. Observe agora este trecho:
Bastaria aquecer um pouco mais os ninhos, pois, como em todos os répteis, o sexo da tartaruga é
determinado pela temperatura de chocagem dos ovos – quanto mais quente a areia, mais fêmeas nascerão.
5. [...] Leia este trecho:
Enquanto no mar uma tartaruga adulta praticamente não conhece predadores (a rigidez de seu casco
costuma desanimar até os tubarões mais famintos), fora dele o mais exótico dos répteis marinhos costuma
virar presa fácil para o homem.
Agora copie no seu caderno a alternativa ou as alternativas corretas:
A função dos parênteses nesse trecho é:
a. Deixar o texto mais legal.
b. Introduzir uma informação a mais, para completar a informação anterior.
c. Dar uma explicação.
d. Nenhuma das anteriores (escreva a função que você acha que os parênteses têm).
6. Qual é a função dos dois-pontos neste trecho do segundo parágrafo?
Na prática, quase nada: 90% do corpo de uma tartaruga são vísceras intragáveis ao paladar humano.
7. O travessão e os dois-pontos com a função que acabamos de analisar são encontrados com frequência
nos textos literários? Por quê?
(Carvalho et al., v. 3, p. 33-34)
119
ser tematizada para dar lugar a uma abordagem da pontuação do ponto de vista da sintaxe. O
principal exemplo desse deslocamento temático e metodológico verificado pela autora é a
sistematização dos casos específicos de uso da vírgula. As atividades analisadas, na maioria das
vezes, partem de trechos retirados dos textos lidos na unidade da coleção em que as atividades se
localizam, revelando, nos exemplos citados, uma preocupação com as repercussões do uso da
vírgula para a construção de sentidos dos textos, como se pode perceber nos exemplos
reproduzidos na Figura 10 e na Figura 11 (MENDONÇA, 2001, p. 121) abaixo:
Figura 10: Exemplo da exploração dos efeitos de sentido decorrentes do uso da vírgula (1)
Figura 11: Exemplo da exploração dos efeitos de sentido decorrentes do uso da vírgula (2)
Ao final de sua pesquisa, Mendonça (2001) percebe que havia uma tendência entre os
livros didáticos de então de procurarem não reduzir sua abordagem quanto aos tópicos
gramaticais a exercícios prescritivos. Noutra via, eles esforçavam-se em tomar como ponto de
partida situações concretas de uso e em contemplar nas atividades aspectos vinculados à
textualidade, às condições de produção dos textos e à construção de sentidos. Como lacuna,
Mendonça (2001) aponta a necessidade de se interligarem as implicações do uso dos sinais de
pontuação nos diversos níveis de estudo da língua (sintático e semântico, por exemplo) e de se
explicitarem também nas coleções destinadas às séries finais as relações que a pontuação
evidencia entre as modalidades oral e escrita da língua.
A última referência de Mendonça (2007b) que incorporamos à discussão empreendida
nesta subseção diz respeito à profícua oportunidade que o trabalho com os gêneros textuais traz
para que sejam explorados aspectos linguísticos que lhes são típicos e a relação desses aspectos
com a prática social nas quais os gêneros estão inseridos. A autora inicia o artigo em que discorre
4. Por que “casa” está entre aspas?
(Trecho do texto da unidade: A “casa” da família é uma cabana com parede e teto feitos com palha de
coqueiro. O piso é de chão batido e não tem banheiro.)
(Tiepolo et al., v. 2, p. 63-64)
13. Leia esta frase do primeiro parágrafo do texto Os clássicos rebeldes: “Uma delas foi a calça jeans, que
Jacob Davis criou em 1853...”
Se retirarmos a vírgula desse trecho, que mudança de significado ocorre?
2. Localize no mesmo parágrafo um caso de emprego da vírgula com idêntica função. (Faraco & Moura, v. 4, p. 47)
120
sobre essa forma de trabalho enumerando algumas questões características da mediação do
professor de língua portuguesa nas práticas escolares de análise linguística cujas respostas
demandam do aluno compreender o funcionamento do gênero em pauta:
Por que os títulos de notícias são frases curtas? Os verbos nesses títulos estão no
presente ou no passado? Por quê? Já notaram que muitos poemas, ao serem lidos em
voz alta, revelam certo ritmo, musicalidade? Como se conseguiu esse ritmo no poema
que estamos analisando? Por que se usa coloque e não coloquei nas receitas? ou O que
indica o uso dos verbos no imperativo nas receitas? (MENDONÇA, 2007b, p. 73, grifos
da autora)
Para propor esse trabalho, Mendonça (2007b) baseia-se na concepção de Bazerman
(2005) e Marcuschi (2002) quanto aos gêneros textuais, isto é, entende que eles não se limitam a
estruturas puramente formais, mas que são constitutivos da atividade humana e, como tal,
funcionam como uma atividade discursiva: são organizados em torno de objetivos comunicativos
e é em função dessas finalidades que o sujeito produz sentidos por meio de escolhas de ordem
linguística e de estratégias discursivas no âmbito de circunstâncias concretas de interação.
Partindo desse ponto de vista teórico, Mendonça (2007b) explica que a análise linguística
que o professor pode impulsionar durante o estudo dos gêneros implica entrecruzar a sua
dimensão macro (função social, formas de circulação, interlocutores privilegiados, temas
frequentes, organização geral da informação) e a sua dimensão micro (estruturação dos períodos,
escolha de palavras e expressões, etc.). Isso significa dizer que o objetivo central do trabalho aqui
proposto é promover uma reflexão acerca das motivações discursivas das escolhas linguísticas do
locutor. A análise linguística deve ser mediada pelo professor no intuito de mostrar que o
funcionamento social do gênero de forma eficiente depende da adequação das escolhas do
falante/escritor em vista dos objetivos previamente traçados. Nos exemplos que apresentaremos a
partir de agora, enfocamos em gêneros escritos, dados os propósitos de nossa investigação.
Mendonça (2007b) recomenda que o professor empreenda, como parte de seu
planejamento, uma ampla pesquisa sobre as características do gênero a ser explorado nas aulas.
Entretanto, lembra que a metodologia proposta com as práticas de análise linguística parte da
observação e da comparação de ocorrências particulares de um determinado fenômeno linguístico
para se chegar às conclusões mais gerais acerca de suas propriedades. Por isso, a autora sugere ao
professor que leia o texto com os alunos e leve-os, através de sua mediação, a irem
gradativamente descobrindo as características próprias do gênero do texto lido e o que explica
essas características em termos do funcionamento do gênero nas práticas sociais.
121
Tendo em vista que já tivemos a oportunidade, no desenvolvimento desta dissertação, de
apresentar alternativas de trabalho elaboradas por especialistas da academia, optamos, daqui por
diante, pelas propostas didáticas elaboradas pelos próprios professores da escola básica. No
tocante ao trabalho sugerido por Mendonça (2007b), o Quadro 4, logo abaixo, mostra uma
síntese das propostas que os professores da rede pública do estado de Pernambuco que
participaram do curso de formação Diversidade textual: os gêneros na sala de aula, oferecido
pelo CEEL/UFPE, criaram com base nas ideias apresentadas por Mendonça (2007b, p. 81):
Prof. / Profª.
Série (ciclo)
Gênero
Aspectos da AL a serviço do gênero
Marceni Oliveira
Alfabetização
Cartão de
aniversário
Letras maiúsculas; estruturação de frases
(curtas)
Ana Rita de
Andrade
Alfabetização
Receita
Verbos no imperativo
Vasti Bernardo
3ª série (1ª série do 2º
ciclo)
Receita
Verbos no imperativo e no infinitivo;
expressões adverbiais e adjetivas
Jane Cleide da
Silva
4ª série (2ª série do 2º
ciclo)
Jingle (parodiado),
panfleto
publicitário
Verbos no imperativo, rimas, ritmo,
paródia (paráfrase, sinônimos), linguagem
sintética dos slogans
Cristiane Abreu
5ª (1ª série do 3º ciclo)
Anúncio
publicitário
Verbos no imperativo, adjetivos com
conotação positiva, linguagem figurada
(hipérbole), relações intertextuais,
implícitos.
Ladjane Moura
8ª (2ª série do 4º ciclo)
Artigo de opinião
Conectivos (conjunções e outras
expressões, como assim, após isso, etc.),
expressões modalizadoras, discurso direto
e indireto (aspas, parênteses, travessão,
etc.).
Edgar Carvalho
7ª série (1ª série do 4º
ciclo)
Soneto
Rima, métrica, escolhas vocabulares (rede
semântica)
Quadro 4: Propostas didáticas elaboradas por professores da rede estadual de Pernambuco
para articular análise linguística e estudo dos gêneros textuais
Note-se que os conteúdos a serem trabalhados foram definidos pelos professores com base
nos aspectos linguísticos constitutivos do gênero escolhido, não atendendo, portanto, unicamente
ao critério de figurarem como tópico abordado pela tradição gramatical. Em alguns casos
(conjunções, discurso direto e indireto, verbos no imperativo), os professores certamente tiveram
a necessidade de recorrer ao conhecimento historicamente produzido pelos compêndios
gramaticais, mas a utilidade desse conhecimento para a concretização do trabalho proposto estava
122
sujeita à relevância das explicações fornecidas por essa tradição para se compreender o
funcionamento linguístico e discursivo do gênero estudado. Por essa mesma razão, o saber
gramatical tradicional não é suficiente para se realizar um trabalho como os que estão elencados
no Quadro 4, havendo a necessidade de apelar a outras fontes de conhecimento, tais como as
teorias de gêneros, a linguística textual, a teoria literária, dentre outras. Outro ponto que vale a
pena salientar é, como pontuado por Mendonça (2007b), a necessidade de se adequarem a
escolha dos conteúdos e a forma de abordagem ao perfil da turma a que se ensina. No Quadro 4,
é possível encontrar um mesmo gênero escolhido para o trabalho de diferentes professores, que
atuavam em diferentes turmas do ensino fundamental. Entretanto, o ângulo a partir do qual cada
um abordou o gênero escolhido não era o mesmo, pois, a depender do grau de familiaridade dos
alunos com o gênero estudado e do nível de conhecimento acerca dos elementos linguísticos
focalizados, os professores organizavam diferentes práticas para cada uma das turmas com que
trabalhariam.
Para fechar esta última subseção, trazemos dados referentes à pesquisa de campo realizada
por Bastos, Lima e Santos (2012) acerca da prática de ensino desenvolvida por um professor de
língua portuguesa em uma turma de segundo ano do ensino médio no Colégio de Aplicação da
UFPE. Nessa pesquisa, por se concentrarem na abordagem didática das classes de palavras, as
autoras optaram por fazer um recorte entre as aulas observadas no trabalho de campo e, assim,
decidiram analisar aquelas em que o professor tematizou o emprego dos pronomes. Antes de
relatarem a prática do professor, elas situaram a perspectiva da pesquisa quanto à concepção de
linguagem adotada e quanto às implicações de tal concepção para o ensino de língua materna,
sobretudo no que diz respeito ao eixo da análise linguística. Em seguida, basearam-se na linha
teórica à qual se filiavam para tecer alguns breves comentários acerca do tratamento didático
conferido às classes de palavras na aula de português. As pesquisadoras partiam da noção de
linguagem enquanto um fenômeno social de interação e defendiam que o ensino de língua
portuguesa tivesse como objetivo central a formação de leitores e de produtores de texto, capazes
de mobilizar, para tanto, diferentes recursos linguísticos nas mais variadas circunstâncias de
interação verbal. Nesse sentido, ao refletirem especificamente acerca da abordagem das classes
de palavras numa perspectiva sociointeracionista de linguagem, as autoras afirmam:
[...] Partimos do pressuposto de que um ensino mais significativo de língua, a partir das
classes gramaticais, deve privilegiar o conhecimento de como cada classe de palavras
atua na organização e produção de textos, contribuindo para ampliar a compreensão e
123
produção textual do aprendiz em diferentes gêneros textuais. Deve servir também para
lhe assegurar a exploração das diversas possibilidades combinatórias das palavras na
construção de sentido do texto. Devemos, portanto, priorizar um ensino de classes de
palavras em que, diante da mobilidade dos vocábulos, essas sejam observadas sob
diferentes critérios. (BASTOS, LIMA e SANTOS, 2012, p. 121)
Segundo relatam as autoras, o professor investigado realizou junto a seus alunos um
estudo reflexivo sobre os pronomes a partir das letras das canções abaixo reproduzidas:
Figura 12: Letra da música “Apesar de você”, de Chico Buarque
Figura 13: Letra da música “Maninha”, de Chico Buarque
APESAR DE VOCÊ
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal
MANINHA
Se lembra da fogueira
Se lembra dos balões
Se lembra dos luares dos sertões
A roupa no varal, feriado nacional
E as estrelas salpicadas nas canções
Se lembra quando toda modinha falava de amor
pois nunca mais cantei, oh maninha
Depois que ele chegou
Se lembra da jaqueira
A fruta no capim
Dos sonhos que você contou pra mim
Os passos no porão, lembra da assombração
E das almas com perfume de jasmim
(MIÚCHA; JOBIM, T. Miúcha & Antônio Carlos Jobim. RCA Victor, 1977. LP, faixa 10.)
Se lembra do jardim, oh maninha
Coberto de flor
Pois hoje só dá erva daninha
No chão que ele pisou
Se lembra do futuro
Que a gente combinou
Eu era tão criança e ainda sou
Querendo acreditar que o dia vai raiar
Só porque uma cantiga anunciou
Mas não me deixe assim, tão sozinha
A me torturar
Que um dia ele vai embora, maninha
Prá nunca mais voltar...
(BUARQUE, C. Apesar de você. Philips, Philips, Compacto, Lado A.)
124
Bastos, Lima e Santos (2012) contam que, nas aulas iniciais, o professor apresentou as
canções aos alunos, explorou os conhecimentos prévios que eles tinham sobre os cantores e suas
outras produções artísticas, colocou as músicas escolhidas para tocar na sala e cantou-as junto
com os alunos. Em seguida, ele solicitou que os alunos localizassem os pronomes presentes na
primeira canção. Como se tratava de uma turma já de ensino médio e sem grandes dificuldades
em relação aos conteúdos da disciplina, os alunos rapidamente atenderam ao comando do
professor. Ele, então, pediu aos alunos que apontassem, dentre os termos que eles haviam
identificado, os pronomes referentes do texto, ao que os alunos indicaram as expressões “eu” e
“você”. A partir dessas respostas, o professor fez uma nova provocação à turma: queria saber se
os elementos aos quais “eu” e “você” se referiam poderiam ser encontrados no texto. Diante da
resposta de uma das alunas – que percebeu estarem os referentes “fora” do texto –, o professor
mediou um amplo debate na turma para se descobrir quem eram os referentes dos pronomes
focalizados. Recorrendo a conhecimentos históricos acerca do período em que o Brasil foi
governado pelos militares, os alunos encontraram a resposta procurada: “você” era o general
Garrastazu Médici, presidente da república à época da composição da canção. Ao final dessa
discussão, o professor explicou para os alunos que, por não haver elemento textual explícito que
indicasse os referentes dos pronomes que apareciam repetidamente ao longo da letra da música,
era preciso recorrer a um contexto “externo”, a história, para encontrá-los.
Com a canção “Maninha”, o professor fez um trabalho semelhante para mostrar que o
pronome “ele” referia-se ao general Geisel, mas, como algumas alunas levantaram outras
hipóteses de sentido para os pronomes – e para o texto como um todo – desvinculadas do
contexto histórico mais conhecido (o do general Geisel), o professor explorou-as junto aos alunos
e, no momento de fazer a reflexão final sobre a necessidade de recorrer à esfera extratextual para
atribuir sentidos ao texto, destacou que a ausência de elementos textuais que explicitassem os
referentes do pronome em questão “abre” o texto para que o leitor possa construir novos sentidos
por meio do apelo a uma outra esfera extratextual, não necessariamente aquela de que se valeu o
autor no momento da criação. Por fim, o professor solicitou aos alunos que pesquisassem em casa
textos nos quais o mesmo recurso linguístico (pronomes de referência dêitica) fosse utilizado.
Até o momento, de fato, fica constatado que a prática de análise linguística empreendida
pelo professor atentou para o funcionamento do elemento linguístico estudado (os pronomes) em
situações concretas de interação (mediadas pelas letras das músicas escolhidas). O texto é ponto
125
de partida para se estudar um constituinte menor, com o intuito, por seu turno, de ampliar a
compreensão global do texto. Foi apenas ao final de todo esse processo, após haver mediado a
investigação sobre o funcionamento dos pronomes nos textos, conforme descrevemos há pouco,
que o professor utilizou o livro didático para realizar atividades de ordem mais estrutural junto
aos alunos e, a partir delas, discutiu conceitos e regras acerca do pronome de um ponto de vista
normativo, dentre os quais: colocação pronominal, uniformidade de tratamento, uso dos
pronomes de tratamento, pronomes do caso reto e do caso oblíquo e concordância verbal.
3.4 ANÁLISE LINGUÍSTICA E INOVAÇÃO PEDAGÓGICA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A
CONSTRUÇÃO DAS PRÁTICAS DOCENTES
Após situarmos o leitor quanto ao universo teórico ao qual nossa pesquisa remete –
partindo do domínio mais amplo (a concepção bakhtiniana de linguagem e a perspectiva
sociointeracionista de ensino de língua materna) e, pouco a pouco, chegando aos conhecimentos
específicos enfocados (os fundamentos da análise linguística, as interseções da análise linguística
com a leitura, as possibilidades práticas de se concretizar essa articulação) –, entendemos ser
necessário fazer algumas breves considerações acerca da prática docente. Afinal, embora os
saberes disciplinares e pedagógicos (cf. TARDIF, 2002) de que tratamos até o momento ocupem
um largo espaço na formação profissional do professor e sejam determinantes na sua forma de
atuar, eles não constituem sozinhos a prática docente como um todo. Assim, com o intuito de
construirmos um direcionamento de análise mais condizente com a natureza do fenômeno que
buscamos investigar (práticas de análise linguística desenvolvidas por professores), procuramos,
nesta seção final, aliar as análises que pesquisadores recentes têm feito sobre as práticas de
análise linguística desenvolvidas por professores da escola básica às reflexões que Tardif (2002)
e Chartier (2000a [1995], 2000b, 2002, 2007) fazem sobre a natureza da prática docente, sobre os
saberes mobilizados na construção dessa prática e sobre a constituição da inovação pedagógica.
Selecionamos dois pesquisadores (DUARTE, 2014; TENÓRIO, 2013) que se fundamentam em
teóricos da prática docente para analisarem o corpus de seus estudos, seja ele composto de
entrevistas e/ou de relatos de observação de aulas. Assim como as demais pesquisas que vimos
incorporando à discussão teórica empreendida neste capítulo, tais estudos nos oferecem dados
reveladores acerca das inovações pedagógicas que vêm sendo promovidas nas circunstâncias
126
concretas de ensino. Esforçamo-nos em enfocar, sempre que possível, os diálogos que os
professores das práticas investigadas foram estabelecendo com a leitura ao abordarem, em suas
aulas, conhecimentos vinculados ao eixo da reflexão linguística.
A escolha de Chartier (2000a [1995], 2000b, 2002, 2007) e Tardif (2002) para nortear a
reflexão que aqui se propõe foi motivada por uma de suas principais contribuições ao âmbito das
pesquisas em educação: a assunção de que o professor é um expert do ensino, devido à sua
condição de autor de suas práticas, e não meramente reprodutor/aplicador de saberes elaborados
por outrem. Trata-se de um deslocamento de olhar importante tanto para o contexto acadêmico
quanto para a formação profissional, na medida em que o professor se torna fonte essencial do
saber sobre o funcionamento da prática para aqueles, por um lado, que a investigam e para
aqueles, por outro, que procuram aprender o ofício de ensinar. Se os diversos campos do saber
contribuem parcialmente para a construção da prática docente, é o professor que, de fato, retraduz
toda a sorte de conhecimentos necessários à sua atuação nas ações efetivas que constituem a
prática docente. Nos termos de Tardif (2002), o professor produz saberes experienciais, que
conferem identidade à sua atuação profissional. Comecemos, então, pelas ideias por ele
defendidas a respeito da prática docente.
Para compreender a natureza da atividade do professor, Tardif (2002) questiona as
acepções de prática docente até então defendidas (prática enquanto arte, enquanto técnica guiada
por valores e enquanto interação) por considerar que elas pressupõem uma relação meramente
instrumental entre o sujeito professor e os saberes mobilizados na produção de seu fazer
profissional. Ele entende que os modelos explicativos elaborados por essas tendências teóricas
não dão conta da complexidade da natureza da prática docente. Por isso, não propriamente rejeita
as teorizações por elas propostas, mas procura preencher, por assim dizer, as lacunas que
encontra nessas formulações. Por exemplo, a noção de que a prática educativa é uma técnica
guiada por valores defende que os saberes mobilizados pelo educador são de ordem técnico-
científica, moral e prática. Tardif (2002) não descarta a existência desses saberes na atuação
profissional do educador. Entretanto, não encontra neles a especificidade da prática do professor,
e era essa a indagação central que impulsionava suas reflexões teóricas, como podemos inferir do
fragmento abaixo:
[...] O saber não é uma coisa que flutua no espaço: o saber dos professores é o saber
deles e está relacionado com a pessoa e a identidade deles, com a sua experiência de vida
e com a sua história profissional, com as suas relações com os alunos em sala de aula e
127
com os outros atores escolares na escola, etc. Por isso, é necessário estudá-lo
relacionando-o com esses elementos constitutivos do trabalho docente. (TARDIF, 2002,
p. 11, grifo do autor)
Para Tardif (2002), a atividade desenvolvida pelo professor é heteróclita e multifacetada,
porque demanda a conjugação de saberes, habilidades e competências de diversas ordens em
função de uma situação efetiva e específica de trabalho que se coloca diante dele a cada
momento. É por isso que não se pode, na visão do autor, reduzir o saber do professor (ou seu
“saber-ensinar”) à aplicação de conhecimentos teóricos acerca de um objeto de ensino:
Para ensinar, o professor deve ser capaz de assimilar uma tradição pedagógica que se
manifesta através de hábitos, rotinas e truques do ofício; deve possuir uma competência
cultural oriunda da cultura comum e dos saberes cotidianos que partilha com seus
alunos; deve ser capaz de argumentar e de defender o seu ponto de vista; deve ser capaz
de se expressar com uma certa autenticidade, diante de seus alunos; deve ser capaz de
gerir uma sala de aula de maneira estratégica a fim de atingir objetivos de aprendizagem,
conservando sempre a possibilidade de negociar o seu papel; deve ser capaz de
identificar comportamentos e de modificá-los até um certo ponto. O “saber-ensinar”
refere-se, portanto, a uma pluralidade de saberes. (TARDIF, 2002, p. 177-178)
Aliando a dimensão social e individual dos saberes docentes, Tardif (2002) categoriza-os
e analisa a relação que, no exercício de sua profissão, o professor estabelece com esses saberes
para, assim, encontrar o que neles há de idiossincrático. Os saberes profissionais do professor
segundo Tardif (2002, p. 49) são: pedagógicos (doutrinas ou concepções de natureza ideológica
e/ou metodológica produzidas pelas ciências da educação no intuito de orientar a atividade
docente), disciplinares (os objetos de conhecimento propriamente ditos que as disciplinas se
propõem a ensinar), curriculares (conjunto de discursos, métodos, objetivos e conteúdos eleitos
como modelo de formação cultural que deverão nortear as práticas de ensino) e experienciais (“a
cultura docente em ação”, produzida e validada na/pela prática).
A título de exemplo, poderíamos identificar os saberes que a mediação das práticas de
análise linguística na escola demanda do professor de língua portuguesa. Em primeiro lugar, ele
precisará recorrer aos conhecimentos teóricos acerca dos objetos de ensino aos quais teve acesso
ao longo de sua formação inicial e continuada. Nesse caso, os saberes disciplinares são os
conhecimentos produzidos pela tradição gramatical, pelos diversos campos da linguística e pela
teoria literária, retraduzidos em objetos de ensino. Como vimos desde o segundo capítulo desta
dissertação, os objetos de ensino não se constituem por meio de uma transposição direta das
chamadas ciências “de referência”. Assim, para exercer seu ofício, o professor também recorre a
saberes pedagógicos que lhe permitem ajustar os objetos de ensino às necessidades de
128
aprendizagem do grupo de alunos com o qual trabalha, selecionando, com base em
intencionalidades pedagógicas concretas, os procedimentos e os recursos didáticos necessários
para ensinar um certo conjunto de conhecimentos. Alicerçado nos saberes pedagógicos, um
professor de língua portuguesa pode decidir, por exemplo, sob que perspectiva abordará um
conceito gramatical com uma turma específica e se, para efetuar tal abordagem, recorrerá a uma
metodologia transmissiva ou reflexivo-construtiva. Poderá também decidir que tipos de
atividades os alunos deverão realizar para compreender o conceito estudado: uma ficha de
exercícios tradicionais, uma pesquisa prévia para posterior discussão coletiva, consulta a
gramáticas e dicionários, etc. Todas essas decisões aliam-se à definição do que ensinar e da razão
para fazê-lo, submetidas também aos saberes disciplinares do professor. Sabe-se, ainda, que esse
conjunto de decisões não depende exclusivamente da figura individual do professor ou de um
seleto grupo de profissionais que trabalham numa mesma escola. Os atores sociais que atuam
num contexto de trabalho específico sempre se situam numa esfera institucional mais ampla que,
em maior ou menor grau, influencia as decisões pedagógicas e didáticas tomadas nas diversas
práticas de ensino que se desenvolvem em cada sala de aula. Trata-se, principalmente, dos
documentos curriculares, que traçam diretrizes teóricas e metodológicas para o ensino de cada
uma das disciplinas escolares. Veja-se, por exemplo, pelo que expusemos até aqui, a importância
que a incorporação dos princípios da análise linguística – e, no âmbito mais geral, da perspectiva
sociointeracionista de ensino de língua materna – pelos PCN e pelo PNLD tiveram para a difusão
de novas concepções de ensino e de novas formas de lidar com os conhecimentos linguísticos na
escola básica.
A grande novidade trazida pelo pensamento de Tardif (2002) é o fato de a prática docente
não ser produzida meramente pela fusão desses três tipos de saberes (disciplinares, pedagógicos e
curriculares), mas pelos saberes experienciais. Ainda pensando nos exemplos acima, é bem
verdade que um professor de língua materna pode, inspirando-se nas propostas de Mendonça
(2006) apresentadas na seção anterior, planejar trabalhar os efeitos de sentido provocados pelos
processos de adjetivação em textos literários. Pode recorrer aos documentos curriculares e aos
livros didáticos para construir sua proposta de trabalho. Em seguida, pode também decidir partir
da leitura coletiva do texto e ir levantando questões que levem os próprios alunos a perceberem
como o recurso expressivo focalizado funciona no texto lido. Pode decidir, ainda, que os alunos
produzirão sistematizações intuitivas acerca do fenômeno estudado com base nas análises
129
coletivas previamente realizadas. Por fim, pode optar por apresentar-lhes as conceituações já
produzidas e contrastar junto à turma as conclusões teóricas a que os especialistas chegaram e
aquelas elaboradas pelos alunos. Todas essas decisões, entretanto, não são suficientes para
controlar integralmente as ações que serão efetivamente realizadas na sala de aula, porque, na
prática concreta, estão em jogo, além das decisões que os saberes pedagógicos, disciplinares e
curriculares permitiram ao professor tomar, as particularidades do aqui e do agora da sala de aula.
É nos contornos reais que a atividade docente ganha na prática que os saberes experienciais são
produzidos. Eles não estão sistematizados em teorias ou em documentos, porque sua existência é
indissociável das condições efetivas da profissão.
Tardif (2002) atribui posição prioritária aos saberes experienciais na construção da prática
docente. Como já afirmamos, sua crítica aos demais modelos teóricos centrava-se na
impossibilidade de se determinar, por meio de uma racionalidade única ou de um esquema
teórico anterior à análise da prática propriamente dita, uma escala hierárquica dos condicionantes
da atividade docente. Diante de tal restrição, como se explica a primazia dos saberes
experienciais? Afinal, o valor que Tardif (2002) confere a esses saberes é também fruto da
construção de uma teoria da prática docente. Para compreender essa questão, é imprescindível
precisar a natureza da relação que os saberes experienciais estabelecem com os demais saberes
docentes (pedagógicos, disciplinares e curriculares): trata-se, para Tardif (2002), de uma relação
de transversalidade, e não de superposição ou de exclusão. Noutras palavras, os saberes
experienciais contemplam os demais saberes, mas não são simplesmente um conjunto deles. Para
produzir os saberes da experiência – constitutivos da prática do professor –, os saberes
disciplinares, pedagógicos e curriculares são, nos termos de Tardif (2002, p. 53, grifos nossos),
“retraduzidos” em função das necessidades da situação concreta de atuação do professor:
A experiência provoca um efeito de retomada crítica (retroalimentação) dos saberes
adquiridos antes ou fora da prática profissional. Ela filtra e seleciona os outros saberes,
permitindo assim aos professores reverem seus saberes, julgá-los e avaliá-los e, portanto,
objetivar um saber formado de todos os saberes e retraduzidos e submetidos ao processo
de validação constituído pela prática cotidiana.
Na concepção de Tardif (2002), é a partir da produção dos saberes experienciais que o
professor domina sua prática e quebra a relação de exterioridade (ou mesmo de “alienação”,
chega a coloca o autor) com os saberes que permeiam de sua prática. Assim, o valor de uso de um
determinado percurso trilhado é definido pela prática. É o modo como as escolhas do professor
130
funcionam na situação concreta da sala de aula que o leva a valorizar ou a descartar um caminho
percorrido. Com o status identitário que atribui aos saberes da experiência, Tardif (2002) alerta os
estudiosos da educação a atentarem para uma análise contextual dos fenômenos investigados.
Assim, se é do interesse do pesquisador investigar um elemento específico que remete aos demais
saberes (concepções teóricas acerca do objeto de ensino ou escolhas metodológicas adotadas, por
exemplo), cabe verificar como ele é operacionalizado na prática, isto é, como a relação com os
demais condicionantes da prática explicam o modo como tal elemento é mobilizado.
Considerando-se que “[...] as atividades concretas dos atores sociais manifestam-se
geralmente como tipos mistos e raramente puros”, Tardif (2002, p. 174) nega a existência de uma
linearidade entre teoria e prática na atuação docente. Defende que, na verdade, as ações do
professor no exercício de sua profissão são guiadas por uma coerência pragmática:
Um professor não possui habitualmente uma só e única “concepção” de sua prática, mas
várias concepções que utiliza em sua prática, em função, ao mesmo tempo, de sua
realidade cotidiana e biográfica e de suas necessidades, recursos e limitações. Se os
saberes dos professores possuem certa coerência, não se trata de uma coerência teórica,
mas pragmática e biográfica. (TARDIF, 2002, p. 65)
O professor, então, é alguém que age com objetivos, impulsionado por motivações
pedagógicas e ideológicas, mas também regido por normas institucionais e marcado por sua
experiência profissional e pessoal. Aquilo que é aparentemente contraditório na atividade docente
ganha sentido, na medida em que se vincula às condições efetivas da atuação do professor no
trabalho, sejam elas as necessidades particulares de seu grupo-classe, as limitações institucionais
do ambiente de trabalho ou até mesmo sua trajetória de vida.
A historiadora francesa Anne-Marie Chartier (2000a [1995], 2007) partilha com Tardif
(2002) da ideia de que as ações do fazer docente cotidiano se organizam em torno de uma forte
coerência pragmática e são definidas pelos contornos que a aula assume a cada momento: “Os
critérios das escolhas pedagógicas são prioritariamente (mas não exclusivamente) referentes ao
que cada um avalia empiricamente como satisfatório, isto é, dizer racionalmente realizável no
aqui e agora da classe” (CHARTIER, 2000a [1995], p. 165, grifos nossos). Na concepção da
autora, os conhecimentos teóricos acerca do objeto de ensino e das formas de organização do
trabalho pedagógico, de fato, exercem influência sobre a atividade docente. Entretanto, os
aspectos decisivos para a constituição da prática do professor remetem à situação concreta da
131
aula, responsável, inclusive, pelos recorrentes questionamentos acerca dos saberes difundidos nas
instâncias de formação profissional.
As formas de organização e as técnicas de trabalho, os procedimentos de aprendizagem e
as modalidades de avaliação, as intervenções educativas são tanto herdadas, imitadas,
reproduzidas, quanto produzidas empiricamente, construídas e justificadas tecnicamente
ou teoricamente (em referência a um corpus constituído de saberes), ou referidas a um
conjunto de valores (uma concepção do bem para uma criança, uma missão política da
escola, etc.). (CHARTIER, 2000a [1995], p. 165)
Por atribuir primazia aos saberes constituídos na prática propriamente dita, Chartier
(2000a [1995]) defende veementemente a necessidade de que as pesquisas em educação
encontrem um meio de explicitá-los a fim de aprimorar a formação dos professores. Isso implica
uma revisão do papel da pesquisa acadêmica na formação dos profissionais que atuam
diretamente na escola básica, pois os especialistas, evidenciando discursivamente as nuances e os
princípios organizadores da atividade docente, passam a intermediar a transmissão de um saber
produzido na prática docente a outros professores e formadores. Segundo Chartier (2000a [1995],
2007), identificar os elementos que regulam as maneiras de fazer dos professores demanda que o
pesquisador interrogue-os, numa atitude colaborativa em relação à objetivação dos discursos
sobre a prática que eles buscam efetivar em suas respostas. Nas conversas com os professores e
nos demais procedimentos de pesquisa, Chartier (2000a [1995]) defende que se volte o olhar para
o que ela chama de “fazeres ordinários”, por acreditar no seu alto potencial para desvendar os
gestos microscópicos que produzem as práticas desenvolvidas pelos professores, a despeito da
frequente negligência das pesquisas em relação a essas variáveis: “[...] o ordinário da classe
implica os tateamentos incessantes, as adaptações locais, as modificações provisórias sem as
quais não se faz a classe” (CHARTIER, 2000a [1995], p. 164).
Atentando, então, para a coerência pragmática dos fazeres ordinários empreendidos pelo
professor na sala de aula, o pesquisador pode ir além de um enquadramento reducionista da
prática em modelos teóricos prévios. Em primeiro lugar, porque Chartier (2007) entende que a
relação do professor com os conhecimentos oriundos da academia é permeada pelos imperativos
da prática profissional. Por isso, a autora explica que os dados da pesquisa acerca da atuação
docente devem provir da observação da ação, não dos discursos sobre teorias, uma vez que,
sendo a ruptura entre teoria e prática uma “ficção”, a lógica das ações docentes permite construir
teorias sobre a prática.
132
A oposição entre prática tradicional e prática inovadora, qualquer que seja o polo
valorizado, mascara de fato a existência de toda uma série de ações profissionais
ordinárias que constituem o tronco sobre o qual vêm se enxertar os estilos pedagógicos
ou didáticos específicos tradicionais ou renovados. (CHARTIER, 2000a [1995], p. 164)
Não se trata de negar a existência de modelos tradicionais de ensino e de propostas de
renovação pedagógica, mas de perceber que as formulações teóricas não equivalem aos contornos
da prática concreta. Os modelos são referências que ajudam a compreender como a prática
funciona; esta, no entanto, não se apresenta ao pesquisador tal qual descrevem os modelos. As
pressões externas e internas de diversas ordens que incidem sobre as práticas multiplicam os
matizes que elas podem assumir. É preciso, portanto, partir da prática para a teoria, não o
contrário.
A heterogeneidade constitutiva da prática docente e seu permanente estado de construção
favorecem, na ótica de Chartier (2002), o estudo da atividade docente como dispositivos. Para
explicar o que tal direcionamento significa, a autora procura delimitar teoricamente o conceito de
dispositivo contrastando-o com outros dois, cujos sentidos se assemelham: os métodos e as
técnicas. Apesar da proximidade desses conceitos, Chartier (2002) afirma que eles apresentam, na
forma como são explorados no âmbito das pesquisas acadêmicas e mesmo nas instâncias de
formação docente, especificidades que justificam a escolha por cada um deles a depender dos
objetivos que movem aqueles que os utilizam. Nesse sentido, a autora assinala que “o método
tem a ver com a lógica de um discurso que justifica suas etapas (que também são ações),
enquanto a técnica encadeia gestos finalizados e validados por resultados” (CHARTIER, 2002, p.
11). Pela definição, ambos os termos fazem alusão às ações realizadas pelo sujeito, nelas
evidenciando uma lógica discursiva ou prática que as unem em um mesmo fenômeno (uma aula,
por exemplo). Chartier (2002), todavia, percebe que esses termos, nos usos correntes, acabam
assumindo um viés instrumental. Isso acontece sobretudo com a expressão “método”, tendo em
vista que sua associação com modelos teóricos formulados por especialistas (“método analítico”,
“método experimental”, etc.) o transfigura em “[...] uma ordenação intelectual, mais que material,
em que as operações mentais e a ordem das razões contam mais que as ações práticas que as
manifestam” (CHARTIER, 2002, p. 12).
Não é de nosso interesse, para fins desta pesquisa, delimitar as tênues diferenças que o
uso de cada um dos referidos termos pode apresentar. Nossa intenção é de dar relevo a uma
proposta de análise da atividade docente que privilegie as ações constitutivas da prática. É o que
133
busca Chartier (2002) quando sugere tomar o dispositivo como uma categoria de análise das
práticas docentes. Ela acredita que esse termo remete mais diretamente às práticas propriamente
ditas, nas reais circunstâncias em que acontecem e da forma como são continuamente construídas
pelo professor: “Estudar as realidades ‘como dispositivos’ é interrogar-se sobre seu valor de uso
em contextos e conjunturas, isto é, em espaços e tempos muito diversamente delimitados”
(CHARTIER, 2002, p. 26). Os dispositivos, para a autora, constituem um quadro de ações que
revelam a relação entre os praticantes, seus saberes e as instituições que atuam sobre a prática
desenvolvida. A instalação dos dispositivos pedagógicos é responsável pelos fazeres ordinários
empreendidos pelo professor no cotidiano da sala de aula. É por isso que Chartier (2002) aposta
no olhar para os dispositivos como forma de acessar a história das práticas sociais (e mais
especificamente das práticas docentes), não meramente a história dos “saberes discursivos”.
Sintetizadas as ideias centrais de Tardif (2002) e Chartier (2000a [1995], 2002, 2007),
vejamos como elas fundamentaram as investigações acerca das práticas escolares de análise
linguística realizadas pelos pesquisadores que mencionamos na abertura desta seção.
Duarte (2014), em sua pesquisa de mestrado, investigou as práticas de análise linguística
desenvolvidas por duas professoras que atuavam em turmas do ensino fundamental de escolas da
rede estadual de Pernambuco para compreender as relações entre suas concepções de linguagem e
as práticas de ensino realizadas em torno desse eixo didático. Para tanto, o pesquisador fez uma
análise documental dos materiais didáticos utilizados pelas professoras durante o período de
observação e de dois documentos reguladores de suas práticas de ensino: os Parâmetros para a
Educação Básica do Estado de Pernambuco (documento curricular estadual) e o diário de classe
das professoras. Também recorreu a entrevistas no intuito de evidenciar as concepções de língua,
de ensino de língua e de gramática tanto no que dizem respeito ao que declaravam as docentes
quanto no que elas conseguiam efetivar nas práticas de análise linguística que propunham junto
às turmas observadas. Por fim, o pesquisador se voltou para o fazer pedagógico das professoras a
fim de verificar o modo como elas articulavam seus conhecimentos teóricos aos saberes em ação
implicados nas práticas de análise linguística desenvolvidas.
Ao final de sua pesquisa, Duarte (2014) detectou uma relação não linear entre as
concepções de linguagem declaradas pelas professoras e as práticas que elas desenvolviam em
relação ao eixo da análise linguística. Como Tardif (2002) e Chartier (2000a [1995], 2007),
Duarte (2014) identificou que as ações realizadas pelas professoras encadeavam-se guiadas por
134
uma coerência pragmática, e não necessariamente teórica. As práticas que as professoras
desenvolveram diferenciavam-se por procurarem atender às circunstâncias concretas que a
situação de ensino apresentava às docentes. Noutras palavras, elas definiam os percursos
didáticos trilhados durante suas aulas a partir do que julgavam adequado aos alunos de acordo
com as necessidades de aprendizagem que eles demonstravam, com as restrições institucionais
vigentes e com as especificidades de cada série. Ambas as professoras concebiam a linguagem
como forma de interação social, mas articulavam esse conhecimento teórico à prática de maneiras
distintas, porque outras variáveis interferiam na realização dos trabalhos de cada uma delas.
A prática de ensino da primeira professora investigada por Duarte (2014) se organizava
em sequências de atividades que giravam em torno do estudo de um gênero textual. Ao planejar e
colocar em prática essas sequências, a professora buscava sempre articular leitura, produção de
texto e análise linguística. Assim, para mediar as reflexões linguísticas propostas, a professora
tanto partia da leitura de um texto quanto das produções elaboradas pelos alunos. Dados os
nossos interesses de pesquisa, concentramo-nos nos dados que revelavam o esforço da professora
em promover práticas de análise linguística tomando as atividades de leitura como ponto de
partida.
Duarte (2014) relata que o planejamento da professora buscava associar os gêneros a
serem explorados e conteúdos de análise linguística a serem estudados a partir de sua ocorrência
nos textos lidos para o trabalho com cada um dos gêneros. Por exemplo, para o trabalho com as
receitas culinárias, a professora elegeu os verbos no imperativo, a pontuação, o uso do negrito e
as variedades linguísticas como objetos de ensino, além de ter realizado uma análise comparativa
entre a linguagem utilizada em receitas escritas e em receitas apresentadas oralmente em
programas televisivos. Duarte (2014) avalia que, nesse trabalho, a professora se valeu da leitura
de vários textos e da reflexão sobre a estrutura e os propósitos comunicativos do gênero. Outra
percepção do pesquisador em relação às práticas de análise linguística desenvolvidas pela
professora foi a predominância de atividades epilinguísticas, em que ela partia de conhecimentos
prévios dos alunos acerca do funcionamento da linguagem e os contrastava com o modo como os
fenômenos linguísticos estudados apareciam nos textos lidos em sala de aula. Veja-se, por
exemplo, o excerto de aula abaixo (DUARTE, 2014, p. 99), em que a professora instiga os alunos
a, tomando como parâmetro uma análise coletiva anterior que a turma havia feito com os verbos
135
no imperativo em receitas culinárias escritas, analisarem a linguagem utilizada por uma
apresentadora de programa televisivo para ensinar uma outra receita:
Vocês leram comigo a receita. Vocês lembram que vocês circularam aquelas palavrinhas que davam sentido
indicando ordem? Dizendo como vocês têm que fazer... um pedido, uma ordem. Prestem atenção a essa receita
aqui que a senhora vai ensinar pra gente de bolo de milho, não é o mesmo bolo de milho. Comparem com a
que vocês têm escrita e depois vocês comentam. O que vocês encontraram de semelhança e diferença. O que
tem igual, parecido ou se são totalmente diferentes. Principalmente naquelas palavrinhas que a gente viu na
aula passada [referindo-se aos verbos no imperativo].
Figura 14: Trabalho comparativo entre receita culinária escrita e oral (1)
Após a exibição do vídeo, seguiram-se os seguintes diálogos na sala de aula entre
professora e alunos:
PA: Vocês perceberam alguma diferença de como ela fala e de como está aí no texto de vocês [referindo-se à
receita escrita]? Lê, por favor, A1, o modo de preparar do bolo de milho.
A1: Primeiro, preaqueça o forno a 200 graus.
PA: Preaqueça.
A1: No liquidificador, bata o milho verde, os ovos...
PA: Preaqueça, bata.
[...]
PA: é dessa maneira que ela fala as palavras aqui? Ela fala dos ingredientes. Mas como ela agora vai
colocando as palavras? Presta atenção.
[A professora volta ao vídeo no momento que a apresentadora do programa fala do modo de preparo.]
PA: O que tá faltando ela falar aí nessa receita? No texto? Em relação às palavras.
A2: Preaqueça, mexa, bata, adicione.
PA: Mas ela fala dessa forma?
A2: Não.
PA: E como ela fala?
A3: Vamos colocar, vamos mexer.
PA: Por que vocês acham que ela fala dessa forma e não da maneira do texto?
A1: porque ela tá fazendo também.
PA: isso, porque ela também tá fazendo, por isso que ela diz “vamos mexer”... no lugar de “misture”, o que
ela diz?
A4: “vamos misturar”.
PA: Então, se ela tá fazendo e a gente também, então somos...
A1: nós
PA: dessa maneira não soa com tanta força de ordem, de pedido, como nós vimos naquelas palavrinhas do
texto.
Figura 15: Trabalho comparativo entre receita culinária escrita e oral (2)
Algumas críticas poderiam ser feitas ao trabalho da professora do ponto de vista dos
conhecimentos teóricos em que ela se baseia para realizar a análise expressa nos fragmentos de
aula transcritos na Figura 14 e na Figura 15. Haveria mesmo na receita escrita uma intenção de
dar uma ordem ao leitor? A linguagem utilizada no programa televisivo não estaria também
fornecendo ao telespectador instruções de como proceder para cozinhar o bolo de milho, como o
136
fez o autor da receita escrita por meio dos verbos conjugados no modo imperativo? Apesar de a
professora ter incorrido em certa inconsistência teórica na condução da análise proposta, o que
gostaríamos de ressaltar em relação ao trabalho da professora é a busca em incentivar uma atitude
investigativa dos alunos para compreenderem o funcionamento de um dado fenômeno linguístico
a partir da observação, da comparação, da inferência. A professora opta por dirigir essa reflexão a
partir de perguntas que incitem os alunos a produzirem conhecimento sobre o funcionamento dos
verbos no imperativo em situações concretas de interação, em vez de apresentar previamente
análises de antemão fabricadas por especialistas. Além disso, embora tenha se equivocado na
explicação, ela procurou atentar para a relação do uso desses verbos com as especificidades do
gênero e às intencionalidades do enunciador.
Após a realização desse trabalho, a professora sistematizou junto aos alunos a formação
dos verbos no imperativo afirmativo e negativo, recorrendo, para isso, aos modelos teóricos
apresentados pela tradição gramatical. Sobre essa etapa da sequência didática, a professora
explicou ao pesquisador:
Qualquer pessoa que visse essa minha aula diria que sou uma professora tradicionalista, que trabalho com a
gramática tradicional. Mas eu achei fundamental explicar aos meninos a formação do imperativo. Como você
viu que tudo se deu numa sequência, você entendeu os motivos que me fizeram fazer isso. E outra coisa, eles
primeiro aprenderam a usar os verbos e só depois eu entrei com as nomenclaturas e tudo foi a partir de um
gênero. E você viu que eles aprenderam a usar os verbos no subjuntivo, perfeitamente.
Figura 16: Comentário crítico de professora acerca da escolha de uma abordagem tradicional
para ensinar a formação do modo imperativo
Duarte (2014) chama atenção para a clareza que a professora parecia ter quanto aos
objetivos que norteavam sua forma de trabalho em relação à abordagem dos conhecimentos
linguísticos. A simultaneidade com que a professora se vale de dispositivos pedagógicos
tradicionais ou renovados não é suficiente para concluir que as atividades por ela propostas se
chocam no interior da sequência didática por ela planejada. Duarte (2014), baseando-se nas ideias
de Tardif (2002) e Chartier (2007), entende que havia uma coerência pragmática subjacente à
prática desenvolvida pela professora. Por isso, sua concepção de linguagem como forma de
interação social não a impedia de recorrer a conceitos e práticas oriundas do ensino tradicional de
gramática. Ampliando a análise de Duarte (2014) – mas na mesma linha de raciocínio por ele
trilhada –, podemos inferir da fala da professora e do modo como ela conduziu as atividades que
suas escolhas didáticas são guiadas pelas necessidades concretas que ela encontra no ambiente de
137
trabalho e pelo que ela considera empiricamente satisfatório à aprendizagem dos alunos, tal como
defende Chartier (2000a [1995]).
Outra pesquisadora que investigou práticas de análise linguística na escola pela via das
teorias da prática docente foi Tenório (2013). As duas professoras que participaram de sua
pesquisa atuavam em escolas da rede municipal de Pesqueira, cidade localizada no Agreste
pernambucano. Tenório (2013) buscava encontrar os elementos da atuação profissional das
professoras quanto ao eixo da análise linguística que revelassem mudanças e/ou permanências em
relação ao ensino tradicional de gramática. Recorreu, para tanto, à observação de aulas e a
entrevistas semiestruturadas realizadas antes e após as observações. Na análise dos dados, a
pesquisadora fundamentou-se nas reflexões de Tardif (2002) acerca dos saberes docentes e de
Chartier (2000a [1995], 2002, 2007) acerca do fazer dos professores no cotidiano da sala de aula.
Apesar de a autora ter se alicerçado, ainda, nas reflexões de Michel de Certeau sobre o cotidiano
escolar, procuraremos nos deter apenas nas análises realizadas com base nos autores com os quais
temos trabalhado ao longo desta seção.
Os resultados da pesquisa de Tenório (2013) apontaram para a natureza complexa das
ações constitutivas das práticas de ambas as professoras, submetidas às apropriações delas quanto
às orientações teórico-metodológicas para o tratamento didático dos conhecimentos linguísticos.
Essas apropriações, entretanto, não eram casuais, mas vinculavam-se aos saberes oriundos de
suas experiências profissionais e pré-profissionais, bem como às necessidades concretas que o
cotidiano escolar colocava diante delas.
A título de exemplo, escolhemos alguns dados concernentes à prática de uma das
professoras investigadas. Tenório (2013) identificou na prática da professora focalizada quatro
elementos explicativos quanto às aproximações e às rupturas com o ensino tradicional de
gramática por ela promovidas. O primeiro dizia respeito ao modo como a professora utilizava o
livro didático na construção de sua prática de ensino, oscilando entre a rejeição da abordagem
transmissiva da obra e a adesão à metodologia por ela proposta. Outros elementos encontrados
pela pesquisadora foram a ênfase no trabalho com textos e a preocupação em articular a análise
linguística a esse trabalho, tanto nos momentos de leitura quanto nas atividades de refacção das
produções dos alunos. E, por fim, Tenório (2013) também percebeu que, na abordagem dos
conteúdos gramaticais, a professora geralmente iniciava sua prática por meio da apresentação de
classificações prévias, embora procurasse ampliar as noções dos alunos acerca da natureza do
138
fenômeno estudado através da discussão sobre os sentidos que o uso de tal recurso linguístico
poderia provocar no texto.
Um olhar mais detalhado sobre o primeiro elemento detectado por Tenório (2013) nos
mostra a relação da professora com os saberes profissionais e a intrínseca relação de suas
escolhas didáticas com o contexto concreto de ensino. Apesar da obrigatoriedade imposta pela
escola à professora quanto à exploração do material didático junto aos alunos – que deveria ser
integralmente utilizado até o final do ano letivo –, ela recorria a outros livros didáticos quando
precisava trabalhar conteúdos vinculados ao eixo da análise linguística por considerá-los mais
adequados às necessidades de aprendizagem de seus alunos. Essa motivação fica clara na fala da
professora (TENÓRIO, 2013, p. 71) quando questionada sobre as diferenças entre o livro adotado
pela escola e os livros aos quais ela recorria no intuito de produzir fichas complementares para os
alunos:
Totalmente [diferente]. Porque no meu livro [o livro adotado na escola] é mais assim em cima de textos longos.
Tem um lado bom assim... tem poemas, coloca os alunos para pensar... a gramática é trabalhada totalmente
isolada. Os outros [os que ela selecionava por fora para as atividades em sala e para as provas] têm os textos,
têm a gramática contextualizada, os exercícios também são com textos... e tem uma coisa... eles fazem uma
introdução... o livro que eu utilizo por fora... com um texto com o assunto que será abordado mais à frente.
Que é o que nós utilizamos hoje [na aula]. Aí, lá na frente vem conceituando...
Figura 17: Comentário de professora sobre a escolha dos materiais didáticos utilizados para as
práticas de análise linguística
Fica claro na fala da professora que, para escolher o material didático a ser utilizado nas
práticas de análise linguística, ela os avalia de acordo com aquilo que considera adequado à
aprendizagem dos alunos. Por sua vez, no caso dessa professora, essa escolha revelava uma
tentativa de se aproximar das atuais recomendações teórico-metodológicas para a abordagem dos
conhecimentos linguísticos, tendo em vista que ela afirma dar preferência às obras que trabalham
a gramática a partir de textos e que levam o aluno a construir o conceito gradativamente a partir
da observação de sua ocorrência em textos. Logo, como bem já apontava Tenório (2013) em sua
fundamentação teórica com base nas ideias de Chartier, os saberes disciplinares e pedagógicos
oriundos da formação acadêmica e os saberes curriculares orientadores das práticas de ensino são
importantes na constituição da prática do professor, mas não como dogmas, e sim como
ferramenta de reflexão para que os caminhos adotados na prática sejam definidos. Sozinhos, eles
não garantem a prática; precisam ser retraduzidos em saberes experienciais em função das
circunstâncias do aqui e agora da aula.
139
Um aspecto que salta à vista – quer seja nos dados de Tenório (2013) e Duarte (2014),
quer seja das demais pesquisas que apresentamos ao longo do capítulo (cf. BASTOS, LIMA e
SANTOS, 2012; MENDONÇA, 2007b) – é o movimento dos professores em direção à inovação
de suas formas de ensinar os conhecimentos linguísticos. Essa modificação, por vezes, parece
mais acelerada; outras vezes, ainda aparece mesclada com conceitos e práticas associadas ao
ensino tradicional de gramática. Como já vimos, as práticas de ensino, tal como se apresentam
nas situações concretas de sala de aula, são construídas em meio a uma rede complexa de saberes
profissionais, de condicionantes externos e internos, de experiências dos “praticantes”. Assim,
compreender como se produzem inovações pedagógicas não é algo simples.
[...] Quando se estuda uma inovação, didática ou pedagógica, tomada em si, como se
fosse apenas ligada ao campo dos saberes teóricos, se perde de vista o que faz ou o que
fez, sua funcionalidade ou a sua eficácia na escola. Ao contrário, levar em conta a
realidade escolar permite melhor compreender o fracasso das ideias pedagógicas, que
parecem entretanto muito justas e muito boas. (CHARTIER, 2000b, p. 13)
Desde o segundo capítulo, quando discutimos o lugar da tradição gramatical na
constituição histórica da disciplina português, pudemos perceber que a condição atual das
práticas de ensino remete a um longo processo histórico em que fatores de diversas ordens atuam
sobre os contornos que a disciplina vai, aos poucos, ganhando (produção acadêmica sobre os
objetos de conhecimento ensinados e sobre metodologias de ensino, perfil profissional e
sociocultural de professores, perfil sociocultural dos alunos e expectativas de aprendizagem a eles
associadas, normatização do ensino, etc.). Também temos visto ao longo do deste terceiro
capítulo que há elementos concernentes à própria construção das práticas de ensino que
complexificam ainda mais a rede de condicionantes que influenciam na produção de inovações
pedagógicas. Por isso, compreendê-las demanda adentrar o microcosmo da escola e conceber o
trabalho do professor para além da aplicação dos saberes discursivos difundidos nos textos
normativos e nas instâncias de formação profissional. Nessa mesma linha de pensamento, Silva
(2015b, p. 101), referindo-se especificamente às permanências em relação ao ensino tradicional
de gramática frequentemente encontradas nas análises de práticas de ensino, afirma:
Essa permanência, que, muitas vezes, é explicada, de modo simplista, como uma mera
resistência dos professores às inovações, evidencia, na realidade, que as mudanças nas
práticas de ensino não ocorrem como resultado de uma transposição didática direta de
mudanças produzidas no campo teórico. Em outras palavras, os professores não recebem
passivamente as informações a que têm acesso, mas antes, as selecionam e as
transformam tomando como critério a sua pertinência às ações que desenvolve em sala
de aula.
140
3.5 SÍNTESE DO CAPÍTULO
Diante do que expusemos no desenvolvimento deste capítulo, podemos concluir que
Geraldi (1997a [1984], 1997b [1984], 1991, 1996) procura, com a criação das práticas escolares
de análise linguística, substituir um trabalho pautado no reconhecimento e na reprodução por um
trabalho que privilegie a reflexão e a produção de conhecimentos através de processos
interlocutivos instaurados da sala de aula (entre professor e alunos, entre aluno e aluno, entre
alunos e autores de textos escritos e orais). Tomada a linguagem como forma de interação social
(cf. BAKHTIN, 2014 [1929]), os alunos passam à condição de interlocutores, que, ao agirem
discursivamente, mobilizam recursos expressivos e posicionam-se frente aos demais discursos
que circulam socialmente. Para ampliarem as suas possibilidades de se constituírem como
locutores e de dialogarem com os demais interlocutores, cabe à escola criar situações de interação
linguística concretas, no interior das quais os alunos possam aprender a lidar com as diferentes
estratégias de dizer, quer seja no momento em que buscam compreender um texto, quer seja no
momento de produzi-lo. É no domínio das formas de dizer – relacionadas, por sua vez, aos efeitos
de sentido almejados – que se situam as atividades de análise linguística sugeridas por Geraldi
(1997b [1984], 1991, 1996). Elas tomam como ponto de partida as intuições dos alunos acerca do
funcionamento da linguagem – isto é, as atividades epilinguísticas – para que sejam promovidas
reflexões mais aprofundadas com base num quadro nocional e categorial por meio do qual se
possa explicitar e ampliar o conhecimento intuitivo através do qual eles já operavam com a
linguagem. Esse quadro teórico não necessariamente precisa coincidir com as conceituações já
fabricadas pela tradição gramatical ou mesmo por quaisquer outras teorias linguísticas, embora
possa, em algum momento, tê-las como referências. Mais do que aproximar-se ou não do
conhecimento tradicionalmente instituído, o mais importante na escola, segundo Geraldi (1991,
1996), é o ato de tomar a língua(gem) como objeto de reflexão, pois, como diria o autor décadas
depois, “aquele que aprendeu a refletir sobre a linguagem é capaz de compreender uma gramática
– que nada mais é do que o resultado de uma (longa) reflexão sobre a língua; aquele que nunca
refletiu sobre a linguagem pode decorar uma gramática, mas jamais compreenderá seu sentido”
(GERALDI, 2014b, p. 59).
Apesar da centralidade da proposta de Geraldi (1997b [1984], 1991, 1996) na produção de
textos, vimos que o autor chega a abrir espaço para a possibilidade de o professor recorrer à
141
análise linguística como ferramenta para oportunizar a seus alunos a expansão de suas formas de
dizer. Isso, entretanto, só acontece, conforme explica o autor, quando se institui o processo de
leitura como interlocução entre leitor e autor, levando-se em consideração que ambos, numa
atitude colaborativa, comprometem-se na atribuição de sentidos ao texto: o autor oferecendo suas
palavras ao leitor através de pistas linguísticas que lhe permitam elaborar uma proposta de
compreensão legítima; o leitor oferecendo ao texto e aos demais interlocutores contrapalavras em
reação às palavras do autor numa tomada de posição frente ao que lhe é enunciado (GERALDI,
1991, 1996). Para que o aluno-leitor construa um percurso interpretativo adequado, valendo-se
das pistas linguísticas fornecidas pelo autor e compreendendo as palavras do texto com base em
suas experiências prévias de interação verbal, é preciso, dentre outras ações, ser capaz de analisar
as escolhas linguísticas e as estratégias que o autor mobilizou para se inserir na ininterrupta
cadeia de produção discursiva. Ou seja, é preciso que o aluno analise linguisticamente um texto,
partindo das mediações do professor em direção à construção de uma relação autônoma e
dialógica com o texto/autor.
Após esmiuçarmos as ideias de Geraldi (1997a [1984], 1997b [1984], 1991, 1996, 2014)
quanto à proposição das práticas de análise linguística no âmbito de um projeto
sociointeracionista de ensino de língua materna, procuramos explicitar a difusão dessa proposta
na esfera dos documentos curriculares e a elaboração de alternativas práticas elaboradas por
especialistas ou colocadas em prática por professores da escola básica com base nas
recomendações teórico-metodológicas do autor. Assim, percebemos que os PCN, publicados em
1998, oficializam a perspectiva sociointeracionista de ensino e apresentam diretrizes curriculares
aos professores, especialmente no que dizem respeito à escolha dos conteúdos curriculares e à
definição de metodologias de ensino que visem à reflexão do aluno sobre a língua(gem) e ao
desenvolvimento de habilidades de uso da língua (leitura, fala e escrita). O PNLD assemelha-se
aos PCN na perspectiva por meio da qual propõe o trabalho com a análise linguística (ou com os
conhecimentos linguísticos) na escola, atentando para sua intrínseca relação com os usos
linguísticos e, no caso da leitura, para a formação do leitor. Dessa forma, o PNLD avalia os livros
didáticos a serem distribuídos nas escolas públicas através de critérios de análise que levam em
consideração aspectos da reflexão linguística defendidos por Geraldi (1997b [1984], 1991, 1996)
e oficializados pelos PCN. Devido ao largo espaço ocupado pelo livro didático nas práticas dos
professores, inclusive na sua formação profissional, a adoção de tais critérios de análise pelo
142
PNLD assume grande relevância por levar para a sala de aula um material que potencialmente
proporcione aos alunos uma aprendizagem reflexiva acerca dos recursos da língua(gem).
Quanto às alternativas práticas indicadas nas pesquisas acadêmicas, ressaltamos propostas
variadas, direcionadas a diferentes níveis de escolarização (séries iniciais ou finais do ensino
fundamental e ensino médio), destinadas à exploração de diferentes fenômenos linguísticos
(pontuação, processos de adjetivação, classes de palavras, especificidades dos gêneros textuais)
em diferentes configurações textuais (poemas, letras de música, receitas, textos literários em
geral, textos da esfera jornalística).
Do percurso trilhado do segundo ao terceiro capítulo desta dissertação, evidenciamos um
longo processo de redimensionamento das práticas de ensino desenvolvidas por professores de
língua portuguesa, aqui demonstradas sobretudo nas inovações empreendidas no âmbito do eixo
da análise linguística e de sua relação com a leitura. Procuramos deixar claro que trata-se de um
processo complexo, que não se limita à difusão dos saberes teóricos (disciplinares, pedagógicos e
curriculares) que tematizam o ensino de língua materna. Foi com o propósito de levantar
brevemente alguns dos condicionantes que atravessam a construção das práticas docentes que
expusemos, na última seção deste capítulo, as ideias de Tardif (2002) e Chartier (2000a [1995],
2000b, 2002, 2007), enfatizando a produção de conhecimentos específicos de seu ofício por parte
do professor (os saberes experienciais, para Tardif) e, portanto, sua condição de autor das práticas
por ele desenvolvidas. Na construção da prática docente, o professor age em função das
circunstâncias e das necessidades concretas de trabalho que encontra na sala de aula. Por isso,
como defende Chartier (2002), ele opta por ações que considera adequadas ao seu contexto de
trabalho. Isso implica dizer que a atuação do professor em suas aulas atende a uma coerência de
ordem pragmática, e não necessariamente teórica (TARDIF, 2002; CHARTIER, 2000a [1995],
2007). Com o professor de língua portuguesa, não poderia ser diferente. Para articular as
reflexões dos dois autores escolhidos ao nosso problema de pesquisa, incorporamos à exposição
teórica deste capítulo dados empíricos de pesquisas que investigaram práticas de análise
linguística fundamentando-se em teorias da prática docente – a de Duarte (2014) e a de Tenório
(2013). Em ambas, parece ter ficado clara a construção da atividade docente por meio da
retomada crítica dos saberes teóricos, retraduzidos em saberes experienciais em função dos
contornos reais das práticas de ensino. É esse o contexto em que os professores aproximam-se ou
distanciam-se das orientações oficiais para o tratamento didático dos conhecimentos linguísticos.
143
4 FUNDAMENTOS E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Nos capítulos anteriores, expusemos as bases teóricas em que nos apoiamos para
desenvolver a presente pesquisa, cujo intuito principal é analisar as práticas de análise
linguística propostas pelo professor de português em turmas do sétimo ano do ensino
fundamental e as relações dessas práticas com o ensino da leitura. Neste capítulo, procedemos à
descrição dos aspectos metodológicos relacionados à pesquisa. Tal como sugere Minayo (2013a
[1993]), concebemos “metodologia” como o percurso adotado para abordar a realidade – ou o
recorte da realidade tomado como objeto de investigação científica. Segundo a autora, a
metodologia contempla três elementos indissociáveis: a teoria da abordagem (o método), os
instrumentos de operacionalização do conhecimento (as técnicas) e a criatividade do pesquisador
(experiência, capacidade pessoal e sensibilidade) (MINAYO, 2013a [1993]). Para a realização
deste trabalho em específico, conduzimos uma pesquisa do tipo qualitativa, com observação
participante, valendo-nos de dois instrumentos de coleta de dados: a entrevista e a observação de
aulas.
4.1 PARADIGMAS INVESTIGATIVOS
4.1.1 A pesquisa qualitativa
Conscientes de que o emprego do termo “pesquisa qualitativa”, como alerta André (1995),
pode soar genérico por abarcar uma quantidade significativa de tendências teórico-metodológicas
e modalidades de investigações científicas, optamos por iniciar este capítulo com uma breve
conceituação a fim de situar a pesquisa aqui proposta no âmbito das metodologias qualitativas.
A amplitude do domínio no interior do qual podem se localizar as pesquisas de cunho
qualitativo não implica imprecisão ou fragilidade no rigor científico, como pode fazer supor uma
comparação apressada entre os métodos quantitativos e qualitativos. De fato, a própria André
(1995) lembra-nos que o surgimento das abordagens qualitativas remonta a um momento
histórico – fins do século XIX – em que se começa a questionar, no âmbito das ciências humanas
e sociais, a validade ou a pertinência dos pressupostos e dos procedimentos empregados pelas
ciências “duras”. Todavia, sem negar o papel que esse debate desempenhou na desconstrução de
144
um modelo único e privilegiado de fazer ciência e na consolidação de novos parâmetros
epistemológicos, a autora considera superado o momento de dicotomização entre pesquisa
quantitativa (durante muito tempo associada ao positivismo) e pesquisa qualitativa. A
persistência na polarização (ou na vinculação automática com os paradigmas positivistas), para a
pesquisadora, atesta desconhecimento acerca do imbricamento entre dados quantitativos e
qualitativos. Nesse sentido, a autora entende que há questões da epistemologia da ciência hoje
mais relevantes, isto é, mais condizentes com o nosso tempo, dado o esgotamento da discussão
acerca da oposição quantitativo/qualitativo. Algumas dessas questões dizem respeito à natureza
do trabalho científico, às especificidades do conhecimento científico, ao papel da teoria na
pesquisa, à articulação entre as esferas micro e macrossociais, dentre outras (ANDRÉ, 1995).
Desse modo, André (1995) sugere a utilização do termo “qualitativo” para designar a
técnica de coleta ou o tipo de dados com os quais o pesquisador irá trabalhar. Após essa
identificação, conforme a indicação da autora, o pesquisador localizaria sua investigação em um
contexto mais específico – no nosso caso, a observação participante, cujos traços principais
abordaremos em breve.
Ainda sobre a pesquisa qualitativa, Bogdan e Biklen (1994) apontam cinco características
que consideram os fundamentos básicos desse tipo de investigação científica: 1) o ambiente
natural como fonte direta de dados e a consequente preocupação do pesquisador com o contexto;
2) a descrição minuciosa dos dados, colhidos em forma de palavras (e não em números), levando-
se em consideração o potencial explicativo dos diversos fatores que o fenômeno investigado
envolve; 3) o interesse maior pelo processo do que pelos resultados ou produtos; 4) a análise
indutiva dos dados; 5) a primazia do significado. Os autores deixam claro que, para que a
abordagem de uma pesquisa se configure como qualitativa, não é necessário que ela atenda a
todos os critérios mencionados; estes são apenas diretrizes gerais.
Seguindo o direcionamento teórico dos autores mencionados neste subitem, entendemos
que nossa pesquisa se insere no âmbito das investigações qualitativas devido a algumas razões
que passamos agora a expor. Em primeiro lugar, nosso campo de investigação será a sala de aula,
entendida por nós como espaço privilegiado para a compreensão da prática docente – objeto de
nosso estudo. Reconhecemos, obviamente, que tal prática não se limita à aula propriamente dita;
há os planejamentos, as formações continuadas, as trocas com os colegas, as reuniões com os
pais, os conselhos, as atividades burocráticas, etc. Entretanto, acreditamos que a aula é o
145
momento de interação por excelência entre professores e alunos, momento para o qual todas as
ações escolares se direcionam, espaço em que efetivamente ocorrem o ensino formal e a
aprendizagem mais sistemática e planejada.
Além disso, julgamos que nosso objeto de investigação – a prática docente – não é
passível de mensurações, demandando, portanto, uma abordagem mais interpretativa. Podemos
reforçar tal afirmação se voltarmos o olhar para o propósito central da pesquisa, que é analisar as
práticas de análise linguística propostas pelo professor de português em turmas do sétimo ano
do ensino fundamental e as relações dessas práticas com o ensino da leitura. Ou seja, o que está
em jogo quanto ao fazer docente é, sobretudo, o “como acontecem” as práticas e seus
desdobramentos (o “porquê” e o “para quê”). Não nos basta saber o que o professor faz, mas
interessa-nos também conhecer as razões de suas escolhas teórico-metodológicas. Na confluência
desses elementos é que pretendemos compreender as implicações da prática do professor. Daí, a
necessidade de enfatizarmos o processo na análise do fenômeno investigado e a ele atribuir
significados pertinentes ao contexto da pesquisa.
O percurso habitual de uma pesquisa qualitativa se divide geralmente em três etapas,
como sugere Minayo (2013a [1993]): 1) fase exploratória, em que o pesquisador se dedica à
delimitação do objeto de investigação, desenvolvendo-o teórica e metodologicamente e definindo
os modos de operacionalizar a pesquisa; 2) trabalho de campo, considerada a fase central da
pesquisa social dado seu caráter prático, relacional e identitário; 3) análise e tratamento do
material empírico e documental, que é o momento de atribuir significado aos dados coletados,
articulando-os à teoria construída ao longo da fase exploratória. Para desenvolver esta pesquisa,
seguimos as etapas propostas por Minayo (2013a [1993]), conforme detalharemos nas seções
seguintes.
Sobre a interpretação dos dados coletados, consideramos importante, ainda, fazer uma
ressalva no tocante ao papel do pesquisador – que, quando opta pela abordagem qualitativa, não
busca descobrir verdades no sentido mais inflexível do termo (ou encontrar garantias para a
irrefutabilidade dessas verdades). Suassuna (2008, p. 350, grifos nossos), com base em Lüdke e
André (1986), esclarece essa questão, ao afirmar que, nesse tipo de investigação, o pesquisador,
[...] atento à multiplicidade de dimensões de uma determinada situação ou problema, e
após a análise dos dados, [...] lança possibilidades de explicação da realidade, tentando
encontrar princípios subjacentes ao fenômeno estudado e situar as suas descobertas num
contexto mais amplo; trata-se de um esforço de construção e estruturação de um quadro
teórico dentro do qual o fenômeno possa ser interpretado e compreendido.
146
Assim, não é de nosso interesse a comprovação segura e inquestionável de hipóteses
prévias. Ao propormos reflexões teóricas acerca da prática do professor de língua portuguesa
(mais especificamente, no eixo da análise linguística em sua relação com a leitura), procuramos
estabelecer diálogos possíveis com outros pesquisadores e teóricos do campo da educação e da
linguagem, e, com o olhar incessante para os dados, trazer algumas contribuições para a
compreensão do objeto investigado. Tivemos uma preocupação com a pertinência das inferências
realizadas e é nesse sentido que o rigor científico (teórico e metodológico) se constituiu como
compromisso e pressuposto básicos de nossa pesquisa.
[...] O rigor de uma pesquisa dessa natureza [a pesquisa qualitativa] não se mede apenas
por comprovações estatísticas, mas justamente pela amplitude e pertinência das
explicações e teorias, ainda que estas não sejam definitivas e não sejam generalizáveis
os resultados alcançados. (DUARTE apud SUASSUNA, 2008, p. 348, grifo nosso)
Tomamos nossas próprias reflexões teóricas como um ponto de vista possível, mas sempre
com a certeza de que existem outros modos possíveis – e igualmente coerentes – de se posicionar
acerca do problema investigado e dos dados utilizados para sustentar a nossa análise. A validação
dessa análise não pressupõe, a nosso ver, o tradicional conceito das ciências “duras” para esse
termo: considerando a subjetividade do pesquisador e a multiplicidade de pontos de vista inerente
aos fenômenos do mundo, não esperamos que outros estudiosos cheguem aos mesmos resultados
por nós apontados. Esperamos, sim, que esses resultados sejam plausíveis, e que enriqueçam o
debate (não consensual, porque debate) científico acerca das práticas de análise linguística na
escola e de suas relações com o ensino da leitura.
4.1.1.1 A observação participante
Com base na discussão de André (1995) acerca do histórico e da natureza da pesquisa
qualitativa, expusemos no subitem anterior nossa preocupação com o uso mais preciso do termo,
a fim de delimitarmos nossas escolhas teórico-metodológicas e o percurso que trilhamos ao longo
do desenvolvimento do estudo apresentado nesta dissertação. Assim, indicamos que o nosso
vínculo com a pesquisa qualitativa se deve à natureza dos dados a serem investigados (as práticas
de análise linguística no ensino fundamental) e às técnicas de coleta utilizadas (a entrevista e a
observação de aulas). Além disso, destacamos a subjetividade do pesquisador como aspecto
determinante no desenrolar da pesquisa qualitativa. Afastando-nos da neutralidade positivista que
147
repele a “interferência” do pesquisador no andamento da investigação científica, entendemos que
a pesquisa acadêmica é uma prática social – e, portanto, produzida por sujeitos que trazem
consigo histórias de vida, experiências profissionais, traços de personalidade, relações sociais
estabelecidas, pontos de vista acerca do mundo. Por isso, o próprio sujeito pesquisador é parte da
pesquisa qualitativa, não podendo, a nosso ver, isentar-se de deixar suas marcas no produto de tal
prática social. Assim, concordamos com Minayo (2013a [1993]) quando contempla a intuição e a
criatividade do pesquisador no rol dos componentes das metodologias científicas, sobretudo das
abordagens qualitativas.
Contextualizado o domínio amplo no qual a pesquisa se insere, propusemo-nos, então, a
situá-la metodologicamente em maior grau de especificidade: nossa pesquisa, já afirmamos,
consiste numa observação participante. Nesta subseção, faremos uma breve definição desta opção
metodológica e apontaremos os pressupostos gerais em que nos subsidiamos para a realização da
pesquisa – aqueles que entendemos como potencializadores dos objetivos traçados.
Justificaremos nossa escolha em termos de sua adequação à natureza do objeto de estudo, aos
objetivos da investigação e ao referencial teórico que sustentará a análise dos dados.
A observação participante pode ser considerada, como aponta Minayo (2013b [1993]), um
método de pesquisa autônomo, e não apenas uma técnica de coleta de dados. Trazemos abaixo a
definição da autora para essa abordagem metodológica:
Definimos observação participante como um processo pelo qual um pesquisador se
coloca como observador de uma situação social, com a finalidade de realizar uma
investigação científica. O observador, no caso, fica em relação direta com seus
interlocutores no espaço social da pesquisa, na medida do possível, participando da vida
social deles, no seu cenário cultural, mas com a finalidade de colher dados e
compreender o contexto da pesquisa. Por isso, o observador faz parte do contexto sob
sua observação e, sem dúvida, modifica esse contexto, pois interfere nele, assim como é
modificado pessoalmente. (MINAYO, 2013b [1993], s/p, grifo da autora)
A citação acima transcrita nos traz algumas pistas para compreendermos alguns dos
princípios que norteiam a observação participante. No geral, há uma forte preocupação com os
lugares sociais que o pesquisador e os sujeitos de pesquisa ocupam, isto é, com a relação que eles
estabelecem tanto entre si quanto com a realidade investigada. A presença constante e prolongada
do pesquisador no campo reflete essa preocupação. Ele procura ter um contato mais próximo com
os sujeitos pesquisados e seu entorno, ao passo que reconhece a assimetria dessa relação. Mais do
que isso, reconhece que os lugares sociais de onde ele e os pesquisados provêm são
148
determinantes para os encaminhamentos e os resultados da pesquisa (MINAYO, 2013b [1993];
WHYTE, 2005 apud VALLADARES, 2007).
Na tentativa de compreender o fenômeno que se propõe a estudar, o pesquisador busca
fazê-lo no interior de um contexto, ou seja, ele busca lidar com o objeto de estudo como um fato
complexo, sobre o qual incidem fatores e determinações múltiplos. Trata-se de um esforço de não
fragmentação da realidade. Esforço porque a visão do todo é um norte incessante para o
pesquisador, mas seria ingênuo desconsiderar que a pesquisa científica, qualquer que seja ela, é
por si só um recorte da realidade. A própria Minayo (2013a [1993], s/p, grifos nossos) nos
lembra que “[...] a eficácia da prática científica se estabelece, não por perguntar sobre tudo, e,
sim, quando recorta determinado aspecto significativo da realidade, o observa, e, a partir dele,
busca suas interconexões sistemáticas com o contexto e com a realidade”.
É com esse olhar que procuramos adentrar o universo da prática de ensino dos professores
participantes da pesquisa: buscando sempre observar os fenômenos em contexto e levantar
possibilidades de significação para esses fenômenos na sua relação com o todo, com o processo
de construção das práticas pedagógicas que acompanhamos. Assim, embora nosso enfoque seja
em práticas de análise linguística, sabemos que elas integram uma unidade maior: a prática de
ensino de língua portuguesa desenvolvida pelo professor. A compreensão do modo como o
professor conduz a análise linguística em sua prática docente, então, está atrelada à relação que as
ações e atividades propostas para esse eixo têm com a disciplina em geral. Por isso, foram
observadas todas as aulas de português ministradas durante o período do trabalho de campo.
Sem deixar de reconhecer nosso interesse específico na didática do professor, também
procuramos levar em consideração alguns aspectos mais amplos vinculados aos campos de
investigação (estrutura física das escolas, disponibilidade de recursos materiais, perfil dos alunos,
funcionamento das instituições, etc.) e aos sujeitos participantes da pesquisa (experiência
profissional e acadêmica dos professores). Esses aspectos não são objeto de nossa investigação,
mas compõem o pano de fundo de qualquer prática de ensino e dificilmente podem ser ignorados.
Por isso, procuramos contemplá-los na caracterização dos campos de pesquisa e no perfil dos
sujeitos participantes, descritos ainda neste capítulo.
O olhar em contexto da observação participante é uma tentativa de perceber a situação
social “de dentro”, buscando apreender a perspectiva do outro dentro das circunstâncias de suas
ações. Para isso, além da observação de aulas, um instrumento complementar importante de que
149
nos valemos ao longo de nosso trabalho de campo foi a entrevista, tanto numa abordagem mais
formal quanto em conversas curtas menos monitoradas ao final de algumas aulas. Minayo (2013b
[1993]) e Whyte (2005 apud VALLADARES, 2007) nos alertam sobre a flexibilidade própria das
pesquisas que se utilizam da observação participante. Isso porque há um menor controle e
previsibilidade das situações e demandas que podem surgir ao longo do trabalho de campo, sendo
necessária a argúcia do pesquisador para fazer ajustes e tomar decisões adequadas no andamento
da pesquisa, tanto em relação à seleção dos materiais e das questões que serão incluídos/
excluídos da análise quanto em relação à condução das entrevistas/conversas realizadas.
A partir da conjugação entre os elementos a que o pesquisador tem acesso – e, claro, os
significados que atribui a essa conjugação de elementos –, ele estabelece as relações que procura
para compreender a realidade investigada. Essa compreensão, entretanto, não prescinde de
elaboração teórica, pois a teoria dá suporte à análise dos dados, isto é, situa o posicionamento a
partir do qual o pesquisador pretende expor os dados e discutir os resultados. Minayo (2013b
[1993], s/p), com base em Malinowski (1984), ao tratar do diálogo entre dados empíricos e teoria
na observação participante, afirma que “cabe ao pesquisador ser um perscrutador insistente, que
mentalmente se posiciona sempre entre as balizas dos conhecimentos teóricos e as informações
de seus observados”.
Por fim, gostaríamos de justificar nossa escolha pela observação participante com base na
afirmação de Minayo de que tal método “[...] ajuda [...] a vincular os fatos a suas representações e
a desvendar as contradições entre as normas e regras e as práticas vividas cotidianamente pelo
grupo ou instituição observados” (MINAYO, 2013b [1993], s/p). As questões abordadas na
fundamentação teórica em relação ao lugar da gramática na disciplina português e à constituição
da análise linguística como eixo de ensino de língua materna puderam, a partir do trabalho de
campo, ser observadas em um contexto concreto de sala de aula – o que possibilitou um olhar
mais diverso e menos homogêneo das nuances da prática docente.
4.2 CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO E SUJEITOS DA PESQUISA
Conforme indicamos na seção anterior, a presente pesquisa inclui um trabalho de campo,
onde coletamos os dados que seriam analisados. Entendemos que esta etapa é o cerne de nosso
estudo, tendo em vista o potencial dos dados empíricos para delinear a identidade da pesquisa e
150
para trazer alguma contribuição, ainda que sutil, ao âmbito dos estudos sobre ensino de língua
portuguesa. Como afirma Minayo (2013b [1993], s/p), “o trabalho de campo é [...] uma porta de
entrada para o novo, sem, contudo, apresentar-nos essa novidade claramente”. É nesse espaço que
o pesquisador, movido pelas indagações que deram origem ao estudo e com base nos
encaminhamentos da fase exploratória, conhece a realidade investigada e, para tanto, interage
com os sujeitos participantes da pesquisa (MINAYO, 2013b [1993]). Nesta subseção,
descrevemos como se deu o processo de inserção nas escolas que foram campo de investigação
de nosso estudo. Para isso, explicitamos os critérios de escolha dos sujeitos, relatamos o percurso
trilhado para encontrá-los, além de traçarmos um breve perfil desses profissionais, das escolas em
que atuavam e das turmas que escolhemos para a realização do trabalho.
4.2.1 Definição dos sujeitos de pesquisa e dos campos de investigação
A pesquisa foi desenvolvida com dois professores de língua portuguesa de turmas do
sétimo ano do ensino fundamental em duas escolas da rede pública de ensino: uma da prefeitura
do Recife e outra da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes. Essa escolha se justifica por um
compromisso que acreditamos ter a universidade com o ensino público. Entendemos que a rede
pública é um campo privilegiado de pesquisa, dada a necessidade de se promoverem reflexões
acerca das práticas que vêm sendo construídas nessas escolas.
Quanto à opção pelas prefeituras, ela foi fruto do próprio processo de busca dos
professores participantes da pesquisa. Havíamos definido que o trabalho seria feito no segundo
segmento do ensino fundamental (sexto a nono ano). Por isso, ao procurarmos os professores,
incluímos, a princípio, várias redes de ensino públicas com escolas em cidades fisicamente
próximas à pesquisadora – tanto do estado de Pernambuco quanto das prefeituras – e que
trabalhassem com o nível de ensino previamente fixado para a nossa pesquisa: Recife, Olinda,
Jaboatão dos Guararapes, Paulista e Camaragibe. Dentre os profissionais indicados, escolhemos
uma professora da prefeitura do Recife e um professor da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes.
Outro procedimento que adotamos desde o início da pesquisa foi a exclusão de escolas
experimentais – como o Colégio de Aplicação – ou “escolas-modelo”, em que fossem
desenvolvidos projetos pedagógicos diferenciados ou em que as circunstâncias de trabalho dos
professores fossem reconhecidas como privilegiadas em relação à maioria dos profissionais da
151
rede pública de ensino. Embora a pesquisa qualitativa não tenha propriamente uma preocupação
com a generalização dos resultados nem, portanto, com a representatividade da amostra, nosso
intuito era o de adentrar escolas “comuns”, sem que precisássemos levar em conta as condições
diferenciadas de trabalho como variável determinante para a construção das práticas pedagógicas
observadas.
O nível de ensino escolhido para a realização da pesquisa foi a segunda etapa do ensino
fundamental. Essa opção atendeu a algumas motivações vinculadas sobretudo às peculiaridades
próprias dessa fase de escolarização quanto ao ensino de língua portuguesa (e, mais
especificamente, ao espaço que a análise linguística assume nesse contexto). Foi no cruzamento
de tais particularidades com o objeto de investigação e com os propósitos da pesquisa que
decidimos direcionar o estudo para o ensino fundamental.
Em primeiro lugar, é preciso dizer que reconhecemos que a reflexão sobre os fenômenos
linguísticos, em alguma medida, está presente no ensino de língua portuguesa em todos os níveis
e em todas as séries da escola básica. Portanto, em princípio, poderíamos analisar as práticas de
análise linguística desenvolvidas pelo professor de português e as relações dessa prática com o
ensino da leitura em qualquer etapa da escolarização, uma vez que todas as orientações
curriculares oficiais vigentes em âmbito nacional (tais como os PCN, os PCNEM, os PCN+ e as
OCEM12
), bem como os princípios que guiam a avaliação do PNLD, sugerem um trabalho de
reflexão linguística que priorize a produção de sentidos e que, para tanto, se articule aos demais
eixos de ensino (dentre eles, a leitura). Entretanto, algumas questões particulares nos levaram a
julgar o segundo segmento do ensino fundamental como mais adequado aos nossos objetivos de
pesquisa. Passamos agora a expor brevemente essas questões.
O primeiro segmento do ensino fundamental foi, desde o início, descartado para a
realização da pesquisa, tendo em vista a própria formação da pesquisadora no curso de letras e
sua trajetória acadêmica, relativamente distanciada das pesquisas que versam sobre as etapas
iniciais da escolarização. Além disso, sabemos que existem especificidades do trabalho
pedagógico nesse nível de ensino que não poderiam ser negligenciadas e que nos levariam
12
As siglas significam, respectivamente: Parâmetros Curriculares Nacionais; Parâmetros Curriculares Nacionais para
o Ensino Médio; Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais; e Orientações
Curriculares para o Ensino Médio. Todos os documentos citados podem ser encontrados na íntegra no portal digital
do Ministério da Educação: <http://portal.mec.gov.br/>.
152
necessariamente a uma abordagem diferente do caminho que aqui estamos propondo, tais como o
foco na alfabetização/letramento dos alunos e o perfil polivalente do professor das séries iniciais.
Quanto ao ensino médio, ainda que as prescrições oficiais apontem para o tipo de trabalho
que buscamos observar, muitos autores concordam que o cenário real desse nível de ensino ainda
é outro. Destacamos, das OCEM (BRASIL, 2006, p.18), um excerto que sintetiza bem os
objetivos da disciplina língua portuguesa para o ensino fundamental e para o ensino médio:
[...] Levando em consideração que os documentos que parametrizam o ensino
fundamental se orientam por perspectiva segundo a qual o processo de ensino e de
aprendizagem deve levar o aluno à construção gradativa de saberes sobre os textos que
circulam socialmente, recorrendo a diferentes universos semióticos, pode-se dizer que as
ações realizadas na disciplina Língua Portuguesa, no contexto do ensino médio, devem
propiciar ao aluno o refinamento de habilidades de leitura e de escrita, de fala e de
escuta. Isso implica tanto a ampliação contínua de saberes relativos à configuração, ao
funcionamento e à circulação dos textos quanto ao desenvolvimento da capacidade de
reflexão sistemática sobre a língua e a linguagem.
Fica claro o caráter de aprofundamento e consolidação de conhecimentos atribuído ao
ensino médio. Contudo, essa ainda parece ser uma realidade em vias de construção, pois esse
nível de ensino ainda é marcado por uma forte fragmentação (BUNZEN, 2006; BUNZEN e
MENDONÇA, 2006; MATÊNCIO, 2006). É comum haver uma divisão mais nítida e quase
independente entre o trabalho com a literatura (por vezes, restrito à história literária), o trabalho
com a produção de texto (com enfoque nas dissertações exigidas nos vestibulares) e o ensino da
gramática. Em relação a este último ponto, Mendonça (2006) salienta que a escola tem se
dedicado, na etapa final de escolarização, à revisão ou mesmo à repetição dos conteúdos
estudados no ensino fundamental.
Não estamos afirmando, com isso, que a prática de ensino de português no ensino
fundamental esteja isenta de problemas. Todavia, é preciso considerar que parte essencial de
nosso objetivo de pesquisa é estudar as articulações que o professor promove entre as práticas de
análise linguística e o eixo da leitura. Acreditamos que há uma flexibilidade maior nos modos de
organização do trabalho pedagógico do ensino fundamental, por várias possíveis razões: a
ausência de demandas imediatas em relação aos vestibulares, maior quantidade de aulas durante a
semana, inexistência de conteúdos específicos de estudo da literatura na grade curricular, além de
aspectos que dizem respeito ao próprio histórico de constituição de cada nível de ensino
(regulamentação, formação de professores, objetivos de ensino, perfil dos alunos, produção e
avaliação de livros didáticos, etc.). Assim, ao escolhermos o ensino fundamental para a realização
153
de nossa pesquisa, partimos do pressuposto de que ele seria, da maneira como tem se apresentado
hoje, mais propenso a propostas de ensino centradas mais nas práticas de linguagem do que nos
conteúdos curriculares e de que haveria um diálogo maior entre os eixos de ensino de língua
materna. Consideramos que a flexibilidade quanto aos modos de organização do trabalho
pedagógico favoreceria a proposição de projetos ou sequências didáticas em que a abordagem dos
fenômenos linguísticos estivesse mais integrada às práticas de leitura e escrita.
Em relação à escolha das turmas que seriam observadas, até o momento da busca dos
sujeitos da pesquisa, não havíamos encontrado motivos para realizar qualquer tipo de restrição
dentre as séries que compõem o segundo segmento do ensino fundamental. Por isso, a opção pelo
sétimo ano foi aleatória e adveio da seleção dos professores que participaram do estudo. O único
requisito para o qual atentamos, nesse aspecto, foi o de escolher dois professores que
ministrassem aulas em turmas da mesma série. Ainda que a nossa intenção primeira não tenha
sido comparar práticas de ensino, entendemos que, uma vez analisadas lado a lado em um mesmo
trabalho com base em um mesmo arcabouço teórico-metodológico e em um mesmo conjunto de
critérios de análise, o efeito de confrontação é inevitável. Nesse sentido, com a escolha de uma
única série, nosso intuito foi de atenuar minimamente as disparidades contextuais
necessariamente existentes entre práticas de ensino produzidas por professores distintos, em
condições de trabalho distintas, para grupos de alunos distintos.
4.2.2 Processo de seleção dos professores sujeitos da pesquisa
Os objetivos delineados para o presente estudo apontaram para a necessidade de
selecionar professores com um perfil de trabalho específico. Nossa análise não teve como
parâmetro a imagem de um “professor ideal”. Não é o interesse último de nossa pesquisa
verificar em que medida as práticas dos sujeitos investigados se aproximam ou não do que as
orientações oficiais prescrevem, ainda que os contornos dessas apropriações apareçam em nossas
análises. Nosso intuito é, como já explicitamos, compreender como se dá a construção das
práticas de análise linguística propostas em sala de aula pelos sujeitos investigados e analisar as
relações que, no interior dessas práticas, eles estabelecem com o ensino da leitura. Entretanto,
como analisar tal articulação se optássemos pela observação de uma prática pautada
exclusivamente ou predominantemente por exercícios de identificação e classificação de
154
estruturas nos moldes da gramática tradicional? Ou numa prática em que o trabalho com a leitura
fosse escasso? Nessa perspectiva, encontrar dados que nos proporcionassem uma análise
produtiva do ponto de vista dos objetivos previamente traçados demandava a escolha de
professores que buscassem trabalhar na perspectiva da análise linguística – o que implicaria
tentar estabelecer, em alguma medida, vínculos com os demais eixos de ensino, dentre eles a
leitura. A escolha das escolas nas quais coletamos os dados para este estudo esteve subordinada à
escolha dos professores cujas práticas foram investigadas.
Inicialmente, procuramos indicações de professores que pudessem se enquadrar no perfil
desejado. Para isso, recorremos às técnicas de língua portuguesa de algumas das Gerências
Regionais de Educação do estado de Pernambuco (GRE Metro Norte, GRE Metro Sul e GRE
Recife Sul), às formadoras da equipe técnico-pedagógica de língua portuguesa da prefeitura do
Recife, a colegas que atuassem como professores das redes públicas e a pesquisadores da área de
ensino de língua portuguesa (especialmente, aqueles que tivessem desenvolvido pesquisas em
torno de temáticas próximas à nossa).
Após essa primeira triagem, entramos em contato com os professores indicados via
telefone ou e-mail, conforme os contatos que nos foram passados. Explicamos aos professores a
proposta do estudo, averiguamos a disponibilidade deles para participar da pesquisa e marcamos
com os interessados uma conversa inicial para nova triagem. As indicações foram uma etapa
essencial para chegarmos aos sujeitos investigados, na medida em que nos permitiram ter como
ponto de partida uma amostra menor de professores para a seleção dos sujeitos. Apesar disso, era
necessário travar um contato mais próximo com os docentes para conhecermos as diretrizes
gerais de sua forma de trabalho. Por maior que fosse a proximidade com os profissionais
indicados, dificilmente – talvez com exceção dos pesquisadores – os informantes poderiam, de
antemão, conhecer especificamente a abordagem dos conhecimentos linguísticos por parte dos
professores.
Elaboramos um roteiro com alguns tópicos para a conversa inicial com os professores
indicados (Apêndice A). Nesse roteiro, contemplamos questões relacionadas à atuação em sala de
aula (descrição geral da prática, livro didático adotado, trabalho com a análise linguística,
planejamento) e à experiência acadêmica e profissional. O primeiro eixo se justifica pela nossa
tentativa, com esse primeiro contato, de ter acesso ao perfil de trabalho dos professores,
sobretudo no que diz respeito à abordagem dos conhecimentos linguísticos. O foco na prática de
155
ensino foi o que nos motivou a incluir no roteiro solicitações de exemplos concretos de situações
de aula. Tendo em vista que o discurso sobre a prática não necessariamente corresponde ao que é
efetivamente realizado, consideramos que tal solicitação foi um procedimento fundamental para
que tivéssemos parâmetros de seleção que refletissem, ainda que parcialmente, a atuação dos
docentes em sala.
Ainda em relação ao primeiro eixo, incorporamos ao roteiro questões relacionadas ao
livro didático, pois sabemos que se trata de um recurso que assume, muitas vezes, um papel
central na construção da prática docente. Além disso, a apreciação crítica que o professor faz da
proposta do livro didático e a decorrente forma como ele se utiliza desse material (as atividades
que seleciona para serem exploradas em sala de aula, por exemplo) são aspectos que nos
revelavam algo mais palpável acerca de suas concepções de ensino e da condução do trabalho
com a análise linguística.
O segundo eixo temático do roteiro versa sobre a trajetória profissional e acadêmica dos
professores. A experiência do professor foi um dado importante a ser levado em consideração na
escolha dos sujeitos de pesquisa. Se nosso objetivo era observar práticas de análise linguística em
alguma medida articuladas ao ensino da leitura, partimos do pressuposto de que fosse mais
provável encontrarmos esse perfil nas práticas de professores com um tempo razoável de
experiência em sala de aula. As informações sobre a formação inicial e continuada também foram
decisivas para a seleção dos sujeitos investigados, na medida em que nos permitiram ter uma
ligeira noção do perfil dos professores quanto à sua relação com os conhecimentos acadêmicos da
área de ensino de língua materna.
O percurso que trilhamos para encontrar os professores participantes da pesquisa foi
relativamente longo, demorado e trabalhoso. Foi necessário recorrer a diversas pessoas para obter
indicações, e tivemos que conversar com vários professores até identificarmos aqueles cujas
práticas seriam investigadas neste estudo. Muitos dos professores que inicialmente nos foram
sugeridos por colegas pesquisadores não atuavam mais nas redes onde trabalhavam
anteriormente, ou porque haviam mudado de emprego, ou porque estavam de licença para cursar
pós-graduação. Outros, indicados por esses mesmos colegas ou pelos demais profissionais a
quem recorremos, não respondiam ao nosso contato, demonstrando desinteresse ou
indisponibilidade para participar da pesquisa. Havia ainda aqueles que viviam um contexto de
trabalho no qual a ausência constante dos colegas de profissão exigia que, em muitas ocasiões,
156
conduzissem duas turmas ao mesmo tempo – o que inviabilizaria nossas observações. Outra
situação comum acontecia em relação aos professores da prefeitura do Recife que ensinavam em
turmas de nono ano: muitos deles afirmavam que lhes era demandado organizar seu trabalho com
vistas à preparação para a Prova Brasil13
; para tanto, dedicavam a boa parte de suas aulas à
resolução de questões contidas em provas dos anos anteriores. Por fim, a dificuldade que talvez
tenha sido a mais recorrente e a mais relevante foi encontrar professores que, ao descreverem sua
prática e principalmente ao relatarem exemplos de trabalhos já realizados, demonstrassem
abordar os conhecimentos linguísticos na perspectiva da análise linguística e ter uma
preocupação em articular essa abordagem com o eixo da leitura.
4.2.2.1 A escolha da professora da prefeitura do Recife
O primeiro sujeito que selecionamos para a nossa pesquisa foi uma professora da
prefeitura do Recife. Neste subitem, apontamos, com base na conversa inicial que tivemos com
ela, as razões que nos levaram a escolhê-la. Procuramos, para tanto, seguir os tópicos enumerados
no roteiro do Apêndice A, já comentado anteriormente. Não discorremos detalhadamente sobre as
respostas que foram dadas a cada questão, mas apenas destacamos aquelas que foram decisivas
para a nossa escolha.
No que diz respeito à descrição geral da prática, a professora afirmou enfocar nos gêneros
textuais, especialmente em questões relacionadas à estrutura e à funcionalidade. Explicou que
planeja a prática em torno de sequências didáticas que contemplem os três eixos de ensino
(leitura, análise linguística e produção de texto, geralmente nessa ordem). Para a escolha dos
conteúdos a serem trabalhados, ela leva em consideração a Política de Ensino da Rede Municipal
do Recife14
, mas não segue a grade curricular proposta à risca. A professora afirmou que suas
sequências didáticas partem quase sempre da leitura de um ou mais textos, seguida da discussão
13
A Prova Brasil é uma avaliação de larga escala direcionada a alunos concluintes do primeiro e segundo segmentos
do ensino fundamental, realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(Inep), órgão vinculado ao Ministério da Educação (MEC). As provas avaliam o desempenho dos estudantes em
língua portuguesa e matemática, com foco respectivamente em leitura e resolução de problemas. Informações sobre
a Prova Brasil podem ser encontradas no portal digital do MEC: <http://portal.mec.gov.br/prova-brasil>.
14 A Política de Ensino da Rede Municipal do Recife é o documento curricular que regula as escolas de ensino
fundamental (primeiro a nono ano) da prefeitura do Recife. Foi publicado em 2015 e elaborado com a colaboração
de professores da rede. Pode ser encontrado na íntegra no portal online da Escola de Formação e Aperfeiçoamento
de Educadores do Recife Professor Paulo Freire: <http://www.recife.pe.gov.br/efaerpaulofreire>.
157
oral acerca de questões que considere relevantes para a interpretação dos textos: inicia pela
temática e questões mais globais e segue para aspectos pontuais, dentre eles recursos linguísticos
empregados pelo(s) autor(es) na escrita dos textos. Após essa primeira etapa, prossegue para o
momento que chamou de “sistematização linguística”, e, por fim, propõe a produção de um texto
do gênero que tenha sido trabalhado ao longo da sequência e sua reescrita após uma primeira
avaliação.
O livro adotado pela escola em que a professora trabalha é “Português: Linguagens”, de
William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães (Atual Editora). Segundo a professora, o
livro didático não guia o seu planejamento nem a sua prática, embora ela o considere um apoio
pedagógico. Ela costuma utilizar mais constantemente os textos contidos no livro (dada a
impossibilidade de reproduzir cópias de outros textos para os alunos com alguma frequência) e as
atividades de leitura. Quanto ao eixo dos conhecimentos linguísticos, a professora considera que
o livro transita entre uma abordagem mais tradicional da gramática e a perspectiva da análise
linguística voltada para a produção de sentidos em textos. Ressalta como ponto positivo o fato de
o livro não trazer os conceitos prontos para o aluno, mas propor questões que o levem à sua
construção. Considera um bom livro, e, embora não tenha participado da escolha do material na
escola onde acompanhamos sua prática (era o seu primeiro ano naquela instituição), escolheu o
mesmo livro na outra escola da prefeitura do Recife em que trabalhava até o ano anterior.
Ao ser questionada sobre sua prática quanto ao eixo da análise linguística, a professora,
além de relatar um pouco de sua atividade docente, demonstrou conhecimentos acerca das
discussões acadêmicas no campo do ensino de língua materna. De imediato, fez uma crítica a
uma situação que considera um equívoco comum no que se refere à análise linguística: quando a
chamada “gramática contextualizada” esconde o uso do texto como pretexto para o ensino de
gramática tradicional. Afirmou que “a gramática está para o texto, assim como o texto está para a
gramática” e que, para o eixo da análise linguística, ela tem o objetivo de levar o aluno a
“compreender os mecanismos, os recursos linguísticos utilizados num texto”, mas que também
recorre a conceitos gramaticais e práticas de ensino tradicionais quando considera que se trata de
noções relevantes para a aprendizagem do aluno. Deixou claro, ainda, que não prioriza o domínio
da nomenclatura gramatical ao avaliar o desempenho da turma, apesar de não negar-lhe esse
conhecimento.
158
Diante da aparente preocupação da professora em articular análise linguística e leitura,
pedimos que ela nos trouxesse um exemplo concreto de sua prática. Ela, então, nos relatou um
trabalho que havia realizado com uma turma de nono ano na escola municipal em que tinha
atuado anteriormente sobre os processos de adjetivação no gênero crônica. Após a leitura coletiva
e a interpretação oral, a professora localizou junto aos alunos os adjetivos e locuções adjetivas
presentes no texto e propôs que fosse feita uma nova leitura, agora descartando essas palavras e
expressões. Em seguida, ela solicitou que os alunos comparassem as duas leituras realizadas e
procurou refletir com a turma sobre os efeitos de sentido que os adjetivos provocavam no texto.
Depois, apresentou outras crônicas à turma a fim de que os alunos as analisassem conforme as
reflexões que haviam feito em relação ao primeiro texto. E, por fim, fez um trabalho de
sistematização de conhecimentos sobre os adjetivos. Acreditamos que o trabalho descrito pela
professora atendia plenamente aos propósitos da pesquisa e que nos traria dados para uma análise
produtiva acerca de nosso objeto de investigação.
Quanto ao último tópico de nosso roteiro (Apêndice A), percebemos que se tratava de uma
professora com vasta experiência profissional, uma vez que atuava como docente da escola
básica há mais de vinte anos e já havia trabalhado tanto no ensino fundamental quanto no ensino
médio, em escolas públicas (do estado de Pernambuco e da prefeitura do Recife) e privadas. Em
relação à formação acadêmica, a professora, além da graduação em letras, havia cursado
especialização e mestrado – ambos na área de linguística – e demonstrava bastante interesse pela
produção acadêmica sobre ensino de língua. Afirmou que tinha o hábito de comprar e ler livros
da área e que tinha planos de fazer doutorado em educação. Fez referência a alguns estudiosos do
ensino de língua materna – sobretudo a Irandé Antunes – com quem teve contato em encontros de
formação continuada promovidos por uma escola privada onde trabalhou durante vinte e cinco
anos.
Na escola em que realizamos as observações, a professora trabalhava com turmas de
sexto, sétimo e oitavo ano. Como afirmamos anteriormente, não tínhamos considerado necessário
restringir as séries das turmas nas quais realizaríamos a pesquisa, mas nosso intuito era o de
acompanhar duas turmas da mesma série. Assim, como o professor da prefeitura de Jaboatão dos
Guararapes trabalhava apenas com turmas do sétimo ano, optamos por acompanhar a prática da
professora da prefeitura do Recife também no sétimo ano. Eram duas as turmas dessa série em
que a professora atuava. Ela sugeriu que a pesquisa fosse realizada com o grupo de melhor
159
desempenho, porque, no outro, havia muitos alunos com dificuldades relacionadas à consolidação
da alfabetização – o que fazia com que seu trabalho fosse bastante diferenciado nesta turma.
4.2.2.2 A escolha do professor da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes
Nosso encontro com o segundo sujeito da pesquisa partiu da indicação de uma colega
professora recém-licenciada e atuante da rede pública que, durante a graduação, integrou o
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID)15
da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). A princípio, ela nos havia indicado esse professor porque, devido à atuação
dele no programa como supervisor dos estágios que os alunos bolsistas realizavam na escola da
rede estadual onde trabalhava, ele conhecia mais de perto a prática de outros professores que
também abriam suas salas de aula para projetos vinculados ao PIBID. Dessa forma, apesar de
suas turmas na escola estadual serem apenas de ensino médio, ele poderia nos trazer boas
indicações de professores com o perfil desejado e disponíveis para participar da pesquisa.
Chegamos a conversar com os profissionais por ele recomendados, porém acabamos por também
incluí-lo no processo de seleção de sujeitos quando nos informou que, além de integrar o corpo
docente da rede estadual, também dava aulas na prefeitura de Jaboatão dos Guararapes em turmas
do ensino fundamental e que acreditava realizar o tipo de trabalho que estávamos buscando
observar. Assim como procedemos no subitem anterior, apontamos, neste, os elementos que nos
levaram a escolhê-lo como sujeito de nosso estudo. Procuramos novamente seguir os tópicos
elencados no roteiro do Apêndice A.
Ao falar sobre sua prática de ensino, o professor demonstrou, inicialmente, certa
dificuldade para objetivar a descrição que lhe solicitamos, porque considerava que havia uma
variedade grande de possibilidades para as formas de trabalho que adotava, a depender das
particularidades da turma, dos objetivos de aprendizagem, do conteúdo explorado, dos resultados
alcançados em abordagens anteriores, etc. Segundo o professor, ele se valia, com alguma
frequência, da elaboração de projetos didáticos, mas poderia recorrer a outras formas de
15
O PIBID é um programa do governo federal voltado para a formação inicial de professores na educação básica. Ele
é direcionado a alunos das licenciaturas em cursos presenciais e fornece-lhes bolsas, através da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes/MEC), para que se envolvam em projetos de iniciação à
docência desenvolvidos por instituições de ensino superior em escolas públicas. Informações mais detalhadas sobre
o programa podem ser encontradas no site da Capes (http://www.capes.gov.br/educacao-basica/capespibid) e no
portal online do Ministério da Educação (http://portal.mec.gov.br/pibid).
160
organização do trabalho pedagógico. No geral, comentou que procura contemplar todos os eixos
de ensino de língua materna, mas que seu enfoque é nas práticas de leitura devido às dificuldades
dos alunos no que se refere a esse eixo. Procura planejar a prática a partir dos conteúdos
apresentados no livro didático, embora ele mesmo também elabore atividades a serem
desenvolvidas pela turma. Suas aulas costumam partir da leitura de um texto ou de frases
isoladas, a partir da qual ele propõe algumas questões para direcionar a análise introdutória
coletiva. O professor chama essas questões de “provocações” e explica que elas têm o intuito de
chamar a atenção do aluno para algum aspecto relevante em relação ao tema ou conteúdo
estudado: tanto podem ser tópicos de interpretação de texto quanto questões voltadas para a
introdução de um conceito gramatical. Em seguida, o professor demanda aos alunos que
respondam a alguma atividade, que pode ser do livro didático ou escrita por ele no quadro. Outras
vezes, ele passa pequenos trabalhos para serem feitos em casa. Após a realização da atividade, ele
faz a correção coletiva durante a aula, e também costuma olhar os cadernos dos alunos
individualmente. É comum em sua prática que, antes ou depois da execução da atividade, ele faça
uma anotação teórica no quadro com a sistematização do conteúdo estudado, principalmente
quando se trata de um conceito gramatical ou de um gênero textual. Ao final, orienta os alunos na
produção e refacção de um texto, mas não é sempre que o professor consegue ou vê como
necessário realizar essa etapa.
O livro didático adotado pela escola é “Para Viver Juntos – Português”, de Cibele
Lopresti Costa, Eliane Gouvêa Lousada, Jairo J. Batista Soares e Manuela Prado (Edições SM).
Como já mencionamos, tal recurso didático tem um papel fundamental na prática desse professor,
na medida em que norteia o seu planejamento e é frequentemente utilizado em sala de aula. Na
impossibilidade de reproduzir com alguma regularidade outros textos na forma de fichas para
distribuir aos alunos, o professor procura priorizar os textos contidos no livro, embora também
tenha o hábito de copiar textos curtos ou fragmentos no quadro. Durante a conversa, o professor
contou que não apenas participou da escolha do material na escola, mas “brigou para que ele
fosse adotado”, tamanha era a sua admiração pela obra. Apesar de guardar algumas ressalvas,
acredita que o livro tem uma proposta muito boa, sobretudo em relação ao eixo da análise
linguística. Ele aponta como pontos positivos a seleção dos textos, o fato de os conceitos
gramaticais serem construídos gradativamente contando com a colaboração do aluno, a
preocupação com o texto e com os usos nas atividades de análise linguística. A utilização dessa
161
obra e o posicionamento do professor quanto à sua proposta foram decisivas para que o
escolhêssemos, pois nossa avaliação em estudo anterior era que se tratava de um livro cuja
abordagem dos conhecimentos linguísticos articulava-se aos demais eixos de ensino (LIMA,
2014). Ainda que a escolha de um material não implique necessariamente um uso didático
adequado, pareceu-nos reveladora a postura determinada do professor em convencer os demais
colegas a adotar uma obra com base nas justificativas que ele nos expôs. Pareceu-nos um
indicador de que estávamos diante de um professor que, ao menos no modo de pensar, atribuía
posição de protagonismo ao texto no ensino de língua e valorizava a perspectiva da análise
linguística.
Quanto ao eixo da análise linguística, como já explicitamos, desde o primeiro contato que
travou conosco, o professor afirmou que o ponto de partida era a leitura, embora também
articulasse análise linguística à produção de texto e também se valesse de práticas vinculadas ao
ensino tradicional de língua. Solicitamos ao professor que nos exemplificasse esse perfil de
trabalho com alguma situação didática que já tivesse colocado em prática, ao que ele nos
descreveu um trabalho realizado com turmas do ensino médio por meio do qual havia explorado
mecanismos de coesão textual em crônicas literárias, tendo buscado associá-los à construção da
narrativa. O professor nos contou, ainda, que estava previsto para aquele semestre um projeto
didático com as turmas de sétimo ano da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes em torno de
mitos e que, no interior desse projeto, seria contemplado um trabalho com recursos de coesão.
Entendemos que era um projeto que interessava aos propósitos de nossa pesquisa e, por essa
razão, nosso intuito inicial era aguardar a sua execução. Entretanto, o andamento das atividades
do professor nessas turmas acabou demandando que ele o adiasse para o fim do ano letivo,
quando não houve mais tempo para que fosse desenvolvido integralmente. Dessa forma, o
trabalho com os recursos coesivos não chegou a ser realizado. Por isso, nossas análises
concentraram-se em outro recorte da prática do professor, conforme detalharemos mais adiante.
No que diz respeito à experiência profissional, o professor não tinha uma trajetória tão
longa, mas também não se tratava de um professor iniciante. Já havia atuado como docente tanto
na rede privada quanto na pública (em escolas da rede estadual e municipal). Durante a maior
parte do tempo, trabalhou com ensino médio, tendo sido na prefeitura de Jaboatão dos
Guararapes a primeira experiência em que assumiu na íntegra a disciplina língua portuguesa em
turmas de ensino fundamental. Quanto à formação acadêmica, o professor, além de graduação em
162
letras, havia cursado especialização na área de literatura e, como já ressaltamos, integrava o
PIBID da UFPE como professor supervisor. Levamos em consideração esse vínculo ao optarmos
pela observação de sua prática, uma vez que sua atuação como formador dos licenciandos e sua
participação em eventos acadêmicos e reuniões periódicas promovidas pelo programa revelavam
interesse do professor por questões teórico-metodológicas do ensino de língua materna na
educação básica. A tendência, portanto, era de que a reflexão sobre a prática ocupasse espaço
importante em seu cotidiano profissional devido ao diálogo com as discussões acadêmicas
recentes da área e ao contato constante com relatos de práticas, com pontos de vista e com
inquietações de estagiários e de outros professores acerca do ensino de língua portuguesa.
Conforme destacamos anteriormente, esse professor, na rede municipal de Jaboatão dos
Guararapes, trabalhava apenas com turmas de sétimo ano. Para escolhermos dentre as suas cinco
turmas nessa rede aquela em que realizaríamos a pesquisa, o professor sugeriu que assistíssemos
a uma ou duas aulas de cada uma delas, e assim o procedemos. O grupo-classe com o qual
optamos por ficar não era, como no caso da prefeitura do Recife, o de melhor desempenho, mas
era o menos numeroso e um dos mais participativos. Enquanto as outras turmas contavam com
cerca de quarenta alunos, a que foi campo de nossa observação tinha somente vinte e sete
matriculados devido ao tamanho reduzido da sala de aula, dentre os quais apenas vinte eram
assíduos. Esse critério, não previsto quando da definição dos objetivos e do percurso
metodológico da pesquisa, mostrou-se relevante na medida em que a escola de um modo geral
era bastante barulhenta e, por isso, tivemos dificuldades em ouvir integralmente os áudios
gravados nas aulas que chegamos a acompanhar das turmas mais numerosas.
4.2.3. Perfil profissional e acadêmico dos professores participantes
4.2.3.1 Perfil profissional e acadêmico da professora da prefeitura do Recife
A professora da prefeitura do Recife (doravante PR) é licenciada em letras pela Fundação
de Ensino Superior de Olinda (Funeso), tendo concluído o curso no ano de 1990. Fez
especialização em linguística aplicada ao ensino de língua portuguesa pela Faculdade Frassinetti
do Recife (Fafire) entre os anos de 2004 e 2005. Na pós-graduação, desenvolveu como trabalho
de conclusão de curso uma pesquisa sobre as práticas de oralidade na escola. Anos depois, entre
163
2007 e 2009, fez mestrado em linguística pela UFPE, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o
trabalho com textos visuais em livros didáticos.
Iniciou a carreira docente como professora alfabetizadora de uma escola da rede privada,
em 1986, quando ainda cursava a graduação. Atuou na alfabetização de crianças durante seis
anos. Nessa mesma escola, permaneceu por vinte e cinco anos: após a experiência na
alfabetização, ministrou aulas de língua portuguesa durante vários anos para turmas da antiga
quarta série (atual quinto ano); em seguida, foi professora de turmas do segundo segmento do
ensino fundamental; e, por fim, assumiu a coordenação da área de língua portuguesa para as
turmas do segundo ao quinto ano da escola. Foi nessa escola que a PR relatou ter participado
sistematicamente de encontros de formação continuada com especialistas do campo do ensino de
língua materna, dentre as quais Irandé Antunes, com quem teria dialogado sobre questões
didáticas por cerca de quinze anos. Além dessa instituição, a PR também trabalhou em outras
escolas da rede privada. É aposentada dessa rede de ensino com vinte e sete anos de atuação
profissional. No momento de nosso contato inicial, a PR era professora atuante da rede estadual
de Pernambuco e da prefeitura do Recife, respectivamente há doze e onze anos. Era seu primeiro
ano na escola em que fizemos as observações de aulas.
A PR chegou a ter experiências com formação de professores através de um órgão da
iniciativa privada que prestava serviço às prefeituras de Gravatá e Garanhuns (cidades do agreste
pernambucano) e através do CEEL/UFPE em projetos direcionados a escolas municipais da
prefeitura de Camaragibe (município que integra a região metropolitana do Recife, localizado a
dezesseis quilômetros da capital pernambucana). Atuou, ainda, no ensino superior durante um
curto período de tempo, tendo ministrado disciplinas da área de linguística para turmas de
especialização em faculdades particulares.
4.2.3.2 Perfil profissional e acadêmico do professor da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes
O professor da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes (doravante PJ) é licenciado em
letras, com habilitação em português e inglês, pela Universidade de Pernambuco (UPE). Concluiu
a graduação em 2001. Cinco anos depois, em 2006, ingressou na pós-graduação em literatura
brasileira na Faculdade Frassinetti do Recife (Fafire), tendo adquirido no ano seguinte o título de
especialista. A pesquisa que desenvolveu tratava da relação entre literatura e cinema.
164
Sua trajetória profissional teve início já no primeiro ano de graduação, em 1998, quando
começou a dar aulas de inglês e de redação em escolas privadas para turmas do ensino
fundamental. Também participou, durante o período da graduação, de um projeto de pré-
vestibular voltado para alunos de baixa renda da rede pública de ensino. Depois de formado, em
2001, ingressou numa escola da rede privada, onde atuou como professor de português e inglês
em turmas do ensino médio por dez anos. Em 2006, passou a dar aulas também na rede pública
estadual de Pernambuco. Lá, atua até hoje como professor concursado de português e inglês em
turmas do ensino médio, e atuou também como gestor entre os anos de 2010 e 2011. Deixou a
rede privada de ensino em 2011, quando foi aprovado em concurso público para professor de
língua portuguesa da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes, onde também trabalha até o
momento com turmas do ensino fundamental.
Em 2011, ingressou no PIBID do curso de licenciatura em letras/português da UFPE
(campus Recife). Desde então, atua em projetos vinculados ao programa como professor
supervisor. Assim, orienta a atuação dos alunos da graduação em suas turmas da rede estadual.
Também participa de outras ações desenvolvidas pelos integrantes do programa, tais como
encontros acadêmicos, publicação de trabalhos científicos, seminários, etc.
4.2.4 Descrição dos campos de investigação
Nesta seção, faremos uma breve descrição de cada uma das escolas onde investigamos as
práticas dos professores da prefeitura do Recife e da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes.
Nosso intuito aqui é apenas o de contextualizar o âmbito em que as práticas de ensino analisadas
eram construídas. Ainda que não tenhamos incluído em nossos objetivos de pesquisa aspectos
vinculados à infraestrutura, à organização pedagógica da escola e ao perfil socioeconômico dos
alunos, entendemos que a prática docente, como toda prática social, não se constitui no abstrato,
mas no entrecruzamento de histórias de vida, interações humanas, condições materiais e
circunstâncias históricas. Por isso, para dar forma aos campos de estudo e, na medida do possível,
desanuviar o borrado típico de uma situação social não plenamente identificada, optamos por
recuperar para o leitor algumas informações do contexto mais amplo das escolas investigadas.
Para tanto, contamos com a nossa própria observação dos campos e com os dados fornecidos por
um dos gestores da escola da prefeitura do Recife, por um integrante da equipe técnico-
165
administrativa da escola da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes e por ambos os professores
cujas práticas foram alvo de nossa pesquisa. As questões observadas e/ou sobre as quais
perguntamos aos referidos profissionais foram: ano de fundação da escola, perfil da escola quanto
à proposta pedagógica, estrutura física (quantidades de salas de aula, outros espaços de convívio,
condições físicas do espaço, disponibilidade de material de apoio pedagógico), constituição da
equipe pedagógica (professores concursados, professores com contrato temporário e demais
funcionários), perfil dos alunos (níveis e modalidades de ensino contemplados, comunidades
atendidas, perfil socioeconômico, aspectos da convivência social na escola), participação da
comunidade no cotidiano escolar e acompanhamento dos pais, caracterização específica das
turmas observadas (idade, tempo de permanência na escola, desempenho em língua portuguesa,
sociabilização, participação durante as aulas).
4.2.4.1 Descrição da escola da prefeitura do Recife
A escola em que atua a PR pertence à rede municipal do Recife. Foi inicialmente fundada
em 1993, mas, em 2009, foi desmembrada em duas sedes distintas, o que levou a escola que
observamos a mudar de localização e ser reinaugurada. Hoje, fica localizada no Paissandu, bairro
de classe média/alta situado no centro da capital pernambucana. Sua localização permite atender
alunos provenientes de diversas comunidades próximas, dentre elas: Coelhos, Santo Amaro,
Coque, Caranguejo Tabaiares, Pilar, Boa Vista e Afogados. São cerca de duzentos e quarenta
estudantes, predominantemente de famílias de baixa renda. Vinte e seis professores trabalhavam
na escola no ano de realização da pesquisa: dentre eles, dezoito eram concursados e oito tinham
contrato temporário com a prefeitura.
Um diferencial da escola é ser norteada pelo princípio da educação inclusiva, sendo uma
das instituições pioneiras da cidade no atendimento a alunos com necessidades especiais. Assim,
são muitos os alunos da escola (crianças, jovens e adultos) com deficiência física, visual e
auditiva, síndrome de down, condutas típicas e deficiências múltiplas. Para atender esses
estudantes, a escola dispõe de uma estrutura física com acessibilidade, de profissionais
especializados (professores de língua brasileira de sinais e intérpretes) e de equipamentos para
produção e leitura de material em braile. Durante muito tempo, a escola dispunha de turmas
regulares, especiais e mistas, mas, a partir do ano em que fizemos este estudo, conforme
166
orientação da secretaria de educação, todos os alunos com necessidades especiais passaram a
estudar em turmas integradas, junto aos demais alunos. No âmbito geral da proposta, a escola,
além de ser pautada nos princípios da educação inclusiva, busca trabalhar com projetos que visem
aos anseios da comunidade escolar, à interdisciplinaridade, à coletividade e à cultura.
No que diz respeito à estrutura física, a escola dispõe de oito salas de aula com
ventiladores, uma biblioteca, um laboratório de informática (porém, no período de realização da
pesquisa, ele estava desativado), sala dos professores, sala da direção, sala da coordenação,
secretaria, pátio coberto e pátio aberto, onze banheiros (quatro para funcionários e sete para
alunos – dentre os quais, dois com acessibilidade a alunos com mobilidade reduzida), cozinha,
refeitório e almoxarifado. Em relação aos equipamentos disponíveis, a escola tem sete
computadores para a área administrativa, dezessete computadores para alunos (desativados),
acesso à internet banda larga para funcionários, seis televisões, dois aparelhos de DVD, duas
impressoras (uma para a área administrativa e uma para a área pedagógica), dois projetores
multimídia (datashow), um aparelho de som e duas copiadoras.
A escola possui turmas de ensino fundamental (primeiro a nono ano), incluindo a
educação de jovens e adultos. Segundo a gestão e os próprios professores, embora a maior parte
dos alunos tenha uma boa convivência entre si e com os funcionários da escola, existe certa
rivalidade entre grupos específicos, razão pela qual a escola já viveu situações graves de
violência. Durante nossa observação, presenciamos uma delas, quando houve uma briga entre
alunos do oitavo e nono ano, com a participação de familiares. Um dos alunos chegou a agredir o
outro com uma faca, o que levou a escola a chamar a polícia para resolver a ocorrência.
De acordo com o gestor com quem conversamos, há uma participação regular da
comunidade escolar nos eventos promovidos pela escola e o acompanhamento dos pais quanto à
vida escolar dos alunos é satisfatório.
O grupo-classe que observamos em particular era composto de vinte alunos, com idades
entre onze e quinze anos, mas a maior parte deles tinha doze ou treze anos. Eram alunos que, em
sua maioria, estudavam na escola há pelo menos dois anos e aparentavam ter uma boa relação
entre si e com a professora. Havia alguns alunos que faltavam aula com relativa frequência, sendo
variável o número de estudantes em sala nas aulas que observamos (em geral, entre treze e
dezoito alunos). Eram alunos bastante silenciosos e dedicados durante a execução das atividades
e durante as explanações feitas pela professora. Conforme nos indicou a PR, o desempenho da
167
turma em língua portuguesa era bom, apesar de haver alguns alunos que apresentavam
dificuldades. Como se tratava de uma turma relativamente pouco numerosa, a PR conseguia
acompanhá-los mais de perto e, por isso, conhecia bem o perfil de cada um deles. Eram alunos
muito participativos e expressivos, alguns dos quais envolvidos com atividades teatrais. Outros
tiveram a iniciativa de criar uma página nas redes sociais para escreverem, com a orientação da
PR, sobre eventos da escola. Era uma turma, enfim, que demonstrava bastante interesse por
atividades de linguagem.
4.2.4.2 Descrição da escola da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes
A escola em que atua o PJ pertence à rede municipal de Jaboatão dos Guararapes,
município que pertence à região metropolitana do Recife e que está localizado a dezoito
quilômetros da capital pernambucana. Fundada em meados dos anos 1980 e situada no bairro de
Cajueiro Seco, a escola atende principalmente à comunidade local, mas também a alunos
provenientes de outros bairros, tais como Prazeres, Nova Divineia, Piedade e Jardim Piedade. São
estudantes oriundos de famílias de baixa renda. No ano em que realizamos a pesquisa, a escola
contava com mil e cinquenta e um alunos matriculados, distribuídos em turmas regulares de
ensino fundamental (primeiro a nono ano) e em turmas de educação de jovens e adultos. Nesse
mesmo ano, cinquenta e quatro professores trabalhavam na escola: trinta e um deles eram
concursados, enquanto os vinte e três restantes possuíam contrato temporário com a prefeitura.
Além dos professores e das duas gestoras, trabalhavam na escola quatro agentes administrativos,
quatro auxiliares de serviços gerais, um secretário, uma merendeira e cinco estagiários.
A estrutura física da escola é composta de quinze salas de aulas com ventiladores (dentre
as quais, apenas doze eram utilizadas), uma sala de informática e vídeo, uma biblioteca, sala dos
professores/coordenação, sala da direção/secretaria, um pátio coberto e um pátio aberto, sala de
recursos multifuncionais para atendimento a alunos com necessidades especiais (desativada
durante o período de realização da pesquisa), cozinha, dois almoxarifados e quatro banheiros (um
para funcionários e três para alunos). Os equipamentos disponíveis na escola são: três
computadores para uso administrativo, dez computadores para uso dos alunos (no entanto, muitos
deles estavam quebrados), dois projetores multimídia (datashow), um notebook para uso dos
professores, acesso a internet banda larga, duas televisões, um aparelho de DVD e duas
168
impressoras. Como não havia copiadora, era necessário usar as impressoras para a reprodução de
fichas elaboradas pelos professores, o que a tornava quantitativamente reduzida.
Segundo o funcionário da equipe técnico-administrativa com quem conversamos, a
participação da comunidade nos eventos da escola e o acompanhamento dos responsáveis na vida
escolar dos alunos eram aquém do esperado, inclusive nos plantões pedagógicos bimestrais e nos
conselhos de classe. De acordo com o funcionário, os alunos nutriam boa relação entre si e com
os funcionários da escola, porém era muito recorrente em praticamente todas as turmas
problemas de disciplina. De fato, uma característica que nos saltou à vista ainda durante os
primeiros contatos com a escola foi o barulho generalizado em todas as dependências da escola,
inclusive nos horários de aula. Devido ao tamanho reduzido da escola em proporção ao número
de alunos a que atendia, o recreio das turmas do térreo e das turmas do primeiro andar
aconteciam em horários diferentes. Nesses momentos, o barulho era ainda mais intenso e parecia
atrapalhar bastante o andamento das aulas.
Especificamente em relação ao grupo-classe observado, eram vinte e sete os alunos
matriculados, mas nem todos assistiam às aulas assiduamente. Durante nossas observações, a taxa
média de frequência era de dezesseis a vinte alunos. Suas idades variavam entre onze e quinze
anos, mas a maioria deles tinha treze anos. Aparentavam ter uma relação amigável entre si,
embora houvesse alguns alunos mais retraídos e outros que claramente sofriam bullying por parte
dos colegas. Uma parcela significativa da turma estudava na instituição há pelo menos cinco anos
e morava no próprio bairro em que a escola se localizava. Percebemos que se tratava de um grupo
que, apesar dos problemas de disciplina, participava bastante das discussões orais propostas pelo
PJ. Entretanto, muitos limitavam sua participação a esse momento, não cumprindo as atividades
que deveriam realizar por escrito. O PJ procurava acompanhar a execução das atividades
individualmente, sendo bastante frequente que ele dedicasse uma parte da aula para olhar os
cadernos dos alunos em seu birô. No entanto, também era comum, nesses momentos,
verificarmos diversos alunos copiando as respostas das atividades uns dos outros. Segundo o PJ,
a turma que observamos não tinha um bom desempenho na disciplina, apresentando muitas
dificuldades de leitura e escrita.
169
4.3 INSTRUMENTOS DE COLETA DE DADOS
4.3.1 A entrevista
A entrevista foi um instrumento amplamente utilizado ao longo desta pesquisa devido à
nossa anuência a uma postura epistemológica de valorização da voz do professor na construção
do conhecimento acerca da prática docente. Parece-nos fulcral pôr em relevo a perspectiva do
professor em relação ao desenvolvimento de seu trabalho, a fim de minimizarmos a distância
entre as práticas escolares e os discursos acadêmicos sobre essas mesmas práticas. Acreditamos
que, para compreender a prática de um sujeito, é necessário ter acesso ao ponto de vista desse
sujeito sobre sua prática. Caso contrário, corremos o risco de fazer uma análise demasiadamente
fragmentada ou até mesmo equivocada, pois o sujeito que está inserido na prática dispõe de uma
série de conhecimentos contextuais aos quais o pesquisador só poderá ter acesso através do
diálogo com esse sujeito – nas palavras de Minayo (2013b [1993]), os dados primários da
entrevista. Assim, apesar de reconhecermos os limites inevitáveis de qualquer tentativa de
compreensão do outro sob a perspectiva dele próprio, nosso intuito com as entrevistas foi de
atribuir significação às práticas docentes observadas atentando para o ponto de vista dos
professores que as constroem, para o seu modo de fazer e para os porquês desse modo de fazer.
Não nutrimos com isso a pretensão de reproduzir fielmente esses pontos de vista. Nosso
interesse foi de nos aproximarmos ao máximo dessas perspectivas, isto é, em estreitarmos nossa
interação com os professores sujeitos da pesquisa, porque acreditamos que são os próprios
sujeitos construtores de uma determinada prática social as principais fontes de informação e de
conhecimento acerca dessa prática. Por essa razão, a entrevista nos pareceu uma técnica
privilegiada de acesso ao modo de pensar dos professores. Mas a mesma importância que
atribuímos à valorização das perspectivas dos sujeitos atribuímos também ao reconhecimento dos
papéis que desempenham pesquisadores e sujeitos de pesquisa. Como bem nos lembra Minayo
(2013b [1993]), a interação entre pesquisador e pesquisados é marcada por uma relação de
assimetria. Por mais estreito que seja o laço que o pesquisador constrói com as práticas do sujeito
investigado, ele não pode perder de vista que não é o próprio sujeito investigado, mas apenas
alguém que com ele dialoga. A compreensão do outro enquanto alteridade também demanda
perceber as fronteiras dos sujeitos e a natureza de suas relações.
170
Minayo (2013b [1993], s/p) define a entrevista como “conversas com finalidade”. A
entrevista inicial, conforme apresentado no Quadro 5 ao final desta seção, contempla os dois
primeiros objetivos específicos apresentados na introdução desta dissertação, a saber: a) analisar
as concepções do professor quanto ao ensino de língua materna, especialmente no que se referem
à análise linguística e sua relação com o eixo da leitura; b) investigar o modo como o professor
planeja a sua prática quanto ao eixo da análise linguística, bem como os critérios que utiliza para
escolher os textos e os conteúdos que serão trabalhados em sala de aula. Elaboramos um roteiro
prévio de perguntas (Apêndice B), mas apenas no sentido de nortear o diálogo inicial com os
professores participantes. Queremos dizer com isso que se trata de uma entrevista
semiestruturada, aquela em que o entrevistador planeja antecipadamente as questões sobre as
quais o entrevistado deverá se colocar, mas em que há espaço para reelaborações na própria
dinâmica da entrevista (MINAYO, 2013b [1993]).
Nessa entrevista, embora tenhamos proposto algumas questões mais diretivas quanto às
concepções teóricas do professor acerca do ensino de língua, procuramos dar ênfase à
explicitação de situações práticas ou a reflexões acerca do fazer do professor. Isso porque
acreditamos que as concepções acerca do ensino são indissociáveis da prática, ainda que as
entendamos como heterogêneas (e não necessariamente contraditórias). A fala do professor aqui
tem a função de ampliar a compreensão acerca do funcionamento de sua prática. Essa é,
inclusive, a razão pela qual optamos por fazer a entrevista antes de iniciarmos as observações:
para redirecionarmos o nosso olhar a partir do discurso do professor acerca de sua prática.
Além dessa primeira entrevista, de abordagem mais sistemática e metódica, também
havíamos planejado dialogar com os professores ao final das aulas, com o objetivo de esclarecer
questões que surgissem sobre suas práticas ao longo das observações, sobretudo quanto aos
porquês dos procedimentos didáticos adotados. Seriam conversas menos formais acerca de
detalhes ocorridos nas aulas, para que pudéssemos ter acesso ao que poderia estar nas entrelinhas
do que é mais diretamente observável – informações acerca das escolhas dos professores quanto a
um determinado caminho didático assumido em sua aula apenas acessíveis via diálogo com os
próprios sujeitos que fazem tais escolhas. Essas conversas seriam um meio complementar para,
em consonância com o que propusemos, levarmos em consideração o ponto de vista do professor
sobre a própria prática. Diante da impossibilidade de prever como seriam as aulas observadas e a
171
natureza dessas conversas, não foram elaborados roteiros prévios, como no caso da entrevista
inicial.
A dinâmica de trabalho dos professores, com raros intervalos entre uma aula e outra, e a
necessidade que tivemos de observar em um mesmo período duas práticas que aconteciam em
escolas muito distantes uma da outra dificultaram razoavelmente a execução desta etapa. Com a
PR, conseguimos travar esse diálogo ao menos nas aulas em que predominou o trabalho com o
eixo da análise linguística. Com o PJ, isso não foi possível, porque dificilmente o professor tinha
tempo disponível para as conversas, por mais curtas que elas fossem. A outra escola onde
trabalhava, da rede estadual, era distante daquela em que realizamos a pesquisa – o que fazia com
que ele chegasse sempre muito próximo do horário da primeira aula, quando não se atrasava.
Como as aulas aconteciam no turno da tarde, também ficava difícil para o professor conversar
conosco ao final do expediente de trabalho, quando a escola esvaziava e precisávamos, ambos,
atentar para o horário do transporte de volta.
Dessa maneira, optamos por fazer apenas com o PJ uma entrevista final, também de
caráter bastante breve e menos formal, para termos a oportunidade de ouvir o que ele tinha a nos
dizer sobre as aulas que haviam sido observadas e que seriam objeto de nossa análise.
Procuramos, nessa entrevista, abarcar questões semelhantes às que havíamos feito à PR e, por
isso mesmo, ela ocorreu de forma relativamente pouco monitorada. Limitamo-nos a relembrar, a
partir de nossos registros, as ações por ele desenvolvidas em sala de aula, e o professor ficava
livre para fazer os comentários que considerasse pertinentes. A única sugestão que fizemos no
início da entrevista foi que ele contemplasse o que julgava serem os objetivos das atividades
propostas e sua avaliação acerca do andamento dessas atividades.
Tanto as conversas informais com a PR quanto a entrevista final realizada com o PJ
tiveram caráter apenas complementar no interior da pesquisa. Os dados resultantes desses
diálogos não constituíram material específico de análise, com objetivos de pesquisa a eles
direcionados particularmente. Por isso, embora a rigor não tenhamos incluído essas conversas
como instrumentos operacionais propriamente ditos (com propósitos específicos e categorias de
análise diretamente vinculadas), fizemos questão de incluí-las em nosso relato de pesquisa tendo
em vista que elas foram fonte de algumas das informações que, por terem nos ajudado a
compreender a prática dos professores investigados, foram eventualmente mencionadas na
análise dos dados das observações.
172
Os conteúdos de todas as entrevistas foram, com a prévia autorização dos sujeitos,
integralmente capturados por meio de gravador de voz e, em seguida, transcritos pela própria
pesquisadora. Durante esse processo, seguimos a recomendação de Minayo (2013b [1993]) de
fazer o registro fidedigno dos dados, até mesmo “ao pé da letra”, por se tratar, como ressalta a
autora, de uma modalidade de coleta cuja matéria-prima é a fala.
4.3.2 A observação
Após a entrevista inicial, procedemos à observação das aulas dos professores. Já
explicitamos em seções anteriores a relação entre os nossos interesses de pesquisa e a
necessidade de estabelecermos um contato mais direto com o lugar onde as práticas docentes
ocorrem efetivamente (a sala de aula) e com os sujeitos que constroem essas práticas (os
professores).
Na prefeitura do Recife, foram observadas quinze aulas de cinquenta minutos cada entre
os dias 21 de outubro e 26 de novembro de 2015. Já na prefeitura de Jaboatão dos Guararapes,
acompanhamos vinte e cinco aulas, também com cinquenta minutos de duração cada, entre 09 de
outubro e 07 de dezembro de 2015. Em ambos os casos, as turmas tinham seis aulas de língua
portuguesa por semana e o tempo de observação correspondeu a todo o quarto bimestre do ano
letivo. A turma de Recife tinha aulas no turno da manhã, e a de Jaboatão dos Guararapes, no
turno da tarde. Nosso planejamento inicial era de permanecer em torno de um mês em cada
escola, mas a definição final em relação ao nosso tempo de permanência acabou efetivamente
partindo das necessidades de observação que fomos percebendo após a nossa chegada aos
campos de investigação.
Embora a PR tenha sido o primeiro sujeito de pesquisa que selecionamos, nossas
observações em sua turma demoraram mais para serem iniciadas, devido à organização do
calendário da escola. Quando decidimos acompanhar a sua prática e entramos em contato com a
professora, ela nos informou que estava em vias de conclusão do terceiro bimestre e que seria
inviável iniciar as observações naquele momento. As três semanas seguintes seriam dedicadas a
aulas de revisão e à aplicação de provas bimestrais e de recuperação. Quando, enfim, chegamos à
escola, na semana de 12 a 16 de outubro, novamente não conseguimos dar início às observações
porque, além de haver três feriados escolares nessa mesma semana (incluindo ponto facultativo
173
na sexta-feira seguinte ao Dia dos Professores), a escola reservou um dos dias à realização de
uma festa em comemoração ao Dia das Crianças e a PR precisou faltar no outro dia. Assim, mais
uma vez, foi necessário adiar o começo das observações. Dois outros pontos que destacaríamos
para justificar a discrepância em relação à quantidade de aulas observadas na prática da PR e do
PJ foram os inúmeros contratempos com que nos deparamos na escola da prefeitura do Recife
(eventos escolares cuja realização não nos era comunicada previamente, mudança do horário de
aula da PR devido à ausência de colegas, episódio de violência envolvendo intervenção policial,
necessidade de ausências da PR por razões várias) e o fato de o calendário escolar dessa rede ter
sua finalização antecipada em relação ao da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes.
Procuramos, para contornar essa desconformidade, fazer um recorte maior nos dados
relativos às observações da prática do PJ, ainda que não possamos negar ter havido de nossa parte
uma imersão mais aprofundada na realidade da escola em que esse professor atuava. De qualquer
forma, também enfrentamos algumas intercorrências durante o trabalho de campo na escola de
Jaboatão dos Guararapes, sobretudo a menor duração das aulas quando aconteciam no primeiro e
no último horário. O primeiro caso era menos recorrente, mas, quando acontecia, era devido aos
atrasos do professor, que, no turno da manhã, trabalhava numa escola distante daquela onde
realizamos a pesquisa. No segundo caso, o encurtamento do tempo de aula ocorria porque a
dinâmica de trabalho dos profissionais de limpeza da escola demandava que o turno da tarde
acabasse meia hora mais cedo todos os dias. No caso da turma que acompanhamos, nos dois dias
da semana em que as aulas de português aconteciam nos últimos horários, elas eram geminadas.
No entanto, quando ouviam o toque indicando o fim da primeira aula, os alunos ficavam bastante
inquietos, ansiosos com proximidade do horário de saída, e isso dificultava consideravelmente o
andamento produtivo do trabalho do professor. Nos dias programados para que a escola fosse
lavada, as aulas do último horário chegavam a ser canceladas.
Quanto aos eixos de ensino, não nos limitamos à observação das aulas dedicadas à análise
linguística, pois entendemos que a transversalidade é característica desse eixo. Isso significa que
reconhecemos que, no trabalho com a leitura, o professor já poderia antecipar reflexões a serem
abordadas no eixo dos conhecimentos linguísticos – ou mesmo já mediar essas reflexões. Embora
os eixos tenham especificidades, sabemos que eles se entrecruzam (é, inclusive, num desses elos
que se insere nossa indagação primeira de pesquisa) e nem sempre é possível fazer uma
separação entre o que cabe à leitura, por exemplo, e o que cabe à análise linguística. Portanto, na
174
tentativa de compreender a prática em contexto, em sequência, em articulação, fizemos as
observações de todas as aulas de língua portuguesa ministradas durante o quarto bimestre nas
turmas selecionadas.
Com autorização prévia, registramos as aulas através de um gravador de voz, que ficava
sempre pendurado no pescoço dos professores para facilitar a captação do áudio mesmo nos
momentos em que eles se deslocavam em direção aos alunos. Também fizemos anotações em
diários de campo, no qual descrevíamos todas as ações do professor relativas à aula (abordagem
de conteúdos, anotações do quadro, indagações feitas aos alunos, proposição de atividades,
esclarecimento de dúvidas, intervenções, etc.), conforme documentado entre o Apêndice C e o
Apêndice M. Ao longo do processo de observação, transcrevemos as gravações, contemplando,
sempre que audíveis, todas as falas dos professores e dos alunos relacionadas às aulas.
A observação esteve, nesta pesquisa, vinculada a dois dos objetivos específicos, a saber:
c) identificar os procedimentos didáticos que o professor adota em sala de aula para construir a
sua prática quanto ao eixo da análise linguística e analisá-los na sua relação com o ensino da
leitura; d) investigar de que forma o professor de português explora, em suas aulas, o papel dos
elementos linguísticos na construção de sentidos dos textos. Abaixo, é possível visualizar essa
relação, inclusive quanto à utilização da entrevista como instrumento de coleta de dados:
INSTRUMENTOS DE COLETA DE DADOS
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
ENTREVISTA
OBSERVAÇÃO
a) Analisar as concepções do professor quanto ao
ensino de língua materna, especialmente no que se
referem à análise linguística e sua relação com o eixo
da leitura
X
b) Investigar o modo como o professor planeja a sua
prática quanto ao eixo da análise linguística, bem como
os critérios que utiliza para escolher os textos e os
conteúdos que serão trabalhados em sala de aula
X
c) Identificar os procedimentos didáticos que o
professor adota em sala de aula para construir a sua
prática quanto ao eixo da análise linguística e analisá-
los na sua relação com o ensino da leitura
X
d) Investigar de que forma o professor de português
explora, em suas aulas, o papel dos elementos
linguísticos na construção de sentidos dos textos
X
Quadro 5: Correspondência entre objetivos específicos e instrumentos de coleta de dados
175
4.4 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE
A última etapa de nosso estudo consiste no tratamento e na análise do material empírico
coletado durante o trabalho de campo nas escolas. É o momento em que os dados coletados são
ordenados para a constituição do corpus, sendo a eles atribuídos significados segundo os
propósitos que previamente delimitamos. De acordo com Minayo (2013a [1993], s/p, grifo
nosso), a análise de dados na investigação de abordagem qualitativa permite a identificação de
princípios que organizam e estruturam a prática social pesquisada:
O tratamento do material nos conduz a uma busca da lógica peculiar e interna do grupo
que estamos analisando, sendo esta a construção fundamental do pesquisador. Ou seja,
análise qualitativa não é uma mera classificação de opinião dos informantes, é muito
mais. É a descoberta de seus códigos sociais, a partir das falas, símbolos e observações.
A busca da compreensão e interpretação à luz da teoria aporta uma contribuição singular
e contextualizada do pesquisador.
No nosso caso, buscamos compreender o funcionamento das práticas de análise
linguística desenvolvidas por professores de língua portuguesa do sétimo ano do ensino
fundamental, atentando para os diálogos que eles estabelecem, na condução dessas práticas, com
o eixo da leitura. O objetivo desta seção é expor os procedimentos de análise que foram adotados,
isto é, “as formas de organização dos dados e os passos empreendidos para a produção de
inferências explicativas ou de descrição” (DESLANDES, 2013 [1993], s/p).
Elaboramos, para ambos os instrumentos de coleta de dados utilizados (a entrevista e a
observação de aulas), algumas categorias de análise que direcionaram nosso percurso
interpretativo. A definição dessas categorias foi feita com base nos quatro objetivos específicos
que inicialmente traçamos para a pesquisa. Essa relação pode ser visualizada no Quadro 6 e no
Quadro 7, dispostos ao final da seção.
A entrevista inicial está, como apontamos no Quadro 5, vinculada aos dois primeiros
objetivos elencados na introdução desta dissertação (objetivo a e objetivo b). Para contemplarmos
o primeiro deles, procuramos analisar os depoimentos dos professores quanto: aos objetivos do
ensino de língua portuguesa e das práticas de análise linguística; à relação que os professores
estabelecem entre os eixos da análise linguística e da leitura; e ao espaço que as práticas e os
conceitos vinculados ao ensino tradicional de gramática assumem na atuação dos professores em
sala de aula. Duas questões nortearam a primeira parte de nossa análise, a saber:
176
O que os professores pensam sobre os aspectos elencados?
Como os professores afirmam colocar essas concepções em prática?
Em seguida, conforme delimitamos no objetivo b, voltamos o olhar para o modo como os
professores relatam planejar a sua prática quanto ao eixo da análise linguística. O enfoque
interpretativo nesse momento recairá sobre: os critérios de escolha e as fontes de pesquisa dos
textos utilizados em sala de aula; a definição dos conteúdos de ensino vinculados ao eixo da
análise linguística; e o planejamento das ações a serem realizadas em sala de aula para o trabalho
com esses conteúdos. Procuramos, nas falas dos professores, indícios do modo como organizam
suas práticas, dos aspectos que eles priorizam ao definir suas ações em sala de aula e das razões
que os levam a essa forma de organização.
Em relação à observação, devido ao grande número de aulas observadas, foi necessário,
em primeiro lugar, estabelecer critérios para efetuar um recorte quanto às aulas que seriam
analisadas, ainda que procurássemos compreendê-las como parte de um conjunto mais amplo das
ações desenvolvidas pelos professores em sala de aula. Para representar a esfera geral da prática,
organizamos inicialmente, para cada campo de investigação, um quadro com a síntese dos
conteúdos e das temáticas abordadas em cada aula, além das atividades realizadas. Tendo em
vista o nosso objeto de estudo, as aulas que compuseram o corpus da pesquisa foram aquelas em
que predominou o trabalho com o eixo da análise linguística. Fizemos tal demarcação com base
nos fundamentos téorico-metodológicos vinculados a esse eixo de ensino sobre os quais
discorremos em nossa fundamentação teórica (cf. GERALDI, 1997b [1984], 1991, 1996;
MENDONÇA, 2006, 2007b; SUASSUNA, 2012). Nesse sentido, selecionamos para a
constituição do corpus as aulas em que foram trabalhados aspectos vinculados à reflexão sobre a
língua, incluindo conceitos da gramática tradicional ou de outros campos de estudo da linguística.
Definido o corpus referente aos dados coletados nas observações, procedemos a uma
breve descrição das aulas selecionadas e analisamos as práticas dos professores focalizando o
percurso didático trilhado por eles na abordagem do eixo da análise linguística (o que fazem e
como fazem). Apoiando-nos nos objetivos específicos delimitados para o instrumento em questão
(objetivo c e objetivo d), elaboramos categorias de análise para o tratamento dos dados da
observação. Para contemplarmos o primeiro deles, levamos em consideração: os procedimentos
didáticos adotados na construção da prática, com ênfase no eixo da análise linguística; o uso dos
177
materiais didáticos na abordagem dos conteúdos de análise linguística (livro didático, fichas de
aula, atividades copiadas no quadro, etc.); e a articulação das práticas de análise linguística com a
leitura. Para o último objetivo traçado, analisamos dois aspectos das reflexões linguísticas
propostas pelos professores em sala, ambos vinculados à relação dos fenômenos linguísticos
abordados com a construção de sentidos dos textos: a abordagem dos textos trabalhados em sala
quanto ao papel dos recursos linguísticos neles utilizados; e/ou a abordagem dos fenômenos
linguísticos quanto aos efeitos de sentido em situações de uso.
OBJETIVOS VINCULADOS À ENTREVISTA
CATEGORIAS DE ANÁLISE
a) Analisar as concepções do professor quanto ao ensino
de língua materna, especialmente no que se referem à
análise linguística e sua relação com o eixo da leitura
Objetivos do ensino de língua portuguesa e
das práticas de análise linguística
Relação entre análise linguística e leitura
Espaço das práticas e dos conceitos
vinculados ao ensino tradicional de
gramática
b) Investigar o modo como o professor planeja a sua
prática quanto ao eixo da análise linguística, bem como os
critérios que utiliza para escolher os textos e os conteúdos
que serão trabalhados em sala de aula
Critérios de escolha e fontes de pesquisa dos
textos utilizados em sala de aula
Definição dos conteúdos de ensino
vinculados ao eixo da análise linguística
Planejamento das ações a serem realizadas
em sala de aula no trabalho com os
conteúdos de análise linguística
Quadro 6: Categorias de análise dos dados da entrevista inicial
OBJETIVOS VINCULADOS À OBSERVAÇÃO
CATEGORIAS DE ANÁLISE
c) Identificar os procedimentos didáticos que o
professor adota em sala de aula para construir a sua
prática quanto ao eixo da análise linguística e analisá-
los na sua relação com o ensino da leitura
Mapeamento dos procedimentos didáticos
adotados pelo professor em sala de aula, com
ênfase no eixo da análise linguística
Uso de materiais didáticos na abordagem dos
conteúdos de análise linguística
Articulação das práticas de análise linguística
com a leitura
d) Investigar de que forma o professor de português
explora, em suas aulas, o papel dos elementos
linguísticos na construção de sentidos dos textos
Abordagem dos textos
trabalhados em sala de
aula quanto ao papel dos
recursos linguísticos
neles utilizados
Abordagem dos
fenômenos
linguísticos quanto
aos efeitos de sentido
em situações de uso
Quadro 7: Categorias de análise dos dados da observação de aulas
178
5 ANÁLISE DOS DADOS
Este último capítulo dedica-se à análise dos dados coletados durante o trabalho de campo.
Organizamos este capítulo em duas seções: na primeira, constam os dados referentes à prática da
professora da prefeitura do Recife (PR); e na segunda, os dados do professor da prefeitura de
Jaboatão dos Guararapes (PJ). Cada seção está dividida em duas subseções: uma para os dados
das entrevistas iniciais; outra para os dados das observações de aulas. Essas subseções, por sua
vez, estão divididas com base nos seguintes critérios: a primeira de acordo com as categorias de
análise delimitadas para cada objetivo específico da pesquisa (Quadro 6); e a segunda de acordo
com os conteúdos de ensino abordados pelos professores investigados.
5.1 ANÁLISE DOS DADOS RELATIVOS À PRÁTICA DA PROFESSORA DA
PREFEITURA DO RECIFE
5.1.1 Análise da entrevista inicial (PR)
A entrevista inicial da PR foi realizada no dia 05 de novembro de 2015, quando já
havíamos iniciado a observação há cerca de duas semanas. Nossa intenção inicial era de realizar a
entrevista antes de começarmos as observações para que pudéssemos, desde a primeira aula, ter o
olhar redirecionado com base nas informações que a PR nos tivesse revelado acerca de aspectos
como seus objetivos de ensino, sua forma de trabalho, as particularidades da escola, o perfil da
turma, etc. Já tivemos a oportunidade de relatar as diversas intercorrências que nos fizeram adiar
por várias vezes o início das observações. O ano letivo já chegava ao final e era preciso começar.
Por isso, optamos por não aguardar uma disponibilidade mútua com a PR para a entrevista antes
de começarmos as observações. Apesar disso, o fato de já termos minimamente nos familiarizado
com a turma e com o trabalho da PR nas primeiras semanas acabou enriquecendo o andamento da
entrevista, pois compreendíamos com mais clareza algumas questões colocadas pela PR e
podíamos ampliar as indagações contidas no roteiro (Apêndice B) a fim de entendermos melhor
alguns elementos de antemão observados.
De acordo com as correspondências indicadas no Quadro 5, os dados coletados nas
entrevistas iniciais visam atender aos dois primeiros objetivos específicos delimitados para esta
179
pesquisa, a saber: a) analisar as concepções do professor quanto ao ensino de língua materna,
especialmente no que se referem à análise linguística e sua relação com o eixo da leitura; b)
investigar o modo como o professor planeja a sua prática quanto ao eixo da análise linguística,
bem como os critérios que utiliza para escolher os textos e os conteúdos que serão trabalhados em
sala de aula. Além de atentarmos para as categorias de análise (decorrentes desses objetivos,
explicitadas no Quadro 6 e enumeradas nos subitens que compõem esta subseção), procuramos
nos guiar, sempre que possível, por duas questões centrais para cada um dos pontos analisados,
conforme explicamos no capítulo anterior: o que os professores pensam sobre os aspectos
expressos nas categorias de análise; como os professores afirmam colocar as concepções
manifestadas por sua fala em prática.
5.1.1.1 Objetivos do ensino de língua portuguesa e das práticas de análise linguística (PR)
Questionada acerca dos objetivos da disciplina língua portuguesa, a PR construiu sua
resposta inicial em torno de alguns eixos temáticos: letramento, leitura, textos orais, cidadania e
humanidade. Vejamos abaixo como ela relacionou cada um deles ao ensino de língua materna:
[...] Pra mim, as aulas de língua portuguesa, elas têm que ter sentido pra o estudante. Eu penso que eles
precisam ser bons leitores... Eles precisam, a partir das aulas de língua portuguesa... nas aulas de língua
portuguesa, a gente precisa desenvolver várias práticas de letramentos pra que eles possam, na sociedade em
que ele estão inseridos, agirem como cidadãos, né?[...] Então, é preciso que a escola, em todos os seus
segmentos, nas aulas de língua portuguesa, desenvolva habilidades pra que os alunos tenham cada vez mais...
sejam cada vez mais letrados. Letrados no sentido de saber o que tá lendo, entender o que tá lendo e
participar da sociedade de forma que a cidadania dele seja garantida. [...] Então, eu vejo o ensino de língua
portuguesa com essa finalidade principal de fazer com que o aluno entenda o mundo, compreenda o mundo,
compreenda não só o texto escrito, né? Porque, quando a gente fala em texto, em ensino de língua portuguesa,
a gente pensa exclusivamente no texto escrito, mas a gente também deve considerar sobretudo, no mesmo
patamar do texto escrito, o texto oral. [...] Eu penso que o ensino de língua tem essa função principal,
primordial... fazer com que os alunos possam viver a cidadania na palavra... sejam pessoas melhores, sejam
pessoas mais humanas... Eu acho que o ensino de língua... de todas as matérias... deveria proporcionar isso
ao aluno... visar isso... a cidadania e a questão da humanidade.
Figura 18: Comentário sobre os objetivos do ensino de língua portuguesa (PR)
A formação cidadã é um dos pontos que mais salta à vista na resposta da PR, pois os
demais elementos aparecem em sua fala para explicar do que se trata essa formação e como o
ensino de língua materna pode contribuir com esse objetivo. Levando-se em consideração o
histórico da disciplina que reconstituímos desde a introdução desta dissertação e, sobretudo, ao
longo de toda a fundamentação teórica, podemos dizer que a preocupação com a cidadania – num
180
plano mais geral – sempre esteve presente entre aqueles que produziam a escola. Trata-se de uma
variável constante tanto entre os documentos normativos quanto entre os profissionais que
constroem efetivamente as práticas de ensino, os professores. O que muda, no decorrer do tempo,
é o modo como os atores escolares veem essa formação cidadã e a quem ela é oportunizada.
Vimos que, desde os tempos coloniais até o início dos anos 1970, a escola brasileira (ou as
instituições a quem era delegada a educação formal) foi pensada para as classes
socioeconomicamente favorecidas (cf. SOARES, 2002; FÁVERO, 2009; RAZZINI, 2010;
BUNZEN, 2011). Por isso, os conteúdos curriculares e as metas de aprendizagem eram definidos
com vistas às expectativas que esse grupo social tinha para a formação cultural de seus membros.
No que tange ao ensino de língua portuguesa, predominavam os parâmetros da formação
humanística clássica, em três núcleos centrais: a gramática, a retórica e a poética. Lia-se para
conhecer os cânones da cultura greco-latina, cuja escrita era tida como modelo de bom uso da
língua. Estudavam-se regras e categorias da tradição gramatical e da retórica, muitas vezes com
base nas obras dos cânones literários, para regular a expressão oral e escrita, mas também para
assimilar conhecimentos socialmente valorizados pela cultura do grupo social então instruído.
Escrevia-se imitando os modelos fornecidos pela boa literatura. Em todas essas atividades,
valorizava-se um ideal de língua homogêneo e centralizador, pautado nos parâmetros da tradição
gramatical e da literatura greco-latina. Mesmo quando o português entra para os currículos
escolares, ou se analisa a língua com base no padrão latino ou se busca um ideal lusitano de
língua, também pautado na literatura consagrada. Essa forma de utilizar a língua e de com ela se
relacionar constituía, em parte, o que as elites brasileiras esperavam da formação cultural de seus
pares e de seus sucessores. Era, portanto, parte do ideal de cidadania que as elites brasileiras e a
escola nutriam para os alunos de então.
Desde o ingresso das classes socialmente desprestigiadas para a escola nos anos 1970 até
agora, muita coisa mudou. Já vimos que a escola precisou se reconstruir em muitos sentidos.
Antes de tudo, porque o conjunto de conhecimentos até então ensinados não mais correspondiam
às expectativas e às necessidades de aprendizagem do alunado que chegava à escola. As práticas
culturais desses grupos sociais se diferenciavam largamente daquelas cultivadas pelas elites
econômicas. Além disso, na esfera acadêmica, os estudos linguísticos traziam novas concepções
de língua e novos parâmetros para a educação linguística promovida pela escola básica (cf.
SOARES, 2002). Assim, a formação cidadã agora almejada pela escola, por não se dirigir mais
181
apenas às elites econômicas, toma outros contornos. No tocante ao ensino de língua portuguesa, a
inclusão dos alunos nas práticas sociais de uso da linguagem não está mais atrelada apenas ao
domínio da norma linguística de prestígio, ao convívio com os cânones literários ou à
aprendizagem das análises gramaticais nos moldes da tradição greco-latina. Demanda, sim, o
desenvolvimento de habilidades de leitura, escrita e fala nas mais diversas situações de interação
verbal. Para tanto, o aluno deverá saber transitar entre as instâncias públicas e privadas de uso da
linguagem e mobilizar os recursos expressivos da língua em função das especificidades da
situação comunicativa e em função de suas intencionalidades (cf. GERALDI, 1991, 1996).
A fala da PR demonstra que a noção de cidadania a que ela faz alusão está intimamente
associada à inserção dos alunos em circunstâncias concretas de interação, pois, ao explicar que os
alunos devem “agir como cidadãos”, ela remete ao envolvimento deles em práticas de letramento
na escola, às suas condições para participar mais ativamente da sociedade e à ampliação de sua
compreensão acerca do mundo. Ela esclarece, ainda, que entende o indivíduo letrado como
aquele que compreende o que lê e consegue, por meio desse envolvimento com a leitura,
participar da sociedade. É bem verdade que, hoje, com os New Literacy Studies (cf. STREET,
2010), reconhecemos como letramento práticas que vão além da leitura propriamente dita, de
maneira que tal conceito remete a um conjunto de práticas discursivas que são em alguma medida
atravessadas pela cultura escrita, ainda que sua manifestação possa ocorrer por meio da fala
(como em um seminário acadêmico, por exemplo). É por isso que existe uma forte relação da
escola com o desenvolvimento de habilidades que levem à ampliação da participação do cidadão
em variadas práticas de letramento, já que, para tanto, ele precisa alargar seu envolvimento com a
leitura e a escrita.
Embora a professora inicialmente associe o letramento apenas à leitura, ela parece
perceber como consequências da aprendizagem da leitura uma maior autonomia do indivíduo
para participar de circunstâncias da vida social que demandam relacionar-se com a escrita. Tanto
é que, num outro momento, ela cita algumas possíveis situações nas quais tal autonomia seria
necessária: consulta a serviços bancários, situações de trabalho, busca de informações em placas
de rua ou na internet. Além disso, ainda no excerto destacado, ela explica que as habilidades que
a escola deve visar desenvolver no aluno também implicam que ele seja capaz de “compreender o
mundo” no contato com textos orais, deixando claro, portanto, que o objetivo do ensino de língua
materna, do seu ponto de vista, é a expansão da capacidade do aluno de lidar com os diversos
182
textos escritos e orais. É por meio dessa relação que o aluno poderá, nas palavras da PR, “viver a
cidadania na palavra”.
Devido à afirmação da PR de que a formação cidadã é compromisso de todas as
disciplinas escolares, nós a questionamos acerca do papel específico do professor de português no
cumprimento desse objetivo no interior do projeto mais amplo da escola, ao que a PR respondeu
prontamente: “De acordo com a seleção de textos que o professor trouxesse para a sala de aula,
né? Textos de toda natureza, não é?”. Evidencia-se, mais uma vez, pela fala da PR, a ênfase
atribuída ao trabalho com textos diversos no ensino de língua materna. Essa mesma constatação
pode ser inferida do momento em que a PR relata o espaço que considera ter o texto no
desenvolvimento de sua prática de ensino:
Bom, eu considero que os textos têm um espaço maior nas minhas aulas do que outras coisas, tanto a leitura
quanto a produção de texto, certo? Eu procuro ler bastante com eles... Ler, interpretar, ver se eles
compreendem, né? E eles aparecem em diversas situações: pra ler, pra produzir, né, pra fazer a análise de
sistematização linguística também, não é?
Figura 19: Comentário sobre a presença do texto na prática de ensino (PR)
Na fala acima, a PR começa a revelar um pouco de como coloca em prática um ensino de
língua centrado no desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita com vistas à formação
para a cidadania, tal como defende. A organização do trabalho com o texto escrito na sala de aula
atende à recomendação de Geraldi (1997b [1984], 1991, 1996) e dos PCN (BRASIL, 1998) em
contemplar no ensino de língua materna a vivência de práticas de leitura, de produção de texto e
de análise linguística. No tocante a esta última, nosso foco de atenção no âmbito desta pesquisa, é
importante salientar, ainda, que a referência da PR à “análise de sistematização linguística” surge
na ocasião em que ela descreve como o texto aparece em suas aulas, o que denota o seu
entendimento de que a prática de análise linguística na escola está imbricada ao trabalho com o
texto. No fragmento a seguir, ela pormenoriza o seu perfil de trabalho com a disciplina:
[...] Normalmente, eu procuro organizar assim... Eu gosto de começar sempre por um texto, não é? Eu
procuro seguir uma sequência... Eu penso mais ou menos uma sequência didática. [...] Então, eu começo com
um texto. Aí, desenvolvo com eles a questão da estrutura do texto, dos aspectos formais, né, do texto. [...] Eu
tento ver a questão da plasticidade, né, que os gêneros textuais em geral têm... Como agora... A gente tá
fazendo um estudo da carta do leitor... Então, eu trouxe várias cartas do leitor para eles verem que nem todas
são escritas da mesma forma, embora exista um padrão. [...] E tento também trazer o texto no suporte [...]. E
a funcionalidade, não é? Com que função, qual é a função social a que esse texto se presta na sociedade para
as pessoas que produzem esse tipo de texto, não é? Quem são os interactantes nessa... desses textos... Por que
eles escrevem, com que intenção... Aí entra a questão da intencionalidade. Em seguida, eu procuro aproveitar
do próprio texto a questão gramatical, não é? E depois venho com a questão do... da produção textual, né, da
183
produção do gênero de texto... Dependendo do gênero de texto, porque há alguns que são pra ler apenas e
outros são pra ler e pra produzir. No caso da carta do leitor, dá pra... dá muito bem pra produzir, né? Além de
ler, dá pra produzir. Então, eu penso nessa sequência... Do texto, a sistematização linguística a partir daquele
gênero de texto e depois a produção.
Figura 20: Comentário sobre a organização da prática em eixos didáticos (PR)
Pelo que relata, a PR organiza sua prática numa sequência que contemple todos os eixos
didáticos propostos por Geraldi (1997b [1984], 1991, 1996), exceto nas situações em que não
considera o gênero textual em pauta adequado ao desenvolvimento de um trabalho de produção
escrita. Um aspecto novo que aparece na fala acima da PR é o fato de, no trabalho com o texto,
ela levar em consideração o gênero textual, de modo que as atividades que ela propõe objetivem,
no geral, fazer os alunos compreenderem especificidades da estrutura e do funcionamento
sociodiscursivo do gênero. Ela busca também proporcionar ao aluno uma vivência mais
aproximada do contexto social em que o gênero trabalhado efetivamente circula, optando, para
tanto, por levar para a sala de aula alguns textos no suporte em que são publicados, tal como o fez
com as cartas do leitor. Além disso, chama a atenção dos alunos para outros elementos
constitutivos do gênero, tais como os interlocutores, as intencionalidades e os aspectos formais.
Pode-se dizer, portanto, que a PR, em suas aulas, procura inserir os alunos em situações concretas
de interação verbal e que é no interior dessas situações que planeja as atividades de leitura,
produção de texto e análise linguística. Consequentemente, seu perfil de trabalho, segundo ela
descreve, assemelha-se à perspectiva sociointeracionista de ensino de língua materna concebida
por Geraldi (1997a [1984], 1997b [1984], 1991, 1996) em suas produções acadêmicas.
Questionada acerca de suas concepções especificamente quanto aos objetivos do eixo da
análise linguística, a PR afirma:
Pra mim, o principal objetivo é eles escreverem... Escreverem e falarem... Em situações de interação, de
interlocução, sobretudo mais formais, que exijam um conhecimento mais formal da língua. [...] Pra mim, o
sentido de ensinar gramática é pra esse, é pra servir pro texto, é pra eles escreverem melhor, é pra eles
compreenderem melhor o funcionamento da língua, é pra eles perceberem que as palavras se organizam... as
palavras se organizam... os textos se organizam de uma determinada maneira e que algumas coisas podem ser
mudadas e que outras não podem ser mudadas. Por exemplo: quando eu trabalho advérbio, aí eu peço pra
eles mudarem, por exemplo, o advérbio de posição. [...] Pra eles perceberem que as palavras se organizam de
tal forma que produza sentido, e isso é o principal objetivo do ensino de língua.
Figura 21: Comentário sobre os objetivos do eixo da análise linguística (PR)
De acordo com o depoimento acima destacado, a PR avalia que as práticas de análise
linguística na escola devem visar ao aprimoramento do desempenho linguístico dos alunos,
184
principalmente na escrita e na fala. Nesse trecho, ela já chega a fazer referência direta à inclusão
das “situações de interação” ou “de interlocução” na aula de português, evidenciando o caráter
contextual de sua abordagem quanto aos conhecimentos linguísticos. Ela também vincula as
práticas de análise linguística a uma compreensão mais aprofundada por parte dos alunos acerca
do funcionamento da língua. Para tanto, menciona a importância de que eles percebam a
organização das palavras no texto e a implicação desse arranjo para a produção de sentidos. A
concepção da PR quanto ao trabalho com a análise linguística e ao modo como ela entende que
esse eixo deve ser explorado particularmente no ensino fundamental fica clara também no
próximo fragmento, quando a PR reitera o seu enfoque nos usos situados em detrimento da
descrição linguística e quando afirma levar em consideração o conhecimento intuitivo que o
aluno tem na condição de falante da língua (a “gramática internalizada”, no dizer da PR):
[...] Eu não coloco o foco na descrição. Eu coloco o foco nos usos, certo? Pelo menos eu acredito nisso, que
no ensino fundamental a gente precisa ensinar a língua... Ensinar não porque eles são usuários da língua, eles
já são falantes e já têm competência, né? A gente só precisa fazer uns ajustes, uns encaminhamentos e tal, mas
eles são usuários da língua e devem saber usar muito bem, aprendem desde cedinho e vão percebendo que
são... que já têm uma gramática internalizada, né? Eu acho que a gente precisa, de novo... O desafio nosso é
mostrar muito mais a gramática que eles precisam usar, a língua que eles precisam usar em situações mais
formais de interação, né?
Figura 22: Comentário sobre o enfoque nos usos linguísticos em detrimento da descrição (PR)
No fragmento de fala acima, a PR deixa claro que entende o ensino fundamental como
uma etapa de escolarização em que é preciso garantir o domínio da língua, em vez de se
concentrar em conhecimentos abstratos que constituam o saber sobre a língua. A necessidade de
intensificar, nos níveis iniciais, o convívio com circunstâncias de uso da língua, oportunizando
aos alunos a diversificação de situações em que eles possam desenvolver atividades linguísticas e
interagir verbalmente, tem o respaldo de muitos dos estudiosos do ensino de língua materna (cf.
ANTUNES, 2007; FRANCHI, 2013 [1987]; MENDONÇA, 2006; SUASSUNA, 2012). Tal
recomendação não implica a exclusão de momentos de reflexão linguística nas aulas de português
das séries iniciais, mas a assunção de que é preciso priorizar a formação de usuários da língua, e
não de analistas (cf. MENDONÇA, 2006). Sobre essa questão, Possenti (1997 [1984], p. 38)
argumenta: “Não faz sentido ensinar nomenclaturas a quem não chegou a dominar habilidades de
utilização corrente e não traumática da língua escrita. Isso não significa que a escola não refletirá
sobre a língua, mesmo porque esta é uma das atividades usuais dos falantes e não há razão para
reprimi-la.”. Noutras palavras, as reflexões linguísticas das séries iniciais devem estar ainda mais
185
integradas às atividades linguísticas desenvolvidas, sendo mais adequado, segundo os autores
mencionados, adiar a teorização mais genérica e abstrata para os anos posteriores, quando se
espera que os alunos tenham adquirido maior experiência com as habilidades de uso da língua.
Outro aspecto suscitado pelo depoimento da Figura 22 é o reconhecimento da PR de que
o trabalho escolar com a linguagem é uma continuação do envolvimento do aluno com práticas
de uso da língua nos espaços sociais dos quais ele faz parte fora da escola (“[...] Eles são usuários
da língua, eles já são falantes e já têm competência, né?”). Tal concepção da PR tende a favorecer
um afastamento do artificialismo rechaçado por Geraldi (1997b [1984], 1997c [1984], 1991) nas
práticas de linguagem típicas do ensino tradicional de língua materna. Ao mesmo tempo, a PR
percebe que a abordagem do professor de português tem suas especificidades, não se
confundindo com as aprendizagens que os alunos, enquanto sujeitos de linguagem, vivenciam nas
interações cotidianas externas à escola. Segundo a docente, cabe a ela expandir as possibilidades
de expressão dos alunos, orientando-os para o uso adequado da língua em circunstâncias
interlocutivas que demandem maior grau de formalidade (“O desafio nosso é mostrar muito mais
a gramática que eles precisam usar, a língua que eles precisam usar em situações mais formais de
interação, né?”).
5.1.1.2 Relação entre análise linguística e leitura (PR)
As falas da PR destacadas no subitem anterior evidenciaram que, no trabalho com a
análise linguística, ela prioriza os usos da língua em detrimento das categorizações gramaticais.
Vimos, entretanto, que a PR associa bastante conhecimentos linguísticos e situações concretas de
interação verbal pela via da produção de texto, como o faz Geraldi (1997b [1984], 1991). Neste
subitem, procuramos dar ênfase aos momentos em que a PR explicita como entende e como
coloca em prática o diálogo entre a reflexão linguística e a leitura.
Um dos pontos concernentes a essa articulação que as falas do subitem anterior já
indiciam é o fato de a PR explicar que desenvolve sua prática de ensino em torno de um gênero
textual, o que a leva a escolher um ou mais textos para pensar as atividades referentes aos demais
eixos didáticos a serem desenvolvidas. Nos três excertos abaixo, ela reafirma essa forma de
organização do ensino, demonstrando encontrar nos gêneros textuais um ambiente propício à
abordagem de determinados conteúdos de análise linguística:
186
Eu seleciono pelo menos um ou dois [gêneros] por unidade pra fazer um estudo mais aprofundado. Mas não
quer dizer que eu não veja outros gêneros com eles, revisite outros gêneros, como poema ou outros gêneros
textuais que já tenham sido trabalhados em outras unidades.
[...] Dependendo do conteúdo e do gênero textual que proporciona isso [trabalhar análise linguística a partir
do texto]... porque você tem que ter essa inter-relação, essa interface do gênero textual com o conteúdo, né, de
sistematização linguística, porque uns promovem mais, facilitam mais o trabalho com determinado conteúdo
de sistematização linguística, e outros não.
Eu tento partir de um texto, sempre partir de um... sempre procuro partir de um texto pra trabalhar análise
linguística... E quando eu penso no gênero textual que eu tô trabalhando, eu já penso que ganchos ou recortes
eu posso fazer ali... que... que tipo de estudo linguístico eu posso fazer a partir daquele gênero textual, certo?
E quando é um conteúdo que é mais forçação de barra, eu parto do texto também... Mas assim... Eu não
consigo contextualizar tão bem.
Figura 23: Comentários sobre a relação entre análise linguística e leitura pela via dos gêneros
textuais (PR)
Os fragmentos acima atestam que os gêneros textuais são o caminho através do qual a PR
procura articular os eixos da análise linguística e da leitura, pois ela busca identificar o “tipo de
estudo linguístico” que pode fazer a partir do gênero focalizado durante a unidade (cf.
MENDONÇA, 2007b). Entretanto, a PR afirma, em um dos depoimentos da Figura 23, que nem
todos os gêneros favorecem a abordagem contextualizada dos conhecimentos linguísticos. Tendo
em vista que, na descrição do percurso prototípico de sua prática de ensino explicitado no
depoimento transcrito na Figura 20, a PR alega explorar aspectos formais e funcionais do gênero
estudado, pode-se supor que, ao ser questionada particularmente acerca da análise linguística, a
PR detém-se nos conteúdos mais estritamente vinculados à tradição gramatical. Afinal, os
elementos elencados por ela no fragmento da Figura 20 já configuram um trabalho de análise
linguística em torno de gêneros, pois, para realizá-lo, ela precisa levar os alunos a interromper o
fluxo da leitura para concentrarem-se em aspectos pontuais do texto e, através de sua mediação,
refletirem acerca do modo como esses elementos funcionam numa situação interlocutiva concreta
materializada no texto lido.
Durante a entrevista, a professora formulou alguns exemplos que representassem a sua
tentativa prática de fazer análise linguística e leitura dialogarem. Esses exemplos reforçam a
nossa hipótese de que, ao afirmar que alguns gêneros não favorecem a abordagem
contextualizada dos conhecimentos linguísticos, a PR se referia sobretudo aos conteúdos da
tradição gramatical. Um deles era um trabalho que ela estava, à época, começando a desenvolver
com seus alunos. Até ali, já havíamos acompanhado os primeiros contatos dos alunos com a carta
do leitor, e, como veremos nas análises das aulas observadas, a PR havia sim explorado, até esse
187
momento, as especificidades linguístico-discursivas do gênero. No entanto, o exemplo que ela
nos traz é o trabalho com a concordância verbal, que ainda começaria a ser realizado na ocasião
da entrevista.
Eu penso que a carta do leitor é um gênero de texto que vai... que me... que vai proporcionar um trabalho com
concordância... concordância verbal. E esse é um conteúdo assim... que eu sinto muito no dia a dia deles. Eles
usam muito “nós vai”... É muito comum nessa comunidade aqui eles usarem... fazerem muito essa
concordância... “Nós vai”, “nós quer”, “nós faz”, sabe? Então, eu preciso mostrar pra eles que, além dessa
forma que eles usam, existe uma outra forma, e que essa outra forma vai ser cobrada deles em determinados
espaços, em determinados momentos da vida deles. E eu não vou absolutamente partir pra anotação...
“Concordância verbal é isso, concordância verbal é aquilo”, exemplos de concordância verbal, pá pá pá pá
pá pá... Eu não vou fazer isso. Eu espero que o professor do ensino médio faça isso. Mas num sétimo ano eu
não vou fazer esse tipo de estupro mental não. Eu vou partir dos textos. E eu gosto muito de trabalhar
concordância verbal assim. Por exemplo: tem cartas em que... algumas cartas são escritas coletivamente, né?
Então, o texto tá todo no plural. Então, o sujeito tá lá no plural, a pessoa que está falando tá lá no plural, a
concordância tá toda de acordo com o sujeito, que tá no plural, não é? Aí, eu vou com eles: “Vamos imaginar
que essa carta fosse escrita por uma única pessoa”. Não é? “Uma única pessoa escrevesse... Como é que esse
texto ficaria?” Aí sim faz sentido pra mim ensinar esse tipo de gramática, certo? Porque é do dia a dia deles, é
da vida deles, e a gente tá estudando concordância.
Figura 24: Descrição de trabalho com a concordância verbal a partir do gênero carta do leitor
(PR)
Duas questões suscitadas pelo comentário da PR, a nosso ver, merecem atenção. A
primeira é que o “gancho” que ela afirma, na Figura 23, procurar encontrar nos gêneros
trabalhados para explorar um determinado conteúdo de análise linguística não advém das
especificidades do gênero que ela elencou na Figura 20, quando descreveu sua prática de ensino
num plano mais geral. O “gancho” não é um elemento que constitua uma marca linguística
característica do gênero, que o identifique como tal. A concordância verbal, da maneira como a
PR descreve, é um fenômeno linguístico que poderia ser estudado por meio de qualquer outro
gênero textual, pois o que está sendo explorado no exemplo da PR não é a adequação do emprego
da concordância verbal segundo a norma de prestígio ao contexto de circulação do gênero e aos
interlocutores envolvidos. O que parece estar sendo trabalhado é a relação entre a flexão dos
verbos e os sujeitos a que eles se referem. Com isso, não queremos dizer que a PR não reflita com
seus alunos sobre as marcas linguísticas do gênero, pois, no estudo do gênero carta do leitor, a PR
procurou explorar a linguagem utilizada nos textos lidos em sala de aula, relacionando-a, por
exemplo, com o público-alvo das cartas e contrastando a forma como essa linguagem aparecia
nas diferentes cartas que trazia para a turma. O que estamos ressaltando aqui é o curioso fato de,
a despeito do trabalho que acabara de iniciar com o grupo-classe investigado, a PR referir-se à
188
possibilidade de explorar nos textos lidos conteúdos vinculados à tradição gramatical sem
abordá-lo como uma marca típica do gênero em pauta.
Outro ponto que merece ser comentado em relação ao excerto da Figura 24 é a opção da
PR por uma metodologia de ensino construtivo-reflexiva (cf. BRASIL, 2013). Observe-se que ela
se recusa a incorrer no caminho tradicionalmente utilizado para o ensino de gramática: definição-
exemplificação-exercitação. Ela se nega a trazer de antemão a conceituação pronta em anotações
no quadro, por exemplo. É apenas após os alunos terem, na prática, passado os verbos que
remetem ao(s) autor(es) da carta do singular para o plural que a PR iniciará coletivamente uma
reflexão sobre o funcionamento da concordância verbal tal como prescreve a gramática
normativa. Cumpre salientar também que a PR não trata o fenômeno da concordância verbal em
termos de correção linguística, e sim no contexto da variação linguística. Longe de menosprezar
as concordâncias próprias das variedades com as quais os alunos convivem nos grupos sociais de
que fazem parte, a PR chama a atenção dos alunos para a adequação dos usos de prestígio em
situações específicas de interação.
Impulsionadas pela recusa da PR em disponibilizar aos alunos previamente um texto
teórico que explicasse os princípios da concordância verbal, perguntamos a ela se havia, em sua
prática, um momento de sistematização do conceito explorado durante a análise coletiva. Para
responder a essa dúvida, a PR trouxe um outro exemplo de trabalho que havia desenvolvido com
os alunos assim que começamos a acompanhar suas aulas.
PR: Qual foi o conteúdo? Ah, foi sobre o uso da terminação verbal –ão e –am. [...] Esse é um conteúdo que dá
pra trabalhar tranquilamente sem forçar a barra no texto, né? E eles vão perceber, como eles perceberam,
que existem palavras, inclusive, que dão pista pra dizer se aconteceu ou se vai acontecer, não é? Então, por
exemplo, tem um “ontem”, tem “a semana passada”, tem um “na próxima semana”... E aí eles vão perceber a
partir daí, dessas... desses advérbios ou locuções adverbiais... que o texto precisa ser escrito com –ão, que
precisa estar escrito com –ão, porque tá se tratando de alguma coisa futura, né? Então, eles compreenderem
isso... Aí, no final, eu digo: “Pronto. Agora, vocês vão, em dupla... vocês vão escrever o que é que vocês
perceberam... o que é que vocês entenderam a partir disso que a gente viu”. Aí, eles foram lá, e aí você viu a
atividade... Eles vão lá e anotam e escrevem, né? Esse conteúdo...
PESQUISADORA: E você corrige com eles?
PR: Depois eu vejo no caderno. Depois eu gosto de ver no caderno porque eu gosto de ver a produção
individual ou... Individual não que eu não gosto de fazer esse tipo de atividade individual. Eu gosto que eles
conversem entre eles e coloquem em tópicos. Eles ainda, dependendo da turma, não conseguem topicalizar...
Aí eles... Mas eles escrevem o que eles entenderam, e pra mim aquilo dali é importante. E se tiver algum
conceito que fique estranho, que saia do que foi visto, aí eu chamo, retomo com a dupla, e aí eu faço aquele
trabalho mais no miudinho.
Figura 25: Descrição de trabalho de sistematização de conceito gramatical (PR)
189
Pelo percurso descrito no fragmento de entrevista acima, vemos que a PR conclui a
prática de análise linguística com a elaboração do conceito pelos próprios alunos. Como propõe
Geraldi (1991), a PR parece priorizar a produção de conhecimentos em detrimento da reprodução
de análises pré-fabricadas. Prova disso é que ela afirma que importa eles escreverem o que
entenderam. Tanto o trabalho descrito pela PR na Figura 24 quanto o da Figura 25 mostram que,
nas práticas de análise linguística, ela privilegia o ato de tomar a língua(gem) como objeto de
reflexão (cf. GERALDI, 1991, 1996), pois a sistematização do conhecimento acerca da
concordância verbal e do emprego das terminações verbais –am e –ão decorre da observação dos
fenômenos em textos concretos. Na avaliação da PR, é mais importante perceber como os alunos
elaboraram as suas conclusões teóricas a partir da análise coletiva prévia do que fornecer-lhes os
resultados das análises dos especialistas para que procurassem reproduzi-las. Podemos
identificar, portanto, no direcionamento didático da PR, um percurso que vai das atividades
epilinguísticas às metalinguísticas (cf. GERALDI, 1991, 1996; FRANCHI, 2013 [1987]).
O relato dos outros exemplos de atividades que partiam da leitura para impulsionar a
reflexão sobre os fenômenos linguísticos tiveram o intuito de ilustrar os critérios que faziam a PR
considerar alguns conteúdos gramaticais favoráveis à abordagem didática por meio de textos e
baseadas nos efeitos de sentido provocados pela mobilização dos recursos linguísticos estudados
e acreditar que outros conteúdos não davam margem a esse tipo de trabalho.
Se fala muito sobre a gramática contextualizada. Mas nem tudo dá pra você contextualizar. Nem tudo... É uma
forçação de barra muito grande às vezes você pegar determinado conteúdo e trabalhar... Por exemplo:
substantivo. Você trabalhar a questão do substantivo é uma coisa maravilhosa pra você trabalhar no texto,
porque você... é fácil você mostrar pra um aluno que, se você tirar todos os substantivos do texto, o texto não
vai ter sentido nenhum. Então, é fácil mostrar a um aluno, por exemplo, no texto, que a base do texto é o
substantivo... que ninguém fala nada nem consegue escrever nada se o texto não tiver substantivo. Então, é
fácil o aluno entender isso. Você pega um texto e tira todos os substantivos e o aluno vai perceber
imediatamente a estranheza... vai perceber a estranheza disso, né? Trabalhar com adjetivo é uma coisa
também muito gostosa e prazerosa de você trabalhar, né, porque você faz a mesma coisa no sentido de pegar
os sujeitos de... de tudo o que tá sendo falado no texto e ver quais são as qualidades que estão sendo
atribuídas... àquele sujeito, né, àquela pessoa, àquele objeto ou àquele lugar. Isso também é uma coisa
gostosa de se trabalhar no texto. Trabalhar advérbio é uma coisa também muito gostosa de trabalhar, porque
você pega um texto sem os advérbios, lê com a turma... Eu fiz isso num sétimo ano... Pense numa experiência!
A partir de um livro de um pessoal que eu acho que nem escreve mais esse livro... é... “Ortografia...” é...
Carmen Perrota, eu acho, alguma coisa assim, é uma das autoras. Então, ela sugeria um trabalho assim...
Você pegar um texto com nenhum advérbios... Depois, você colocar o advérbio X... Como é que aquele texto
ficaria com aqueles advérbios? Vamos dramatizar esse texto... Ave Maria! Que trabalho maravilhoso pra o
aluno perceber a falta que faz um advérbio... como um advérbio, sendo considerado – assim, isso é um
conhecimento nosso – como um termo acessório, ele faz tanta diferença num texto. Então, advérbio de
afirmação, de negação... E o texto era reproduzido diversas vezes com advérbios diferentes. [...] Agora, vamos
fazer isso, eu fico pensando, por exemplo, com as... com os... por exemplo... os conectores, com as
conjunções... [...] Então, tem assunto que é complicado você... É... Vírgula. A vírgula... A pontuação de um
190
modo geral, a vírgula, o ponto, a exclamação, a interrogação, é um conteúdo gostoso de se trabalhar... que dá
pra você trabalhar bem a partir do texto. Mas eu vejo outros conteúdos que não dá. Você tem que fazer... tem
que recorrer à aula mais tradicional mesmo... e é assim que eu faço. Eu procuro, na medida do possível, ser
honesta com aquilo que eu acredito [...].
Figura 26: Exemplos de conteúdos propícios a serem trabalhados a partir de textos (PR)
Novamente, nos exemplos enumerados pela PR, aparecem conteúdos vinculados à
tradição gramatical: desta vez, as classes de palavras. Entretanto, no lugar de ensinar as
detalhadas categorizações dos compêndios gramaticais (substantivo simples, composto, concreto,
abstrato, pátrio, primitivo, composto, etc.) e de solicitar aos alunos a reprodução dessa análise
descritiva, a PR opta por uma análise comparativa de textos construídos de diferentes formas
(com advérbios e sem advérbios, por exemplo) para, aos poucos, mediar uma reflexão sobre o
papel das classes de palavras estudadas na construção de sentidos do texto. Assim, nas ocasiões
em que a PR entende que há possibilidades de abordar o conteúdo do ponto de vista da produção
de sentidos em circunstâncias concretas de uso da língua, ela o faz. Contudo, ela nem sempre
encontra um caminho para fazê-lo e, então, opta por uma abordagem mais tradicional.
Procuramos investigar com mais atenção os critérios que a faziam estabelecer uma distinção entre
os conteúdos propícios à abordagem textual-discursiva e os conteúdos que demandam uma
abordagem tradicional. No subitem seguinte, tocaremos nessa questão.
5.1.1.3 Espaço das práticas e dos conceitos vinculados ao ensino tradicional de gramática (PR)
Nos comentários do subitem anterior, a PR forneceu algumas pistas dos critérios que a
levavam a optar, no tratamento didático dos conhecimentos linguísticos, ora por uma abordagem
textual-discursiva, ora por uma abordagem tradicional. Essa escolha, pelo que ela explica na
Figura 23 e na Figura 26, depende do fenômeno linguístico trabalhado. Ela entende que, para
alguns conteúdos, não há possibilidade de utilizar efetivamente o texto como ponto de partida
para refletir sobre o funcionamento do fenômeno linguístico em estudo sem “forçar a barra”. Tal
discernimento, como é de se esperar, atende a uma lógica construída pela PR. Neste subitem,
apresentamos novos dados da entrevista que favoreçam o desvelamento dessa lógica e tecemos
algumas reflexões sobre o modo como a PR mobiliza práticas e conceitos vinculados ao ensino
tradicional de gramática em sua atuação docente.
191
Na Figura 26, após explicar as possibilidades que encontra para explorar algumas classes
de palavras (substantivo, adjetivo e advérbio) vinculando-as aos efeitos de sentido que provocam
no texto, a PR também cita um exemplo de conteúdo que considera inapropriado à
contextualização explicitada no trabalho com as demais classes de palavras. Para ela, não parece
possível ensinar as conjunções partindo da forma como o sujeito pode com elas operar para
construir sentidos em um texto escrito, salvo pela via estruturalista/tradicional. Diante do
comentário da PR, procuramos formular perguntas que a levassem a verbalizar mais
objetivamente os fatores que motivavam tal impressão. Vejamos abaixo um excerto de fala da PR
em que ela traz outros exemplos do que considera “forçação de barra”, isto é, o ato de mascarar
uma abordagem didática tradicional por meio de uma roupagem supostamente renovada do
ensino:
PR: E alguns conteúdos como encontros consonantais, dígrafos, não é? São conteúdos que eu tô tentando
lembrar agora que eu trabalho com os alunos, que é forçação de barra você dizer que tá trabalhando... e eu
não vou dizer que... eu pego um texto e... claro, eu procuro explorar a parte de interpretação, de compreensão
do texto e tal e depois vir um pouco com gramática pra não ser tão sofrido. Mas eu vou usar o texto como
pretexto, como mero pretexto pra o ensino de gramática. Eu tenho consciência de que eu estou sendo... eu
estou sendo estruturalista quando eu faço esse tipo de trabalho. Eu sei...
PESQUISADORA: E você acha o quê disso?
PR: Eu acho normal. Na minha cabeça... E é como eu te disse com muita humildade, pode ser que eu precise
ler mais Irandé [Antunes], encontrar... [...] Eu encontrei ela por quinze anos, e muito do que eu sei, muito do
que eu aprendi foi nesses encontros sistemáticos... E muito do que eu li nos livros dela, né, que eu acredito, e
ela é uma defensora dessa gramática, né? E ela acha que há jeito pra tudo, mas nós, enquanto grupo lá na
própria escola, nós discordávamos, e até hoje eu discordo. [...] Não existe texto sem gramática nem vice-
versa... nem existe gramática sem texto. O texto está pra gramática como a gramática está pra o texto, certo?
Mas nem todas as situações possibilitam você didatizar um conteúdo. Então, você tem que correr pra forma
mais estruturalista mesmo. Você tem que pegar um texto... Eu pelo menos procuro pegar um texto, partir de
um texto... Procuro partir de... E o texto pode ser uma frase. Não é um texto? Uma palavra pode ser um texto...
Então, pode ser uma frase, pode ser um texto curto... E trabalhar alguns conteúdos ali. E é como eu te disse, e
eu digo com muita naturalidade e com muita honestidade... Eu procuro encontrar uma forma. Eu procuro,
diante do que eu já li, eu procuro encontrar uma forma pra não estuprar o ensino de gramática, certo? Agora,
há conteúdos que eu não tenho competência pra trabalhar, e aí eu recorro ao estruturalismo e eu não vejo mal
nenhum nisso. Agora, eu vou lhe dizer... Há conteúdos que eu não trabalho com os meus alunos. Há conteúdos
que eu não vejo necessidade, não vejo necessidade. Eu posso até trabalhar... por exemplo, o dígrafo... eu
posso até trabalhar no dia a dia. Eu posso trabalhar a partir de um ditado, eu posso trabalhar a partir... eu
posso sistematizar... “Escrevam palavras que vocês conhecem com esse dígrafo...” Sobretudo os dígrafos
“sc”, “xc”, “sç”, que são os mais complexos pra eles, né, eu trabalho. Agora, parar pra “Os dígrafos são
esses...”, eu não trabalho isso, não trabalho. Se eu estou sendo desonesta negando esse conhecimento ao meu
aluno dessa forma, eu vou ter que pagar esse pecado um dia. Mas eu trabalho muito consciente. Eu não
trabalho muito consciente do que eu tô fazendo.
Figura 27: Comentário sobre a recorrência a práticas e conceitos vinculados ao ensino
tradicional de gramática (PR)
192
Um aspecto a ser observado na fala da PR é que a reflexão sobre a própria prática parece
permear a sua atuação profissional. Algumas afirmações presentes no fragmento acima atestam
que essa reflexão é marcada pelos saberes que ela adquiriu ao longo de sua formação acadêmica,
quer por aqueles de natureza disciplinar, quer por aqueles de natureza pedagógica (cf. TARDIF,
2002). São três os momentos da fala da PR que mostram mais explicitamente a origem desses
saberes. O primeiro é quando ela avalia que, na abordagem à qual recorre para ensinar os dígrafos
ou outros conteúdos para os quais não encontre uma via textual-discursiva de ensino, ela se limita
ao nível estrutural da língua e utiliza o texto como pretexto para o ensino de gramática. São
vários os autores da esfera acadêmica que assim encaram o isolamento de unidades menores do
texto sem o retorno ao nível macro de análise, dentre os quais podemos mencionar Geraldi
(1991), Mendonça (2006) ou a própria Irandé Antunes (2007), a quem a PR remete abertamente
em sua fala, dada a importância que a autora teve em sua formação profissional. O segundo
momento é quando a PR enfatiza a intrínseca relação entre texto e gramática; e o terceiro, quando
discorda do posicionamento que atribui a Irandé Antunes de que sempre há um caminho para que
os conhecimentos linguísticos sejam trabalhados por meio dos textos. De fato, Antunes (2003,
2007) chama atenção para a impossibilidade de se produzir texto (e linguagem) sem gramática,
ainda que ressalve que a gramática não é o único componente que entra em jogo na produção de
sentidos. Quanto à terceira colocação da PR, Antunes (2007, p. 138-139, grifos da autora), ao
advogar pela convergência das atividades de ensino na direção do texto, afirma:
Em última instância, a proposta é que o texto (não a gramática) seja o centro do
programa. O eixo. Ele é que comanda. A gramática vem como mediação. Na verdade, só
no convívio com a análise de textos é possível a descoberta do quanto a gramática é
importante. Evidentemente, tudo pode ser visto nos textos. Lá é que todo tipo de
fenômeno ocorre. Para o trabalho em sala de aula, a sequência dos pontos a serem
explorados vai depender do planejamento geral que a escola ou o professor elegeram.
No que diz respeito ao tratamento didático de aspectos gramaticais, a autora justifica a
necessidade de direcionar o ensino para o texto quando reforça, como se pode verificar no
fragmento abaixo, a existência de dois elos indissociáveis: a relação entre texto e gramática e a
relação entre texto e linguagem.
O texto não é a forma prioritária de se usar a língua. É a única forma. A forma
necessária. Não tem outra. A gramática é constitutiva do texto, e o texto é constitutivo
da atividade da linguagem. Sua exploração em sala de aula tem outras razões que deixar
as aulas menos monótonas e mais motivadoras. Tudo o que nos deve interessar no
estudo da língua culmina com a exploração das atividades textuais e discursivas.
(ANTUNES, 2007, p. 130, grifos da autora)
193
A PR se vale desses conhecimentos teóricos para construir a sua prática, mas os filtra em
função das circunstâncias que encontra no ambiente de trabalho (cf. TARDIF, 2002;
CHARTIER, 2000a [1995]). É por essa razão que ela afirma não trabalhar todos os conteúdos,
mas apenas aqueles que considera necessários e da forma que considera adequada. Assim, para
trabalhar uma convenção ortográfica como os dígrafos, a PR, embora seja impelida a concentrar-
se na estrutura da língua (até pela natureza do fenômeno em questão), reitera a valorização
anteriormente afirmada quanto às atividades que exploram os conhecimentos prévios do aluno
em detrimento de explicações que visem à transmissão de uma teoria já fabricada. Veja-se que,
apesar de recorrer a um exercício cristalizado pela cultura escolar como o é o ditado, a PR
procura trabalhar a partir das palavras de antemão conhecidas pelos alunos e recusa o clássico
tripé definição-exemplificação-exercitação para apresentar o conceito de dígrafo aos alunos. Ela
parece julgar desnecessária essa teorização e priorizar a escrita efetiva de palavras nas quais os
dígrafos sejam utilizados.
No intuito de explicar com mais precisão os critérios que a faziam julgar alguns conteúdos
como propícios ao trabalho a partir de textos e outros como desfavoráveis a tal abordagem, a PR
afirma que estes remetem ao “mundo da gramática”, ao passo que aqueles remetem ao “mundo
das palavras”. Solicitamos à PR que definisse melhor esses termos para que entendêssemos os
princípios dessa categorização. Apesar de ter reconhecido uma dificuldade em verbalizar esse
conhecimento, a PR fez algumas tentativas de desanuviá-lo. Procuramos, a partir das pistas que
trazia em sua fala, compreender o ponto de vista da PR. Reunimos abaixo os fragmentos em que
ela discorre sobre as categorias “mundo das palavras” e “mundo da gramática”:
Quando eu digo as... os conteúdos que são mais do mundo da... das palavras... o mundo do texto.... Os
substantivos, os adjetivos, os verbos, não é? Que são conteúdos mais do mundo... do mundo palpável. E
aqueles que remetem mais ao mundo da gramática... Aquela gramática... Aquela gramática como a gente diz,
assim, da nomenclatura... Aquela gramática mais descritiva... Descritiva no sentido de... Não a gramática
descritiva como Maria Helena Neves... Maria Helena de Moura Neves discute naquela... Não, eu não tô
falando dessa gramática. Eu tô falando daquela gramática que descreve a língua, que apenas descreve... “A
língua é isso, isso e isso...” “Faça isso, isso e isso...” Tipo Pasquale [Cipro Neto], que ganha não sei quanto
dinheiro aí pra dizer “é assim, não é assim”...
Quando eu digo “mundo das palavras”, é o mundo mais palpável. Os substantivos são palavras... são mais
palpáveis, não é? Você diz “porta”, “janela”... Os adjetivos, você diz “bonito”, você diz “feio”... Você diz
“cedo”, você diz “cedinho”... Tem como você diferenciar “cedo” de “cedinho”, “bonito” de “bonitinho”,
não tem? Isso tá mais no sentido, no mundo das pessoas, no viver, da vida... É nesse sentido que eu tô dizendo.
E tem palavras como “se”, questões como o emprego do “que”, do “se”, entende? Que são... Isso é o meu
ponto de vista, certo? Então, é uma forma... uma forma bem peculiar de se pensar, né? O “que”, o “se”, os
dígrafos, a diferença entre um adjunto adnominal pra um adjunto... pra um complemento nominal... Esses
conteúdos... Talvez eu sinta, mas não saiba ainda... não saiba traduzir tão claramente por meio de palavras
194
isso que eu sinto, tás entendendo? Mas eu sinto dificuldade em algumas... Como eu te disse, pode ser até
incompetência minha, mas eu sinto dificuldade de trabalhar alguns conteúdos e contextualizá-los mais e dar
mais sentido... dar mais sentido do ponto de vista, assim, do texto. Não sei se ficou muito claro não, mas...
E aí eu te exemplifico encontro consonantal, dígrafos, esses conteúdos mais assim... como eu te disse... que
não são muito, na minha cabeça, voltados pra o mundo... o mundo palpável... o mundo... o mundo da vida... o
mundo do sentido, de fazer sentido, da construção dos sentidos.
Figura 28: Critérios de diferenciação entre conhecimentos linguísticos favoráveis e
desfavoráveis à abordagem didática a partir de textos (PR)
A PR tenta definir o termo “mundo das palavras” associando-o a outros termos, a saber:
“mundo palpável”, “mundo das pessoas”, “viver”, “mundo da vida”, “mundo do sentido”, “fazer
sentido”, “mundo da construção de sentidos”. Além de mencionar essas expressões, a PR elenca
exemplos de fenômenos linguísticos que fariam parte do que ela chama de “mundo das palavras”.
São eles os substantivos e os adjetivos. Já para definir o “mundo da gramática”, a PR remete à
“gramática descritiva”, deixando claro que, com essa expressão, ela se refere à descrição própria
da tradição gramatical, aquela que atribui nomenclaturas aos elementos da língua e que se detém
na norma linguística de prestígio (“tipo Pasquale”). Entretanto, ao elencar exemplos de
fenômenos linguísticos que se enquadrariam no que a PR chama de “mundo da gramática”, ela
demonstra que a expressão não alude à descrição gramatical como um todo, mas apenas a uma
parte dela. A PR cita os seguintes tópicos constantes dos compêndios gramaticais como
pertencentes ao “mundo da gramática”: o emprego do “que” e do “se”, os encontros
consonantais, os dígrafos, a distinção entre adjunto adnominal e complemento nominal.
Um primeiro ponto que causa estranhamento na explanação da PR é a exclusão dos
substantivos e adjetivos das categorias que pertencem ao “mundo da gramática”, tendo em vista
que esse grupo é definido como aqueles que remetem às descrições da tradição gramatical. Essa
constatação nos leva a descartar o pertencimento ao aparato taxionômico da gramática tradicional
como critério definidor dos fenômenos do “mundo da gramática”, pois as categorias atribuídas ao
“mundo das palavras” também compõem esse aparato. O que faz um fenômeno linguístico fazer
parte do “mundo das palavras” é o fato de englobar itens lexicais cujo significado remeta a
entidades do mundo (“porta”, “janela”, “bonito”, “feio”, “cedo”, como ilustra a PR), mesmo
quando esses itens não figuram em um texto qualquer. Cada um desses termos enquanto
significantes, sozinhos, fazem referência a pessoas, coisas, sentimentos, estados, qualidades,
dentre outras entidades (seus significados). É por isso que ela define esse grupo de fenômenos
como mais “palpáveis”. Os fenômenos pertencentes ao “mundo da gramática” se manifestam por
195
meio de palavras e expressões que, sozinhos, não têm referente entre as entidades do mundo. É
preciso localizar esses termos em um contexto concreto de interação para atribuir possíveis
sentidos a eles. Muitas vezes, eles não significam uma determinada entidade, mas cumprem
funções específicas de coesão no interior do texto, interligando partes do enunciado (como ocorre
com as conjunções e com alguns usos do “que”, reconhecidos pela PR como pertencentes ao
“mundo da gramática”). O “mundo da gramática” engloba, ainda, constituintes menores da língua
(como os dígrafos e os encontros consonantais), que não chegam sozinhos a constituir itens
lexicais, muito menos a ter um significado no “mundo palpável”. A despeito da lógica construída
pela PR, nem sempre a opção por uma abordagem tradicional ou textual-discursiva atende aos
critérios por ela apresentados. Na Figura 26, por exemplo, a PR incluiu a pontuação como um
conteúdo propício à exploração da construção de sentidos do texto, e certamente tal fenômeno
não poderia ser enquadrado como pertencente ao “mundo das palavras” ou ao “mundo palpável”.
Além da aparente inconsistência da separação dos fenômenos linguísticos em “mundo das
palavras” e “mundo da gramática”, há certa falta de clareza, como bem ressaltou a própria PR,
quanto aos critérios utilizados para definir a adequação de um trabalho estrutural ou textual-
discursivo (ao menos há uma dificuldade patente em verbalizar a lógica que norteia essas
escolhas didáticas).
Outro ponto que cumpre ressaltar é, mais uma vez, a influência das ideias de Irandé
Antunes nas concepções e na prática da PR, não apenas como decorrência das obras lidas pela
docente, mas também do convívio com a pesquisadora nos encontros de formação continuada já
mencionados nesta dissertação. Em dado momento da entrevista, a PR chega a associá-la a sua
“implicância” com os dígrafos e com a distinção entre adjunto adnominal e complemento
nominal. Curiosamente, é possível encontrar nas produções acadêmicas da autora excertos em
que, ao criticar a excessiva atenção que a escola confere a determinados conteúdos sem
relevância para o aprimoramento da competência comunicativa, ela menciona, juntos, os mesmos
tópicos citados pela PR quando tentou exemplificar o que entende por “mundo da gramática”.
Observem-se, por exemplo, os dois fragmentos abaixo:
No que se refere às atividades em torno da escrita, ainda se pode constatar: [...] a prática
de uma escrita que se limita a oportunidades de exercitar aspectos não relevantes da
língua, nessa altura do processo de apreensão da escrita, como, por exemplo, a fixação
nos exercícios de separação de sílabas, de reconhecimento de dígrafos, encontros
vocálicos e consonantais e outros inteiramente adiáveis. (ANTUNES, 2003, p. 25-27,
grifo da autora)
196
No que se refere a atividades em tono da gramática, pode-se constatar o ensino de: [...]
uma gramática da irrelevância, com primazia em questões sem importância para a
competência comunicativa dos falantes. A este propósito, valia a pena perguntar-se qual
a competência comunicativa que há em distinguir um adjunto adnominal de um
complemento nominal, ou, ainda, em reconhecer as diferentes funções do “que” ou do
“se”, coisas com as quais muito tempo de aula ainda é desperdiçado. (ANTUNES, 2003,
p. 31, grifo da autora)
Não estamos com isso sugerindo que Irandé Antunes tenha estabelecido a distinção
“mundo das palavras”/“mundo da gramática” a que se refere a PR, mesmo porque a obra da
autora é repleta de outros alvos de crítica do que considera irrelevante ou inadequado a um ensino
significativo de língua materna, isto é, a um ensino voltado para o desenvolvimento de
habilidades de leitura, escrita e fala. O que motiva as críticas de Antunes não são propriamente os
fenômenos linguísticos tomados como objetos de ensino, mas a perspectiva segundo a qual esses
fenômenos são abordados, que leva a escola a transformar o domínio da metalinguagem
gramatical no principal objetivo do ensino de português. É por isso que, na obra de Antunes
(2003), há alternativas de trabalho cuja preocupação central seja efetivamente o texto mesmo na
abordagem de fenômenos que a PR classifica como pertencente ao “mundo da gramática”, como
as conjunções (cf. ANTUNES, 2003, 2007, 2010). Ao associar a fala da PR às críticas de Irandé
Antunes, nosso objetivo é de explicitar a possível origem do grupo de fenômenos para os quais a
PR só encontra a possibilidade de uma abordagem tradicional/estruturalista ou mesmo cuja
necessidade de ensino não é identificada por ela.
Outros dados relevantes à categoria de análise enfocada neste subitem dizem respeito ao
momento em que perguntamos à PR sobre o espaço que a metalinguagem ocupava em sua prática
de ensino, ao que ela respondeu:
[...] Eu não sou uma antimetalinguagem, antimetalinguista, e nem sou uma anti... Eu acho que tudo tem o
lugar e a hora certa. Eu acho que, quanto mais maduros os alunos, você trabalha a metalinguagem, o nome
das coisas, né? Mas eu penso que, nas séries iniciais de ensino fundamental, é muito mais produtivo e muito
mais relevante pra o aluno saber como a língua funciona do que saber o nome das coisas da língua, tu tá
entendendo? Então, nesse sentido, a metalinguagem não faz muito sentido pra mim, pelo menos numa turma
de sexto, sétimo, até sétimo ano... E se eu for pegar Irandé, Irandé vai dizer até o nono ano não tem
necessidade disso. E muita gente critica Irandé por casa disso. Eu acho que no nono ano não... Talvez a partir
do nono ano... já no oitavo... você possa focar mais na questão da metalinguagem. Mas o fato de você tratar
do nome das coisas não impede que você trabalhe também o funcionamento das coisas, os usos das coisas da
língua. Então, o espaço que a metalinguagem ocupa no meu fazer pedagógico, nas minhas aulas, diariamente,
nas séries iniciais, sexto, sétimo ano, ocupa muito pouco espaço. Eu não deixo de dar nome às coisas, mas eu,
por exemplo, não cobro numa avaliação. Pra mim, avaliar... Eu avalio nessas séries, por exemplo, muito mais
se ele tá compreendendo o uso e muito menos se ele sabe o nome das coisas. Agora, mais adiante, no oitavo,
no nono, no ensino médio, aí sim, você já pode dar nome aos bois. E mesmo assim, [...] depende do conteúdo.
Figura 29: Comentário sobre o espaço da metalinguagem na prática de ensino (PR)
197
Mais uma vez, a PR demonstra priorizar as habilidades dos alunos relacionadas aos usos
linguísticos. Para tanto, ela procura avaliar a compreensão deles acerca do funcionamento do
fenômeno linguístico estudado. Apesar de não se recusar a tocar em questões relativas à
nomenclatura, a PR não se concentra nesse tipo de aprendizagem, não fazendo dela a finalidade
última do ensino. Mesmo quando opta por apresentar a metalinguagem aos alunos, a PR explica
que essa é a etapa final do trabalho em torno da análise linguística, quando os alunos já tenham
alguma familiaridade com o fenômeno previamente analisado, preferencialmente a partir de
textos. O depoimento da Figura 29, acima, indica que ela entende que o domínio da língua – o
aprimoramento das habilidades de uso – deve vir antes da introdução das terminologias por meio
das quais é possível falar sobre os fatos da língua, tal como defendem Antunes (2003, 2007),
Franchi (2013 [1987]), Geraldi (1997a [1984], 1991, 1996), Mendonça (2006), dentre outros
acadêmicos que se dedicaram a questões vinculadas ao ensino de língua materna, e mais
especificamente à abordagem dos conhecimentos linguísticos. Nesse sentido, a PR acredita que a
atenção à metalinguagem deva ser mais intensa nas séries finais do ensino fundamental e,
especialmente, no ensino médio.
Apesar desse posicionamento, a PR afirma não menosprezar a importância dos saberes
que historicamente a tradição gramatical produziu e o longo percurso das experiências de ensino
centrado nesses saberes, sobretudo se reconhecido o caráter processual da evolução de toda e
qualquer área de conhecimento: “Nós não estaríamos hoje pensando da maneira que estamos
pensando no ensino de língua mais significativo pra o aluno... Hoje nós não estaríamos pensando
nisso se a gente não tivesse tido o tradicionalismo e visto que muita coisa não dava certo.”.
Devido ao reconhecimento de um estado de construção contínua dos objetos estudados nas
disciplinas escolares e das práticas de ensino, a PR fez longos comentários acerca da trajetória
que trilhou no decorrer de sua formação profissional e do exercício do ofício de ensinar,
destacando as mudanças que se operaram progressivamente em suas concepções teóricas e em
sua forma de atuar. O depoimento da PR atesta a motivação, mais do que simplesmente teórica,
biográfica das ações por ela empreendidas na sala de aula, como sugere Tardif (2002):
[...] Eu tenho cinquenta anos e eu sou do tempo em que se fazia análise sintática e morfológica de frases e
frases e frases... Ditados e ditados e ditados e ditados eram comuns. Práticas como “escreva sobre as suas
férias” sem sentido ninguém... nenhum... sem saber pra que a gente tava escrevendo, por que tava
escrevendo... Era um texto que era escrito pra ninguém, não é? A gente escrevia sempre considerando a
professora. Então, como eu sou uma aluna desse tempo, eu fui também... e eu tenho cinquenta anos... eu fui
também uma professora assim, não é? Parte da minha vida, eu fui uma professora bastante tradicional, e eu
198
reproduzi muito isso, né? Com o advento da linguística, né, que é uma ciência muito nova, e eu sempre fui
uma pessoa muito inquieta... Eu sempre gostei muito de estudar, sempre gostei muito de estudar mesmo. Não
estudava porque era obrigação, sempre gostei muito... Então, depois que eu terminei letras, muitos anos
depois, eu voltei a estudar. Então, fiz especialização. Só que eu tive uma coisa muito boa, porque eu
trabalhava num colégio que investia... a diretora acreditava e sempre acreditou muito na formação
continuada do professor, não é? [...] Então, desses vinte e cinco anos [que a PR trabalhou nessa escola],
quinze anos a gente teve de assessoria com Irandé Antunes. É muito tempo. Então, quando eu fui fazer a
especialização, [...] eu já falava aquela língua que os professores tavam falando. [...] Então, eu sou dessa
geração. Eu me considero uma pessoa que tive uma... Veja, isso é uma contradição. Eu me considero uma
pessoa que tive uma boa educação em relação à língua, mas uma parte da língua... [...] No meu tempo, [...] a
gente não estudava pra entender o sentido daquilo que estava sendo dito. A gente estudava pra escrever,
estudava pra decorar as classes gramaticais, que eu sei decorada até hoje, e o que era cada classe gramatical.
Então, a gente não estudava pra analisar os fenômenos, os significados da língua, ou perceber que uma
palavra, dependendo do contexto, ela pode mudar até de classe gramatical. A gente não estudava pra isso.
[...] Eu sou de um tempo em que nós éramos estimulados a não falar. Era somente absorver e reproduzir do
jeito que foi dito, não é? Criar muito pouco. Então... E... Mas só que eu tive a sorte, o privilégio de passar por
esse processo, né, de passar por esse processo de não parar no tempo e me atualizar... me atualizar por meio
dos encontros com Irandé e de outros professores lá da Federal [Universidade Federal de Pernambuco] que
iam pra lá... Muita gente da Federal ia pra lá... Sistematicamente, Irandé... E fazer especialização, fazer
mestrado... E mesmo com cinquenta anos estar pensando no doutorado. [...] A minha formação inicial foi
essa, de uma educação bastante tradicional, e isso foi se modificando e eu fui acompanhando. Eu não fiquei
pra trás, eu não fui ficando pra trás, eu fui acompanhando.
Figura 30: Relato sobre experiência com o ensino de língua materna de aluna a professora (PR)
O relato da PR, acima transcrito, revela que o percurso inicial de sua trajetória
profissional sofreu uma forte influência das experiências que viveu enquanto aluna de língua
portuguesa. A imagem que a PR fazia da disciplina remete a práticas pedagógicas recorrentes no
ensino tradicional de português, tanto no que diz respeito aos objetivos de aprendizagem e ao
papel que se esperava do aluno (a reprodução dos saberes historicamente produzidos, sejam eles
categorias da tradição gramatical, convenções ortográficas ou modelos pré-fabricados de textos
escolares) quanto no que diz respeito aos tipos de atividades então requeridas (análise sintática e
morfológica de frases, ditados de palavras, memorização de classes gramaticais, produção de
textos dirigidos exclusivamente à professora). Chama atenção o momento em que, com base
nessa imagem, a PR julga que teve uma boa formação linguística na escola, algo que ela própria
considera uma “contradição”. Isso mostra que, apesar de sua atualização constante quanto às
orientações teórico-metodológicas para o ensino de língua materna (e aqui cabe destacar a forte
influência que a formação teórica parece ter exercido nas contínuas modificações em sua prática
docente) e de sua anuência a uma prática pedagógica que valorize a produção de conhecimentos
por parte dos alunos e que atente para a natureza sociointeracionista da linguagem, a PR não
descarta integralmente as possibilidades produtivas de se recorrer aos dispositivos tradicionais do
ensino de língua materna. Tanto é que, instantes após o relato da Figura 30, a PR afirma que
199
“tem muita coisa do tradicionalismo que funciona ainda hoje [...], funciona e dá certo”. Sobre os
momentos em que “se pega sendo tradicional”, a PR explica que ora trata-se de decisão
consciente, ora de atitude arraigada no seu fazer pedagógico, fruto do largo espaço que as práticas
e os saberes tradicionais ocuparam no decorrer de sua experiência pré-profissional e profissional:
Mas isso é muito forte, a forma tradicional de ensino de língua é muito forte. E não é uma coisa que se deixe
de ter assim facilmente não. Volta e meia eu me pego sendo tradicional. Volta e meia eu me pego sendo
tradicional. Mas é uma coisa que a gente precisa se policiar, não é? Porque, se eu tenho as minhas
concepções, eu tenho as minhas crenças sobre o ensino de língua, de linguagem – não é? –, então eu não
posso ir de encontro a isso, porque senão eu tô sendo contraditória. Mas que é muito forte é, e que de vez em
quando eu me vejo... eu me pego tendo algumas práticas tradicionais... e inconscientemente...
Inconscientemente porque, quando eu digo que eu vejo que alguns conteúdos são forçação de barra, isso é
consciente. Aí, eu tenho uma prática tradicional, e isso é consciente. Mas, às vezes... é porque eu não tô
lembrando de nenhum exemplo pra te dar... Mas, às vezes, acontece na minha prática que eu digo: “Eita,
como eu tô sendo tradicional!”. Mas é porque isso tá muito arraigado, tá muito... sabe? Lá na raiz, na minha
raiz, porque eu fui, por muito... longos anos, a minha vida toda escolar até a graduação, foi muito tradicional.
Figura 31: Comentário sobre a recorrência a práticas tradicionais de ensino de português (PR)
Observamos, portanto, que a PR busca construir uma prática de ensino coerente com suas
concepções teóricas, adquiridas ao longo da formação continuada (encontros pedagógicos,
especialização e mestrado). Mas, na vivência prática do ensino, ela não consegue se desvencilhar
de sua identidade pessoal e profissional, constituída não apenas por meio dos conhecimentos
aprendidos ao longo da formação continuada, mas também daqueles que permearam sua
experiência enquanto aluna, sua formação inicial e os primeiros anos de ofício. Assim, todos
esses condicionantes entram em jogo na contínua (re)construção de sua identidade profissional e
na definição dos dispositivos pedagógicos dos quais lança mão para ensinar. É por isso que a
coerência das ações empreendidas na atuação profissional vai além do plano teórico, atendendo a
uma diversidade maior de saberes e de vivências práticas (cf. TARDIF, 2002).
Para finalizar este subitem, transcrevemos abaixo a resposta formulada pela PR quando
lhe solicitamos um exemplo de prática tradicional que ela considerasse relevante para a
aprendizagem do aluno e desenvolvesse em sua atuação na sala de aula:
A questão ortográfica, por exemplo, é uma dessas questões. Eu acho que é importante o aluno escrever...
porque a nossa língua tem uma ortografia vigente, não é? E ela vai ser assim em qualquer parte do Brasil que
ele for. Então, é importante... [...] É relevante pra vida dele saber como as palavras são escritas e que existe
uma regularidade – não é? – em relação, por exemplo, ao uso do “r” e do “rr”... E aí é um conteúdo tão
específico, tão específico, que você vai usar o texto como pretexto, não é? Não vai usar o texto com a função
exatamente de mostrar a regularidade do uso do “rr”, do “ss”, tá entendendo?
Figura 32: Exemplo de prática tradicional de ensino relevante (PR)
200
É importante lembrar que, embora o trabalho com as convenções ortográficas de fato date
de um tempo longínquo do ensino de língua materna no Brasil (no segundo capítulo desta
dissertação, vimos que o currículo do Colégio Pedro II já contemplava esse conteúdo desde o
período imperial), as atuais recomendações para o tratamento didático dos conhecimentos
linguísticos não excluem a necessidade de o professor atentar para os aspectos sistemáticos da
língua (cf. GERALDI, 1997b [1984]) ou para certas restrições do sistema linguístico que não
permitem uma abordagem contextualizada do ponto de vista das circunstâncias concretas de
interação verbal (cf. MENDONÇA, 2006). Na seção em que analisamos os dados decorrentes das
observações das aulas da PR, teremos a oportunidade de compreender com mais clareza e com
mais detalhes a construção de sua prática de ensino especificamente quanto às questões
ortográficas.
5.1.1.4 Critérios de escolha e fontes de pesquisa dos textos utilizados em sala de aula (PR)
Dado o amplo espaço que a PR afirma atribuir ao texto como norteador de sua prática de
ensino, investigamos os critérios que ela utiliza para escolher os textos a serem trabalhados em
sala de aula, bem como as fontes de pesquisa às quais recorre para selecioná-los. Como procede
em relação a qualquer outra escolha didática, a PR parte do planejamento proposto na Política de
Ensino da Rede Municipal do Recife, particularmente no volume destinado ao ensino
fundamental (primeiro ao nono ano). Trata-se de um documento curricular recentemente
reformulado (a última versão data de 2015) com a participação dos professores da rede, como
relatou a PR. Ela explica que, em 2014, os professores das escolas municipais de Recife tiveram a
oportunidade de se reunirem em diversas ocasiões (nos chamados EPM, os Encontros
Pedagógicos Mensais) com especialistas das principais universidades do estado de Pernambuco
(UFPE, UFPRE, UPE e Unicap) para pensarem coletivamente a construção desse documento.
Segundo conta a PR, durante os EPM, foram discutidos os encaminhamentos a serem sugeridos
no documento para cada um dos eixos didáticos, tendo sido definidos também os gêneros textuais
a serem trabalhados em cada turma do ensino fundamental.
Tendo em vista que a elaboração desse documento resultou numa espécie de base
curricular comum para as escolas municipais de Recife, a PR procura sempre consultá-lo antes de
definir o(s) gênero(s) a ser(em) trabalhado(s) durante cada unidade. Nas aulas que
201
acompanhamos, a PR explorou o gênero carta do leitor. De fato, esse gênero está entre os
conteúdos/saberes indicados para o eixo da leitura nos dois últimos bimestres das turmas de
sétimo ano, como se pode verificar no quadro abaixo, retirado da própria Política de Ensino
(RECIFE, 2015, p. 283):
Quadro 8: Base curricular da prefeitura do Recife para o eixo da leitura no sétimo ano
Escolhido(s) o(s) gênero(s) a serem trabalhados, a PR, então, vai em busca dos textos em
torno dos quais desenvolverá a sua prática de ensino. Ao nos explicar como se dá o processo de
escolha, a PR explicitou em sua fala alguns critérios dos quais lança mão. São eles: a) a
aproximação em relação ao universo de referência dos alunos (a partir do qual planejará também
a apresentação de textos paulatinamente mais distantes dessa realidade); b) o gosto dos alunos; c)
o grau de formalidade da linguagem; d) a qualidade da escrita; e) a autoria. Para isso, as
principais fontes de pesquisa de que a PR se vale são: a) livros didáticos; b) revistas e jornais; c)
internet em geral; d) sites especializados em língua portuguesa. No fragmento abaixo, a PR
explica mais detalhadamente cada um desses pontos:
Bom, eu procuro levar em consideração, no caso da carta do leitor, né, vamos tomar por base a carta do
leitor... Então, eu procuro trazer cartas de revistas que eles têm conhecimento, o que é uma grande dificuldade
202
porque eles não têm conhecimento de quase revista nenhuma. [...] Todos os anos, quando eu vou trabalhar
carta do leitor e eu vou... “Que revistas vocês conhecem?” Né? E que eu lanço a pergunta... “Que revistas
vocês conhecem?” [...] Completamente diferente de um aluno de escola particular. Eles não têm acesso às
revistas. Então, eu uso o critério... Um dos critérios é esse: trazer textos que se aproximem deles, não é?
Revistas... Por exemplo, se for carta do leitor, eu procuro trazer revistas que sejam mais do universo deles,
não é? [...] Mas aí eu não uso só esse critério. Eu tenho também que mostrar a eles que existem outras revistas
que o tom é mais formal, que a linguagem usada é mais formal, pra eles perceberem a diferença. Então, eu
procuro, na hora de pesquisar o texto, eu vejo a qualidade do texto. A qualidade mesmo do ponto de vista da
escrita, né? Considero o autor do texto, né? No caso das crônicas, eu vou atrás dos melhores cronistas, né?
Textos argumentativos, eu vou considerar a especialidade da pessoa que tá escrevendo sobre aquilo. E vou
buscar em livros didáticos, em revistas, em jornais, e vou buscar os livros nesses principais suportes, né? Ou
livro didático, revista e jornal. Pego também muita coisa da internet, de sites de língua portuguesa, eu também
vou em busca disso... E eu procuro, assim, trazer textos que sejam... que tratem o tema com... com leveza... que
não sejam textos pesados pra os alunos lerem... que tratem do tema com leveza, que sejam textos gostosos,
interessantes, que não sejam aqueles textos chatos de se ler, né? Eu me coloco, no momento em que eu estou
garimpando os textos, eu me coloco no lugar do aluno. Eu fico pensando: “Será que o aluno vai gostar
disso?”. Eu tento sair da posição de leitora adulta que sou, de pessoa que já leu textos muito mais densos, e
me colocar na posição deles. Mas também não simplificar, porque eu também não quero uma coisa simplista.
Eu quero que faça sentido pra eles. Eu quero que sejam textos legais, que eles digam: “Que texto legal! Que
texto bom!”. E eles tenham prazer de dizer assim: “Como é gostoso ler nas aulas de português! Como esse
texto é interessante!”. Eu tento selecionar levando em consideração isso também.
Figura 33: Comentário sobre a seleção de textos a serem trabalhados na sala de aula (PR)
Vê-se, pela fala da PR, que, já no momento de eleger os textos para as aulas de língua
portuguesa a serem por ela ministradas, a docente se coloca na posição de mediadora da leitura
dos alunos (cf. GERALDI, 1997c [1984], 1996), pois, ainda que procure se colocar no lugar deles
a fim de identificar seus interesses e suas necessidades, a PR acaba por fazer uso de sua posição
de leitora madura e experiente para ponderar sobre as opções mais adequadas às especificidades
da turma (o que lhes interessa, o que pode vir a deslocar o universo de referência por eles
construído até então, quais os usos linguísticos capazes de lhes apresentar uma outra forma de se
expressar, que autores valem a pena ser lidos no contexto de sala de aula, etc.). Evidentemente,
todas essas variáveis dependerão dos objetivos de aprendizagem traçados para o momento da
leitura desses textos. Na subseção destinada à análise das aulas observadas, será possível perceber
na prática a mobilização desses critérios para a consecução do planejamento relativo ao trabalho
com a carta do leitor.
5.1.1.5 Definição dos conteúdos de ensino vinculados ao eixo da análise linguística (PR)
Para definir os conteúdos a serem trabalhados em sua prática de ensino, a PR também
recorre, inicialmente, à Política de Ensino da Rede Municipal do Recife (RECIFE, 2015),
explicitamente filiada à perspectiva sociointeracionista de linguagem, o que, segundo consta no
203
documento, ampara a necessidade de um trabalho pedagógico que contemple a maior variedade
possível de gêneros textuais devido à autenticidade das situações de interação que promovem. No
tocante ao eixo da análise linguística, o documento destaca a sua natureza transversal em relação
às demais práticas de linguagem a serem desenvolvidas na aula de português (leitura, escrita e
oralidade). Por isso mesmo, ressalta a inevitável articulação entre a reflexão sobre a língua e as
circunstâncias concretas de uso para expandir a capacidade de criação do aluno em detrimento da
mera reprodução de conhecimentos. Tal objetivo, no âmbito do trabalho com os conhecimentos
linguísticos, demanda, de acordo com a proposta curricular, que as ações empreendidas na sala de
aula estejam voltadas para a mediação de atividades epilinguísticas e para a “análise da
funcionalidade dos elementos linguísticos em vista do discurso” (RECIFE, 2015, p. 261). Por
fim, o documento advoga, assim como os PCN (BRASIL, 1998), pelo desenvolvimento da
competência discursiva e defende que, para isso, é necessário não apenas aprender a utilizar a
norma padrão, mas também saber mobilizar as demais variedades linguísticas em função das
situações de interação nas quais os alunos estejam inseridos. A Política de Ensino da Rede
Municipal do Recife associa, ainda, as práticas de análise linguística ao “desenvolvimento do
raciocínio científico sobre as manifestações da linguagem numa perspectiva pragmática”
(RECIFE, 2015, p. 261).
Após a exposição dos princípios teóricos que norteiam a proposta curricular para a
disciplina, o documento apresenta um conjunto de conteúdos que entende como adequados para
cada série do ensino fundamental (do primeiro ao nono ano), sugerindo, inclusive, os bimestres
em que o professor poderá trabalhar com cada tópico constante na proposta. A PR explica que a
elaboração dessa proposta, além de atender à necessidade de atualização da grade curricular (a
anterior datava de 2002), visava solucionar um problema frequente entre as escolas da rede: a
falta de unidade entre os conteúdos que eram explorados pelos professores. Segundo a PR, essa
situação prejudicava os alunos que mudavam de escola, pois eles não encontravam no novo
ambiente escolar aonde chegavam a continuidade do trabalho que vinha sendo desenvolvido na
instituição em que estudavam antes. A PR avalia que, embora não seja suficiente para controlar
integralmente o andamento da prática de ensino de cada professor da rede devido às necessidades
particulares de cada contexto de trabalho, a atualização do documento contribuiu para atenuar o
mosaico de conhecimentos e de propostas pedagógicas com que os alunos anteriormente se
deparavam. É por isso, segundo a PR, que a prefeitura e os próprios estabelecimentos de ensino
204
recomendam que os professores de todas as disciplinas procurem se guiar pela matriz encontrada
no referido documento.
No Quadro 8 do subitem anterior, apresentamos a matriz curricular sugerida para o eixo
da leitura nas turmas de sétimo ano. Devido à transversalidade da análise linguística e,
consequentemente, à intrínseca relação com a leitura, nela já encontramos conteúdos que
demandam atividades de reflexão sobre a língua para serem ensinados, sobretudo se atentarmos
para as particularidades típicas dos gêneros textuais elencadas na proposta, como ocorre com o
primeiro objetivo de aprendizagem listado no Quadro 8: “Observar a adequação da linguagem do
texto ao contexto de interlocução” (RECIFE, 2015, p. 284). Abaixo, apresentamos a matriz
sugerida especificamente para o eixo da análise linguística, também em turmas de sétimo ano:
Quadro 9: Base curricular da prefeitura do Recife para o eixo da análise linguística no sétimo
ano
Apesar de reconhecer a importância da confecção do documento curricular da prefeitura e
de levá-lo em consideração na definição dos conteúdos a serem trabalhados na sala de aula, a PR
não se limita a seguir a proposta oficial exatamente como consta no documento, contemplando
cada conteúdo e cada forma de sequenciação sugeridos. Em vários momentos da entrevista, a PR
205
explicava, por razões diversas, que se avaliava como autônoma no que diz respeito às decisões
didáticas e pedagógicas constitutivas de sua prática profissional. No caso da escolha dos
conteúdos curriculares a partir da Política de Ensino da prefeitura, a PR faz as seguintes
ressalvas:
[...] Alguns conteúdos já tem no planejamento da própria rede [...]. E eu sigo alguns... Alguns eu não vejo
necessidade. Eu me sinto autônoma. Eu acho que eu tenho um pouco, um pouquinho de conhecimento,
suficiente pra decidir se tal conteúdo que a prefeitura está sugerindo é adequado pra uma turma de sexto ano,
por exemplo. Se eu não achar que seja, eu vou descartar aquele conteúdo. E aí, como eu te disse, eu parto do
texto pra trabalhar a questão... questões gramaticais.
Agora, eu enxerto outras coisas. Tem aqueles conteúdos, como eu te disse, que eu acho que é repetitivo... Eu
não vou mais me deter àquilo. Aí, eu procuro enxertar outras coisas que eu acho que sejam importantes pra
eles. Por exemplo: tô sentindo falta de ortografia. Aí, eles colocam assim de uma forma bem... Eu entendo por
que eles colocam assim de uma forma... “Aspectos ortográficos vigentes na língua”... Aí, colocam de uma
forma bem geral, certo? Mas não distribui o que é que se deve trabalhar naquela série, em tal unidade, assim,
assim, assim... Então, eu tô sentindo falta dessa especificidade. Mas, aí, como eu sou uma pessoa muito
autônoma... e eu tenho minhas turmas aqui... eu tenho sexto, sétimo e oitavo... então, eu trabalho no sexto
determinadas questões ortográficas, no sétimo outro e no oitavo outra. E procuro ver o nível de complexidade.
[...] Hoje, que eu estou colocando em prática nas turmas em que eu trabalho, eu já vejo que tem uma certa
repetição de algumas coisas sem necessidade, de alguns conteúdos sem necessidade, e aí eu faço de acordo
com aquilo que eu acho prioridade pra o aluno, certo? Então, por exemplo, enfocar, ter como foco um gênero
textual como poema o ano todinho todas as unidades, eu não vejo necessidade disso. Você pode fazer isso em
uma determinada série, em uma determinada unidade, e nas outras unidades você ir fazendo uma leitura en
passant, retornar para alguns aspectos e outros. Mas ter como foco, como gênero destacado, eu não concordo
com isso. Pode ser até que eu esteja errada. Se alguém me provar e discutir comigo, pode ser até que eu mude
de opinião. Mas eu... Como eu tô colocando em prática, eu tô percebendo que já existe uma certa repetição,
sabe? Eu já sinto falta de algumas outras coisas.
Figura 34: Comentário sobre a autonomia profissional frente à proposta curricular oficial da
prefeitura do Recife (PR)
Os saberes curriculares difundidos no documento da prefeitura do Recife, portanto, atuam
na construção da prática da PR, mas não são simplesmente transpostos da esfera normativa para o
âmbito em que as práticas de ensino efetivamente acontecem: a sala de aula. De outro modo, a
PR mobiliza esses saberes em função daquilo que considera relevante para seus alunos no
contexto concreto da prática (cf. TARDIF, 2002; CHARTIER, 2000a [1995]). Para isso, a PR
necessariamente se vale, ainda, dos saberes pedagógicos e disciplinares, pois, para definir uma
sequência adequada ao perfil de cada turma para abordar as questões ortográficas, por exemplo,
ela precisa contrastá-los ao que propõe a matriz curricular e, diante das particularidades de seu
contexto de trabalho, numa retomada crítica de todos esses saberes, produzir saberes
experienciais responsáveis por instituir os contornos definitivos que a progressão dos conteúdos
206
relativos à ortografia assumirão na prática (cf. TARDIF, 2002). A PR, portanto, coloca-se na
posição de expert de seu ofício, uma vez que avalia seus conhecimentos teóricos como
importantes para produzir sua prática cotidiana, mas entende que esta é irredutível à execução de
um modelo pedagógico de antemão idealizado por outrem. Ela usufrui os saberes externamente
concebidos, mas para adequá-los à realidade escolar que encontra em seu ambiente de trabalho e,
assim, produzir ela mesma os saberes experienciais necessários à instituição da prática docente.
Nos termos de Tardif (2002), poderíamos dizer que, com a produção dos saberes da experiência,
a PR escapa à relação de alienação em relação aos saberes teóricos previamente formulados.
5.1.1.6 Planejamento das ações a serem realizadas em sala de aula no trabalho com os
conteúdos de análise linguística (PR)
Definidos os conteúdos de ensino das práticas de análise linguística mediadas pela PR, é
preciso, então, pensar o encadeamento das ações que constituirão suas aulas. Trata-se de um
planejamento que, na prática, manifesta-se nos fazeres ordinários (cf. CHARTIER, 2000a [1995])
da atuação da PR. É certo, como afirma a própria PR, que “[...] uma coisa é você elaborar,
pensar, planejar, e outra coisa é pôr em prática”, mas é também verdade que o planejamento é
uma etapa integrante da prática docente. Ainda que a projeção das ações a serem realizadas não
corresponda integralmente aos contornos da atividade efetiva do professor em sala de aula, o
planejamento em alguma medida sempre condiciona a organização da prática e, por essa razão,
revela aspectos importantes acerca do perfil de trabalho do professor.
No caso do planejamento da PR, após consultar a Política de Ensino da Rede Municipal
do Recife, ela recorre ao livro didático, a fim de verificar se os conteúdos selecionados para a
turma estão nele incluídos. Em caso negativo, a PR procura elaborar um material didático dentro
dos parâmetros delimitados para alcançar os objetivos de aprendizagem que ela tem como norte.
Foi o caso do trabalho com a carta do leitor, que acompanhamos durante as observações de aulas
da PR. A abordagem desse gênero estava prevista na matriz curricular da prefeitura, e a
professora julgava adequado e relevante para os sétimos anos nos quais atuava. Entretanto, o
livro didático adotado (Português: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar
Magalhães) não previa para o sétimo ano esse trabalho. A PR, então, produziu o material
necessário para a sua realização. Na próxima subseção, teremos acesso a esse material e
207
analisaremos o modo como efetivamente se deu a condução da prática da PR com base em tal
recurso didático.
Sobre o espaço que o livro didático ocupa no planejamento e na prática desenvolvida pela
PR, ela, apesar de reconhecer a contribuição desse material didático, deixa evidente, mais uma
vez, o seu perfil autônomo e crítico ante as propostas apresentadas pelo livro:
[...] O livro didático não guia o meu planejamento, o meu ensino, a minha prática, certo? [...] O livro didático
não é o meu guia. Eu me sinto muito livre pra usar ou não usar o livro didático. Eu me sinto muito livre pra...
Inclusive em escola particular... Porque aqui ninguém tá olhando se você usa ou não usa o livro, não é? Só
quem tá olhando são os alunos, mas não tem pai, mãe que paga o livro didático e quer que o livro seja
consumido do início ao fim. Eu trabalhei muito tempo não só no Colégio X16
, mas eu trabalhei em outras
escolas maiores aqui no Recife e que os pais iam saber por que é que eu tinha pulado aquele capítulo, por que
é que eu tinha passado adiante aquele conteúdo que eu não tinha trabalhado. Por quê? Aí eu explicava aos
pais. Só que os pais se convenciam, porque eu tinha convicção daquilo que eu tava fazendo. Eu não tava
fazendo na doidice – sabe? –, no achismo... Eu tinha consciência do que eu tava fazendo. Aquilo não era uma
coisa relevante pra eu trabalhar com meu aluno. Tava no livro, mas eu não ia trabalhar. Ele comprou, ele
pagou, mas não era importante pra o filho dele. Então eu conseguia provar a ele, dizer, mostrar, argumentar,
que eu tava fazendo bem pro filho dele, que era muito mais relevante ele ver outras coisas no próprio livro. O
livro não é meu guia. O livro vem pra me apoiar pedagogicamente, o livro serve... tem muitas coisas boas... Eu
gosto muito dos textos, eu gosto muito de explorar os textos... Tem algumas atividades bem interessante no
livro didático, sobretudo a parte de leitura e compreensão. Eu exploro mais essa parte... No livro didático, o
que eu mais exploro é isso. É a parte de texto e leitura e interpretação. E algumas produções de texto que são
interessantes. Eu sigo aquelas orientações, eu acho interessante e opto. Tem muita coisa que eu descarto.
Figura 35: Comentário sobre o papel do livro didático na construção da prática de ensino (PR)
Geraldi (1991) é um ferrenho crítico – e mesmo opositor – do livro didático, pois entende
que a sua existência reduz o trabalho docente ao que ele chama de “exercício da capatazia”,
porque modifica a identidade do professor na correlação entre o saber historicamente produzido e
o ensino. Segundo o autor, com a perda de responsabilidades antes delegadas ao professor (a
produção do saber ensinado ou a transfiguração do conhecimento científico produzido por outrem
em conteúdo de ensino, a sequenciação e a seriação dos conteúdos, a construção de recursos
didáticos, etc.), assistiu-se a um intenso processo de deterioração das condições de trabalho do
professor, que é destituído da produção dos conhecimentos mobilizados em sua prática e
supostamente passa a dispor de mais tempo para ocupar-se de mais e mais aulas.
Em face do desenvolvimento tecnologizado, parece caber ao professor a escolha do
material didático que usará na sala de aula. Mas qual a sua função depois disto? Uma
boa metáfora é compará-lo a um capataz de fábrica: sua função é controlar o tempo de
contato do aprendiz com o material previamente selecionado; definir o tempo de
16
Nome fictício. Trata-se da escola privada em que a PR trabalhou ao longo de vinte e cinco anos e na qual
vivenciou o longo período de formação continuada com a pesquisadora Irandé Antunes, experiência esta
constantemente mencionada durante a entrevista realizada para fins deste estudo.
208
exercício e sua quantidade; comparar as respostas do aluno com as respostas dadas no
“manual do professor”, marcar o dia da “verificação da aprendizagem”, entregando aos
alunos a prova adrede preparada, etc. (GERALDI, 1991, p. 94)
A análise da atividade docente na perspectiva dos saberes da ação (cf. TARDIF, 2002;
CHARTIER, 2007), entretanto, parece mostrar que a relação do professor com os saberes
teóricos a serem mobilizados e a construção da prática de ensino são mais complexas do que a
mera reprodução de conhecimentos e modelos didáticos externamente concebidos. Como já
vimos, o elo entre o professor e os saberes mobilizados em sua prática é restabelecido na
produção dos saberes experienciais, sujeitos às condições reais que ele encontra no exercício
cotidiano do ofício de ensinar (cf. TARDIF, 2002). A não elaboração do material didático por
parte do professor não o impede de ser autor de suas práticas de ensino, pois, para concretizá-las,
ele não poderá se limitar a reproduzir rigorosamente um modelo teórico. O ato de ensinar, em si
mesmo, demanda do professor um ato de criação, seja na avaliação dos materiais didáticos que
lhe são fornecidos, seja pelas decisões que perpassam a utilização desse material em sala de aula.
Um mesmo material didático tem o potencial de produzir inúmeras práticas distintas entre si, a
depender justamente da criação constitutiva da prática docente.
No caso da PR, o depoimento da Figura 36 sinaliza uma atitude reflexiva ante a proposta
do livro didático, uma vez que a docente faz uma apreciação valorativa das atividades nele
contidas antes de decidir quais delas serão utilizadas durante a prática de ensino. Na ausência de
uma proposta satisfatória aos objetivos de aprendizagem almejados para seus alunos e mesmo na
ausência de qualquer atividade relacionada a esses objetivos, a PR não modifica o planejamento
inicial, mas produz ela mesma o material necessário para o trabalho já previsto. A fala da PR
denota uma forte convicção das razões que motivam suas escolhas, pois, segundo relata a
docente, ela não hesita em verbalizá-las àqueles que questionam o eventual descarte de algumas
partes do livro didático adotado.
No tocante ao volume didático utilizado na escola em que fizemos o trabalho de campo
desta pesquisa, a PR faz a seguinte avaliação da abordagem da obra quanto ao eixo da leitura e da
análise linguística, ao relatar a sua participação no processo de escolha dessa mesma obra na
escola em que trabalhava até o ano anterior:
Pelo menos até onde eu conheço, é livro assim... mais atual... e que o trabalho voltado pra a parte de leitura e
interpretação, compreensão de texto, é mais interessante diante de outros livros, certo? A parte de
sistematização linguística propriamente dita, ele fica flutuando. Ele flutua entre uma gramática mais... Às
vezes, ele pede pra o aluno dizer o que ele entendeu a partir dali, vai dando caminho, construindo sequências
209
pra o aluno chegar ao conceito. E às vezes ele já chega lá com o conceito, pá, de cara. Já vem com um
conceito. “Verbo é isso.” Aí vem com os exercícios. Então, ele transita entre o tradicional e procura trabalhar
de uma forma mais voltada pra os estudos mais atuais do... a língua em uso ou os usos da língua... [...] Então,
eu acho o livro dele [de William Roberto Cereja] interessante, porque a parte que mais me interessa – a parte
de leitura, de interpretação, de compreensão – ele faz uma abordagem muito legal, muito interessante, certo?
Eu também não uso na íntegra, eu também não uso na íntegra. Se eu perceber que é uma coisa muito
repetitiva e irrelevante, que não tem muita importância aquilo, eu pulo. “Não respondam a questão tal não.
Respondam a questão essa, essa e essa.” Por quê? A intenção não é ocupar os meninos e eles ficarem
ocupados. A intenção é os meninos pensarem, refletirem sobre aquilo, né, e perguntarem e tal.
Figura 36: Avaliação crítica do livro didático utilizado na prática de ensino (PR)
Pela avaliação que a PR faz acerca da abordagem do livro didático em relação aos
conhecimentos linguísticos, pode-se inferir alguns dos elementos que ela parece valorizar na
seleção do material a ser efetivamente utilizado em sua prática de ensino. Ela distingue as
atividades e as explicações teóricas do livro didático em dois grandes grupos: no primeiro, o
conteúdo é apresentado por uma definição pronta dos conceitos envolvidos e pela proposição de
exercícios para a aplicação das análises já demonstradas (perspectiva tradicional); no segundo, a
obra parte dos conhecimentos prévios dos alunos para propor questões que os levem a
paulatinamente construírem os conceitos (perspectiva da “língua em uso” ou dos “usos da
língua”). A afirmação da PR ao final do depoimento da Figura 36 de que a intenção do uso das
atividades do livro didático é fazer os alunos pensarem, refletirem e perguntarem nos faz crer que
a PR dá preferência às atividades características do segundo grupo. Corrobora essa hipótese a
descrição que a docente faz de sua prática na Figura 20 e na Figura 23. Em ambas as ocasiões, a
PR reitera sua preocupação com uma reflexão linguística que aprimore as possibilidades de uso
da língua em situações concretas de interlocução, materializadas nos gêneros textuais. Por isso,
ela destaca, nos dois fragmentos, que, no planejamento das práticas de análise linguística, procura
as interfaces entre os aspectos gramaticais e o texto, principalmente no que dizem respeito às
especificidades que desvelam o funcionamento dos gêneros trabalhados e que são responsáveis
pela construção de sentidos dos textos lidos.
5.1.2 Análise das aulas observadas (PR)
Conforme indicamos no Quadro 5 do capítulo anterior, com as observações de aulas,
buscamos atender ao terceiro e quarto objetivos específicos elencados desde a introdução desta
dissertação, a saber: c) identificar os procedimentos didáticos que o professor adota em sala de
210
aula para construir a sua prática quanto ao eixo da análise linguística e analisá-los na sua relação
com o ensino da leitura; d) investigar de que forma o professor de português explora, em suas
aulas, o papel dos elementos linguísticos na construção de sentidos dos textos. Diferentemente do
procedimento que adotamos na análise dos dados da entrevista, dividimos esta subseção em
subitens que representam os conteúdos abordados pela PR em suas aulas. Em cada um deles,
analisamos a atuação da PR com base nas categorias de análise indicadas no Quadro 7.
Foram quinze as aulas da PR observadas para fins desta pesquisa, entre 21 de outubro e
26 de novembro de 2015. No quadro abaixo, conforme anunciamos no capítulo anterior, fizemos
uma síntese dos conteúdos abordados e das atividades realizadas durante essas aulas:
AULAS
DATAS /
HORÁRIOS
Nº DE
ALUNOS
CONTEÚDOS / ATIVIDADES
RECURSOS
DIDÁTICOS
1
21/10/2015
9h10 às 10h
15
Atividade escrita sobre o poema “Os
poemas”, de autoria desconhecida –
Interpretação, terminações verbais –am e
–ão, uso do presente do indicativo
Atividade copiada no
quadro
2 e 3
27/10/2015
10h20 às 12h
18
Apresentação do gênero carta do leitor –
Exploração de conhecimentos prévios,
análise de cartas quanto aos interlocutores
envolvidos, às intencionalidades, ao
suporte de circulação e ao contexto de
produção – Sistematização de
conhecimentos sobre o gênero estudado
Exemplares das revistas
Continente, Horizonte
Geográfico e Ciência Hoje
das Crianças
4
28/10/2015
9h10 às 10h
13
Atividade com carta do leitor publicada na
revista Recreio – Discussão coletiva sobre
o contexto de produção, os interlocutores
envolvidos, a intencionalidade do locutor
e a linguagem utilizada
Atividade com carta do leitor publicada no
jornal Correio Popular – Comparação
entre versão enviada para o jornal e versão
publicada – Discussão coletiva sobre o
conteúdo da carta, os interlocutores
envolvidos e as intencionalidades do
locutor. – Breve explicação sobre o uso
das aspas na citação do título da
reportagem sobre a qual a carta discorre
Fichas com cópias de
cartas do leitor e
exercícios
5
04/11/2015
9h10 às 10h
17
Atividade com carta do leitor publicada no
jornal Correio da Tarde - Discussão
coletiva sobre o contexto de produção, os
interlocutores envolvidos e os
posicionamentos por ele expressos ao
longo do texto
Atividade com carta do leitor publicada no
jornal Folha de São Paulo – Discussão
Fichas com cópias de
cartas do leitor e
exercícios – Atividade
copiada no quadro
211
coletiva sobre o tema da carta e sobre o
posicionamento da locutora ante o
conteúdo da reportagem a que a carta se
refere.
Atividade com carta do leitor publicada no
jornal Folha de São Paulo – Discussão
coletiva sobre a intencionalidade dos
locutores e sobre a função da carta do
leitor
Atividade com carta do leitor publicada no
jornal Gazeta de São Paulo – Discussão
coletiva sobre a intencionalidade dos
locutores
Atividade escrita sobre quatro das cartas
do leitor contidas na ficha explorada nesta
aula e na aula anterior – Identificação dos
interlocutores envolvidos, do local e da
data de produção; intencionalidade do
locutor
6
05/11/2015
11h10 às 12h
12
Correção coletiva da atividade escrita
realizada no final da aula anterior
Fichas com cópias de
cartas do leitor –
Atividade copiada no
quadro
7
09/11/2015
11h10 às 12h
14
Atividade escrita sobre uma das cartas do
leitor contidas na ficha trabalhada nas
últimas três aulas – Interlocutores
envolvidos, intencionalidades do locutor,
contexto de produção, conteúdo da carta
Fichas com cópias de
cartas do leitor –
Atividade copiada no
quadro
8 e 9
10/11/2015
10h20 às 12h
16
Aula sobre concordância verbal a partir da
análise de frases copiadas no quadro –
Sistematização de conhecimentos sobre o
fenômeno linguístico estudado
Frases copiadas no quadro
– Ficha com exercícios
sobre concordância verbal
a partir de excertos das
cartas do leitor lidas na
ficha das aulas anteriores
10
23/11/2015
11h10 às 12h
17
Leitura em grupo de reportagens para
posterior produção de cartas do leitor
destinadas aos jornais em que as
reportagens foram publicadas
Reportagens de jornais
11 e 12
24/11/2015
10h20 às 12h
18
Produção de carta do leitor sobre as
reportagens lidas na aula anterior
Reportagens de jornais
13
25/11/2015
9h10 às 10h
15
Aula expositiva sobre as regras de uso da
letra “s”
Fichas com explicações
sobre o uso da letra “s” e
exercícios
14 e 15
26/11/2015
10h20 às 12h
16
Ditado de palavras e atividade escrita
sobre o uso da letra “s”
Fichas com explicações
sobre o uso da letra “s” e
exercícios
Quadro 10: Síntese das aulas observadas na escola da prefeitura do Recife
212
Pelas informações do quadro acima, podemos identificar os quatro conteúdos trabalhados
pela PR durante o período em que observamos suas aulas: emprego das terminações verbais –am
e –ão, carta do leitor, concordância verbal e ortografia (uso da letra “s”). Diante da
impossibilidade de analisar todas as aulas observadas, foi necessário fazer um recorte nos dados
coletados para a constituição do corpus da pesquisa. Tal como sinalizamos no quarto capítulo
desta dissertação, escolhemos as aulas em que predominou o trabalho com o eixo da reflexão
linguística. No intuito de contemplar uma variedade maior de conteúdos de ensino (e de
possibilidades de trabalho), optamos, ainda, por incluir no corpus aulas em que foram trabalhados
cada um dos tópicos de análise linguística abordados pela PR, exceto o trabalho com as
terminações verbais. Decidimos pela exclusão desse trabalho porque ele se deu de forma
semelhante à abordagem da concordância verbal e porque, com a mudança repentina do horário
da aula da professora no dia da abertura do quarto bimestre, acabamos por perder a aula em que a
PR iniciou o trabalho com as terminações verbais (a primeira aula indicada no Quadro 10, na
verdade, foi a segunda aula do bimestre). Fez-se necessário, ainda, estabelecer um recorte entre
as aulas dedicadas ao estudo da carta do leitor devido ao extenso número de aulas destinadas a
esse trabalho. Elegemos para a constituição do corpus as três primeiras aulas nas quais a carta do
leitor foi tematizada (aulas 2, 3 e 4, conforme o Quadro 10). Com a inclusão da primeira delas,
será possível explicitar o modo como a PR introduziu aos alunos o conteúdo que seria trabalhado
ao longo das aulas subsequentes. Quanto às duas outras, identificamos nessas aulas uma análise
mais aprofundada dos textos lidos, tendo a PR explorado uma sorte maior de aspectos relativos às
cartas do leitor trazidas para a sala de aula. Nas aulas seguintes, quase sempre os pontos
abordados retomavam aspectos já trabalhados nas três primeiras aulas. Apresentado e justificado
o recorte nos dados coletados durante as observações da prática de ensino da PR, passamos, nos
próximos subitens, à análise propriamente dita do corpus indicado.
5.1.2.1 Trabalho com o gênero carta do leitor (PR)
Na subseção dedicada à análise da entrevista inicial, fizemos referência algumas vezes ao
trabalho com a carta do leitor realizado pela PR na turma escolhida para o nosso trabalho de
campo, pois, como bem ressaltou a docente em alguns dos depoimentos transcritos (sobretudo no
excerto da Figura 20), são os gêneros textuais o centro organizador de sua prática de ensino. É a
213
partir deles que ela afirma planejar as atividades relativas a todos os eixos didáticos (leitura,
produção de texto e análise linguística). No Quadro 10, apresentado ainda há pouco, esse perfil
de trabalho da PR fica patente: das quinze aulas observadas para fins desta pesquisa, doze
giraram em torno do gênero carta do leitor.
As duas primeiras aulas destinadas ao estudo desse gênero aconteceram em um mesmo
dia. No Apêndice C, ao final desta dissertação, disponibilizamos um mapeamento mais detalhado
acerca de cada ação empreendida pela PR e das interações que estabeleceu com a turma ao longo
dessas aulas. Aqui, no corpo do texto, limitamo-nos a uma descrição mais concisa e, em alguns
momentos, à transcrição de diálogos entre a PR e os alunos quando nos pareceu necessário para
ilustrar de forma minuciosa a prática docente investigada. Mesclamos tais descrições e
transcrições às considerações que julgamos relevantes para cumprirmos os objetivos traçados
para o instrumento de coleta de dados em pauta. Procedemos da mesma maneira ao longo de toda
a análise dos dados decorrentes das observações, inclusive naqueles provenientes da prática do
PJ.
Conforme o registro descritivo do Apêndice C, a PR inicia a abordagem da carta do leitor
explorando os conhecimentos prévios dos alunos acerca do gênero carta. Ela os indaga sobre as
situações de interlocução que eles já viveram envolvendo a escrita de cartas. Alguns alunos
compartilham suas experiências com a PR e os colegas da classe: um deles rememora ter escrito
carta para Papai Noel quando criança; outro conta já ter se comunicado com a avó por carta
quando morava no interior do estado; um grupo de alunos lembra-se de uma ocasião em que, para
cumprir uma atividade proposta por outro professor, a turma escreveu uma carta coletiva de
reclamação para o gestor da escola. À medida que cada aluno relatava suas experiências, a PR ia
questionando sobre o contexto de produção dessas cartas. As principais perguntas centravam-se
nos destinatários das cartas, no período em que elas foram escritas e nos objetivos centrais dos
textos. Assim, para introduzir o conteúdo a ser trabalhado, a PR procura, desde o princípio,
vinculá-lo a circunstâncias autênticas de interação verbal e à realidade dos alunos, mostrando-
lhes, a partir de suas vivências concretas, algumas pistas sobre o funcionamento social do gênero
(é endereçado a alguém e atende aos propósitos do locutor). Outro procedimento adotado pela PR
foi escrever no quadro tópicos relacionados aos depoimentos dos alunos e, a partir deles,
explicar-lhes o tipo de carta que cada um havia escrito: carta pessoal, carta de solicitação e carta
de reclamação.
214
Na sequência, a PR sonda entre os alunos aqueles que gostam ou que têm hábito de ler
revistas. Poucos se manifestam, e a eles é perguntado o tipo de publicação que lhes interessa e
alguns exemplos de revistas que eles já tenham lido. Os alunos fazem referência a revistas de
fofoca e de moda. Um deles menciona as “revistas em quadrinhos”. As escassas respostas que a
indagação da PR suscitou evidenciam, como ela própria nos havia alertado, o baixo acesso dos
alunos aos impressos jornalísticos. Depois de ouvir as respostas dos estudantes, a PR foi citando
alguns exemplos de revistas (Superinteressante, Época, Ciência Hoje, Recreio) e perguntando se
eles as conheciam. Apenas uma aluna afirmou conhecer a revista Época, o que parece confirmar
o baixo convívio com revistas como uma das características reveladoras do perfil de leitura da
turma.
Após a sondagem sobre a experiência dos alunos com cartas de naturezas distintas e com
a leitura de revistas, a PR apresenta aos alunos especificamente a carta do leitor:
PR: [...] Alguém aqui já leu uma matéria numa revista [...], que tenha lido e tenha gostado tanto da matéria
que tenha sentido vontade de escrever uma carta para a revista dizendo que gostou muito da matéria? Quem
já passou por isso? Quem já sentiu isso?
[Nenhum aluno responde.]
PR: Vocês sabiam que, se eu ler uma revista... e vocês, cada um de vocês, lerem uma revista, gostarem muito
daquela matéria que vocês leram numa revista, vocês podem escrever uma carta pra essa revista dizendo que
gostaram ou dizendo que não gostaram? Se você, por exemplo, ler uma matéria que você ache que existe
preconceito contra o nordestino, por exemplo... Aí, você leu e: “Puxa, mas eu não gostei... mas eu não gostei
dessa matéria. Eu vou escrever pra revista.”. Sabia que vocês podem escrever? Sabiam?
Aluna: Eu sabia que pode falar pela internet. Agora...
PR: Pode escrever para a revista, para o redator da revista. Ele vai receber a sua carta e vai ler. E o que você
vai escrever é uma carta. Só que essa carta é chamada de carta do leitor. Por que carta do leitor?
Aluno: Porque ele lê.
PR: Porque ele leu, ele é um leitor da revista, ele leu uma matéria na revista. Vocês sabiam que, nas revistas,
tem uma seção, uma página, uma seção, duas páginas dependendo da revista, que é direcionada para as
cartas que os leitores escrevem pra revista? Vocês acham isso legal? Você pode escrever uma carta
tradicional, aquela carta que a gente escreve, manda pelos Correios, paga, bota selo e manda pelos
Correios... Ou a gente pode escrever uma outra carta que é essa daqui, ó, [escreve no quadro:] o e-mail. O e-
mail veio substituir a carta do tipo que Pedro17
escreveu pra avó dele. Hoje, se escreve muito menos... Com o
advento, com a criação, com o surgimento do e-mail, aquela carta que a gente escrevia manuscrita pras
amigas... [...] Hoje, é muito mais barato escrever um e-mail pra uma pessoa que mora longe do que eu
escrever a carta e botar no correio, não é verdade? [...] O e-mail nada mais é do que uma carta eletrônica.
[...] Hoje, as pessoas usam muito mais o e-mail. Agora, o e-mail num é... não se usa o e-mail... que aí é outra
história... Se a gente fosse estudar mais, se aprofundar no estudo do e-mail... O e-mail é considerado um
suporte... mais um suporte. Existe uma discussão muito boa entre as pessoas que estudam as coisas da língua
17
Os nomes dos alunos são todos fictícios.
215
que discute se o e-mail é um gênero de texto ou se é um suporte. Porque lá no e-mail, naquele espaço ali, né,
que a gente chama de e-mail, pode ir outras mensagens. Pode ir um anúncio publicitário, eu posso mandar um
cartão de aniversário, eu posso mandar um convite... Então, é uma imensidão de coisas, né, o e-mail. Mas,
quando a gente quer se comunicar com alguém que está distante ou que mora em outro lugar ou a gente
precisa escrever um texto mais longo ou quer se aprofundar mais naquilo que a gente tá dizendo, a gente
escreve um e-mail. Mas, pra o dia a dia, a interação no dia a dia, eu falar com a pessoa, saber como ela está,
etc. etc., eu posso usar outros meios... outros meios tecnológicos, né? Eu posso usar o WhatsApp, eu posso
usar o Facebook, não é? Mas aquela interação ali no WhatsApp, aquela interação pelo Facebook, etc. etc., é
mais rápida, né? É mais instantânea, você tá conversando. Mas, se você quer mandar um texto mais longo,
você quer até e-mails profissionais, aí você mais... recorre mais ao e-mail, certo? Então, voltando pra carta do
leitor, a gente vai se deter mais nesse... Vejam que a carta é um gênero textual que tem, ó [apontando para os
tipos de cartas que escreveu no quadro], desdobramentos, né? Mais de uma carta. Mas a gente vai se deter
mais nessa carta do leitor, certo?
Figura 37: Apresentação do gênero carta do leitor à turma (PR)
É interessante observar que, mesmo diante de alunos sem familiaridade com o contexto de
circulação de revistas, a PR tenta situá-los numa circunstância de interação que, embora
hipotética, é plausível no contato com esse tipo de publicação. Com as atividades propostas pela
PR nesta aula e nas seguintes, os alunos tiveram a oportunidade de vivenciar o contato com
alguns dos textos que circulam nas revistas (cartas do leitor e reportagens) e, por meio da
inserção em práticas de linguagem, aprender sobre o modo como o gênero estudado funciona
socialmente. No fragmento de aula acima, a PR se vale de uma metodologia transmissiva para
antecipar informações da esfera social mais ampla implicadas na produção das cartas do leitor: as
motivações do locutor (elogiar ou expressar desagrado em relação a uma determinada matéria,
denunciar o viés preconceituoso de um dado texto, etc.), o destinatário (o redator da revista), os
possíveis suportes de circulação (para o envio, em via manuscrita ou em via eletrônica; para a
publicação, as seções reservadas às cartas). A colocação da aluna – que alega só conhecer a
possibilidade de “falar pela internet” (possivelmente, comentar as matérias pelas redes sociais ou
mesmo enviar um e-mail) – leva a PR a associar a carta do leitor ao e-mail, pois, até então, os
alunos só haviam relatado experiências com cartas manuscritas. Além disso, a PR procura
comparar brevemente as condições de interação através do e-mail e dos demais meios de
comunicação eletrônicos (Facebook e WhatsApp).
A PR segue com a exposição sobre a dinâmica de publicação das cartas que são enviadas
a revistas e jornais. Relata, logo em seguida, uma atividade que havia desenvolvido com outro
grupo de alunos semelhante à que seria proposta à turma observada: a produção de uma carta do
leitor sobre uma reportagem de interesse dos alunos para posterior envio ao veículo de
comunicação em que a reportagem tenha sido publicada. Nessa explanação, a PR explora outros
216
aspectos relativos ao suporte de circulação das cartas, relacionando a periodicidade de publicação
dos exemplares de revista e jornal, a durabilidade do material com o qual cada um é produzido, a
abrangência do público a quem são destinados (nacional ou local), o decorrente número de cartas
enviadas aos veículos de comunicação e a probabilidade maior ou menor de que as cartas
enviadas sejam efetivamente publicadas. Até esse momento, portanto, a PR se ateve ao contexto
social mais amplo de circulação do gênero estudado e a aspectos extralinguísticos relacionados à
sua publicação (tais como o espaço destinado às cartas ou o material do suporte de circulação).
Trata-se de uma abordagem em consonância com a perspectiva sociointeracionista de linguagem,
referida pela PR durante a entrevista inicial, uma vez que ambos os elementos, como vimos no
terceiro capítulo desta dissertação, determinam a estrutura da enunciação (BAKHTIN, 2014
[1929]).
Após a contextualização inicial, a continuação da aula acontece por meio da análise
coletiva e oral de cartas do leitor específicas selecionadas pela PR. Esses textos constavam em
três revistas que a PR levou para a sala de aula: Continente, Ciência Hoje das Crianças e
Horizonte Geográfico. Abaixo, reproduzimos as capas das edições apresentadas pela PR:
Figura 38: Capas das revistas utilizadas para o trabalho com as cartas do leitor (PR)
Antes de começar a folhear as revistas, a PR, mais uma vez, explora os conhecimentos
prévios dos alunos, solicitando-lhes, a partir da observação das capas dos exemplares
apresentados, a formulação de hipóteses relativas ao público-alvo a que cada uma das revistas se
dirige e ao tipo de linguagem mais provável de ser nelas encontrado. À medida que os alunos
217
expunham suas primeiras impressões, a PR ia fazendo colocações que complementassem as
respostas dos alunos. Quando, por exemplo, foi atribuído à publicação Horizonte Geográfico um
público-alvo mais adulto, a PR procurou especificar melhor o perfil dos grupos que
eventualmente a revista poderia cativar. Direcionando a análise para a realidade escolar dos
alunos, chamou a atenção da turma para o possível interesse que os professores de geografia
poderiam manifestar em relação à revista, dada a esfera de conhecimento com a qual trabalham.
Nas hipóteses referentes a todas as revistas, a reflexão principal que a PR buscava suscitar era de
que a imagem que se faz do público-alvo interfere nas escolhas linguísticas daqueles que
produzem os textos contidos nas publicações. De fato, Bakhtin (1992 [1979], p. 301) vê no
endereçamento do enunciado um traço que lhe é constitutivo e, por essa razão, determinante na
composição e no estilo do gênero discursivo:
[...] A quem se destina o enunciado, como o falante (ou o que escreve) percebe e
representa para si os seus destinatários, qual é a força e a influência deles no enunciado –
disto dependem tanto a composição quanto, particularmente, o estilo do enunciado. Cada
gênero do discurso em cada campo da comunicação discursiva tem a sua concepção
típica de destinatário que o determina como gênero.
É nesse sentido que o filósofo russo, já em 1929, enfatizava com certa insistência o
compromisso que os interlocutores estabelecem quando interagem por meio de uma dada
enunciação, um produzindo réplicas ao dizer do outro a partir dos discursos pregressos e das
reações que esperam serem produzidas pelo outro a partir do que enunciam (BAKHTIN, 2014
[1929]). É esse posicionamento que leva o autor, muitos anos depois, a defender que “a escolha
de todos os recursos linguísticos é feita sob maior ou menor influência do destinatário e da sua
resposta antecipada” (BAKHTIN, 1992 [1979], p. 306, grifo do autor). No caso do gênero
focalizado pela PR durante as observações de nosso trabalho de campo, o direcionamento e a
responsividade do enunciado são particularmente explícitos, pois a composição e o estilo da
linguagem na carta do leitor apontam diretamente o(s) interlocutor(es) a quem se destina. Além
disso, o próprio conteúdo das cartas refere-se a um universo de referência partilhado pelos
participantes do processo interlocutivo instaurado.
Discutidos os potenciais destinatários das revistas apresentadas, a PR anuncia aos alunos
que folheará cada um dos exemplares a fim de que eles confirmem ou refutem as hipóteses
previamente levantadas. Ela começa a executar esse trabalho pela revista Continente, mostrando,
antes de fazer a leitura das cartas do leitor, a estrutura do sumário e a existência também de uma
218
carta ao leitor na abertura da revista. A PR apresenta o sumário como uma espécie de síntese das
matérias que compõem a publicação e nele localiza a seção dedicada às cartas do leitor. Em
seguida, abre a revista na página indicada pelo sumário para a referida seção. A curta extensão do
espaço dedicado às cartas do leitor causa estranhamento em alguns alunos, e a PR aproveita essa
reação para relembrar que nem todas as cartas enviadas ao veículo de comunicação são
efetivamente publicadas. Em seguida, ela diz aos alunos que a edição que tem em mãos data de
outubro de 2010 e que se trata de uma revista de publicação mensal. A partir dessa informação,
pergunta aos alunos: “A carta que foi publicada nessa revista... ela foi... ela se refere a uma
matéria que foi publicada em qual edição?”. Os alunos demonstram um pouco de dificuldade para
responder à indagação da PR, mas logo percebem que as cartas remetem a matérias disponíveis
na edição imediatamente anterior, de setembro de 2010. Antes de iniciar a leitura da primeira
carta do leitor, a PR apresenta, ainda, mais uma informação sobre o funcionamento do gênero
estudado: ela explica que algumas revistas respondem às cartas que são publicadas, e outras não
respondem. No caso da revista Continente, as respostas são também publicadas.
No fragmento transcrito abaixo, a PR inicia a análise da primeira carta do leitor a ser lida
para a turma:
PR: E a carta diz o seguinte, olha... O título da carta... Sim... Quando a carta vai ser publicada, ela recebe um
título. Quando a gente escreve, a gente escreve uma carta normal. “Recife, 27 de outubro de 2015”... Aí,
“prezado editor da revista Continente”, por exemplo... Aí, escreve a carta, se despede e assina o seu nome. A
carta a gente escreve assim, vai chegar lá assim. Quando ela é editada, desaparecem alguns dados, como
local e data, às vezes a saudação desaparece pra enxugar a carta, e no final vai ter o seu nome e de onde você
escreveu. E às vezes tem até o seu e-mail. Depende da revista. Certo? Essa daqui... E recebe um título a carta,
um título de acordo com o conteúdo da carta. Essa daqui, por exemplo, o título é “Mais teatro”. E olha o que
acontece com... o que é que aparece de imagem... Um palco com uma cortina e uma parte vermelha e uma
parte da cortina aberta. Pelo título da carta , a gente já pode imaginar... “Mais teatro”... A gente já pode
imaginar o conteúdo da carta, não é verdade? Aí, vejam só... Muito provavelmente, essa imagem, essa imagem
aqui está lá na matéria que a pessoa leu... que [lendo o nome do leitor na revista:] Samuel Santos leu, certo?
Então, vejam o que ele diz na carta dele. Porque depois eu vou perguntar a vocês se ele está elogiando, se está
sugerindo, se está reclamando, o que é que ele está fazendo na carta.
Figura 39: Apresentação de carta do leitor publicada na revista Continente à turma (PR)
Os primeiros elementos destacados pela PR são aqueles que, ao folhear a revista, o leitor
visualiza antes mesmo de iniciar a leitura do corpo do texto: o título e as imagens que fazem
referência ao conteúdo da carta e que, por isso, permitem ao leitor uma antecipação de seu
universo de referência. Dessa forma, nota-se a preocupação da PR, anunciada já na ocasião da
entrevista inicial, de, no trabalho com os gêneros textuais, procurar proporcionar aos alunos uma
219
vivência aproximada do contexto social em que os textos efetivamente circulam. Por isso, ela
valoriza o convívio com os textos no suporte de circulação – o que foi oportunizado ao menos no
primeiro contato com o gênero – e dá relevo aos recursos linguísticos e extralinguísticos que
entram em jogo no diálogo que os leitores travam com as cartas do leitor no âmbito extraescolar.
Noutras palavras, a PR parece atentar para o funcionamento real das práticas de leitura, fugindo
ao artificialismo denunciado por Geraldi (1991) como recorrente no ensino tradicional de
português.
Após a apresentação inicial transcrita na Figura 39, a PR finalmente parte para a leitura
da carta do leitor, reproduzida na imagem abaixo18
:
Figura 40: Carta do leitor publicada na revista Continente (PR)
Cabe salientar que a PR prefere fazer ela mesma a primeira leitura dos textos que traz para
as atividades de sala de aula. Às vezes, ela opta pela leitura individual silenciosa ou por uma
leitura em dupla, em que os alunos devem comentar o texto com o colega, mas nunca demanda
18
SANTOS, S. Mais teatro. Revista Continente, Recife, v. 10, n. 118, edição 1, p. 6, out. 2010. Disponível em:
<https://issuu.com/revistacontinente/docs/118_-_out_10_-_armorial>. Acesso em: 05/07/2016.
220
que cada aluno vá lendo em voz alta partes do texto, pois considera, diante de experiências
pregressas, que essa forma de leitura coletiva fragmenta a compreensão global do texto por parte
dos alunos. Além disso, a PR contou, durante a entrevista inicial, que acredita na necessidade de
um modelo de leitor no trabalho pedagógico com a leitura, papel em que ela se coloca, conforme
explica no excerto abaixo:
Olha, eu gosto muito de fazer leitura compartilhada com eles. Leitura compartilhada é aquela leitura em que
eles formam... fazem... Eu gosto de fazer assim: fazem dupla – certo? – e leem e vão trocando ideias sobre o
texto. Certo? Eu acho que isso é um trabalho muito bom porque um vai completando o outro. A leitura oral eu
não sou muito a favor... da leitura oral porque... principalmente quando é a primeira... sendo a primeira
leitura... Eles me pedem muito. Eu acho que... Eu acho que eu sou a única professora deles que eles devem
ficar desapontados... de língua portuguesa... que não faz a leitura com eles assim oral, cada um lê um
pedacinho. E eu não faço de jeito nenhum se for a primeira... se for o primeiro contato com o texto. Eu sei que
fragmenta a compreensão. Eu já percebi... Sempre que fazia esse tipo de atividade, eu notava... Eles não têm
compreensão. “Vamos ler tal texto. Abram o livro...” Pegam o livro, aí: “Vamos ler!”... “Lê você um
pedacinho, lê você outro pedacinho, pedacinho...” Quando você vai sobrepondo pra aquela habilidade, aquele
descritor do SAEB, do SAEPE, da Prova Brasil, que é “compreender o sentido ou a ideia central ou a ideia
global do texto”, acabou-se o texto... Você fragmentou todinho. Então, esse tipo de atividade eu não faço.
Então, eu gosto muito de ler, porque eu acredito muito, diante de tudo que eu já li na minha vida e diante da
minha experiência de sala de aula, eu acredito muito que a gente precisa ser um modelo de leitor pra eles,
porque eles têm muito pouco modelo de leitor. Então, eles precisam ter no professor, pelo menos no professor
de língua, um modelo de leitor, certo? Eles precisam escutar mais o professor ler. Como eles vêm de uma
sociedade, né, de uma família em que provavelmente, muito provavelmente, se lê muito pouco pra eles ouvirem
o adulto lendo, então eu procuro fazer essa parte de ser aquele leitor adulto, maduro, pra que eles percebam...
E eu gosto que eles acompanhem a leitura... Pra perceber as entonações, pra perceber quando tem uma caixa
alta, quando tem um negrito, um tom de voz que eu uso, eu mudo, eu... [...]
Figura 41: Comentário sobre o papel do professor enquanto modelo de leitor (PR)
Geraldi (1991), ao resgatar o espaço que o texto veio historicamente ocupando no ensino
de língua materna, identifica uma predominância do que considera uma peculiar forma de
inserção do texto na sala de aula: a utilização do texto como modelo. Um dos vieses que ele
percebe nessa forma como o texto aparece na escola diz respeito justamente à oralização do texto
escrito, em que a avaliação da leitura do aluno tinha como parâmetro a leitura do professor.
Trata-se, para o autor, de mais uma situação pedagógica que denota a convergência das
atividades escolares para a reprodução de conhecimentos, pois se legitima um padrão de leitura
centrado na figura do professor, a despeito da pluralidade de sentidos e de vozes que marcam o
texto enquanto fenômeno da língua. A PR demonstrou, durante a entrevista, privilegiar uma
atitude investigativa dos alunos em relação aos fenômenos linguísticos estudados na escola e
valorizar as conclusões a que eles conseguem chegar como resultado do processo reflexivo em
que se engajam com a mediação dela. Veremos, com os dados concernentes à prática observada,
221
que, em muitos momentos, ela reiterou esse perfil de trabalho. No entanto, conforme vimos no
terceiro capítulo de nossa fundamentação teórica e mesmo em algumas considerações que
fizemos na subseção anterior sobre os dados da entrevista inicial, as ações constitutivas da prática
docente não se encadeiam em torno de uma coerência teórica, fundamentada nos saberes
adquiridos ao longo da formação acadêmica. Os saberes teóricos (ou, nos termos de Chartier
(2000a [1995], 2007), os saberes discursivos) não são simplesmente transpostos para o plano
prático, mas são retraduzidos em função das circunstâncias concretas da atuação profissional. Por
isso, o elo firmado entre as ações do professor em sua prática de ensino é de natureza pragmática
(cf. CHARTIER, 2007; TARDIF, 2002). Nessa perspectiva, a experiência da PR parece validar o
caminho didático por ela adotado para a realização de leituras na sala de aula, pois foram as suas
vivências práticas e a reflexão sobre o funcionamento dessas vivências que a levaram à firme
convicção de que sua leitura deve servir de modelo para os alunos e de que a “leitura
compartilhada” fragmenta a compreensão global do texto.
Após fazer a leitura da carta do leitor reproduzida na Figura 40, a PR faz algumas
intervenções para mediar uma discussão coletiva sobre os sentidos do texto em análise, como
podemos perceber no fragmento de aula abaixo:
PR: Quem escreveu a carta foi Samuel Santos, de Recife, capital de Pernambuco, aqui... E ele escreveu pra
quê?
Aluno: Pra revista.
PR: Pra quê? Foi pra agradecer?
Aluno: Não.
PR: Foi pra quê?
Aluno: Pra dar opinião.
PR: Sim, sempre é pra dar uma opinião. Agora, ele escreveu pra quê? Está falando sobre o quê? O que é que
ele quer?
Aluno: Um novo lançamento.
PR: Um novo lançamento? Quase isso. Ele pede mais espaço. Mais espaço pra quê?
Aluna: Para o teatro de Pernambuco.
PR: Para os artistas pernambucanos, para o teatro pernambucano. E ele é um artista, ele está dirigindo uma
peça. Ele quer espaço, não é? Então, ele está escrevendo para... Ele fala bem da revista ou fala mal?
Aluno: Fala bem.
222
PR: Fala bem, não é? Ele, de qualquer forma, elogia a revista. Mas, ao mesmo tempo, ele soli... [Silêncio.] Ele
soli...
Alunos: ...cita.
PR: Ele solicita. Ele solicita espaço para os artistas pernambucanos, não é? E a revista responde. Olha o que
é que a revista diz. [Lê a resposta da revista, reproduzida na Figura 40.] A revista, a redação da revista
valorizou a carta dele?
Aluno: Aham.
Aluno: Valorizou.
PR: Valorizou. Deu importância, disse que era importante ele ter escrito, estar preocupado com a cultura
pernambucana, não é? Mas a revista insiste em dizer que vai [...] continuar publicando matérias sobre a
cultura pernambucana, mas também sobre a cultura de toda parte do Brasil. Ok?
Figura 42: Exploração da intencionalidade discursiva na carta do leitor (PR)
O fragmento de aula acima atesta que predomina, no trabalho de interpretação textual
mediado pela PR, a preocupação com a intencionalidade discursiva, de tal forma que, em resposta
ao aluno que identificou a exposição de uma opinião como o propósito do autor da carta lida, a
docente destaca a presença invariável do componente opinativo nas cartas do leitor. Por isso,
demanda da turma uma resposta mais específica quanto ao objetivo subjacente ao
posicionamento do autor da carta. Sua atitude parece evidenciar que, por recusar a neutralidade
da produção discursiva do sujeito, ela concentra a análise no reconhecimento da intencionalidade
do locutor. Bakhtin (1992 [1979], p. 281-282, grifos do autor), ao explicitar os elementos que
regulam as escolhas linguístico-discursivas do enunciador na produção de um texto de
determinado gênero, reforça o papel decisivo que a intenção discursiva desempenha nesse
processo:
Em cada enunciado [...] abrangemos, interpretamos, sentimos a intenção discursiva de
discurso ou a vontade discursiva do falante, que determina o todo do enunciado, o seu
volume e as suas fronteiras. Imaginamos o que o falante quer dizer, e com essa ideia
verbalizada, essa vontade verbalizada (como a entendemos) é que medimos a
conclusibilidade do enunciado. [...] A vontade discursiva do falante se realiza antes de
tudo na escolha de um certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela
especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, pela composição pessoal
dos seus participantes, etc.
A PR focalizou a intencionalidade discursiva dos locutores em todas as ocasiões de
trabalho com textos que presenciamos. No caso das cartas do leitor, ela procurou sempre chamar
a atenção dos alunos para o caráter responsivo dos textos em relação a uma produção discursiva
pregressa (as matérias a que as cartas faziam referência, seja para comentá-las, elogiá-las, criticá-
223
las ou assumir ante elas qualquer outra forma de posicionamento). Entretanto, é curioso o fato de,
em nenhum momento, os alunos terem tido acesso aos textos que originaram os posicionamentos
expressos nas cartas lidas, pois nos parece que uma análise contrastiva com os textos motivadores
poderia dar mais nitidez aos contornos do inevitável diálogo que as cartas do leitor pressupõem.
As abordagens didáticas das outras duas cartas do leitor lidas em sala de aula (uma da
revista Horizonte Geográfico e outra da Ciência Hoje das Crianças, conforme Anexo A)
assemelham-se bastante ao percurso que a PR seguiu para explorar a primeira carta (Figura 40).
Por isso, não mapearemos detalhadamente as ações da PR no trabalho com as demais cartas
apresentadas nesse mesmo dia. Limitamo-nos a expor os procedimentos que diferiram daqueles
adotados na abordagem da primeira carta: a comparação entre o grau de formalidade da
linguagem utilizada em cada uma das publicações e a relação das escolhas linguísticas dos
locutores com os participantes envolvidos nos processos interlocutivos instaurados pela escrita e
leitura das cartas. Os dois fragmentos de aula abaixo transcritos representam os momentos em
que, na abordagem de cada uma das cartas reproduzidas no Anexo A, a PR toca na questão da
linguagem empregada:
PR: A linguagem... Vejam... A linguagem usada nessa revista [Horizonte Geográfico] é mais formal ou mais
informal do que essa... a linguagem aqui dessa pessoa que escreveu nessa carta [mostrando a revista
Continente]? Qual é a mais formal? A da primeira ou a da segunda?
Aluno: A da primeira.
PR: A da primeira. Porque é uma pessoa...
Aluno: Adulta?
PR: ...adulta. Então, a linguagem muda. Aqui [mostrando a revista Horizonte Geográfico], é uma... é um
menino, um rapaz, um garoto de doze anos de idade, né? Então, a linguagem muda.
Figura 43: Análise comparativa quanto ao grau de formalidade da linguagem utilizada nas
cartas do leitor publicadas nas revistas Continente e Horizonte Geográfico (PR)
PR: Agora... Qual é a idade de Leila [autora da carta do leitor publicada na revista Ciência Hoje das Crianças]?
Alunos: Treze.
PR: Treze anos. A linguagem que Leila usa pra escrever a carta dela na revista Ciência Hoje das Crianças é a
mesma linguagem que Samuel usou nessa revista [apontando para a revista Continente]?
Alunos: Não.
PR: Perceberam a diferença?
224
Alunos: Percebemos.
PR: A língua, quanto mais uma pessoa tem um nível de escolaridade maior, mais ela vai mudando a forma de
escrever. Vocês vão escrever uma carta hoje; daqui a quinze anos, vocês vão escrever com um nível mais
formal, porque aí vocês vão ter... E inclusive a própria revista, a própria idade, a própria revista vai dizer, vai
determinar o tipo de linguagem que a gente vai encontrar, né, na revista. Com certeza, a gente vai encontrar,
nessas duas revistas, Continente e Horizonte Geográfico, uma linguagem aqui [apontando para a revista
Continente] um pouco mais formal, aqui [apontando para a revista Horizonte Geográfico] mais ou menos
formal – porque aqui teve uma pessoa de doze anos escrevendo... E aqui [apontando para a revista Ciência
Hoje das Crianças] vocês sabem que, nessa, uma linguagem mais informal. Muito bem! Ok.
Figura 44: Análise comparativa quanto ao grau de formalidade da linguagem utilizada nas
cartas do leitor publicadas nas revistas Continente, Horizonte Geográfico e Ciência Hoje das
Crianças (PR)
Os fragmentos acima, como previamente anunciamos, mostram situações em que a PR
explora o grau de formalidade dos textos lidos em cada uma das revistas trazidas para a sala de
aula. Ela procura mostrar aos alunos que a (in)formalidade da linguagem depende da situação
enunciativa, embora restrinja essa reflexão a apenas uma variável dessa situação: a faixa etária
(associada ao nível de escolaridade) dos participantes da interlocução. É verdade que as respostas
dos alunos coincidiam com aquelas esperadas pela PR, mas não houve uma retomada da
caminhada interpretativa dos alunos-leitores, como propõe Geraldi (1991, 1996). Talvez por isso
não tenham ficado muito claras as razões que fizeram a turma e a PR avaliarem a diferença no
grau de formalidade entre as cartas publicadas nas revistas Continente e Horizonte Geográfico,
ambas destinadas ao público adulto (ainda que a carta escolhida para a leitura coletiva tenha sido
escrita por uma criança). Veja-se que, ao final do excerto da Figura 44, a PR atribui não apenas à
carta lida, mas à revista Horizonte Geográfico a presença de uma linguagem menos formal do
que aquela encontrada na revista Continente. Se essa informação procede, que outros elementos
entram em jogo para determinar as escolhas linguísticas dos autores dos textos que ali circulam?
O resgate do percurso trilhado durante a leitura – no caso do trabalho aqui proposto, a busca dos
recursos linguísticos que provocassem a impressão de (in)formalidade – poderia ampliar a
compreensão dos alunos sobre o funcionamento dos recursos linguísticos na produção de um
efeito de sentido mais ou menos formal para o leitor. De qualquer forma, cabe salientar que o
trabalho realizado durante as aulas 2 e 3, analisadas até o momento, tinha o objetivo de promover
um primeiro contato da turma com o gênero a ser estudado. É possível que o caráter introdutório
dessas aulas tenha levado a uma abordagem interpretativa menos aprofundada dos textos lidos.
Uma evidência que corrobora essa hipótese é a mudança de postura na aula seguinte, quando a
225
PR fez uma análise mais detalhada acerca de alguns exemplares do gênero por ela selecionados
para compor uma ficha (Anexo C). Veja-se, no fragmento abaixo, como a PR medeia a reflexão
sobre a intencionalidade discursiva e sobre a relação entre a linguagem utilizada e os
interlocutores envolvidos no processo interlocutivo instituído pela carta do leitor focalizada (carta
1 da ficha reproduzida no Anexo C):
PR: A linguagem é uma linguagem mais formal, mais adulta, ou é uma linguagem mais dos jovens?
Alunos: Dos jovens.
PR: É uma linguagem mais dos jovens. Tem elementos do tipo “revista tão legal”, né, “seções
divertidíssimas”, né? Então, muito bacana. [...] A turma do sétimo A dessa escola estadual escreveu com que
objetivo?
Alunos: Pra agradecer.
Aluno: E dizer assim... que gostou...
PR: Agradecer? Agradecer o quê?
Aluno: Parabenizar...
PR: Parabenizar... Parabenizar o quê?
Aluna: A revista...
Aluno: O trabalho dela...
PR: A qualidade da revista, né? Que expressões a turma usa na carta pra demonstrar que vocês chegam à
conclusão de que está parabenizando a revista e que gostaram da revista?
[Vários alunos falam ao mesmo tempo.]
PR: “A revista é tão legal”, “divertidíssima”, seções divertidíssimas”... Que mais?
[...]
PR: Que eles estão curiosos pra saber como é feito o lápis... é um elogio? É um elogio à revista?
Alunos: Não.
PR: Não. Eu quero trechos que mostrem que é um elogio à revista.
Aluno: Porque eles falam assim: “Queremos parabenizar”.
Aluno: “Estamos curiosos”.
PR: Sim... “Queremos parabenizar”, ok. Está parabenizando. Aí, ele diz características da revista, que eles
acham muito legal, e por isso tão parabenizando. Aí, a gente tem “uma revista tão legal”...
Aluno: “Adoramos ler”...
226
PR: Agora... “Adoramos ler todas as edições que chegam aqui na escola”... Isso é um elogio.
Aluno: “Achamos tudo muito colorido”...
PR: “Achamos tudo muito colorido”, “muito legal”, “há seções divertidíssimas”, vocês também disseram...
Ok. Muito bem! Então, eles escreveram pra elogiar a revista. Mas eles escreveram pra mais alguma coisa?
Com mais alguma intenção?
Aluna: Pra pedir.
PR: Pra solicitar. Solicitar o quê?
Aluno: Como se faz o lápis.
PR: Solicitar uma matéria, que seja escrita uma matéria que responda à pergunta deles. Qual é a pergunta
deles?
Aluna: Como se faz um lápis e aquele...
Aluna: Lápis de colorir.
PR: Como é feito o lápis de escrever e de colorir. Uma matéria sobre como é feito o lápis de escrever e o lápis
de colorir é uma matéria que cabe na revista Recreio? Esse pedido que eles estão fazendo é um pedido que
cabe, que está de acordo com o que a revista Recreio publica? Sim ou não?
Aluno: Sim.
PR: Sim... A revista Recreio, ele diz aqui... A revista Recreio publica matérias de curiosidades, várias
curiosidades. Uma matéria sobre como é feito o lápis de escrever e o lápis colorido é ou não uma
curiosidade?
Aluno: É.
PR: Até eu quero saber...
Figura 45: Retomada do percurso interpretativo dos alunos após leitura de carta do leitor (PR)
Se o caráter introdutório das primeiras aulas fazia com que a PR se contentasse com
respostas mais breves a seus questionamentos desde que lhe parecessem consistentes, nessa
segunda etapa do trabalho com a carta do leitor era comum que ela solicitasse aos alunos que
justificassem suas análises com base em dados dos textos lidos. Esse procedimento didático
permitiu a um dos alunos reconhecer a inadequação da interpretação que havia dado a um trecho
da carta (a manifestação de curiosidade quanto ao processo de produção do lápis de cor como
uma evidência da intenção de elogiar a revista). Geraldi (1991) já alertava para o potencial de tal
retrospecto interpretativo para se identificar a origem de uma compreensão equivocada do texto.
Além disso, o procedimento da PR parece estimular os alunos a buscarem nas pistas linguísticas
fornecidas pelo autor a confirmação das impressões iniciais que eles elaboram durante a leitura.
227
Para finalizar o primeiro contato dos alunos com as cartas do leitor apresentadas pela PR
nas aulas 2 e 3, ela solicitou-lhes a realização de uma atividade que adquire particular relevância
para a análise proposta nesta pesquisa por demandar mais explicitamente a produção de
conhecimentos com base na observação e na investigação de um fenômeno linguístico focalizado
durante a aula. Na Figura 46, a seguir, temos acesso ao comando da PR para o cumprimento da
atividade:
PR: Nós conversamos aqui uma porção de coisas sobre carta do leitor, não foi?
Aluno: Foi.
PR: Quando é publicada, por que é escrita, pra que serve, o que é que a pessoa escreve... Eu quero que vocês
digam com as palavras de vocês, do jeito de vocês... Pode ser assim, ó, em forma de tópico [faz os tópicos no
quadro]. Vocês podem topicalizar... Usar um asteriscozinho assim, ó, um pontinho, ou pode colocar: “Um...
Carta do leitor, isso, isso e isso...”. Aí, ó, topicaliza e coloca em forma de tópico. Podem fazer isso em dupla,
porque um vai ajudando o outro a lembrar... [...] Porque aí vocês vão lembrando melhor... Um vai lembrando
ao outro sobre as coisas que aprenderam sobre esse gênero textual, carta do leitor. Mãos à obra! Só sai quem
fizer.
[...]
Aluna: Quantas linhas?
PR: Eu não vou dizer quantas linhas. Eu quero que você escreva tudo que você aprendeu sobre carta do leitor,
até... [...] Você vai escrever tudo o que você aprendeu, certo? Até quando se esgotar. “Aprendi tudo isso” [...]
Eu quero que vocês digam com as palavras de vocês.
[...]
PR: Amanda me perguntou se eu vou corrigir no caderno de cada um ou no quadro. Eu vou corrigir no
caderno de cada um porque cada um vai escrever do seu jeito.
Figura 46: Sistematização de conhecimentos sobre a carta do leitor (PR)
À semelhança do trabalho com as terminações verbais –am e –ão que a PR descreveu
durante a entrevista inicial, a culminância da análise introdutória relatada neste subitem foi um
exercício de teorização quanto às particularidades do gênero carta do leitor. Trata-se de uma
atividade metalinguística decorrente do envolvimento dos alunos em atividades epilinguísticas
(cf. FRANCHI, 2013 [1987]; GERALDI, 1991, 1996), uma vez que, para fazer as reflexões
propostas pela PR, foi necessário interromper a progressão do tema abordado durante a atividade
linguística empreendida (a leitura das cartas) para, operando sobre a linguagem, compreender o
modo como ela funciona na produção de sentidos e no cumprimento de determinadas funções
sociais no domínio das interações verbais cotidianas. Dessa forma, em vez de disponibilizar aos
228
alunos os conhecimentos linguísticos já produzidos sobre o gênero carta do leitor, a PR encadeia
uma série de procedimentos didáticos que, com sua colaboração, permitam à turma debruçar-se
sobre um dado fenômeno da língua (o gênero carta do leitor) e assumir ante esse objeto uma
postura investigativa, tal como recomenda Geraldi (1991) para o ensino de língua materna como
um todo, e em especial para as práticas escolares de análise linguística. A PR desenvolve, assim,
o que Mendonça (2006) chama de metodologia reflexiva (cf. Quadro 2), em que a percepção das
regularidades do fenômeno estudado provém da observação de casos particulares. Isso não
significa que, em alguns momentos, a PR não tenha se valido de uma metodologia transmissiva,
pois vimos que era comum, diante das questões que ia colocando aos alunos, ela mesma comentar
alguns dos aspectos que pretendia abordar acerca do gênero explorado. Longe de se ater a um
modelo fixo de ensino, a PR ia construindo sua prática no aqui e agora da sala de aula (cf.
CHARTIER, 2000a [1995]), de acordo com os caminhos que lhe pareciam satisfatórios diante
das condições concretas de trabalho encontradas, sobretudo das necessidades que ela percebia a
partir das interações travadas com os alunos. É perceptível, na maior parte dos diálogos
registrados durante o trabalho de campo, que as respostas dos alunos (ou a falta delas) guiavam
paulatinamente a definição dos próximos passos a serem tomados.
Do modo como expôs no depoimento da Figura 25, na avaliação da PR, era mais
importante a construção do conhecimento com base no que os alunos efetivamente
compreenderam a partir das reflexões promovidas nas aulas do que a reprodução dos saberes
elaborados e difundidos pelos especialistas na área. No Anexo B, disponibilizamos imagens dessa
atividade tal como executada nos cadernos de quatro alunos. A despeito dos problemas
linguísticos apresentados na escrita deles, é possível identificar em suas tentativas de
sistematização das especificidades do gênero carta do leitor a abordagem de alguns dos tópicos
explorados pela PR no decorrer da aula, a saber: a intencionalidade discursiva do locutor, a
modalidade de uso da linguagem, a necessária referência a outro texto publicado pelo veículo de
comunicação no qual a carta circula (intertextualidade), os interlocutores envolvidos, os suportes
de circulação, a relação entre as escolhas linguísticas constitutivas da carta (principalmente no
que dizem respeito ao grau de formalidade da linguagem) e o perfil do locutor (sobretudo quanto
à sua faixa etária), os tipos de carta (dentre as quais, a do leitor). O resultado da atividade indicia,
portanto, a possibilidade de elaboração produtiva de conhecimentos pelos alunos mediante
intervenções do professor de língua materna.
229
Podemos dizer, enfim, que a PR, durante o trabalho com a leitura de cartas do leitor,
procurou oportunizar situações de reflexão linguística, valorizando o ato de tomar a língua(gem)
como objeto e conduzindo a prática de análise linguística da epilinguagem para a metalinguagem
(cf. FRANCHI, 2013 [1987]; GERALDI, 1991, 1996). Buscando impulsionar a vivência de seus
alunos em situações concretas de interação, utilizou como materiais didáticos textos no próprio
suporte em que eles circulam socialmente (revistas) e procurou priorizar, na discussão por ela
mediada, questões relativas ao funcionamento do gênero estudado. Fica evidente que a PR, como
havia relatado na ocasião da entrevista inicial, não se limita aos conteúdos explorados no livro
didático. Caso um determinado tópico não esteja previsto na proposta da coleção, mas conste no
documento curricular da prefeitura e ela o considere relevante para a turma à qual ensina, a PR
não hesita em produzir o material necessário para desenvolver o trabalho em questão.
No caso da carta do leitor, além das revistas cujas capas estão reproduzidas na Figura 38,
a PR também fez uso de uma ficha de aula (Anexo C), como poderemos constatar na análise da
aula 4 (cf. Quadro 10) a seguir. Para compor essa ficha, a PR selecionou seis cartas do leitor
oriundas de veículos de comunicação diversos (revista Recreio e os jornais Correio da Tarde,
Folha de São Paulo e Gazeta de São Paulo). O material preparado pela PR não apresenta questões
para serem respondidas pelos alunos, pois elas foram propostas pela docente oralmente ou em
exercícios copiados no quadro, à medida que cada texto era tematizado nas aulas. Para fins de
análise, focalizamos apenas aqueles trabalhados na aula 4, por razões já explicitadas: são as
cartas 1 e 2 (Anexo C). Por já termos descrito e analisado parte do trabalho desenvolvido com a
carta 1 na Figura 45 ainda há pouco, enfocaremos a partir de agora as ações da PR em torno da
carta 2.
Durante a aula 4, a PR deu continuidade ao trabalho com a carta do leitor, trazendo para
os alunos mais exemplares do gênero estudado para análise coletiva. Pudemos perceber algumas
semelhanças e diferenças em relação ao trabalho realizado nas aulas anteriores (aulas 2 e 3). A
primeira delas foi explicitada na análise do fragmento da Figura 45. Outra diferença que salta à
vista é no material didático utilizado. Vimos que, nas aulas anteriores, a PR apresentou o gênero
carta do leitor aos alunos a partir de textos efetivamente publicados, trazendo, para tanto, os
suportes de circulação para a sala de aula (revistas). Dessa vez, permanece a presença de
autênticas cartas do leitor – todas elas oriundas de revistas ou jornais impressos –, mas agora o
suporte desaparece. A PR disponibiliza cópias das cartas para os alunos reunidas na ficha
230
reproduzida no Anexo C. Entretanto, é curioso notar a preocupação da PR, na carta 2 da ficha, em
fotocopiar duas versões da carta, uma como originalmente foi enviada e outra como foi publicada
no jornal. Em nenhum dos dois casos, ela opta por copiar o texto da carta, e sim por expor a
imagem da carta manuscrita por um de seus autores e, na sequência, a imagem da carta tal como
foi publicada no jornal Correio Popular (o nome específico do jornal é desconhecido pela PR, o
que a leva a referir-se a ele apenas como um jornal publicado na cidade de Campinas). Tendo em
vista que todas as demais cartas contidas na ficha tiveram o corpo do texto transcrito, sem a
imagem de sua publicação nos veículos de comunicação a que se destinavam, é de se imaginar
que a decisão da PR de fotocopiar as versões da carta 2 não é aleatória. De fato, a observação do
modo como a docente explorou esse texto com os alunos atesta a existência de motivações
didáticas em sua escolha. O objetivo da PR com a reprodução dessas cartas era mostrar para os
alunos como funcionava, na prática, a dinâmica de interação entre o leitor e os profissionais dos
veículos de comunicação através do gênero carta do leitor. Se nas aulas anteriores ela havia
explicado o contexto de produção das cartas para os alunos e havia anunciado que, num período
próximo, eles deveriam vivenciar circunstâncias de interlocução parecidas, agora ela lhes
apresenta o resultado da experiência de outros estudantes que desenvolveram o mesmo tipo de
atividade com a mediação de sua professora. Na Figura 47, abaixo, reproduzimos as duas versões
da carta 2:
Figura 47: Carta do leitor em versão originalmente produzida e em versão publicada (PR)
231
A PR inicia o trabalho em torno da carta 2 por sua versão original. Como de costume,
antes de fazer a primeira leitura, faz alguns comentários com o intuito de contextualizar as
circunstâncias em que a carta foi produzida. Neste caso, trata-se de uma escrita coletiva de alunos
de uma turma de quarta série junto com sua professora para o jornal Correio Popular, que circula
na cidade de Campinas. Possivelmente, a carta foi a culminância de uma atividade escolar em que
os alunos, após fazerem a leitura de uma determinada matéria do jornal, expressaram seu
posicionamento ante o texto lido para os redatores do veículo de comunicação. A PR alerta os
alunos para o fato de que a carta, por estar na forma manuscrita, corresponde à versão tal como
escrita pela turma. Depois desses breves esclarecimentos, a PR procede à leitura em voz alta da
carta e, novamente, centra a discussão nas intencionalidades discursivas que a leitura permite
inferir, mas também no assunto do qual os autores tratam (a possibilidade de utilizar o celular
como ferramenta de aprendizagem). A PR, então, transforma a abordagem da carta em mote para
discutir a realidade da escola em que trabalha e onde os alunos estudam. Ela conversa com eles
sobre a viabilidade de se utilizar o celular como ferramenta de aprendizagem na escola, conforme
sugeria a carta do leitor focalizada. Foi, no nosso entendimento, um momento de
entrecruzamento das palavras do texto às contrapalavras dos alunos, como propõe Geraldi (1991)
com as práticas escolares de leitura, pois os alunos puderam revisar seus pontos de vista sobre a
temática abordada na carta e relacioná-la à própria realidade.
No que tange à reflexão linguística propriamente dita, a PR tanto complementou o
trabalho com a carta do leitor num plano mais amplo – isto é, mediando as descobertas dos
alunos quanto às peculiaridades do gênero – quanto chegou a fazer intervenções bem pontuais
sobre alguns recursos linguísticos empregados na carta, como no fragmento abaixo transcrito:
PR: E qual o título da matéria que eles estão fazendo referência? O título da matéria...
Aluna: “Telefone celular também é usado para alfabetização”.
PR: Ok. Como é que você sabe disso, Joana? Como é que você chegou à conclusão de que esse é o título da
reportagem?
Aluna: Porque ela diz na carta.
PR: Hãn? Porque ela está falando na carta? Qual o sinal gráfico...?
Aluna: As aspas.
PR: As aspas também ajudam a mostrar ao leitor que aquele ali é o título. Normalmente quando a gente vai
citar o título da matéria ou da reportagem que a gente leu na carta do leitor, a gente, além de colocar o título,
232
que a gente coloca entre aspas, a gente coloca a data que foi publicada a matéria ou a reportagem, e a gente
coloca também o nome da revista ou do jornal. Né? Aqui nesse caso faltou dizer qual é o meio... o veículo de
comunicação... se foi uma revista ou um jornal. No caso, foi um jornal que a gente vai ver mais adiante.
Certo? Então... E em que data essa carta foi publicada?
Figura 48: Explicação sobre o uso das aspas para mencionar a reportagem comentada na carta
do leitor (PR)
Essas abordagens pontuais, como sugere o excerto de aula acima, tinham caráter pouco
sistemático, pois se originavam da observação ocasional de recursos linguísticos que apareciam
durante a leitura, a exemplo das aspas. Perceba-se que a PR limita-se a comentar o caso particular
de uso das aspas presente no texto (para citar o título da reportagem a que os autores da carta
fazem referência), sem tomar essa ocorrência específica como desencadeadora de uma atividade
metalinguística de natureza mais abstrata sobre o funcionamento das aspas, cujas conclusões
pudessem ser aplicadas a outros casos gerais.
Outro caso de reflexão linguística pontual promovida pela PR foi quando ela comparou
junto aos alunos as duas versões da carta 2, concentrando-se nas modificações que o(a) editor(a)
do jornal efetuou no texto da versão original. Contrastando os resultados das duas produções
escritas, a PR esforça-se em mostrar aos alunos no que consiste o processo de edição pelo qual as
cartas do leitor passam antes de serem publicadas, conforme já havia explicado brevemente nas
aulas anteriores. Nessa análise, ela demanda dos alunos o reconhecimento das diferenças
verificadas entre as duas versões e procura discutir com eles as razões que teriam levado aos
ajustes linguísticos que resultaram na versão final do texto. O fragmento a seguir ilustra a ocasião
em que a PR mediou a análise comparativa entre as duas versões da carta do leitor em pauta:
PR: A carta dessa turma foi publicada, olha [mostrando a segunda versão da carta 2]. Foi publicada no jornal.
O que é que mudou da carta que eles enviaram para o jornal para a carta publicada? O que é que mudou?
Aluno: Ele botou o “d” maiúsculo.
PR: Colocaram o título...
Alunos: Eles também tiraram o “2011”. Só botaram 1º de agosto...
PR: Tiraram o cabeçalho, não foi? Colocaram... Tiraram o cabeçalho... “Recife”... Porque esse era o
cabeçalho da carta, né? O cabeçalho da carta era esse: o local e a data. Mantiveram na carta o local e a
data? Não, não é? Não. E a carta ganhou um título. E... Ganhou um título, “Celular”.
[...]
PR: A carta começa do mesmo jeito?
233
Alunos: Não.
PR: A carta que os meninos escreveram começa: “De acordo com a reportagem publicada...”. E a carta: “De
acordo com a reportagem publicada...”. Não começa igual?
Aluna: Começa.
PR: Começa igual. Mas aí...
Aluno: Mas teve algumas mudanças nela.
PR: Vamos chegar lá. Mas aí eles colocaram letra maiúscula, como alguém já disse. Quem foi que disse?
Prestou atenção e viu que eles colocaram letra inicial maiúscula... Por que será que eles fizeram isso?
Aluno: Porque é assim que se escreve.
PR: Porque é assim que deve ser feito, né? Começo de frase... É pra um jornal de circulação... que muita gente
lê... Então, não vai escrever com inicial minúscula, não é? Então, olha... O nome da professora apareceu logo
depois do título, não foi? Como é o nome da professora?
Alunos: Damaris das Neves Lenquiste.
PR: Professora em Campinas, né? Professora em Campinas, né? E desapareceu o quê?
Aluna: O negócio lá de baixo. “Alunos e professora...”.
PR: Isso. E eu tô sentindo falta de uma coisa importante. Tem o nome da professora e tem a data...
Aluna: Os alunos...
PR: Eita, foi. Suprimiram o nome dos alunos. A carta foi escrita só pela professora?
Alunos: Não.
PR: Foi escrita pela professora e pelos alunos.
Aluna: Também tirou o nome da escola.
PR: É. Também desapareceu o nome da escola. Desapareceu “2011”. Por que desapareceu o “2011”?
Aluna: Porque todo mundo sabia que tava em 2011.
PR: Porque todo mundo sabia que tava em 2011. Essa é uma informação que pode ser retirada e não vai
alterar o sentido nem a compreensão de quem tiver lendo a carta. Vamos ver o que mais foi suprimido.
Aluna: Professora, também botaram “filmando, ouvindo...”.
PR: Colocaram um trecho... Diga aí, Patrícia, o trecho que foi colocado que não tem na carta.
Aluna: [Lendo a versão editada da carta 2:] “Filmando, ouvindo música, falando alto, etc.”
PR: Aham. Colocaram isso. Então, vejam que a carta foi edi...
Alunos: ...tada.
234
PR: Olha como a carta ficou.
Aluno: Tiraram algumas coisas.
PR: Eu só senti falta, muita falta mesmo... Só senti não... Senti muita falta mesmo de ter dito que tinha sido
uma produção coletiva, né? Olha. Vê como ficou a carta. [Começa a ler a versão editada em voz alta e pausa
no trecho que a aluna Patrícia percebeu ter sido acrescentado.] Por que será que eles acrescentaram isso entre
parênteses quando fala sobre invadir a privacidade do outro? Por que será? “Invadindo a privacidade do
outro”, aí entre parênteses: “filmando, ouvindo música, falando alto”...
[Vários alunos falam ao mesmo tempo.]
PR: Estaria especificando o tipo de invasão de privacidade. Filmar sem minha autorização é uma invasão de
privacidade, não é? Ouvir música... [...] Ouvindo música, cantar alto, você está invadindo a privacidade do
outro, você está atrapalhando o espaço do outro. [Continua a leitura da versão editada da carta 2.]
[Uma aluna levanta a mão.]
PR; Patrícia quer fazer um comentário.
Aluna: Eles mudaram o “para” e “em”.
PR: Aonde?
Aluna: [Lê o trecho da carta 2 a que se refere:] “Interesse para que...”
PR: Ah, sim. Porque é questão de regência. Quem tem interesse tem interesse em alguma coisa e não para
alguma coisa. Então, eles fizeram a concordância correta, porque é um jornal. É um jornal de renome, né?
Em Campinas, não tem... Aonde eu fui buscar essa fonte, não tem indicação de jornal, mas é um jornal em
Campinas, em São Paulo, um jornal provavelmente conceituado, e ele não vai escrever um texto com
problemas gramaticais, né? Vai ter que fazer toda a edição, toda a redução do texto, dar uma oxigenada, uma
limpada no texto pra o texto ficar bem organizado, certo?
Figura 49: Análise comparativa entre versão original e versão editada da carta do leitor (PR)
Aqui, mais uma vez, as reflexões linguísticas mediadas pela PR dizem respeito a uma
situação específica de interação. As explicações que dava aos alunos sobre cada modificação
realizada pelos profissionais engajados na produção do jornal não visavam propriamente o estudo
dos fenômenos linguísticos implicados nessas operações. Perceba-se que, na abordagem de
aspectos relativos à norma de prestígio e às convenções de escrita (inicial maiúscula e regência
nominal), a PR não ultrapassa o contexto particular no qual os alunos se depararam com tais
fenômenos. No caso da regência nominal, por exemplo, ela faz alusão à preposição que relaciona
o substantivo “interesse” ao seu complemento, sem utilizar essa informação como mote para o
estudo das regularidades típicas da regência nominal enquanto fato da língua. Já ao comentar a
inclusão do aposto enumerativo destacado entre parênteses, a PR sequer faz uso da terminologia
gramatical quando explica à turma o efeito de sentido provocado pela escolha do(a) editor(a): a
235
especificação do termo “invasão de privacidade”. Isso porque não eram objetos de ensino dessa
aula cada um desses conteúdos linguísticos. O objetivo da PR era, a partir da observação das
operações linguísticas verificadas na comparação entre as duas versões da carta, ilustrar o
funcionamento de uma das etapas da publicação da carta do leitor em revistas e jornais: a edição.
Parece ter sido essa a razão que levou a PR a abordar as questões normativas e de convenção
quanto à sua adequação à situação enunciativa instaurada pela carta do leitor. Parece ter levado a
PR, ainda, a explorar os aspectos relacionados à configuração textual (a presença do título, a
ausência de indicação do ano de publicação, a supressão do nome da escola e da menção aos
alunos na assinatura) seguindo a mesma direção da abordagem que conferiu às questões
normativas e de convenção de escrita: uma análise voltada para as peculiaridades da edição de
uma carta específica.
Tendo em vista os objetivos do trabalho da PR nessa aula, chama atenção, no comentário
sobre a inclusão do aposto enumerativo, a ausência de uma reflexão mais ampla sobre a
pertinência de tal alteração ante a função que cabe à edição de uma carta do leitor. Na aula
anterior, quando relatou para a turma a ocasião em que a carta enviada por duas de suas alunas foi
publicada pela revista Veja, a PR comentou ter realizado junto a elas uma análise comparativa
entre a versão que havia sido enviada e a versão que constava na revista. Numa breve
apresentação do processo de edição característico da circulação do gênero estudado, a PR
explicou à turma que era necessário manter a ideia central da carta, sem interferir na essência de
seu conteúdo. Poderíamos acrescentar, ainda, a importância de manter as marcas de autoria dos
textos que são enviados aos diversos veículos de comunicação. Por isso, a inclusão do aposto na
carta publicada pelo jornal Correio Popular causa certo estranhamento. Não é possível afirmar,
contudo, que a PR tenha, em todo o fragmento de aula transcrito na Figura 49, se isentado de
provocar alguma reflexão sobre a força da autoria na carta do leitor. Fosse assim, ela não teria
enfatizado por mais de uma vez como problemática a decisão do(a) editor(a) de suprimir a
referência aos alunos na assinatura da carta.
Além das ocasiões em que se valeu das ocorrências particulares de determinados
fenômenos linguísticos nas cartas do leitor lidas em sala de aula, a PR desenvolveu um trabalho
com a concordância verbal a partir de textos do gênero estudado de forma mais detida e
sistemática em duas das aulas observadas. Descrevemos e analisamos esse trabalho no próximo
subitem.
236
5.1.2.2 Trabalho com a concordância verbal (PR)
Conforme indica o Quadro 10, a concordância verbal foi tematizada pela PR nas aulas 8 e
9, geminadas em um único dia. Do mesmo modo como procedemos na análise do trabalho com a
carta do leitor, disponibilizamos ao final desta dissertação o registro descritivo mais detalhado
das ações empreendidas pela PR ao longo dessas aulas (Apêndice E). Aqui, destacamos apenas as
situações que nos pareceram relevantes para os propósitos da pesquisa. Para abordar a
concordância verbal nessa turma, a PR se utilizou, no início, de algumas frases copiadas no
quadro e, em seguida, de uma ficha de aula por ela elaborada. É interessante salientar que o
conteúdo em pauta estava previsto pelo livro didático adotado, mas, aparentemente, a PR preferiu
elaborar um material que atendesse melhor às suas expectativas de ensino. Numa visão
panorâmica, são duas as características mais marcantes do trabalho desenvolvido pela PR com a
concordância verbal (e que talvez expliquem a recusa em utilizar o material fornecido pelo livro
didático): a tentativa de articular o conteúdo gramatical ao gênero estudado e a incitação à
construção do conceito pelos próprios alunos.
A PR inicia a aula escrevendo no quadro quatro frases, a saber: 1) Ana gostou da
matéria.; 2) Pedro e Ana gostaram da matéria.; 3) A gente gostou da matéria.; 4) Nós gostamos
da matéria. Diferentemente da tendência declarada na entrevista e verificada nas primeiras aulas
a centralizar as ações didáticas constitutivas de sua prática no texto enquanto objeto de ensino, a
PR, nesse primeiro momento, recorre a um dispositivo pedagógico típico do ensino tradicional de
língua materna: o uso de frases isoladas como ponto de partida para a abordagem de conteúdos
gramaticais. Entretanto, os saberes teóricos da formação continuada (nesse caso, a propagada
recomendação de se associar o eixo da análise linguística a circunstâncias concretas de uso da
língua) exerceram certa influência na atuação da PR, pois ela não levanta, de imediato,
questionamentos sobre as frases. Antes disso, ela cria um hipotético contexto em que essas frases
pudessem ter sido enunciadas, como se pode perceber no fragmento de aula reproduzido na
Figura 50 abaixo:
PR: Digamos que aqui alguém – não é? –, aqui... a mãe de Ana... Vamos imaginar que a mãe de Ana ou a
professora de Ana esteja falando ou conversando com alguém e dizendo de uma matéria que foi lida na sala
de aula... Por exemplo... Vamos imaginar a professora... de uma matéria lida no jornal, não é? Digamos que
tenha sido a matéria sobre a inclusão... a educação inclusiva, como a escola Y [a escola da prefeitura do
Recife em que observamos a prática da PR], que tem turmas bilíngues, tal, tal, tal... E aí, num determinado
momento, ela diz assim: “Ana gostou muito da matéria”. Dessa matéria, não é? Dessa matéria sobre
237
educação inclusiva que foi trabalhada na escola. Aí, ela está... a professora está conversando com o professor
Diógenes19
[professor que trabalha na escola na qual acompanhamos a prática da PR], e aí ela diz: “Não só
Ana, como Pedro também gostaram da matéria que foi trabalhada em sala”. Não é? E aí, o próprio professor
ou a professora diz que... se coloca numa posição dizendo que também gostou da matéria, não é? “A gente
gostou na sala de aula muito da matéria.” Então, ele resolve dizer de uma maneira mais formal e se inclui e
diz também: “Nós gostamos da matéria”. Não é? E em cada situação dessa... em cada situação dessa, está a
professora... está falando sobre alguém, não é verdade? Sobre alguém...
Figura 50: Criação de contexto hipotético de enunciação de frases copiadas no quadro (PR)
Os questionamentos da PR que se seguem a essa contextualização inicial, todos de ordem
morfossintática (identificação dos verbos e dos sujeitos das orações, comparação entre as formas
conjugadas de cada verbo, relação entre essas formas e os sujeitos a que os verbos se referem),
não dependem do universo de enunciação por ela criado para serem adequadamente respondidos.
Isso significa dizer que, ainda que ela tenha se preocupado em situar as frases num possível
contexto de produção, o trabalho não foi, de qualquer forma, desenvolvido em torno do que
Bakhtin (1992 [1979]) considera a unidade real da comunicação discursiva, mas em torno do que
ele entende como unidade da língua enquanto sistema: a oração. No âmbito dos estudos
linguísticos, o filósofo russo defende o estudo do enunciado porque acredita que ele leva,
inclusive, a uma compreensão mais precisa da natureza dos fatos gramaticais, tal como os são as
palavras e as orações. Geraldi (1991, 1996) fundamenta-se nessa concepção enunciativa de
linguagem para propor um ensino de língua materna atento ao funcionamento real dos fenômenos
linguísticos. Por isso, defende a primazia da dimensão discursiva da linguagem (materializada
nos diversos textos que circulam socialmente) na organização das atividades de ensino.
Vimos, contudo, que ele próprio não descarta a possibilidade de que alguns aspectos
pontuais (ou “sistemáticos”) da língua sejam trabalhados no nível da palavra e da frase
(GERALDI, 1997b [1984], 1996), desde que o enfoque do professor não seja o domínio da
terminologia técnica com que se fala sobre o fenômeno estudado. Mendonça (2006) também
atenta para a existência de aspectos linguísticos que demandam abordagem constante,
independentemente do gênero estudado, e que dizem respeito às dimensões normativa e sistêmica
da língua. Certamente, a concordância verbal é um dos fenômenos linguísticos que se enquadram
no conjunto de conteúdos aos quais Geraldi (1997b [1984], 1996) e Mendonça (2006) se referem.
Todavia, a busca da PR em desenvolver uma prática de ensino coerente com a perspectiva teórica
de linguagem em que acredita (sociointeracionista) parece fazê-la hesitar no momento de tomar a
19
Os nomes dos professores mencionados nas falas da PR são todos fictícios.
238
frase como unidade de análise, ainda que os conhecimentos que pretendesse ensinar aos alunos
remetessem à dimensão normativa e sistêmica da língua.
Uma breve análise das frases escolhidas pela PR também nos traz alguns dados
importantes acerca do percurso por ela trilhado para abordar o fenômeno da concordância verbal.
Poderíamos dizer que as quatro frases escritas pela PR são prototípicas do ponto de vista das
regras de concordância verbal em língua portuguesa, pois eram frases curtas que não continham
adjuntos longos associados aos núcleos dos sujeitos nem sequências linguísticas intercaladas
entre os sujeitos e os verbos, além de serem construídas na chamada ordem direta (sujeito +
verbo + complemento). Em sua recente gramática pedagógica, Bagno (2011) aponta que apenas
em condições semelhantes a essas os falantes de língua portuguesa estranham um emprego da
concordância verbal destoante da regra geral difundida pelas gramáticas normativas tradicionais
(“O verbo concorda com o sujeito”). Assim, a escolha das frases parece ter sido motivada pelo
propósito central das aulas observadas: introduzir conhecimentos sobre um fenômeno da língua
que, ao menos no nível metalinguístico e abstrato, era ainda desconhecido pelos alunos. Veremos,
no decorrer da prática da PR, que o conceito que ela procurava fazer os alunos inferirem das
reflexões realizadas em sala de aula era justamente a regra geral segundo a qual verbo e sujeito
concordam em número e pessoa.
As primeiras indagações que a PR faz a seus alunos para impulsioná-los a analisar as
frases do quadro visam identificar o sujeito das orações e comparar as formas que o verbo
“gostar” assume à medida que mudam os sujeitos das orações. No fragmento de aula a seguir, é
possível acompanhar a condução dessa análise pela PR, sem que tenha sido necessário o emprego
da metalinguagem gramatical:
PR: Nesse primeiro enunciado aqui [“Ana gostou da matéria.”], a professora está falando de quem?
Aluno: Ana.
PR: Sobre Ana, não é? E aqui nesse segundo enunciado? [“Pedro e Ana gostaram da matéria.”]
Aluno: Pedro e Ana.
PR: A professora está falando alguma coisa a respeito de Pedro e Ana, ok? E aqui? [“A gente gostou da
matéria.”]
Aluno: Ana e Pedro.
PR: “A gente gostou da matéria”... Todo mundo, inclusive...
239
Aluno: Todo mundo da sala.
PR: ...inclusive a professora que está falando, a professora. Inclusive a professora. Quando diz “a gente”, a
professora também está se incluindo, não é? Então, está falando sobre “a gente”. E aqui nesse quarto
enunciado? [“Nós gostamos da matéria.”]
Aluno: “Nós”. “Nós gostamos da matéria.”
PR: Então, quem está... está se falando aí tanto da pessoa que está falando como das outras pessoas
envolvidas. Muito bem! Se eu for perguntar a vocês... Cada vez que eu falo sobre uma pessoa ou digo alguma
coisa a respeito de uma pessoa... os enunciados sofrem alteração?
Aluno: Sofrem.
PR: Aqui, nessas frases, sofreram alteração?
Alunos: Sofreram.
PR: Sofreram? Que alterações vocês perceberam?
Aluno: Aqui, na primeira frase, tem “Ana”. Na segunda, tem “Pedro e Ana”. Na terceira, tem todo mundo. E
na quarta também tem todo mundo.
Aluno: Na terceira, tem “a gente”.
PR: Ok. E o resto da frase? Como é que se comporta? Como é que se comporta o restante da frase em relação
a essa pessoa de quem se está falando?
Aluno: [Incompreensível.]
PR: Como é que a frase se comporta? O restante da frase... Se altera, se modifica ou fica do mesmo jeito?
Aluna: Se modifica.
Aluno: Se modifica.
PR: Se modificam?
Aluna: Porque é “gostou”, “gostaram” e “gostamos”. Só isso.
Aluno: “Gostou”, “gostaram” e “gostamos”.
PR: Débora disse que muda o “gostou”...
Aluna: ...“gostaram” e “gostamos”.
PR: ...“gostaram” e “gostamos”, não é? E aí eu vou marcar também o “gostou” [da frase “A gente gostou da
matéria.”] porque ele tá se repe...
Alunos: ...tindo.
PR: Não mudou, não foi?
Alunos: Foi.
Figura 51: Análise de orações quanto aos sujeitos e às formas dos verbos (PR)
240
Podemos dividir o fragmento da Figura 51 em duas etapas que progridem em função de
um mesmo objetivo de aprendizagem: a percepção do funcionamento da concordância verbal,
seguida da elaboração de um conceito que explicite o mecanismo básico regulador desse
fenômeno (“O verbo concorda com o sujeito em número e pessoa.”). É evidente que, para se
compreender e se formular esse conceito, é preciso conhecer pelo menos outros dois recursos da
língua mencionados na própria escrita da regra geral da concordância verbal: o verbo e o sujeito.
Por isso, as duas fases a que aludimos na abertura do parágrafo giram justamente em torno da
exploração desses dois recursos linguísticos.
Na primeira delas, a PR demanda dos alunos a identificação dos sujeitos das orações, mas
sem utilizar esses termos. De outro modo, ela inclui o conceito tradicional de sujeito já pronto no
comando da atividade a fim de que os alunos, mesmo ainda não dominando as noções envolvidas
no exercício, possam cumprir com êxito a proposta da PR. Observem-se os seguintes excertos de
fala da PR, destacados da Figura 51: “A professora [hipotético locutor do enunciado ‘Ana gostou
da matéria.’] está falando de quem?” e “A professora está falando alguma coisa a respeito de
Pedro e Ana [sujeitos da oração ‘Pedro e Ana gostaram da matéria.’], ok?”. Se observarmos com
atenção a fala da PR, encontraremos uma clara referência ao conceito de sujeito tal como
habitualmente formulado pelos principais compêndios vinculados à tradição gramatical. A título
de exemplo, transcrevemos a definição de Cunha e Cintra (2013, p. 136): “O sujeito é o ser sobre
o qual se faz uma declaração; o predicado é tudo aquilo que se diz do sujeito”. A despeito da
existência de críticas a tal definição entre alguns estudiosos da língua, os alunos não tiveram
grandes dificuldades em reconhecer os termos solicitados pela PR, possivelmente devido ao
caráter prototípico das frases por ela escolhidas.
Na segunda etapa, a PR medeia uma análise comparativa entre as formas do verbo
“gostar” em cada uma das orações focalizadas (“gostou”, “gostaram”, “gostamos”) e procura
relacionar essas formas verbais aos sujeitos aos quais elas se referem (“Ana”, “Pedro e Ana”, “a
gente”, “nós”). Mais uma vez, ela dispensa a menção a termos técnicos, limitando-se a pedir aos
alunos que identificassem as diferenças entre as frases analisadas. É curioso notar que o primeiro
aluno que se arrisca a realizar a tarefa requerida pela PR atém-se aos elementos para os quais ela
acabara de chamar a atenção deles (os sujeitos), talvez prevendo, pela sequência da aula, a
expectativa da professora. De toda maneira, era bem verdade que os sujeitos eram um dos itens
que se alteravam a cada frase supostamente enunciada. Por isso mesmo, a PR concorda com o
241
aluno, mas reformula a questão para que eles concentrem-se, enfim, na observação dos verbos
das orações. Eles, então, chegam à resposta desejada pela PR, citando cada uma das formas
verbais encontradas nas frases, sem, contudo, referirem-se ao termo “verbo”.
O modo como os alunos responderam aos questionamentos da PR nos remeteu a um
momento da entrevista inicial em que ela elencou algumas dificuldades que encontrava em sua
prática, especialmente no eixo da análise linguística. Acreditamos que, nessa ocasião, a PR nos
forneceu pistas da provável razão que a levava a dispensar a referência à metalinguagem na
abordagem inicial de um conteúdo gramatical:
Uma outra dificuldade que eu sinto é a falta de conhecimento prévio. Às vezes, eu tô trabalhando um
determinado assunto que envolve outros assuntos e eles não têm conhecimento, né? Eles não lembram. O
conhecimento é muito efêmero pra eles... porque eles esquecem com muita facilidade. Pelo menos se a gente
for tratar da questão da nomenclatura... Eles esquecem. Aí, se o professor for usar isso como termômetro, ele
diz: “A minha turma tá lascada. Não faz nada, não sabe de nada, porque não sabe o que é um adjetivo, não
sabe o que é um substantivo...”. Pô, mas sabe usar. Mas num sabe usar? Então, pra mim, isso é o mais
importante. Ele não sabe usar? Pode ser que ele não saiba que aquilo ali... ele não saiba dizer que aquilo é
um substantivo. Pode ser que ele não saiba que aquilo é um adjetivo. Pode ser que ele não saiba dizer que
aquilo é um advérbio. Mas ele não sabe usar? Ele sabe usar, não sabe?
Figura 52: Comentário sobre as dificuldades no trabalho com o eixo da análise linguística (PR)
A PR, portanto, adapta a condução de sua aula à realidade da turma. O desconhecimento
(ou o esquecimento) deles em relação à nomenclatura gramatical não a impede de organizar os
fazeres ordinários constitutivos de sua atuação em sala de aula na direção da descoberta do
conhecimento pelos próprios alunos através de uma atitude investigativa que ela procura instalar
no ambiente escolar. Também não a impede de introduzir, pouco a pouco, a metalinguagem que
permitiria uma conversa mais “econômica” em relação aos fatos da língua, como bem salienta
Mendonça (2006) e como a própria PR demonstrou concordar quando, ao final da aula, comentou
a sua abordagem didática:
PESQUISADORA: O sujeito é um conceito novo pra eles ou é um conceito que eles já conhecem?
PR: Bom, pelo que eu vi aqui, é um conceito novo.
PESQUISADORA: Entendi. Porque o que você tá trabalhando aqui não é exatamente o sujeito, né? É a
concordância...
PR: É, mas, como você tem que falar em sujeito... Pra eles não ficarem dizendo: “É sobre quem a gente está
falando...”, “É sobre o que a gente está falando”... Aí, eu achei que seria muito mais tranquilo se eles
percebessem que isso que eu estava falando tem um nome, não é? E que esse nome é o sujeito.
Figura 53: Comentário sobre a introdução da metalinguagem gramatical (PR)
242
Veja-se, no fragmento a seguir, que, após a análise inicial, a PR relembra aos alunos a
categoria das palavras que eles haviam acabado de listar (os verbos) e apresenta-lhes, de forma
sutil, o conceito de sujeito:
PR: Então, essas palavras – “gostou”, “gostaram”, “gostamos” –, se a gente for pensar do ponto de vista da
gramática, como é que a gente pode classificar essas palavras?
[Silêncio.]
PR: Elas são o quê? São substantivos, são adjetivos? São advérbios, são verbos, são pronomes?
Alunos: Verbos.
PR: São...
Alunos: ...verbos.
PR: ...verbos. Ok. Então, olha [apontando para as palavras no quadro:], “gostou” é um verbo. “Gostaram” é o
mesmo verbo, não é? O verbo é o mesmo, não é?
Aluno: É.
PR: Só que ele sofre altera...
Alunos: ...ção.
Alunos: ...ções.
PR: ...ções. Ok. Ele sofre alteração. Então, o verbo se modifica em função de quê?
Aluna: De combinar com a frase?
PR: De combinar? Por que o verbo precisa combinar? Tá certíssimo! Precisa combinar com o quê?
Aluna: Com a frase.
PR: Com a frase?
Aluno: Com o início da frase.
PR: Com o início da frase? Aqui [apontando para a frase “Ana gostou da matéria.”], “gostou” está
combinando com que palavra?
Aluno: “Ana”.
PR: “Ana”. Ok. “Ana”, não é? “Gostaram” aqui [apontando para a frase “Pedro e Ana gostaram da matéria.”]
está combinando com o quê?
Alunos: “Pedro e Ana”.
PR: “Pedro e Ana”. Se eu colocasse aqui “Pedro e Ana gostou da matéria”, estaria estranho?
Alunos: Estaria.
243
PR: Estaria. Porque o verbo não estaria combinando com...
Aluna: ...a frase.
PR: ...com o começo da frase, com as pessoas sobre as quais eu estou dizendo alguma coisa, né? Aqui
[apontando para a frase “A gente gostou da matéria.”], “gostou” está combinando com que...?
Aluno: “A gente”.
PR: Com “a gente”, não é? E “gostamos”? [apontando para a frase “Nós gostamos da matéria.”]
Alunos: “Nós”.
PR: “Nós”. Pronto. “Nós gostamos”. Olha, se vocês prestarem atenção, toda vez que a gente vai falar alguma
coisa, a gente sempre vai falar... vai se referir... vai sempre falar sobre alguma coisa ou sobre alguém.
Aluno: Aham.
PR: Não é? Se eu digo “meu piloto secou”, eu estou falando sobre o quê?
Alunos: O piloto.
PR: Sobre o piloto. [...] Se eu digo assim... Isso é um estilete, não é? [dirigindo-se a uma aluna com um estilete
na banca] “O estilete de Júlia tá afiado”... Eu estou falando sobre o quê?
Alunos: O estilete.
PR: Se eu disser assim, “Júlia faltou ontem porque estava doente”, eu tô falando sobre o quê?
Aluna: Júlia.
PR: Sobre quem, na verdade... Sobre Júlia, não é? Então, sempre que a gente fala alguma coisa... “A praia
ontem estava uma delícia.” Estou falando sobre o quê?
Alunos: A praia.
PR: Então, sempre que a gente fala alguma coisa, sempre que a gente diz alguma coisa, a gente sempre está se
referindo a alguma coisa, certo? A gramática chama isso... Por exemplo, aqui, “Ana...”... Aqui, eu tô falando
de Ana, aqui eu tô falando de Pedro e Ana, aqui eu tô falando da gente, aqui eu tô falando de nós...
[apontando para cada uma das frases escritas no quadro] Não é? Então, a gramática, aquele livrinho de
gramática que nós temos...
Aluno: Aquele grosso...
PR: ...grosso, que tem os assuntos todinhos que a gente estuda, né? Aquele livro explica que, quando a gente
fala de alguém ou quando a gente fala de alguma coisa, quando a gente se refere a alguma coisa, aquele livro,
a gramática, diz que a gente tá falando de sujeitos de uma frase.
Figura 54: Construção coletiva do conceito de concordância verbal (PR)
O início do diálogo acima transcrito parece evidenciar que, de fato, os alunos se esquecem
das terminologias anteriormente aprendidas, pois eles hesitam diante da primeira pergunta
(“como é que a gente pode classificar essas palavras?”), mas chegam imediatamente à resposta
244
correta quando a PR a reformula. A primeira versão da pergunta tinha um formato mais aberto e,
por isso, demandava um leque maior de conhecimentos prévios para que fosse adequadamente
respondida. Diante do silêncio, a PR rememora a turma quanto às classes de palavras existentes a
fim de verificar se eles reconhecem os verbos. A resposta imediata da turma atesta que, ao menos
para a maioria, o verbo era um conceito conhecido e que a provável causa do silêncio inicial era
mesmo esquecimento. Frente a essa característica da turma, a PR vai encontrando estratégias para
que continuem sendo os próprios alunos os produtores dos conhecimentos estudados em sala de
aula. Para tanto, precisava sempre partir das definições dos elementos linguísticos focalizados ou
de exemplos práticos, em vez de aludir diretamente aos nomes desses elementos. É o que ela faz
com os verbos e com os sujeitos no fragmento de aula acima. Mais do que meticulosamente
planejado, esse é um procedimento didático que a urgência da sala de aula parece requerer, ou
seja, os fazeres ordinários da prática da PR mostram-se frutos das circunstâncias concretas do
aqui e agora da classe (cf. CHARTIER, 2000a [1995]).
Na mediação da reflexão linguística proposta, a PR procura seguir o ritmo dos alunos e
aproveitar os conhecimentos prévios que eles possuem acerca do conteúdo estudado, além de
atentar tanto para aqueles que eles ainda desconhecem quanto para os que possam ter sido
eventualmente esquecidos. Consciente do estágio em que os alunos se encontram na construção
do conhecimento em pauta, a PR vai se colocando e fazendo intervenções precisas na análise
coletiva que se instaura na sala de aula. Note-se que, após a comparação entre a estrutura das
quatro frases (impulsionada pelas perguntas da PR), os alunos demonstram ter compreendido o
mecanismo de funcionamento da concordância verbal, ainda que verbalizem esse saber sem a
nomenclatura gramatical própria. Para uma das alunas da turma, “o verbo muda em função de
combinar com a frase”. Nessa primeira resposta, já aparece um indício importante de seu
aprendizado: ela define a concordância como uma espécie de combinação.
Vimos no excerto da Figura 51 que a PR já havia sinalizado a existência do sujeito para
os alunos, mas eles ainda não sabiam nomear esse fenômeno. Tal desconhecimento leva a aluna a
uma primeira resposta um tanto quanto vaga em relação ao funcionamento da “combinação” que
tenta explicar. Ela percebe que o verbo combina com algo; não dispõe, entretanto, de vocabulário
especializado suficiente para determinar esse “algo”. Por isso, afirma simplesmente que o verbo
combina “com a frase”. A insistência da PR em questionar a resposta da aluna leva um colega a
retificar a primeira tentativa de explicar a concordância verbal: ele afirma que o verbo combina
245
“com o início da frase”. A PR se vale, então, da resposta do aluno para indicar com mais exatidão
os elementos do “início da frase” com os quais o verbo combina. Vai perguntando de frase em
frase com que palavra(s) os verbos combinam. Após se certificar de que com a expressão “início
da frase” o aluno se referia ao sujeito, a PR apresenta formalmente a nomenclatura gramatical.
É evidente que o sujeito nem sempre corresponde aos elementos que constam no começo
da frase. O que se sobressai no trabalho da PR, porém, é o êxito em mediar a construção de um
conhecimento metalinguístico pelos alunos, em vez de partir do conceito pronto, tal como
formulado pela tradição gramatical. Depois que ela percebe que os alunos compreenderam
adequadamente o mecanismo de funcionamento da concordância verbal, ela traz alguns outros
exemplos de orações em que os sujeitos não são apenas pessoas (mas também objetos ou
lugares). E no instante que se segue ao fragmento da Figura 51, a docente faz, ainda, alguns
exercícios estruturais de identificação de sujeitos com orações em que eles aparecem em posições
diferentes (não somente no início) e com orações de sujeito implícito. Vale a pena destacar que,
mesmo após a apresentação da metalinguagem dos fenômenos explorados durante as aulas, os
alunos dificilmente a utilizavam para responder às perguntas da PR. Eles continuavam dando
preferência à menção aos termos específicos que apareciam nas orações. Quando os alunos, por
exemplo, identificam o sujeito da oração “gostamos da matéria” e a PR solicita uma justificativa
para a resposta, os alunos respondem “por causa do ‘gostamos’”, em vez de “por causa do
verbo”. Era a PR que reformulava as colocações dos alunos, incluindo as devidas terminologias
em sua fala para chamar-lhes a atenção para essa forma de se referir aos elementos da língua.
Outro aspecto abordado pela PR no trabalho com a concordância verbal foi o fenômeno
da variação linguística, como é possível notar no fragmento de aula abaixo:
PR: Se eu dissesse assim... Professor Jerônimo [professor de educação física da escola] chegasse aqui na sala
dizendo: “Chegaram as camisas do torneio, do campeonato”... Sobre o que está se falando?
Alunos: As camisas.
PR: Sobre as camisas. Então, o sujeito aqui seria qual?
Alunos: “As camisas”.
PR: “As camisas”. Então, o sujeito, ele só vem no início da frase?
Alunos: Não.
PR: Não. Pode vir em outra posição também.
246
Aluno: No meio, no fim...
PR: No meio, no final... Não é? Se Rafael dissesse assim: “Ontem, chegaram as camisas”... Ou então eu
dissesse assim... O sujeito continuaria o mesmo?
Aluno: Continuaria.
PR: Sim, não é? Porque “ontem” é o tempo em que as camisas chegaram, não é? Não é o sujeito, não é
verdade? O sujeito continua sendo “as camisas”. Se eu dissesse assim: “Ontem, as camisas chegaram”...
Aluna: “As camisas”...
PR: Sobre o que eu tô falando aqui?
Alunos: “As camisas”.
PR: “As camisas”, não é? Então, o sujeito continuaria o mesmo. E se eu dissesse assim: “Ontem as camisas
chegou”... Tava certo?
Aluno: Não.
PR: No dia a dia... No dia a dia, a gente pode até, conversando informalmente, a gente dizer assim: “Chegou
as carteira de estudante”, “Ó, o professor Jerônimo disse que chegou as camisas”... No dia a dia, a gente usa
assim conversando informalmente. Tem algum problema?
Alunos: Não.
PR: Vai ter alguém corrigindo se tá certo ou errado a sua fala? Não. Sabe por quê? Porque a fala é
espontânea. A fala do dia a dia, a fala cotidiana, é espontânea. Mas, se a gente tiver numa situação de... se um
professor estiver numa situação... dando uma palestra, é mais adequado que ele diga que as camisas
chegaram ou que as camisas chegou?
Alunos: Que as camisas chegaram.
PR: Que as camisas chegaram. Porque ele está numa situação mais formal, não é? Porque quem estiver
assistindo à palestra dele...
Aluna: ...vai corrigir.
PR: ...vai ficar estranhando porque as pessoas que vão assistir a uma palestra, normalmente elas têm um
conhecimento, um nível de escolaridade bom, alto, né, estudaram muito. Então, sabem que é assim. Aí, elas
vão estranhar se a pessoa falar assim. A credibilidade da pessoa cai. Queira ou não, cai. Porque a pessoa
diz... Pode ser até que ele seja muito bom naquilo que ele esteja dizendo, mas aí ele precisa combinar as
palavras, né? Precisa combinar as palavras. E aí as pessoas vão dizer: “Iiiiih, estranho, né, como é que ele tá
falando...”. Vão achar estranho, no mínimo. Digamos que numa situação em que vocês estão escrevendo uma
redação pra um emprego ou estão escrevendo a redação do ENEM, qual é o mais adequado? É vocês
escreverem “as camisas chegou” ou que “as camisas chegaram”?
Alunos: Chegaram.
PR: Que as camisas chegaram [com ênfase], porque está, do ponto de vista gramatical e do ponto de vista
mais formal, mais adequado. Agora, por que, numa redação do ENEM, por que, numa seleção de emprego, o
mais adequado é escrever assim?
Aluna: Porque ele vai corrigir.
247
PR: Porque ali você está se submetendo a uma avaliação, você vai ser avaliado, não é? Então, vai ser
corrigido aquilo que você está fazendo. Então, quem for corrigir vai avaliar se você tem um conhecimento
dessa combinação das palavras, não é?
Figura 55: Reflexão sobre o emprego da concordância verbal de acordo com as situações
enunciativas (PR)
Uma visão panorâmica do fragmento de aula acima reproduzido mostra a busca da PR em
abordar a existência de variações na concordância de número na língua portuguesa e em
relacioná-las às situações enunciativas nas quais elas ocorrem. Na subseção anterior, dedicada à
análise dos dados da entrevista inicial, vimos que a PR reconhece na fala de seus alunos uma
forma de empregar a concordância verbal que diverge das regras prescritas nos principais
compêndios gramaticais (Figura 24). Já naquela ocasião, ela demonstrava preocupação em
ensinar-lhes a norma de prestígio com o cuidado de não deslegitimar as variedades linguísticas
com as quais eles se identificam: “Então, eu preciso mostrar pra eles que, além dessa forma que
eles usam, existe uma outra forma, e que essa outra forma vai ser cobrada deles em determinados
espaços, em determinados momentos da vida deles”, afirmava a PR. No decorrer da aula, ela de
fato procura dizer que não há problema numa construção como “chegou as camisas”, desde que
seja enunciada em circunstâncias de fala informal. Cabe aqui ressaltar que a PR não estabelece
uma relação dicotômica entre as duas modalidades de uso da língua nem incorre na insistente – e
equivocada – associação entre informalidade/fala e formalidade/escrita. Prova disso são os
exemplos que traz para os alunos. Em um deles, ela diferencia a conversa cotidiana e a palestra
como duas situações de fala que comportam diferentes usos da língua.
Há momentos pontuais em que a PR avalia os usos em termos de certo/errado (“Tava
certo?”, “Vai ter alguém corrigindo se tá certo ou errado a sua fala?”). Hoje, é praticamente
unânime entre os estudiosos da sociolinguística que a noção de erro diz respeito à
(a)gramaticalidade do enunciado, isto é, ao pertencimento de uma determinada construção ao
conjunto de enunciados passíveis de serem formulados por falantes nativos de uma dada língua
(cf. BAGNO, 1999). Entretanto, é outra a acepção de erro frequentemente difundida pela escola
(e pela sociedade em geral):
Quanto à língua falada, fica óbvio que o rótulo de erro é aplicado a toda e qualquer
manifestação linguística (fonética, morfológica e sintática, principalmente) que se
diferencie das regras prescritas pela gramática normativa, que se apresenta como
codificação da “língua culta”, embora na verdade seja a codificação de um padrão
248
idealizado, que não coincide com nenhuma variedade urbana de prestígio. (BAGNO,
1999, p. 151-152)
Apesar de referir-se, em certos momentos, a essa noção de erro (talvez porque partilhada
pelos alunos), a PR procura se afastar de um posicionamento linguisticamente preconceituoso ao
enfatizar uma avaliação dos usos da língua em termos de adequação/inadequação – de algum
modo, essa preocupação é aparente mesmo quando ela faz uso das expressões “certo” e “errado”.
Considerando-se o perfil socioeconômico dos alunos e a percepção da PR quanto às variedades
linguísticas típicas das comunidades que eles integram, chama atenção a ausência de uma
reflexão sobre a origem do “estranhamento” ou da “diminuição da credibilidade” exemplificada
pela PR em relação aos palestrantes que não fazem a concordância verbal tal como prescreve a
tradição gramatical. O conteúdo explorado pela PR seria uma oportunidade particularmente
profícua para se discutir a natureza social da repulsa quase generalizada em alguns espaços
públicos (sobretudo aqueles ocupados por membros das classes econômicas privilegiadas e,
consequentemente, pelos grupos de escolaridade mais elevada) às construções linguísticas que
não apresentam a legitimada concordância entre verbo e sujeito. Como alerta Bagno (2011, p.
641), “a concordância verbal é decerto o fenômeno linguístico que mais tem se prestado – junto
com a concordância nominal – a servir de instrumento sociocultural de separação entre os que
falam ‘certo’ e os que falam ‘errado’”. Isso acontece porque a concordância verbal variável, além
de ser uma marca linguística, também constitui marca social. Scherre (2002, p. 219, grifo da
autora) acredita que, quando um determinado uso da língua atende a essas duas condições, os
sujeitos que dele se valem sofrem maior estigmatização, e daí surge a noção de “erro”: “[...]
Temos a tendência quase compulsiva de rotular erradas as formas que fazem correlação estreita
com classe social, mesmo que, consciente ou inconscientemente, façamos uso destas mesmas
formas na fala espontânea e na escrita revisada”.
A presença de situações de interação específicas no comentário da PR e a utilização
dessas circunstâncias interlocutivas como parâmetros para se analisar a adequação dos usos
linguísticos foram procedimentos didáticos interessantes para que ela pudesse se contrapor à
atribuição de juízo de valor aos usos em si mesmos (ou àqueles que fazem esses usos), isolados
de qualquer contexto enunciativo. Contudo, não há, na abordagem da PR, uma relativização dos
usos que os indivíduos com alto grau de escolaridade fazem da língua quanto à concordância
verbal. É bem provável que esses indivíduos “estranhem” uma construção como “as camisas
chegou” ser proferida em uma palestra, mas também é bastante provável que a ausência de
249
concordância sujeito/verbo em outros enunciados (principalmente se houver sujeito posposto ou
uma sequência linguística longa entre o núcleo do sujeito e o verbo) passe despercebida por esses
mesmos indivíduos escolarizados, devido à generalizada incorporação da variação de
concordância nos usos da língua portuguesa no Brasil (tão generalizada que Scherre (2002) chega
a entendê-la como inerente ao sistema linguístico do português). Sobre essa questão, é
esclarecedora a colocação de Bagno (2011, p. 641, grifos do autor):
[...] A diferença entre os falantes das VLE [variedades linguísticas estigmatizadas] e os
falantes das VUP [variedades urbanas de prestígio] é que os falantes das VUP fazem
concordância com mais frequência do que os falantes das VLE. No entanto, não existe
ninguém que realize a concordância em todas as circunstâncias previstas pela
gramática normativa, nem mesmo em textos escritos mais monitorados. E isso não é
exclusividade do PB [português brasileiro] – a concordância variável ocorre em todas as
línguas cuja gramática prevê esse fenômeno morfossintático.
Ao final de todo o trabalho de progressiva construção da noção de concordância verbal –
ao menos, da chamada “regra geral” do fenômeno linguístico –, os alunos, enfim, chegam à
formulação conceitual tal como prescreve a tradição gramatical, inclusive nos termos técnicos
próprios (“O verbo combina com o sujeito.”), como podemos verificar no próximo fragmento de
aula. Nele, é relevante observar, ainda, as instruções dadas pela PR quanto ao manuseio dos
compêndios gramaticais – atitude que reforça o argumento de Mendonça (2006) de que o
domínio da metalinguagem é útil para que os alunos aprendam a consultar obras gramaticais com
autonomia.
PR: Então, aqui, a gente sabe que, quando a gente fala sobre alguma coisa, a gente... quando a gente fala, a
gente sempre fala sobre alguma coisa ou sobre alguém, não é? E a esse alguém ou essa alguma coisa a
gramática dá o nome de...
Aluno: ...sujeito.
PR: ...sujeito, não é? O sujeito da oração. No caso, o sujeito dessa primeira frase, dessa primeira oração
[“Ana gostou da matéria.”], é “Ana”. Nessa segunda oração, o sujeito é “Pedro e Ana”. Na terceira oração, é
“a gente”. E na quarta oração, é...
Aluno: ...“nós”.
PR: ...“nós”, não é? E a gente também já percebeu, em relação aos verbos, que eles se...
Aluna: ...combinam.
PR: ...que eles se combinam. O que é que o verbo... O verbo combina com quem?
Aluna: Combina [incompreensível].
250
PR: Com o...
Aluna: ...sujeito.
PR: Com o sujeito, né? Agora, vocês já sabem... com o sujeito... Até simplifica mais se a gente sabe o nome.
Com o sujeito a que o verbo está se refe...
Aluno: ...rindo.
PR: ...rindo, não é? Ok? Muito bem! Muito bem! [...] Deixa eu dizer só mais uma coisa... Vocês disseram que
o verbo combina [com ênfase], não é? Combina... Combina com o sujeito, não é? O verbo precisa combinar
com o sujeito. Mas podia dizer também... usar um sinônimo, dizendo que o verbo concorda com o sujeito? O
verbo concorda [com ênfase] com o sujeito. Combinar e concordar é a mesma coisa, né? Quando eu concordo
com alguém, é porque eu estou de acordo com o que a pessoa está dizendo, falando. Então, eu posso dizer que
o verbo combina ou então que ele concorda com o su...
Alunos: ...jeito.
PR: ...jeito. Muito bem! Mais uma vez, indicando aquele livro que tem lá as regras gramaticais, que indica
como devem ser usadas, etc. etc. etc., o nome desse assunto que a gente tá vendo aqui, que fala sobre o verbo
concordar com o sujeito a que o verbo se refere se chama concordância...
[Silêncio.]
PR: Quem sabe aqui? Que a gente viu lá naquele livro, na gramática... Se chama concordância...
Aluno: ...verbal.
PR: ...verbal. Por que vocês acham que esse assunto tem esse nome, concordância verbal?
Aluno: Porque concorda.
Aluna: Porque é um verbo.
Aluna: Porque o verbo concorda com o sujeito.
PR: Porque o verbo concorda com o sujeito pra que a oração fique no nível mais formal da língua, né? E se
aproxime mais daquela gramática que as pessoas chamam de gramática padrão... que é bastante discutível
isso, mas não nesse nível.
Figura 56: Conclusão do processo de construção do conceito de concordância verbal (PR)
Na primeira parte do trabalho com a concordância verbal (análise de frases e construção
coletiva do conceito que regula o fenômeno linguístico em pauta), foi possível reconhecer uma
motivação pedagógica que guiava os fazeres ordinários constitutivos da prática de ensino
desenvolvida pela PR: a produção de conhecimentos. Essa motivação a leva a dedicar toda a
primeira aula do dia à construção de um conceito que poderia ter sido apresentado em poucos
minutos à turma, caso não fosse tão importante para ela o processo reflexivo que a elaboração
conceitual demanda. Ou seja, importava para ela, como defende Geraldi (1991), o processo de
251
tomar a língua(gem) como objeto, mais do que a assimilação de noções prontas. Para concretizar
seu objetivo, a PR precisou estar atenta às reações que suas intervenções causavam nos alunos,
pois a decisão minuciosa quanto à continuidade do percurso da aula dependia largamente do
estágio de construção do conhecimento em que os alunos se encontravam. Apesar do inegável
planejamento que norteou as ações da PR, os contornos concretos da prática advieram das
condições que ela foi encontrando na execução propriamente dita de seu trabalho. Nos termos de
Tardif (2002) e Chartier (2007), a PR produzia saberes experienciais ou práticos, que validavam a
sua atuação docente.
A primeira parte da abordagem da PR quanto ao fenômeno da concordância foi também
marcada pela utilização da frase como unidade de análise, contrariando o plano geral das atuais
recomendações para o ensino de língua materna, ainda que ela tenha, em alguns momentos,
buscado criar situações hipotéticas em que as frases analisadas pudessem ter sido enunciadas.
Sabemos que a concordância verbal é um conteúdo de natureza normativa e sistêmica e que a
depreensão do conceito almejado pela PR independia de um possível contexto de produção, o que
talvez a tenha impelido a intermediar uma análise linguística no nível da frase. Todavia, vimos
também que as algumas reflexões de ordem sociolinguística ficaram de fora na discussão sobre as
adequações e inadequações das variações de concordância, situação que talvez pudesse ser
revertida com a utilização de construções efetivamente realizadas em autênticos processos
interlocutivos.
Na segunda parte do trabalho, a PR busca integrar a prática de análise linguística ao
estudo do gênero então focalizado, conforme descreveu na entrevista inicial. Para isso, ela
elaborou uma ficha de atividades a partir de fragmentos das cartas contidas em outra ficha já
trabalhada (Anexo C). Ela solicitou que os alunos respondessem às questões desse material
individualmente. Os alunos manifestaram muitas dúvidas no decorrer da atividade, mas, aos
poucos, a PR ia orientando-os na realização do exercício proposto. Ao final, eles levavam os
cadernos com as respostas que haviam construído na banca da PR e ela avaliava cada um dos
alunos em particular, fazendo intervenções quando lhe parecia necessário. O material elaborado
pela PR parece atender ao propósito de fazer os alunos sistematizarem o conhecimento produzido
durante a aula. Como veremos, as questões da ficha estão ordenadas numa sequência claramente
pensada para que, a cada análise dos exemplos retirados das cartas, os alunos percebessem um
novo aspecto quanto à estrutura dos verbos na correlação com os sujeitos a que se referem.
252
Podemos dizer que, com a atividade proposta na ficha, a PR dá continuidade ao perfil de trabalho
iniciado com a análise da carta do leitor, como se pode constatar através da reprodução do
material na Figura 57 abaixo:
Figura 57: Ficha de aula utilizada para sistematização de conhecimentos sobre concordância
verbal (PR)
Semelhante ao trabalho desenvolvido com a carta do leitor, a culminância da reflexão
linguística mediada pela PR na abordagem da concordância verbal foi uma atividade de
sistematização de conhecimentos, em que o aluno é convidado a verbalizar um conceito (como
sugerem Franchi (2013 [1987]) e Geraldi (1991, 1996), da epilinguagem para a metalinguagem).
Dessa vez, essa sistematização é feita de forma mais gradual, pois ela é guiada por intervenções
da PR representadas nas indagações contidas na ficha acima reproduzida. Entretanto, ao que nos
parece, a atividade não amplia a compreensão do aluno especificamente sobre o funcionamento
do gênero carta do leitor. As alterações nas formas verbais que a PR busca mostrar ao aluno
advêm unicamente da pessoa do locutor que escreve cada um dos excertos presentes na ficha (ou
dos sujeitos das orações destacadas). Assim, apesar de reconhecermos a relevância e a
consistência do trabalho desenvolvido pela PR, não identificamos na abordagem da concordância
verbal um trabalho articulado ao eixo da leitura (ou ao estudo da carta do leitor). Nesse sentido,
parece-nos que, na atividade da Figura 57, o texto é utilizado como pretexto para o ensino de
253
gramática. Afora esse aspecto, a PR demonstrou avaliar o trabalho por ela realizado de forma
semelhante ao que pontuamos ao longo deste subitem. Na Figura 58, abaixo, transcrevemos parte
do depoimento que ela nos deu ao final da aula sobre a prática que acabara de desenvolver:
Acho que não se encaixa nas atividades de forçação de barra não, porque, se eu tava querendo ver com eles a
questão da concordância, eu acho que o gênero carta do leitor se prestou bem pra isso. [...] Eu acho que eu
pensei o seguinte... Eu vou pegar uma carta do leitor que seja coletiva e que o sujeito esteja no plural, e depois
eu vou fazer a alteração... eu vou pedir pra eles fazerem a alteração... e fazer eles perceberem que o verbo se
comporta de acordo com o sujeito a que ele se refere. [...] Eu acho que os trechos das cartas que eu escolhi se
prestaram bem. [...]
Eu gosto muito de fazer isso de eles próprios tirarem as conclusões deles. E eles disseram de uma forma bem...
bem da gramática, né? “O verbo tem que concordar... tem que combinar com o sujeito.” [...] E, na prática,
não é uma coisa que ficou gravada... e eu não vim com um conceito pronto. Eu fui levando eles a descobrir, a
perceber o conceito, a chegarem ao conceito, e eu não cheguei com o conceito já “olha, gente, a concordância
quer dizer isso, isso e isso” não. Eu fui levando, eu fui promovendo as atividades, né, a sequência de
atividades pra que eles chegassem a essa conclusão. E eu gosto sempre de colocar no finalzinho. Aí, depois de
tudo feito, de eles terem passeado por ali tudinho, aí alguns têm dificuldade de organizar isso, organizar esse
pensamento, não é? Aí, colocaram de forma diferente, mas disseram o que era pra dizer, e o conceito, a
concepção, ficou bem arrumadinho na cabeça deles.
Figura 58: Autoavaliação do trabalho com a concordância verbal (PR)
5.1.2.3 Trabalho com a ortografia (PR)
Vimos ao final do terceiro capítulo desta dissertação que Tardif (2002) encontra na
heterogeneidade a chave para explicar a prática docente. Para isso, ele situa o professor como um
sujeito cujo trabalho produz uma prática social específica, a de ensinar. Sua condição de ator
social é suficiente para se compreender a natureza das ações constitutivas de sua atuação
profissional como um entrançado muito mais complexo do que a uniformidade que supõe a
correlação direta por vezes procurada entre as concepções teóricas e os “fazeres ordinários” da
prática (cf. CHARTIER, 2000a [1995]). Sobre essa complexidade, Tardif (2002, p. 174) defende
que “[...] as atividades concretas dos atores sociais manifestam-se geralmente como tipos mistos
e raramente puros”.
A análise da prática de ensino da PR – feita com base nos dados gerados por entrevistas e
observações de aulas – corrobora a heterogeneidade (não aleatória, mas marcada por uma forte
coerência pragmática) inerente ao trabalho do professor sobre a qual discorre Tardif (2002).
Durante a entrevista inicial, na maior parte dos depoimentos, a PR demonstra uma preocupação
em atender às atuais orientações teórico-metodológicas para o ensino de língua materna, o que
254
implica, de sua parte, uma busca pela instauração de uma atitude investigativa em suas aulas,
com vistas à produção de conhecimentos pelos alunos (em detrimento da mera assimilação de
teorias previamente formuladas) e pautada numa noção de linguagem como processo
interlocutivo. Nas aulas observadas, esse esforço é ainda mais visível, não apenas no trabalho
com o gênero carta do leitor (mais afeito a uma abordagem textual-discursiva), como também no
ensino da concordância verbal (fenômeno de natureza normativa, cuja compreensão depende
mais de operações linguísticas no plano da estrutura dos enunciados do que propriamente de
aspectos discursivos). No entanto, os mesmos dados (da entrevista e da observação) asseveram
que o compromisso maior da PR não é com as convicções teóricas adquiridas na formação
continuada (especialização, mestrado, encontros pedagógicos com Irandé Antunes, EPM, leituras
de textos especializados em linguística e em ensino de língua portuguesa, contato com
documentos curriculares oficiais da rede municipal). Os conhecimentos oriundos dessa instância
exercem influência nas decisões práticas que ela toma para construir seu fazer pedagógico
cotidiano, mas eles são confrontados com o funcionamento efetivo da dinâmica da sala de aula.
Assim, a PR compromete-se com as convicções que a experiência profissional lhe trouxe, com os
conhecimentos e os protocolos de ação validados por sua experiência como professora (cf.
TARDIF, 2002; CHARTIER, 2007). Por essa razão, ela nem segue a rigor tudo o que propõem o
livro didático, a Política de Ensino da prefeitura ou os estudiosos da academia, nem
necessariamente descarta saberes e práticas típicas do ensino tradicional de português.
O trabalho realizado em torno da ortografia (particularmente sobre o uso da letra “s”), se
analisado na relação com o todo da prática de ensino da PR, ajuda a perceber a natureza da
atividade docente tal como pontuamos nos parágrafos acima, pois, diferentemente do modo como
procedeu nas demais aulas que acompanhamos no trabalho de campo, a PR abordou a ortografia
de forma bastante tradicional, e o fez consciente do tipo de trabalho que estava desenvolvendo
junto a seus alunos por considerá-lo adequado às necessidades da turma. Na Figura 32, ela
chegou a citar a ortografia como um conteúdo de ensino que, a seu ver, demandava a recorrência
a dispositivos típicos do ensino tradicional de língua materna. Vejamos como o trabalho ocorreu
e o que a PR teve a nos dizer sobre a prática executada.
Foram três as aulas dedicadas ao ensino da ortografia no grupo-classe observado (aulas
13, 14 e 15, a primeira no dia 25 de novembro de 2015 e as duas últimas geminadas no dia
seguinte, cf. Quadro 10). Os registros descritivos de cada dia de aula contidos em nosso diário de
255
campo encontram-se disponíveis respectivamente no Apêndice F e no Apêndice G, ao final desta
dissertação. No primeiro dia, a PR utilizou uma ficha por ela elaborada para apresentar aos alunos
as regras de uso da letra “s”, e no dia seguinte eles foram solicitados a realizar duas atividades
para compor parte da nota do bimestre (um ditado de dez palavras e uma ficha com cinco
questões a serem respondidas com a possibilidade de consultar a ficha da aula anterior). O
conteúdo trabalhado nessas aulas não estava previsto no livro didático adotado, razão pela qual a
PR opta por produzir o material didático em que a aula se esteia. Quanto ao documento curricular
da prefeitura, havia a indicação de um objetivo de aprendizagem vinculado à ortografia
(“observar a grafia oficial, observando os aspectos da legibilidade e clareza do texto”, cf. Quadro
9), sem, contudo, a determinação de conteúdos que explicitassem as convenções específicas a
serem tematizadas no sétimo ano do ensino fundamental.
A maior parte dos estudiosos filiados à concepção sociointeracionista de língua(gem),
quando pensa o ensino da ortografia, não nega a importância de haver na escola ações
pedagógicas voltadas para a aprendizagem das convenções ortográficas, mesmo em se tratando
de um conteúdo que remete a uma dimensão estrutural da língua apartada de uma reflexão mais
ampla sobre os efeitos de sentido e sobre o contexto de interlocução. Como alerta Pessoa (2012),
o que se discute não é a necessidade do ensino da ortografia, mas os caminhos através dos quais
ela é ensinada. A autora defende que, no planejamento das regularidades ortográficas a serem
focalizadas em cada turma, o professor procure identificar os tipos de erros que seus alunos
cometem – isto é, reconhecer o estágio de conhecimento deles em relação à norma ortográfica
para, com esses dados, poder definir com maior precisão as intervenções pedagógicas que possam
lhes trazer bons resultados (PESSOA, 2012). A recomendação de se realizar uma avaliação
diagnóstica prévia é uma possível justificativa para a ausência de indicações pontuais nas
diretrizes curriculares da prefeitura quanto aos conteúdos vinculados à ortografia que devem ser
trabalhados em cada uma das séries do ensino fundamental, visto que a definição de tais
conteúdos estaria, em larga medida, sujeita ao perfil de aprendizagem da turma.
No depoimento da Figura 34, a PR explica que, apesar de ter a proposta curricular da
prefeitura como parâmetro para o planejamento de sua prática de ensino, ela sente-se autônoma
para avaliar os encaminhamentos sugeridos e modificar o que lhe pareça inadequado ou
insuficiente. Nesse sentido, a ausência de especificações na distribuição dos conteúdos
vinculados à ortografia leva a PR a determinar ela própria as questões que serão abordadas em
256
cada uma das turmas às quais ensina (sexto, sétimo e oitavo ano), de acordo com sua avaliação
quanto ao nível de complexidade das regularidades ortográficas escolhidas. Assim, a PR optou
pelo trabalho com o uso da letra “s” nas turmas de sétimo ano. Apesar da perceptível falta de
vínculo entre essa escolha e o conjunto de conhecimentos sobre a ortografia da língua que os
alunos demonstrassem dominar (ou não dominar), é importante salientar que houve momentos na
primeira aula em que a PR chamou a atenção da turma para alguns erros relacionados ao emprego
do “s” que percebia serem comuns entre eles (a grafia da palavra “através” e das formas
conjugadas do verbo “querer”, por exemplo).
Nos subitens anteriores, tivemos acesso a um trabalho de metodologia reflexiva (cf.
MENDONÇA, 2006), através da qual a PR impulsionava os alunos a se debruçarem sobre um
determinado fenômeno linguístico e construírem conceitos explicativos abstratos a partir da
observação de casos particulares de ocorrência do fenômeno. No trabalho com a ortografia, a PR
procede diferente: ela traz na ficha de aula (conforme Figura 59 abaixo) as regras ortográficas a
serem estudadas já formuladas.
Figura 59: Ficha de aula utilizada para a apresentação das regras de uso da letra “s” (PR)
257
Durante a aula, a PR lia em voz alta cada uma das regras dispostas na ficha e explicava-
lhes, à medida que progredia na leitura realizada, os termos metalinguísticos desconhecidos (ou
esquecidos) que surgiam (palavra derivada, radical, sufixo, adjetivo, ditongo). Em seguida, ela –
às vezes, em coro junto à turma – lia os exemplos de palavras que ilustravam a regra apresentada.
Observe-se na figura abaixo o início da aula que acabamos de começar a descrever:
PR: [...] A gente vai ver alguns usos da letra “s”, certo? Então, acompanhem aí. [Lendo a ficha:] “Usa-se o
‘s’”... Aí, a primeira... o primeiro conceito, né? [Continua a leitura:] “Nas palavras derivadas de outras que já
apresentam o ‘s’ no radical.” Então, vamos ver... “Derivadas” quer dizer quando uma palavra nasce da
outra. Então, por exemplo, “casarão” é uma palavra derivada de que palavra?
Aluna: “Casa”.
PR: Da palavra “casa”. Ok. Só revendo conceitos aqui, né? Então, “casarão” é palavra derivada de “casa”.
Então, quando as palavras são derivadas... Quando uma palavra é derivada da outra, que já tem um “s”, as
palavras derivadas vão ser escritas com a letra “s”. Então, todas as palavras que derivem de “casa” serão
escritas com a letra “s”. “Casa”, “casinha”, “casarão”, “casamento”, “casebre”, “acasalamento”, etc. etc.,
certo? E quando tem um “s” no radical. O que é um radical? Radical é a parte da palavra derivada que não
se modifica porque já está no radical da palavra primitiva. Então, qual é o radical... ou seja... quais são as
letras que se repetem e que não se modificam nas palavras “casarão”, “casinha”, “casebre” e
“acasalamento”?
Aluna: “A”, “c”, “a”, “s”.
Aluno: “C”, “a”, “s”.
PR: “A”? Também? O “a”?
Aluna: Aham. Ó, ali, ó... “Casa”...
Aluno: O “s” depois do “c”.
PR: Ah. Só o “c”, o “a” e o “s”. Ok. [...] Então, olhe, isso aqui [apontando para o radical das palavras
elencadas no quadro] é o radi...
Alunos: ...cal.
PR: ...cal. Certo? Eu tô pegando só esse exemplo. Só que a gente pode pegar muitos outros exemplos, ok?
Então, por exemplo, “analisar” é derivada de que palavra? [Explorando os exemplos da ficha]
Aluno: “Analisar”? “Analisação”.
Aluno: De “análise”.
PR: De “análise”. “Casinha” e “casebre” são derivadas de que palavra?
Alunos: “Casa”.
PR: “Catalisador” é derivada de que palavra?
Alunos: “Catálise”. [Lendo na ficha]
258
PR: “Alisar” é derivada de...
Aluno: “Liso”. [Lendo na ficha]
PR: “Liso”. Ok. Dois... O “s” também é usado [lendo a ficha:] “nos sufixos –ês”... Sufixo... Revisitando
conceitos... Sufixo é a parte final de muitas de nossas palavras, certo? Como “camponês”... –ês... “e”, “s”,
acento circunflexo no “e”. E –esa... “E”, “s”, “a”... Por exemplo: [lendo os exemplos da ficha:] “burguês”...
Aluno: “Chinês”. [outro exemplo da ficha]
PR: ...“burguesa”. “Chinês”...
Alunos: ...“chinesa”.
PR: “Inglês”...
Alunos: ...“inglesa”.
PR: “Milanês”...
Alunos: ...“milanesa”.
PR: “Camponês”... [acrescentando mais dois exemplos além daqueles contidos na ficha]
Alunos: ...“camponesa”.
PR: “Irlandês”...
Alunos: ...“irlandesa”.
PR: Ok. Então, vejam... Quando as palavras são escritas com –es e o acento circunflexo, quando ela passa
para o feminino...
Aluna: ...ela não tem o acento circunflexo.
PR: Não tem mais o acento circunflexo, e, como ela é derivada da palavra masculina, então, ela continua
sendo escrita com a letra “s”.
Figura 60: Início da aula sobre o emprego da letra “s” (PR)
Uma característica marcante da aula 13 é a reprodução de conhecimentos, pois os
diálogos entre a PR e os alunos se limitam a uma repetição do conteúdo da ficha (regras e
exemplos), com exceção dos momentos que a PR dedicava à explicação dos conceitos
gramaticais que constavam na redação das regras (momentos também marcados pela
reprodução). Havia, desse modo, pouco espaço para a reflexão, dada a ausência de atividades
epilinguísticas durante toda a aula. Corroboram nossa avaliação quanto ao caráter reprodutor do
ensino da ortografia empreendido pela PR a solicitação, ao final da aula, para que os alunos
copiassem em seus cadernos as regras apresentadas na ficha e as reiteradas ocasiões em que ela
259
os orientou a memorizarem as regras, assegurando-lhes ser esta a única forma de estudar aspectos
ortográficos da língua.
A despeito de considerarem o desenvolvimento da habilidade de memorização relevante
nos casos em que as correspondências letra/som não são explicadas por regularidades (situações
em que é possível, ainda, recorrer ao dicionário), alguns especialistas que se dedicam a estudar o
ensino da ortografia defendem, para as correspondências regulares, uma abordagem didática
reflexiva que possibilite ao aluno a descoberta dos mecanismos de funcionamento da norma
ortográfica (cf. MORAIS, 1995, 1998 apud PESSOA, 2012). Melo e Pessoa (2011, p. 30)
destacam, no excerto abaixo, o papel da intervenção do professor no processo de aprendizagem
da norma ortográfica pelos alunos:
[...] Um ensino sistemático de ortografia, baseado no debate e na reflexão das restrições
da norma ortográfica, possibilita um melhor desempenho ortográfico, além de contribuir
para uma maior estabilidade do aprendido. O aluno precisa da intervenção pedagógica
no processo de construção de seu conhecimento ortográfico. É o professor quem ajudará
a refletir sobre a grafia correta da palavra, por meio de situações que estimulem o
aprendiz à reflexão sistemática sobre as regras geradoras de notações corretas e sobre a
existência de palavras cuja ortografia não depende de regras.
As situações de aprendizagem oportunizadas pelo professor de língua portuguesa podem
acontecer tanto na revisão dos textos produzidos pelos alunos (algo semelhante ao que Geraldi
propunha na coletânea O texto na sala de aula, em 1984) como em momentos de reflexão
linguística mais pontual, em que os alunos podem inferir regras ortográficas a partir da
observação e da comparação entre várias palavras em que a letra ou o dígrafo é utilizado,
percebendo, pouco a pouco, se há regularidades em seu emprego. Em ambos os casos, o
professor, antes de definir as (ir)regularidades ortográficas a serem exploradas, deve ter acesso às
dificuldades reais existentes na escrita da turma. Ao pensar práticas de análise linguística no nível
da palavra e da frase, Geraldi (1996) chega a relatar uma experiência de sala de aula em que os
alunos foram, a partir de palavras progressivamente apresentadas pela professora, elaborando e
reelaborando possibilidades de explicações para as regularidades percebidas (emprego do “x” e
do “ch”). A cada nova elaboração, a professora escolhia palavras que fizessem os alunos
questionarem a explicação que, até então, haviam construído e, em seguida, proporem uma nova
explicação. Sobre o produto final da reflexão da turma (“sempre que há en antes, usa-se x, menos
quando já existe a palavra, antes, escrita com ch” – como em “enchente”, que vem de “cheio”),
Geraldi (1996, p. 124) avalia que “mais do que a aplicabilidade geral da regra formulada [...],
260
importa considerar o processo de trabalho, em que os alunos, a partir de uma dificuldade real,
foram postos diante de dados para com eles elaborar uma reflexão sobre uma questão, muito
específica, da língua portuguesa”.
Em conversa conosco ao final da aula, a PR demonstra não desconhecer a possibilidade
de construção gradativa das regras ortográficas pelos próprios alunos com a sua mediação, mas,
na sua concepção, a existência de irregularidades que não se enquadrariam nas formulações
produzidas pelos alunos dificultaria o processo, circunstância que a motiva a optar pela
abordagem tradicional do conteúdo:
O objetivo da atividade era eles terem uma ideia de que existem regularidades na nossa língua e que existem
muito mais regularidades em nossa língua quanto ao uso do “s” do que irregularidades, né... e que essas
regularidades, elas podem ser... elas devem ser memorizadas, embora a gente possa dizer... eu poderia fazer
uma atividade tipo... e não teria relação com o texto, não é? [...] Mas eu poderia pegar e jogar uma série de
palavras como “casa”, “música”, “rosa”, “rosado”, e pedir pra eles observarem se o “s” tem som... que som
o “s” tem e em que contexto, né... em que situação geográfica esse “s” se encontra na palavra. E aí eles iam...
ia levar eles a perceberem que o “s” naquele momento, naquela condição, entre duas vogais, vai ter o som do
“z”. Mesmo assim, existem palavras como “fazenda”, “fazia”, “fizesse” e etc. etc. em que também há um
encontro... em que o “z” está intervocálico, né, e tem o som do “z”. Então, isso é insuficiente. [...] Então, veja,
não é uma regularidade tão grande assim [...]. Então, o meu objetivo é que eles tenham essa noção, né, de que
existem algumas palavras que são escritas com “s” e memorizar mesmo isso.
Figura 61: Comentário sobre o trabalho com a ortografia (PR)
As aulas do dia seguinte, como já anunciamos, foram dedicadas à realização de duas
atividades individuais para compor parte da nota do bimestre. Na primeira parte da aula, a PR fez
um ditado de dez palavras com os alunos, a saber: “analisar”, “amoroso”, “amazonense”,
“paizinho”, “lapisinho”, “azeitona”, “freguês”, “inglesa”, “nudez” e “chinês”. Em comentário ao
final da aula, a PR nos explicou que a escolha das palavras não foi aleatória, mas motivada pelas
regras e pelos exemplos destacados no dia anterior:
Eu peguei assim... palavras que eu tinha trabalhado com eles. Por exemplo: depois de ditongo, a letra “s”
aparece... se ela tiver o som do “z”, depois do ditongo, a letra “s”. Aí, eu ditei palavras que eles conheciam,
não é? Palavra que indica origem... Não é? Então, “chinês” é uma palavra que eu ditei, que termina com –es
e acento circunflexo. [...] Então, eu ditei palavras que eles levaram pra casa pra estudar. Porque o combinado
com eles foi estudar as palavras. Agora, claro que um aluno mais inteligente ia escrever tudo com “s”. Eu
tinha que salpicar, eu tinha que colocar algumas palavras que não fossem escritas com “s” também. Então, eu
ditei, por exemplo, “azeitona”. Tem um ditongo, mas só que o ditongo vem depois do “z”, e não antes, como
em “coisa”, que foi isso que a gente viu. Então, eu queria ver se eles estavam... se eles tinham prestado
atenção a isso, né, que o “s” se usa depois do ditongo e quando ele tem o som do “z”, né, e que “azeitona”
seria com “z” porque o ditongo viria depois. Esse tipo de raciocínio, não é? Então... E ditei também uma
palavra também que termina com –ez... “Nudez” [...] Pois é, aí ditei “nudez” de propósito – não é? –, pra que
eles... pra ver se eles percebiam a diferença, né? [...] Outra que coloquei, por exemplo... os diminutivos...
“paizinho” e “lapisinho”. Aí, por quê? Porque eu não expliquei pra eles que, se no radical tem o “s”, o
261
diminutivo “lapisinho” vai ser com “s”? Porque o “s” já está... já faz parte da palavra, já faz parte do
radical da palavra, não é? E “paizinho” não. “Paizinho” vem de “pai”. “Pai” não tem “s”. Então, teria que
ser com “z”. Aí, foi pra isso. Pra ver se eles... Não foi aleatória a escolha. Foi linguisticamente pensado.
Figura 62: Comentário sobre a escolha das palavras do ditado (PR)
Como indica em seu depoimento, a PR esteve atenta aos aspectos relativos ao emprego da
letra “s” trabalhados na aula expositiva prévia. Tal atitude possibilitava aos alunos reverem a
primeira grafia escolhida para as palavras ditadas através de consulta à ficha trabalhada na aula
anterior (Figura 59). Apesar disso, é importante perceber que a desejada comparação entre os
usos do “s” e do “z” não foi efetivamente explorada durante a aula expositiva. A percepção de
que “nudez” e “azeitona” se escrevem com “z” por terem sua grafia regida por outra norma
ortográfica (no caso de “azeitona”, a presença do ditongo após o “z”, e não antes do “s”, como
afirma a PR) é uma reflexão que o aluno poderia fazer por exclusão das regras já estudadas, mas
não por ter sido claramente explorada ao longo da aula ministrada pela PR. Ao final, os alunos
tiveram que responder à ficha abaixo reproduzida, também com a possibilidade de consultar as
regras estudadas no material didático no qual a aula passada havia se alicerçado:
Figura 63: Exercício sobre o emprego da letra “s” (PR)
262
As questões que compõem a atividade reproduzida na imagem acima sinalizam que, como
no exercício anterior (o ditado de palavras), a PR procurou ater-se às regras trabalhadas na aula
expositiva. Com essa atividade, ela conclui o trabalho com a ortografia. Observando cada etapa
da sequência de ações realizadas pela PR ao longo de todo o trabalho, podemos identificar um
dispositivo pedagógico típico do ensino tradicional de língua materna: o tripé definição-
exemplificação-exercitação (cf. BRASIL, 2013). Ele acontece em meio a uma visível separação
entre a instância da aula e a instância do exercício, como encontrado por Batista (1997) no ensino
gramatical por ele investigado. Apesar de essas instâncias dialogarem (o exercício deve
necessariamente remeter aos conhecimentos transmitidos na aula), elas acontecem em momentos
distintos e são guiados por sujeitos distintos: a aula fica a cargo da PR e o exercício fica a cargo
dos alunos, sem que professora e estudantes assumam uma atitude colaborativa na direção da
construção de um dado conhecimento. À semelhança do que percebeu Batista (1997) em sua
pesquisa, a relação do aluno com o objeto de estudo acontecia mais concretamente na instância
do exercício. Embora, em nossa pesquisa, a PR não tenha limitado a instância da aula a uma ação
corretiva ante os usos dos alunos, nela o conteúdo foi meramente reproduzido tal como
apresentado na ficha elaborada pela PR, tendo sido apenas na instância do exercício que a turma
foi convidada a pensar, com alguma autonomia, a aplicação das regras anteriormente estudadas.
5.2 ANÁLISE DOS DADOS RELATIVOS À PRÁTICA DO PROFESSOR DA PREFEITURA
DE JABOATÃO DOS GUARARAPES
5.2.1 Análise da entrevista inicial (PJ)
A entrevista inicial do PJ foi realizada no dia 23 de outubro de 2015, quando havíamos
iniciado há pouco as observações (havíamos acompanhado cinco das vinte e cinco aulas que
compuseram o bimestre). À maneira como procedemos na análise dos dados relativos à prática da
PR, dividimos esta subseção de acordo com as categorias de análise elencadas no Quadro 6,
todos vinculados aos dois primeiros objetivos específicos desta pesquisa: a) analisar as
concepções do professor quanto ao ensino de língua materna, especialmente no que se referem à
análise linguística e sua relação com o eixo da leitura; b) investigar o modo como o professor
planeja a sua prática quanto ao eixo da análise linguística, bem como os critérios que utiliza para
263
escolher os textos e os conteúdos que serão trabalhados em sala de aula (cf. Quadro 5). Em cada
categoria de análise, procuramos contemplar, sempre que possível, as duas questões centrais para
os dados da entrevista inicial explicitadas na subseção dedicada aos procedimentos de análise,
quais sejam: o que os professores pensam sobre os aspectos expressos nas categorias de análise;
como os professores afirmam colocar as concepções manifestadas por sua fala em prática.
5.2.1.1 Objetivos do ensino de língua portuguesa e das práticas de análise linguística (PJ)
Uma característica marcante que pudemos perceber ao longo da maior parte da entrevista
inicial realizada com o PJ foi a necessidade de remeter a situações práticas de sua atuação
profissional para objetivá-la em discurso. Ante uma parcela considerável das perguntas que lhe
fazíamos, suas primeiras reações eram respostas como “depende” ou “pode ser muitas coisas”.
Aos poucos, no diálogo que fomos com ele estabelecendo, encontrávamos caminhos para que o
PJ pudesse verbalizar suas concepções teóricas, descrever sua forma de trabalho e avaliar seu
fazer pedagógico. Esses caminhos, em geral, consistiam em reformulações das questões
inicialmente colocadas, ora de iniciativa nossa, ora dele próprio. Em ambos os casos,
percebíamos que era mais produtivo contemplar circunstâncias concretas de ensino nas
solicitações que lhe fazíamos, porque, mesmo quando procurava relatar um exemplo prático, ele
acabava teorizando sobre os episódios que nos contava, ou seja, a própria narrativa dos relatos de
seu dia a dia profissional terminava por nele suscitar reflexões teóricas sobre o ensino. Como
Chartier (2007, p. 200), acreditamos que “[...] existem discursos que são parte integrante da
prática” e que, por essa razão, é possível (e necessário) inferir da explicitação verbal da prática do
professor as indicações das referências com as quais ele dialoga. É o que esforçamo-nos em fazer
no decorrer desta análise.
Quando indagamos o PJ sobre os objetivos do ensino de língua portuguesa, ele avaliou a
pergunta como demasiadamente ampla (“Poxa, pode ser tanta coisa...”) e começou a tentar
respondê-la aludindo a um encontro do PIBID em que os membros do grupo, após assistirem ao
filme “Entre os muros da escola” (lançado no ano de 2008 e produzido pelo cineasta francês
Laurent Cantet), discutiam os propósitos do professor em uma dada cena. O PJ explicava que os
objetivos de ensino dependem do contexto imediato, das condições partilhadas por professores e
alunos no espaço escolar. A partir desse comentário, ele começou a se reportar ao próprio
264
ambiente de trabalho, esboçando dificuldades em se posicionar ante a pergunta colocada, mas
sinalizando o ponto em que sua lógica discursiva divergia da nossa:
Então, eu acho que depende da turma. Por exemplo, o meu objetivo com minhas turmas hoje é fazê-los ler
melhor e compreender o que tão lendo, inclusive enunciados. Eu não tenho mais pretensão nenhuma, dado
depois de todas as avaliações que eu fiz, que meu objetivo é muito... depende da turma. Eu não tenho – ah! –,
eu não tenho um sonho, um objetivo... Se eu fosse dizer o meu sonho utópico...
Figura 64: Princípio de comentário sobre os objetivos do ensino de língua portuguesa (PJ)
Percebemos, pela fala do PJ, que sua hesitação em responder objetivamente à nossa
questão advinha da necessidade de vincular suas impressões a um contexto educacional concreto.
Ele parecia não reconhecer nas metas de ensino idealizadas no plano teórico as mesmas metas
passíveis de serem estabelecidas na realidade escolar que tinha diante de si. Por isso,
reelaboramos a pergunta inicial, dividindo-a em duas partes:
PESQUISADORA: Então, eu vou reorganizar a pergunta de duas... dividir ela em duas partes, certo? A
primeira parte é: qual você acha que é o objetivo do ensino de língua portuguesa?
PJ: Qual deveria ser...
PESQUISADORA: É, qual deveria ser.
PJ: Qual deveria ser.
PESQUISADORA: Certo. E a segunda é: considerando a realidade que você encontra aqui na escola e
considerando a realidade da turma que eu tô acompanhando, que é o sétimo ano A, qual seria o objetivo das
aulas de língua portuguesa?
Figura 65: Reformulação da pergunta sobre os objetivos do ensino de língua portuguesa (PJ)
Essa mudança de perspectiva, aparentemente sutil, fez uma enorme diferença no
desenrolar do diálogo que o PJ travava conosco. Na Figura 66, a seguir, transcrevemos suas
respostas aos novos questionamentos que lhe foram sugeridos:
PJ: [...] O objetivo da aula de língua portuguesa deveria ser literalmente instrumentalizar o indivíduo pra o
uso adequado da língua. Que ele tenha em algum momento da... Que ele tenha no momento da vida que ele
der na cabeça dele... “Ah, eu quero ler... eu quero ler Guimarães Rosa...” Que ele consiga. “Ah, eu quero ler
Clarice Lispector.” Que ele consiga. “Não, ah, eu quero escrever um bom post no Facebook sobre a
condição... o que tô... minha vida pessoal...” Massa! “Ah, eu tenho que escrever um relatório no meu trabalho
sobre tal coisa.” Que ele consiga. Que ele seja alguém que... não que tenha... não que ele tenha todas essas
habilidades prontas dentro dele, mas que ele tenha condições de, sentando, esteja aparelhado para conseguir
atingir os objetivos dele de uso da língua. Que se ele for... se ele tiver que falar em público, ele consiga fazer
uma boa... uma boa... tenha uma boa retórica e tenha uma boa... que ele consiga atingir o objetivo dele no uso
da língua. Que ele não seja um agente passivo, que ele seja ativo na língua. Pelo menos uma visão minha, eu
não sei se algum teórico fala sobre isso, mas que eu noto que boa parte das pessoas que fala a língua materna,
265
principalmente no Brasil, são passivas da língua. A língua vem e a língua faz o que quer com eles. Ele não...
Eles não se empoderam dela. Ela não serve a eles. Ela não serve a eles. Eles servem à língua... Tanto é que
tem aquelas que falam: “Ai, eu não sei falar português...”. A pessoa se coloca como um... O indivíduo se
coloca como um... Como é que eu digo? Como um... Como alguém que a língua é algo que tá distante e que
ele não tem domínio sobre ela. E, assim, eu acho que o objetivo da aula de língua materna é justamente dar
essa instrumentalização geral pra o indivíduo. Que ele tenha condições de utilizar a língua como instrumento
dele, não ele ser instrumento da língua, não ele ser passivo. [...] Especificamente a turma do sétimo ano A foi
uma turma que apresentou uma dificuldade imensa com leitura em primeira instância. Hoje eles já tão bem
melhores. Assim... Eu posso avaliar que houve uma evolução... [...] Eu noto que houve uma melhora
considerável, significativa, apesar de eles ainda estarem, pra mim, aquém do nível que eles... do nível do
sétimo ano, do que se espera do sétimo ano, vamos dizer assim.
PESQUISADORA: [...] Aí, diante dessa situação, qual seria o objetivo das tuas aulas de língua portuguesa
para essa turma?
PJ: Seria instrumentalizar a leitura deles. Basicamente, assim. Eu fiquei... Não consigo pensar... Seria muito
bom poder trazê-los para discussões mais fortes sobre análise linguística ou até... que a gente dá rudimentos
de literatura... umas discussões sobre literatura, né? Ou ter uma produção de texto mais... né? Como é que eu
diria? Mais... Mais interessante, até pra eles. Mas, por enquanto, com esse nível de leitura que eles tão, eles
precisam ter uma melhora. Não é que eu [...] deixe de trabalhar eixo nenhum. Mas meu objetivo é trazer a
leitura deles pra um nível mais adequado à série e à idade.
Figura 66: Comentário sobre os objetivos do ensino de língua portuguesa (PJ)
Para discorrer sobre os objetivos da disciplina língua portuguesa, o PJ remete a algumas
práticas de linguagem nas quais o indivíduo se engaja para produzir sentidos e interagir com o
outro. São práticas de leitura (sobretudo a literária, representada no depoimento pelas figuras de
Guimarães Rosa e de Clarice Lispector) e de produção de textos escritos (escrita de relatório de
trabalho e de relato pessoal a ser compartilhado no Facebook) e orais (fala pública). Entretanto, a
fala do PJ sugere uma relação de exterioridade entre os sujeitos e as práticas de linguagem, numa
visão aparentemente instrumental da língua. Essa impressão é particularmente forte no excerto
em que o PJ explica que existem indivíduos que são passivos da língua. Tendo em vista a
natureza constitutiva da relação sujeito/linguagem (cf. GERALDI, 1991), entendemos que não há
uso passivo da língua. O próprio ato de produzir linguagem, quaisquer que sejam as
circunstâncias da interação, já é por si só uma forma de agir sobre o mundo, sobre o outro e,
inclusive, sobre a linguagem. O objetivo do ensino de língua materna, segundo o PJ, é dar ao
aluno a condição de usar a língua como instrumento para atender a seus objetivos de
comunicação. Essa instrumentalização (ou aparelhamento, nos termos do PJ) deve incidir, no
plano ideal, sobre atividades vinculadas a cada um dos eixos de ensino.
Especificamente no que diz respeito à turma observada, o PJ entende ser necessário
priorizar o eixo da leitura devido às dificuldades apresentadas pelos alunos. Nesse caso, o PJ
novamente faz breve referência a uma concepção instrumental de língua, ainda que não se
266
prolongue muito na colocação nem defina com alguma precisão no que consistiria tal
instrumentalização. Assim, os dados até aqui apresentados apenas esboçam a visão do professor
acerca do ensino da leitura (central para o trabalho com a turma investigada), não sendo
suficientes para assegurá-la. É o contraste com outros dados da entrevista, bem como com
aqueles provenientes de sua atuação profissional durante as aulas observadas, que poderá dar
mais nitidez aos contornos de seu perfil de trabalho.
Ao descrever um panorama geral de sua forma de ensinar, o PJ deu relevo, inicialmente,
aos eixos da leitura e da análise linguística, como podemos perceber no depoimento reproduzido
abaixo:
[...] E como é que se dá na prática, né? A prática é na sala. Na sala, deixa eu ver como é que eu descreveria...
Eu tento primeiro partir de uma provocação... De uma provocação que vai poder ser um texto oral, escrito ou
visual, não é? Eu tento partir de uma provocação. A partir dessa provocação, eu provoco uma discussão. E
depois dessa discussão, a gente vê um conceito. Então... Porque às vezes fica... Às vezes, infelizmente, a
provocação fica restrita pelas condições a duas ou três frases... E a comparação e a análise a partir de duas
ou três frases. Às vezes, eu tenho condições de ter um texto pra partir dele, às vezes eu tenho condições de ter
um vídeo... Mas isso vai depender da época, da semana, da sala de aula e de fatores externos da escola, de
estrutura...
Figura 67: Descrição geral da prática de ensino (PJ)
Desse modo, a primeira descrição que o PJ fez acerca de sua prática docente teve caráter
relativamente genérico, fornecendo-nos, no entanto, algumas pistas do percurso que ele adota
para atender aos objetivos de ensino mencionados na Figura 66, ainda há pouco. Pelo que
explica, o PJ toma como ponto de partida sempre um texto (escrito, oral ou visual) ou frases, com
a finalidade de suscitar nos alunos reflexões na direção de um determinado conceito que o PJ
pretenda explorar. Se o ponto de partida é o texto (e, por vezes, frases), podemos inferir que o
eixo com que o PJ inicia suas sequências didáticas costuma ser a leitura. Outros dados, que
exploraremos logo adiante, poderão nos precisar melhor a forma como o PJ aborda os textos ou
as frases que traz para a sala de aula. Após essa leitura, o PJ direciona a interação com os alunos
(a “discussão” decorrente da provocação inicial) para o eixo da análise linguística (a construção
do conceito).
Cabe salientar que, embora nem sempre o PJ centre os fazeres pedagógicos em torno do
texto, fica claro em sua fala que ele considera desejável a presença constante do texto na aula de
língua materna, uma vez que faz uso do qualificador “infelizmente” para relatar os episódios em
que se sente impelido a mediar a “provocação” inicial por meio de frases descontextualizadas.
267
Essa situação acontecia, segundo o PJ, por causa das “condições”, de “fatores externos”, da
“estrutura” da escola. No decorrer da entrevista, o PJ comenta, algumas vezes, sobre a
dificuldade que encontra no ambiente escolar para reproduzir fichas de aula ou para utilizar um
aparelho datashow. Desde a nossa primeira conversa, quando ainda selecionávamos os
professores que participariam da pesquisa, o PJ já relatava a importância do livro didático no
desenvolvimento de sua prática docente, não apenas por se identificar com a proposta da coleção
escolhida, mas também devido à falta de suporte material para levar aos alunos outros textos e
outras propostas de atividades – consequentemente restritas ao livro didático ou ao que era
possível escrever no quadro. Portanto, acreditamos que são essas as limitações a que se refere o
PJ no depoimento da Figura 67.
Corrobora nossa constatação de que o PJ tem como horizonte de prática ideal aquela em
que há presença constante do texto enquanto unidade de análise a resposta que nos deu quanto ao
espaço que o texto ocupa em suas aulas:
PJ: Em suas várias modalidades? Olhe, o máximo possível. O quanto eu puder usar... usar e ele aparecer... eu
deveria... vai ter todo o espaço do mundo. A minha maior dificuldade é essa rigidez. Assim... A gente tem um
livro didático e, às vezes, o livro didático não dá conta. Aí, você quer usar um outro texto. Aí, você tem o limite
de impressão na escola, o limite... o limite da cópia dos meninos no quadro... Você tem umas limitações bem,
bem chatinhas. Mas enquanto... Se eu pudesse, eu levava um texto todo dia pra sala. Todo dia a gente estaria
lendo.
PESQUISADORA: E o que falta pra isso?
PJ: Várias coisas. Às vezes, o texto do livro não é adequado. Às vezes, o livro traz um pedaço do texto que
deveria ser inteiro. Às vezes, eu acho um texto fora, mas eu tenho limite de impressão. Às vezes, eu não tenho
tempo de procurar um texto. Os bons e velhos problemas da educação que o professor sempre levanta e todo
mundo diz: “Mas o senhor repete tanto isso...”. Mas é isso que atrapalha meu trabalho todo dia. Não é? Eu
não tenho tempo, eu tenho limite de impressão, porque falta folha, porque falta tinta, porque falta papel... E aí
o livro não dá conta, mas o livro não tem que ser tudo. Mas, aí, em determinadas práticas, ele termina sendo
tudo porque é o que você tem, né?
Figura 68: Comentário sobre a presença do texto na prática de ensino (PJ)
No depoimento acima, vemos a influência que as restrições decorrentes das condições
materiais da escola exercem sobre a atuação do PJ na sala de aula. Além disso, ele toca um pouco
na questão das circunstâncias às quais o trabalho do professor está sujeito, que o levam a dispor
de um tempo bastante reduzido para o planejamento e para dar prosseguimento à sua formação
docente. A rotina do PJ era, de fato, muito intensa, pois ele trabalhava em duas escolas (na rede
estadual no turno da manhã e na rede municipal no turno da tarde, e ainda precisava retornar à
escola da rede estadual no turno da noite uma vez por semana). Afora a extensa carga horária de
268
aulas, ainda dedicava ao menos um dia na semana para atividades vinculadas ao PIBID,
programa em que atuava como professor supervisor. Diante dessas condições de trabalho, o PJ
destaca a importância do livro didático como material de apoio à sua prática de ensino, mas,
mesmo reconhecendo a relevância desse recurso e valendo-se dele para desenvolver uma parte
considerável das atividades que propunha aos alunos, o PJ avalia o conteúdo nele disponibilizado
antes de definir o que será efetivamente utilizado nas aulas. Dessa avaliação, cumpre observar
que, no depoimento da Figura 68, o PJ critica a presença de fragmentos de texto ao longo do
livro didático adotado. Tal posicionamento reitera a valorização do texto como unidade de análise
para o ensino de língua portuguesa na concepção do PJ.
Quanto à organização da prática em relação aos eixos didáticos propostos por Geraldi
(1997b [1984], 1991, 1996), apesar da referência inicial restrita à leitura e à análise linguística
(cf. Figura 67), o PJ também contempla no seu fazer pedagógico os demais eixos. O peso que
cada um deles assumirá na prática concreta é que dependerá das necessidades de aprendizagem
que percebe entre seus alunos, como podemos notar no trecho de fala a seguir:
Como é que eles [os eixos didáticos] se organizam, né? Como é que eles se entrelaçam... Veja, depende. É
porque eu vario muito de... a forma... Minha forma de trabalho varia muito. Por exemplo: eu tenho um projeto
sobre bullying que eu não consegui fazer esse ano, mas que ele trabalha a partir do gênero reportagem e do
uso de gráficos e de infográfico. Gráfico, infográfico... Reportagem, tanto a reportagem televisiva quanto a
reportagem escrita, não é? Eu trabalho com esse gênero, e aí fica organizado a partir do tema bullying. Tudo
que eu vou... E questionário de pesquisa... Eu trabalho questionário de pesquisa, depoimento, transcrição... Eu
trabalho tudo isso, mas tudo baseado na questão do bullying. Não é? Aí, nesse momento, o ponto de partida é
o bullying, não é? É um tema, não é? Em outras situações, o tema... é que eu gosto muito de me pautar sempre
num gênero textual... Eu prefiro. Em outro momento... Por exemplo: quando eu fui trabalhar o quadrinho...
Porque a professora de artes, ela definiu o tema bullying. [...] Eu fui pela questão de gerar humor, não é? Ou
às vezes eu posso partir de uma... de um texto é raro. Trabalhar em cima de um texto único é muito raro, eu
partir e ficar em cima dele, né? É meio complicado. Apesar de que eu fui nessa... na unidade passada... A
gente leu um texto de várias maneiras, em vários focos, que foi uma crônica, uma crônica que a gente, a partir
dela, eu trabalhei com o conceito de preposição, eu trabalhei o resumo, eu trabalhei o gênero crônica, a
descrição na narrativa e a interpretação do texto... tudo baseado no texto. É porque tudo vai depender de
como eles vão receber aquilo ali e como eu avalio que eles tão precisando. Nas primeiras atividades de
diagnose que eu faço no começo do ano, eu meio que vejo o que é que eles tão precisando. Essas turmas, a
professora anterior já havia me avisado que elas vinham com uma deficiência de leitura muito alta. A
deficiência de leitura é imensa. A quantidade de gente com problema de letramento é muito alta. [...] O meu
planejamento, ele é muito redondinho. Ele tem o eixo da oralidade, o eixo de... Eu tenho todos os eixos... Da
oralidade, leitura, produção de texto... Eu tenho todos os eixos contemplados em todas as unidades. O
problema é como a unidade se dá, é que eu dou privilégio a uma situação ou a outra ou chego até a esquecer
o resto. [...] Então, tudo que eu pensei foi sempre pensando no texto e na interpretação. A interpretação com
questões ainda tá muito complicado. Os enunciados das questões ainda é um desafio pra eles. [...] É a esfinge
do sétimo ano, e eles ainda não superaram essa dificuldade. Eu não consegui fazer eles superar. Acho que
talvez por isso eu tenha trabalhado mais essa unidade e tô fazendo mais atividades. Porque, na unidade
passada, eu me concentrei muito mais em leitura e interpretação e discussão... e, na atual situação, eu noto
que eles têm dificuldade ainda, continuam com dificuldade com enunciado. Quer dizer, o desafio de lidar com
269
o letramento deles e de fazê-los avançar nesse quesito é muito alto. Tanto é que a análise linguística ficou
penalizada... que eu vou fechar o ano com certeza sem fechar metade do conteúdo de análise linguística.
Figura 69: Comentário sobre a organização da prática de ensino quanto aos eixos didáticos (PJ)
No depoimento acima, salta à vista, mais uma vez, o caráter prático da lógica discursiva
do PJ, uma vez que ele recorre a situações concretas que vivenciou em sua experiência de
docência para explicitar o modo como organiza a sua prática de ensino. Os exemplos citados pelo
PJ indicam que ele estrutura as ações a serem empreendidas em sala de aula tomando como
núcleo central um determinado gênero textual, um tema ou a inter-relação entre um gênero e uma
temática particular. Embora procure dar relevo e trabalhar de maneira mais aprofundada um
único gênero por unidade, ele também inclui textos de outros gêneros no planejamento do
bimestre para ampliar a abordagem do tema escolhido. O PJ relata, ainda, a possibilidade mais
remota de organizar as atividades de aula em torno de um único texto, a depender dos recursos
passíveis de serem a partir dele tematizados. Ao longo de sua fala, o PJ toca em cada um dos
eixos didáticos propostos por Geraldi (1997b [1984], 1991, 1996), ainda que essas referências
apareçam esparsamente no decorrer do depoimento. Conforme explica, o PJ planeja contemplá-
los na prática cotidiana, mas acaba por privilegiar alguns em detrimento de outros. Essa
distribuição acontece em função do que o PJ avalia, em duas ocasiões principais, como adequado
às necessidades da turma: no momento do planejamento inicial (a partir das atividades
diagnósticas) e durante o próprio andamento da prática (“tudo vai depender de como eles vão
receber aquilo dali e como eu avalio que eles tão precisando”). Noutras palavras, as decisões que
definem os contornos reais da prática de ensino por ele realizada são tomadas, em última
instância, no momento mesmo de sua atuação na sala de aula, quando o PJ dispõe de elementos
concretos para avaliar o que lhe soa satisfatório e realizável frente às circunstâncias que encontra.
Como lembra Chartier (2000a [1995], p. 160), as práticas do professor são “reguladas
empiricamente na ação mais do que pensadas e decididas”. Segundo o PJ, sua avaliação, em
geral, o impelia a focalizar atividades que visassem à ampliação das habilidades vinculadas ao
eixo da leitura, dadas as dificuldades da maioria dos alunos com essa prática específica.
Questionado sobre o modo como ele agia para sanar os problemas que os alunos
encontravam nas atividades de leitura, o PJ nos deu a seguinte explicação acerca do que
considerava relevante (ou não) de ser explorado a partir da leitura de um texto:
270
Eu acho importante o estudo sistemático da interpretação do texto, da linguagem do texto, como o livro
[didático] traz. Às vezes, o contexto de produção... Porque às vezes o contexto de produção do livro é meio
viajado. Ele faz umas perguntas que considero inadequadas. “Pra quê que você acha que é esse texto?”, numa
música. Que pergunta idiota! “Pra quem você acha que é esse texto?”... “Você acha que o autor queria...?”
São perguntas bobas. “Você acha que o autor queria...?” Eu não acho que o autor queria nada. Como é que
eu vou saber? Quem vai saber é o autor. Só sei o que ele diz pra mim. Então, algumas perguntas do contexto
de produção que o livro traz são meio... bem equivocadas. Eu acho, na minha opinião, né...[...] Quando elas
[as perguntas do livro didático] são mais... mais – como é que eu digo? –, mais reais... eles [os alunos] não
acham tão engraçado, eles levam na seriedade. Bom, enfim... Acho que tem que haver sempre uma discussão,
e essa discussão normalmente vai pra um tema e a gente discute a vida deles, porque eu acho que uma leitura
só vai ganhar sentido e o texto só vai ganhar sentido se essas informações, essa construção textual dialogar
com as construções subjetivas dos estudantes. Então, muitas vezes, a gente vai fugir daquela coisa e a gente
vai se emaranhar na própria vida deles. Meio que a gente meio que foge do texto e, ao mesmo tempo, a gente
está nele. Porque, pra mim, ele é uma alavanca... Ele é uma alavanca não... Um trampolim... Ele é um
trampolim pra uma subjetividade, não é? [...] Quer dizer, então, trazer o texto pra uma realidade deles, uma
realidade vivida, pra explicações e pra dialogar com a subjetividade deles é dar significado ao texto, não é?
Porque eu acho que o texto não tem que falar sobre a vida da gente, mas ele dialoga com a vida da gente.
Figura 70: Comentário sobre o trabalho com o eixo da leitura (PJ)
Vimos, no retrospecto histórico de Possenti (2001) sintetizado no terceiro capítulo desta
dissertação, que o advento das teorias sobre a leitura que reconheciam o papel ativo do leitor na
produção de sentidos representou um importante passo no estudo do funcionamento da atividade
leitora, porque escancarou a insuficiência da materialidade linguística do texto e da figura
individual do autor para se concretizar o processo de compreensão que a leitura demanda. Por
evidenciarem a necessária atuação do leitor ante o objeto de leitura, algumas dessas teorias
negligenciavam a influência dos outros dois polos envolvidos na prática leitora: o texto e o autor.
Geraldi (1991, 1996) chegou a tecer algumas críticas a essas perspectivas teóricas e mesmo a
apontar algumas implicações delas para o ensino de língua portuguesa, particularmente no eixo
da leitura: a escola passaria a aceitar toda e qualquer possibilidade de interpretação apresentada
pelos alunos sob a justificativa de que aquela seria a sua forma de compreender o texto, na
relação que ele estabeleceria com a subjetividade do leitor.
Tal situação assemelha-se ao discurso do PJ quanto à necessidade de levar em
consideração as construções subjetivas dos alunos na mediação das atividades de interpretação de
texto. Não estamos, com isso, negando o papel da subjetividade do leitor na produção de sentidos
intrínseca à atividade leitora, pois a perspectiva teórica que vimos defendendo, ao conceber a
leitura como diálogo entre autor e leitor mediado pelo texto, atribui lugar de destaque à ação do
leitor, sem a qual a leitura se inviabiliza. Entretanto, reconhecer o posicionamento ativo do leitor
frente ao objeto de leitura não significa apagar a materialidade linguística do texto, muito menos
a atividade discursiva pregressa que lhe deu origem: a do autor. Do ponto de vista
271
enunciativo/interacionista, é a cooperação entre leitor e autor ante o texto que produz sentidos (cf.
GERALDI, 1991, 1996). A produção de uma proposta legítima de compreensão do texto exige do
leitor atenção às pistas linguísticas fornecidas pelo autor no momento da escrita. Perceba-se, no
entanto, que o PJ critica os questionamentos do livro didático por entender que não há como se
inferirem as intencionalidades do autor quanto à produção de sentidos. É essa razão que o leva a
privilegiar as impressões subjetivas dos alunos (“Eu não acho que o autor queria nada. Como é
que eu vou saber? Quem vai saber é o autor. Só sei o que ele diz pra mim.”).
A concepção do PJ quanto à atividade leitora – segundo a qual a atuação do leitor parece
assumir um peso maior do que os demais componentes envolvidos na leitura – interfere no modo
como ele conduz a leitura na sala de aula. Como ele próprio relata, há momentos em que a
discussão impulsionada pelo texto foge de seu universo de referência, sendo a temática do texto
utilizada como mote (ou “trampolim”) para debates sobre a realidade vivida pelos alunos, não
necessariamente articulando-se as experiências dos alunos ao contexto mais imediato em que o
texto se situa. O apagamento do universo de referência do texto, ou das palavras do autor, fica
evidenciado no exemplo prático que o PJ nos trouxe para ilustrar uma situação de diálogo com a
subjetividade dos alunos suscitada pela leitura de um texto – circunstância, inclusive, que
havíamos acompanhado durante as primeiras observações de aulas já realizadas na ocasião da
entrevista inicial. O PJ lia no livro didático com os alunos a letra da canção Eu + Eu, de Mário
Manga e Gabriel Fernandes. Nela, o eu lírico, ao expressar seus sentimentos em relação a uma
outra pessoa, mostra-se atento ao que se passa ao redor em cada um dos vários lugares em que se
encontra. A ideia do autor do livro didático era, após alguns exercícios de identificação e
classificação de advérbios, abordar os efeitos de sentido desses elementos linguísticos na criação
da imagem do eu lírico da canção. O PJ, então, antes de trabalhar as questões propostas, fez uma
breve discussão coletiva sobre os sentidos do texto. Junto à letra da música, constava no livro
uma imagem em que um rapaz aparecia de frente para a tela de um computador. A ilustração
direcionou inicialmente a interpretação da maior parte da turma, que tendia a relacionar a cena
descrita na canção a uma situação de interação via internet. Durante a discussão, o professor
apresentou à turma uma curiosidade sobre o funcionamento da comunicação por meio das ondas
eletromagnéticas. Os alunos, que desconheciam a informação, ficaram de fato muito interessados
no que o PJ lhes explicava, mas, nesse momento, apesar de a discussão “fazer sentido” para os
alunos por “dialogar com a realidade deles”, o texto foi esquecido em prol de um aspecto bastante
272
periférico por ele suscitado. Não havia mais um debate sobre como o universo criado pelo autor
da canção poderia ter relação com a interação via internet. Agora, professor e alunos dialogavam
sobre um fenômeno físico, relegando para segundo plano o trabalho específico com a linguagem.
No que diz respeito aos objetivos das práticas de análise linguística, o PJ os explicita na
relação com os demais eixos de ensino e critica a centralidade que a gramática, muitas vezes,
assume na organização da disciplina língua portuguesa:
PESQUISADORA: Quais são os objetivos do eixo da análise linguística? [...] Serve pra quê?
PJ: Pra auxiliar os outros. Eu acho que ele não é... O grande problema é a tradição brasileira. A tradição
brasileira, ela coloca a análise linguística, como eu até já discuti aqui na sala dos professores sobre isso... que
o povo coloca a análise linguística como o centro, inclusive análise linguística no sentido mais podre da
palavra... Ortografia... Como se ortografia fosse a coisa mais interessante do mundo... que a pessoa tem uma
boa ortografia, ele é um bom usuário da língua. Não é? As pessoas têm esse entendimento, esse entendimento
preconceituoso. Então, eu acho que a análise linguística, ela serve à leitura, ela serve à produção de texto, ela
serve ao letramento literário. Ela não... Ela não deve ser em si o máximo. Então, pra mim, ela tá em último
lugar. Eu sei que muitos professores colocam ela em primeiro e que a sociedade em geral coloca a análise
linguística como sendo o carro-chefe, né? Mas eu num... discordo completamente disso aí. Eu acho que ela
tem... a posição dela é como um apoio. É como a matemática pra física e pra química.
Figura 71: Comentário sobre os objetivos das práticas de análise linguística (PJ)
A crítica inicial do PJ denota que ele distingue o ensino tradicional de gramática e as
práticas de análise linguística, pois ele se opõe à ênfase conferida tanto à tradição gramatical
quanto a determinados objetos de ensino tradicionalmente valorizados (como a ortografia), ao
mesmo tempo em que destaca a importância das práticas de análise linguística para o
desenvolvimento de habilidades vinculadas aos demais eixos de ensino (fala, leitura e escrita).
Isso significa que a concepção de análise linguística do PJ está em consonância com a noção do
idealizador da prática em questão (cf. GERALDI, 1997b [1984], 1991, 1996), de outros
estudiosos do tema (cf. MENDONÇA, 2006; SUASSUNA, 2012; ANTUNES, 2007) e das
orientações contidas nos PCN (BRASIL, 1998), uma vez que todos eles definem a análise
linguística no diálogo que ela estabelece com as demais práticas de linguagem, ou seja, a partir de
sua natureza transversal em relação aos demais eixos didáticos. Mesmo afirmando que coloca a
análise linguística “em último lugar”, o depoimento do PJ atesta que ele reconhece sua
importância para o ensino de língua materna na medida em que ele aponta o potencial dela para
expandir a aprendizagem dos alunos justamente nos eixos aos quais o PJ atribui maior relevância
(aqueles relacionados aos usos da língua). Valida essa interpretação a comparação a que ele
recorre para concluir a sua linha de raciocínio: a análise linguística teria função semelhante
273
àquela desempenhada pela matemática em relação à física e à química. Certamente, a metáfora
do PJ implica assumir que as práticas de análise linguística ocupam uma posição basilar no
contexto das aprendizagens que se esperam do aluno da disciplina português.
Apesar de diferenciar as especificidades das práticas de análise linguística e do ensino
tradicional de gramática, o PJ refere-se a ambas por meio da expressão “análise linguística”.
Veja-se, por exemplo, que ele afirma que a análise linguística é supervalorizada pelos professores
e pela sociedade em geral, situação que ele atribui à “tradição brasileira”. Ora, o termo “análise
linguística” não está ainda difundido entre o senso comum a ponto de gozar de tal
reconhecimento. Além disso, sabemos que o eixo da análise linguística foi idealizado por Geraldi
(1997b [1984], 1991, 1996) num movimento de oposição ao ensino tradicional de gramática, não
sendo possível, portanto, situar esse eixo didático no âmbito da tradição escolar brasileira. Fica
claro, desse modo, que as críticas que o PJ faz à análise linguística (“no sentido mais podre da
palavra”), no excerto transcrito na Figura 71, alude, na verdade, ao ensino tradicional de
gramática. Nesse sentido, quando coloca a “análise linguística” “em último lugar”, é possível que
o PJ se refira à tradicional valorização do saber gramatical isolado, sem as devidas conexões com
as práticas de linguagem às quais ele deve servir.
Dada a extensão deste subitem, optamos por apresentar os dados da entrevista que
indiciam o perfil de trabalho do PJ quanto ao eixo da análise linguística nos próximos dois
subitens, pois, neles, abordaremos as articulações que o docente busca tecer com o ensino da
leitura e as situações em que recorre a práticas vinculadas ao ensino tradicional de gramática. Por
ora, destacamos um outro trecho de depoimento em que o PJ qualifica a transição entre o ensino
tradicional de gramática e as práticas de análise linguística como um desafio ainda a ser
transposto por ele e pelos demais profissionais que atuam nas salas de aula:
Eu aprendi o tradicional, quase behaviorista. Nomenclatura, em todos os sentidos e tal. Tudo muito
separado... A redação separada da análise linguística, tudo separado da literatura... Não era nem um estudo
do letramento literário. E eu aprendi muito tradicionalmente. Foi o meu aprendizado. [...] A análise
linguística como hoje ela tem espaço, eu acho que ela é um engodo. Pintam ela de progressista. Pintam ela de
como ela é, um dos eixos, mas ainda tratam ela como carro-chefe dos eixos. [...] Disfarçam ela, dizendo que tá
sendo feito diferente, mas o trabalho na verdade é tradicional e de nomenclatura. Eu acho que a gente passa
por esse... por um engodo... em geral. [...] Acho que a gente tem esse desafio ainda. E como é a minha
prática? Eu acho que a minha prática ainda é atrapalhada, ainda é atrapalhada pela forma como eu fui
formado, e atrapalhado pelos atropelos que eu não con... de eu não ter tempo de planejar pra isso ficar
melhor.
Figura 72: Autoavaliação sobre a condução prática do eixo da análise linguística (PJ)
274
Mais uma vez, o PJ utiliza indiscriminadamente o termo “análise linguística”, mas o
contexto de sua fala não deixa dúvidas sobre os momentos em que ele, de fato, refere-se ao eixo
didático proposto por Geraldi (1997b [1984], 1991, 1996) e os momentos em que ele faz alusão
ao ensino tradicional de gramática. Aliás, nesse caso, a mistura conceitual parece ter uma razão
de ser: o PJ procura fazer uma crítica às situações em que a expressão “análise linguística” não
passa de um adorno terminológico que mascara a permanência de um ensino fortemente pautado
no domínio da metalinguagem gramatical. Essa crítica indica, novamente, a anuência do PJ ao
enfoque nos usos da língua em detrimento da descrição gramatical centrada na segmentação e na
classificação de unidades linguísticas (cf. GERALDI, 1991, 1996). Sabemos, entretanto, que a
filiação teórica de um professor não é o único condicionante de sua forma de atuar
profissionalmente. Assim, o PJ ainda avalia sua prática como insatisfatória (“atrapalhada”) se
tomado como horizonte seu ideal de ensino quanto ao eixo da análise linguística. Aqui,
novamente entram em jogo as condições de trabalho do professor (o PJ alega falta de tempo para
planejar adequadamente suas aulas) e também sua experiência pré-profissional, isto é, do tempo
em que ele era aluno de língua portuguesa (experiência que ele qualifica como “tradicional”,
“behaviorista”, fragmentária e voltada para a nomenclatura). Como afirma Tardif (2002, p. 65),
“um professor não possui habitualmente uma só e única ‘concepção’ de sua prática, mas várias
concepções que utiliza em sua prática, em função, ao mesmo tempo, de sua realidade cotidiana e
biográfica e de suas necessidades, recursos e limitações”. Nessa perspectiva, da mesma forma
como o PJ precisou subdividir a questão sobre os objetivos do ensino de língua materna para
aproximar sua resposta das condições concretas de sua atuação profissional, falar sobre as
práticas de análise linguística também lhe exigiu ir além dos saberes teóricos que, em alguma
medida, alicerçam seu ofício. O depoimento da Figura 72 evidencia que sua trajetória biográfica
e as restrições impostas pelo ritmo de trabalho são fatores que interferem nas concepções que são
colocadas em prática no tratamento didático que o PJ confere aos conhecimentos linguísticos.
5.2.1.2 Relação entre análise linguística e leitura (PJ)
Alguns dos depoimentos destacados no subitem anterior já sinalizam que o PJ entende as
práticas de análise linguística como um eixo didático intimamente entrelaçado aos demais
(Figura 71 e Figura 72), mesmo que a realidade cotidiana de seu ofício nem sempre favoreça a
275
concretização de um trabalho pedagógico integralmente condizente com essa concepção teórica.
Ainda assim, em alguns momentos, o PJ relata tentativas de realizar um trabalho em que a
abordagem dos conhecimentos linguísticos se articule à leitura e à produção de texto. Na Figura
69, por exemplo, ao citar casos que elucidassem a organização dos eixos didáticos em sua prática
de ensino, o PJ menciona uma ocasião em que explorou as preposições a partir do trabalho com
uma crônica. Outros aspectos do texto também foram estudados à medida que a turma lia, com
sua mediação, o texto sob diferentes ângulos. Neste subitem, procuramos dar relevo a alguns
dados da entrevista inicial que nos permitam pormenorizar o que pensa o PJ sobre a interface
análise linguística/leitura e os caminhos por ele trilhados na busca por um diálogo efetivo entre os
dois eixos didáticos.
Quando o questionamos sobre sua forma de trabalho com a análise linguística, o PJ
rememorou o início de sua experiência profissional, quando, demandado a ensinar gramática pela
via tradicional, já se sentia incomodado com a razão de ser das práticas e dos conceitos
envolvidos na perspectiva com a qual trabalhava na época:
A minha relação com a análise linguística, ela é bem complicada. É uma relação de amor e ódio. [...] É uma
relação de amor e ódio. [...] Quando eu entrei no curso de letras, eu entrei pensando em dar aula de inglês e
literatura, que eram meus amores, né? Eu até fiquei muito tempo dando aula de literatura, e aí acrescentou-se
a redação. [...] Em escola privada, né? [...] Fui obrigado a dar umas aulas de análise linguística, mas, como
análise em escola privada, você trabalha com gramática tradicional, na época que eu trabalhava... eu
chegava... tudo com gramática tradicional. Aí, tranquilo... que eu sempre tive uma memória muito boa... [...]
Simples, né? Mas aí eu sabia que isso não é tudo, e isso não quer dizer nada. Porque, pra mim, a análise
linguística feita desse jeito... gramatiqueiramente, que é o nome pejorativo, pra mim ela sempre não teve
sentido nenhum. Nunca teve. [...] Não faz sentido eu explicar o que é um sujeito se ele num... simplesmente
porque ele é um sujeito. Dar aula de nomenclatura... Aí, é um sujeito isso, um sujeito aquilo, sem nem saber
pra quê que eu uso. Então mais à frente... Então, eu comecei a incluir situações... Sempre articulei muito
análise linguística com produção de texto. É uma coisa muito íntima minha assim... que eu acho que você tem
que aprender análise linguística pra língua atender aos meus interesses de produção, né? E pra o meu
interesse de leitura – não é? –, eu digo que isso é meio recente. Eu venho... Quando eu venho trabalhando os
gêneros textuais [incompreensível], eu começo a trabalhar com análise linguística [...], com análise
linguística tratando justamente como aquele... aquele... aquela situação linguística se aplica a determinado
gênero. Tanto pra leitura como na produção dele. Mas eu ainda acho que eu sou muito centrado na produção
e em atrelar a análise linguística à produção do texto do que propriamente à leitura, apesar de eu perceber
que ela é importante e de eu sentir uma dificuldade imensa [...].
Figura 73: Comentário sobre a relação entre análise linguística e demais eixos de ensino (PJ)
No depoimento acima, o PJ faz novas críticas à ênfase excessiva na tradição gramatical
recorrente na escola brasileira, demonstrando que é antiga a sua discordância a essa forma de
ensinar os aspectos concernentes à estrutura e ao funcionamento da língua. Ele parece, em suas
reflexões sobre o ensino, estar atento às finalidades pedagógicas que justificam e alicerçam as
276
práticas docentes, em consonância à defesa de Geraldi (1997a [1984]) de que o “para quê” se
ensina deva ser a primeira reflexão a ser colocada pelo professor a si mesmo antes de definir os
encaminhamentos de sua prática. Assim, não lhe soava pertinente, por exemplo, explorar o
conceito de sujeito sem que ficasse clara para os alunos a serventia dessa noção teórica para as
atividades linguísticas em que eles se engajam, quer seja na leitura, quer seja na produção de
texto. Portanto, para o PJ, é essencial que a análise linguística possibilite aos alunos um maior
domínio dos usos da língua (cf. GERALDI, 1997b [1984], 1991, 1996; MENDONÇA, 2006). Por
isso mesmo, ele rechaça o enfoque na aprendizagem da nomenclatura como uma finalidade em si
mesma (“Não faz sentido eu explicar o que é um sujeito [...] simplesmente porque ele é um
sujeito. Dar aula de nomenclatura... Aí, é um sujeito isso, um sujeito aquilo, sem nem saber pra
quê que eu uso.”).
Na avaliação do PJ, ele apresenta uma prática mais consolidada nas articulações que
estabelece entre a análise linguística e a produção de texto. Em momento posterior ao depoimento
acima transcrito, ele afirma ser possível que esse perfil de trabalho se explique pelo fato de sua
experiência com a produção de textos ser mais antiga (no início de sua carreira, o PJ dava aulas
de redação em cursinho pré-vestibular e em turmas de ensino médio na rede privada). Apesar
disso, ele não deixa de reconhecer a importância de dialogar a análise linguística com a leitura e
de buscar meios para viabilizar essa articulação. Semelhante ao que sugere Mendonça (2007b),
uma das alternativas práticas de que se vale o PJ, para tanto, é o trabalho com os gêneros textuais,
em que ele seleciona um dado recurso linguístico que possa ampliar a compreensão do gênero ou
cujas particularidades sejam mais bem explicitadas a partir do estudo do gênero em questão.
Diante das ocasiões em que o PJ procurou definir a análise linguística por meio de seu
potencial para ampliar as habilidades vinculadas aos demais eixos didáticos, solicitamos-lhe que
especificasse de que forma a análise linguística poderia servir à leitura. Na Figura 74, a seguir,
reproduzimos a resposta do PJ:
É que eu acho que o entendimento melhor da estrutura linguística e dos vários níveis dela, né, pragmático,
semântico, você tem uma noção mais profunda desses níveis – não é? –, fonológico, pragmático, semântico,
morfológico... Você consegue se envolver numa leitura... Você tem uma leitura mais... Como é que eu diria? Se
isso bem trabalhado... Se não for trabalhado de maneira tradicional. Se ele for trabalhado dentro da leitura,
dialogando com os significados, dialogando com a produção de sentido. Se ele for bem trabalhado, você vai
estar instrumentalizado pra ler melhor e produzir melhor, utilizando as estruturas linguísticas ou pensando
sobre elas.
Figura 74: Comentário sobre a relação entre análise linguística e leitura (PJ)
277
No fragmento acima, o PJ demonstra compreender que a estrutura da língua tem
repercussões na produção de sentidos dos textos que circulam socialmente. Por isso, ele entende
que a relação dos alunos com o texto escrito se expande à medida que eles aprendem a analisar o
funcionamento dessa estrutura em seus mais variados níveis (fonológico, morfológico, sintático,
semântico, pragmático). Para o PJ, a abordagem dos aspectos estruturais da língua para além da
mera categorização gramatical (“maneira tradicional”) – isto é, com foco nos efeitos de sentido
(“dialogando com os significados”) – permite ao aluno refletir sobre os recursos linguísticos e
utilizá-los em favor de seus objetivos de leitura e de produção de texto, como bem ressaltam
estudiosos do ensino de língua materna (cf. GERALDI, 1991, 1996; MENDONÇA, 2006;
SUASSUNA, 2012).
A fim de compreender melhor o modo como o PJ acreditava ser possível e produtivo
associar o eixo da análise linguística ao estudo dos textos lidos em sala de aula, pedimos que ele
nos trouxesse um exemplo de sua prática de ensino em que ele tivesse prezado por essa
articulação em particular, ao que ele nos relatou:
É que primeiro eu trabalho o significado do texto e as discussões, e depois eu começo... eu chamo atenção
dos meninos pra certas particularidades que aquilo tem pra o texto. Que contribuição aquilo dá pro texto? Quer dizer, quando eu trabalhei pronome, eu coloquei um texto que falava da crise econômica no quadro um
pouquinho. E aí eu comecei a explorar quem tava em crise, que não estava em crise, entendeu? O texto trazia
quem tava em crise, quem não tava em crise, quem ia entrar em crise, entendeu? O que é que ele fala, o que é
que é retomado, o que é que é repensado... E diante desse pensamento de... Quem é principal no texto aqui?
Quem tá sendo retomado? Como ele tá sendo retomado? São os pronomes. E aí o pronome ainda vai fazer
referência à pessoa do discurso, que aí eu tinha... eu já teria... eu tinha falado já previamente as pessoas do
discurso. A gente já tinha feito uma discussão sobre como... o que eram as pessoas do discurso, o que seria
discurso, o que seria pessoas do discurso. E aí, em cima dessa questão de ser a palavra que faz referência à
pessoa do discurso e que me ajuda a não repetir e que é um ótimo recurso de coesão, saiu o pronome. E
acrescentando algumas outras questões porque indica posse, indica indefinição, indica... quer dizer, pronome,
ele vai... indica status social... quer dizer, ele índica muita coisa... [...] Trabalhar com eles dentro do texto é
bem gostoso porque ele tem várias nuances, mas sempre toda nuance, ele vai ter aquela situação... “Veja, ele
faz referência à pessoa do discurso”, pra quem tá falando, pra que tá falando, o que é que tá falando,
entendeu? Então, foi bem interessante fazer esse trabalho dessa maneira... [...] Então, eu normalmente, parto
de um entendimento de um texto, do que é que aquilo dali serve pra o entendimento macro. Aquilo é um
micro que contribui pro macro. Eu entendo análise linguística assim. Quando eu trabalho um texto, eu
trabalho assim.
Figura 75: Exemplo prático de trabalho articulado entre análise linguística e leitura (PJ)
Podemos analisar o depoimento acima dividindo-o em duas partes: a explicação genérica
acerca da percurso que o PJ segue para trabalhar o eixo da análise linguística através de textos
(trecho em negrito) e o relato de uma situação específica de aula em que um conteúdo gramatical
(pronome) foi abordado partindo-se de sua ocorrência em um texto trazido pelo PJ (trecho sem
278
negrito). A primeira parte evidencia que o PJ procura partir da interpretação global do texto para
o estudo de questões linguísticas mais pontuais que possam trazer contribuições para a
compreensão do nível macro do texto. Essa opção didática está de acordo com o alerta de
Mendonça (2006) de que a focalização em constituintes menores do texto deve estar amparada
por sua implicação para a compreensão da dimensão mais ampla do texto enquanto unidade de
sentido.
A segunda parte confirma a busca do PJ em analisar o texto do nível macro para o micro
e, em seguida, retornar para o macro. Contudo, o detalhamento do passo a passo por ele trilhado
durante a aula em que explorou os pronomes ficou um pouco confuso. Por isso, o depoimento nos
fornece apenas alguns indícios do perfil de trabalho do PJ, e não propriamente dados que revelem
de forma mais aprofundada o seu fazer pedagógico. Mesmo com certa imprecisão, identificamos
algumas características gerais do trabalho desenvolvido pelo PJ em torno dos pronomes. Ao
analisar o uso dos pronomes no texto, aparentemente o PJ procurava relacioná-los ao que se dizia
sobre as pessoas a quem os pronomes se referiam, isto é, à posição que esses sujeitos assumiam
no contexto da crise econômica segundo a visão do autor. A partir desse trabalho, o PJ também
parece ter explorado algumas categorizações dos pronomes (“o que eles indicam”), mas não é
possível, por sua fala, saber com sorte maior de detalhes a maneira como a atividade
classificatória foi realizada. Por fim, o relato do PJ indica que ele também explorou o uso dos
pronomes como recurso coesivo, apresentando aos alunos ao menos uma de suas funções: a de
evitar as repetições sucessivas de uma mesma expressão ao longo do texto. Não há como saber
se, em algum momento da aula, o texto foi eventualmente utilizado como pretexto para a
classificação gramatical dos pronomes. Mas, no plano geral, percebe-se o esforço do PJ em situar
o estudo do elemento linguístico focalizado em função de seus efeitos de sentido no texto (cf.
MENDONÇA, 2006).
5.2.1.3 Espaço das práticas e dos conceitos vinculados ao ensino tradicional de gramática (PJ)
Vimos, pelos dados até aqui apresentados, que o PJ concebe a análise linguística como um
eixo transversal no ensino de língua portuguesa – isto é, um eixo auxiliar em relação às
habilidades de uso da língua, tanto nas práticas de leitura quanto nas práticas de produção textual.
Sabemos, no entanto, que as práticas docentes não são homogêneas quanto às concepções
279
teóricas às quais os professores estão, em alguma medida, filiados. Como nos lembram Tardif
(2002) e Chartier (2000a [1995], 2007), as ações constitutivas da atuação profissional do
professor são produzidas por saberes experienciais constituídos no momento mesmo da atividade
docente e interligam-se por uma lógica muito mais pragmática do que apenas teórica. Nessa
perspectiva, a defesa do PJ por um tratamento textual-discursivo dos conhecimentos linguísticos
não descarta a possibilidade de ele se valer de conceitos e práticas típicas do ensino tradicional de
gramática. Os dados que disponibilizamos neste subitem mostram que esses momentos se
justificam, por um lado, pelas dificuldades que o professor encontra na efetivação de seu ideal de
ensino e, por outro, pela validação de algumas dessas práticas por sua experiência profissional.
Também é possível, em parte, atribuir as dificuldades e as experiências validadas à formação
tradicional que o PJ alega ter vivido antes de atuar como professor. Neste subitem, procuramos
dar relevo aos dados que explicitam as situações em que o PJ adota um viés mais tradicional de
ensino, o modo como ele o faz e as razões que o levam a fazê-lo.
Um primeiro fragmento da entrevista que cabe expor foi o momento em que o PJ buscou
descrever a continuidade da sequência didática prototípica de sua prática de ensino (conforme
depoimento da Figura 67: “provocação” inicial por meio de texto ou frases discussão
construção de conceito):
A gente parte pra análise de outros exemplos e a desdobrar o conteúdo de maneira às vezes tradicional ou... e
às vezes mais induzida, vamos dizer assim... induzindo a entender e tal. Tudo depende de como eles tão
recebendo o conteúdo na discussão. Eu decido como eu vou fazer, se faço tradicional ou se induzo, construo
de maneira mais construtivista, dependendo de como eles agiram na discussão do conceito.
Figura 76: Comentário sobre as metodologias adotadas para a construção de conceitos (PJ)
O trecho de fala acima reproduzido atesta que a prática de ensino do PJ quanto ao eixo da
análise linguística não é uniforme. Pelo contrário, ela varia de acordo com o que ele considera
adequado às circunstâncias do aqui e agora da sala de aula (cf. CHARTIER, 2000a [1995]), pois
a decisão do percurso didático a seguir depende das reações dos alunos durante as discussões
impulsionadas pelo PJ. Neste momento, a distinção tradicional/inovador não tem como parâmetro
a unidade de análise ao redor da qual giram as ações empreendidas pelo PJ, e sim o tipo de
metodologia empregada na abordagem do conteúdo linguístico: transmissiva, com o conceito
geral sendo apresentado pronto, tal como formulado pelos especialistas da área, seguido da
tentativa de aplicá-lo a situações particulares diversas de uso da língua; ou reflexiva, com o
280
conceito sendo paulatinamente construído pelos próprios alunos a partir de atividades
epilinguísticas mediadas pelo professor e decorrentes da observação de casos particulares de uso
da língua (cf. Quadro 2).
Logo após a fala transcrita na Figura 76, no intuito de compreendermos melhor as
variáveis que regulavam a decisão do PJ em abordar um conteúdo linguístico a partir de uma
metodologia transmissiva ou construtivo-reflexiva, solicitamos que ele nos relatasse alguma
experiência em que tivesse percebido que o caminho mais adequado, diante das circunstâncias da
classe, era a tradicional exposição prévia do conceito.
PJ: Pronto, substantivo. Substantivo, eu, quando surgiu a discussão e por aí vai, eu notei que eles... essa turma
desse ano... essa turma desse ano, ela precisou de um trabalho mais com conceito tradicional e um exercício
mais... menos... como é que eu digo?... menos construtivista do que outras turmas que eu trabalhei.
PESQUISADORA: Aí, por que tu chegou a essa conclusão durante esse trabalho?
PJ: Porque, na hora da discussão, eles construíram o conceito, mas, depois, na primeira atividade que eu fiz...
que foi uma atividade do seguinte: “chegue em casa, olhe pro seu quarto e escreva trinta substantivos que
você enxerga no seu quarto”... [...] Seria avaliar o conceito que a gente discutiu. Quando as atividades
vieram... assim... boa parte dos alunos não fizeram porque não conseguiram, assim, em casa... “Ah, o que é
substantivo?”... Havia sumido da cabeça deles o conceito. E outros trouxeram... Inclusive, usaram palavras
que não eram substantivos. Os que trouxeram não conseguiram atingir, né? O que se torna um absurdo
porque você tá num quarto, você vai ter trinta substantivos... Mais fácil do mundo, né? Quando você se vira, o
que você pensa é substantivo. Então, quando eles não trouxeram ou trouxeram incompleto, mostrou que não
tinham atingido. Então, a partir daí, eu voltei pelo conceito novamente e comecei um trabalho novamente
estruturado do jeitinho tradicional.
Figura 77: Exemplo de prática tradicional de ensino de gramática (PJ)
Há, no fragmento de fala acima, dois principais indícios dos critérios utilizados pelo PJ na
escolha da metodologia de ensino para o trabalho com os conhecimentos linguísticos. Em
primeiro lugar, conforme ele próprio avalia, uma das possibilidades de recorrência à metodologia
transmissiva é o insucesso de uma primeira abordagem construtivo-reflexiva. Tendo em vista que
a elaboração progressiva e coletiva do conceito de substantivo não foi suficiente para que os
alunos o assimilassem, o PJ tenta ensinar o conceito por uma outra via. Se a noção apresentada
era a mesma, acreditamos que a mudança mais substancial no trabalho realizado deve ter sido nos
exercícios propostos, com vistas à assimilação do conteúdo, possivelmente de reconhecimento e
classificação.
O segundo indício resulta de uma análise nossa acerca do trabalho descrito pelo PJ.
Parece-nos que, afora a construção gradativa do conceito guiada pelas intervenções do PJ, o
desenvolvimento da atividade, da forma como foi inicialmente conduzida, apresenta mais
281
características tradicionais do que inovadoras. Perceba-se que o objetivo da tarefa que os alunos
deveriam cumprir em casa era de classificação de palavras, pois os objetos que encontrariam em
seus quartos corresponderiam a palavras (substantivos). A aproximação com a realidade dos
alunos seria decorrente apenas da presença em suas casas dos objetos que os substantivos
representam, mas o princípio da atividade é o mesmo de uma ficha em que os alunos fossem
solicitados a reconhecer substantivos no interior de uma lista de palavras isoladas de qualquer
contexto de produção. Inclusive, acreditamos ser possível que o comando da atividade tenha
dificultado o seu cumprimento tal como esperava o PJ, pois, ao observarmos o mundo, não
vemos substantivos ao nosso redor. Vemos, sim, objetos, pessoas praticando ações, fenômenos da
natureza, etc. Assim, talvez não fosse tão simples para os alunos “escrever os substantivos que
enxergavam em seus quartos”, principalmente se levarmos em conta que a categoria procurada
era um conceito muito recente para eles. O segundo indício regulador da escolha do PJ por uma
metodologia transmissiva, portanto, diz respeito aos objetivos delimitados para a atividade
realizada: o reconhecimento e a classificação de estruturas linguísticas (neste caso, palavras),
finalidades de ensino típicas do ensino tradicional de gramática.
Também pedimos ao PJ que nos relatasse uma ocasião em que a construção gradativa do
conceito tenha lhe parecido uma escolha exitosa, ao que ele rememorou o seguinte episódio:
PJ: Com quadrinho. Com quadrinho. Foi... O conteúdo do quadrinho, quando a gente passou pra conceituar...
Apesar de eles terem apresentado algumas dificuldades... Mas aí eles sempre vão apresentar, né, uma
dificuldade de lembrar, né? A memória é uma habilidade bem complicada dos meninos nessa fase. Mas com
quadrinho eu consegui construir o conceito com eles...
PESQUISADORA: O conceito do gênero?
PJ: Do gênero, sim, sim. O conceito do gênero. O que seria o quadrinho, como é que ele se [incompreensível],
como é que ele cria significados... A gente discutiu como é que ele cria, apesar de eu ter trazido depois um
conceito de academia, né, mas a gente já tinha um conceito na cabeça, já tinha pensado, já tinha uma ideia do
que seria imagético, do que seria verbal, de onde é que taria a graça, onde não estaria, a partir de uma
discussão e a partir de leituras, não é? Que a tirinha é uma coisa que a gente lê muito em livro didático, mas
que eu noto que é um gênero que não... que, pra eles... apesar de... o pessoal usa muito... mas, desde que eu
comecei a trabalhar com ensino fundamental, eu vejo que eles não têm essa proximidade com a tira que os
autores de livro didático acham que têm. Nenhuma. Nenhuma. Tanto pra extrair a ideia de humor, tanto pra
achar interessante, eles não acham. São raros os estudantes que acham. Então, eu pensei por bem abordar
esse conteúdo pra ver se eu mexo com eles, né? Inclusive, junto com a professora de artes, não é? Mas, mesmo
assim, eu ainda vou... eu ainda tive que, em certo momento... em conceituar linha cinética, balão... e mesmo
eles já tendo uma percepção... mas havia tipos de balão que eles não conheciam direito... e por aí vai. Daí que
eu percebi que eu tive que trazer e mostrar pros meninos... “Olhe, isso é isso, isso é aquilo e aquilo outro...”
Fazer esse trabalho dessa maneira...
Figura 78: Exemplo de abordagem construtivo-reflexiva de conteúdo linguístico (PJ)
282
O trabalho exemplificado pelo PJ para ilustrar a abordagem construtivo-reflexiva tinha
como objeto de ensino um conteúdo de natureza textual-discursiva: um gênero textual
(quadrinho/tirinha). Nesse caso, além da construção gradual dos conceitos vinculados ao gênero,
foi possível fazê-la a partir da leitura de textos específicos, numa clara articulação entre os eixos
da análise linguística e da leitura. Num olhar mais microscópico, poderíamos dizer que foi a
observação de casos particulares que permitiu aos alunos, por um processo indutivo, elaborarem
definições abstratas que explicassem o funcionamento dos elementos focalizados (balão, linha
cinética, linguagem verbal e não verbal, etc.) para a produção de sentidos das tirinhas. Apesar de
citar o trabalho com tirinhas como representativo das práticas em que obteve êxito na construção
conceitual coletiva, o PJ fez, em seu relato, referência a momentos em que precisou ser mais
direto na exposição dos conceitos estudados, devido a dificuldades que ele atribui à falta de
familiaridade dos alunos com o gênero em questão. Por isso, o PJ sentiu a necessidade, durante a
condução da aula, de modificar parcialmente o perfil do trabalho que vinha desenvolvendo.
O depoimento da Figura 78 sinaliza um dos prováveis parâmetros que levavam o PJ a
escolher uma metodologia construtivo-reflexiva para a abordagem de um determinado conteúdo
linguístico: a natureza textual-discursiva do próprio objeto de ensino (nesse caso, um gênero
textual – a tirinha). As observações de aulas realizadas atestam que este, no entanto, não é o
único critério utilizado pelo PJ, pois, como veremos na próxima subseção, o principal trabalho
por ele desenvolvido junto à turma que acompanhamos tinha como objeto de ensino uma das
classes de palavras: o advérbio. Durante o estudo dos advérbios, houve momentos ora de
abordagem mais tradicional, ora de abordagem mais próxima das práticas de análise linguística
tal como idealizadas por Geraldi (1991, 1996). Talvez a hipótese que formulamos a partir do
relato transcrito na Figura 77 seja mais plausível para explicar os caminhos trilhados pelo PJ no
tratamento didático dos conhecimentos linguísticos: ele recorre ao convencional tripé definição-
classificação-exercitação quando não obtém êxito na abordagem reflexivo-construtiva ou quando
não encontra um meio que lhe pareça satisfatório à aprendizagem da turma. Essa hipótese
encontra relativo respaldo na tentativa do PJ de falar sobre o espaço das práticas tradicionais do
ensino de gramática em seu fazer pedagógico:
Depende. Se eu achar que eles precisam pensar no conceito exatamente e diretamente... precisam dessa fala
mais direta. Se eu achar que eles precisam, ele [as práticas tradicionais de ensino de gramática] vai ter todo
espaço... uma aula inteira, duas... Até de atividade, se eu achar que tão precisando desse conceito mais... de
uma maneira mais direta, mais assim... Se eles sentirem... Às vezes, eles lançam, mesmo sem saber, eles
283
lançam essa necessidade. “Ah, professor, eu não entendi isso dessa maneira... Diga logo! Fale!” Eles
explicitam que querem um conceito, que querem um trabalho mais... Então, aí, vai ter o espaço que precisar
ter... [...] Se ele achar que precisa disso ou dessa maneira, eu não vou negar. Com certeza, eu não vou negar.
Figura 79: Comentário sobre o espaço das práticas tradicionais de ensino de gramática (PJ)
Note-se que a necessidade manifestada pelos alunos da qual fala o PJ é por ele ilustrada
por meio da fala de um aluno que parece não compreender o conceito estudado durante a
construção gradual e coletiva. Por não entender “dessa maneira”, ele solicita ao professor que
seja mais direto na apresentação do conceito – situação que leva o PJ a enveredar pela
transmissão da definição pronta, seguida de exercícios mais voltados para a aplicação do conceito
(“até de atividade”).
Diante da relativa imprecisão da explicação do PJ no depoimento acima transcrito,
lembramo-nos das aulas que acompanhamos em todas as turmas de sétimo ano do PJ na escola
quando ainda precisávamos decidir em qual delas observaríamos as aulas que constituiriam o
corpus desta pesquisa. Em algumas dessas aulas, o PJ se dedicou a preencher, junto aos alunos,
tabelas com as conjugações de todos os tempos verbais do modo indicativo no quadro – atividade
que se estendeu por vários dias seguidos, como é de se esperar. Partindo do evidente princípio de
que o largo tempo dispendido na atividade sinaliza a valorização do professor quanto a esse tipo
de prática, indagamos o PJ sobre as razões que o motivaram a optar por ela. Na Figura 80, logo
abaixo, reproduzimos esse momento do diálogo que travamos com o PJ:
PJ: Eu não dava aula de verbo, eu não conjugava. No meu passado, eu não conjugava. A gente falava... Eu
falava o que era, ba ba ba, ba ba ba... E na hora que o estudante ia fazer alguma... determinadas atividades,
eu via que eles não sabiam conjugar o “tu”, ele não sabia determinado plural, ele não sabia diferenciar o
futuro do passado... E eu fiquei pensando... Por mais que eu trouxesse e o livro trouxesse o texto... Eu penso:
mas como ele vai saber se é passado, futuro ou presente se ele não viu isso sistematizado? Como é que ele vai
saber? [...] Se não tem uma matriz pra ele olhar? Então, há aquelas pessoas que são mais fáceis, tipo a
primeira pessoa do singular ou [...] a terceira pessoa do singular. Mas as outras? [Incompreensível.] Isso foi
uma coisa, uma conclusão que eu cheguei com minha prática docente. Eu não usava. Achava que não
precisava dar aula de conjugação de verbo em momento nenhum... que bastava eles irem pra um manual de
verbo pra... Mas aí é que tá: como é que eles vão saber conjugar? Como é que ele sabe que tempo é o quê?
Quantos tempos eu tenho? Quantos tempos existem? [...] Então, eu acho que isso eu aprendi com meus tempos
de ensino, observando os meninos. Eu não fazia; passei a fazer, principalmente pra idade deles.
PESQUISADORA: E tu acha que funcionou, que tu teve resultados com essa mudança de passar a fazer a
conjugação? Tu disse que antes percebia que eles não conseguiam conjugar... por exemplo, o “nós”, o “tu”...
PJ: E nem diferenciar...
PESQUISADORA: ...ou diferenciar os tempos... Tu acha que trouxe resultados?
284
PJ: Pra alguns, sim. Pra outra parte, também não. Eu ainda não... Ainda não é... Ainda não é a solução. De
jeito nenhum. Não dá conta. É um tempo imenso... Não é perdido, que não entendo que é perdido... Mas é um
tempo imenso... Mas também não é a solução última, infelizmente. Ainda precisava de mais coisa... que eu
ainda não sei o quê. Mas eu vou achar. [...] Eu faço o que a minha consciência apraz e o que eu vejo que
funciona com meu estudante.
Figura 80: Autoavaliação sobre trabalho com a conjugação verbal (PJ)
Um aspecto sobressalente da fala do PJ no diálogo acima é o caráter de inacabamento e de
contínua construção de sua prática de ensino. Ele relata já ter desenvolvido o trabalho com os
verbos apenas com base em textos e induzindo os alunos à elaboração dos conceitos necessários.
Observando o desempenho da turma, percebeu, contudo, que uma parcela considerável de alunos
apresentava dificuldades com as conjugações com as quais tinha menos familiaridade (algumas
pessoas do discurso menos utilizadas na fala cotidiana e outras que possivelmente demandavam
concordâncias verbais de número distintas daquelas habitualmente empregadas nas variedades
linguísticas características de seu grupo social) e com a escrita de verbos cuja sonoridade se
assemelhava (acreditamos que, quando menciona o futuro e o passado, o PJ refere-se aos verbos
do futuro do presente terminados em –ão e aos verbos do pretérito perfeito terminados em –am).
É bem verdade que a proposta de Geraldi (1997b [1984], 1991, 1996) para as práticas de
análise linguística não exclui o espaço destinado à sistematização dos conhecimentos explorados,
porém, atendo-nos à lógica que guiou as escolhas didáticas do PJ, podemos inferir que, por se
deparar com resultados que estavam aquém de suas expectativas de aprendizagem para os alunos
(ou seja, devido a um insucesso na abordagem construtivo-reflexiva, como previamente
supomos), ele decide recorrer a um dispositivo pedagógico instituído há longas datas no ensino
de língua materna brasileiro: a conjugação dos verbos, tempo por tempo, modo por modo, pessoa
por pessoa. Trata-se de uma atividade que preza sobretudo pela memorização do aluno e,
portanto, pela reprodução de conhecimentos, contrariando as orientações de viés
sociointeracionista de ensino (cf. GERALDI, 1991, 1996; BRASIL, 1998).
No entanto, o que norteia os fazeres ordinários da prática do PJ não são apenas saberes
pedagógicos e curriculares difundidos nas instâncias de formação inicial e continuada, mas as
condições imediatas da própria atuação em sala de aula, como bem defende Chartier (2000a
[1995]). Ao final do depoimento da Figura 80, o próprio PJ afirma que age de acordo com o que
ele percebe “funcionar” com seus alunos, avaliação que só a experiência concreta lhe permite
285
fazer. Comentário semelhante o PJ fez ao criticar a hesitação generalizada entre os alunos da
graduação que recebe, através do PIBID, para estagiarem em suas turmas da rede estadual:
[...] As críticas são tão grandes à análise linguística, as críticas são tão grandes à forma tradicional de dar
aula que eles [os alunos da graduação] ficam com medo de usar. [...] Determinadas situações, você precisa dar
aula expositiva. Vai ficar a aula toda discutindo, discutindo, discutindo... Tem um momento que você precisa
chegar e dizer e expor. Não tem problema não. Não mata, não morre. Quer dizer, então, há um conflito muito
grande... Tem umas questões que eu acho muito... extremamente hipócritas com relação a essa questão, eu
acho, que a academia trata. E eu não ligo. Eu dou aula do jeito que eu... minha consciência manda. E eu dou
do jeito que eu acho que meu estudante vai entender. O meu objetivo utópico, instrumentalizar meu estudante
para o uso da língua de maneira competente, vamos dizer assim, eu trabalho para instrumentá-lo assim. Não
é? Então, eu trabalho em cima do que vai funcionar.
Figura 81: Crítica à rejeição da academia aos dispositivos pedagógicos tradicionais (PJ)
Logo, é o saber da experiência que atribui (ou não) valor de uso a um dado dispositivo
pedagógico (cf. TARDIF, 2002). No caso do preenchimento das tabelas de conjugação verbal, o
PJ julga ser um caminho que atende à necessidade inicialmente encontrada de sistematizar mais
explicitamente os conhecimentos linguísticos estudados, mas que ainda não “funciona”
plenamente em função dos objetivos de aprendizagem traçados. Essa avaliação abre espaço para
nova reconstrução da prática docente do PJ nas próximas experiências em que o verbo for objeto
de ensino, as quais, por sua vez, desencadearão novos processos de reflexão sobre a prática no
sentido de validar ou não as novas escolhas realizadas, e assim sucessivamente. Trata-se de um
importante processo de formação profissional, inerente à execução do ofício, que impulsiona o
professor a avaliar seu fazer pedagógico em função dos resultados das ações empreendidas muito
mais do que em função dos saberes discursivos que perpassam o ensino (cf. CHARTIER, 2007).
A última questão referente à categoria de análise contemplada neste subitem sobre a qual
gostaríamos de fazer algumas breves considerações é o espaço que a metalinguagem ocupa no
fazer pedagógico do PJ. Frente a esse questionamento, o docente afirmou:
PJ: A gente precisa dar nome aos bois, não é? Eu acho que assim... Eu acho uma falácia não dar nome aos
bois também. Acho que toda... Inclusive, eu assisti até uma palestra de... Esqueci o nome dela... Auxiliadora?
PESQUISADORA: Maria Auxiliadora Bezerra.
PJ: Professora Auxiliadora... E assim... Ela lavou a minha alma, porque assim... toda... todo estudo, toda
disciplina, toda ciência tem um vocabulário próprio, dá nomes, classifica. E língua portuguesa o pessoal
levanta uma bandeira achando que, se eu não der um nome, eu não tô trabalhando tradicionalmente do
mesmo jeito. Eu acho que as coisas têm que ter nome e que eu não vejo problema nenhum a gente discutir o
nome daquelas coisas. Aquilo não tem um nome? Tem um nome... Então? Por que não usá-lo? Eu não vejo
problema nenhum nisso. Ele [a metalinguagem] tem espaço sim. Ele só não é o principal e só não vai ser
286
questionado isso na prova. Com certeza, não. Mas ele tem espaço sim, ele vai ser discutido, ele vai ser falado,
ele vai ser usado. Eu só não vou perguntar a nomenclatura na prova que eu acho que isso é absurdo também.
Figura 82: Comentário sobre o espaço da metalinguagem na prática de ensino (PJ)
Assim como defendem Maria Auxiliadora Bezerra e alguns outros estudiosos do ensino
de língua materna cujas ideias ajudaram a compor parte da fundamentação teórica desta
dissertação (cf. MENDONÇA, 2006; SUASSUNA, 2012), o PJ entende que o dilema sobre a
presença ou a ausência da metalinguagem na aula de português é uma falsa questão, dada a
necessidade intrínseca a qualquer área do conhecimento de se referir, através de terminologias
específicas, aos fenômenos que busca explicar. E justamente por reconhecer o lugar das
nomenclaturas técnicas, o PJ afirma não colocar o foco de seu ensino nelas, pois o fato de ele não
utilizar o conhecimento da metalinguagem como parâmetro de avaliação do desempenho dos
alunos indica que o domínio desse saber não é tomado como a finalidade última de seu ensino.
Como já afirmava Geraldi, desde a coletânea O texto na sala de aula, em 1984:
[...] Uma coisa é saber a língua, isto é, dominar as habilidades de uso da língua em
situações concretas de interação, entendendo e produzindo enunciados, percebendo as
diferenças entre uma forma de expressão e outra. Outra, é saber analisar uma língua
dominando conceitos e metalinguagens, a partir dos quais se fala sobre a língua, se
apresentam suas características estruturais e de uso. (GERALDI, 1997a [1984], p. 45)
A fala do PJ, portanto, sinaliza que ele não confunde saber a língua com saber a
metalinguagem com a qual se pode falar sobre a língua. Tendo em vista que o PJ não direciona a
avaliação das habilidades vinculadas ao eixo da análise linguística para as nomenclaturas,
pedimos para que ele nos explicasse como ela era realizada. A resposta que o PJ nos deu reforça a
sua tendência declarada de enfatizar, nas avaliações, os usos (“baseado em texto”) e a reflexão
sobre a língua (“a pessoa tem que ser muito mais analítica do que memória”):
[...] Eu sempre preparo a avaliação muito baseado em tudo que eu... [...] do jeito realmente que eu trabalhei
durante o ano. Então, eu faço todo um... usando atividades que eu já inclusive usei... utilizei parecido em
sala... Os meninos conhecem o enunciado. E baseado em texto. Aí também reclamam. “É prova de...
Professor, é prova de...” Que eles chamam de gramática, né? “Professor, é prova de gramática. O senhor
bota tanto texto...” Né? Eles reclamam demais em relação a isso, mas... mas tranquilo em relação a isso. Eu tô
tranquilo em relação a isso porque eu realmente tento fazer a prova, a avaliação do jeito que eu acredito que
deve ser, do jeito que foi trabalhado e em cima de reflexão, sem cobrar decorar nada. Porque eu acho que a
pessoa tem que ser muito mais analítica do que memória... Apesar de que a memória é uma habilidade que
eles precisam... Habilidade não... É uma capacidade que precisa ser muito bem trabalhada neles.
Figura 83: Comentário sobre a avaliação da aprendizagem quanto ao eixo da análise linguística
(PJ)
287
5.2.1.4 Critérios de escolha e fontes de pesquisa dos textos utilizados em sala de aula (PJ)
Vimos que o PJ procura, dentro das restrições estruturais que afirma incidirem sobre sua
prática de ensino, incluir o trabalho com textos em suas aulas. Neste subitem, trazemos à tona
dados da entrevista que evidenciem os critérios dos quais o PJ se vale para escolher esses textos e
as fontes de pesquisa utilizadas para encontrá-los. Sobre o primeiro aspecto, o PJ afirmou:
Depende do gênero que eu tô trabalhando, depende do tema que eu tô trabalhando, depende da minha
bagagem de textos também... que eu lembro: “Olha, aquele texto...” E depende que, às vezes, eu tô lendo ou
eu vejo na rua, eu acho na internet, aí: “Vai, eu vou usar esse aqui!”. Isso tudo depende de inspiração, bem
assim. Às vezes, eu tenho alguma... eu já tenho alguma bagagem já, alguma coisa guardada, né? Um banco de
textos já... Às vezes, eu uso um; às vezes, eu uso outro; às vezes eu uso todos. Isso tudo vai depender do
andamento do meu planejamento.
Figura 84: Comentário sobre a seleção de textos a serem trabalhados na sala de aula (PJ)
Como se pode perceber, foi bastante vaga a resposta que o PJ inicialmente nos deu. De
antemão, há alguns elementos que podemos apontar para compreendermos como se dá o processo
de busca dos textos a serem explorados em sala de aula pelo PJ. Uma variável que o PJ leva em
consideração é o gênero estudado. Conforme veremos no próximo subitem – sobre a definição
dos conteúdos vinculados ao eixo da análise linguística –, para escolher o gênero a ser trabalhado,
o PJ segue a sequência de conteúdos proposta pelo livro didático, devido às limitações da escola
na reprodução de fichas de aula. Outra variável é o tema abordado durante o período letivo, pois,
como explicitado no depoimento da Figura 69, a organização de uma sequência de aulas em
torno de uma temática específica é um dos caminhos que o PJ elege para seguir.
A fala da Figura 84, acima, também já fornece algumas pistas sobre o percurso trilhado
pelo PJ para encontrar os textos que deseja ler junto a seus alunos. Pelo que explica, o PJ possui
uma compilação de textos previamente utilizados (“um banco de textos”), mas também opta por
outros com que eventualmente se depara em suas leituras cotidianas (“eu vejo na rua”, “eu acho
na internet”). Quando lhe perguntamos mais diretamente sobre as fontes de pesquisa, o PJ citou
em sua resposta: livros didáticos, livros de literatura e internet. Além disso, destacou a
possibilidade de fazer um levantamento entre os alunos acerca de suas preferências pessoais
quanto a determinados gêneros, como a letra de música. Assim, fica evidenciado mais um critério
do qual o PJ pode, às vezes, se valer na seleção dos textos a serem trabalhados em sala de aula: o
gosto dos alunos.
288
Por já termos observado algumas aulas antes da realização da entrevista inicial,
questionamos o PJ acerca de um dado que constatamos em sua prática de ensino e que poderia
desvendar melhor os parâmetros em que ele se esteia para a seleção dos textos: o uso de textos de
sua autoria, aparentemente elaborados com a intenção de serem pedagogicamente explorados.
Além de perguntarmos o porquê desse procedimento, pedimos para que ele procurasse elencar os
aspectos para os quais ele atentava durante a escrita dos textos. Na Figura 85, logo adiante,
reproduzimos nosso diálogo quanto a essa questão:
PJ: É, acontece [de ele escrever os textos com os quais trabalha em sala de aula]. Comecei a ler... Não sei onde
eu li... Eu li, mas eu já tinha constatado antes que, quando eu dizia... quando eu produzia junto com os
meninos algum texto... Vamos dizer... eu passo uma produção, e eu mesmo faço a produção junto com eles... e
quando eles leem, eu também leio o meu texto... eles fizeram, eu fiz, eu leio o meu também... eles acham mais
interessante. Eu me torno também parte daquela... daquele ambiente, daquele laboratório de produção. Isso é
interessante pra eles, esse contato. É deles isso, né? Essa coisa do professor também produz o texto junto com
o aluno, também faz o seu texto. Dois: eu gosto de escrever. Também é um outro elemento que faz parte, eu
não vou negar. E também é aquela questão que eu levo em consideração... Depende do que... Depende do que
vai... Eu confesso que primeiro eu procuro fora. Se eu não encontrar exatamente o que eu quero, eu produzo.
É uma coisa meio artificial. Eu sei que tem gente que fala contra isso, mas, às vezes, é divertido.
[...]
PESQUISADORA: Quando tu não encontra, o que é exatamente que tu não encontra nesses textos? O que é
que tu prioriza neles que tu não encontra?
PJ: Depende do conteúdo, depende do conteúdo.
PESQUISADORA: Do conteúdo... O conteúdo que tu diz é o conteúdo gramatical?
PJ: Gramatical... ou literatura... ou do gênero... Às vezes, depende do conteúdo e depende do tema também.
Porque, às vezes, eu acho que o texto não vai interessar. Não tem um texto que traga um tema legal, assim,
pra eles. A temática que eles gostam. Às vezes, também é isso.
Figura 85: Comentário sobre os textos de autoria própria utilizados nas aulas (PJ)
Um dos princípios basilares da perspectiva sociointeracionista do ensino de língua
materna, já mencionado ao longo de nossa fundamentação teórica, é a busca pela instauração de
práticas de linguagem na escola (cf. GERALDI, 1991, 1996). Essa busca tem como horizonte o
funcionamento sociodiscursivo dos textos que circulam em circunstâncias concretas de interação
verbal, porque o objetivo de instituir práticas de linguagem na escola fundamenta-se na oposição
ao artificialismo que, para Geraldi (1997c [1984], 1991), reinava nas atividades pedagógicas que
tradicionalmente a escola brasileira veio propondo aos alunos no estudo da língua portuguesa.
Eventualmente, um texto literário produzido pelo professor (ou por qualquer outro sujeito de
linguagem) poderia se configurar como produto de um autêntico processo interlocutivo no qual
289
ele pudesse ter se engajado. No entanto, o diálogo acima transcrito revela que há, desde o
momento de criação do texto, uma intencionalidade pedagógica motivadora da escrita, ausente
nas habituais circunstâncias de produção de textos dos gêneros trabalhados na aula de língua
portuguesa. Nesse sentido, com a entrada dos textos de autoria do PJ para a sala de aula, parece-
nos, como ele mesmo chega a avaliar (“É uma coisa meio artificial.”), que a atividade proposta
afasta-se das práticas sociais de linguagem e aproximam-se da simulação à qual Geraldi (1997c
[1984], 1991) tanto se opõe.
A principal evidência do artificialismo instaurado pela leitura dos textos produzidos pelo
PJ está em sua explicação para o elemento ausente nos textos previamente procurados e que ele
busca contemplar na escrita das produções que serão trabalhadas em sala de aula: o conteúdo de
ensino. Perceba-se que se trata principalmente de conteúdos que tendem a ser tematizados no
eixo da análise linguística (gramática, gênero e literatura), uma vez que tal eixo didático, indo
além dos objetos de ensino vinculados à tradição gramatical, contempla ainda “questões amplas a
propósito do texto” (GERALDI, 1997b [1984], p. 74). Numa das ocasiões em que presenciamos
o uso pedagógico de um texto de autoria do PJ, os alunos copiaram em seus cadernos um texto
(Figura 86, logo abaixo) que, embora apresentado no enunciado da questão como um texto, tinha
a estrutura de um conto incompleto cujo conflito não havia ainda tido um desfecho. A finalidade
pedagógica que motivou a escrita do texto era o estudo dos advérbios e das locuções adverbiais,
de modo que o fragmento de texto produzido pelo PJ possuía grande quantidade desses elementos
linguísticos:
Eram quatro horas da manhã. A estranha figura caminha pelo corredor da escola. Arrastando os pés,
maquinalmente abre as portas das salas de aula para o susto dos escondidos. Quando trancadas abre-as com
um pontapé. A quebra do silêncio com os gritos de terror faz tremer os ainda não vistos. Talvez haja alguma
saída se a polícia chegar a tempo. Os mais velhos comentaram sobre essa possibilidade. Como um cemitério
aquela escola carregava um destino trágico. Inesperadamente, a porta da frente se abre com violência.
Figura 86: Texto autoral utilizado para o estudo dos advérbios (PJ)
De qualquer forma, o diálogo que travamos com o PJ sobre a opção de levar para a sala de
aula textos de sua autoria revelou mais dois critérios por ele levados em consideração na seleção
dos textos a serem explorados em sua prática docente: o interesse temático dos alunos e a
presença de elementos linguísticos passíveis de serem abordados no trabalho com um
determinado conteúdo de ensino.
290
5.2.1.5 Definição dos conteúdos de ensino vinculados ao eixo da análise linguística (PJ)
Questionado sobre o processo de definição dos conteúdos vinculados ao eixo da análise
linguística a serem trabalhados com a turma, o PJ nos informou, numa curta resposta, que seguia
o programa curricular preestabelecido pelo livro didático. Como, desde a primeira conversa que
tivemos com o docente, quando ainda procurávamos os sujeitos da pesquisa, sabíamos que a
escolha do livro didático tinha sido, em grande parte, resultado de seu diálogo junto aos colegas,
redirecionamos os questionamentos da entrevista no sentido de compreendermos as razões que o
levaram a persuadir os demais professores a adotarem a coleção com a qual a escola trabalhava
no ano letivo em que coletamos os dados desta pesquisa (Para viver juntos – Português, de
Cibele Lopresti Costa, Eliane Gouvêa Lousada, Jairo J. Batista Soares e Manuela Prado –
Edições SM). Na Figura 87, abaixo, podemos encontrar os comentários críticos que o PJ fez
acerca do livro didático adotado pela escola para a disciplina português:
PJ: Bom, o livro foi um livro que eu briguei pra ser adotado, porque ele atende a alguns preceitos que eu acho
bem interessantes. A gente já tá usando ele há algum tempo. Então, eu conheço muito bem ele, inclusive os
defeitos dele, né? Tanto é que eu não uso o livro cegamente. Ele tem... Ele trabalha com a análise linguística
construindo o conceito de maneira interativa através de questões e perguntas, e ele trabalha muito bem o
gênero. Às vezes até a bateria de questões dele é imensa. Ele trabalha contexto de produção, a linguagem do
texto... [...] Ele traz questões primeiro pra ouvir... construir o conceito discutindo. E depois ele traz o conceito
da academia bonitinho lá. E ele chega a ser tradicional e interativo ao mesmo tempo. Eu acho isso
interessante. Ele trabalha gêneros textuais, ele trabalha bem com leitura, ele sempre traz texto, ele inclui... na
análise linguística, ele sempre tem atividades que incluem... partir de textos... ela não é feita seca nem
gramaticalmente... ou gramatiqueira... ele não é gramatiqueiro. [...] E eu gosto dele. Tenho minhas críticas,
lógico. Eu tenho minhas críticas a qualquer livro. Não existe livro ideal, com certeza não. E as críticas dos
meus colegas a esse livro é que ele... diz que ele tem um nível muito alto comparado ao que os estudantes vêm,
segundo o que meus colegas colocam.
PESQUISADORA: E você concorda?
PJ: Realmente, os meninos não apresentam autonomia diante do livro. Eles só conseguem lidar com as
atividades do livro muito mais facilmente em sala, comigo. Eles não apresentam realmente autonomia diante
do livro. Mas, também, de que adianta eu ter autonomia diante de um livro com questões que não vão me
ajudar em nada? Então, é outra coisa que eu penso também. Mudar o livro pra um livro que o menino tenha
autonomia, mas que vai perguntar bobagem pros meninos e que não vai ajudar em nada... Então, eu acho que
ele ainda continua sendo válido. E qual é a posição dele aqui? Bom, enfim... Esse ano, um apoio. Esse ano, eu
decidi não segui-lo por completo por conta do que eu já falei antes dos vários problemas que eu encontrei com
as turmas. Então, ele é um apoio, um norte, e que eu tô usando ele... Cheguei até a passar um mês sem tocar
nele [...], porque ele não atendia à minha ideia daquele momento.
Figura 87: Avaliação crítica quanto ao livro didático adotado (PJ)
O depoimento da Figura 87 fornece-nos pistas acerca do perfil de uso do livro didático
pelo PJ, bem como do papel desse recurso didático na construção de sua prática docente, e
291
também alguns dados complementares sobre as concepções teóricas do PJ quanto ao eixo da
análise linguística, as quais dão suporte à escolha da obra que guia o seu planejamento de ensino.
Sobre o segundo ponto, a avaliação crítica que o PJ faz sobre o livro didático adotado
confirma alguns posicionamentos relatados ao longo da entrevista e já explicitados nos subitens
anteriores, uma vez que ele demonstra, no depoimento acima, valorizar os seguintes aspectos da
obra: a construção gradativa dos conceitos linguísticos (“construindo o conceito de maneira
interativa através de questões e perguntas”), a sistematização final do conceito linguístico
estudado (“o conceito da academia”), o estudo dos gêneros textuais, a presença abundante de
textos, o equilíbrio entre atividades na perspectiva da análise linguística e na perspectiva
tradicional.
Tendo em vista que o livro didático costuma ocupar um espaço significativo na prática do
PJ (é o principal documento que guia o seu planejamento), a identificação dos preceitos
estimados pelo docente na escolha desse material assume particular relevância para a
compreensão de seu fazer pedagógico no que diz respeito aos conteúdos vinculados ao eixo da
análise linguística. Ao optar por uma obra que atende aos princípios teóricos listados no
parágrafo anterior, o PJ tem a intenção de prezar por tais fundamentos em sua prática de ensino.
Noutras palavras, com a escolha e o uso do livro didático como parâmetro para definir conteúdos
linguísticos a serem abordados em suas aulas, o PJ parece desejar implementar práticas de análise
linguística numa perspectiva interativa e construtivo-reflexiva, mas sem deixar de lado alguns
conceitos da tradição gramatical e algumas atividades típicas do ensino que historicamente
orientou-se na direção do domínio desses saberes pelos alunos. Tão explícito é esse desejo de
implementação que o PJ se dispõe a enfrentar as dificuldades decorrentes da falta de autonomia
dos alunos no convívio com um livro de orientação mais textual-discursiva e reflexiva.
Apesar da centralidade do livro didático no processo de definição dos conteúdos
referentes ao eixo da análise linguística, o PJ não se limita a executar o programa preestabelecido
pelo autor da obra. De outro modo, ele avalia, em função das especificidades da turma (estágio
atual de conhecimento, perfil de aprendizagem e necessidades de aprendizagem), a viabilidade
prática de abordar os componentes curriculares propostos. Por essa razão, no ano de realização de
nosso trabalho de campo, o livro acabou perdendo um pouco seu espaço, ainda que não deixasse
de ser utilizado durante as aulas.
292
Investigamos, ainda, se o documento curricular da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes
exercia alguma influência na organização da prática de ensino do PJ. O docente afirmou consultá-
lo às vezes, mas destacou que nem sempre era possível contemplar todos os conteúdos indicados
como programa mínimo para a conclusão do ano letivo. No ano de realização da pesquisa, por
exemplo, o PJ afirmou que não conseguiria cumprir integralmente a proposta.
Procuramos consultar o documento a que se refere o PJ para termos uma noção geral da
linha de trabalho sugerida, principalmente no tocante às práticas de análise linguística. A última
versão do documento data de 2014, tendo sido elaborada por especialistas da educação e dos
diversos campos de conhecimento que a escola busca ensinar, com a colaboração de professores
atuantes na rede municipal. Chama-se Proposta Curricular: Educação (JABOATÃO DOS
GUARARAPES, 2014). Nela, após a apresentação das concepções educacionais mais amplas
(educação, ensino e aprendizagem) e da organização da rede municipal, encontramos as
propostas curriculares para cada área de conhecimento em linguagens para a educação infantil
(oralidade, leitura e escrita, arte, corporal, identidade pessoal e social, espaço temporal, natureza
e matemática) e para cada disciplina escolar do ensino fundamental. Em ambos os casos, a
proposta é composta de um texto inicial sobre a linha teórica que a fundamenta e de uma lista
com os componentes curriculares, divididos em competências e saberes.
No caso específico de língua portuguesa (área de linguagens, no documento), a proposta
curricular assume a linguagem como “atividade social, intersubjetiva e histórica, materializada
através das práticas sociointerativas, de natureza interdisciplinar” e como “capacidade humana de
articular significados, visando à produção de sentidos” (JABOATÃO DOS GUARARAPES,
2014, p. 59). Filiado, portanto, à concepção sociointeracionista de linguagem, o documento
sugere a organização do ensino de língua materna em torno da articulação dos três eixos didáticos
idealizados por Geraldi (1997b [1984], 1991, 1996), acrescentando, ainda, as práticas de
oralidade.
Para o eixo da análise linguística, nosso foco de pesquisa, o documento defende o
desenvolvimento da competência discursiva como finalidade última do ensino, explicando que,
para tanto, o estudo de unidades menores da língua deve ter em vista o nível macro do texto e/ou
a ampliação da compreensão acerca do funcionamento da língua. Por isso mesmo, destaca a
natureza complementar das práticas de análise linguística em relação à leitura e à produção de
textos (JABOATÃO DOS GUARARAPES, 2014). Em seguida, constam alguns quadros com os
293
componentes curriculares propostos para o ensino fundamental em cada eixo didático. Não há,
contudo, indicação de como distribuí-los ao longo das séries que integram esse nível de ensino.
Reproduzimos abaixo o quadro com os saberes e as competências vinculadas ao eixo da análise
linguística:
Competências
* Compreensão das propriedades do sistema de escrita alfabético;
* Compreensão/utilização da ortografia regular e irregular da língua portuguesa;
* Uso das estruturas morfossintáticas na construção do texto oral e escrito;
* Análise e refacção de textos observando a pontuação dos períodos e a ortografia das palavras;
* Revisão e reestruturação de textos de diversos gêneros, considerando suas diferentes organizações
sintático-semântica, a unidade temática, a argumentatividade, a situacionalidade, a intertextualidade, a
informatividade, a referenciação, a concordância e a regência, a formalidade e a informalidade, a coerência
e coesão, a clareza, etc.
Saberes
* Característica dos diferentes gêneros textuais;
* Discurso direto e indireto;
* Adequação vocabular (formalidade/informalidade/intencionalidade);
* Recursos coesivos de reiteração (repetição, paráfrase, substituição, associação semântica entre palavras);
* Recursos coesivos conectores (preposição, conjunção, locução adverbial);
* Estruturas morfossintáticas na construção do texto oral e escrito;
* Semântica;
* Estilística;
* Ortografia;
* Tonicidade/Acentuação;
* Pontuação.
Figura 88: Proposta curricular da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes para o eixo da
análise linguística (JABOATÃO DOS GUARARAPES, 2014, p. 71)
5.2.1.6 Planejamento das ações a serem realizadas em sala de aula no trabalho com os
conteúdos de análise linguística (PJ)
Neste subitem, investigamos o modo como o PJ, após a definição dos conteúdos de
ensino, planeja as ações que, coordenadas, constituirão a prática efetiva de ensino quanto ao eixo
da análise linguística. As informações que o PJ nos forneceu, bem no início da entrevista, sobre o
seu perfil geral de planejamento de aulas revelam um profissional cuja atuação é fortemente
marcada pelos imperativos da prática, muito mais do que por uma projeção prévia dos
desdobramentos que suas ações podem desencadear (cf. CHARTIER, 2000a [1995]). Esse perfil,
294
entretanto, não implica a completa ausência de planejamento, como se pode verificar no
depoimento a seguir:
PJ: Eu primeiro tenho um banco de dados longo, né? Eu tenho um banco de dados bem longo, e eu tenho uma
facilidade de memória muito grande. Então, eu tenho muitas aulas montadas na cabeça. No entanto, eu
sempre, de um ano pro outro... e até mudando depois de leituras e com novas concepções... eu sempre tô
mudando a forma de aula. Então, ela tá sempre em movimento. Mas eu sempre trago elas na cabeça... Anoto
pouco pra trazer... a aula, né? Muitas vezes, eu anoto depois, principalmente as aulas no ensino fundamental.
Eu anoto depois que eu coloco no quadro o esquema ou alguma coisa assim, que é pra usar o mesmo esquema
em todas as salas. E se houver... se há alguma diferença em alguma sala, é por conta de necessidades e
especificidades da turma, não é? Mas eu faço uma anotação no caderno até pós momento de aula. Então, se
eu trago um... Tenho um banco de dados grande... Eu trago a pesquisa mais ou menos e faço.
PESQUISADORA: Como é essa pesquisa?
PJ: A pesquisa... Porque normalmente eu pego o texto. Aí, eu trago o texto... Eu só trago o texto. O que eu vou
fazer com ele, os enunciados e tudo mais, eles tão sempre na minha cabeça.
PESQUISADORA: Tu escolhe os textos, mas tu não planeja em casa o que é que tu vai abordar de cada um...
especificamente.
PJ: Não. Eu planejo em casa especificamente, mas eu não anoto.
PESQUISADORA: Ah, planeja na cabeça...
PJ: É, tudo na cabeça. Se eu tiver um problema de memória, eu tô acabado. Porque... já era. Eu vou ter que
anotar tudo, né?
Figura 89: Comentários sobre o planejamento geral da prática de ensino (PJ)
No fragmento acima, o PJ destaca que sua atuação profissional permanece em estado
contínuo de (re)construção. Vimos, nos subitens anteriores, que a reconfiguração da prática do PJ
depende de reflexões acerca das experiências pregressas, que o levam a julgar se um determinado
procedimento didático “funciona” ou não para um grupo de alunos com determinadas
características de aprendizagem. Também vimos que as condições concretas do aqui e agora da
sala de aula condicionam os fazeres ordinários da prática de ensino do PJ (cf. CHARTIER, 2000a
[1995]), inferência possível de ser feita também a partir dos dados deste último depoimento.
Outro ponto que já tematizamos, no entanto, é a transversalidade dos saberes experienciais em
relação aos saberes disciplinares, pedagógicos e curriculares que perpassam a constituição da
prática docente (cf. TARDIF, 2002). Essa posição explica a incidência dos saberes teóricos na
definição dos contornos da atividade docente, sem, contudo, reduzi-la a uma aplicação direta
entre as instâncias teórica e prática. É por essa razão que a referência constante que o PJ faz ao
momento concreto da aula para justificar suas escolhas didáticas não descarta as possíveis
295
influências das concepções teóricas com as quais ele se identifica (“mudando depois de leituras e
com novas concepções”), mesmo porque, ainda que elas possam advir de leituras de textos
especializados, são as experiências de ensino que validarão ou não essas concepções.
Assim, o percurso básico que o PJ segue para planejar uma aula e colocá-la em prática,
conforme ele explica, é procurar um texto para ser trabalhado, ler em casa, pensar os pontos
pertinentes a serem explorados (sem, contudo, fazer qualquer anotação) e definir os detalhes da
aula no momento mesmo em que ela acontece. Além de descrever essa linha de ação, o PJ
também deu relevo, outra vez, ao livro didático enquanto suporte para a escolha da sequência de
procedimentos e atividades a serem realizadas durante as aulas. Ele julga a presença do livro
didático no planejamento da prática docente favorável à necessidade de sistematização explícita
dos conhecimentos estudados – a seu ver, particularmente intensa entre os alunos do ensino
fundamental.
É evidente que as informações sobre o planejamento da prática do PJ no plano mais geral
também se aplica ao eixo da análise linguística. Mas, entre os depoimentos que trazem dados de
maior precisão em relação à definição das ações constitutivas das aulas em que são mediadas
práticas de análise linguística, podemos retornar à Figura 76, em que o PJ explica que se baseia
nas reações dos alunos durante a análise das frases ou do texto inicialmente apresentados para
decidir entre uma abordagem mais tradicional ou reflexiva do conceito focalizado.
5.2.2 Análise das aulas observadas (PJ)
Conforme indica o Quadro 5, disponível no quarto capítulo desta dissertação, a análise
das aulas observadas durante o trabalho de campo visa atender aos dois últimos objetivos
específicos da pesquisa: c) identificar os procedimentos didáticos que o professor adota em sala
de aula para construir a sua prática quanto ao eixo da análise linguística e analisá-los na sua
relação com o ensino da leitura; d) investigar de que forma o professor de português explora, em
suas aulas, o papel dos elementos linguísticos na construção de sentidos dos textos. Esta subseção
constará apenas de um único subitem por ter havido, dentre as aulas observadas, a abordagem de
apenas um conteúdo vinculado ao eixo da análise linguística: os advérbios.
Foram vinte e cinco as aulas do PJ que acompanhamos para fins desta pesquisa, entre 09
de outubro e 07 de dezembro de 2015. No quadro abaixo, do mesmo modo como procedemos na
296
análise dos dados referentes à prática da PR, elaboramos uma síntese dos conteúdos abordados e
das atividades realizadas durante essas aulas:
AULAS
DATAS /
HORÁRIOS
Nº DE
ALUNOS
CONTEÚDOS / ATIVIDADES
RECURSOS
DIDÁTICOS
1 e 2
09/10/2015
16h20 às 18h
19
Visto na última atividade para nota do
terceiro bimestre sobre a conjugação do
verbo “ser” (visto nos cadernos)
Correção de atividade do livro didático
sobre a grafia dos verbos irregulares (p.
148)
Análise comparativa entre duas frases
(uma com advérbios e outra sem
advérbios) – Classificação dos
advérbios quanto às circunstâncias que
indicam
Leitura de fragmento do romance
“Menino de Asas, presente no livro
didático (p. 95) – Atividade oral de
identificação e classificação dos
advérbios – Comentário do professor
sobre os efeitos de sentido provocados
pela presença dos advérbios no
fragmento lido
Frases copiadas no
quadro – Fragmento de
texto do livro didático
3 e 4
19/10/2015
16h20 às 18h
11
Análise comparativa entre duas frases
(as mesmas da aula anterior) –
Reapresentação do conceito de
advérbio
Comentário sobre a importância do uso
de advérbios nas produções de textos
dos alunos – Comentário sobre a
relação entre os sentidos dos advérbios
e seus contextos de uso
Análise de frase (frase da análise
anterior, substituídos os advérbios por
locuções adverbiais) – Apresentação do
conceito de locução adverbial –
Comparação entre esta frase e as frases
da análise anterior quanto aos efeitos
de sentido
Anotação no quadro de texto teórico
sobre os conceitos de advérbio e de
locução adverbial a partir da análise
das frases realizada durante a aula
Atividade oral de identificação e
classificação dos advérbios e das
locuções adverbiais presentes no
fragmento do romance “Menino de
Asas” (p. 95 do livro didático) –
Frases copiadas no
quadro – Anotação de
texto teórico no quadro –
Atividades do livro
didático
297
Comentário sobre os efeitos de sentido
da presença dos advérbios e das
locuções adverbiais no fragmento lido
Atividade escrita do livro didático
sobre os advérbios e as locuções
adverbiais presentes numa notícia (p.
106)
5
21/10/2015
14h20 às 15h10
19
Atividade escrita do livro didático
sobre os efeitos de sentido dos
advérbios e das locuções adverbiais em
letra de música e em tirinha (p. 108) –
Correção coletiva da 1ª questão da
atividade
Atividade do livro
didático
6 e 7
23/10/2015
16h20 às 18h
17
Visto nos cadernos dos alunos
(atividade da aula anterior) – Correção
coletiva da 2ª questão da atividade da
aula anterior – Exploração do efeito de
humor na tirinha – Exploração da
linguagem não verbal da tirinha e
reflexão sobre o seu papel na
compreensão dos sentidos do texto –
Classificação de advérbios e locuções
adverbiais
Atividade escrita copiada no quadro
(identificação e classificação de
advérbios e locuções adverbiais
presentes em fragmento de texto de
autoria do PJ + resumo)
Atividade do livro
didático – Atividade
copiada no quadro
8 e 9
26/10/2015
16h20 às 18h
21
Visto nos cadernos dos alunos
(atividade da aula anterior) – Correção
coletiva da atividade da aula anterior
(identificação e classificação de
advérbios e locuções adverbiais +
resumo) – Análise coletiva dos
resumos produzidos pelos alunos –
Atividade de refacção dos resumos –
Análise coletiva das novas versões dos
resumos
Atividade copiada no
quadro
10
28/10/2015
14h20 às 15h10
18
Visto nos cadernos dos alunos
(atividade de casa – p. 110 e 111 do
livro didático) – Correção coletiva da
atividade de casa sobre a expressão de
opiniões por meio de advérbios
Anotação no quadro de texto teórico
sobre os advérbios como
modalizadores
Atividade do livro
didático – Anotação de
texto teórico no quadro
11
29/10/2015
13h30 às 14h20
18
Atividade escrita copiada no quadro
(produção de texto em dupla:
continuação de início de conto de
autoria do PJ, em que os alunos são
Atividade copiada no
quadro
298
solicitados a utilizar advérbios e
locuções adverbiais)
12
04/11/2015
14h20 às 15h10
16
Visto nos cadernos dos alunos
(atividade de produção textual da aula
anterior) – Avaliação individual dos
textos dos alunos
Cadernos dos alunos
13 e 14
06/11/2015
16h20 às 18h
18
Prova escrita sobre os advérbios e as
locuções adverbiais (efeitos de sentido
decorrentes de sua presença em um
relato pessoal + identificação e
classificação quanto às circunstâncias
que indicam)
Atividade em que os alunos deveriam
escolher duas placas entre várias
apresentadas pelo PJ (uma com uma
imagem que representasse uma
atividade que eles gostassem de
praticar e outra com um advérbio ou
uma locução adverbial que
representasse como eles gostavam de
praticar a atividade representada na
imagem) e serem fotografados para a
produção posterior de um vídeo
Prova escrita – Placas –
Câmera fotográfica
15 e 16
09/11/2015
16h20 às 18h
19
Anotação no quadro e explicação de
regras e de critérios de análise a serem
levados em consideração na realização
da atividade da próxima aula (um
concurso de mentiras para a introdução
do conceito de mito)
Anotação de regras e
critérios de análise no
quadro
17
11/11/2015
14h20 às 15h10
18
Concurso de mentiras – Leitura dos
textos produzidos pelos alunos –
Votação dos melhores textos segundo
os critérios previamente estipulados
Textos produzidos pelos
alunos
18
12/11/2015
13h30 às 14h20
20
Contação de história para os alunos
(mito grego) – Explicação sobre o que
são os mitos e sobre como eles
surgiram
Anotação no quadro de texto teórico
sobre os mitos
História contada
oralmente (mito) –
Anotação de texto
teórico no quadro
19 e 20
16/11/2015
16h20 às 18h
20
Correção coletiva da atividade de casa
(p. 46-49 do livro didático) – Leitura
de texto mitológico e atividades de
interpretação de texto
Contação de história para os alunos
(mito nórdico)
Atividade do livro
didático – História
contada oralmente (mito)
21 e 22
23/11/2015
16h20 às 18h
16
Correção coletiva da atividade de casa
(p. 50 do livro didático) – Exploração
do espaço mítico e do espaço narrativo
do texto lido (mito de Prometeu)
Atividade do livro
didático – Histórias
contadas oralmente
(mitos) – Citações
copiadas no quadro
299
Contação de três histórias para os
alunos (mitos africanos) – Conversa
sobre o Dia da Consciência Negra,
sobre o preconceito conta as religiões
de origem africana no Brasil e no
mundo
Anotação no quadro de citações de
Nelson Mandela e Martin Luther King
sobre racismo20
23
03/12/2015
13h30 às 14h20
19
Atividade de interpretação de texto
copiada no quadro sobre relatos
pessoais reunidos em ficha de aula
Ficha de aula –
Atividade copiada no
quadro
24 e 25
07/12/2015
16h20 às 18h
20
Visto nos cadernos dos alunos
(atividades escrita sobre poema de
Solano Trindade)
Correção coletiva de atividade da aula
anterior (interpretação de texto – relato
pessoal)
Ficha de aula –
Atividade copiada no
quadro
Quadro 11: Síntese das aulas observadas na escola da prefeitura de Jaboatão dos Guararapes
Pelas informações do quadro acima, fica explicitado que foi o trabalho com os advérbios
aquele de maior duração e aprofundamento (um total de treze aulas, da aula 2 à aula 14). Além
disso, foi o único trabalho que acompanhamos integralmente. Por isso, foi desse conjunto de
aulas que selecionamos aquelas que constituiriam o corpus de nossa pesquisa. Considerando-se a
grande quantidade de aulas dedicadas ao estudo de um mesmo tópico linguístico, foi necessário,
por um lado, estabelecer critérios para um novo recorte nos dados e, por outro, contemplar um
número razoável de aulas para que tivéssemos uma boa noção do perfil de trabalho do PJ e das
razões que o levaram a se deter tanto tempo em um mesmo conteúdo de ensino. Assim,
escolhemos as três primeiras aulas (aulas 2, 3 e 4) para termos acesso à introdução do conteúdo
estudado, e optamos também por analisar quatro aulas seguintes (aulas 5, 7, 8 e 10) para termos
acesso às atividades propostas aos alunos para o estudo dos advérbios, tanto aquelas cujo enfoque
era nos efeitos de sentido provocados pelo uso dos elementos linguísticos em situações de
interação e cujo desenvolvimento se dava em torno do texto enquanto unidade de análise quanto
20
Entre 25 de novembro e 02 de dezembro, a pesquisadora não pôde comparecer a cinco aulas ministradas pelo PJ
por ter adoecido. Nessas aulas, o PJ trabalhou as características do gênero relato pessoal, explorou um poema de
Solano Trindade sobre o racismo e desenvolveu uma atividade em que os alunos pesquisariam sobre os terreiros
umbandistas e, em seguida, ensaiaram uma apresentação de dança que representasse os terreiros para toda a escola.
Por não termos acompanhado de perto o andamento dessas atividades, não as incluímos no corpus da pesquisa.
Excluímos, inclusive, as atividades sobre relato pessoal que chegamos a presenciar, porque, ainda que elas
tivessem relação com o eixo da análise linguística, julgamos que a observação apenas parcial desse trabalho
comprometeria a qualidade das análises.
300
aquelas cujo objetivo de aprendizagem era o domínio de habilidades de identificação e
classificação de unidades linguísticas menores, sem impacto na produção de sentidos. Optamos
por incluir no corpus, por fim, a aula 13, em que o PJ aplicou uma prova escrita sobre os
advérbios, pois acreditamos que tal instrumento de avaliação é um importante parâmetro para
compreendermos como o PJ filtrou, dentre os aspectos trabalhados em torno dos advérbios,
aqueles que considera mais relevantes para verificar a aprendizagem dos alunos. Os registros
descritivos de cada uma dessas aulas podem ser encontrados do Apêndice H ao Apêndice M, ao
final da dissertação. É importante salientar, ainda, que o aparente extenso número de aulas que
resultou de nosso recorte não delongará excessivamente a análise, pois as aulas nessa turma
aconteciam num ritmo relativamente lento, devido ao barulho constante na sala de aula e na
escola, às dificuldades apresentadas pelos alunos e ao tempo frequentemente reduzido de aula
(principalmente nos dias em que as aulas aconteciam nos dois últimos horários, pois, na prática, o
toque para a saída dos alunos se dava meia hora antes do horário oficial, conforme relatamos na
descrição dos campos de investigação, no capítulo anterior).
5.2.2.1 Trabalho com os advérbios (PJ)
O trabalho desenvolvido pelo PJ em torno dos advérbios teve uma duração relativamente
longa se contrastado ao total de aulas do bimestre (foram treze de um total de aproximadamente
trinta aulas, isto é, pouco mais de quarenta por cento do bimestre foi destinado ao estudo dos
advérbios). Por ter sido um trabalho extenso, o PJ se valeu de diferentes estratégias para abordar
tal conteúdo: utilizou materiais didáticos distintos (principalmente o livro didático e anotações no
caderno), tomou diferentes unidades de análise como ponto de partida para as reflexões propostas
(palavras, frases, fragmentos de texto, textos) e articulou a análise linguística a outros eixos
didáticos (à leitura e à produção de texto, tendo ainda, algumas vezes, centrado os fazeres
ordinários da prática de ensino no próprio eixo dos conhecimentos linguísticos). Com exceção
das atividades de produção de texto, veremos, de um ângulo panorâmico, como foi realizado o
trabalho com os advérbios.
Nas três primeiras aulas (aulas 2, 3 e 4, conforme Quadro 11), o PJ parte da análise de
frases para introduzir a noção de advérbio (aula 2) e de locução adverbial (aulas 3 e 4) aos alunos.
Na primeira, as frases que escreve no quadro são: “O criminoso fugiu.” e “Certamente, o
301
criminoso fugiu rapidamente daqui hoje.” (grifos do PJ). Após a cópia dessas frases, segue-se o
seguinte diálogo entre professor e alunos:
PJ: Ó, primeira coisa... Observe essa primeira frase: “O criminoso fugiu”. Ela tá completa?
Alunos: Não.
Aluno: Tá.
PJ: Não? Tá ou não?
Aluno: Tá.
Aluno: Não. Porque tinha que estar lá “fugiu da cadeia”.
PJ: Tinha que ser... eu tinha que botar “da cadeia”?
Aluno: É, fugiu de algum lugar.
Aluno: Não, da prisão.
Aluno: Tem que ter pelo menos de onde ele fugiu.
PJ: Mas, veja, se eu colocar...
Aluna: Professor...
PJ: Diga.
Aluna: O senhor não sabe certamente de onde ele fugiu.
[Muito barulho.]
Aluna: Professor, a gente não pode contar nada com certeza porque a gente não sabe exatamente de onde ele
fugiu, porque não tem explicando.
PJ: Não tem certeza, não tem explicando...
Aluno: Mas a gente sabe que ele fugiu.
PJ: É, mas, se eu disser pra vocês que, pela norma padrão que eu acabei de falar pra vocês [durante a
correção da atividade realizada na primeira aula do bimestre, neste mesmo dia], essa primeira frase está
completa? Está completa, mas não está adequada. No sentido gramatical, ela está completa, mas ela não
atende às minhas necessidades de comunicação. Como vocês mesmos perceberam, é necessário dizer mais
alguma coisa em algumas situações. E se vocês observarem, na frase 2, quando ele fala “Certamente, o
criminoso fugiu rapidamente daqui hoje”, eu tenho uma informação muito mais completa. O verbo “fugiu”...
Aluno: ...vem de “fugir”.
PJ: ...recebeu... vem de “fugir”... recebeu algumas circunstâncias para o acontecimento dele. Se você
observar, eu vou dizer “certamente [com ênfase], ele fugiu”, “rapidamente [com ênfase], ele fugiu”...
“Daqui” é o local daonde fugiu, e “hoje” é quando ele fugiu.
Aluno: Tudo “fugiu”, tudo com “fugiu”...
302
PJ: Exatamente. É como se eu tivesse algumas palavras... algumas palavras que me vêm acrescentar
informações às ações que o verbo traz. O verbo traz ações e essas palavras vêm acrescentar. Na verdade, elas
vêm... Como é que eu diria? Ela vem completar a informação. Note que, quando vocês fazem textos, vocês
tendem a deixar a frase assim. Dificilmente, vocês completam as frases. A essas palavras que têm essa... como
é que eu diria?... que acrescentam ao verbo o que eu vou chamar de circunstâncias, noções – vamos chamar
assim –, circunstâncias e noções, eu vou chamar “advérbio”. “Ad”, junto; “vérbio”, verbo. Junto do verbo.
São palavras... Não é que ela vai estar junto, mas ela sempre vai acrescentar ideias ao verbo, tá? E essas
ideias que ela vai acrescentar, essas circunstâncias que ele vai acrescentar... vai ter algumas noções.
Figura 90: Introdução ao estudo dos advérbios através da análise de frases (PJ)
Poderíamos dizer que o movimento didático do PJ vai, como sugerem Franchi (2013
[1987]) e Geraldi (1991, 1996), da epilinguagem à metalinguagem, na medida em que o docente
primeiro conduz um momento de reflexão sobre a linguagem, tomando-a como objeto, para, só
ao final da discussão empreendida, trazer possibilidades de definição e de classificação do
fenômeno estudado. Entretanto, segundo esses mesmos autores, as atividades epilinguísticas
deveriam advir de atividades linguísticas, isto é, do exercício da linguagem, guiado
necessariamente por intenções significativas (cf. FRANCHI, 2013 [1987]), ou de circunstâncias
concretas de interação verbal (cf. GERALDI, 1991). Num outro caminho, o PJ elege como ponto
de partida frases isoladas de um possível contexto de produção, valendo-se, portanto, de uma
situação artificial de uso da língua.
A ausência do contexto de produção, inclusive, parece dificultar o andamento da análise
inicialmente proposta pelo PJ. Note-se que os alunos demonstram certa hesitação para responder
à questão colocada no começo da aula: a frase apresentada pelo PJ estaria completa? Completa
em que sentido? Completa considerando-se que foi proferida em que situação enunciativa
específica (com que intenção, em resposta a quem/quê, com que expectativa diante dos demais
interlocutores, etc.)? Na verdade, o PJ recorre, neste momento, a uma combinação de dois
tradicionais dispositivos pedagógicos do ensino de gramática: o uso da frase (ou da oração) como
unidade de sentido e a primazia do ponto de vista sintático de análise.
A tradição gramatical convencionou definir frase como “um enunciado de sentido
completo” ou “a unidade mínima de comunicação” (CUNHA e CINTRA, 2013, p. 133, grifo
nosso), podendo conter ou não orações, de acordo com a quantidade de formas verbais presentes
na frase. As orações, por sua vez, têm seus constituintes classificados em essenciais (sujeito e
predicado), integrantes (complemento verbal, complemento nominal e agente da passiva) e
acessórios (adjunto adverbial, adjunto adnominal e aposto). Assim, a função sintática exercida
pela classe dos advérbios, os adjuntos adverbiais, pertence ao grupo dos termos acessórios,
303
concebidos como aqueles que, “embora tragam um dado novo à oração, não são eles
indispensáveis ao entendimento do enunciado” (CUNHA e CINTRA, 2013, p. 163). Desse modo,
o advérbio ocuparia uma posição periférica na estrutura da frase por incidir sobre um
determinado núcleo, o que implica dizer que essa classificação atende a um critério
exclusivamente sintático, já que os próprios gramáticos tradicionais reconhecem o inevitável
papel dessa classe de palavras na construção de sentido do enunciado.
Numa perspectiva tradicional de ensino de gramática, costuma-se dizer que a frase tem
“sentido completo” quando ela apresenta os termos essenciais da oração ou, quando necessários,
os termos integrantes. Afora a frequente indiferenciação entre frase e oração, uma crítica
importante a ser feita à indagação sobre a (in)completude de um dado enunciado é que, para
responder a essa pergunta (quando a compreendem), os alunos buscam avaliar o sentido da frase,
ao passo que o professor está se referindo à sua estrutura sintática. E o que fazem especificamente
os alunos do PJ para definirem se a frase que lhes foi apresentada está completa ou incompleta?
Para usar os termos de Geraldi (1997d [1984]), poderíamos dizer que as respostas dos alunos são
tentativas de jogar “o jogo da escola”, pois eles parecem prever que a segunda frase apresentada é
um parâmetro válido para encontrar o que, segundo o professor, pode estar faltando na frase caso
ela esteja incompleta. A partir da comparação com a frase seguinte, um dos alunos supõe que
“tem que ter pelo menos o lugar de onde ele fugiu”. Uma aluna chega mesmo a usar um dos
advérbios presentes na frase seguinte: “O senhor não sabe certamente de onde ele fugiu”.
Se, por um lado, é verdade que, apenas com base na frase apresentada, não é possível
saber o lugar de onde o criminoso fugiu, parece muito improvável, por outro lado, que essa frase
fosse proferida em um dado contexto enunciativo sem qualquer referência a essa informação ou,
ao menos, sem que ela fosse conhecimento partilhado entre os interlocutores envolvidos (o que
justificaria a “incompletude” do enunciado). O que acontece no fragmento de aula destacado na
Figura 90 é uma certa confusão conceitual, uma vez que não fica claro para a turma o que
significa uma “frase completa”. Enfocando o plano semântico, faltam-lhes circunstâncias de
enunciação nas quais fosse plausível situar a frase. Referindo-se ora ao plano semântico, ora ao
plano sintático, o PJ não traz uma resposta definitiva à pergunta colocada aos alunos. Afirma, a
princípio, que a “norma padrão” considera a frase completa (claramente, confundindo norma
padrão com gramática tradicional). Ao final, quando procura explicar a função dos termos
sublinhados na segunda frase (os advérbios), afirma que eles “completam” as informações da
304
frase. Além disso, avalia que, em seus textos, os alunos não “completam” as frases por não
fazerem uso de termos como os que estão destacados na segunda frase – justamente os advérbios.
De fato, não é fácil nem mesmo para os especialistas no estudo da língua definir os
advérbios, devido à heterogeneidade característica dessa classe de palavras e à amplitude de seu
espectro semântico (cf. BAGNO, 2011), de modo que alguns estudiosos, como Bagno (2011),
sugerem a possibilidade de haver várias classes de palavras que assumem a função de advérbio e
não propriamente um grupo de palavras cuja funcionalidade e estrutura se assemelhem a ponto de
constituir uma classe gramatical específica. Sobre tal imprecisão conceitual, o autor ironiza:
“Classificar um advérbio é quase como agir por eliminação: se determinada palavra não se
enquadra na classe dos verbos, dos nomes, dos índices de pessoa, dos mostrativos, dos
quantificadores, das preposições e das conjunções... então é um advérbio!” (BAGNO, 2011, p.
832).
Nesse sentido, é compreensível a dificuldade em apresentar uma categoria tão complexa e
controversa a alunos de doze ou treze anos de idade, ainda iniciantes na reflexão mais sistemática
sobre o funcionamento da linguagem – e o PJ reconheceu isso durante a entrevista final:
A dificuldade imensa é a questão da nomenclatura, né? Porque, quando a gente pede pra classificar ou pra
dizer a noção, e eles não sabem o que seria noção e o que seria... Como assim? Como assim classificar?
Como assim tempo, lugar, modo? Pra eles, é muito difícil... Eu fiz algumas leituras na época da graduação
sobre esse problema com advérbio, porque é uma classe de palavras... entendida tradicionalmente como uma
classe de palavras, mas ela é tão diversificada em uso, função e estrutura que os estudantes têm uma
dificuldade imensa pra entender que ela abrange tanta coisa. É muito complicado pra eles. [...] Muito
complicado eu acho isso.
Figura 91: Comentário sobre a dificuldade de se trabalhar com os advérbios (PJ)
Entretanto, mesmo do ponto de vista da tradição gramatical, a definição de advérbio
apresentada pelo PJ no final do fragmento de aula transcrito na Figura 90 não corresponde aos
principais contextos de uso dessa classe de palavras. O PJ conceitua advérbios como “palavras
[...] que acrescentam ao verbo [...] circunstâncias e noções” e explica para a turma que o advérbio
“sempre vai acrescentar ideias ao verbo”. Contudo, até os gramáticos tradicionais reconhecem a
possibilidade de o advérbio incidir sobre outras classes de palavras, como o adjetivo e o próprio
advérbio, e até mesmo sobre toda uma oração (cf. CUNHA e CINTRA, 2013). Estudiosos
filiados a outras perspectivas teóricas, como Neves (1999), chegam até mesmo a encontrar
registros de usos linguísticos em que os advérbios ou as locuções adverbiais, além de incidirem
305
sobre verbos, adjetivos e outros advérbios, atuam sobre numerais, substantivos, pronomes e a
conjunção “embora”.
Na sequência, o PJ conduz uma atividade oral de classificação dos advérbios segundo as
circunstâncias que indicam. Ele vai perguntando as noções que os advérbios da segunda frase
(“Certamente, o criminoso fugiu rapidamente daqui hoje.”) acrescentam ao verbo “fugir”. Os
alunos respondem com facilidade a alguns desses questionamentos (“certamente” como
afirmação e “daqui” como lugar). Nos demais casos, após as tentativas de explicação dos sentidos
dos advérbios pelos alunos, o PJ apresenta-lhes as noções de tempo (os alunos diziam que a
noção acrescentada era o “dia” da fuga) e de modo (os alunos se limitavam a repetir a
informação: “porque ele foi rápido”). Em seguida, o PJ comenta brevemente sobre o uso dos
advérbios em textos e apresenta novas subcategorias à turma:
PJ: Já observaram que toda frase com advérbio... todo texto com advérbio deixa o texto mais completo, não
deixa não? Não deixa o texto mais completo, a informação mais completa? Pronto. Aí, eu vou dizer, eu tenho
dois tipos de advérbio básicos. Eu tenho um grupo de advérbios que eu só vou entender o significado deles
prestando atenção no contexto. Por exemplo: a palavra “aqui” e a palavra “hoje”... Se não tiver dito no texto
que “aqui” é esse, eu vou saber que “aqui” é?
Alunos: Não.
PJ: Se no texto não tiver dito que “hoje” é esse, eu vou saber?
Aluno: Não.
PJ: Não. Vai ter que estar dito no texto, vai ter que estar dito de alguma maneira pra eu poder saber que é
“aqui”. Se sou eu que tô falando, percebe-se que o “aqui” é onde eu estou falando, não é? Se é “hoje”, é o
dia que eu tô falando. Então, veja que é o contexto que vai me dizer. Então, esses advérbios aqui, o
significado, ele pode mudar. Porque “hoje” amanhã vai ser “ontem”. Esse “hoje” que eu tô falando vai ter
que ser “ontem”, e depois vai ser “anteontem”. Então, essa situação vai se repetir assim. E essa é a ideia do
advérbio, esse primeiro grupo de advérbios. Agora, há um outro grupo de advérbio que vão ser feitos... São
palavras derivadas, ou seja, palavras que nascem de outras palavras, de uma junção. Por exemplo: “certo”
mais “-mente”. Ficou o quê?
Alunos: “Certamente”.
PJ: “Rápido” mais “-mente”...
Alunos: “Rapidamente”.
PJ: “Rapidamente”. Essas palavras que terminam em “-mente” normalmente... normalmente são advérbios. E
aí quando o adjetivo “certo”... Lembra que a gente já estudou adjetivo, né? Quando o adjetivo “certo” junto
com “-mente” e virou “certamente”, virou advérbio. Quando o adjetivo “rápido” juntou com “-mente”...
Aluna: Ei, peraí... Isso é uma fraude.
PJ: O quê?
306
Aluna: Como é que dá “certamente” se é “certo”?
PJ: Tá, é “certa”, pronto.
Aluna: Não é “certamente”. E a mesma coisa com “rápido”.
PJ: “Rápido” é “rápida”... Tá.
Aluna: Pronto, tá resolvido.
PJ: Tá, tá, tá resolvida a fraude. Olhe... Grande fraude. Olhe... Deu pra entender aí, gente?
Figura 92: Comentário sobre o uso dos advérbios em textos e apresentação de subcategorias dos
advérbios (PJ)
Podemos dividir o fragmento de aula acima em dois momentos, cada um com objetivos e
objetos de ensino distintos, ainda que sempre vinculados ao conteúdo mais amplo: os advérbios.
No primeiro momento, o PJ procura abordar os efeitos de sentido provocados pelo uso de
advérbios nos textos, sem, contudo, fazer referência a gêneros específicos. Trata-se de uma
tentativa de articular análise linguística e texto, principalmente em relação à leitura (“Já
observaram que [...] todo texto com advérbio deixa o texto mais completo, não deixa não? Não
deixa o texto mais completo, a informação mais completa?”). Mas vimos, na Figura 90, que o PJ
faz uma observação semelhante voltada para a produção de texto (“Note que, quando vocês
fazem textos, vocês tendem a deixar a frase assim. Dificilmente, vocês completam as frases.”).
Em ambos os casos, o PJ volta a atribuir ao advérbio a função de “completar” o texto, tal como o
fez na conceituação inicial da classe gramatical focalizada. No entanto, em ambos os casos, a
reflexão linguística não parte da observação pelos alunos do fenômeno estudado em textos. Trata-
se de uma avaliação do professor, cujo produto é apresentado pronto aos alunos, sem que eles
tenham a oportunidade, pelo menos por enquanto, de confirmar a procedência da informação
trazida pelo PJ ou de compreender como o efeito de “completar o texto” acontece na prática. De
qualquer forma, a iniciativa do PJ atesta, apesar da imprecisão do efeito de sentido enfatizado,
que ele reconhece a importância de abordar a contribuição que um elemento menor pode trazer
para a dimensão global do texto, indo além da categorização de unidades linguísticas no nível da
frase, como defende Mendonça (2006).
O segundo momento é marcado pela apresentação de duas subcategorias dos advérbios,
segundo anuncia o PJ no início do fragmento de aula acima (“eu tenho dois tipos de advérbio
básicos”). Há, contudo, uma estranha falta de paralelismo na subdivisão apresentada pelo PJ.
307
Embora ele não nomeie o primeiro grupo mencionado, é possível perceber, por sua explicação,
que ele se refere aos fenômenos da dêixis e da anáfora. Bagno (2011, p. 457) define a dêixis
como “a propriedade que permite às palavras a remissão ao que está fora do texto (ou seja, no
contexto do discurso)” e a anáfora como “a propriedade que permite que elas [as palavras]
remetam ao que está dentro do texto (ou seja, ao cotexto)”. Alguns advérbios ou algumas
locuções adverbiais, principalmente aqueles(as) que indicam circunstâncias de lugar e de tempo,
funcionam como dêiticos ou anáforas nos contextos enunciativos em que são utilizados, tanto é
que, conforme Bagno (2011) nos explica, os linguistas contemporâneos optam por categorizar os
advérbios em três grandes classes semânticas: os predicadores, os verificadores e os dêiticos. Este
último grupo é definido como “[...] advérbios que nos remetem a situações no tempo e no espaço,
apontando para elas” (BAGNO, 2011, p. 840).
A apresentação desta subcategoria de advérbios parece-nos uma tentativa do PJ de
implementar uma abordagem renovada dos advérbios, visto que ele se vale do campo da
linguística contemporânea – e não apenas da gramática tradicional – como fonte de saberes
teóricos a serem mobilizados em sua prática de ensino. Considerando-se a possibilidade de os
advérbios atuarem como dêiticos ou anáforas, a abordagem de tal propriedade é legítima e
produtiva do ponto de vista da compreensão do funcionamento coesivo de um texto. Entretanto, o
excerto reproduzido na Figura 92 mostra que a referência à dêixis e à anáfora não implicou a
realização de um trabalho centrado nas estratégias de construção de um texto concreto, mas
apenas a exposição de uma subcategoria da classe gramatical estudada a partir de exemplos
isolados, sem que ela voltasse a ser tematizada em qualquer outro momento de aula durante o
longo trabalho com os advérbios. Em contrapartida, outro aspecto passível de ser observado no
discurso do PJ é o alerta sutil que faz aos seus alunos quanto à necessidade de se atentar, durante
a leitura, para o universo linguístico e extralinguístico em que os textos se situam a fim de se
potencializar a compreensão dos sentidos produzidos. Há, aqui, um novo indício de que existe,
por parte do PJ, uma preocupação com as possíveis repercussões decorrentes dos usos de um
dado elemento linguístico em situações de interação verbal, particularmente em textos escritos.
O segundo grupo de advérbios apresentado pelo PJ é composto por aqueles terminados
em –mente, os quais, a rigor, não constituem uma subcategoria específica. Ainda que se possa
considerar a classificação desses advérbios pela maioria das gramáticas tradicionais como
advérbios de modo, esta categoria não abrange apenas os advérbios terminados em –mente. Ao
308
que parece, a menção a esse grupo de advérbios teve dois objetivos principais: facilitar o
reconhecimento de palavras classificáveis como advérbios através de uma espécie de “dica”
(“essas palavras que terminam em –mente normalmente são advérbios”) e explicar o processo
básico de formação desses advérbios. Para atender ao segundo objetivo, o PJ mostra aos alunos
que os advérbios terminados em –mente originam-se dos adjetivos que lhes são correlatos. Uma
das alunas percebe uma lacuna na explicação do professor: a formação do advérbio parte da
forma feminina do adjetivo, não da masculina, como o PJ vinha descrevendo. A percepção da
aluna, no entanto, não é valorizada pelo PJ, que trata a colocação como uma mera brincadeira
(uma “fraude”, como de fato brincava a menina).
Para finalizar a aula, o PJ lê em voz alta um curto fragmento de romance presente no livro
didático e faz alguns questionamentos acerca dos advérbios utilizados pelo autor da obra, tanto no
intuito de identificá-los e classificá-los quanto às circunstâncias que indicam, como também no
intuito de refletir sobre o papel dos elementos linguísticos estudados na construção da narrativa.
Na Figura 94, a seguir, reproduzimos a imagem do excerto de romance lido (COSTA et al, 2012,
p. 95) e, logo adiante, na Figura 94, o desenrolar da aula imediatamente após a leitura do
professor:
Figura 93: Excerto do romance “Menino de Asas”, de Homero Homem (PJ)
PJ: Nesse primeiro parágrafo aí, que fala um pouquinho, que narra a situação que aconteceu com o Menino
de Asas aí... A primeira pergunta: que expressões de tempo eu encontro... que indicam tempo?
Aluno: “Seguinte”, “no dia”, no mesmo dia.
PJ: “No dia seguinte”...
Aluno: No mesmo dia.
PJ: Não, “no dia seguinte” é no outro dia, né? É... “No dia seguinte”... Só essa? Não tem mais outra não?
Aluna: Tem “retornou”.
309
PJ: “Retornou” indica tempo passado. Mas “retornou” não é um verbo? Não é uma ação? Mas tá certo.
Exatamente.
Aluna: “Esquecera”?
PJ: Também. É porque vocês tão observando que...
Aluna: “Caminhava”.
PJ: As meninas acharam as palavras “retornou”, “caminhava”, que... Observem que essas palavras que
indicam ação e expressam passado – não é? – são reforçadas pela expressão “no dia seguinte”, que localiza
no tempo também. Eu sei que “no dia seguinte”, mas ainda essa ação tá no passado. Não é “uma manhã”,
né? “No dia seguinte” eu sinto que tá no passado e que ainda tá sendo contada a história. Ou seja, essa
expressão localiza o texto no tempo... As situações e as ações... Tá?
[...]
PJ: Vê só... Seguinte... “No dia seguinte” já localiza no tempo. Agora, me diga: que expressões aqui indicam
lugar nessa parte do texto?
Aluno: “No dia seguinte”.
PJ: Lugar, lugar...
Aluna: “Da escola”.
PJ: Porque é o lugar daonde ele retornou, não é isso?
Aluna: É.
PJ: E o que mais?
Aluna: “Solitário”.
PJ: “Solitário” indica lugar?
Aluno: Não.
PJ: Não, tô perguntando... “Solitário”, andar sozinho, indica lugar?
Aluno: Não.
PJ: Agora, vê, se ele “caminhava desajeitadamente na areia quente”, “na areia” não é o local onde ele
andava?
Alunos: É.
PJ: Não é o local também? Então, eu tenho duas noções de locais aí aparecendo. Eu tenho “na areia quente”
e tenho...
Aluna: Na areia fria.
PJ: Como é o nome? “Da escola”, não é?
Aluna: É.
310
PJ: “Da escola” e “na areia quente”. Agora... Tem alguma expressão que indica modo? Alguma expressão aí
indica modo?
Aluno: “Desajeitadamente”.
PJ: “Desajeitadamente” é o modo que ele caminhava. Muito bem! [...] Aí, eu tenho “desajeitadamente”, mas
eu tenho outro de modo, que não é uma palavra só. É um grupo de palavras... que indica o modo. Eu tenho
outro que indica modo.
Aluna: [Incompreensível.]
PJ: É isso mesmo, Érica. Érica descobriu. No finalzinho do texto, ele traça uma comparaçãozinha, o autor...
“Como um pássaro esquisito” não é o modo como ele andava?
Aluna: É.
PJ: Essa expressão todinha aí faz um modo. Notem que, se eu tiro os advérbios ou essas expressões que tão
funcionando como advérbio do texto, eu meio que não consigo visualizar o que tá acontecendo. Porque ele
fala assim: “No dia seguinte”... Aí eu já sei que aconteceu alguma coisa num dia, e eu tô contando o que
aconteceu no outro dia, não é isso? Já me localiza no tempo. Sei que é “da escola” que ele retornou, sei que
foi “na areia quente”... Se eu tiro essas expressões, eu consigo entender bem a narrativa?
Aluno: Não vou nem saber do que se trata.
PJ: Não vou nem saber direito do que se trata. Então, praticamente, quando a gente narra, é necessário que a
gente observe exatamente essa expressão dos advérbios. Advérbios e locuções adverbiais, que eu vou explicar
na próxima aula.
Figura 94: Reflexão sobre o uso de advérbios em excerto do romance “Menino de Asas” (PJ)
A atividade conduzida pelo PJ no excerto acima se modifica um pouco em relação ao
trabalho que ele vinha, até então, desenvolvendo com a turma, na medida em que as
classificações demandadas deixam de ser a habilidade final almejada. De outro modo, elas se
configuram como pequenos passos na direção da compreensão global do texto. Na análise, o PJ
atribui aos advérbios do texto a função de oportunizar ao leitor uma visualização mais detalhada
das ações da narrativa, claramente utilizando a análise linguística a serviço da construção de
sentidos do texto durante o processo interlocutivo instaurado pela leitura. A dificuldade maior
para o cumprimento desse objetivo talvez seja o fato de o texto fornecido pelo livro ser apenas
parcial e, mais do que isso, bastante reduzido. Vimos, com base nos dados da entrevista inicial,
que o PJ critica essa característica do livro de, algumas vezes, disponibilizar fragmentos no lugar
do texto completo. Naquela ocasião, ele também manifestou o desejo de conseguir trazer mais
textos para a sala, porém explicou que as condições materiais e estruturais da escola dificultavam
o uso de materiais didáticos complementares ao livro adotado.
311
Além disso, o desenrolar do diálogo entre professor e alunos mostra que parte da turma
apresentava duas outras dificuldades no que tange à identificação dos elementos linguísticos
estudados. Um deles, recorrente também em outras aulas que acompanhamos, acontecia quando
eles reconheciam uma indicação circunstancial em um grupo de palavras (ou seja, em uma
locução adverbial), mas não conseguiam delimitar o início e o final da expressão. Para a locução
“no dia seguinte”, por exemplo, o primeiro aluno a responder o questionamento do PJ faz três
tentativas seguidas (“seguinte”, “no dia”, “no mesmo dia”), que demonstram que o garoto
desconfiava que, entre aquelas palavras, havia uma indicação de tempo, apesar de ele não ter
segurança de precisar os termos que constituíam uma única expressão. É bem verdade que, até o
momento, o PJ ainda não havia explorado a possibilidade de mais de uma palavra funcionar, em
conjunto, como um advérbio. Parece que ele chama a atenção da turma para as locuções
adverbiais do fragmento de romance da Figura 93 justamente para apresentá-las formalmente na
aula seguinte. No entanto, a dificuldade com a delimitação das palavras constitutivas de uma
mesma locução adverbial foi uma constante entre alguns alunos durante todo o trabalho com os
advérbios.
A segunda dificuldade apresentada pelos alunos na identificação dos elementos
linguísticos estudados foi uma inicial e curiosa confusão entre advérbios e verbos, provavelmente
explicada pelo enfoque exclusivo por parte dos alunos no critério semântico de definição da
classe dos advérbios (a indicação de circunstância), negligenciando o critério sintático segundo o
qual esses elementos incidem sobre núcleos constituídos por termos de outras classes gramaticais
(ainda que apenas a incidência sobre o verbo lhes tivesse sido, até então, apresentada). Por terem
estudado os verbos imediatamente antes dos advérbios, as alunas da Figura 94 lembram que
“retornou”, “esquecera” e “caminhava” indicam tempo pretérito e, por isso, acreditam se tratar de
advérbios de tempo. A advertência inicial do PJ em reação ao equívoco das alunas parece ter
reforçado a confusão, pois ele confirma a indicação de tempo dos verbos e refuta a resposta com
a afirmação de que “‘retornou’ é um verbo”. Soa, à semelhança da crítica de Bagno (2011), como
se a classificação dos advérbios dependesse da exclusão em relação à possibilidade de categorizá-
los de outra forma: o termo indica tempo, mas não é advérbio porque é verbo (ou: só seria
advérbio, mesmo indicando tempo, se não fosse verbo). Contudo, ante a persistência das alunas
no erro, o PJ acrescenta o critério sintático de classificação dos advérbios em sua explicação para
diferenciá-los dos verbos, reiterando a incidência da expressão “no dia seguinte” nos verbos por
312
elas mencionados. Aparentemente, essa explicação resolve o equívoco, uma vez que não
presenciamos outra situação em que verbos tenham sido novamente encarados como advérbios ao
longo de nossas observações.
Nas aulas do dia seguinte (aulas 3 e 4), o movimento que o PJ segue para tematizar as
locuções adverbiais é muito aproximado do percurso trilhado na aula 2. Ele parte da análise de
uma frase (a mesma da aula anterior, com os advérbios trocados por locuções adverbiais) para,
em seguida, abordar o uso de advérbios em um texto e no fragmento já reproduzido na Figura 93.
Este segundo momento ora foi marcado por atividades de reconhecimento e classificação de
estruturas linguísticas, ora por comentários do PJ sobre os efeitos de sentido provocados pelas
locuções adverbiais. Por tudo isso, não detalharemos o passo a passo destas aulas, como fizemos
com a aula 2. Destacaremos, noutra via, alguns momentos mais relevantes do ponto de vista de
nosso objeto de investigação: aqueles em que o PJ conferiu maior relevo à contribuição dos
recursos expressivos em pauta para a dimensão global do texto, bem como um elemento novo nos
fazeres ordinários de sua prática de ensino quanto ao eixo da análise linguística – a
sistematização do conteúdo estudado.
Desde o início da aula, quando procurava retomar a introdução do conteúdo realizada na
aula do dia anterior, o PJ buscou contemplar a reflexão sobre o uso dos advérbios em
circunstâncias de interação verbal instauradas pela escrita, como se pode verificar no comentário
abaixo, feito logo após a comparação entre as frases apresentadas na aula 2:
PJ: E eu também comentei pra vocês que, normalmente, quando vocês tão produzindo os textos de vocês, vocês
não têm essa necessidade [de detalhar uma determinada ação através do uso de advérbios]... [...] Vejam só,
vocês basicamente, quando vão produzir os textos de vocês, tendem a não utilizar muitos advérbios. Vocês
normalmente se prendem a colocar, a fazer frases mais simples possível, o que deixa a gente sem entender o
que aconteceu. Se você observar, e a gente vai ler hoje no livro algumas situações que trazem advérbios, que a
frase... o texto lido... quanto mais... [...]. O texto lido com quanto mais advérbio melhor, porque o leitor vai
ficar mais situado do que você quer dizer, tanto na sua opinião como autor do texto, ou no detalhe que você
quer passar justamente pra o leitor, pra que o leitor veja exatamente o que você quer que ele veja na hora da
leitura. Você não pode, se você tá escrevendo... a ideia não é deixar que o leitor entenda o que ele quer, e sim
que ele entenda a mensagem que você quer passar. Então, você precisa prestar atenção justamente nesses
detalhes aqui, e um dos detalhes a prestar atenção é o advérbio, que é uma palavra que se acumula ou se
acrescenta ao verbo pra trazer justamente essa circunstância. Isso aí foi o que eu expliquei na aula anterior.
Figura 95: Comentário sobre os efeitos do uso de advérbios em textos escritos (PJ)
Neste excerto, o PJ incorre em algumas simplificações e generalizações pontuais quanto
aos efeitos de sentido provocados pelo uso dos advérbios, como a ausência de especificação
quanto aos gêneros que demandam um maior detalhamento das ações, além da associação direta
313
entre a simplicidade da estrutura do enunciado e a dificuldade de compreensão por parte do leitor
(a ponto de o PJ valorar a qualidade dos textos com base na quantidade de advérbios utilizados).
Apesar disso, no geral, é possível constatar no comentário do PJ um esforço em ir além da
categorização de constituintes menores da língua e em abordá-los quanto ao seu papel num
contexto enunciativo concreto (a escrita e a leitura de textos), ainda que relativamente vago (a
escrita e a leitura de que textos?).
Na busca de contemplar o texto enquanto unidade de análise, o PJ elenca como funções
dos advérbios o detalhamento acerca do que se enuncia e a expressão de opinião. A primeira
função talvez justifique, para além da tradicional combinação identificação-classificação, a
insistência do PJ em questionar os alunos sobre as circunstâncias expressas pelos advérbios
utilizados nos textos (ou nos fragmentos de texto) que trazia para a sala de aula, uma vez que o
“detalhamento” ao qual ele alude tem relação com essas circunstâncias. Cabe aqui lembrar, por
exemplo, os comentários do PJ na Figura 94 sobre a localização espaço-temporal promovida
pelas locuções “no dia seguinte”, “da escola” e “na areia quente”, presentes no fragmento do
romance “Menino de Asas” (Figura 93). Durante a entrevista final que fizemos com o PJ, ele
chegou a afirmar que acredita que a classificação dos advérbios quanto às noções por eles
indicadas por si só já ajuda a compreender melhor o texto que se lê:
[...] Advérbio é um conteúdo acho que interessante nesse sentido, porque, quando você classifica ele, você tá
entendendo o texto. Não é como classificar um sujeito. O sujeito você classifica e ele não serve de nada pro
texto. Simples, oculto, determinado, indeterminado. De certa forma, isso vai ter alguma relevância no texto?
Vai. Mas não como um advérbio, quando eu entendo que aquilo é um meio, que é um modo, que aquilo é uma
negação, que aquilo é uma afirmação, que aquilo ali é um tempo, que aquilo ali é um lugar. O texto é muito
mais forte, com certeza.
Figura 96: Autoavaliação das atividades de categorização dos advérbios (PJ)
O comentário do PJ explica o enfoque mais semântico do que sintático das análises
mediadas em torno dos advérbios, o que provocou, em certos casos, dificuldades entre os alunos
na identificação das palavras e expressões passíveis de serem classificadas como advérbios ou
locuções adverbiais. Além das situações em que algumas alunas atribuíram aos verbos a
indicação de tempo (Figura 94), outros equívocos classificatórios aconteceram ao longo das aulas
3 e 4, como no fragmento a seguir (Figura 98), em que o PJ realizava oralmente junto com os
alunos a segunda e a terceira questões do exercício do livro didático (COSTA et al, 2012, p. 106),
também reproduzido abaixo (Figura 97):
314
Figura 97: Atividade do livro didático sobre advérbios e locuções adverbiais (PJ)
PJ: Lugar. Mais uma expressão de lugar.
Aluno: “Cidade”.
Aluno: “No bairro do Capivari”.
PJ: “Andando no bairro do Capivari”... Tem outra.
Aluno: “Cidade”, então.
PJ: Não. “Movimentados da cidade”, mas “cidade” aqui não é ideia de lugar. Ele... ele... ele qualifica a
palavra “movimentado”, né? Ó, no finalzinho, ele fala assim, ó: “Segundo a polícia, o animal não foi mais
visto na cidade.”. “Na cidade” não é o local onde ele não foi mais visto?
Aluno: É mesmo.
[...]
PJ: Expressões que indicam tempo, expressões que indicam tempo.
Aluno: “Sexta-feira (19)”.
PJ: “Sexta-feira (19)”... O que mais?
Alunos: “Hoje”...
Aluno: “Jornal Hoje”.
PJ: “Jornal Hoje” indica o tempo ou “Jornal Hoje” é o nome do jornal?
Aluno: É o nome do jornal.
PJ: Se é o nome do jornal, gente, é uma locução adverbial? O nome do jornal é uma locução adverbial? Não.
[...]
315
PJ: Quero chamar atenção de vocês pra uma frase no finalzinho, no último... num dos últimos... No último
parágrafo, tem assim: “Por causa do horário”, a rua estava deserta e a onça passou sem problemas”. [...]
Essa expressão “por causa do horário”...
Aluno: Tempo.
PJ: Não, não, não. Ela não indica tempo não. Mas ela não indica a causa?
Aluno: É, a causa do [incompreensível].
PJ: A causa por que ela passou despercebida, não é não?
Figura 98: Realização de atividade do livro didático sobre advérbios e locuções adverbiais (PJ)
O desenrolar da aula no fragmento acima sugere que a definição dos advérbios e das
locuções adverbiais segundo as circunstâncias que indicam não é suficiente para que os alunos
consigam reconhecê-los nos textos. Afinal, como explicar que a palavra “cidade” em “um dos
mais movimentados da cidade” não indica lugar? Ou como explicar que “Hoje” em “Jornal Hoje”
não faz referência a uma noção de tempo? Por fim, como explicar que a expressão “por causa do
horário” não remete de alguma forma ao tempo? Para justificar a inadequação das categorizações
dos alunos, o PJ acabava por explicar as razões pelas quais os termos em pauta se enquadravam
em outras classificações, sejam outras subcategorias dos advérbios ou mesmo outras classes
gramaticais. Parece-nos que essa estratégia, isolada, poderia causar a impressão de que a classe
dos advérbios dependia da não classificação nas demais classes de palavras (“da cidade” não é
locução adverbial porque é locução adjetiva, por exemplo).
Apesar da abordagem inicial genérica sobre os efeitos de sentido provocados pelo uso dos
advérbios, o PJ não incorria nesse mesmo perfil de trabalho em todas as ocasiões em que buscava
articular análise linguística e texto (seja pela via da leitura, seja pela via da produção textual)
durante o estudo dos advérbios. Durante as aulas 3 e 4, por exemplo, ao retomar o fragmento do
romance “Menino de Asas”, o PJ foi, à medida que os alunos identificavam os advérbios e as
locuções adverbiais de cada período, tecendo comentários sobre algumas repercussões do uso
desses recursos expressivos para a dimensão global do texto, considerando-se as especificidades
da narrativa lida. O excerto abaixo é, a nosso ver, um dos momentos mais representativos desse
outro perfil de trabalho:
PJ: Aí, depois, ele vem aqui: “Caminhava desajeitadamente na areia quente, como um pássaro esquisito.”.
Note que a frase é só “caminhava”. O verbo “caminhava” é a informação principal. Mas o que é que ele
acrescenta ao caminhar dele?
316
Aluno: “Desajeitado”?
PJ: “Desajeitadamente”, que é o modo. Hum... Não é? [...] “Na areia quente” é o local onde ele caminhava. E
“como um pássaro esquisito”. Essa comparação é muito comum em literatura. Quando eu faço essa
comparação, é pra indicar um modo. Porque ele era um menino que tinha asas, que, andando na rua, ficou
mais estranho ainda do que ele voando. Ele andando na rua, a visão dele andando na rua, é mais estranho do
que ele voando, né? “Como um pássaro esquisito”, tá? Aí, vem... Então, mais um advérbio. Note que ele usa
dois advérbios de modo... Aí... O “desajeitadamente” e “como um pássaro esquisito”. Eu uso duas situações
de modo aí. Uma utilizando... que ele usou por meio da comparação... E o outro ele utilizou pelo advérbio...
Que [de] “desajeitado”... nasceu “desajeitadamente”, que vem da palavra “desajeitado”.
[...]
PJ: Olha, vê... Aí ele continua... Então, me entendeu? Viram que, nesse primeiro parágrafo, se não houvesse
advérbios, haveria como visualizar o que tava acontecendo com ele? E veja... A tristeza da personagem não
fica mais marcada ainda pela descrição do jeito que ele tá andando?
Aluno: Aham.
PJ: Não é? Observe que no fato...
Aluno: Porque ele [incompreensível] sozinho.
PJ: É... Ele andando... Veja... Imagine que ele pode voar e ele tá tão triste que ele não consegue voar, que vai
andar na areia quente ainda mais de tão triste, de maneira desajeitada. A cena se torna ainda mais pesada. A
cena se torna ainda mais triste do que simplesmente dizer que ele estava triste. Notem. O autor podia ter dito:
“Ele voltou pra casa triste”. Mas, no momento em que ele encheu de advérbios, localizando e descrevendo pra
que eu imaginasse, ele deixou a ideia da forma como o personagem tava triste muito mais forte na minha
visão, na minha memória, no meu entendimento. Porque, no momento que eu uso a locução adverbial e o
advérbio, eu torno mais fácil de comp... o lei... que você, leitor, compreenda o que eu tô... o que eu quero que
você entenda. Tá?
Figura 99: Exploração dos efeitos de sentido provocados pelo uso de advérbios e locuções
adverbiais em excerto do romance “Menino de Asas” (PJ)
No fragmento de aula acima, há um entrelaçamento muito forte entre os eixos da análise
linguística e da leitura, pois o que o PJ efetivamente faz, por meio de seus comentários, é sugerir
uma interpretação plausível para o fragmento lido. E essa interpretação é realizada através da
análise dos advérbios e das locuções adverbiais cuidadosamente escolhidas pelo autor do
romance. Vê-se que, ao longo do diálogo transcrito na Figura 99, o PJ recorre, em alguns
momentos, à classificação dos elementos linguísticos focalizados quanto às circunstâncias que
indicam, ou seja, o PJ realiza uma atividade metalinguística (cf. FRANCHI, 2013 [1987];
GERALDI, 1991, 1996). Essa atividade, contudo, não aparece como a finalidade última da aula,
uma vez que as categorizações são feitas aos poucos, à medida que se mostram necessárias para
explicitar a construção da imagem da narrativa – este, sim, o objetivo principal dos comentários
do PJ.
317
Quando identifica para seus alunos a locução “como um pássaro esquisito”, por exemplo,
ele não se limita a rotulá-la como locução adverbial de modo. Mais do que isso, ele aponta o
núcleo verbal sobre o qual incidem este e outros termos destacados para, em seguida, apresentar a
construção como uma importante estratégia do autor para intensificar o peso da cena descrita e a
tristeza do personagem que caminha. Além disso, o PJ, reforçando e precisando melhor o efeito
de “visualização” das situações narradas e/ou descritas nos textos escritos ao qual tanto se referiu
quando introduzia o conteúdo neste e no dia anterior, explica que a comparação (aqui
concretizada por meio de uma locução adverbial) é um recurso comum nos textos literários
justamente por seu caráter imagético. Como afirma Neves (2012, p. 205), “[...] o texto literário
tem abrigo especial na reflexão sobre os usos, na direção de própria explicitação gramatical da
língua”, porque os escritores de literatura mobilizam com maior liberdade e criatividade as
nuances que a gramática da língua coloca à disposição do usuário (NEVES, 2012). Para mostrar
na prática os efeitos do uso dos advérbios e das locuções adverbiais no texto literário, o PJ se vale
de uma estratégia semelhante à que utilizou na análise das frases isoladas apresentadas na aula 2:
uma comparação entre a construção com advérbios e sem advérbios.
Podemos, enfim, constatar que o PJ, no excerto da Figura 99, abandona a menção
genérica a “textos” e especifica as circunstâncias enunciativas da construção de sentidos
promovida pelo uso de advérbios e locuções adverbiais. A aula permanece mais expositiva do
que construtivo-reflexiva, mas as explicações do PJ agora se referem a um contexto interlocutivo
concreto, ainda que materializado em um fragmento bastante curto de texto. A inovação
pedagógica aqui implementada diz respeito a um visível afastamento do artificialismo das
práticas de linguagem típicas do ensino tradicional de língua materna (cf. GERALDI, 1997c
[1984]) e à recorrência a atividades epilinguísticas (e não apenas às metalinguísticas) na análise
dos elementos linguísticos estudados (cf. FRANCHI, 2013 [1987]; GERALDI, 1991, 1996), não
obstante elas sejam realizadas pelo próprio professor.
O último aspecto relevante aos nossos propósitos de pesquisa que gostaríamos de
tematizar acerca das aulas 3 e 4 é a sistematização dos conhecimentos linguísticos explorados
pelo PJ. Em geral, essa etapa ocorre após a exposição teórica de um dado conteúdo, que, por sua
vez, pode acontecer antes ou depois das atividades de análise linguística propostas. Normalmente,
era o próprio PJ o responsável pela sistematização, sempre realizada por meio de uma anotação
teórica no quadro a ser copiada pelos alunos no caderno. Logo após redigi-lo, o PJ lia o texto em
318
voz alta para os alunos e tirava as eventuais dúvidas que surgissem entre os estudantes. No caso
da introdução dos advérbios e das locuções adverbiais, o momento de sistematização se deu ao
final da análise das frases escolhidas pelo PJ. Reproduzimos abaixo a anotação por ele elaborada:
1) O criminoso fugiu.
2) Certamente, o criminoso fugir rapidamente daqui hoje.
3) Com certeza, o criminoso fugiu como uma bala da cadeia em 19.10.15.
AFIRMAÇÃO MODO LUGAR TEMPO
Em 1) encontramos uma frase aparentemente completa, porém ela se apresenta incompleta. Já em 2) temos
uma frase mais completa trazendo mais informações ou noções ao verbo fugir (afirmação, tempo, lugar e
modo); a essas palavras que trazem circunstâncias aos verbos damos o nome de advérbios. Em 3)
encontramos a frase mais detalhada ainda, nela as noções são expressas por grupos de palavras e não apenas
por um advérbio como em “daqui” substituído por “da cadeia” ou “hoje” por “em 19.10.15”, a esses grupos
de palavras damos o nome de locução adverbial.
aqui
advérbios que só ganham sentido com o contexto
hoje
certamente (certo + mente
palavras derivadas que carregam seu sentido sozinhas
rapidamente (rápido + mente
Figura 100: Anotação teórica sobre advérbios e locuções adverbiais (PJ)
Franchi (2013 [1987]) e Geraldi (1991, 1996) defendem a importância de haver, nas aulas
de língua portuguesa, um momento de sistematização dos conhecimentos linguísticos estudados:
são as atividades metalinguísticas. Na ótica desses autores, elas não se limitam à atribuição de
terminologias técnicas a constituintes e fenômenos da língua, embora as nomenclaturas possam
(e, em muitos casos, devam) assumir, durante esse processo, um papel que merece atenção por
parte do professor. As nomenclaturas aparecem para designar os fenômenos linguísticos
trabalhados, mas a razão de ser das atividades metalinguísticas é mais ampla: elas visam fornecer
ao aluno explicações sobre o funcionamento do fenômeno estudado de forma explícita e
organizada. Essas explicações podem ou não coincidir com aquelas disponibilizadas nos
compêndios gramaticais, a depender dos objetivos delimitados pelo professor. A recomendação
de Geraldi (1991, 1996), no entanto, é que elas sejam produzidas pelos próprios alunos com a
mediação do professor devido à necessidade premente, para esse autor, de se instaurar na aula de
língua materna um processo contínuo de produção de conhecimentos em detrimento da
reprodução de teorias prévias.
319
Com a diferença de ter sido produzida por ele próprio, o PJ dedica parte de sua aula à
sistematização linguística. Para tanto, ele procura centrar sua teorização nas unidades em torno
das quais as análises por ele mediadas giraram. Além de indicar as classificações circunstanciais
dos advérbios e das locuções adverbiais destacados, ele elabora um parágrafo teórico em que
sintetiza as reflexões previamente realizadas (sobre o grau de “completude” das frases) e
conceitua os elementos focalizados (“palavras que trazem circunstâncias aos verbos”). Por fim, o
docente inclui na anotação exemplos de advérbios que se enquadram nas subcategorias
mencionadas na aula 2 (os advérbios dêiticos e os advérbios terminados em –mente, sem,
contudo, nomeá-los). Há alguns equívocos teóricos no conteúdo da anotação, mas eles refletem
os mesmos aspectos que já problematizamos na análise da aula 2 (a falta de clareza quanto ao
critério da completude dos enunciados, a referência apenas à classe dos verbos como passível de
se tornar escopo dos advérbios, a exposição da formação dos advérbios terminados em –mente a
partir da forma masculina do adjetivo e, ainda, certa inconsistência nas definições atribuídas às
subcategorias de advérbios tematizadas).
Vimos, até o momento, que, apesar de preocupar-se com a contribuição dos advérbios
para a construção do texto em sua dimensão mais ampla, o PJ optou por tomar frases como ponto
de partida para as reflexões linguísticas propostas. Se na entrevista inicial o PJ relacionava
análise linguística e texto como “um micro que contribui pro macro” (cf. Figura 75), os dados
das observações de aulas mostram que, para colocar em prática essa concepção, ele segue o
mesmo movimento descrito na definição formulada: dos constituintes menores da língua para o
contexto interlocutivo mais amplo. Tocamos mais detidamente nessa questão durante a entrevista
final, quando procurávamos informações complementares que nos ajudassem a compreender as
escolhas didáticas que resultaram nas aulas que acompanhamos ao longo do trabalho de campo.
Sobre a decisão de ir da frase para o texto, o PJ fez o seguinte comentário:
PJ: Bom, no primeiro momento, aparentemente funcionou mais a frase solta do que o texto... os fragmentos
dos textos que eu usei, né? O texto vivo, ele sempre requer um exercício maior de raciocínio pra entender o
funcionamento gramatical linguístico nele, né? Aparentemente, na frase funcionou, né? Mas, no final de tudo,
acho que, na avaliação, eu não fiquei muito satisfeito com o resultado das avaliações em relação ao uso do
advérbio, tanto na análise de textos quanto na produção.
PESQUISADORA: [...] Você, em vez de iniciar com textos, iniciou com as frases, né? Por que você achou que
seria uma estratégia melhor começar pelas frases?
PJ: Porque, quando eu fiz... eu já fiz o contrário. Já fiz o texto, e do texto eu separei as frases, e das frases... e
eles ficaram aparentemente mais perdidos. Tô falando de outra turma. Ficaram aparentemente mais perdidos
320
com o entendimento. E aí, quando eu... As vezes que eu utilizei esse recurso de usar a frase primeiro e depois a
gente mergulhar no texto, aparentemente pareceu mais fácil pra eles... a aceitação em termos desse crescente,
né? A ideia foi usar um crescente. Eu sei que a frase isolada é uma coisa complicada de se trabalhar, mas ela
tem seu valor, né? Ela tem seu valor, e, quando ela vai pro contexto, fica muito mais... se eu já compreendo
um micro, talvez eu compreenda o macro com mais facilidade. Aí são as especificidades de cada turma. A
gente nunca sabe o que... se vai funcionar ou não.
Figura 101: Comentário sobre o uso de frases como ponto de partida para a reflexão linguística
(PJ)
Dois aspectos relativos ao papel dos saberes docentes na constituição da atuação
profissional do professor saltam à vista a partir do comentário acima transcrito: o conhecimento
do PJ quanto às orientações vigentes para o ensino de língua materna e a primazia das condições
concretas da sala de aula como critério definidor das ações constitutivas de sua prática de ensino
(cf. CHARTIER, 2000a [1995]). Note-se que o PJ faz breve referência às frequentes críticas ao
uso da frase isolada como unidade de análise, porém o saber teórico não o impede de validar esse
dispositivo pedagógico, na medida em que a experiência vivida produziu um saber prático que o
leva a avaliar como mais adequado à aprendizagem da turma o caminho que vai da frase para o
texto, e não o contrário (cf. TARDIF, 2002). Assim, na direção oposta à afirmação de Mendonça
(2006) de que a aprendizagem da língua vai da competência discursiva para a competência
textual e, em seguida, para competência linguística/gramatical (isto é, do ponto de vista das
unidades de análise, do discurso para o texto e do texto para os constituintes menores, retornando,
por fim, para a dimensão global), o PJ avalia, em função dos contornos reais de seu ambiente de
trabalho (incluindo experiências prévias de ensino), que “funciona melhor” começar pela frase
antes de adentrar o universo do texto, numa lógica linear de aprendizagem (supostamente, do
mais simples para o mais complexo).
Na aula 5, o PJ solicitou aos alunos que respondessem duas questões do livro didático,
ambas sobre os advérbios e as locuções adverbiais presentes em dois textos específicos: uma letra
de música e uma tirinha. Para fins de análise, enfocaremos apenas na primeira questão do
exercício, devido a um maior entrelaçamento entre os eixos da análise linguística e da leitura. Na
Figura 102, abaixo, reproduzimos a atividade do livro (COSTA et al, 2012, p. 108), que parte de
questões centradas no reconhecimento e na classificação de estruturas linguísticas para, aos
poucos, incitar o leitor a perceber os efeitos de sentido que a abundância de advérbios e locuções
adverbiais provoca na letra da canção, particularmente no que diz respeito à criação da imagem
do eu lírico:
321
Figura 102: Atividade do livro didático sobre o uso de advérbios e locuções adverbiais em letra
de música (PJ)
Diante das dificuldades dos alunos com as classificações circunstanciais demandadas nas
questões, o PJ permite que a atividade seja realizada com o auxílio de um quadro do próprio livro
com exemplos das principais categorias de advérbios estudadas (dúvida, intensidade, modo,
lugar, tempo, afirmação e negação). Outra dificuldade perceptível durante a correção coletiva do
exercício, mais uma vez, foi a delimitação das locuções adverbiais do texto (uma aluna, por
exemplo, cita “mundo” para se referir à locução “no mundo”). Esse problema foi, no entanto,
menos recorrente ao longo dessa aula, provavelmente devido à apresentação visual dos elementos
linguísticos estudados na atividade (os advérbios e as locuções adverbiais estão todos destacados
em negrito).
Se, por um lado, o enunciado da letra “e” deixa claro que o objetivo final da atividade é a
reflexão sobre o papel dos advérbios e das locuções adverbiais na produção de sentidos da
canção, o passo a passo representado pelos enunciados das letras anteriores se limita a voltar a
atenção do aluno para a presença desses recursos expressivos no texto. Apenas com base nas
questões do livro, no máximo o aluno poderia, ainda, se dar conta da existência de dois pares de
advérbios cujos significados se opõem. Perceber a implicação desses elementos para a criação da
imagem do eu lírico requer, contudo, uma análise mais detida dos sentidos atribuíveis ao texto.
Nesse sentido, fica clara a urgência do papel do professor enquanto mediador do processo de
compreensão necessário à viabilização do diálogo do aluno com o texto escrito. O PJ,
conhecendo as dificuldades de seus alunos em relação às atividades de interpretação textual e
322
percebendo a lacuna que precisaria suprir para que os alunos pudessem responder à letra “e”,
solicita que eles atenham-se às quatro primeiras letras e que deixem a última para ser discutida
coletivamente durante a correção.
De fato, os alunos não apresentaram grandes dificuldades para responder às primeiras
questões com o auxílio do quadro com as subcategorias de advérbios disponível no livro didático.
Na Figura 103, abaixo, reproduzimos o momento em que o PJ conduz a discussão proposta no
enunciado da letra “e”:
PJ: A letra “e”, ele faz o seguinte movimento... Ele pede: “Como os advérbios e as locuções adverbiais
colaboram para a criação da imagem do eu lírico da música? Aí, veja só... O que é imagem? Imagem é
quando o texto literário... [...] Quando ele fala “imagem do texto literário”, eu já falei aqui quando eu falei de
poesia. Imagem é quando o autor quer dizer alguma coisa, ele cria uma imagem. Ele usa uma palavra pra
dizer outra coisa. Não é assim que a poesia faz? Normalmente... Não é? Ele usa uma palavra... pra dizer outra
coisa. Essa outra coisa é a imagem.
Aluno: Ah, sim. Agora, eu entendi.
PJ: Entendeu? Eu digo assim, eu digo assim... É... Quando fala assim: aquelas meninas são umas cobras. Aí,
que quero dizer que elas são traiçoeiras, não é?
Alunos: É.
PJ: Traiçoeiras. Então, eu criei a imagem da cobra pra dizer que elas são...
Alunos: Cobras. Falsas.
PJ: ...traiçoeiras. Falsas, exatamente. Deu pra entender aí? Vamos lá... Vocês observaram sobre o que é que o
texto fala?
Aluno: Dos advérbios.
PJ: O texto usa advérbios, Carlos. Mas sobre o que é que o texto fala realmente? Observem. Ele fala o
seguinte: [começa a ler o texto:] “Eu tô longe, eu tô perto / Eu tô sempre por aí.”...
Aluno: Ele fala o contrário.
PJ: ...“Tô ligado, tô esperto / se chegarem, já saí. / Eu, de olho no mundo / só, por meio segundo / Tô em cima,
tô embaixo / é você que não me vê. / Ouço tudo, tudo escuto / Tô pensando em você. / Eu, de olho no mundo /
só, por meio segundo”. O que é que na vida da gente dá possibilidade disso tudo?
Alunos: A internet.
PJ: Muito bem observado. Por onde é que vocês perceberam que era a internet?
Alunos [vários ao mesmo tempo]: Porque tava aqui. Porque tem na foto.
PJ: Não, minha gente, pelo texto... [...] Numa segunda leitura, agora, observe se não é a internet que ele tá
falando... A imagem... Ele fala: “Eu tô longe, eu tô perto”. Aqui é a internet?
Alunos: É.
323
PJ: Não tem distância? Ao mesmo tempo, tá longe e tá perto? “Eu tô sempre por aí”, né? “Tô ligado, tô
esperto / se chegarem, já saí”, né? Tudo relativo à internet. “Eu, de olho no mundo”... Ou não é? Quando
você tá na internet, você não vê tudo que acontece no mundo? “Eu, de olho no mundo / só, por meio
segundo”. Numa conexão rápida, você não consegue chegar a qualquer lugar do mundo em meio segundo?
Alunos: Aham.
Aluno: É.
[...]
PJ: Ele fala da internet. Eu percebo isso, gente, pelo jogo de advérbios que ele faz. Fala de “longe”, “perto”,
“meio segundo”, “por aí”... Ele usa os advérbios pra localizar a gente em vários lugares a todo tempo pra
fazer a comparação com a internet, não é? [...]
Aluna: A resposta é a internet, é?
PJ: Não. Ele usa os advérbios... Eu passo já. Eu dou na próxima aula. Pulem umas linhas vocês, e respondam
à segunda questão.
[...]
Aluno: Ele usa os advérbios...
Aluna: Ele usa os advérbios...
[...]
PJ: Tá. Então, vou fazer agora. Ele usa os advérbios pra...
Aluna: Ele usa a internet.
PJ: Não. Ele perguntou pra quê que ele usa os advérbios. [...] Ele usa os advérbios pra mostrar que está em
todo lugar a todo momento, como na internet. Não é isso que ele faz no texto? Ele usa os advérbios pra
mostrar que está em todo lugar a todo momento...
Aluna: ...como na internet.
PJ: ...como na internet.
Figura 103: Correção coletiva de atividade do livro didático sobre o uso de advérbios e locuções
adverbiais em letra de música (PJ)
Para orientar os alunos no cumprimento da atividade proposta, o PJ explica-lhes o que é
uma imagem literária, pois alguns alunos haviam entendido que o enunciado da questão se referia
à gravura que, no livro didático, acompanha a letra da canção (Figura 102). Para isso, o PJ
remete ao conceito de metáfora, ainda que não o nomeie, por aparentemente já tê-lo trabalhado
em algum outro momento do ano letivo (“eu já falei aqui quando eu falei de poesia”). Apesar de
afirmarem ter compreendido a explicação do PJ, os alunos permanecem, ao longo do fragmento
de aula da Figura 103, com dificuldades na análise do texto lido por fixarem-se demasiadamente
324
nas informações disponibilizadas pelo próprio livro didático (sobretudo através da gravura e dos
enunciados das questões). Alguns dos comentários dos alunos sinalizam que eles preocupam-se
mais em encontrar as respostas que eles acreditam serem esperadas pelo professor e/ou pelo livro
didático (mesmo quando elas fazem pouco sentido para eles mesmos) do que propriamente em se
posicionar ante o texto lido. Semelhante à postura adotada no fragmento da Figura 90, os alunos
novamente tentam se adaptar ao “jogo da escola” (cf. GERALDI, 1997d [1984]). Note-se que um
aluno afirma que são os advérbios o tema da canção analisada. Que outro condicionante o levaria
a essa resposta a não ser o fato de ele saber que, desde algumas aulas atrás, eram os mesmos
advérbios o conteúdo estudado? Recusando essa primeira resposta, o PJ opta por reler a letra da
música para que os alunos façam uma nova tentativa para identificar o tema da canção. Basta o
PJ iniciar a leitura dos dois primeiros versos para outro aluno arriscar: “Ele fala o contrário”. Não
por acaso, o primeiro questionamento proposto na atividade do livro (Figura 102) é: “Quais são
os advérbios ou locuções adverbiais que se opõem?”. No instante do comentário do aluno, essa
questão já havia, inclusive, sido tematizada durante a correção coletiva, tendo o PJ explicado que
oposição significava “contrário”.
É curioso observar que toda a interpretação da canção passa a girar em tono da internet,
inclusive por parte do PJ. Apesar de se tratar de um contexto plausível para a letra da música, não
há nenhum elemento linguístico que o explicite. Como bem ressaltam os alunos, é a gravura que
aparece ao lado do texto a provável principal responsável pelo caminho interpretativo trilhado
pela turma com a mediação do professor. Embora os alunos assumam terem sido influenciados
pela gravura, o PJ procura fazê-los atentar para o universo linguístico do texto. Essa atitude do PJ
atesta que, mais importante do que ouvir dos alunos a resposta correta para as questões do livro
didático, era compreender as razões que os levaram a encontrar a resposta. No entanto, os alunos
não chegam a externar as justificativas solicitadas, limitando-se a concordar com as análises
esmiuçadas pelo PJ, que se empenha em apresentar os advérbios e as locuções adverbiais como
pistas linguísticas fundamentais na reconstituição da imagem poética elaborada pelos autores da
canção.
Ao final, eles demonstram não ter compreendido com clareza a proposta da atividade e as
análises do PJ, uma vez que não se sentem aptos a redigirem uma resposta com base nas
explicações então ouvidas (“A resposta é a internet, é?”) e, por isso, insistem para que o PJ
forneça-lhes uma síntese da resposta final, palavra por palavra. Durante a entrevista final, o PJ
325
atribuiu as dificuldades para a realização da atividade à falta de costume dos alunos com
exercícios que demandem a mobilização de diferentes conhecimentos (nesse caso, interpretação
de texto e conhecimentos linguísticos – sobre os advérbios e sobre a linguagem poética) para a
construção de uma resposta aberta a um leque maior de possibilidades: “Normalmente, eles
querem recorrer ao texto e conseguir tirar uma palavra do texto ou uma frase do texto que
responda à questão. Eles não constroem as respostas.”.
Até o momento, foi possível perceber que, em sua prática de ensino, o PJ mesclava
atividades de orientação mais tradicional – isto é, centradas sobretudo na identificação e
classificação dos advérbios e das locuções adverbiais em textos, fragmentos de textos ou mesmo
em frases descontextualizadas – e atividades mais próximas da perspectiva da análise linguística
tal como proposta pelos estudiosos do ensino de língua materna (cf. GERALDI, 1991, 1996;
MENDONÇA, 2006). Se pudemos constatar nos últimos dados apresentados algumas tentativas
de contextualizar discursivamente a abordagem do conteúdo então estudado (os advérbios), a aula
7, por exemplo, foi marcada pela utilização do texto como mero pretexto para o ensino de
gramática – na verdade, pela utilização de um parágrafo de texto elaborado pelo próprio PJ
(Figura 86) apenas com o objetivo de que os alunos classificassem os advérbios e as locuções
adverbiais presentes no fragmento. Evidentemente, para isso, o PJ precisou preocupar-se, durante
a escrita, em incluir o máximo de expressões adverbiais no texto produzido. Já tivemos, na
subseção dedicada à análise dos dados da entrevista inicial, a oportunidade de apresentar as
motivações do PJ para a realização dessa atividade em particular (Figura 85). Por essa razão, não
nos deteremos mais nela, mas a destacamos como forma de lembrar que a prática do PJ não era
homogênea ou filiada a uma única perspectiva teórica. Optamos, ao final desta análise, por
enfocar as atividades em que havia uma maior articulação entre análise linguística e texto devido
aos propósitos da pesquisa, isto é, por acreditarmos que o detalhamento dessas atividades
específicas pode ampliar o debate sobre os possíveis caminhos para se (re)pensar a necessária
articulação entre a análise linguística e os demais eixos de ensino, principalmente no que diz
respeito ao papel dos elementos linguísticos na produção de sentidos (neste trabalho, mais
particularmente direcionado ao contexto das práticas de leitura).
Assim, finalizaremos a constituição do corpus desta pesquisa com mais duas atividades
desenvolvidas pelo PJ: uma atividade do livro didático sobre a expressão de opiniões por meio
dos advérbios e a prova escrita aplicada ao final do trabalho com o conteúdo aqui focalizado. A
326
primeira atividade foi realizada com base no livro didático, mas, conforme vimos no fragmento
de aula da Figura 95, o PJ já havia alertado os alunos sobre a possibilidade de se expressar
opinião por meio dos advérbios quando comentou a necessidade de que os alunos conferissem
maior atenção a essa classe de palavras durante os processos de produção de texto em que se
engajavam. Quanto à prova final escrita, acreditamos que ela revela dados importantes sobre o
perfil de trabalho do PJ por funcionar como um filtro dos aspectos que ele considera relevantes
para a aprendizagem da língua a ponto de serem tomados como parâmetros para a avaliação do
desempenho da turma. Outro fator que suscitou nosso interesse sobre esse documento e que
ampara a sua contribuição para a compreensão do fazer pedagógico do PJ é o seu caráter autoral.
O trabalho em torno da expressão de opiniões por meio dos advérbios foi realizado na
aula 10, quando o PJ conduziu a correção coletiva de uma atividade do livro didático que havia
passado como tarefa de casa na aula anterior. Ou seja, dessa vez, ele optou por explorar os textos
e os exercícios do livro antes de sistematizar teoricamente o conteúdo estudado. Na Figura 104, a
seguir, reproduzimos apenas as questões que serviram de mote para a discussão mediada pelo PJ
ao longo da aula (COSTA et al, 2012, p. 110-111):
Figura 104: Atividade do livro didático sobre a expressão de opiniões por meio dos advérbios
(PJ)
327
O próprio conteúdo sugerido pelo livro didático já favorece bastante uma abordagem
textual-discursiva da gramática, pois não é possível verificar a expressão de uma opinião senão
num processo interlocutivo concreto, seja ele materializado em um texto escrito ou em um texto
oral. No caso do livro didático adotado pelo PJ, a abordagem do conteúdo é realizada em torno de
textos da esfera jornalística (nas questões exploradas durante a aula, são contemplados apenas
notícias em específico). Pelas explicações contidas nos boxes das duas páginas acima
reproduzidas, pode-se inferir que, subjacente a essa escolha, está o intuito de promover uma
reflexão sobre a não neutralidade da linguagem, inclusive nos textos supostamente mais
informativos. A ideia é mostrar os advérbios e as locuções adverbiais como uma das evidências
da presença do componente opinativo nos textos jornalísticos, incitando por parte do aluno-leitor
um olhar crítico perante as produções escritas com que ele se depara nos diversos veículos de
comunicação.
Entrelaçam-se, portanto, os eixos da análise linguística e da leitura, tendo em vista a
convergência das reflexões suscitadas na atividade para objetivos de aprendizagem em comum.
Como explica Mendonça (2006), nas práticas de análise linguística, há uma fusão em relação ao
estudo dos gêneros, porque, a partir delas, contrastam-se as condições de produção dos textos e as
escolhas linguísticas do autor, inseparáveis, por sua vez, de suas intencionalidades discursivas.
Ao longo de toda a atividade da Figura 104, os alunos são convidados a, numa postura
investigativa, tomar os textos (ou os fragmentos de texto) como objetos e, engajando-se em
atividades epilinguísticas, ampliar a sua compreensão sobre a natureza e o funcionamento dos
advérbios enquanto recursos expressivos da língua, num percurso de trabalho alinhado à
perspectiva sociointeracionista de ensino de língua materna (cf. GERALDI, 1991, 1996). Aliás,
as inferências explicativas acerca dos advérbios para as quais a atividade conduz o aluno
questionam a tradicional classificação desses elementos como acessórios, ressaltando o papel
decisivo que eles podem assumir em determinados contextos de uso. Na segunda questão, por
exemplo, a ausência da localização temporal das ações presentes no excerto da notícia
inviabilizaria a veiculação do principal fato narrado, uma vez que ele consiste justamente no
contraste entre o número de roubos registrados em períodos de tempo distintos. Já na terceira e na
quinta questão, a atividade visa mostrar que, mesmo nas ocasiões em que não constituam a
principal informação do enunciado, os advérbios e as locuções adverbiais podem ter lugar de
destaque na explicitação do posicionamento do locutor acerca do tema por ele abordado.
328
Em suma, a reflexão linguística proposta coloca-se a todo tempo a serviço dos usos da
língua. A proposta do livro didático oportuniza aos alunos a diversificação das possibilidades de
mobilização das formas linguísticas em função de seus propósitos comunicativos. Isso acontece
devido ao acesso ao produto do trabalho discursivo de outrem e à reflexão acerca das estratégias
de dizer das quais os autores lançaram mão durante o processo de escrita (cf. GERALDI, 1991,
1996). Ao comentar a relevância da atividade da Figura 104, durante a entrevista final, o PJ
concorda com a ampliação do repertório de estratégias de dizer dos alunos, além de destacar a
necessidade de que os alunos, com as práticas de análise linguística, consigam ir além da
identificação do conteúdo do texto lido. Mais do que reconhecer as opiniões expressas nas
notícias, o PJ considera fundamental que eles sejam capazes de identificar os recursos
linguísticos por meio dos quais os autores alcançaram determinado efeito de sentido. Como
defende Mendonça (2006), na escola, é preciso não apenas saber, mas saber dizer. E é no
desenvolvimento da habilidade de teorização, ainda que intuitiva, sobre a língua que entram em
jogo as práticas de análise linguística.
Eu acho importantíssima [a atividade da Figura 103]... nesse momento em que... tanto pro entendimento do
texto como a produção do texto... mais pra produção do texto... porque você percebe que eles entendem a
opinião mesmo sem identificar qual é a palavra que tá fazendo isso. Mas, na hora de produzir, eu careço...
pelo menos eles, né... carecem dessa habilidade do uso dessa palavra pra isso. Então, nesse sentido que eu
queria chamar atenção pra eles, não é? Na verdade, porque o entendimento da opinião, meio que eles... boa
parte chegava na ideia do entendimento... só não encontrava a palavra. Encontrando a palavra é uma
maneira de você também instrumentalizar pra que ele use na produção dele.
Figura 105: Comentário crítico acerca da atividade do livro didático sobre a expressão de
opiniões por meio dos advérbios (PJ)
Após a realização da atividade da Figura 104, o PJ faz uma anotação teórica no quadro a
fim de sistematizar os conhecimentos explorados ao longo do exercício. O tempo final da aula foi
destinado à cópia dessa anotação pelos alunos e, na aula seguinte, ela não voltou a ser tematizada
pelo PJ. Na Figura 106, logo adiante, transcrevemos, palavra por palavra, o texto que o PJ
elaborou para concluir o trabalho acerca da expressão de opiniões por meio dos advérbios:
Advérbios como modalizadores
Em alguns textos, os advérbios ou locuções adverbiais podem trazer opiniões do autor, nesta função
podemos chamá-los de modalizadores.
Ex.1: Seu amigo não trouxe a chave.
Ex.2: Infelizmente, seu amigo não trouxe a chave.
329
Em 1, temos uma frase neutra, a ausência da chave não parece ser importante. Já em 2 o “infelizmente”
acrescenta um pesar a ausência da chave, que revela-a importante para o autor.
Figura 106: Anotação teórica sobre os advérbios como modalizadores (PJ)
Como vimos durante a introdução ao estudo dos advérbios, o PJ opta por um momento de
sistematização ao final da aula, concretizada a partir de uma anotação teórica por ele elaborada.
Em ambos os casos, essa sistematização foi resultado do trabalho reflexivo do próprio professor,
mas, se naquela ocasião a sistematização precedeu a análise dos textos (ou dos fragmentos de
textos), desta vez o PJ decide apresentar a síntese teórica após ter explorado o funcionamento do
fenômeno estudado em situações concretas de interação (as notícias).
Embora o conteúdo do texto redigido pelo PJ de fato corresponda aos aspectos discutidos
durante a aula, um elemento novo para os alunos aparece na anotação: uma das categorizações
dos advérbios, os modalizadores. Segundo Neves (1999, p. 244, grifo nosso), esse grupo de
advérbios “[...] têm como característica básica expressar alguma intervenção do falante na
definição da validade de seu enunciado: modalizar quanto ao valor de verdade, modalizar quanto
ao dever, restringir o domínio, definir a atitude e, até, avaliar a própria formulação linguística”,
ou seja, o uso desses termos “[...] constitui uma das estratégias para marcar essa atitude do
falante em relação ao que ele próprio diz”. Assim, as marcas de opinião não são o único efeito
dos advérbios modalizadores, mas uma das possíveis consequências de seu uso. Devido à
abordagem da atividade do livro didático, o PJ enfoca nessas marcas. O termo “modalizador”
aparece pela primeira vez nessa anotação, sem posterior conversa sobre o conteúdo do texto, e só
volta a ser mencionado no dia em que foi aplicada a prova escrita – ocasião em que nenhum
aluno parecia conhecer o significado da expressão, sentindo-se impossibilitados de responder
adequadamente à questão da prova que aludia a essa terminologia específica.
Na prova escrita, realizada logo após a última aula sobre os advérbios, o PJ escolhe um
relato pessoal como unidade de análise sobre a qual as questões são elaboradas. Até o momento,
esse gênero textual ainda não havia sido estudado pela turma, porém, segundo o PJ, essa opção
foi motivada pelo fato de ser o relato pessoal o próximo conteúdo a ser trabalhado. A leitura do
texto da prova seria um primeiro contato dos alunos com o gênero e, por isso mesmo, o PJ
disponibiliza logo após o texto uma breve síntese sobre sua função e sobre seus suportes de
circulação. Também por essa razão, os questionamentos aos quais os alunos deveriam responder
não tematizam tais aspectos, mas apenas o uso dos advérbios e das locuções adverbiais no texto:
330
Figura 107: Prova escrita sobre os advérbios e as locuções adverbiais (PJ)
Assim como relatou nos depoimentos da Figura 82 e da Figura 83, as questões da prova
assemelham-se bastante ao perfil das atividades desenvolvidas durante as aulas. Note-se que as
habilidades dos alunos esperadas para a resolução do exercício da Figura 107, acima, são:
identificação de advérbios e locuções adverbiais, classificação desses elementos quanto às
circunstâncias que indicam no contexto interlocutivo em que são empregados (o relato pessoal),
identificação das intencionalidades discursivas subjacentes ao uso de determinados advérbios
e/ou locuções adverbiais num dado texto (ou identificação dos efeitos de sentido provocados por
esse uso). Noutras palavras, podemos verificar na prova elaborada pelo PJ ora uma abordagem
mais tradicional centrada no reconhecimento e na classificação de estruturas, ora uma abordagem
mais próxima da perspectiva sociointeracionista por privilegiar a produção de sentidos em
situações concretas de interação verbal. Cabe ainda lembrar de sua avaliação, expressa no
331
depoimento da Figura 96, de que a simples identificação das circunstâncias indicadas pelos
advérbios e pelas locuções adverbiais já implica, por si só, um passo à frente na compreensão do
texto, o que pode sinalizar sua intenção de fazer da prova, no plano geral, um espaço de reflexão
linguística cujo ponto de partida e de chegada seja o texto, tal como recomendam Geraldi (1997b
[1984], 1991, 1996) e Mendonça (2006), bem como os principais documentos curriculares
mencionados ao longo desta dissertação (cf. BRASIL, 1998; BRASIL, 2013; JABOATÃO DOS
GUARARAPES, 2014).
Também no depoimento da Figura 82, o PJ declarou não exigir domínio de nomenclatura
em prova, embora reconheça a importância de apresentar aos alunos os termos técnicos por meio
dos quais é possível se referir aos fenômenos da língua. Na prova da Figura 107, encontramos
metalinguagem gramatical na escrita dos enunciados das questões, evidência de que era preciso
conhecer os termos para compreender as solicitações contidas neles. Mas é importante atentar
para o fato de que o PJ tem o cuidado de disponibilizar ao longo da prova os nomes de todas as
categorizações que os alunos devem fazer, isentando-lhes da necessidade de memorizá-las
previamente. Além disso, ele procura, nos enunciados, trazer uma breve explicação sobre esses
termos (“Os relatos são ricos em referências espaciais e temporais”; “Os advérbios e locuções
adverbiais podem expressar várias circunstâncias (tempo, lugar, modo, afirmação, negação,
intensidade [...])”). Mesmo a referência ao “modalizador”, pouco trabalhada durante as aulas e
com a qual a maioria absoluta dos alunos apresentou dificuldades na prova, vem acompanhada de
uma explicação acerca do efeito de sentido provocado por seu uso. Essa estratégia do PJ fazia
com que, mais do que reconhecer um advérbio “que funcionasse como modalizador”, o aluno
precisasse perceber que algum dos advérbios do texto “carregava a posição da autora de
valorização de sua condição de negra”.
Na Figura 108, abaixo, o PJ confirma a intenção de explorar, através da prova escrita
reproduzida e comentada há pouco, os objetivos de aprendizagem que elencamos e fala sobre o
desempenho dos alunos na realização da atividade, bem como sobre os obstáculos que encontra
para avaliar o real estágio de conhecimento da turma acerca dos conteúdos trabalhados. Talvez a
principal reflexão a que o comentário do PJ acaba suscitando seja a necessidade de não se tomar a
prova escrita como único instrumento para avaliar o desempenho da turma, pois ele parece se
deparar com uma espécie de abismo entre o resultado da participação de muitos alunos nas
atividades desenvolvidas ao longo das aulas e o resultado desses mesmos alunos na prova final.
332
Do ponto de vista da análise linguística, eu priorizei unicamente o encontrar e classificar, encontrar e
classificar... encontrar o advérbio ou locução adverbial e classificar e entender, novamente como o livro
colocou, né... entender no que é que ele ajuda na construção do texto, e ele como modalizador. Na hora da
identificação, a gente tem alguns resultados positivos, mas, como modalizador, eu acho que eu só tive... eu
posso até estender aí à análise dos cento e vinte alunos dos sétimos anos... acho que só dois ou três
conseguiram identificar quem era modalizador aí. E, na verdade, a gente não consegue avaliar direito a
situação. Por quê? Boa parte não lembrava nem o que era modalizador, o que sinaliza que não estudaram pra
prova, simplesmente. Uma coisa que você enfrenta muito nesse nível de ensino é que, em vez do menino...
assim... você não consegue... quando eu vou avaliar que ele fez má prova ou boa prova é porque ele não
estudou pra prova. Então, se ele não estudou pra prova e não sabe nem o que é um modalizador... não lembra
porque não... porque, apesar de ter feito a atividade, de ter respondido em sala de aula, de ter identificado, de
ter discutido [...]... mas, na hora de colocar no papel, escrever e ser avaliado, ele não se preparou pra tal.
Então, é bem complicado. Assim... A prova nunca eu acredito que traz a real condição do estudante, por conta
justamente dessa questão social da educação, né?
Figura 108: Comentário sobre a elaboração da prova escrita e sobre o desempenho dos alunos
(PJ)
333
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa buscou investigar as práticas de análise linguística desenvolvidas pelo
professor de português em turmas do sétimo ano do ensino fundamental e as relações dessas
práticas com o ensino da leitura. Preocupamo-nos, portanto, com os caminhos por meio dos quais
os docentes constroem sua atividade profissional, mobilizando dispositivos pedagógicos e saberes
de diversas ordens. Cientes de que a desejada articulação entre análise linguística e leitura ainda é
um desafio para a escola brasileira e convictos de que o professor é um expert do ensino, nosso
interesse era o de desvendar suas maneiras de fazer e compreender as razões que o levam aos
contornos específicos que sua atuação docente ganha no dia a dia do ofício. Para alcançar o nosso
objetivo central, traçamos objetivos específicos que visavam examinar, mais detidamente, quatro
elementos das práticas investigadas: as concepções teóricas do professor; o planejamento quanto
às ações constitutivas da prática de ensino e à seleção de conteúdos e textos a serem trabalhados
em sala de aula; os procedimentos didáticos adotados na construção da prática docente; e a
abordagem do papel dos elementos linguísticos na construção de sentidos dos textos.
O percurso teórico de nossa pesquisa se inicia pela reconstituição do histórico da
disciplina português no Brasil, com ênfase no lugar ocupado pela gramática tradicional no
decorrer desse processo e com base nos pressupostos da história das disciplinas escolares e da
cultura escolar (cf. CHERVEL, 1990 [1988]; JULIA, 2001). Em seguida, detivemo-nos nas
mudanças promovidas pela introdução das práticas de análise linguística na escola a partir dos
anos 1980, através das ideias de João Wanderley Geraldi. Para isso, discorremos sobre a
perspectiva bakhtiniana de linguagem em que se esteia o pensamento de Geraldi, delineamos um
panorama geral da proposta de Geraldi (1997a [1984], 1997b [1984], 1991, 1996) para o ensino
de língua materna, pormenorizamos os fundamentos básicos do eixo da análise linguística no
interior dessa proposta, enfatizamos os pontos de interseção desse eixo com a leitura segundo o
ponto de vista do autor e segundo as normatizações dos PCN e do PNLD, elencamos alternativas
práticas de trabalho sugeridas por estudiosos da área ou desenvolvidas por professores da
educação básica, e, por fim, refletimos sobre aspectos relativos à construção da prática docente
com base nas ideias de Tardif (2002) e Chartier (2000a [1995], 2000b, 2002, 2007).
A pesquisa desenvolvida foi do tipo qualitativa, com observação participante, e os
instrumentos de coleta de dados utilizados foram a entrevista semiestruturada e a observação de
334
aulas. O estudo foi realizado com professores do sétimo ano do ensino fundamental em duas
escolas públicas: uma da rede municipal do Recife e outra da rede municipal de Jaboatão dos
Guararapes. Em ambos os casos, acompanhamos as aulas do quarto bimestre letivo de 2015.
Nestas considerações finais, elaboramos uma síntese geral do perfil de trabalho dos
professores quanto a cada um dos elementos apontados nos objetivos específicos. Depois,
elencamos algumas conclusões para as quais os dados do estudo sinalizam e algumas possíveis
demandas de pesquisa sugeridas pelos resultados aqui encontrados. É preciso salientar que nossos
achados não representam a totalidade das práticas de ensino desenvolvidas no país, nem sequer
nas redes municipais investigadas. Dada a profundidade com que tencionávamos mergulhar nas
práticas docentes estudadas, optamos por analisar a atuação de apenas dois professores de língua
portuguesa – uma amostra bastante reduzida do corpo docente atuante nas diversas escolas
brasileiras. Noutras palavras, os dados apresentados ao longo do capítulo analítico e as
conclusões a que chegamos a partir deles não são generalizáveis, mas dizem respeito apenas a um
contexto particular de ensino. Esse contexto só pode ajudar a compreender o panorama geral do
ensino de português atual se os resultados decorrentes de nossa pesquisa forem contrastados aos
resultados de outros trabalhos acadêmicos. Daí, a necessidade de uma maior atenção da academia
para as práticas de análise linguística desenvolvidas por outros professores de português, tanto no
nível de ensino para o qual voltamos nosso olhar quanto no ensino médio.
Quanto às concepções da PR acerca do ensino de língua materna, ela demonstra alinhar-se
à perspectiva sociointeracionista de Geraldi (1997a [1984], 1997b [1984], 1991, 1996), na
medida em que entende que o principal objetivo da disciplina é promover o desenvolvimento de
habilidades de leitura, fala e escrita dos alunos. Além disso, ela associa essa meta de
aprendizagem à formação cidadã dos educandos, pois acredita que a inserção em circunstâncias
concretas de interação lhes oportuniza maiores possibilidades de participação social. O lugar do
eixo da análise linguística nesse projeto de ensino, segundo a PR, é o de aprimorar o desempenho
linguístico dos alunos nas diversas situações de uso da língua que vivenciam (sobretudo, aquelas
que demandam maior formalidade nas escolhas linguísticas) e, para tanto, o de aprofundar a
compreensão dos alunos sobre o funcionamento da língua(gem).
Para colocar essas concepções em prática, a PR procura dedicar um largo espaço ao texto
em suas aulas. Segundo ela relata, o núcleo organizador de sua prática de ensino costuma ser o
estudo de um gênero textual, em função do qual ela medeia uma série de reflexões vinculadas a
335
cada um dos eixos didáticos. Como busca levar os alunos a compreenderem as especificidades da
estrutura e do funcionamento sociodiscursivo do gênero, ela se esforça em proporcionar uma
vivência aproximada do contexto social em que os textos efetivamente circulam. Por isso,
algumas das leituras realizadas em sala de aula são feitas no próprio suporte de publicação dos
textos e as questões colocadas à turma remetem aos elementos que identificam o gênero enquanto
materialização de uma atividade linguística concreta, tais como os interlocutores envolvidos, as
intencionalidades discursivas subjacentes e os aspectos formais típicos.
Nas atividades voltadas para o eixo da análise linguística, a PR afirma priorizar os usos
situados em detrimento da descrição metalinguística e avalia o estudo dos gêneros textuais como
uma oportunidade particularmente profícua para a abordagem de determinados conteúdos
linguísticos, inclusive conceitos oriundos da tradição gramatical (cf. MENDONÇA, 2007b).
Desse modo, a preocupação com a contextualização dos fenômenos linguísticos explorados
quanto ao seu funcionamento em circunstâncias de interação verbal é constante por parte da PR.
Fica claro, portanto, que o entrelaçamento da análise linguística com a leitura (bem como com
outras práticas de linguagem) é um parâmetro de trabalho almejado pela PR. Outra característica
visível no perfil de trabalho por ela descrito é a tentativa frequente de instaurar na aula momentos
de produção de conhecimentos pelos alunos a partir da mediação de atividades epilinguísticas em
vez de apresentar-lhes prontos os resultados de reflexões alheias (cf. GERALDI, 1991). Nessas
ocasiões, as conclusões a que os alunos chegam acerca de um dado fenômeno linguístico advêm
da observação de seu funcionamento em textos concretos ou, às vezes, em frases isoladas.
A PR não enxerga em todos os conteúdos linguísticos a possibilidade de explorá-los a
partir de textos e com enfoque nos efeitos de sentido, ainda que considere ideal essa forma de
abordagem. Quando não encontra um caminho que lhe pareça consistente e adequado às
necessidades da turma para fazê-lo, ela recorre à perspectiva tradicional de ensino de gramática:
vale-se de uma metodologia transmissiva, utiliza frases ou palavras como unidade de análise,
baseia-se no tripé definição-exemplificação-exercitação, enfoca as prescrições da gramática
normativa, faz uso do texto como pretexto para o ensino de gramática tradicional, etc. São
momentos em que a PR opta, conscientemente, por um tratamento tradicional dos conhecimentos
linguísticos. Entretanto, ela explica que há situações em que se vale de conceitos e práticas
tipicamente tradicionais sem que esse direcionamento tenha sido fruto de uma cuidadosa e prévia
decisão, e sim do forte enraizamento de sua identidade profissional com a tradição gramatical
336
promovido por suas experiências de formação inicial durante a graduação e por suas experiências
de início de carreira como professora. Por isso mesmo, sua atual defesa por um ensino de base
sociointeracionista não implica o completo descarte dos saberes historicamente produzidos pela
tradição gramatical e das práticas consolidadas pelo ensino tradicional de língua materna.
O planejamento, embora não possa controlar integralmente as ações da prática concreta de
sala de aula, é um condicionante relativamente forte da atuação da PR, segundo ela relata. Tanto
para escolher os textos a serem explorados nas aulas quanto para definir os conteúdos de ensino,
a PR recorre inicialmente ao documento curricular oficial da prefeitura do Recife. Quanto à
seleção de textos, a consulta ao documento ocorre no momento de optar pelos gêneros textuais a
serem trabalhados. Após essa escolha, a PR afirma pesquisar os textos principalmente na internet
e em livros didáticos, revistas e jornais, levando em consideração os seguintes critérios: a
aproximação em relação ao universo de referência dos alunos (a partir do qual planeja a
apresentação posterior de textos progressivamente mais distantes dessa realidade), o gosto dos
alunos, o grau de formalidade da linguagem, a qualidade da escrita e a autoria.
Quanto à definição dos conteúdos, a PR também procura guiar-se pelo documento. É
importante lembrar que ele se pauta numa concepção sociointeracionista de ensino de língua
materna, prezando – inclusive no eixo da análise linguística – por diversos preceitos teóricos
alinhados às concepções da PR, tais como o trabalho com situações autênticas de interação
através do estudo dos variados gêneros textuais e a transversalidade da reflexão linguística em
relação aos eixos didáticos vinculados aos usos da língua. Apesar do reconhecimento da
importância do documento curricular oficial, a PR não se limita a segui-lo integralmente,
sentindo-se autônoma para avaliar a adequação da proposta e realizar as modificações que lhe
parecerem necessárias. Para isso, ela mobiliza os saberes disciplinares e pedagógicos adquiridos
ao longo da formação continuada e os saberes curriculares disponíveis no documento em função
das particularidades de seu contexto de trabalho, produzindo, assim, saberes experienciais que lhe
permitem avaliar os saberes externamente concebidos e adequá-los à realidade escolar com a qual
convive (cf. TARDIF, 2002; CHARTIER, 2000a, 2007).
O planejamento das ações propriamente ditas a constituírem os fazeres ordinários da aula
da PR também reforça a autonomia da docente nas decisões que permeiam a sua prática de
ensino. Nesse caso, ela consulta o livro didático após a escolha dos conteúdos para ver se há
atividades previstas que os tematizem. Quando não há ou quando avalia a proposta do livro
337
didático como inadequada às suas expectativas de trabalho e às necessidades da turma, ela
própria elabora o material a nortear as ações constitutivas da aula. Trata-se de uma profissional
bastante crítica em relação ao conteúdo do livro didático, como ficou claro nos depoimentos em
que o avaliou. Essa avaliação, por sua vez, revela pistas significativas dos elementos que a PR
valoriza quando elege o grupo de atividades vinculadas a conteúdos de análise linguística que
merecem ser exploradas em suas aulas: ela dá preferência aos exercícios que se centrem nos usos
linguísticos e que partam dos conhecimentos prévios dos alunos para propor questões que os
levem, pouco a pouco, à construção dos conceitos abordados.
Os procedimentos didáticos adotados pela PR na construção de sua prática quanto ao eixo
da análise linguística não estão filiados a uma única concepção teórica da professora, mas variam
segundo as condições concretas do ambiente de trabalho e a natureza dos conteúdos de ensino.
No tratamento dos conhecimentos linguísticos, ela envereda ora pela perspectiva
sociointeracionista (cf. GERALDI, 1991, 1996), ora pela perspectiva tradicional de ensino de
gramática. Em ambos os casos, pudemos notar um esforço em articular as reflexões propostas ao
texto (sobretudo, ao gênero textual), seja instigando uma atitude investigativa ante os fenômenos
estudados e enfocando os efeitos de sentido decorrentes dos usos linguísticos, seja fazendo do
texto um pretexto para explorar aspectos normativos da língua. No tocante ao uso de materiais
didáticos, apesar dos comentários ao longo da entrevista inicial acerca do papel do livro didático
na construção da prática de ensino, esse recurso não foi utilizado nas aulas observadas, tendo a
PR elaborado fichas de aula para guiar o trabalho com os três conteúdos de ensino abordados (a
carta do leitor, a concordância verbal e a ortografia).
A despeito da heterogeneidade constitutiva da prática da PR (cf. TARDIF, 2002), é
possível detectar alguns padrões gerais de ação na condução de atividades de análise linguística.
Um primeiro ponto é a tentativa de situar os fenômenos linguísticos estudados em circunstâncias
concretas de interação verbal (cf. GERALDI, 1991, 1996). É curioso notar que a PR o faz mesmo
quando opta pela frase como unidade de análise, como ocorreu na introdução ao estudo da
concordância verbal e na sistematização dos conhecimentos acerca desse mesmo conteúdo por
meio dos fragmentos das cartas do leitor. Essa atitude nos parece indicativa de que a PR valoriza
fortemente a busca pelo afastamento do artificialismo das práticas de linguagem típicas do ensino
tradicional de língua materna. Corrobora essa impressão a iniciativa de levar alguns dos textos
lidos em sala de aula no suporte em que circulam socialmente e as longas conversas introdutórias
338
sobre o contexto social mais amplo e sobre os aspectos extralinguísticos implicados na produção
das cartas do leitor em associação com as escolhas linguísticas do locutor.
Outro ponto de destaque é a primazia da metodologia construtivo-reflexiva, através da
qual os alunos são instigados a produzir conhecimentos sobre os fenômenos estudados a partir da
observação de seu funcionamento em contextos particulares. A PR demonstra, em sua atuação,
valorizar o processo reflexivo de construção conceitual dos alunos, ainda que ele não coincida
com o percurso e os resultados das reflexões dos especialistas. No estudo da carta do leitor e da
concordância verbal, a culminância das reflexões mediadas durante a aula era a sistematização do
conteúdo por escrito, evidenciando-se um movimento que vai da epilinguagem à metalinguagem
(cf. FRANCHI, 2013 [1987]; GERALDI, 1991, 1996). A predominância da elaboração
progressiva dos conceitos linguísticos não significava, no entanto, a ausência de momentos de
exposição teórica por parte da PR, pois ela, muitas vezes, sentia a necessidade de complementar
de forma mais diretiva e imediata os comentários dos alunos com informações por eles
desconhecidas, o que aconteceu principalmente durante o trabalho com a carta do leitor.
A última característica relevante aos propósitos de nossa pesquisa que gostaríamos de
assinalar sobre a prática de ensino desenvolvida pela PR diz respeito à mobilização das
nomenclaturas que designavam os fenômenos linguísticos abordados em sala de aula. Ela não
concebia o domínio da metalinguagem gramatical como parâmetro do aprendizado dos alunos
acerca da língua, mas, ao mesmo tempo, não abria mão de apresentar-lhes as terminologias
técnicas, principalmente quando essa nomeação era uma etapa necessária à compreensão de um
dado conceito (como, por exemplo, quando precisou referir-se ao sujeito para dar continuidade à
elaboração da regra geral da concordância verbal). Em suma, a metalinguagem não era o
conhecimento final a ser assimilado, mas era parte integrante da reflexão sobre um fenômeno da
língua, favorecendo a explicitação verbal do saber estudado (cf. MENDONÇA, 2006).
Destoa de todo o padrão geral da atividade de ensino da PR apontado até aqui a
abordagem da ortografia, pois, nessas aulas, a PR utiliza a palavra como unidade de análise,
disponibiliza previamente para os alunos as regras ortográficas e seus respectivos exemplos já
prontos em uma ficha teórica, limita o diálogo com os alunos à repetição do conteúdo do material
didático (metodologia transmissiva), solicita-lhes ações essencialmente reprodutoras (cópia e
memorização), baseia-se no tripé definição-exemplificação-exercitação para conduzir seu fazer
pedagógico e avalia a aprendizagem dos alunos através de dois exercícios pontuais fortemente
339
associados ao ensino tradicional de língua materna (ditado de palavras e prova escrita centrada na
aplicação de regras gramaticais). A escolha desse caminho didático, entretanto, não se explica por
um desconhecimento da PR acerca da possibilidade de induzir a construção gradativa das regras
ortográficas focalizadas numa atitude colaborativa entre ela e seus alunos, semelhante ao que
sugerem estudiosos do ensino da ortografia (cf. PESSOA, 2012) e ao que ela própria procurou
fazer no trabalho com os demais conteúdos de análise linguística. Na entrevista inicial e em
conversa ao final da aula, a PR afirma acreditar que as questões ortográficas demandam uma
abordagem didática tradicional e demonstra ter validado essa forma de ensinar ao longo do
exercício da docência por entendê-la como adequada às necessidades de aprendizagem da turma.
Com uma forte necessidade de remeter suas concepções teóricas a situações vivenciadas
na prática profissional, o PJ dedica-se principalmente ao aprimoramento das habilidades de
leitura de seus alunos, embora defenda, num plano ideal, uma função mais ampla para o ensino
de língua materna: possibilitar aos alunos o uso da língua como instrumento de comunicação.
Apesar de sugerir um vínculo de exterioridade entre os sujeitos e a linguagem, o PJ tanto faz
referência às práticas de linguagem em que o indivíduo se engaja para interagir e produzir
sentidos quanto as transpõe para a sala de aula por meio da organização do ensino nos três eixos
didáticos propostos por Geraldi (1997b [1984], 1991, 1996). Nesse contexto, as práticas de
análise linguística são por ele entendidas no elo que forçosamente estabelecem com os demais
eixos de ensino (leitura e produção de texto), ou seja, com os usos linguísticos. No tocante
especificamente ao diálogo com a leitura, o PJ explica que a mobilização da estrutura da língua
gera impactos na produção de sentidos dos textos e que, por isso, aprender a analisar essa
estrutura nos seus diversos níveis (fonológico, morfológico, sintático, semântico e pragmático)
pode expandir a relação do aluno com o texto escrito de modo que eles reflitam sobre os recursos
linguísticos e utilizem-nos em favor de seus objetivos de comunicação.
Para alcançar esses objetivos de ensino, o PJ afirma contemplar em sua prática docente a
abordagem de todos os eixos de ensino, ainda que o trabalho com a leitura assuma um peso
maior. Geralmente, o percurso didático dessas aulas segue a ordem leitura/análise
linguística/produção de texto. Os dados da entrevista inicial mostram que o PJ considera
desejável a presença constante de textos na aula de português. Entretanto, o docente alude a
limitações físicas e estruturais da escola e da profissão como responsáveis pela redução do espaço
que o texto ocupa em suas aulas. Essa situação o leva a apostar no livro didático como núcleo
340
orientador do ensino ou a se valer de atividades mais curtas que possam ser copiadas no quadro.
Por isso, não é raro que o PJ se utilize de fragmentos de texto ou mesmo de frases como ponto de
partida para o estudo de um dado conteúdo de análise linguística.
A organização da prática do PJ, segundo ele relata, costuma girar em torno de um gênero
textual, a partir do qual as atividades vinculadas a todos os eixos didáticos são propostas.
Inclusive, o PJ considera produtiva a exploração de recursos linguísticos que ampliem a
compreensão do aluno sobre o funcionamento do gênero trabalhado (cf. MENDONÇA, 2007b).
Para articular análise linguística e leitura, segundo declara na entrevista inicial, ele procura partir
da interpretação global do texto para o estudo de aspectos linguísticos mais pontuais que
contribuam para a sua compreensão.
As reiteradas ocasiões em que manifestou, ao longo da entrevista inicial, sua anuência ao
diálogo do eixo da análise linguística com a leitura e com a produção de textos não implicam a
concretização de uma prática de ensino uniforme, integralmente condizente à perspectiva
sociointeracionista. De acordo com os dados da entrevista inicial, pudemos perceber que eram
três as principais razões que o impulsionavam a uma abordagem didática tradicional: dificuldades
operacionais na efetivação de seu ideal de ensino, a validação de alguns dispositivos pedagógicos
como decorrência de sua experiência docente e a orientação tradicional de sua formação pré-
profissional. A opção por um percurso didático tradicional também dependia, em larga escala, do
modo como o PJ avaliava o próprio andamento da aula, sobretudo quanto às reações dos alunos.
Essa avaliação definia se a construção dos conceitos linguísticos seria realizada através de uma
metodologia construtivo-reflexiva ou transmissiva. Inferimos dos relatos práticos do PJ algumas
variáveis que regulavam a escolha pela via expositiva: o insucesso numa primeira abordagem
construtivo-reflexiva ou na busca por uma alternativa entendida como inovadora, os objetivos
delimitados para a atividade e a natureza do objeto de ensino.
Em relação à metalinguagem, o PJ considera uma falsa questão o dilema sobre sua
presença ou não na aula de português (cf. MENDONÇA, 2006; SUASSUNA, 2012). Para ele, o
domínio da metalinguagem por si só não tem significado para a aprendizagem da língua. Por isso,
as nomenclaturas integram as atividades propostas e os diálogos de aula como ferramentas para a
reflexão sobre o funcionamento dos fenômenos linguísticos. Essa postura, segundo afirma o PJ,
reflete a elaboração das provas avaliativas, nas quais ele não requer dos alunos a simples
341
memorização de categorias gramaticais, e sim a mobilização dos conceitos estudados para a
compreensão dos textos escolhidos.
O planejamento da prática do PJ ocorre de forma pouco sistemática e pouco detalhada,
pois ele limita-se a procurar em casa os textos que servirão de base para o desenvolvimento das
aulas e a pensar nos aspectos passíveis de serem tematizados com a turma, sem fazer quaisquer
apontamentos por escrito a esse respeito. Até mesmo as anotações teóricas que escreve no quadro
para sistematizar os conhecimentos estudados são elaboradas no momento mesmo da aula. Para
pesquisar os textos explorados em sala de aula, o PJ recorre a uma compilação por ele arquivada,
a livros de literatura, a livros didáticos e à internet, levando em consideração principalmente os
seguintes critérios de escolha: o gênero em estudo, o tema abordado, o gosto dos alunos e o
conteúdo de ensino (em geral, aqueles vinculados ao eixo da análise linguística). A valorização
deste último aspecto é tão forte que, quando não encontra textos que favoreçam a abordagem de
um determinado conteúdo, o próprio PJ elabora textos ou fragmentos de texto exclusivamente
pensados para a execução do trabalho previsto.
A definição dos conteúdos de análise linguística a serem trabalhados e das ações
constitutivas da aula é feita com base na sequência proposta pelo livro didático. As características
da coleção elogiadas pelo PJ revelam pistas importantes sobre seu ideal de ensino e sobre a
perspectiva que ele gostaria de implementar em suas aulas através da adoção da obra em questão.
São elas: a construção gradativa e a sistematização final dos conceitos linguísticos, o estudo dos
gêneros textuais, a presença abundante de textos e o equilíbrio entre os vieses tradicional e
sociointeracionista no tratamento dos conhecimentos linguísticos. A despeito da valorização da
proposta do livro didático e da centralidade desse recurso na construção da atuação profissional
do PJ, ele sempre pondera sobre a viabilidade prática de abordar os componentes curriculares tais
como sugeridos no livro didático antes de levar as atividades para a sala de aula. Essa avaliação
tem como parâmetros o estágio de conhecimento da turma em relação ao conteúdo estudado, seu
perfil de aprendizagem e suas necessidades de aprendizagem.
Os procedimentos didáticos da prática do PJ quanto ao eixo da análise linguística oscilam
entre a perspectiva sociointeracionista e o ensino tradicional de gramática, sem a predominância
de um ou outro viés. Contudo, ao longo do trabalho com os advérbios, havia quase sempre – em
maior ou menor grau – uma preocupação em alertar os alunos sobre o funcionamento desses
elementos linguísticos em textos concretos, ainda que nem sempre o texto estivesse presente
342
durante as reflexões e ainda que alguns dos comentários sobre os efeitos de sentido decorrentes
do uso dos advérbios fossem um tanto genéricos e até equivocados do ponto de vista teórico.
Embora tenhamos verificado, numa visão panorâmica da prática de ensino do PJ, uma
atenção relativamente constante ao texto na abordagem dos conhecimentos linguísticos, a
unidade de análise em torno da qual as reflexões eram realizadas variava no decorrer das aulas:
ora o ponto de partida era um texto, ora um fragmento de texto, e às vezes até frases isoladas.
Assim, pudemos presenciar tanto a instauração de práticas de linguagem efetivas na aula do PJ
(cf. GERALDI, 1997c [1984], 1991) quanto uma simulação delas, tal como no ensino tradicional
de língua materna. Em todos os casos, os procedimentos didáticos do PJ movimentavam-se da
epilinguagem para a metalinguagem (cf. FRANCHI, 2013 [1987]; GERALDI, 1991, 1996).
Como já vimos, entretanto, nem sempre a epilinguagem se constituía como continuidade de uma
atividade linguística autêntica.
O PJ procurava mediar reflexões linguísticas por meio de uma metodologia construtivo-
reflexiva, tendo em vista que, em vez de trazer os conceitos prontos para os alunos, fazia-lhes
questionamentos que possibilitassem a construção gradativa do conceito estudado. Porém
dificilmente as respostas dos alunos lhe permitiam dar prosseguimento à linha de raciocínio que
havia planejado, de modo que, na maioria das vezes, ele mesmo acabava respondendo às próprias
indagações. Ou seja, havia um interesse do PJ em instigar uma atitude investigativa nos alunos
que desaguasse na produção de conhecimentos, semelhante ao que recomenda Geraldi (1991,
1996) em seu projeto de renovação pedagógica para o ensino de português. Na prática, o PJ não
conseguia concretizar esse desejo e acabava fazendo ele próprio as análises que tentava conduzir.
Ainda em relação à (re)produção de conhecimentos, cabe salientar que o PJ centrava as reflexões
linguísticas de suas aulas predominantemente nos saberes historicamente produzidos pela
tradição gramatical, raramente colocando em xeque as definições e conceituações tematizadas.
Se contrastados aos princípios teóricos e às práticas pedagógicas que fundamentavam o
ensino tradicional de língua materna, os dados da pesquisa como um todo indiciam a
implementação de mudanças significativas quanto à abordagem dos conhecimentos linguísticos
na escola. Parece haver, ao menos nas atuações docentes investigadas, um esforço constante em
se adequar às principais orientações teórico-metodológicas relacionadas ao eixo da análise
linguística (cf. BRASIL, 1998; GERALDI, 1997a [1984], 1997b [1984], 1991, 1996;
MENDONÇA, 2006), principalmente no que dizem respeito: à convergência das reflexões
343
linguísticas propostas para a compreensão dos sentidos atribuíveis aos textos ou para o estudo das
particularidades dos gêneros textuais quanto à sua estrutura e à sua funcionalidade; à instauração
de uma atitude investigativa entre os alunos na direção da construção gradativa de conhecimentos
com a mediação do professor; ao enfoque no desenvolvimento de atividades epilinguísticas para a
abordagem dos conteúdos de análise linguística; à mobilização da metalinguagem gramatical
como etapa posterior às atividades epilinguísticas, em geral com o objetivo de sistematizar o
conhecimento estudado ou de aprimorar a capacidade de verbalizar o funcionamento de um dado
fenômeno linguístico; à localização das unidades linguísticas analisadas no âmbito de
circunstâncias concretas de interação verbal.
Até mesmo algumas ocasiões em que foram mobilizados dispositivos pedagógicos
tipicamente tradicionais reforçam o empenho dos professores em inovar o tratamento didático
dos conhecimentos linguísticos, haja vista as motivações que, por vezes, amparavam a escolha
por uma via tradicional de ensino (o insucesso numa abordagem textual-discursiva ou
construtivo-reflexiva anterior e as dificuldades em encontrar um caminho para abordar os
conhecimentos linguísticos na perspectiva da análise linguística) e certo mascaramento do caráter
tradicional de determinadas atividades propostas (a criação de um contexto de produção
hipotético para frases isoladas, por exemplo).
Assim, foi possível constatar uma busca contínua de articular análise linguística e leitura
através do enfoque nos efeitos de sentido provocados pelo uso dos elementos linguísticos
estudados. Não obstante, houve também situações em que as reflexões linguísticas propostas só
se vinculavam ao texto por terem como base alguns de seus fragmentos, sem que contribuíssem
efetivamente para a sua compreensão global – o que significa dizer que o texto era utilizado
como pretexto para o ensino de gramática. Em geral, isso acontecia ou porque o professor
enxergava nesse caminho didático a possibilidade de ampliar a compreensão do aluno acerca do
texto ou do fragmento lido (como nas atividades de identificação e classificação de advérbios e
de locuções adverbiais quanto às circunstâncias indicadas) ou porque a natureza do fenômeno
linguístico estudado não dava margem à exploração de repercussões quanto à produção de
sentidos (como no estudo da concordância verbal).
Todo esse esforço não implicou, como já vimos, a concretização de práticas de ensino
homogêneas, integralmente condizentes a uma única perspectiva teórica (o sociointeracionismo).
Se os saberes teóricos oriundos da formação inicial e continuada condicionavam a busca desses
344
professores pela inovação pedagógica, eram os imperativos imediatos da sala de aula e as
experiências profissionais prévias que determinavam os contornos reais da atividade docente.
Nesse sentido, algumas práticas tradicionais de ensino de gramática eram validadas pelos
professores após serem mobilizadas na construção cotidiana do ofício porque eram avaliadas
como adequadas às necessidades de aprendizagem da turma (“funcionavam”, nos termos do PJ) e
porque traziam melhores resultados diante das condições concretas da atuação dos professores
em sala de aula. Os exemplos mais representativos dessa validação prática foram a condução do
estudo da ortografia pela PR e a detalhada conjugação verbal demandada pelo PJ a seus alunos,
uma vez que a orientação tradicional com que os professores propuseram esses trabalhos adveio
de escolhas conscientes pautadas nos resultados de abordagens didáticas prévias, a despeito de
eles estarem cientes das duras críticas que as instâncias acadêmicas costumam fazer ao tipo de
trabalho desenvolvido. Os professores, portanto, ao definirem os fazeres ordinários constitutivos
de suas práticas de ensino, comprometem-se com uma coerência de ordem pragmática, e não
necessariamente teórica (cf. TARDIF, 2002; CHARTIER, 2000a, 2007).
É evidente que esta pesquisa não pretendeu esgotar a discussão sobre a temática
investigada. Procuramos, a partir da análise minuciosa da atividade profissional de dois
professores da educação básica, trazer algumas contribuições para se entender o atual panorama
do ensino de língua materna, especificamente no tocante ao eixo da análise linguística, e para que
se possam vislumbrar alternativas didáticas produtivas para a abordagem dos conhecimentos
linguísticos na escola por uma via sociointeracionista de ensino. Dada a incompletude intrínseca
a toda investigação acadêmica, acreditamos que este trabalho abre caminho para novos estudos
acerca das práticas escolares de análise linguística. Além da já mencionada demanda por outras
pesquisas que lancem luz sobre a interseção aqui focalizada nos mais diversos níveis de ensino,
acreditamos ser de extrema relevância investigar os caminhos para se articular a reflexão
linguística ao eixo da produção de textos e às práticas orais de linguagem. Outra possibilidade
profícua é a realização de uma pesquisa-ação para aprimorar as possibilidades práticas de
trabalho com o eixo da análise linguística (inclusive quanto aos aspectos normativo-sistêmicos,
em relação aos quais parece haver certa hesitação por parte dos profissionais engajados na
viabilização de um caminho fundamentado no sociointeracionismo), uma vez que esse tipo de
pesquisa permite apostar na necessária (mas, por vezes, ainda problemática) colaboração entre
pesquisadores universitários e professores da escola básica.
345
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352
APÊNDICE A – Roteiro para a seleção dos professores
1) Descrição geral da prática:
- Como planeja?
- Como é a dinâmica de trabalho? Que tipos de atividades propõe?
- Como a organiza em relação aos eixos de ensino?
2) Livro didático adotado:
- Com que frequência utiliza? Qual é o espaço que tem na prática?
- Que opinião tem acerca da proposta? Quais os pontos fortes e fracos?
- Como é o trabalho com análise linguística/gramática do livro? Que opinião tem sobre?
- Exemplos de atividades já trabalhadas.
3) Eixo da análise linguística:
- Como é o trabalho em sala de aula?
- Que conteúdos prioriza?
- Articula com a leitura? De que forma?
- Qual o espaço dos conceitos da gramática tradicional? Como são trabalhados?
- Exemplos da prática.
4) Planejamento:
- O que está sendo trabalhado? Como?
- O que será trabalhado nos próximos meses? Como?
5) Formação acadêmica e experiência profissional:
- Quando e onde se graduou?
- Fez pós-graduação? Quando? Onde?
- Há quanto tempo atua como professor? E na rede pública?
- Quais as experiências profissionais que teve com o ensino?
- Como se dá a formação continuada?
353
APÊNDICE B – Roteiro da entrevista inicial
1) Como você descreveria as suas aulas? Como você as organiza em relação aos eixos de ensino
(leitura, produção de textos e análise linguística)?
2) Para você, qual é o objetivo das aulas de língua portuguesa?
3) Qual é o espaço que o texto tem nas suas aulas? Em que situações ele aparece?
4) Como é a sua dinâmica de trabalho em relação à leitura na sala de aula? E que tipos de
atividades você propõe para explorar a leitura dos textos que leva para a sala de aula?
5) Você trabalha com gêneros textuais? Se sim, como você realiza esse trabalho? Você poderia
dar um exemplo?
6) Quais os critérios que você utiliza para escolher os textos que serão trabalhados em sala de
aula? O que você prioriza nessa escolha? Em que fontes você busca esses textos?
7) Como é o seu trabalho em relação ao eixo da análise linguística?
8) Na sua opinião, qual é o objetivo desse eixo de ensino?
9) Você acha que muita coisa mudou em relação a esse eixo de ensino do tempo em que você era
aluno para cá? Que diferenças você vê? E o que pensa delas?
10) Como você seleciona os conteúdos de análise linguística que serão trabalhados em sala de
aula?
11) Você utiliza textos nas aulas de análise linguística? De que forma explora esses textos? Você
poderia dar um exemplo de como você trabalha algum conteúdo de análise linguística a
partir de textos?
12) Qual é o espaço que a metalinguagem tem em suas aulas? Que papel ela tem para a
aprendizagem dos alunos?
13) Qual é o espaço que as práticas consideradas mais tradicionais quanto ao ensino da gramática
têm em sua aula?
14) Como você lida diante do aparente conflito que se instaurou entre a longa tradição de práticas
pautadas na gramática tradicional e as atuais orientações para o eixo da análise linguística?
15) Quais as principais dificuldades que você encontra em sua prática para ensinar análise
linguística e leitura? De que forma você busca superar essas dificuldades?
16) Que papel o livro didático tem na sua prática de ensino? Como você avalia a proposta do
livro didático adotado em relação à análise linguística?
354
APÊNDICE C – Registro descritivo das aulas 2 e 3 da PR (carta do leitor)
27/10/15 – Aulas 2 e 3
3ª feira – 4ª e 5ª aulas (10h20 – 12h)
Frequência: 18 alunos
10h35 – A professora cumprimenta os alunos e organiza a sala de aula (abre as janelas, ajusta o
ventilador, arruma o material na banca).
10h40 – A professora explica aos alunos o objetivo da aula: começar a falar um pouco sobre o
gênero carta. A professora pergunta aos alunos quem já escreveu uma carta. Os alunos
levantam as mãos e a professora vai questionando de um por um sobre suas experiências
(para quem foi a carta, quando foi a carta, qual era o objetivo da carta). A professora vai
anotando no quadro alguns pontos relacionados às respostas dos alunos.
10h42 – A partir das respostas, a professora chama atenção dos alunos para a existência de mais
de um tipo de carta: de reclamação, pessoal, de solicitação.
10h43 – A professora pergunta aos alunos se eles já escreveram uma carta para o jornal. Os
alunos falam sobre a experiência de terem sido fontes em uma matéria de jornal quando
eles estudavam numa outra escola. A professora ouve e pergunta sobre essa experiência.
Mas novamente volta a focar na carta. Aparentemente, ninguém escreveu para jornal.
10h45 – A professora pergunta se os alunos gostam de ler revistas e de quais revistas eles gostam.
Uma aluna fala sobre revista de moda e de fofoca; outro aluno fala sobre história em
quadrinhos. A professora, então, vai citando algumas revistas e perguntando se os alunos
conhecem ou já leram essas revistas (Superinteressante, Época, etc.).
10h47 – A professora pergunta se eles já viveram a experiência de ler uma matéria e se interessar
tanto por ela a ponto de enviar uma carta para a revista. A maioria dos alunos não sabe
que existe essa possibilidade. A professora, então, começa a falar sobre a carta do leitor.
Explica o funcionamento social da carta. Pergunta o que os alunos acham de as revistas
dedicarem uma seção para as cartas dos leitores.
10h48 – A professora comenta que, hoje em dia, é mais comum se comunicar através do e-mail,
inclusive para escrever cartas do leitor. Ela conta um pouco de sua experiência com
cartas quando era mais jovem e compara com o uso do e-mail nos dias de hoje.
355
10h49 – A professora escreve no quadro o que significa o termo “e-mail”.
10h50 – A professora comenta brevemente a discussão acerca de o e-mail ser um gênero ou um
suporte, pautada na possibilidade de se enviar, através do e-mail, textos de outros
gêneros (textos publicitários, por exemplo).
10h51 – Alguns alunos mencionam outros meios eletrônicos de envio de mensagens online: o
WhatsApp, o Facebook, etc. A professora comenta brevemente a diferença quanto ao
uso desses meios.
10h52 – A professora reafirma a existência de vários tipos de carta, mas afirma que, neste
momento, eles irão se ater à carta do leitor. Apaga os demais tipos de carta que havia
elencado no quadro e deixa apenas o termo “carta do leitor” à mostra.
10h53 – A professora pergunta aos alunos se eles acham que todas as cartas enviadas para as
revistas e os jornais são publicadas. Um aluno diz que não. A professora pergunta por
quê. O aluno diz que são muitas.
10h54 – A professora comenta com os alunos sobre uma experiência de trabalho com outra turma
em que os alunos escreveram cartas do leitor para a revista Veja e uma das cartas foi
publicada.
10h55 – A professora fala sobre a periodicidade de publicação das revistas e justifica essa
periodicidade a partir da durabilidade do material. Relaciona essa durabilidade com o
tipo de material que é utilizado para a confecção da revista e com o tipo de texto que é
publicado nas revistas.
10h57 – A professora compara as cartas do leitor publicadas em revistas e em jornais. Comenta
que o jornal é publicado diariamente e que, por isso, o volume de cartas que é enviado é
maior, o que faz com que a chance de a carta do leitor ser publicada no jornal seja maior
do que na revista.
10h58 – A professora volta a comentar sobre a experiência das alunas que tiveram sua carta
publicada na revista Veja. Ela afirma que, quando a carta foi publicada, algumas
modificações foram feitas em relação ao texto original. A professora explora com os
alunos as razões que fizeram isso acontecer (“melhorar” o texto, adequar o texto ao
espaço disponível para a seção de cartas).
11h00 – A professora mostra aos alunos as capas de três revistas que ela trouxe para a aula: um
exemplar da revista Horizonte Geográfico, um exemplar da revista Continente e um
356
exemplar da revista Ciência Hoje das Crianças. Pede aos alunos que observem as capas e
digam quem eles acreditam ser o público-alvo das revistas. Os alunos levantam suas
hipóteses. A partir das respostas dos alunos, a professora faz algumas perguntas sobre o
tipo de linguagem que eles esperam encontrar na seção de cartas do leitor.
11h03 – A professora diz que eles folhearão as revistas para confirmarem ou não as hipóteses
discutidas.
11h04 – A professora vai folheando a revista Continente para os alunos. Pergunta se os alunos
reconhecem a figura presente na capa (um desenho do escritor Ariano Suassuna, em
homenagem aos quarenta anos do movimento armorial). Alguns alunos reconhecem. A
professora mostra o sumário da revista para os alunos e fala um pouco sobre a sua
organização. Continua a folhear e mostra a página da carta ao leitor. Explica brevemente
do que se trata e diz que eles não vão, neste momento, se ater a esse tipo de carta. Em
seguida, a professora mostra a seção dedicada às cartas do leitor. Alguns alunos afirmam
que o espaço é muito restrito.
11h08 – A professora diz aos alunos que a revista que tem em mãos é de outubro e que a revista é
de publicação mensal. Pergunta, então, aos alunos quando foi publicada a reportagem à
qual a carta do leitor se refere. A partir das respostas dos alunos, a professora explica
que as cartas do leitor se referem a textos da publicação anterior.
11h09 – A professora anuncia que vai ler a carta do leitor publicada na revista que tem em mãos e
a resposta da revista. Também explica para os alunos que nem toda revista responde às
cartas do leitor.
11h10 – A professora explica que, na carta do leitor, alguns elementos tradicionalmente
associados à carta são suprimidos quando publicados (saudação, localização, data, etc.) a
depender do padrão determinado pela revista.
11h11 – A professora mostra o título que foi dado à carta e a imagem que a revista utilizou para
ilustrá-la. Ela explora o porquê da presença desses elementos.
11h12 – A professora lê em voz alta a carta do leitor publicada na revista.
11h13 – A professora pergunta aos alunos para que o leitor escreveu a carta para a revista. A
professora vai ouvindo as respostas dos alunos, complementando-as e, em seguida,
fazendo mais perguntas. A professora chama a atenção para a solicitação feita pelo
leitor: mais espaço para o teatro pernambucano.
357
11h15 – A professora lê a resposta que a revista deu ao leitor. Pergunta aos alunos se a revista
valorizou a carta que o leitor enviou. Os alunos afirmam que sim. A professora pergunta
sobre o teor da resposta e vai explorando as respostas dos alunos.
11h16 – A professora folheia a revista Horizonte Geográfico para os alunos. Mais uma vez,
mostra o sumário e, em seguida, abre na seção dedicada à carta do leitor. A professora
estabelece algumas comparações entre essa revista e a revista Continente anteriormente
folheada: quanto ao espaço dedicado a essas cartas, à quantidade de cartas publicadas e
às respostas dadas. A professora também mostra aos alunos o título da seção (“Horizonte
do leitor”) e estabelece uma relação entre o nome da seção e o título da revista.
11h18 – A professora anuncia que lerá uma das cartas enviadas por um leitor. Lê em voz alta para
os alunos e, em seguida, explora a temática da carta.
11h20 – A professora pergunta qual é a revista que apresenta linguagem mais formal. Os alunos
apontam a primeira. A professora relaciona essa resposta com a idade dos autores das
cartas (a segunda foi escrita por um garoto de doze anos, que elogia uma matéria sobre
as araras azuis e pede para que a revista faça mais publicações como esta).
11h21 – A professora folheia para os alunos a revista Ciência Hoje das Crianças, voltada para o
público infantil. Mostra o sumário aos alunos e, ao passar as folhas, não encontra a seção
dedicada à carta do leitor. Explica, então, que nem sempre as cartas do leitor vêm no
início da revista. Neste caso, elas aparecem nas páginas finais.
11h23 – A professora lê os títulos das cartas do leitor que foram publicadas no exemplar da
Ciência Hoje das Crianças e pede para que os alunos escolham uma para ser lida por ela.
Faz uma votação e lê a carta mais votada pelos alunos. Em seguida, lê a resposta da
revista.
11h24 – A professora pergunta para que a leitora escreveu a carta lida. Também pergunta de que
trata a carta. Alguns alunos respondem e a professora complementa essas respostas.
11h25 – A professora pergunta a idade da autora da última carta (é uma criança de treze anos). A
professora compara a linguagem utilizada nessa carta com a linguagem utilizada nas
demais revistas exploradas quanto ao grau de (in)formalidade. Depois, ela explica que, a
depender do público-alvo da revista, o tipo de linguagem utilizado, inclusive nas
matérias, se modifica.
358
11h27 – Os alunos ficam interessados na matéria comentada pela autora da carta lida (sobre como
as lagartixas perdem o rabo). Eles pedem para a professora ler. Ela afirma que há vários
exemplares da revista Ciência Hoje das Crianças na biblioteca e que eles podem visitá-la
para descobrir como as lagartixas perdem o rabo.
11h29 – A professora divide o quadro em duas partes. Na primeira, escreve: “O que aprendemos
sobre carta do leitor”. Ela relembra que, durante a aula, foram discutidos vários
elementos da carta do leitor. Ela pede que os alunos se dividam em duplas e escrevam
em tópicos, com as palavras deles, o que aprenderam sobre a carta do leitor na aula do
dia.
11h31 – A professora se senta no birô para fazer a chamada e aguarda os alunos fazerem o
exercício.
11h33 – Alguns alunos perguntam em quantas linhas devem fazer a atividade. A professora diz
que não estabelecerá limite de linhas porque ela quer que eles escrevam tudo o que eles
se lembram da aula.
11h48 – A professora vai liberando os alunos que concluem a atividade. Alguns passam em sua
banca para mostrar o que fizeram e ela faz algumas correções.
12h – Fim da aula.
359
APÊNDICE D – Registro descritivo da aula 4 da PR (carta do leitor)
28/10/15 – Aula 4
4ª feira – 3ª aula (9h10 – 10h)
Frequência: 13 alunos
09h20 – A professora chega à sala e percebe que há poucos alunos presentes. Os alunos explicam
que alguns deles foram levados para assistir a aulas do projeto Mais Educação. A
professora explica à pesquisadora que se trata de um projeto que deveria funcionar no
contraturno e que o foco das aulas é a consolidação da alfabetização. Além disso, ela
entende que a aula dela própria é mais voltada para o letramento dos alunos. Pede, então,
a alguns alunos para solicitar que os colegas sejam mandados de volta para a aula dela.
Os alunos voltam.
09h25 – A professora distribui uma ficha com cópias de algumas cartas do leitor. Diz aos alunos
que eles lerão os textos juntos.
09h28 – A professora lembra aos alunos que, na aula anterior, foi iniciado o estudo de um gênero
textual chamado carta do leitor.
09h29 – A professora comenta o contexto de produção da carta 1. Diz que a carta foi escrita em
Carapicuíba – que fica no interior de São Paulo –, em 31 de março de 2014, por alunos
de uma turma de sétimo ano.
09h30 – A professora pergunta se a carta foi publicada em revista ou em jornal. Os alunos
respondem que a carta foi publicada em uma revista: na revista Recreio. A professora
pergunta se os alunos conhecem essa revista. Alguns afirmam que sim, e outros que não.
09h31 – A professora explica o passo a passo que provavelmente levou os alunos dessa turma a
escreverem uma carta coletiva para a revista Recreio. A professora explica que a turma
também chegará a essa etapa ao final do trabalho com a carta do leitor. Ela explica que
eles poderão escolher a revista para a qual a carta será enviada.
09h33 – A professora lê em voz alta a carta 1. Em seguida, pergunta se os alunos gostaram da
carta e pergunta como é a linguagem da carta. Os alunos dizem que gostaram e apontam
algumas palavras que apontam uma linguagem típica dos jovens. A professora explica
que os alunos produzirão uma carta como esta para uma revista.
360
09h36 – A professora pergunta qual foi o objetivo da carta. Os alunos afirmam que foi
“agradecer”. A professora vai fazendo mais perguntas a fim de que os alunos
complementem essa resposta. Eles afirmam que o objetivo também foi elogiar a revista.
A professora pede que os alunos identifiquem trechos da carta que mostrem esse elogio.
Os alunos citam alguns trechos.
09h37 – A professora pergunta se a carta foi escrita com mais algum objetivo. Os alunos
respondem que a turma escreveu a carta para solicitar que a revista publique uma
matéria sobre como são produzidos os lápis de cor. A professora pergunta se essa é uma
solicitação que condiz com o tipo de publicação da revista Recreio. Os alunos
respondem que sim e justificam. A professora pergunta se os alunos gostariam de ler
uma matéria sobre esse tema. Os alunos afirmam que sim.
09h39 – A professora pergunta se os alunos desejam fazer mais algum comentário sobre a
primeira carta. Os alunos afirmam que não.
09h40 – A professora, então, começa a trabalhar com a carta 2. A professora pergunta por quem e
quando a carta foi escrita. Os alunos respondem e a professora pede que os alunos
mostrem no texto como chegaram à resposta.
09h41 – A professora lê em voz alta a carta 2. Chama a atenção dos alunos para a falta do uso da
letra maiúscula no início da carta. Em seguida, lê o resto da carta e pergunta aos alunos
qual o objetivo da carta. Eles respondem e ela vai explorando as respostas até eles
chegarem à resposta correta.
09h43 – A professora pergunta qual é o título da reportagem à qual os autores da carta se referem.
Uma aluna responde. A professora pergunta como ela sabe. Um dos alunos chama a
atenção para o uso das aspas. A professora comenta brevemente esse uso.
09h44 – A professora pergunta quando eles leram a reportagem. Os alunos respondem.
09h45 – A professora pergunta o que os autores da carta escreveram sobre a reportagem (que
trata do uso do celular pela escola para fins pedagógicos). Os alunos respondem. Em
seguida, a professora afirma também concordar com a ideia e pergunta o que seria
necessário para que essa proposta fosse realizada. Discute, então, com os alunos sobre a
realidade deles na escola.
09h48 – A professora mostra aos alunos a carta 2 após a publicação no jornal. Ela pergunta o que
mudou depois que a carta foi publicada. Os alunos vão apontando as diferenças que
361
encontram entre a versão original da carta e a carta após edição e publicação. A
professora acrescenta alguns elementos para os quais os alunos não haviam atentado.
09h49 – A professora pergunta por que o jornal colocou letra maiúscula no início da carta.
09h50 – A professora chama atenção para o fato de a carta ter sido publicada como se tivesse
sido escrita apenas pela professora, e não também pelos alunos.
09h51 – Os alunos perguntam por que foi suprimido o ano em que a carta foi escrita. A
professora pergunta aos alunos por que isso aconteceu. Outro aluno responde que todos
já sabiam que ano era aquele no momento da publicação.
09h52 – A professora explica que a carta foi editada.
09h53 – A professora pergunta por que a revista acrescentou algumas informações entre
parênteses. Explica brevemente o uso dos parênteses com base nessa ocorrência.
09h54 – A professora se senta para fazer a chamada e pede para que uma aluna recolha as fichas.
10h – Fim da aula.
362
APÊNDICE E – Registro descritivo das aulas 8 e 9 da PR (concordância verbal)
10/11/15 – Aulas 8 e 9
3ª feira – 4ª e 5ª aulas (10h20 – 12h)
Frequência: 16 alunos
10h40 – A professora cumprimenta a turma. Os alunos organizam a sala.
10h42 – A professora copia as seguintes frases no quadro e diz aos alunos para não as copiarem
nos cadernos: Ana gostou da matéria. // Pedro e Ana gostaram da matéria. // A gente
gostou da matéria. // Nós gostamos da matéria.
10h43 – A professora pede aos alunos que imaginem uma situação em que Ana tenha lido uma
matéria sobre educação inclusiva, que falasse sobre a escola em que os alunos estudam.
Ela simula uma situação em que a professora de Ana fala as frases escritas no quadro.
10h45 – À medida que lê cada frase, a professora pergunta aos alunos de quem a professora
estaria falando. A cada resposta, a professora vai grifando os sujeitos das orações.
10h46 – A professora pergunta que diferenças os alunos percebem nas frases em relação aos
sujeitos de quem se está falando. Os alunos mencionam as palavras nas quais eles
perceberam as diferenças. São os verbos das frases.
10h48 – A professora pergunta que tipo de palavras é esse e dá opções para os alunos escolherem
(adjetivos, advérbios, etc.). Alguns alunos respondem que são verbos.
10h49 – A professora pergunta aos alunos como é que se sabe como escrever esses verbos.
Alguns alunos dizem que eles “combinam” com outras palavras. A professora pergunta
com que palavras eles combinam. Os alunos mencionam os sujeitos das frases (sem
atribuir aos termos essa nomenclatura). A professora vai desenhando setas do verbo para
os sujeitos.
10h50 – A professora explica o que são os sujeitos de uma frase. Em seguida, junto aos alunos,
identifica os sujeitos das frases escritas no quadro.
10h52 – Ela dá outros exemplos oralmente em que os sujeitos não são pessoas e pede aos alunos
que identifiquem os sujeitos. Os alunos identificam.
10h53 – A professora escreve no quadro: Gostei muito da matéria.
363
10h53 – A professora pergunta aos alunos quem é o sujeito da frase. Alguns alunos mencionam o
verbo “gostei”. Outros respondem que o sujeito é “eu”. A professora pergunta como eles
sabem. Eles apontam o verbo. A professora faz o mesmo movimento com outra frase
que escreve no quadro: Gostamos muito da matéria.
10h55 – A professora utiliza alguns exemplos em que o sujeito aparece após o verbo para mostrar
que a posição do sujeito varia na frase: Ontem, chegaram as camisas.
10h56 – A professora escreve no quadro a frase: Ontem as camisas chegou.
10h56 – A professora identifica o sujeito junto aos alunos e pergunta se há algum problema com
o verbo. Em seguida, reflete com eles sobre as situações de interação que demandam um
uso mais monitorado da língua.
10h58 – A professora retoma as frases do início da aula e faz alguns questionamentos para
mostrar que o verbo e o sujeito “combinam”. Ela diz aos alunos que, quando sabemos os
nomes dos termos, fica mais fácil explicar o funcionamento da língua.
11h00 – A professora pergunta aos alunos se “concordar” significa “combinar”. Os alunos dizem
que sim. A professora diz aos alunos que, no livro de gramática, esse assunto se chama
“concordância verbal”. Ela pergunta aos alunos por que esse é o nome do assunto. Os
alunos dizem que é porque os verbos concordam com os sujeitos.
11h02 – A professora distribui uma ficha para os alunos sobre concordância verbal.
11h03 – Na ficha, há trechos das cartas do leitor lidas nas aulas anteriores. Nesses trechos, os
verbos estão grifados. A professora lê os trechos e pede que os alunos atentem para os
termos destacados. Ela pergunta aos alunos o que há de semelhante entre eles. Os alunos
percebem que os sujeitos estão no plural. A professora pede para que eles identifiquem
oralmente os sujeitos (“nós”).
11h07 – A professora pede para que as questões sejam respondidas no caderno e senta-se para
aguardar os alunos fazerem a atividade. Ela passa nas bancas daqueles que a chamam
para tirar dúvidas.
11h20 – A professora pede que os alunos sublinhem os verbos quando fizerem a reescrita dos
trechos da ficha solicitada na questão 1.4 (“Se apenas uma pessoa estivesse falando
nesses trechos, como ficaria cada parte? Re-escreva cada trecho, fazendo as alterações
necessárias.”).
364
11h25 – Os alunos que concluem a atividade passam na banca da professora para que ela faça as
intervenções necessárias.
11h33 – A professora, ao perceber que vários alunos estão escrevendo os verbos conjugados
como se estivessem na forma infinitiva, vai ao quadro explicar aos alunos a diferença a
partir de um exemplo da atividade (“Por isso, decidimos...” / “Por isso, decidi...” /
“Por isso, decidir...”).
11h46 – A professora vai liberando aluno por aluno a partir de uma lista escrita no quadro
segundo a ordem de término da atividade.
11h50 – Fim da aula.
365
APÊNDICE F – Registro descritivo da aula 13 da PR (ortografia)
25/11/15 – Aula 13
4ª feira – 3ª aula (9h10 – 10h)
Frequência: 15 alunos
09h25 – A professora informa aos alunos que já digitou e enviou as cartas ao Diario de
Pernambuco (produção textual das aulas anteriores), porque, como as matérias lidas
datavam do último fim de semana, o envio precisava ser rápido. Ela diz aos alunos que,
na próxima semana, eles farão a reescrita das cartas.
09h27 – A professora distribui entre os alunos uma ficha sobre o uso da letra “s”.
09h30 – A professora começa a ler em voz alta as regras contidas na ficha. Ela interrompe a
leitura a cada conceito que supõe ser desconhecido entre os alunos, como “palavra
derivada”, “radical”, “sufixo”, “ditongo”.
09h40 – A professora explica que, no caso do uso do “s” após os ditongos, é necessário que o “s”
tenha som de “z”. Ela traz o exemplo “foice” para explicar melhor essa regra (usa-se
“c”, e poderia ser “ss”, mas não “s”).
09h45 – A professora alerta os alunos quanto à necessidade de memorizar as regras ortográficas.
09h46 – A professora solicita que os alunos copiem no caderno as regras contidas na ficha.
09h48 – A professora solicita que os alunos estudem a ficha em casa, porque, no dia seguinte,
será realizada uma atividade para nota (cinco pontos referentes ao exercício da ficha e
cinco pontos referentes a um ditado de palavras).
10h – Toca. Fim da aula.
366
APÊNDICE G – Registro descritivo das aulas 14 e 15 da PR (ortografia)
26/11/15 – Aulas 14 e 15
5ª feira – 4ª e 5ª aulas (10h20 – 12h)
Frequência: 16 alunos
10h40 – A professora pede que os alunos arranquem uma folha do caderno para fazerem o ditado
de palavras.
10h43 – A professora dita as palavras e aguarda os alunos escreverem cada uma delas:
analisar [“Vejam que eu não estou ditando “analisa”, eu estou ditando “analisar”]
amoroso
amazonense
paizinho
lapisinho
azeitona
freguês
inglesa
nudez
chinês
10h48 – A professora recolhe as folhas com o ditado.
10h49 – A professora solicita que os alunos respondam à atividade da ficha entregue na aula
anterior.
10h50 – A professora explica aos alunos cada uma das questões e, em seguida, os alunos
começam a responder o exercício.
367
APÊNDICE H – Registro descritivo da aula 2 do PJ (advérbios)
09/10/15 – Aula 2
6ª feira – 5ª aula (17h10 – 18h)
Frequência: 19 alunos
16h55 – O professor copia no quadro as seguintes frases: O criminoso fugiu. // Certamente, o
criminoso fugiu rapidamente daqui hoje.
17h00 – O professor lê a primeira frase e pergunta aos alunos se ela está completa. Alguns alunos
dizem que não. O professor questiona a resposta dos alunos. Uma aluna diz que não há
como ter certeza de que ele fugiu ou de onde ele fugiu, porque a frase não explica.
17h02 – O professor explica que, de acordo com a norma padrão, a frase está completa. Explica o
que são advérbios a partir dos exemplos escritos no quadro.
17h04 – O professor pergunta sobre os tipos de ideia que as expressões do quadro acrescentam ao
verbo e escreve as respostas junto das expressões. Depois, diz que o texto com advérbios
fica “mais completo” e explica as circunstâncias que os advérbios imprimem ao texto.
17h06 – O professor explica que há dois grupos básicos de advérbios (os dêiticos e os terminados
em –mente). Uma aluna questiona o fato de a junção dos adjetivos “certo” e “rápido” à
partícula –mente resultar em “certamente” e “rapidamente” (em tom de brincadeira, diz
que “é uma fraude”). O professor corrige as palavras no quadro para “certa” e “rápida”.
17h10 – O professor pede aos alunos para abrirem os livros na página 95. O professor lê um
trecho do romance “Menino de Asas”. O professor pede aos alunos para identificarem as
expressões indicativas de tempo. Três alunas citam verbos. O professor tenta explicar a
relação dos advérbios de tempo com os verbos mencionados pelas alunas. Depois, pede
aos alunos que identifiquem expressões que indiquem lugar. Uma aluna cita “escola”. O
professor corrige e mostra as expressões que indicam tempo. Pergunta se há palavras no
texto que indicam modo. Explica que, sem as expressões que eles destacaram no texto,
não seria possível visualizar a narrativa. Um aluno concorda e afirma que ele “não vai
nem saber do que se trata”. Os alunos pedem para ele concluir a aula. O professor
pergunta se os alunos já copiaram o que está no quadro. Eles dizem que sim.
17h18 – Fim da aula.
368
APÊNDICE I – Registro descritivo das aulas 3 e 4 do PJ (advérbios)
19/10/15 – Aulas 3 e 4
2ª feira – 4ª e 5ª aulas (16h20 – 18h)
Frequência: 11 alunos
16h24 – O professor copia novamente no quadro as frases que utilizou na aula anterior para
introduzir o estudo dos advérbios: O criminoso fugiu. // Certamente, o criminoso fugiu
rapidamente daqui hoje.
16h27 – O professor relembra, a partir das frases escritas no quadro, o conceito de advérbio que
explicou na aula anterior.
16h30 – O professor fala sobre a falta de utilização dos advérbios nos textos que os alunos
produzem. Comenta que os alunos verão o efeito do uso dos advérbios em um texto que
lerão em seguida no livro didático.
16h32 – O professor explica o que são os advérbios de locação. Comenta que os advérbios não
têm sentido fora de contexto e que o sentido deles se modifica em função dos usos no
texto.
16h34 – O professor explica que nem sempre uma expressão com valor de advérbio é composta
apenas por uma palavra. Exemplifica a partir da frase a seguir: Com certeza, o criminoso
fugiu como uma bala da cadeia em 19.10.15.
16h35 – O professor mostra que as expressões utilizadas desempenham as mesmas funções que
as expressões da frase anterior. Em seguida, afirma que se trata de locuções adverbiais.
16h37 – O professor explora com os alunos as diferenças de sentido entre a primeira frase (com
advérbios) e a segunda frase (com locuções adverbiais). Um aluno pede para que o
professor reexplique por não ter entendido. Outra aluna explica. O professor confirma o
que a aluna explicou. Em seguida, o professor explica novamente o que são locuções
adverbiais e as compara com os advérbios.
16h39 – O professor pergunta se, desta vez, os alunos compreenderam. Eles dizem que sim.
16h40 – O professor faz uma anotação teórica no quadro sobre advérbios e locuções adverbiais e
pede para que os alunos a copiem em seus cadernos.
16h48 – O professor se senta para aguardar os alunos copiarem.
369
17h17 – O professor pede aos alunos que abram os livros na página 95. Relê o trecho de “Menino
de Asas” presente na sexta questão. Relembra que eles já exploraram em aula anterior o
uso dos verbos nesse texto e que, hoje, eles explorarão o funcionamento dos advérbios.
17h20 – O professor relê o primeiro período do fragmento e pergunta que advérbios ou locuções
adverbiais os alunos encontram no texto. Alguns alunos respondem “dia” e “seguinte”,
separadamente. O professor explica que a expressão inteira “no dia seguinte” é que tem
valor de advérbio de lugar. Repete o mesmo procedimento com os demais períodos.
17h23 – O professor chama a atenção dos alunos para os efeitos de sentido que o uso dos
advérbios traz para o texto.
17h26 – O professor pede para que os alunos vão para a página 106. Lê em voz alta o texto da
primeira questão.
17h27 – O professor responde oralmente com os alunos a primeira questão.
17h28 – O professor solicita aos alunos que identifiquem as expressões do texto indicativas de
lugar. Mais uma vez, há alunos que respondem apenas “campo”, “Jordão” (ou mesmo
“cidade”, que não tem valor de advérbio no texto). O professor explica que a locução
adverbial é “no meio de uma rua de Campos de Jordão”.
17h31 – O professor pede aos alunos que localizem as expressões que indicam tempo.
17h32 – O professor chama atenção para o trecho “Por causa do horário, a rua estava deserta e a
onça passou sem problemas.”, em que a expressão em destaque indica causa. O
professor afirma que essa questão será explorada a partir da próxima aula.
370
APÊNDICE J – Registro descritivo da aula 5 do PJ (advérbios)
21/10/15 – Aula 5
4ª feira – 2ª aula (14h20 – 15h10)
Frequência: 19 alunos
14h30 – O professor pede aos alunos que respondam à primeira questão da página 108 do livro
didático. Enquanto isso, passa nas mesas para se certificar de que os alunos estão
fazendo o exercício e também para solicitar que aqueles que estão conversando façam
silêncio. Depois, senta-se no birô para tirar dúvidas de dois alunos. Alguns alunos dizem
não saber fazer a letra “b” (trata-se de uma questão para identificar os advérbios ou
locuções adverbiais do texto). O professor diz aos alunos que, se eles tiverem dúvida do
que são advérbios, podem consultar a tabela da página 107, que apresenta os principais
tipos de circunstâncias que os advérbios expressam e alguns exemplos. Outros alunos,
para responderem à letra “d”, perguntam o que são circunstâncias. O professor também
lhes sugere consultar o quadro da página 107. Muitos alunos não conseguem fazer a letra
“e”, e o professor afirma que eles farão essa parte juntos logo em seguida.
15h02 – O professor pergunta quem deseja ler o texto do exercício. Um aluno se voluntaria e lê.
15h03 – O professor afirma se tratar de uma letra de música e começa a corrigir o exercício
(letras “a”, “b”, “c” e “d”).
15h07 – Para responder à letra “e”, o professor começa explicando o que é uma imagem poética
(explica como sinônimo de metáfora).
15h09 – O professor relê o texto e pergunta onde o eu lírico está. Os alunos respondem que o eu
lírico está na internet. O professor pergunta aos alunos como eles perceberam isso. Ele
vai mostrando aos alunos que é o jogo de advérbios no texto que permite a localização
do eu lírico em vários lugares e que, assim, constrói a imagem do eu lírico navegando
pela internet. Quando toca, o professor diz que eles terminarão de construir a resposta na
aula seguinte. Os alunos insistem e o professor responde: “Ele usa os advérbios para
mostrar que está em todo lugar a todo momento, como na internet”.
371
APÊNDICE K – Registro das aulas 6 e 7 do PJ (advérbios)
23/10/15 – Aula 7
6ª feira – 5ª aula (17h10 – 18h)
Frequência: 17 alunos
16h41 – O professor pede para que os alunos abram os cadernos.
16h44 – O professor começa a copiar no quadro a seguinte atividade:
Analise o texto quanto a seus advérbios e locuções adverbiais.
Eram quatro horas da manhã. A estranha figura caminha pelo corredor da escola. Arrastando os
pés, maquinalmente abre as portas das salas de aula para o susto dos escondidos. Quando trancadas
abre-as com um pontapé. A quebra do silêncio com os gritos de terror faz tremer os ainda não vistos.
Talvez haja alguma saída se a polícia chegar a tempo. Os mais velhos comentaram sobre essa
possibilidade. Como um cemitério aquela escola carregava um destino trágico. Inesperadamente, a porta
da frente se abre com violência.
1) Sublinhe os advérbios e locuções adverbiais e classifique-os segundo a coluna abaixo:
A – Tempo E – Assunto
B – Lugar F – Dúvida
C – Modo G – Causa
D – Instrumento H – Finalidade
2) Resuma o texto em 2 linhas.
16h53 – O professor se senta no birô para aguardar os alunos copiarem e responderem a
atividade.
17h25 – Alguns alunos perguntam se já podem guardar o material. O professor diz que sim.
17h28 – Toca. Fim da aula.
372
APÊNDICE L – Registro descritivo da aula 8 do PJ (advérbios)
26/10/15 – Aula 8
2ª feira – 4ª aula (16h20 – 17h10)
Frequência: 21 alunos
16h24 – O professor pede que os alunos coloquem os cadernos em cima da banca para dar o visto
na atividade da aula anterior.
16h29 – O professor anuncia que começará a corrigir as questões. Dois alunos pedem para ler o
texto do exercício em voz alta. O professor pede para que um deles leia o texto e para
que a outra leia os enunciados das questões.
16h30 – O aluno lê o texto em voz alta e os demais ouvem em silêncio. Após a aluna ler o
enunciado da primeira questão, o professor relembra que os tipos de circunstâncias
enumerados na questão já foram vistos em aulas anteriores, exceto instrumento. Ele,
então, explica o que são advérbios de instrumento. Em seguida, explica a proposta da
questão e pede aos alunos que listem os advérbios e as locuções adverbiais do texto.
16h35 – A partir da locução “arrastando os pés”, o professor explica que, em alguns casos, o
gerúndio é utilizado para indicar o modo como algo é feito.
16h44 – O professor pergunta quem deseja ler sua resposta para a segunda questão. Alguns
alunos leem suas respostas e o professor vai copiando-as no quadro.
16h54 – O professor revisa o conceito de resumo. Afirma que muitos advérbios e locuções
adverbiais devem ficar de fora do resumo, porque alguns trazem elementos secundários
acerca da história lida. Relê o texto em voz alta e pergunta quais são os elementos
principais do texto. Os alunos vão respondendo e o professor comenta as respostas.
16h59 – O professor afirma que é necessário diferenciar o que é comentário do narrador e o que é
a essência da história. Relê o texto em voz alta e vai, junto com os alunos, identificando
o que há de essencial e de secundário no texto.
17h03 – O professor lê cada um dos resumos dos alunos e analisa-os junto à turma.
17h05 – O professor solicita que os alunos tentem refazer a questão. À medida que os alunos
concluem a reescrita ou quando têm dúvida, passam na banca do professor para mostrar
a atividade.
373
APÊNDICE M – Registro descritivo da aula 10 (advérbios)
28/10/15 – Aula 10
4ª feira – 2ª aula (14h20 – 15h10)
Frequência: 18 alunos
14h23 – O professor pede aos alunos que abram os cadernos para verificar quem fez a tarefa de
casa (p. 110 e 111 do livro didático – questões 2, 3 e 5). Passa de banca em banca para
dar o visto nos cadernos dos alunos.
14h29 – O professor pede para que os alunos abram os livros na página 110 para iniciar a
correção da atividade.
14h30 – Um aluno lê em voz alta o texto da 2ª questão.
14h30 – O professor pergunta qual é a opinião do autor do texto. Pergunta também o que há de
estranho no texto. Uma aluna questiona a diferença gritante entre o número de roubos
por dia estimados oficialmente e o número de roubos efetivamente registrados. O
professor fala da importância dos registros de roubos para ajudar o trabalho da polícia.
14h33 – O professor pergunta se o fragmento de reportagem lido está isento de expressar uma
opinião. Os alunos ficam em dúvida. O professor relê em voz alta, chamando a atenção
dos alunos para algumas expressões que sugerem a opinião do autor sobre a temática
tratada. Para tanto, o professor foca no uso dos advérbios e das locuções adverbiais.
14h36 – O professor lê o enunciado da letra “a” e pede aos alunos que identifiquem, como pede a
questão, os advérbios e as locuções adverbiais de tempo. Os alunos respondem.
14h37 – O professor questiona a presença massiva de advérbios e locuções adverbiais de lugar no
texto.
14h38 – O professor lê em voz alta o enunciado da letra “b”. Os alunos respondem e o professor
complementa as respostas.
14h39 – O professor lê em voz alta o enunciado da letra “c”. Alguns alunos dizem não terem
compreendido ou terem tido dificuldade em responder à questão. O professor responde à
questão junto aos alunos. O professor relembra os alunos da necessidade de uso das
aspas quando um trecho do texto for utilizado para a elaboração das respostas.
374
14h40 – O professor lê em voz alta o enunciado da terceira questão. A primeira questão aborda o
efeito de sentido que a supressão de dois advérbios causa. Os alunos, inicialmente,
demonstram dificuldades para responder à questão. O professor relê o fragmento e
responde à letra “a” com os alunos. O professor lê o enunciado da letra “b”, sobre a
função de dois advérbios no texto. Os alunos classificam as expressões quanto às
circunstâncias que elas indicam. O professor, então, explica a proposta da questão e
responde-a junto aos alunos. Ele chama atenção para o teor opinativo dos advérbios
destacados. Muitos alunos se preocupam mais em escrever uma resposta do que em
compreender a análise que o professor faz.
14h45 – O professor pede a uma aluna que leia o texto da quinta questão. A aluna faz a leitura em
voz alta para a turma.
14h47 – O professor pergunta se o texto lido expressa alguma opinião/impressão. Os alunos
ficam em dúvida. Ele solicita aos alunos que responderam à pergunta afirmativamente
que justifiquem a resposta. Uma aluna responde atendo-se às informações do texto. O
professor relê o texto em voz alta e pede para que os alunos procurem identificar a
opinião presente no texto. Uma aluna encontra a opinião expressa no texto. O professor
pede para que os alunos identifiquem as expressões do texto que revelam essa opinião.
Os alunos mencionam alguns advérbios e locuções adverbiais. O professor comenta,
então, que, mais uma vez, os advérbios e locuções adverbiais ajudaram a construir a
opinião do autor do texto.
14h50 – O professor pede para que um aluno leia em voz alta o enunciado da letra “a”. Depois,
responde à questão com os alunos. Novamente, o professor lembra-lhes da necessidade
do uso das aspas para marcar as expressões que foram tiradas do texto. Uma aluna
confunde com os parênteses. O professor mostra em seu caderno como são as aspas.
14h52 – O professor lê em voz alta o enunciado da letra “b” e responde à questão com os alunos.
14h53 – O professor pede aos alunos que abram os cadernos e começa a copiar no quadro uma
anotação teórica sobre os advérbios como modalizadores.
14h59 – O professor se senta na banca para aguardar os alunos copiarem a anotação do quadro e
para fazer a chamada.
15h10 – Toca. Fim da aula.
375
ANEXO A – Cartas do leitor trabalhadas nas aulas 2 e 3 da PR
(MARCO. Araras azuis. Horizonte geográfico, São Paulo, v. 19, n. 5, edição 107, p. 7, out. 2006)
(SILVA, L. T. Mais interessante e divertida. Ciência hoje das crianças, Rio de Janeiro, v. 18, n. 162, edição 2, p. 29,
out. 2005)
376
ANEXO B – Atividade de sistematização de conhecimentos sobre o gênero carta do leitor
(PR)
377
ANEXO C – Ficha de aula utilizada pela PR nas aulas 4, 5, 6 e 7 (carta do leitor)
378